Laura Iingalls Wilder - 6 - O Longo Inverno

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    O LONGO INVERNO

    Laura Ingalls Wilder

    Srie A Casa na Pradaria5

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    NDICE

    I - Fenar enquanto o sol brilha ........ 7II - Um recado na cidade .............. 16III - O Outono ........................ 24IV - Nevasca em Outubro ............... 30V - Depois da tempestade .............. 35VI - Vero de So Martinho ............ 41VII - Aviso do ndio .................. 45VIII - Instalados na cidade ........... 50IX - Cap Garland ...................... 56X - Trs dias de nevasca .............. 67XI - O pai vai a Volga ................ 73XII - Sozinhos ........................ 80XIII - s suas rajadas resistiremos ... 85XIV - Um dia luminoso ................. 90XV - Sem comboios ..................... 95

    XVI - Tempo ameno .................... 101XVII - Trigo de semente .............. 108XVIII - Feliz Natal .................. 113XIX - Querer poder ................. 125XX - Antlopes! ...................... 132XXI - O duro Inverno ................. 140XXII - Frio e escuro ................. 148XXIII - O trigo na parede ............ 158XXIV - Sem verdadeira fome ........... 164XXV - Livre e independente ........... 166XXVI - Uma aberta .................... 169

    XXVII - Para o po de cada dia ....... 172XXVIII - Quatro dias de nevasca ...... 185XXIX - O ltimo quilmetro ........... 191XXX - No pode vencer-nos ............ 200XXXI - espera do comboio ........... 203XXXII - A barrica de Natal ........... 209XXXIII - Natal em Maio ............... 212

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    CAPTULO I

    FENAR ENQUANTO O SOL BRILHA

    O zumbido da mquina de ceifar chegava alegremente do antigochafurdo dos bfalos, a sul da cabana da reserva, onde a ervade haste azul crescia alta e basta e o pai estava a cort-lapara feno.O cu erguia-se, alto e tremeluzente de calor, sobre aluminosa pradaria. J a meio caminho do poente, o solescaldava como ao meio-dia. O vento queimava, de to quente.Mas o pai ainda tinha de ceifar durante horas, antes de poderdar por findo o dia.Laura encheu um balde de gua no poo beira do PntanoGrande. Lavou o cntaro castanho, at o sentir frio na mo,encheu-o de gua fresca, tapou-o bem tapado e ps-se acaminho do campo do feno.

    Pairavam sobre o carreiro enxames de borboletas brancas. Umaliblula de asas finssimas caou velozmente um mosquito. Osgeomis andavam s corridinhas no restolho da erva cortada. Derepente, fugiram como se a morte os perseguisse e meteram-senas suas tocas. Laura viu ento uma sombra veloz, olhou paracima e depararam--se-lhe os olhos e as garras de um falco.Mas os pequenos geomis j estavam todos em segurana nas suastocas.O pai ficou contente ao ver Laura com o cntaro. Desceu daceifeira e bebeu um grande golo.- Ah, isto consola! - exclamou, e levou de novo o cntaro

    boca.Depois rolhou-o, p-lo no cho e cobriu-o com erva cortada.- Com este sol um homem quase deseja um punhado de rebentosde rvores, para ter uma sombra - brincou, embora estivesseverdadeiramente satisfeito por no haver ali rvores;fartara-se de desenraizar rebentos na sua clareira daFloresta Grande, todos os Veres, mas ali, nas pradarias doDacota, no havia uma nica rvore, nem um rebento, nem umapontinha de sombra em lado nenhum. -De qualquer modo, um homem trabalha melhor quando estquente! - exclamou alegremente e incitou os cavalos.

    Sam e David recomearam a puxar a ceifeira. A comprida lminacom dentes de ao encostava-se firmemente erva alta edeixava-a deitada no cho. O pai, sentado no alto assento deferro a cu aberto, via-a cair, com a mo na alavanca.Laura sentou-se na erva, para o ver dar uma volta completa. Ocalor, ali, cheirava bem, como um forno quando est po acozer. Os pequenos geomis s riscas castanhas e amarelasandavam de novo s corridinhas, volta dela. Pssaros

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    minsculos davam s asas e voavam, para se agarrarem aoscaules inclinados da erva, mal equilibrados. Uma cobra sriscas aproximou-se, a ondular e a curvar, atravs da erva.Sentada com o queixo nos joelhos, Laura sentiu-se, de sbito,grande como uma montanha, quando a cobra inofensiva arqueou acabea e olhou para a muralha alta do seu vestido de panoestampado.Os olhos redondos do rptil brilhavam como contas e a sualngua vibrava to depressa que parecia um jactozinho devapor. Toda a cobra de riscas brilhantes tinha um aragradvel. Laura sabia que aquelas cobras no faziam mal aningum e eram teis nas quintas, porque comiam insectosnocivos s culturas.Baixou de novo o pescoo e, descrevendo um nguloperfeitamente recto, por no poder passar por cima de Laura,continuou a ondular volta dela e desapareceu na erva.Depois o rudo da mquina de ceifar aumentou e os cavalos

    aproximaram-se, a acenar lentamente com a cabea, a compassocom as patas. David assustou-se quando Laura falou, quasedebaixo do seu focinho.- A! - gritou o pai, apanhado de surpresa. - Laura! Penseique te tinhas ido embora. Porque ficaste a escondida naerva, como uma galinha da pradaria?- P, porque no posso ajud-lo a fazer o feno? Deixe-me, P,por favor!O pai tirou o chapu e passou os dedos pelo cabelo hmido desuor, que ficou todo em p e com o vento a soprar atravsdele.

    - No s nem muito grande nem muito forte, Meia Canequinha.- Tenho quase catorze anos - lembrou Laura. - Posso ajudar,P, sei que posso.A mquina de ceifar custara to caro que no restava ao paidinheiro para pagar a quem o ajudasse. Tambm no podiapermutar trabalho, pois ainda havia pouca gente naquelaregio nova e a que havia estava atarefada nas suas prpriasreservas. Mas ele precisava de quem o ajudasse a empilhar ofeno.- Bem, talvez possas... Experimentamos. Se fores capaz,faremos este feno todo sozinhos!

    Laura compreendeu que a ideia tirava um peso do pensamento dopai e foi a correr cabana dizer me.- Bem, acho que podes... - disse a me, mas duvidosa.No gostava de ver mulheres a trabalhar nos campos. S asestrangeiras faziam isso. Ela e as suas pequenas eramamericanas, estavam acima de fazer o trabalho de homens. Masa ajuda de Laura, no feno, resolveria o problema. Por isso,decidiu-se:

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    - Sim, Laura, podes.Carrie quis logo ajudar tambm:- Eu levo-lhes a gua para beberem. J tenho tamanho paralevar o cntaro! - Carrie tinha quase dez anos, mas erapequena para a sua idade.- E eu farei a tua parte da lida da casa, alm da minha -ofereceu-se Maria, toda contente, pois orgulhava-se de poderlavar a loua e fazer as camas to bem como Laura, apesar deser cega.O sol e o vento secavam a erva cortada to depressa que o paiteve de trabalhar com o ancinho no dia seguinte: reuniu-a emcompridas enfiadas e depois fez com elas grandes medas. E nooutro dia, de manhzinha cedo, quando a alvorada ainda estavafresca e as cotovias dos prados cantavam, Laura foi para ocampo com o pai, na grade do feno atrelada aos cavalos.O pai caminhava ao lado da carroa e conduzia os animais porentre as medas. Parava junto de cada uma e com a forquilha

    atirava o feno para a grade. O feno caa, solto, pelo ladoalto e Laura pisava-o, para o acamar. Para cima e para baixo,para trs e para a frente, ia acamando o feno solto com todaa fora das suas pernas, enquanto a forquilha continuava alanar mais. No parava sequer quando a carroa se dirigia,aos solavancos, para a meda seguinte. Ento o pai atiravamais feno, do outro lado.O feno ia subindo debaixo dos seus ps, to solidamenteacamado quanto era possvel. Para cima e para baixo, depressae com fora, as suas pernas no paravam, a todo o comprimentoe a toda a largura da grade. O sol estava mais quente e o

    cheiro do feno subia, adocicado e forte. Parecia ressaltar-lhe debaixo dos ps, enquanto continuava a cair pelos ladosda grade.Entretanto, ela ia subindo cada vez mais alto no fenoacamado. A cabea de Laura subiu acima das arestas da grade eela poderia ter olhado toda a pradaria, se pudesse parar depisar. Por fim a grade ficou cheia, mas a forquilha do paicontinuou a lanar mais.Laura j estava muito empoleirada e o feno escorregadiodescia volta dela. Continuava a pisar cuidadosamente, parao acamar. Tinha a cara e o pescoo molhados de transpirao e

    o suor escorria-lhe pelas costas abaixo.

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    A touca pendia-lhe nas costas, presa pelas fitas, e astranas tinham-se-lhe desmanchado. O seu comprido cabelocastanho esvoaava, solto, ao vento.Depois o pai subiu para os balancins, apoiou um p no largo

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    quadril de David e amarinhou para a carga de feno.- Fizeste bom trabalho, Laura - elogiou. - Acamaste to bem ofeno que temos uma grande carga na carroa.Laura descansou no feno quente, que fazia comicho, enquantoo pai conduzia a carroa para perto do estbulo. Depoisdeixou-se escorregar por ali abaixo e sentou-se sombra dacarroa. O pai atirou algum feno para o cho, com aforquilha, e depois desceu e espalhou-o regularmente, paraformar a grande base redonda de um monte de feno. Subiu outravez para a carga e atirou mais feno, voltou a descer ealisou-o e pisou-o, para o acamar.- Eu podia espalh-lo, P - sugeriu Laura. - Assim noandaria a subir e a descer.O pai empurrou o chapu para trs e apoiou-se um momento naforquilha.

