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381 R E S U M O O presente artigo tem como objectivo a divulgação dos resultados da escavação arqueo- lógica de salvaguarda do Largo de Jesus (Mercês, Lisboa) realizada entre 3 de Janeiro e 30 de Maio de 2005. Os trabalhos efectuados permitiram identificar diversas realidades que traçam a história da ocupação desta zona da cidade desde o século XVI, destacando a importância e a responsabilidade que assumem cada vez mais a arqueologia urbana e as intervenções de emergência na reconstituição histórica de Lisboa antiga. A B S T R A C T The current paper intends to publish the results of the emergency archaeolo- gical digging of Largo de Jesus (Mercês, Lisbon), that took place between 3rd of January and 30th of May of 2005. The accomplished work allowed to identify several archaeological reali- ties that trace the history of this area since the XVIth century, pointing out the importance and the responsibility that assumes the emergency excavations for the historical reconstitu- tion of ancient Lisbon. A decisão de construção do parque de estacionamento subterrâneo do Largo de Jesus (Mer- cês, Lisboa: Fig. 1), de iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa e em regime de cedência do direito de superfície para concepção, construção e exploração pela ESLI, motivou a realização de uma intervenção de salvaguarda, prévia ao inicio da obra, numa área que, logo à partida, enquanto o centro histórico da freguesia das Mercês, enquadrado pela Igreja de Nossa Senhora de Jesus, o Convento de Jesus, o Palácio Mendia, o Palácio dos Alcáçovas e o Liceu Passos Manuel, se apre- sentava como potencialmente rica em vestígios arqueológicos e elementos patrimoniais. Nada se conhece sobre esta zona durante a época romana e o período medieval, sendo no entanto de supor, pelos registos que conhecemos posteriormente, tratar-se de uma zona erma. É, no entanto, a partir do século XVI que começam a surgir mais referências a esta zona da cidade, ao que tudo indica, na sequência do mesmo processo de povoamento que a partir de 1597 fixa a urbanização do Bairro Alto (Silva e Guinote, 1998, p. 52). Esta zona era então conhe- cida como Largos dos Cardais (Figueiredo, 2001, p. 30), um sítio “de cardos, inculto”, onde existia uma pequena ermida, doada em 1582 por Luis Rodrigues à Ordem Terceira de S. Francisco, que empreende a construção de um pequeno hospitium no local, que será progressivamente ampliado e remodelado, com a edificação do espaço conventual e da capela-mor, ainda hoje existentes (Araújo, 1993, p. 39). Largo de Jesus: contributo para a história incógnita de Lisboa antiga MARIA JOÃO SANTOS REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 381-399

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R E S U M O Opresenteartigotemcomoobjectivoadivulgaçãodosresultadosdaescavaçãoarqueo-

lógicadesalvaguardadoLargodeJesus(Mercês,Lisboa)realizadaentre3deJaneiroe30de

Maiode2005.Ostrabalhosefectuadospermitiramidentificardiversasrealidadesquetraçam

ahistóriadaocupaçãodestazonadacidadedesdeoséculoXVI,destacandoaimportânciae

aresponsabilidadequeassumemcadavezmaisaarqueologiaurbanaeas intervençõesde

emergêncianareconstituiçãohistóricadeLisboaantiga.

A B S T R A C T Thecurrentpaperintendstopublishtheresultsoftheemergencyarchaeolo-

gicaldiggingofLargodeJesus(Mercês,Lisbon),thattookplacebetween3rdofJanuaryand

30thofMayof2005.Theaccomplishedworkallowedtoidentifyseveralarchaeologicalreali-

tiesthattracethehistoryofthisareasincetheXVIthcentury,pointingouttheimportance

andtheresponsibilitythatassumestheemergencyexcavationsforthehistoricalreconstitu-

tionofancientLisbon.

AdecisãodeconstruçãodoparquedeestacionamentosubterrâneodoLargodeJesus(Mer-cês, Lisboa: Fig. 1), de iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa e em regime de cedência dodireitodesuperfícieparaconcepção,construçãoeexploraçãopelaESLI,motivouarealizaçãodeumaintervençãodesalvaguarda,préviaaoiniciodaobra,numaáreaque,logoàpartida,enquantoocentrohistóricodafreguesiadasMercês,enquadradopelaIgrejadeNossaSenhoradeJesus,oConventodeJesus,oPalácioMendia,oPaláciodosAlcáçovaseoLiceuPassosManuel,seapre-sentavacomopotencialmentericaemvestígiosarqueológicoseelementospatrimoniais.