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    - Isto , realmente, trabalho para dois... Deste modo levamuito tempo. A boa vontade ajuda muito, mas tu no s muitogrande, Meia Canequinha.O mais que Laura conseguiu foi que ele dissesse: Bem,veremos. Mas quando voltaram com outro carregamento, o paideu-lhe uma forquilha e deixou-a experimentar. A compridaforquilha era maior do que ela e Laura no sabia utiliz-la;por isso, manejava-a desajeitadamente. Mas enquanto o paiatirava o feno da carroa ela espalhava-o o melhor que podiae andava roda e roda em cima da meda, para que ficasse

    bem acamada. Mas, apesar dos seus esforos, o pai teve denivelar a meda, para a carga seguinte.Entretanto, o sol e o vento tornaram-se mais quentes e aspernas de Laura tremiam, enquanto ela as obrigava a pisar ofeno. Sabiam-lhe bem os pequenos intervalos de descanso entreo campo e a meda. Comeou a ter sede. Depois a sede aumentoue por fim tornou-se tanta que no a deixava pensar em maisnada. Pareceu decorrer uma eternidade at s dez horas,altura em que Carrie apareceu a arrastar o cntaro meio.O pai disse a Laura que bebesse primeiro, mas no muito.Nunca nada lhe soubera to bem como aquela humidade fresca a

    descer-lhe pela garganta. O gosto da gua f-la parar,surpreendida, e Carrie bateu as palmas e gritou, a rir:- No digas, Laura, no digas at o P provar!A me mandara-lhes gua de gengibre. Adoara a fresca gua dopoo com acar, juntara uma pinguinha de vinagre para dargosto e deitara gengibre bastante para lhes aquecer oestmago e permitir beber at no terem sede. A gua degengibre no lhes faria mal, como a gua fresca, simples,

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    podia fazer, estando eles to encalorados. Aquele regalotransformou um dia vulgar num dia especial - o primeiro diaem que Laura ajudou a fazer o feno.Ao meio-dia transportaram o feno todo e completaram a meda,de cuja cobertura o pai se encarregou. necessria muitahabilidade para arredondar o cimo de uma meda de feno, demodo que no deixe entrar a chuva.O almoo estava pronto quando foram para a cabana. A meolhou vivamente para Laura e perguntou:- O trabalho duro de mais para ela, Charles?- Oh, no! Ela resistente como um cavalinho francs. Tem-meajudado muito. Precisaria do dia inteiro para emedar o fenosozinho, mas assim tenho a tarde toda para ceifar.Laura sentiu-se orgulhosa. Doam-lhe os braos, as costas eas pernas, e nessa noite o corpo todo doeu-lhe tanto que lherebentaram lgrimas dos olhos. Mas no disse nada a ningum.Assim que o pai cortara e ancinhara feno suficiente para

    outra meda,

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    ele e Laura fizeram-na. Os braos e as pernas de Laurahabituaram-se ao trabalho e j no lhe doeram tanto. Gostavade ver as medas que ajudava a fazer. Ajudou o pai a fazer umameda de cada lado da porta do estbulo e outra comprida,sobre todo o cimo do estbulo escavado. Alm dessas, fizerammais trs grandes medas.- Agora que todo o nosso feno da terra alta est cortado,

    quero empilhar uma quantidade de feno do pntano - disse opai. - No custa nada e talvez haja quem queira compr-lo,quando vierem novos colonos na prxima Primavera.Por isso, o pai cortou a erva alta e spera do Pntano Grandee Laura ajudou-o a empilh-lo em medas. Era muito mais pesadodo que o outro e Laura no pde manej-lo com a forquilha,mas pde pis-lo para o acamar.Um dia, depois de o pai subir para cima da carga, ela disse-lhe:- Deixou um monte de feno. P.- Deixei?! - admirou-se o pai. - Onde?

    - Ali, na erva alta.O pai olhou para onde ela apontou e depois disse:- Aquilo no um monte de feno, Meia Canequinha: uma casade ratos-almiscarados. - Olhou-a mais um momento. - Vou v-lamais de perto. Queres vir comigo? Os cavalos esperam.Abriu caminho atravs da erva spera e alta e Laura seguiu-o,logo atrs dele. O solo era macio e esponjoso e havia poasde gua entre as razes da erva. Laura s via as costas do

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    pai e erva a toda a sua volta, mais alta do que ela.Caminhava com cuidado, pois o solo tornava-se cada vez maishmido. De sbito, viu uma extenso de gua sua frente, numcharco tremeluzente.A casa dos ratos-almiscarados erguia-se beira do charco.Era mais alta do que Laura e to larga que os seus braos nopodiam abarc-la.

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    Os lados e o cimo arredondados eram cinzentos, irregulares eduros. Os ratos-almiscarados mastigaram erva seca at afazerem em bocadinhos e depois haviam-na misturado com lama,conseguindo assim uma boa massa para a sua casa. Construram-na solidamente e alisaram e arredondaram o cimo com cuidado,para que a gua da chuva escorresse.A casa no tinha porta. Nem havia nenhum caminho que a ela

    conduzisse. No restolho da erva que a cercava e ao longo damargem lamacenta do charco no se via uma nica pegada. Nadaindicava como os ratos-almiscarados entravam e saam.O pai disse que no interior daquelas paredes grossas osratos-almiscarados estavam a dormir, cada famlia enroscadano seu prprio quartinho forrado de erva macia. Cada quartotinha uma espcie de pequeno portal redondo que abria para umcorredor em declive. O corredor descia, curvo, atravs dacasa, de alto a baixo, e terminava na gua escura. Era essa aporta principal da casa dos ratos-almiscarados.Depois de o Sol se pr, os ratos acordavam e desciam o liso

    cho de lama do seu corredor. Mergulhavam na gua preta eatravessavam o charco de onde saam para a noite vasta eagreste. Durante toda a noite, luz das estrelas ou ao luar,nadavam e brincavam ao longo das margens, alimentando-se derazes, caules e folhas de plantas aquticas e de erva.Quando a alvorada rompia, cinzenta, nadavam para casa.Mergulhavam e entravam pela sua porta de gua. A pingar,subiam o corredor, cada um a caminho do seu quarto forrado deerva, onde se enroscavam confortavelmente para dormirem.Laura ps a mo na parede da casa. A massa spera estavaquente, do vento escaldante e do sol, mas no interior escuro

    das grossas paredes de lama o ar devia ser fresco. Agradou-lhe pensar que os ratos-almiscarados estavam a dormir ldentro.Mas o pai abanava a cabea:- Vamos ter um Inverno duro - observou, como se a perspectivalhe no agradasse.- Porqu? Como sabe? - perguntou Laura, surpreendida.- Quanto mais frio vier a ser o Inverno, tanto mais grossas

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    constrem os ratos-almiscarados as paredes das suas casas.Nunca vi uma casa de ratos-almiscarados to macia como esta.Laura olhou-a outra vez. Era muito slida e muito grande. Maso sol brilhava, queimava-lhe os ombros atravs do pano pudodo vestido, e o vento quente soprava, e mais forte ainda doque o cheiro a lama hmida do pntano era o odor da erva quesecava rapidamente ao sol. Naquele ambiente, Laura noconseguia pensar em gelo, neve e frio agreste.- Como podem os ratos-almiscarados saber, P?

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    - Ignoro como sabem, mas o certo que sabem. Suponho queDeus arranja uma maneira qualquer de lhes dizer.- Ento porque no nos diz a ns tambm?- Porque ns no somos animais, Laura. Somos seres humanos e,como diz na Declarao da Independncia, Deus criou-nos

    livres. Isso significa que temos de cuidar de ns.- Pensava que Deus cuidava de ns - disse Laura, baixinho.- Cuida, desde que faamos o que est certo. E d-nos umaconscincia e um crebro para sabermos o que est certo. Masdeixa-nos livres de fazermos o que nos agradar. essa adiferena entre ns e tudo o mais que existe na Criao.- Os ratos-almiscarados no podem fazer o que lhes agrada? -perguntou Laura, surpreendida.- No. No sei explicar-te porqu, mas v-se que no podem.Repara naquela casa deles. Os ratos-almiscarados tm deconstruir aquele tipo de casa. Tiveram sempre e sempre tero.

    evidente que no sabem construir nenhum outro tipo de casa.Mas as pessoas podem construir todos os tipos de casas. Umhomem pode construir qualquer tipo de casa que imagine. Porisso, se a sua casa no o resguarda do tempo, a culpa dele,que livre e independente.O pai ficou um minuto parado, a pensar, e depois fez um gestocom a cabea.- Vamos, Meia Canequinha. melhor fazermos o feno enquanto osol brilha.Os seus olhos brilharam e Laura riu-se, porque o sol estava abrilhar com toda a fora. Mas durante todo o resto da tarde

    estiveram muito srios.Os ratos-almiscarados tinham uma casa quente e de paredesslidas, para no deixarem entrar o frio e a neve, mas acabana da reserva era feita de tbuas finas que o calor doVero secara e fizera encolher de tal maneira que os sarrafosestreitos quase no cobriam as fendas largas das paredes.Tbuas e papel alcatroado no constituam um abrigo muitoaconchegado num Inverno rigoroso.

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    CAPTULO II

    UM RECADO NA CIDADE

    Numa manh de Setembro, a erva apareceu toda branca de geada.Mas era uma geada leve, que se derreteu assim que o sol lhetocou. J desaparecera, quando Laura olhou para a manhluminosa. Mas ao pequeno-almoo o pai disse que erasurpreendente gear to cedo.- Far mal ao feno? - perguntou-lhe Laura.- Oh, no! Uma geada to leve s o far secar mais depressa,quando for cortado. No entanto, acho melhor apressar-me, poisj no deve faltar muito para no se poder fazer mais feno.Trabalhou to depressa, nessa tarde, que mal parou para beber

    quando Laura lhe levou o cntaro da gua. Andava a ceifar noPntano Grande.- Tapa o cntaro e cobre-o, Meia Canequinha - disse, aodevolver-lho. - Estou decidido a ter este bocado ceifadoantes de o Sol se pr.Incitou Sam e David, que recomearam a puxar a mquina deceifar. De sbito, a mquina pareceu dar uma espcie de gritoe o pai disse aos cavalos.- A-!Laura foi a correr ver o que acontecera. O pai estava a ver abarra cortadora: havia uma falha na srie de brilhantes

    pontas de ao. A barra perdera um dos seus dentes. O paiapanhou os bocados, mas no tinham conserto possvel.- No h remdio - disse. - Tenho de comprar outra pea. Nohavia nada a fazer. O pai pensou um momento e depoisdisse:- Laura, quero que vs cidade compr-la. No posso perdertempo e enquanto fores sempre irei ceifando alguma coisa. Vaio mais depressa que puderes. A me d-te os cinco cntimosnecessrios. Compra-a na Loja de Ferragens Fuller.

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    - Sim, P.Laura no gostava de ir cidade, por haver l muita gente.No era bem medo o que tinha, mas olhos estranhos a olharem-na constrangiam-na.Tinha um vestido limpo para vestir e tinha botinas. Enquantose dirigia apressadamente para casa, pensou que talvez a mea deixasse usar a fita do cabelo dos domingos e a touca bem

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    engomada da Maria.- Tenho de ir cidade, Ma - anunciou, ao entrar em casa,ofegante.Carrie e Maria escutaram-na, enquanto explicava o quesucedera, e at Graa fitou nela uns olhos azuis muitograndes e graves.- Vou contigo, para te fazer companhia - ofereceu-se Carrie.- Ela pode, Ma? - perguntou Laura.- Se conseguir arranjar-se to depressa como tu, pode -respondeu a me.Vestiram rapidamente os vestidos lavados e calaram as meiase as botinas. Mas a me no viu razo nenhuma para usaremfitas no cabelo num dia de semana e disse que Laura levaria asua prpria touca.- Estaria em melhores condies -acrescentou a me- setivesses cuidado com ela.A touca de Laura estava to mole, de a trazer sempre a cair

    pelas costas, e as fitas no estavam em melhor estado. Mas aculpa era s dela.A me deu-lhe cinco cntimos que tirou da carteira do pai e,com Carrie, Laura partiu, apressada, para a cidade.Seguiram o caminho feito pelas rodas do carroo do pai e quepassava pelo poo, descia a encosta ervosa e seca que levavaao Pntano Grande e continuava entre a erva grossa do pntanoat encosta que subia do outro lado. Toda a tremeluzentepradaria parecia estranha, dali. At o vento que sopravaentre a erva tinha um som mais agreste. Laura gostava daquiloali e desejou no ter de ir cidade, onde as fachadas falsas

    dos edifcios se erguiam, quadradas, para fingir que as lojasque se encontravam atrs delas eram maiores do que narealidade eram.Nem Laura nem Carrie disseram uma palavra depois de chegarem Rua Principal. Estavam alguns homens nos alpendres daslojas e duas parelhas atreladas a carroes amarradas apostes. Do outro lado da Rua Principal erguia-se, solitrio,o armazm do pai. Tinha sido alugado e estavam dois homens ldentro, a conversar.Laura e Carrie entraram na loja de ferragens, onde seencontravam dois homens sentados em barris de pregos e um num

    arado.

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    Pararam de conversar e olharam para as duas. A parede atrsdo balco brilhava, cheia de caarolas, baldes e candeeirosde folha.Laura disse:

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    -O meu pai precisa de uma seco para a mquina de ceifar,por favor.O homem sentado no arado observou:- Partiu-a, no?E Laura respondeu:- Sim, senhor.Viu-o embrulhar num papel o dente triangular, aguado ebrilhante. Devia ser o Sr. Fuller. Deu-lhe os cinco cntimos,recebeu o embrulhinho, disse Obrigada e saiu com Carrie.J estava. No entanto, s falaram quando saram da cidade.Nessa altura, Carrie disse:- Fizeste aquilo muito bem, Laura.- Oh, foi s comprar uma coisa!- Bem sei, mas eu sinto-me esquisita quando as pessoas olhampara mim. Sinto-me... no exactamente assustada...- No h motivo nenhum para nos sentirmos assustadas -afirmou Laura. - No devemos ter medo, nunca. - E, de sbito,

    acrescentou: - Eu sinto o mesmo.- Srio? No sabia. No pareces nada. Sinto-me sempre muitosegura quando estou contigo, Laura.- Quando ests comigo ests em segurana - garantiu Laura. -Eu tomaria conta de ti em qualquer situao. Pelo menos fariao possvel.- Bem sei que farias.Era agradvel caminharem juntas. A fim de pouparem o calado,no iam pelos trilhos poeirentos das rodas. Caminhavam pelafaixa mais dura do meio, onde s os cascos dos cavalos tinhamdesencorajado a erva de nascer. No iam de mos dadas, mas

    sentiam como se fossem.Desde que Laura se lembrava, Carrie fora a sua irmzinha maisnova. Primeiro, fora um bebezinho muito pequenino, depois aBeb Carrie e a seguir uma menina pequenina que se agarrava atudo e mexia em tudo, sempre a perguntar: Porqu? Mas agoratinha dez anos, idade suficiente para ser realmente uma irm.E saram juntas, estavam longe do pai e da me. O recadoestava feito e j as no preocupava, e o sol brilhava, ovento soprava e a pradaria estendia-se, a perder de vista, atoda a volta delas. Sentiam-se livres, independentes e bemdispostas, uma com a outra.

    - uma distncia muito grande dar a volta para irmos ter como pai - observou Carrie. - Porque no vamos por aqui? - eapontou para a parte do pntano onde viam o pai e os cavalos.

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    - Esse caminho atravs do pntano - respondeu Laura.- Agora no est molhado, pois no? - insistiu Carrie.

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    - Est bem, vamos - decidiu Laura. - O pai no disse parairmos pela estrada, mas disse que tinha pressa.Por isso, em vez de seguirem a estrada que virava paraatravessar u pntano, meteram a direito pela erva alta.Ao princpio foi divertido. Era como se tivessem mergulhadona gravura da selva do grande livro verde do pai. Lauraavanava frente, entre as moitas densas de caules de ervaque faziam uma restolhada ao abrir-se para lhes darempassagem e voltavam a fechar-se atrs de Carrie. Os milhesde speros caules de erva e as suas folhas estreitas ecompridas tinham tons verde-dourados e ouro-esverdeados suaprpria sombra. A terra estava estalada, de seca, mas sob ocheiro quente da erva persistia um leve odor a humidade. Logoacima da cabea de Laura os topos da erva murmuravam aovento, mas em baixo, nas razes, havia um silncio quebradoapenas pelas passadas de Laura e Carrie.- Onde est o pai? - perguntou Carrie, de sbito.

    Laura olhou para trs, para a irm. O rostinho pontiagudo deCarrie estava plido, sombra da erva, e os seus olhospareciam quase assustados.- No o podemos ver daqui. - S podiam ver as folhasoscilantes da erva grossa e, em cima, o cu quente. - Eleest mesmo em frente de ns. Encontramo-lo daqui a uminstantinho.Disse-o confiante, mas como podia saber onde o pai estava?Nem sequer sabia ao certo para onde ia, para onde levavaCarrie. O calor escaldante fazia-lhe escorrer suor pelopescoo e pelas costas abaixo, mas por dentro sentia-se fria.

    Lembrou-se das crianas que se perderam na erva da pradaria,perto de Brookings. O pntano ainda era pior do que apradaria. A me tivera sempre medo de que Graa se perdessenele.Apurou o ouvido, escuta do zumbido da mquina de ceifar,mas o barulho da erva no deixava ouvir mais nada. Nada nassombras trmulas das folhas estreitas, que oscilavam ebadanavam mais alto do que os seus olhos, lhe indicava ondeestava o Sol. Nem o dobrar e o badanar da erva lhes diziaqual a direco do vento. Aqueles macios de erva noaguentariam nenhum peso. No havia nada, em lado nenhum, para

    que pudesse subir, a fim de olhar acima delas e para almdelas e saber onde estavam.- Vamos, Carrie - disse alegremente, pois no queria assustara irm.Carrie seguiu-a confiantemente, mas Laura no sabia para ondeia. Nem sequer tinha a certeza de estar a caminhar a direito.Havia sempre um macio de erva no caminho, que a obrigava adesviar-se para a esquerda ou para a direita.

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    Mesmo que se desviasse para a direita de um tufo de erva epara a esquerda do seguinte, isso no lhe garantia que noestivesse a andar num crculo. As pessoas perdidas andam emcrculos e muitas nunca encontram o caminho para casa. Opntano prolongava-se por mais de quilmetro e meio de ervaque se dobrava e oscilava, mas que era demasiado alta para sever alguma coisa e demasiado fraca para por ela subir. Nuncasairiam do meio dela, a no ser que caminhassem sempre adireito.- J andmos tanto, Laura - queixou-se Carrie, ofegante. -Porque que no encontramos o pai?- Ele deve estar por aqui perto - respondeu Laura.Mesmo que quisesse, no saberia seguir o seu prprio rasto deregresso segurana da estrada. As suas botinas quase no

    deixavam marcas na lama endurecida pelo calor e a erva, aerva infindvel e oscilante, com as folhas baixas pendentes,secas e partidas, era toda igual.A boca de Carrie abriu-se um bocadinho e os seus grandesolhos fitaram Laura, a dizer: J sei. Perdemo-nos.Fechou de novo a boca, sem ter proferido uma palavra. Seestavam perdidas, estavam perdidas. No havia nada a dizer.- melhor continuarmos - disse Laura.- Tambm acho. Enquanto pudermos - concordou Carrie.E continuaram. J deviam ter passado pelo lugar onde o paiestava a ceifar, mas Laura no podia ter a certeza de coisa

    nenhuma. Se voltassem para trs, ou julgassem que voltavam,talvez se afastassem ainda mais. S podiam seguir para afrente. De vez em quando paravam e enxugavam a cara suada.Tinham uma sede terrvel, mas no havia gua, e estavam muitocansadas de abrir caminho atravs da erva. Aparentemente, noera difcil afastar a erva, mas com a continuao tornava-semais cansativo do que acamar feno. A cara pequenina de Carrieestava branco-acinzentada, de fadiga.Nisto, Laura teve a impresso de que a erva em frente setornava menos densa. A sombra pareceu-lhe mais fraca e aspontas da erva, contra o cu, mais reduzidas. E, de sbito,

    viu claridade, luz do Sol amarela para alm dos caulesescuros da erva. Talvez houvesse ali um charco. Ou talvez...talvez aparecesse o campo de restolho, e a mquina de ceifare o pai.Viu o restolho do feno cortado, ao sol, e, aqui e ali,pequenas medas de feno. Mas ouviu uma voz desconhecida.Era uma voz de homem, alta e bem disposta:- Vamos l, Manzo. Levemos esta carga. A noite no tarda a.