Nadaseconhecesobreestazonaduranteaépocaromanaeoperíodomedieval,sendonoentantodesupor,pelosregistosqueconhecemosposteriormente,tratar-sedeumazonaerma.É, no entanto, a partir do século XVI que começam a surgir mais referências a esta zona dacidade,aoque tudo indica,nasequênciadomesmoprocessodepovoamentoqueapartirde1597fixaaurbanizaçãodoBairroAlto(SilvaeGuinote,1998,p.52).Estazonaeraentãoconhe-cidacomoLargos dos Cardais(Figueiredo,2001,p.30),umsítio“decardos,inculto”,ondeexistiaumapequenaermida,doadaem1582porLuisRodriguesàOrdemTerceiradeS.Francisco,queempreendeaconstruçãodeumpequenohospitiumnolocal,queseráprogressivamenteampliadoe remodelado, com a edificação do espaço conventual e da capela-mor, ainda hoje existentes(Araújo,1993,p.39).

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MARIAJOãOSANTOS

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OLargodeJesus,propriamentedito,talha-senosCardais de Jesusapartirde1771(Fig.2),tendosidoalvodesucessivasremodelaçõesentre1767e1771(Santana,1969,p.22-24).SegundoAraújo(1993,p.40),sabemosaindaqueexistia,noespaçofronteiroàactualescadariadaigreja,“umadromuitoextenso,adornadocomvolutaslaterais, levantadasnomurete,enfrentadoporsetedegrausdepedracircularerodeadodefradesdepedra”,ondeaté1873serealizoua“praçadoleite”(Fig.3),apósoquefoidesmontadoatendendoàsnovasexigênciasdetrânsito.

A intervenção realizada não só permitiu a identificação do enquadramento estrutural doantigolargodescritoporAraújo,comotrouxetambémnovoselementosparaahistóriadaocupa-çãodestesítio,atéagoradesconhecidos.

Fig. 1 LocalizaçãodaáreaintervencionadanoLargodeJesus,assinaladapelocírculo.

Fig. 2 PlantadafreguesiadeNossaSenhoradasMercêsnoúltimoquarteldoséculoXVIII,apósaremodelaçãoparoquialde1770(inSantana,1969,p.6).OquadradoabrancoassinalaaáreadoactualLargodeJesus,sendovisível,noespaçofronteiroàfachadadoConventodeJesus(destacadocomaletraC),oquepareceseraescadariadoadrodasuaigreja.

Fig. 3 GravuraanónimadoLargodeJesusapresentandoaantigaconfiguração(inFigueiredo,2001).

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1. A intervenção arqueológica

Comoestratégiadeintervenção,optámospelaaberturainicialdeumasondagemcom20mx4m,paralelaàfachadadaIgrejadeJesuseimediatamentecontíguaaoprimeirolancedeescadasdoadro,considerando-seestaáreacomoamaissensívelnadetecçãodeeventuaiscontextosdeenterramento.Foramigualmenteabertastrêsoutrassondagens,perpendicularesàprimeiraecomasdimensõesde10mx3m,comointuitodeaferiraevoluçãoestratigráficadestazonanomáximodeextensãopossí-vel(Fig.4),tendo-setornadopertinenteadadomomento,aescavaçãoemárea,comoúnicaformadepercepcionaraarticulaçãodoconjuntoarqueológico.

Apósaremoçãodasunidadesestratigráficassuperficiaiscorrespondentesàdeposiçãodeter-rasparaonivelamentodoterrenoqueantecedeuaconstruçãodosegundolancedaescadariadoadro—U.E.[1]e[2]—,foramidentificadasdiversasoutrasunidadesdecomplanação,algumasdas

Fig. 4 Implantaçãodasquatrosondagensiniciaisedasduasvalasdeprospecção,abertasnaSondagemI,antesdoiníciodaescavaçãoemárea.

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Fig. 5 AspectogeraldaconfiguraçãodoantigoLargo,vistodeSul.

Fig. 6 ConfiguraçãoantigadoLargodeJesusvistadeEste.

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quaisevidenciandoumaelevadacompactaçãodevidoàfortepressãoaqueforamsujeitasduranteostrabalhosderemodelaçãodoLargo.É,noentanto,dedestacaraidentificaçãodeabundantesossos humanos, desconexos, muito fragilizados e correspondendo a vários indivíduos em duasdestasunidadessuperficiais—U.E.[15]e[35]—,depositadasimediatamentesobasU.E.[1]e[2].Ascaracterísticasecomponentesdestasunidades, idênticasàsverificadasnosníveisdeenterra-mentoexistentesnopátiosuldazonaconventualactualmenteadscritaàAcademiadasCiências,intervencionadaem1995, indicam,todavia,quepoderãocorresponderaterrasprovenientesdesepulturasdointeriordaigrejaoudoespaçoconventual,depositadasnasequênciadequaisquertrabalhosderemodelaçãointernaqueantecederamaconstruçãodaactualescadaria.

Aremoçãodestasunidadespermitiuaidentificaçãodeumamplopavimentodecalçadaedoque,àpartida,pareciamsertrêsestruturasdistintasemalvenariapobredepedracalcáriaearga-massadecaleareão,respectivamente,nocantoNW—U.E.[30]e—enocantoNEdaáreadeesca-vação—U.E.[22]e[53]—,queoprogredirdostrabalhosviriaatornarclarofazerempartedeummesmocomplexoconstrutivo,correspondenteàdescriçãodaantigadisposiçãodoLargoquenosétransmitidaporAraújo(1993,p.40).

Trata-sedeumaconstruçãodeplantalinearsemi-helicoidal,desenvolvidaparalelamenteaoadrodaIgrejaecujasextremidadesEeWapresentamumaconfiguraçãosubquadrangularbole-ada,deondeparte,porsuavezumasegundaestruturadeplantaidêntica,maispequena,oqueconfereaestespontosdejunção,nasextremidades,aaparênciade“volutas”,comoAraújodescreve(Figs.5,6e7).Emborao toposeapresentemuitodestruídoedesagregado,distingue-seclara-

Fig. 7 PlantadaconfiguraçãoantigadoLargodeJesus.

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mentenossectoresmelhorconservadoseimediatamentesobopanodeassentamentodosegundolancedeescadasdoadro.Pudemos,assim,logonumaprimeiraetapadostrabalhos,confirmaradescriçãodoantigolargo,inteiramentecoincidentecomumaantigagravuradolocal.

Adesmontagemdopavimentodecalçadapermitiuaidentificaçãodeumanovasequênciadeunidadesdedepósito,correspondentesdestavez,aonivelamentodoterrenoparaoassentamentodaquela realidade.Acomponenteartefactual incorporadanamaioriadestasunidadesé, conse-quentemente,muitoresiduale,quandopresente,caracteriza-seporfragmentosoumuitoroladosoudepequenadimensãosobretudonoquedizrespeitoàcerâmicacomum,sendodefactoacerâ-micadeconstruçãomaisrepresentativa.

Astrêsunidadesque,nesteconjunto,sedistinguemsãoasU.E.[27],[44]e[37],envolvendonódulosdeargamassadecaleareão,resíduosdecarvão,restosfaunísticoseabundantesfragmen-tosdecerâmicadoméstica,comparticulardestaqueparaacerâmicacomum,sendoacerâmicavidradaesobretudoafaiançamuitoresiduais,comproduçõessituáveisentreosséculosXVIIeXVIII.É,noentanto,igualmenteobservável,nasU.E.[27]e[44],apresençadematerialosteológicohumano,desconexoefragmentado,testemunhodoelevadograuderevolvimentoquecaracterizaestasunidades.

Aprogressivaremoçãodesteconjuntoestratigráficoveioademonstraraacentuadainclina-çãonaturaldoterrenoparaEsteediversosoutrosníveisdedepósitoqueseguiamjáodeclive,dis-tinguindo-setrêsunidadesqueparecemdenunciarepisódiosdeincêndio,comumacomponenteartefactualsituávelentreasegundametadedoséculoXVIIeasegundametadedoséculoXVIII,sendo tentador correlacioná-los com os incêndios deflagrados durante o terramoto de 1755.AU.E.[73],constituídaporumespessoaglomeradoderesíduosdecarvãoeasU.E.[59]e[64],incorporandoigualmenteabundantescarvões,cinzasemadeiracarbonizada.

A continuidade da escavação destas unidades permitiu identificar um novo conjunto deníveis de depósito, em que camadas de compactação argilosa, sem componente artefactual ouconstituídasporgrandesaglomeradosdeelementospétreosdepequenagranulometriaefragmen-tosdecerâmicadeconstruçãoecomum—U.E.[60],[61],[91],[92],[99],[112],[114],[115]e[120]—alternamcomunidadesconstituídasporgrandesconcentraçõesderesíduosdecarvãoecerâ-micadoméstica,muitofragmentada,desconexaeemquedominaacerâmicacomumdoséculoXVII—U.E.[94],[109],[110],[111]e[119].