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    E outra voz respondeu, indolentemente:- Est bem, Roy!Muito juntas, Laura e Carrie espreitaram pela orla da erva.

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    O campo de feno no era o do pai. Estava l um carroodesconhecido, com uma enorme carga de feno na grade. L nocimo de tudo, recortado no cu ofuscante, estava um rapazdeitado de bruos, com o queixo nas mos e os ps no ar.O homem desconhecido levantou uma grande forquilhada de fenoe atirou-a para cima do rapaz. O feno cobriu-o e elelevantou-se, a rir e a sacudir a erva da cabea e dos ombros.Tinha cabelo preto e olhos azuis e o rosto e os braostisnados do sol.Ficou de p no alto da carga e viu Laura.- Viva a! - saudou o rapaz.

    Ficaram ambos a olhar, enquanto Laura e Carrie saam do meioda erva alta - como coelhos, pensou Laura, desejosa de podervoltar a correr para trs e esconder-se.- Pensei que o meu pai estava aqui - explicou, enquantoCarrie se mantinha pequenina e quieta atrs dela.- No vimos ningum por aqui - respondeu o homem. - Quem ovosso pai?- O Sr. Ingalls - respondeu o rapaz. - No ? - perguntou aLaura, para a qual no deixara de olhar.- - respondeu Laura, e olhou para os cavalos atrelados aocarroo.

    J vira antes aqueles bonitos cavalos castanhos, com osquadris a brilhar ao sol e lustrosas crinas pretas noslustrosos pescoos. Eram os cavalos dos moos Wilder. O homeme o rapaz deviam ser os irmos Wilder.- Vejo-o daqui. Ele est ali mesmo - disse o rapaz.Laura olhou para cima e viu-o apontar, ao mesmo tempo que osseus olhos azuis a fitavam, brilhantes, como se a conhecessehavia muito tempo.- Obrigada - agradeceu Laura, muito sria, e afastou-se comCarrie pela estrada que a parelha de Morgans e o carrootinham aberto na erva do pntano.

    - Ol! - exclamou o pai, quando as viu. - Ufa! - acrescentou,enquanto tirava o chapu e limpava o suor da testa.Laura deu-lhe a pea da mquina e, com Carrie, ficou a v-loabrir a caixa da ferramenta, tirar a barra de cortar damquina e soltar a seco partida. Colocou a nova no seulugar e martelou os rebites, para a fixar.- Pronto! Digam me que irei jantar tarde. Quero acabar decortar este bocado.

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    inteiro cintilou. Todas as coisas, por muito pequeninas quefossem, cintilavam, rosadas, na direco do Sol azul-plidona direco do cu, e pelo caminho fora as pontas de ervaapresentavam reflexos de arco-ris.Laura amou aquele mundo bonito. Sabia que a geada fria matarao feno e a horta. Os ps emaranhados dos tomateiros, com osseus tomates encarnados e verdes, e as hastes trepadeiras dasaboboreiras, com as suas folhas largas a cobrir as verdesaboborinhas, tudo cintilava de geada,

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    sobre a terra cultivada pela primeira vez. Os caules e ascompridas folhas do milho estavam brancos. A geada matara-os.Tudo quanto era vivo e verde morrera. Mas a geada era bonita.Ao pequeno-almoo, o pai disse:- No haver mais feno, por isso vamos tratar da nossa

    colheita. No obteremos grandes resultados num primeiro ano,com um solo destes, mas as razes das ervas apodrecero esteInverno e para o ano teremos mais sorte.O solo arado apresentava-se como fatias de terra ainda unidasentre si pelas razes da erva. De baixo dessa terra o paidesenterrou pequenas batatas, que Laura e Carrie meteram embaldes de folha. Laura detestava a sensao de terra seca nosdedos. Provocava-lhe calafrios pela espinha acima, mas nohavia remdio. Algum tinha de apanhar as batatas. Ela eCarrie andaram para trs e para diante com os baldes, atencherem cinco sacas de batatas. Era tudo quanto o batatal

    dera.- Tanto trabalho para to poucas batatas - comentou o pai. -Mas cinco alqueires melhor do que nada e poderemosacrescent-las com os feijes.Arrancou as hastes mortas dos feijoeiros e empilhou-as, parasecarem. Entretanto, o Sol subira e a geada desapareceratoda, e o vento frio fustigava a pradaria de tonsacastanhados, purpreos e amarelados.A me e Laura apanharam os tomates. As hastes estavammurchas, moles e a enegrecer, de modo que tiveram de apanharat os tomates verdes mais pequeninos. Havia tomates maduros

    suficientes para quase um galo de doce.- Que vai fazer com os verdes? - perguntou Laura, e a merespondeu-lhe:- Espera e vers.Lavou-os cuidadosamente, sem os pelar, partiu-os em fatias ecozeu-os com sal, pimenta, vinagre e especiarias.- So quase dois litros de pickles de tomates verdes. Apesarde ter sido a nossa primeira horta neste terreno onde nada

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    pode crescer bem, estes pickles sero uma delcia com feijescozidos, no Inverno - disse a me, toda contente.- E quase um galo de conservas doces! - acrescentou Maria.- Cinco alqueires de batatas - disse Laura, e esfregou asmos no eventual, ao recordar-se da desagradvel sensao daterra.- E nabos, montes de nabos! - gritou Carrie, que adoravacomer um nabo cru.O pai riu-se.- Quando tiver aqueles feijes debulhados, joeirados e ensacados, haver quase um alqueire de feijo. Quando tiveraqueles poucos ps de milho cortados,

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    limpos e armazenados na cave numa chvena de ch, teremos umacolheita e tanto!

    Laura sabia que era uma colheita muito pequena. Mas o feno eo milho dariam para manter os cavalos e a vaca durante oInverno, at Primavera, e com cinco alqueires de batatas equase um alqueire de feijo, mais o que o pai caasse,viveriam.- Amanh tenho de cortar o milho - disse o pai.- No vejo motivo nenhum para tanta pressa, Charles -observou a me. - A chuva passou e nunca vi um tempo deOutono to agradvel.- Isso verdade - concordou o pai.As noites estavam frias e o alvorecer fresco, mas os dias

    estavam soalhentos e quentes.- Para variar, fazia-nos jeito um pouco de carne fresca -sugeriu a me.- Assim que apanhar o milho, irei caar - prometeu o pai. Nodia seguinte, cortou e amontoou o milho. Os dez montinhosenfileirados pareciam uma enfiada de pequenas cabanas ndias,junto das medas de feno. Quando acabou, o pai levou do camposeis abboras amarelo-douradas.- As hastes no puderam vingar muito bem no solo cheio derazes - desculpou-se- e a geada matou as verdes, mas estasdar-nos-o uma quantidade de sementes, para o ano.

    - Mas para qu tanta pressa em colher as abboras? - admirou-se a me.- Sinto-me apressado. Como se houvesse necessidade de andardepressa - tentou o pai explicar.- Precisas de uma boa noite de sono.Na manh seguinte caa uma chuva fina como nvoa. Depois detratar dos animais e de tomar o pequeno-almoo, o pai vestiuo casaco grosso e ps o chapu de aba larga, que lhe protegia

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    compridas, para fazer um lenol. Comeou por pregar as duasmetades uma outra com alfinetes, cuidadosamente, e porprend-las com outro alfinete ao vestido, no joelho. Depois,a segurar bem as ourelas do pano, costurou-as com pontospequeninos e certinhos.Os pontos tinham de ser bem unidos, pequenos e firmes, massem arrepanhar, para que o lenol ficasse liso, sem a mnimaruga ao meio. E todos os pontos tinham de ser exactamenteiguais, ao ponto de no se distinguirem uns dos outros,porque era assim que se cosia.Maria gostara de fazer trabalhos desse gnero, mas agora,cega, no podia. Coser era uma coisa que enervava Laura aoponto de lhe dar vontade de gritar. Doa-lhe o pescoo e alinha estava sempre a torcer-se e a fazer ns. Tinha dedesmanchar quase tantos pontos quantos dava.- Os cobertores tm largura suficiente para tapar as camas -queixou-se.

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    - Porque no faro tambm os lenis com largura suficiente?- Porque os lenis so de musselina -respondeu Maria-, e amusselina no tem largura que chegue para um lenol.O fundo da agulha de Laura entrou por um buraquinho do dedale picou-lhe o dedo, mas ela fechou a boca com fora e nodisse nem uma palavra.A tarte estava a cozer lindamente. Quando a me largou acamisa que estava a fazer para o pai e abriu o forno, saiu o

    rico cheirinho de tarte a cozer. Carrie e Graa pararam oolhar, enquanto a me virava a tarte, para que tostasseregularmente.- Est a ficar muito bem - disse a me.- Como o P vai ficar surpreendido! - exclamou Carrie. Poucoantes da hora do almoo, a me tirou a tarte do forno.Estava realmente uma linda tarte.Conservaram o almoo no borralho quase at uma hora, mas opai no chegou. Quando andava caa no prestava ateno shoras das refeies. Por isso, acabaram por almoar sem ele.A tarte teria de esperar para o jantar, quando o pai chegaria

    com gansos gordos para assar no dia seguinte.Toda a tarde choveu sem parar. Quando Laura foi ao poobuscar gua, o cu estava baixo e cinzento. Numa grandeextenso, a erva castanha da pradaria estava ensopada emchuva e a erva alta do pntano pingava, um bocadinho dobradasob o peso da gua.Laura voltou depressa para casa. No gostava de estar cfora, quando toda a erva chorava.