U.E. [2]

U.E. [15]

U.E. [25]

U.E. [27]

U.E. [41]

U.E. [44]

7%7%

7%

21%

14%

44%

Fig. 8 Gráficodarepresentatividadequantitativaderestososteológicoshumanos.

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Figs. 9 e 10AspectodaU.E.[208],sendovisíveisàsuperfícieosfragmentosdegrelhaederevestimentodeforno,àdireita,eexemplaresderevestimentointernodefornodecerâmicaexumadosnestaunidade,àesquerda,respectivamente.

Fig. 11 ExemplosdetrempesdesuportedecozeduraderecipientesrecuperadosnaU.E.[208].

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Fig. 12 Plantageraldocomplexoconstrutivoseiscentista,sucessivamenteseccionadoporinfra-estruturasdesaneamento.

Fig. 13 Pormenordaplantageraldocomplexoconstrutivoseiscentista.

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Todos estes níveis de depósito se sobrepõem ou confrontam entre si, registando-se comoúnicaperturbaçãovisível,aabertura,emmomentoindeterminado,deumavalasub-rectangularedesentidoN-S—U.E.[69]—,cujopreenchimento—U.E.[68]—umavezremovido,colocoupar-cialmenteadescobertoumaestruturaemalvenariapobredepedracalcáriaeargamassadecaleareão—U.E.[70]—,desentidoN-Seclaramenteanterioraopavimentodecalçada,assentedirec-tamentesobreníveissedimentaresdoAquitaniano(U.E.[75],[103]e[113]).Asuaaparenteconti-nuidadeparasulditouaaberturadasegundasondagemprevistaepôdeserefectivamenteobser-vadacomoprosseguimentodostrabalhosdeescavaçãoemárea,apósaaberturadaSondagemIIIedaSondagemIVquepermitiramasuamelhorcontextualização1.

Confrontandocomestaestrutura—U.E.[70]—,foiidentificadaaU.E.[208](Fig.9),constituídaporumgrandeaglomeradodefragmentosdecerâmicadeconstruçãomuitofragilizadosedeporçõesderevestimentointernoedegrelhadefornocerâmico,envolvendoabundantesfragmentosdechacotaetrempesdesuportedecozedura(Figs.10e11),parecendotratar-sedoresultadodademoliçãodeestruturasdeumaeventualoficinaoleirasituadanolocalounassuasproximidades,cujapresençaéaliássugeridapeloelevadonúmerodetrempesquepudemosregistaremváriasdasunidadesdedepó-sitosobopavimentodecalçada.Igualmentenestesentido,apontaanotíciadaexistênciadeváriasolariassedeadasnestazonaenasáreaslimítrofesdafreguesia(Neto, 1967,p.80-82).

AescavaçãoemáreapermitiunãosóexporatotalidadedasestruturasdoantigoLargocomoperspectivaraarticulaçãoentreasdiferentesrealidadesarqueológicasjáparcialmenteidentifica-das.ComaremoçãodasunidadessubjacentesaopavimentodoantigoLargo,tornou-seclaraacontinuidadeparasuldaU.E.[70],parcialmentereutilizadacomobasedeassentamentodasestru-turasdoantigoLargoequeserevelou integraraestruturadealicercedeumgrandecomplexoconstrutivodeplantasub-rectangular,definindo,comasU.E.[160]e[230],trêscompartimentosetestemunhandoumaocupaçãoanterior(Figs.12,13,14e15).

Fig. 14 Aspectogeraldostrêsníveisdealicercesdocomplexoseiscentista(U.E.[70],[232]e[233]).

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NoquadranteSWdestaedificação—seccionadopelavaladeimplantaçãodeumsistemadeesgotoembetãorecenteepelavaladeimplantaçãodeumsistemadesane-amentoantigoemcaixadealvenaria,queantecedeuapavimentaçãodoantigolargo2—,registou-seainda,adossadoàsestrutu-ras de alicerce (U.E. [160] e [230]), umpequeno pano de alvenaria pobre e deplanta subquadrangular (U.E. [239]), queenvolvia a parte superior de um grandecontentor cerâmico de armazenamento(U.E. [163]). Esta estrutura de contenção(U.E.[239]),constituídaporpedracalcáriade pequena e média dimensão, tijolo deburroeargamassadecaleareão,foiajus-tadaàtalha(U.E.[163]),prolongandoeele-vandooseubordoemcercade40cm,atra-vésde revestimentodebarro,atéàalturaconservadadasestruturasdealicerce.

Paraleloeimediatamentecontíguoaestatalha,foiidentificadoumoutrocontentor(U.E.[190]),encontrando-seoseutopomuitodestruído,nãosendoporissopossívelobservarosistemadeintegra-çãonaestrutura(Figs.16e17),que,noentanto,devemossuporidêntico,conformeautorizaoaglome-radodefragmentosdetijolosdeburroeporçõesdeargamassadecaleareãoagregadaaorevestimentodebarroqueopreenchia,semelhanteaoobservadonoprolongamentodobordodaU.E.[163].

AindanoquadranteSWejustapostaaoalçadoWdaU.E.[230],foiexpostaumapequenasecçãodepavimentomuitodestruído(U.E.[229]),apenasidentificávelpelapresençadosnegati-vosdorevestimentodetijoleiraimpressosnaargamassadebaseequepoderemosconsiderarcomoumdospisosdestecomplexoconstrutivo.

Umadasparticularidadesdestegrandecomplexohabitacional,foiapossibilidadededocu-mentaroprocessodeintegraçãodasduastalhasnoâmbitofuncionaldaestrutura,posicionadosnumdoscantosdocompartimentosulecujaaberturasesituariasensivelmenteaoníveldopisoemuso(Figs.18,19e20).Oseumododeimplantação—observávelsobretudonoexemplarmelhorconservado(U.E.[163])—terádeterminado,numaprimeirafase,aescavaçãodeumagrandevaladeimplantação,apósoqueseteráprocedidoàconsolidaçãoeimpermeabilizaçãodosubstractoargiloso,atravésdoseuendurecimentoporacçãodofogoacéuaberto,resultandonasuperfíciedeargilavermelhaqueidentificámoscomoU.E.[218](Fig.21).Numasegundafase,terásidodeposi-tada parte do substrato geológico removido (que, efectivamente, nesta área, denuncia revolvi-mento)navala,deixandoespaçosuficienteapenasparaadescidadeambasastalhas,depositadascadaumasobreumtijolodeburroisolado,sendoentãooespaçolivreentreambaseaunidadedepositadapreenchidocomumaunidadedistinta(U.E.[210]),oqueexplicaapronunciadaestrei-tezadaaparentevaladeimplantação(Fig.22).Porfim,enumaúltimafase,ter-se-áprocedidoàsuaincorporaçãonopanodealvenariaqueconfrontacomasparedesdoedifício.

Estasrealidadesparecemdistinguirestecompartimento—definidopelasU.E.[160],[173]e[230]—comoumazonaespecializadadeserviços,dearmazenagemoudecozinha,enquadradanopisotérreodahabitação.

Fig. 15 Plantageraldocomplexoconstrutivo,destacando-seoseualinhamentoemrelaçãoaoactualedifíciodoPalácioMendia,visívelaofundo.

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Figs. 16 e 17 Pormenordosistemadeintegraçãodasduastalhasnocomplexoconstrutivo.Osnúmerosentreparêntesesidentificamasunidadesestratigráficas.

Fig. 18 AspectodoperfildaU.E.[163].

Figs. 19 e 20 Pormenoresdaadaptaçãodorecipientedearmazenamento,nasuaintegraçãodaestruturaseiscentista.

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NosectorEstedaáreade intervenção,a remoçãodaU.E. [208]revelou,porsuavez,duasgrandesunidadesdederrube—U.E.[93]e[209]—,sobasquaispudemosidentificarduasnovasestruturasdealicerce,situadosaumacotamuitomaisinferiordoqueaU.E.[70],masparalelasaestae igualmente implantadossobreosubstratogeológico,denunciandonãoobstanteumele-vadograudedestruição(U.E.[232]e[233]).Querassuascaracterísticasconstrutivas;querasuadisposição,claramenteparalelaàsU.E.[70]e[233];eimplantação,directamentesobreomesmosubstratogeológico,apontamcomomuitoprovávelque,ambasestasestruturas,tenhamoriginal-menteintegradoomesmocomplexoconstrutivo.Apronunciadadiferençadecotaregistadaentreestaseasoutrasrealidadesconstrutivas,podeserfacilmenteexplicadopelofactodesesituaremprecisamentenazonadepronunciadodeclive,tendosidonecessárioimplantarosalicercesmaisfundonestaárea,demodoanivelaraedificação.