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    O pai s voltou hora do jantar. E de mos vazias, tirando acaadeira. No falou nem sorriu e tinha os olhos muitoabertos e parados.- Que aconteceu, Charles? - perguntou-lhe a me, muitodepressa.Ele despiu o casaco molhado e tirou o chapu que pingava, ependurou-os, antes de responder.- Isso gostaria eu de saber. estranho. No h no lago nemum ganso, nem um pato para amostra. Nem no pntano. No se vnem um. Voam todos alto, acima das nuvens, alto e depressa.Ouvi os seus gritos. Todas as aves esto a seguir para sul omais depressa e mais alto que podem voar, Carolina. Todas,todas seguem para sul. E no se v nenhuma outra espcie decaa. Tudo quanto corre ou nada est escondido em qualquerlado. Nunca vi nenhuma regio to vazia e silenciosa.- No te preocupes - respondeu a me, bem disposta. - Ojantar est pronto. Senta-te ao p do fogo, para te

    enxugares, que eu chego a mesa para l. Parece-me que est aarrefecer.

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    Estava realmente a arrefecer. O frio avanava por baixo damesa e subia dos ps descalos de Laura para os seus joelhosnus, debaixo das saias. Mas o jantar estava quente e era bome todos os rostos brilhavam luz do candeeiro, por causa dasurpresa para o pai.Mas o pai nem reparava. Comia com apetite, mas no via o que

    comia. Repetiu:- estranho... Nem um ganso nem um pato desceram paradescansar.- Naturalmente, os pobres animais tm pressa de chegar aosol. Ainda bem que ns estamos aconchegados, protegidos dachuva debaixo deste bom telhado.O pai empurrou o prato vazio para trs e a me lanou a Lauraum olhar que significava: Agora! Brilharam sorrisos emtodos os rostos menos no do pai. Carrie no era capaz deestar quieta na cadeira e Graa saltou no colo da me quandoLaura ps a tarte na mesa.

    Por momentos o pai no a viu. Depois exclamou:- Tarte!A sua surpresa ainda foi maior do que esperaram. Graa eCarrie, e at Laura, riram alto.- Como conseguiste fazer uma tarte, Carolina? - perguntou opai, admirado. - Que espcie de tarte esta?- Prova e vers! - respondeu a me, ao mesmo tempo quecortava uma fatia e lha punha no prato.

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    O pai partiu uma pontinha com o garfo e levou-a boca.- Tarte de ma! Onde foste arranjar mas?Carrie no pde continuar calada mais tempo. Quase gritou:- de abbora! A me f-la de abbora verde!O pai cortou outro bocadinho e mastigou devagar.- Nunca teria adivinhado! - afirmou. - A me foi sempre amelhor cozinheira do pas!A me no disse nada, mas corou um bocadinho e os seus olhoscontinuaram a sorrir enquanto todos saboreavam a deliciosatarte. Comiam devagar, em dentadinhas pequeninas quedemoravam na boca, para durar mais tempo.Foi um jantar to feliz que Laura desejou que nunca maisacabasse. Quando se deitou com Maria e Carrie ficou acordada,para continuar a sentir-se feliz. Sentia-se sonolentamenteconfortvel e aconchegada. A chuva que caa no telhadoproduzia um som agradvel.Uma gota de gua na cara surpreendeu-a vagamente. Teve a

    certeza de que no podia ser chuva, pois o telhado estava porcima. Chegou-se mais para Maria e mergulhou tudo na escuridoe no calor do sono.

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    CAPTULO IV

    NEVASCA EM OUTUBRO

    Laura acordou de repente. Ouviu cantar e um som estranho de

    pancadas.Oh, estou feliz como um grande girassol (Slap! Slap!) Queacena e se dobra sobre as brisas. Oh! (Slap! Slap!) E o meucorao (Slap!) est leve (Slap!) como o vento Que arranca asfolhas das arvorisas. Oh! (Slap! SLAP!)O pai estava a cantar a sua cano das complicaes e a batercom os braos no peito.Laura sentiu o nariz frio. O nariz era, alis, a nica coisaque espreitava das mantas sob as quais se encontrava todaencolhida. Ps a cabea toda de fora e compreendeu por quemotivo o pai batia a si mesmo: era para tentar aquecer as

    mos.Espevitara o lume, que crepitava no fogo, mas mesmo assim oar estava enregelante. Estalou gelo na manta, onde cara guada chuva que se infiltrara pelo telhado. Assobiavam ventos roda da cabana e do telhado e das paredes vinha um som defustigao.Carrie perguntou, sonolenta:- Que ?

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    - uma nevasca - respondeu-lhe Laura. - Tu e a Maria deixem-se ficar na cama.Com cuidado, para que o frio no entrasse nas mantas, saiu dacama quente. Os dentes bateram-lhe enquanto se vestiu. A metambm se estava a vestir, do outro lado da cortina, mastinham ambas tanto frio que nem falaram.Encontraram-se junto do fogo onde o lume ardia furiosamente,mas sem conseguir aquecer o ar. A janela estava transformadanuma mancha de neve turbilhonante. Entrara neve por baixo daporta at meio da casa e todos os pregos das paredes estavamcobertos de geada branca.

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    O pai fora ao estbulo. Laura deu graas por terem tantasmedas de feno enfileiradas entre o estbulo e a cabana.Assim, indo de meda para meda o pai no se perderia.

    - Uma n-n-n-nevasca! - gaguejou a me a tremer. - Em Ou--Outubro! N-n-n-nunca ouvi...Ps mais lenha no fogo e quebrou o gelo do balde da gua,para encher a chaleira.O balde estava menos de meio. Teriam de poupar a gua, poisningum poderia ir ao poo com aquela tempestade. Mas a neveque estava no cho era limpa. Laura apanhou-a com a p para abacia e p-la a derreter no fogo, para se lavar.Como o ar junto do fogo j estava menos frio, embrulhouGraa em cobertores e levou-a para l, a fim de a vestir.Maria e Carrie tambm se vestiram junto do fogo, a bater o

    queixo. Calaram todas meias e sapatos.O pequeno-almoo estava pronto quando o pai voltou. Entrou emcasa com um uivo de vento e um remoinho de neve.- Aqueles ratos-almiscarados sabiam o que vinha a, hem,Laura? - observou, assim que aqueceu o suficiente para poderfalar. - E os gansos tambm.- No admira que no tenham parado no lago - disse a me.- A esta hora o lago deve estar gelado, Carolina. Atemperatura est quase em zero e continua a descer.Olhou para a caixa da lenha, enquanto falava. Laura enchera-ana noite anterior, mas j no havia muita. Por isso, assim

    que tomou o pequeno-almoo, o pai agasalhou-se bem e trouxegrandes braados de lenha do monte.A cabana tornava-se cada vez mais fria. O fogo no conseguiaaquecer o ar no interior das delgadas paredes. No podiamfazer nada alm de se enrolarem em casacos e xailes e ficaremperto do fogo.- Ainda bem que pus feijo de molho ontem noite - disse ame.

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    - Levantou a tampa da panela a ferver e deitou muito depressauma colherada de soda. A gua subiu, com uma nuvem de fumo,mas no deitou por fora.- E tambm h um bocadinho de toucinho salgado, paratemperar.De vez em quando, tirava alguns feijes com a colher esoprava-os. Quando a pele se rachou e enrolou, escorreu agua com a soda e voltou a deitar a gua quente e o bocadinhode toucinho salgado.- No h nada como uma boa sopa de feijo quente num dia frio- disse o pai, e olhou para Graa, que lhe puxava a mo. -Que queres tu, Olhos Azuis?- Uma tria - respondeu Graa.- Conte-nos a do av e do porco no tren - pediu Carrie.O pai sentou Graa e Carrie nos joelhos e comeou a contar ashistrias que costumava contar a Maria e Laura na GrandeFloresta, quando eram pequeninas. A me e Maria tricotavam

    muito depressa, nas cadeiras de balano cobertas de mantas echegadas para o fogo, e Laura estava de p, embrulhada noxaile, entre o fogo e a parede.O frio avanava dos cantos da cabana e aproximava-se cada vezmais do fogo. Correntes de ar gelado agitavam as cortinas volta das camas. A pequena cabana estremecia, sacudida pelatempestade. Mas o cheiro do vapor dos feijes a cozer era bome parecia aquecer o ar.Ao meio-dia a me partiu po em fatias e encheu tigelas desopa de feijo e comeram todos onde estavam, junto do fogo.Beberam tambm um pcaro de ch forte e quente. A me at deu

    Graa um pcaro de ch branco. Ch branco era gua e leites com um nadinha de ch,

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    mas as meninas pequenas sentiam-se crescidas quando as mesas deixavam beber ch branco.A sopa e o ch quentes aqueceram todos. A me despejou osfeijes - sem o caldo, que servira para a sopa- numacaarola, ps o bocado de toucinho no meio e deitou por cimafios de melao. Depois meteu a caarola no forno e fechou a

    porta. Teriam feijes no forno para o jantar.O pai teve de ir buscar mais lenha. Felizmente o monte delenha ficava perto da porta das traseiras. O pai entrou,cambaleante e sem flego, com o primeiro braado. Quandoconseguiu falar, disse:- O vento tira-nos o flego. Se eu adivinhasse que vinha auma tempestade destas, ontem teria enchido a cabana de lenha.Agora trago tanta neve como lenha.

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    Era quase verdade. Todas as vezes que Laura lhe abria aporta, a neve entrava em turbilhes, alm de cair de cima dopai e da lenha. Era uma neve dura como gelo e fina comoareia, e quando abria a porta a cabana ficava to fria que aneve nem se derretia.- Basta por agora - disse o pai. Se deixasse entrar maisfrio, a lenha que trazia no chegaria para o expulsar.- Depois de varreres a neve, Laura, traz-me a rabeca - pediu.- Assim que desenregelar os dedos vamos ter uma msica paraabafar o uivo do vento.Pouco depois, conseguiu afinar as cordas da rabeca e passarresina pelo arco. Depois encostou a rabeca ao ombro e cantoucom ela:

    Oh, se eu fosse outra vez jovem,Uma vida diferente levaria,Juntaria dinheiro, compraria terras

    E com Din me casaria.Mas estou a ficar velho e grisalhoE j no posso trabalhar.Oh, levai-me,Oh, levai-me,Para a costa da velha Virgnia!E levai-me, e levai-me,E levai-me assim at morrer...