Apresençaeotipodeimplantaçãodestastalhas,assimcomoascaracterísticasconstrutivasdas estruturas colocadas a descoberto sob o pavimento do antigo largo3, denuncia estarmosperanteosalicercesdeumcomplexohabitacionalseiscentistae,atendendoàssuasgrandesdimen-sões,deprovávelcaráctersenhorial(SilvaeGuinote,1998,p.56).

É,aestetítulo,interessantenotarqueéjustamenteapartirdoterramotode1597eaolongodetodooséculoXVIIqueéconstruídaamaiorpartedospaláciosnoBairroAlto.Igualmentenotó-rioéofactodeoactualPalácioMendia,cujafachadaEconfinacomoLargodeJesus,seencontrarperfeitamenteenquadradonaplantaortogonaldetodoestecomplexo,estandooseucunhalSEalinhadoequaseemcontactocomoprolongamentodaU.E.[160],conformeobservadonoposte-rioracompanhamentoarqueológicodostrabalhosdeconstruçãodoparquedeestacionamentosubterrâneoprojectado.Ambosestesaspectosnos levamacolocarahipótesedeestecomplexoconstrutivoserelacionarefectivamentecomoactualpalácio,correspondendoàsuaprimitivacon-figuração,posteriormenteremodelada.

2. A componente artefactual

Noquetocaàcomponenteartefactualrecuperada,é,desdelogo,manifestaaausênciadeumúnicoexemplarinteiro,dominandoaextremafragmentaçãodaspeças.

Fig. 21 Aspectodasuperfíciedeargilaendurecida(U.E.[218])sobreaqualforamcolocadasastalhas.

Fig. 22 Pormenordasimetriadasduastalhasedopreenchimentodasuaaparentementeestreitavaladeimplantação.

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2.1. Cerâmica comum

Nosrecipientesdecerâmicacomum,aquasetotalidadedosexemplaresrecuperadoscorres-pondeafabricosdeLisboa,predominandoaspastasvermelhaseassuperfíciescomaguada,detonalidadeidênticaàpastaouligeiramentemaisescura,massemprepoucoespessa.

Asformasmaisrecorrentes,situáveisnageneralidade,entreofinaldoséculoXVIeoiníciodoséculoXVIII,sãoostachosdebordodesecçãosubcircular,levementeexvasadoeasaslateraissub-triangularescomarranqueapartirdobordo,paredesrectasefundoplano;ostestosdebordodesecçãosubtriangularexvasado;asbilhasecântarosdebordocomsecçãosub-triangular,levementeexvasadoouquaserectoeboleado,delimitadonoexteriorporumasucessãodeduasatrêsestriasparalelas;asinfusasdecoloestranguladoebordointrovertido,comfundodestacadoeestrangu-ladonadirecçãodabase;osfragmentosdefogareirossemqualquerevidênciadeuso;easescudelasdebordoemaba,exvasadoeboleadoefundocôncavoemressalto(Figs.23,24e25).

Menoscomunssãoospúcarosepucarinhasdeparedesfinas,pastasdepuradas,detonali-dadevermelhaecomprofusadecoraçãoimpressaemoldada,defeiçãotendencialmentegeomé-trica,típicosdoséculoXVI(Fig.26)eoutrosfabricoscomoosrecipientescomdecoraçãogeomé-trica recortada ou incisa ou ainda incrustada de pequenos elementos calcários, lembrando asproduçõestradicionaisdaregiãodeNisa.

Figs. 23 e 24 Fragmentosdebilhaeinfusaemcerâmicacomum.SéculoXVII.

Fig. 26 Fragmentosderecipientesdecerâmicafina.SéculoXVII(U.E.[110]).

Fig. 25 Exemplosdebordosdepanelasecântaros.SéculoXVII(U.E.[110]).

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2.2. Cerâmica vidrada

Acerâmicavidradaétambémrepresentadaporproduçõeslocais,geralmentesemdecoraçãoesituáveisnasuamaioriaentreoiníciodoséculoXVIIeoiníciodoséculoXVIII.Aformamaiscomum,é,semqualquerdúvidaoalguidar,debordoemabaespessamuitoextrovertidaouenro-lado e levemente exvasada, fundo plano, paredes convergentes e vidrado de chumbo verde oumelado.Menosrecorrentessãoassaladeiras,tachosecaçoilas,ospotesdeasasfitiformesousub-circularescomdorsoestriado,defundoplanoebordosquepodemvariarentreaabaestreitaeexvasadaeasecçãosubcircular,levementeextrovertida,sendoovidradoemtonsmelados,verdeoumeladoirisadodeverde(Figs.27e28).

2.3. Faiança

Noquetocaàfaiança,dominamasproduçõesdeLisboamonocromáticas,situáveisentreoséculoXVIIeaprimeirametadedoséculoXVIIIecaracterizadasporpastasdetomamarelo,pre-dominantementedepuradas.EmboraseregistemfabricosmaisrecentesdeplenoséculoXVIII/iníciodoséculoXIX,representadospelasfaiançasdevidradoazul,decoradascommotivosvegeta-listase/ougeométricosaazulmaisescuroe/ouabrancoepelasfaiançasdevidradobrancoespessosemdecoração,sãosobretudocomunsosfabricoslisboetasdofinaldoséculoXVI,iníciodoséculoXVII,correspondentesafragmentosdepratos,malgas,saladeirasetravessas.

Deste conjunto, podemos distinguir três subgrupos. O primeiro, caracterizado por umadecoraçãosimplesedefeiçãogeométrica,aazul,geralmenteduasbandashorizontais,imediata-mentesobobordonasuperfícieinternaenatransiçãoparaofundo,noqualéporvezesrepresen-tadaumaespiralouumcírculoconcêntrico(Figs.29,30,31e32).Osegundogrupodistingue-sepelaconjugaçãodadecoraçãogeométricalinearcomgramáticasvegetalistas,formandocomposi-çõesmaiselaboradasque,normalmente,preenchemtodaasuperfícieinterna—eporvezes,externa—dorecipiente,apinceladasgrossas(Figs.33,34,35,36,37e38).Finalmente,oterceirogrupo,porfim,destaca-sedosanteriorespelasuagramáticadecorativanaturalista,deinspiraçãoorientaleformandofrequentementericosmotivosfloraisezoomórficos(Figs.39,40,41e42).

Figs. 27 e 28 Fragmentosdasformasmaiscomunsderecipientesemcerâmicavidrada.SéculosXVII-XVIII(U.E.[59]).

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Figs. 29 e 30 FragmentodemalgaemfaiançadoséculoXVI(U.E.[208]).

Figs. 31 e 32 FragmentosdebordoefundodemalgasdoséculoXVI(U.E.[209]).

Figs. 33 e 34 FragmentosdesaladeiraemalgasdoséculoXVII(U.E.[191]).

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Figs. 35 e 36 FragmentodemalgadoséculoXVII(U.E.[59]).

Figs. 37 e 38 Fragmentosdepratosfundosousaladeiras.SéculoXVII(U.E.[59]).

Figs. 39 e 40 FragmentosdepratosemfaiançadoséculoXVII(U.E.[59]).

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Figs. 41 e 42 Fragmentosdebordodetravessa.SéculoXVII(U.E.[59]).

Fig. 43 FragmentosdediversosrecipientesdosséculosXVII--XVIII(U.E.[110]).

Emqualquerumdestestrêssubgrupos,estãopresentesascaracterísticaspinceladasdiago-nais na superfície externa, em número geralmente não inferior a três (Silva e Guinote, 1998,p. 107-109), formando por vezes, desenhos oculares, que caracterizam as produções de Lisboa.Aspastassão,geralmente,depuradasehomogéneas,comtonsqueoscilamentreoamarelo-esbran-quiçadoeoamarelovivo;registam-secomoformasmaisrepresentativas,ospratosdefundodebase anelar e bordo recto, os grandes pratos fundos ou saladeiras de base anelar, as malgas debordoverticaleperfilsemiglobular,depéanelareastravessasdefundoanelarebordoemaba,muitoextrovertidoefrequentementerecortado.

2.4. Porcelana

Aocorrênciadefragmentosderecipientesem porcelana é manifestamente pouco repre-sentativa em todas as unidades estratigráficasidentificadas, caracterizando-se sobretudo porproduçõesnacionaissituáveisnoséculoXVIII,em que dominam os pratos e as tigelas comdecoraçõesnaturalistasoufloraismonocromá-ticasaazul,registando-seaindafragmentosdechávenas,jarroseoutroselementosdecorativos,de que é exemplo uma tampa hexagonal decaixa. Distinguem-se ainda alguns exemplaresde porcelana chinesa decorada a azul e commarcadefabrico(Fig.43).