    - Pelo amor de Deus! - interrompeu a me. - Preferia ouvir ovento. - Tentava manter Graa quente, mas ela debatia-se e

    choramingava e a me p-la no cho. - Pronto, corre, sequeres correr! Acabars por querer voltar para junto dofogo.- Tive uma ideia! - exclamou o pai. - Laura e Carrie, vopara junto da Graa e vamos v-las marchar! Aquecer-lhes- osangue!

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    Custou-lhes deixar o abrigo dos xailes, mas obedeceram aopai. Ento a sua voz forte vibrou, com a rabeca a cantar:

    Marchar! Marchar! Ettrick e Teviotdate! Porqu moos, nomarchais em ordem? Marchar! Marchar! Eksdale e Linddesdale!Todas as boinas azuis esto para l da fronteira! Muitabandeira esvoaava sobre a vossa cabea, Muita coroa famosana histria!

    E Laura, Carrie e Graa marchavam roda, a cantar com todas

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    as foras e a baterem com os ps no cho.

    Montai e preparai-vos pois,Filhos do vale da montanha,Lutai pelos vossos lares e pela antiga glria escocesa.

    Sentiam as bandeiras esvoaar por cima delas e tinham asensao de estar a marchar para a vitria. Nem sequer ouviama tempestade. E estavam bem quentes, at s pontas dos ps.Depois a msica cessou e o pai guardou a rabeca na caixa.- Bem, pequenas, agora a minha vez de marchar contra estatempestade e tratar dos animais, para passaremconfortavelmente a noite. Macacos me mordam se aquela velhamsica no me deu coragem para lutar at mesmo contra umanevasca!A me aqueceu-lhe o casaco e o cachecol ao fogo, enquantoele arrumava a caixa da rabeca. O vento uivava furiosamente.

    - Ters feijes no forno, bem quentes, e ch quente tuaespera, quando voltares, Charles - prometeu-lhe a me. - Edepois vamos todos para a cama, para o quentinho, e de manhtalvez a tempestade tenha passado.Mas de manh o pai voltou a cantar a cano do girassol. Ajanela era a mesma mancha branca e os ventos continuavam afustigar com neve dura a pequena e trmula cabana.A nevasca durou mais dois longos dias e duas noites.

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    CAPTULO V

    DEPOIS DA TEMPESTADE

    Na quarta manh, Laura apercebeu-se de uma estranha sensaonos ouvidos. Espreitou por cima dos cobertores e viu neveespalhada em cima da cama. Ouviu o bater da tampa do fogo edepois o primeiro crepitar do lume. S ento compreendeu asensao de vazio dos ouvidos: o barulho da nevascaterminara!- Acorda, Maria! - chamou, e bateu na irm com o cotovelo. -

    A nevasca terminou!Saltou da cama quente para o ar mais frio do que gelo. Ofogo aceso parecia no dar calor nenhum. O balde de gua deneve estava quase solidamente congelado. Mas as janelascobertas de geada brilhavam de sol.- L fora o frio continua - disse o pai, quando voltou detratar dos animais.Inclinou-se para o fogo, para derreter o gelo da barba. A

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    gua rechinou na chapa do fogo e depois subiu transformadaem vapor. O pai limpou a barba e continuou:- O vento arrancou um grande bocado de papel alcatroado dotelhado, apesar de eu ter pregado bem. No admira queentrassem c dentro chuva e neve.- De qualquer maneira, acabou-se - observou Laura, que achavaagradvel estar a tomar o pequeno-almoo e a ver os vidrosdas janelas iluminados e luminosos.- Ainda teremos o Vero de So Martinho - garantiu a me. -Esta tempestade chegou to cedo que no pode ser o princpiodo Inverno.- Nunca vi um Inverno chegar to cedo - admitiu o pai. - Masno me agrada o aspecto das coisas.- De que coisas, Charles? - quis saber a me.

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    Mas o pai no sabia dizer ao certo.- H algum gado extraviado junto das medas de feno.- Est a desmanchar as medas? - perguntou a me, muitodepressa.- No.- Ento que importncia tem, se no est a fazer nenhum mal?- Creio que a tempestade os cansou e se abrigaram junto dasmedas de feno. Pensei deix-los descansar e comer um bocado,antes de os mandar embora. No posso dar-me ao luxo de osdeixar deitar as medas abaixo, mas podem comer um bocado semestragar. No entanto, no comem.

    - Que se passa, ento?- Nada. Esto apenas ali parados.- Isso no motivo para transtornar uma pessoa - declarou ame.- Pois no - admitiu o pai, enquanto bebia o ch. - Bem, omelhor ir enxot-los.Voltou a vestir o casaco, a pr o bon e a calar as luvas esaiu.Passados momentos, a me disse:-Talvez seja melhor ires tambm, Laura. O pai pode precisarde ajuda, para enxotar os animais do feno.

    Rpida, Laura ps o xaile da me pela cabea e prendeu-o comum alfinete debaixo do queixo, bem aconchegado. As pregas del cobriram-na da cabea aos ps. At as mos ficaram debaixodo xaile. S a cara ficou de fora.Quando saiu, o brilho do sol feriu-lhe os olhos. Aspirou umalufada de ar gelado e semicerrou os olhos, para olhar emredor. O cu estava imensamente azul e a terra toda estavabranca e em movimento. O vento forte e a soprar a direito no

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    levantava a neve, mas empurrava-a, rente ao cho, atravs dapradaria.O frio mordeu as faces de Laura. Causou-lhe uma sensao defogo no nariz e um formigamento no peito e saiu sob a formade vapor. Tapou a boca com uma prega do xaile e a suarespirao transformou-se em geada.Quando passou pela esquina do estbulo, viu o pai a andar sua frente e viu o gado. Parou, de olhos muito abertos.O gado estava de p, ao sol e sombra, junto das medas defeno - gado vermelho, castanho e malhado e um animal magro epreto. Estavam perfeitamente imveis, todos com a cabeacurvada para o cho. Os pescoos felpudos, vermelhos ecastanhos, esticavam-se todos para baixo, dos ombros magros eossudos para as cabeas brancas e grandes, monstruosas.- P! - gritou Laura, e o pai fez-lhe sinal para ficar ondeestava.Ele continuou a andar, atravs da neve que voava rente ao

    cho, na direco dos estranhos animais.No pareciam verdadeiro gado, de tal maneira estavam imveis.A manada toda no fazia o mnimo movimento. S a suarespirao lhes chupava para dentro os flancos felpudos,entre os ossos das costelas, e lhos dilatava a seguir. Osossos dos ombros e dos quadris pareciam querer romper a pele.Tinham as pernas esticadas para fora, hirtas e imveis. Eonde deveria ser a cabea grandes mataces brancos pareciamcolados ao cho, sob a neve batida pelo vento.O cabelo de Laura arrepiou-se e um calafrio de horrorpercorreu-lhe a espinha. Lgrimas provocadas pelo sol e pelo

    vento saltaram-lhe dos olhos e correram-lhe, frias pelasfaces. O pai continuou a avanar devagar, contra o vento.Chegou junto da manada. Nenhum dos animais se moveu.O pai ficou um instante parado, a olhar. Depois inclinou-see, rapidamente, fez qualquer coisa. Laura ouviu um berro e ascostas de uma vitela vermelha arquearam-se e saltaram. Oanimal correu, cambaleante,

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    a mugir. Tinha uma cabea normal, com olhos, nariz e boca

    aberta, a lanar vapor para o vento.Outro animal berrou e deu uma corrida breve e hesitante. Emais outro. O pai estava a fazer o mesmo a todos, um por um.Os mugidos dos animais subiam para o cu frio.Por fim, partiram todos juntos. Partiram silenciosos, com aneve esvoaante a chegar-lhes aos joelhos.O pai fez sinal a Laura para voltar para casa, enquanto eleinspeccionava as medas do feno.

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    - Porque te demoraste tanto, Laura? - perguntou a me. - Ogado entrou nas medas do feno?- No, Ma. Tinham a cabea... creio que tinham a cabea presaao cho pelo gelo.- No pode ser! - exclamou a me.- Deve ser uma das estranhas ideias de Laura - comentou Mariaque tricotava afanosamente na sua cadeira, junto do fogo. -Como podia o gelo pegar a cabea dos animais ao cho, Laura? realmente preocupante a maneira como s vezes falas.- Ento perguntem ao P! - replicou Laura, asperamente. Noconseguia dizer me e a Maria o que sentia. Mas achavaque, de qualquer modo, na noite agreste e tempestuosa, aimobilidade subjacente a todos os sons da pradaria secomunicara ao gado. Quando o pai voltou, a me perguntou-lhe:- Que tinha o gado, Charles?- As cabeas geladas, com gelo e neve. A respirao congelou-se-lhes por cima dos olhos e do nariz, at lhes ser

    impossvel ver e respirar.Laura parou de varrer e exclamou, horrorizada.- A sua prpria respirao, P! A asfixi-los. O paicompreendeu o que ela sentia.- Agora j esto bem, Laura. Quebrei o gelo e tirei-lho dacabea. Agora respiram e creio que chegaro a um abrigo, emqualquer lado.Carrie e Maria estavam de olhos muito abertos e at a meparecia horrorizada.- Acaba de varrer, Laura - ordenou, asperamente. - E tu,Charles, porque no tiras os agasalhos e no te aqueces?

    - Tenho uma coisa para lhes mostrar - disse o pai, e tiroucuidadosamente a mo da algibeira. - Olhem, filhas, olhem oque encontrei escondido numa meda de feno.Abriu a mo, devagar. No cncavo da luva estava uma pequenaave, que ele passou com cuidado para as mos de Maria.- Oh, est de p! - exclamou Maria, a tocar-lhe ao de levecom as pontas dos dedos.