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2.5. Vidro

Os elementos em vidro recuperados cor-respondem, na sua maioria, a vidros antigossituáveisentreofinaldoséculoXVIeoséculoXVII, muito fragilizados e de pasta irisada eescamosa,dequesãoexemplosos fragmentosdegarrafasincoloreseosgargalosdepequenosfrascos de colo tubular e bordo em aba planaexvasada,simplesouirisado(Fig.44).

2.6. Componentes de mobiliário e outros elementos

Foi possível identificar ainda diversoscomponentes de mobiliário, como tachas emcobre, usadas para a fixação de estofos emcouroadeterminadaspeçasdemobiliário,ele-mentosdepuxadoresemferroe“cunhas”emosso,facetadaseutilizadasnasjuntasdepeçasdemobiliário(Fig.45),assimcomopequenosele-mentosdecorativoszoomórficosigualmentetalhadosemosso(Figs.46e47).Apresençadestes

Fig. 44 Fragmentosdediversosrecipientesemvidro.SéculoXVII(U.E.[59]).

Fig. 47 Fragmentodeelementodecorativoemosso(U.E.[84]). Fig. 48 Elementodetoucadoremosso(U.E.[64]).

Fig. 45 Componentesdemobiliárioemosso(U.E.[59]). Fig. 46 Fragmentodeelementodecorativoemosso(U.E.[84]).

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elementosemunidadesdedepósitoeacontinuidadedoseuusoe,porvezes,mesmodoseuaspectoformaldesdeoséculoXVII,nãopermite,todavia,umacontextualizaçãocronológicamaisprecisa.É,damesmaforma,difícildesituarospequenoselementosdetoucadoremosso,emboraparaestessejadesuporasuaintegraçãonosséculosXVI-XVII(Fig.48).

3. Considerações finais

OstrabalhosefectuadospermitiramidentificaraevoluçãodadinâmicadeocupaçãodestazonaparticulardacidadedeLisboa,desconhecidaatéaomomento,equepôderegistarnolocalaexistênciadeumaamplamoradiasenhorialdoperíodocompreendidoentreofinaldoséculoXVIeoséculoXVII,nasequênciadoprocessourbanísticoqueapartirde1597fixaoBairroAltoecujasevidênciassugeremtratar-sedaprimitivaconfiguraçãodoactualPalácioMendia.

Foipossível,damesmaforma,registaraexistêncianolocal,deumaantigaolaria,atravésdosvestígiosdasuadestruição,cujacomponenteartefactualnosautorizaasituarnasegundametadedoséculoXVII.

Pudemosigualmenteobservarasucessãoestratigráficadesucessivasdestruiçõeseremodela-çõesdoespaçodoantigoLargoatéassumiraactualconfiguração,esboçando,destaforma,maisumpequenocontributoparaoconhecimentodahistóriaincógnitadeLisboa.

nOTAS

1 Efectuou-se,paralelamente,naSondagemI,aaberturadeduasvalas lajedecoberturaconservadadestesistemadesaneamento,deprospecçãoestratigráfica,com1mdelargurapor4mde posteriormentereaproveitadoparaainstalaçãodeumacondutadecomprimento—ValadeProspecção1(VP1)eValadeProspecção2 abastecimentodeáguadoHospitaldeJesus,tendoparaisso,sido(VP2)—,posicionadas,respectivamente,nossectoresE(naáreade levantadoopavimentodecalçadaeremovidasassuasprimitivasdecliveregistada)eW(justapostaaoalçadoWdaU.E.[70]),no lajesdecobertura,oqueexplicaaausênciadecalçadaemtodaestasentidodepercepcionaraevoluçãoestratigráficadestasáreas. zona.

2 Talvezintegradonomesmoprojectoderemodelaçãodazona, 3 Muitoemboranãoincluamgradedeestacariademadeiranoseuconformeindicaoconjuntoconservadoeisoladodetrêspedrasdo alicerce(SilvaeGuinote,1998,p.53).pavimentodecalçada—U.E.[228]—,ligadasporargamassaàúnica

REfERêncIAS bIbLIOGRáfIcAS

ARAúJO,N.(1993)-Peregrinações em Lisboa, Livro V.Lisboa:ParceriaA.M.Pereira.

FIGUEIREDO,P.(2001)-Mercês: a freguesia na História.Lisboa:JuntadeFreguesiadasMercês.

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