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    Nunca viram uma ave assim. Era pequena, mas parecia

    exactamente a gravura da grande torda-mergulheira do livroverde do pai, As Maravilhas do Mundo Animal.Tinha o mesmo peito branco, as mesmas costas e asas pretas,as mesmas pernas curtas e colocadas muito atrs e as mesmaspatas grandes e palmadas. Erguia-se, erecta, nas pernascurtas, como um minsculo homenzinho de casaco e calaspretas e peitilho de camisa branco, e as suas asinhas pretaspareciam braos.

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    - Que , P? Oh, que ?! - gritou Carrie, encantada ao mesmotempo que segurava as mos vidas de Graa. - No se mexe,Graa.- Nunca vi nada parecido - confessou o pai. - Deve-se tercansado, com os ventos tempestuosos, e cado contra a meda.Encafuou-se no feno, para se abrigar.- uma grande torda-mergulheira - declarou Laura. - Com adiferena de que pequenina.- J adulta, no uma avezinha a crescer - observou a me.- Reparem nas penas.- Sim, seja l o que for, adulta - concordou o pai.A pequena ave continuava erecta na palma macia da mo deMaria e olhava para todos eles com os seus brilhantes olhospretos.- a primeira vez que v seres humanos - observou o pai.- Como sabe, P? - perguntou Maria.- Sei porque no tem medo de ns.

    - Podemos ficar com ela, P? Podemos, Ma? - rogou Carrie.- Depende - respondeu o pai.As pontas dos dedos de Maria percorriam a avezinha toda,enquanto Laura lhe dizia como o seu peito era branco e macioe como eram pretas, retintas, as suas costas, a sua cauda eas suas asas. Depois deixaram Graa tocar-lhe, com cuidado. Apequena torda-mergulheira continuou quieta, a olh-los.Puseram-na no cho e caminhou um bocadinho. Depois ps-se embicos de ps, nas tbuas do cho, e bateu as pequenas asas.- No consegue levantar voo - disse o pai. - uma aveaqutica. Tem de partir da gua, onde se serve dos ps

    palmados para adquirir velocidade.Por fim, puseram-na numa caixa, ao canto. L ficou a olh-los, com os olhos redondos, pretos e brilhantes, e elesperguntaram a si mesmos de que se alimentaria.- Foi uma estranha tempestade, em todos os sentidos -declarou o pai. - No me agrada.- Oh, Charles, foi apenas uma nevasca! - protestou a me. - Omais certo ainda termos agradvel tempo quente. At jcomeou a aquecer um pouco.

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    - Maria pegou de novo na malha e Laura continuou a varrer. Opai ficou junto da janela e, passados momentos, Carrieafastou Graa da pequena ave e foram tambm olhar para fora.- Oh, olhem! - exclamou Carrie. - Lebres!De facto, a toda a volta do estbulo pulavam dzias delebres.- As patifas estiveram a viver no nosso feno durante toda a

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    tempestade - comentou o pai. - Devia pegar na caadeira earranjar um guisado de lebre.Mas j estava na janela a olhar para elas havia um bocado eno pegara na arma.- Deixe-as ir embora, P, s desta vez! - pediu Laura. -Foram obrigadas a vir e tiveram de arranjar abrigo.O pai olhou para a me e a me sorriu.- No temos fome, Charles, e eu estou grata por termossobrevivido tempestade.- Bem, acho que posso dispensar um pouco de feno s lebres -disse o pai, e depois pegou no balde e foi ao poo.O ar que entrou, quando ele abriu a porta, era muito frio,mas o sol j tinha comeado a derreter a neve do lado sul dacabana.

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    CAPTULO VI

    VERO DE SO MARTINHO

    Na manh seguinte havia s lascas de gelo na gua do balde eo dia estava soalheiro e quente. O pai foi armar as suasarmadilhas para os ratos-almiscarados no Pntano Grande, eCarrie e Graa brincaram fora de casa.A pequena torda no queria comer. No emitia um som, sequer,mas Carrie e Laura tinham a impresso de que ela as olhavadesesperadamente. Se no comesse acabaria por morrer, mas

    parecia no saber como havia de comer o que lhe davam. hora do almoo o pai disse que o gelo estava a derreter-seno lago da Prata e que, na sua opinio, a estranha avesaberia cuidar de si na gua. Por isso, depois do almoo,Laura e Maria vestiram os casacos e puseram os capuzes eforam com o pai soltar a pequena torda.O lago da Prata era uma extenso enrugada, azul-clara eprateada, sob o cu quente e plido. Havia gelo volta dasmargens e pedaos cinzentos, de gelo liso, flutuavam naspequenas ondas. O pai tirou a pequena torda da algibeira.Ficou-lhe de p na palma da mo, no seu bonito casaco preto

    de peitilho branco. Viu a terra, o cu e a gua e,ansiosamente, ps-se em bicos de ps e abriu as pequenasasas.Mas no conseguiu levantar voo. As suas asas eram muitopequeninas e no conseguiam levant-la.- No pertence terra - explicou o pai. - uma aveaqutica. Acocorou-se junto do gelo branco e fino da margem,estendeu o

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    brao todo e deixou cair a ave da mo para a gua azul. Elaficou parada um instante brevssimo e depois... desapareceu.Transformou-se num veloz ponto preto, entre os pedaos degelo.- Adquire velocidade com os ps palmados -explicou o pai-,para se levantar de... L vai ela!Laura quase que no teve tempo de a ver erguer-se, minscula,no vasto e cintilante cu azul. Logo a seguir desapareceu emtodo aquele fulgor luminoso.

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    Os seus olhos ofuscados no conseguiram ver mais nada. Mas opai continuou a olhar, a v-la dirigir-se para o Sul.Nunca souberam o que aconteceu estranha avezinha que veiona escurido, com a tempestade do longnquo Norte, e partiupara Sul banhada de sol. Nunca mais viram nem ouviram falar

    de outra ave semelhante. E tambm nunca souberam que espciede ave era.O pai continuava de p, a olhar para muito longe. Todas ascurvas da pradaria se apresentavam suavemente coloridas, numagrande riqueza de castanhos-claros, bronzeados, e cinzentos-fulvos,

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    verdes e prpuras muito tnues e, muito ao longe, cinzentos-azulados. O sol estava quente e o ar nebuloso. Laura s

    sentia um pouco de frio volta dos ps, perto do gelo fino eseco da margem do lago.Estava tudo parado. Nenhum sopro de vento agitava a ervaacinzentada e no se viam aves na gua nem no cu. O lagobatia levemente na margem desse imenso silncio.Laura olhou para o pai e percebeu que ele escutava. Osilncio era to terrvel como o frio. E mais forte do quequalquer som. Podia abafar o mergulhar da gua e o levezumbido dos ouvidos de Laura.No silncio no havia nenhum som, nenhum movimento, coisanenhuma. Era esse o seu terror. O corao de Laura batia com

    fora, saltava, a querer fugir dele.- No me agrada - disse o pai, a abanar lentamente a cabea.- No me agrada este tempo. H qualquer coisa... - Incapaz deexplicar o que queria dizer, repetiu: - No me agrada. No meagrada mesmo nada.Ningum poderia dizer, exactamente, que havia algo errado notempo. Estava um belo Vero de So Martinho. Todas as noitesgeava e s vezes a gua gelava um pouco, mas os dias estavam

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    soalheiros. Todas as tardes Laura e Maria davam longospasseios ao sol quente, enquanto Carrie brincava com Graaperto da casa.- Encham-se de sol enquanto podem - dizia a me. - Em breveser Inverno e tero de ficar dentro de casa.C fora, no tempo ameno, armazenavam dentro delas sol e arfresco, para compensar os dias de Inverno em que no teriamuma coisa nem outra.Mas frequentemente, enquanto passeavam, Laura olhava derepente para norte. No sabia porqu. No havia l nada. svezes, sob o sol quente, imobilizava-se e ficava escuta,inquieta. Tambm no havia razo nenhuma para isso.- Vai ser um Inverno duro - disse o pai. - O mais duro que jconhecemos.- Mas, Charles, o tempo agora est bom! - protestou a me. -Aquela tempestade que chegou mais cedo do que deveria nosignifica que todo o Inverno seja mau.

    - H muitos anos que apanho ratos-almiscarados com armadilhase nunca os vi construir as paredes das suas tocas togrossas.- Ora, ratos-almiscarados! - zombou a me.- Os animais selvagens sabem, no sei como - insistiu o pai.- Todas as criaturas selvagens se preparam para um Invernoduro.- Talvez se tenham preparado apenas para aquela grandetempestade.Mas o pai no se deixou convencer pelos argumentos da me.

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    No me agrada o que sinto - afirmou. - Este tempo pareceestar a reservar qualquer coisa que pode soltar de um momentopara o outro. Se eu fosse um animal selvagem, procuraria umburaco e escav-lo-ia o mais fundo possvel. Se fosse umganso bravo, abriria as asas e sairia daqui.A me riu-se dele.- s um tonto, Charles! No, no me lembro de um Vero de SoMartinho to bonito.

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    CAPTULO VII

    AVISO DO NDIO

    Uma tarde, um pequeno grupo de homens reuniu-se no armazmHarthorn, na cidade. Os comboios, que a nevasca fizera parar,

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    circulavam de novo e os homens foram das suas reservas cidade, a fim de comprarem alguns gneros e ouvirem asnovidades.Royal e Almanzo Wilder tambm tinham ido, o segundo aconduzir a sua bela parelha de Morgans que era a melhor detodo aquele territrio. O Sr. Boast estava igualmentepresente, de p no meio da pequena multido, a fazer toda agente rir quando ele se ria. O pai chegara com a caadeira nobrao, mas no vira nem uma lebre, e estava espera de que oSr. Harthorn pesasse o bocado de carne de porco salgada quecomprara para substituir a lebre.Ningum ouviu nem um passo, mas o pai sentiu que estavaalgum atrs dele e virou-se para ver quem era. De sbito, oSr. Boast calou-se e todos os outros olharam, para verem oque ele vira. E levantaram-se logo dos caixotes de biscoitose do arado. Almanzo deixou-se escorregar do balco. Ningumdisse nada.

    Tratava-se apenas de um ndio, mas, sem saberem porqu, o seuaparecimento f-los calar a todos. Ele parou a olh-los: aolhar o pai, o Sr. Boast, Royal Wilder, cada um dos outroshomens e, por fim, Almanzo.Era um ndio muito velho. Tinha rugas profundas no rostocastanho e magro, mas era alto e direito. Tinha os braoscruzados debaixo do cobertor cinzento que o envolvia e acabea rapada apenas com uma madeixa de cabelo, da qual seerguia uma pena de guia. Os seus olhos eram brilhantes evivos. Atrs dele, o sol brilhava na rua empoeirada, ondeesperava um pnei ndio.

    - Vir muito grande neve - disse o ndio.O cobertor escorregou-lhe de um ombro e pela abertura saiu umbrao castanho e nu. Moveu-se num gesto largo para norte,oeste e leste, abrangeu todos no gesto e girou de novo.- Muito grande neve, grande vento - afirmou.- Quanto tempo? - perguntou-lhe o pai.

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    - Muitas luas. - O ndio levantou quatro dedos e depois maistrs. Sete dedos, sete meses: nevascas durante sete meses.

    Ficaram todos a olh-lo, sem dizer nada. - Vocs homensbrancos, eu dizer a vocs. Mostrou outra vez sete dedos.-- Grande neve - de novo os sete dedos. - Grande neve - maissete dedos. - Muito grande neve, muitas luas.Depois bateu no peito com o indicador e disse,orgulhosamente:- Velho! Velho! J vi!Saiu do armazm, montou-se no pnei e seguiu para oeste.

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    - Macacos me mordam! - exclamou o Sr. Boast.- Que histria foi aquela de sete grandes neves? - perguntouAlmanzo.O pai explicou-lhe: o ndio queria dizer que de sete em seteanos havia um Inverno muito duro e que ao fim de trs vezessete Invernos chegava o Inverno mais duro de todos. Vieradizer aos homens brancos que o Inverno que se avizinhava erao vigsimo primeiro e haveria sete meses de nevascas.- Acha que o velhadas sabia o que estava a dizer? - perguntouRoyal, mas ningum lhe soube responder. - Pelo sim pelo no -continuou Royal-, acho melhor mudarmo-nos para a cidade,durante o Inverno. O meu armazm de raes muito melhorpara passar o Inverno do que a barraca de uma reserva.Podemos l ficar at Primavera. Que te parece, Manzo?- Concordo.- E voc, Boast, que diz de se mudar para a cidade? -perguntou o pai.

    O Sr. Boast abanou lentamente a cabea.- No acho que possamos. Temos muitos animais - gado, cavalose galinhas. Na cidade no h lugar para os ter, mesmo que eupudesse pagar uma renda, estamos muito bem instalados para oInverno na reserva. Acho que a Ellie e eu ficamos melhor l.Estavam todos srios. O pai pagou o que comprara e ps-se acaminho de casa, apressado. De vez em quando, olhava paratrs, paraO cu do lado noroeste. Mas estava claro e o sol brilhava.A me estava a tirar po do forno quando o pai chegou. Carriee Graa correram ao seu encontro e vinham com ele. Maria

    continuoua coser sossegadamente, mas Laura levantou-se de um pulo.- Aconteceu alguma coisa, Charles? - perguntou a me, adespejar os rescendentes pes da forma para um pano brancolimpo. - Regressaste cedo.- No aconteceu nada - respondeu o pai. - Aqui tens o acari o ch e um pedao de carne salgada. No encontrei nem umcoelho. No aconteceu nada - repetiu -, mas vamos mudar-nospara a cidade o mais depressa possvel.

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    Primeiro tenho de transportar para l feno, para os animais.Se me despachar, poderei transportar uma carga, antes deescurecer.- Meu Deus, Charles! - exclamou a me, inquieta, mas o pai jia a caminho do estbulo.Carrie e Graa olharam para a me e para Laura e depois denovo para a me. Laura olhou para a me e a me olhou,

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    atarantada, para ela.- O teu pai nunca fez uma coisa destas!- O pai disse que no aconteceu nada, Ma - lembrou Laura. -Vou num instante ajud-lo a carregar o feno.A me tambm foi ao estbulo e o pai falou com ela enquantoencilhava os cavalos.- Vai ser um Inverno duro - explicou o pai. - Se queres sabera verdade, estou com medo dele. Esta casa apenas uma cabanade reserva, no impede a entrada do frio. Lembra-te do queaconteceu ao papel alcatroado na primeira nevasca. O nossoarmazm na cidade est colmatado e forrado de papelalcatroado, protegido do lado de fora e tem o tecto forradono interior. bom, estanque e quente e o estbulo de ltambm quente.- Mas qual a necessidade de tanta pressa?- Sinto que melhor apressarmo-nos. Sou como os ratos-almiscarados, qualquer coisa me diz que te ponha e s

    pequenas ao abrigo de paredes grossas. H algum tempo quesinto isso e agora aquele ndio ...Calou-se.- Que ndio? - perguntou a me.Sempre que dizia a palavra, a me fazia uma cara como seestivesse a cheirar um ndio. Desprezava os ndios, alm deos temer.- H alguns ndios bons - afirmava sempre o pai, e desta vezacrescentou: - E sabem algumas coisas que ns no sabemos.Contar-te-ei tudo ao jantar, Carolina.No podiam falar enquanto o pai atirava forquilhadas de feno

    da meda para a grade e Laura as pisava, para as acamar. Ofeno foi subindo cada vez mais alto, sob as pernas apressadasde Laura, at a carga se encontrar muito mais alta do que ascostas dos cavalos.- Eu agora trato do resto - disse o pai. - A cidade no lugar para uma rapariga fazer o trabalho de um rapaz.Por isso, Laura deixou-se escorregar do alto da carga para oque restava da meda e o pai partiu. A tarde de Vero de SoMartinho estava quente, perfumada e calma. O pequeno onduladoda terra de cores suaves estendia-se a perder de vista, sobum cu sereno. Mas qualquer coisa esperava debaixo daquela

    suavidade e serenidade. Laura compreendia o que o pai queriadizer.

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    Ah, quem me dera as asas de um pssaro! Laura recordou aspalavras da Bblia. Se tivesse as asas de um pssaro, tambmela as abriria e voaria depressa e para muito longe.

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    Foi para casa, muito sria, para ajudar a me. Nenhum delestinha asas; iam apenas mudar-se para a cidade, a fim de lpassarem o Inverno. A me e Maria no se importavam, masLaura sabia que no gostaria de viver entre tanta gente.

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    CAPTULO VIII

    INSTALADOS NA CIDADE

    O edifcio do armazm do pai era um dos melhores da cidade.Erguia-se isolado no lado oriental da Rua Principal e a suafalsa fachada era alta, de cantos rectos e tinha uma janelano primeiro andar. Em baixo havia duas janelas, com a portaprincipal no meio.O pai no parou desse lado o carroo carregado. Contornou a

    esquina para a 2.a Rua, que era apenas um caminho, e conduziuo carroo para o alpendre das traseiras. Havia um bomestbulo de madeira j com uma meda de feno ao lado. Maisadiante, na 2.a Rua, Laura viu uma casa de tbuas novas,acabada de construir. O armazm e o estbulo do pai jestavam cinzentos, do tempo como os outros existentes na RuaPrincipal.- Pronto, c estamos! - exclamou o pai. - No precisaremos demuito tempo para nos instalarmos.Desamarrou Ellen, a vaca, e a sua vitela grande de trs docarroo, e Laura levou-as para as suas baias no estbulo,

    enquanto o pai descarregava o carroo. Depois o pai levou-opara o estbulo e comeou a desatrelar os cavalos.A porta interior do alpendre abria debaixo da escada quesubia da sala de trs. A estreita sala das traseiras seria acozinha, claro. tinha na outra extremidade uma janela quedava para a Rua 2 atravs de terrenos desocupados, para umapequena loja desabitada. Mais longe, na pradaria, a nordeste,Laura distinguiu um armazm de dois andares.A me estava parada na sala da frente vazia, a olh-la e apensar onde poria todas as coisas.Na grande sala encontravam-se um aquecedor a carvo e uma :.

    reluzente secretria de compra e uma cadeira igualmente decompra.- De onde vieram essa secretria e essa cadeira? - perguntouLaura, admirada.- So do pai - respondeu a me. - O novo scio do juiz Carroltem uma secretria e, por isso, o juiz deixou a velhasecretria e a cadeira,

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    assim como o aquecedor a carvo, como pagamento de parte darenda.A secretria tinha gavetas e um topo com cacifos e umamaravilhosa tampa flexvel, feita de tabuinhas estreitas, quese podia puxar para baixo, caso em que ficava arqueada, ouempurrar para trs, caso em que desaparecia.- Poremos as cadeiras de balano junto da outra janela -disse a me. - Assim a Maria ter sol toda a tarde e eu tereiluz para ler para todos at o Sol se pr. a primeira coisaque vamos fazer, Maria, para te poderes sentar e tomar contada Graa, a fim de que nos no atrapalhe.A me e Laura colocaram as cadeiras de balano junto dajanela. Depois carregaram a mesa atravs de vrias portas ecolocaram-na entre o aquecedor a carvo e a porta da cozinha.- Assim fica num lugar quente para comermos - explicou a me.

    - Podemos pr as cortinas agora? - perguntou Laura.As duas janelas eram como olhos estranhos a espreitar paradentro de casa. Passavam desconhecidos, na rua, e do outrolado erguiam-se outros edifcios, cujas janelas pareciamoutros tantos oihos fixos. Um deles era a Loja de FerragensFuller, ladeada pela drogaria, pela Alfaiataria Power e pelaMercearia Loftus, Loja de Secos e Mercadorias Diversas.- Sim, quanto mais depressa melhor - concordou a me.Foi buscar as cortinas de musselina e ela e Laura colocaram-nas. Passou um carroo, enquanto as punham, e de repentedesceram a 2.a Rua cinco ou seis rapazes e, a seguir, outras

    tantas raparigas.- A escola terminou, por hoje - disse a me. - Amanh tu e aCarrie vo escola. - A voz da me exprimia satisfao.Laura no disse nada. Ningum sabia como receava conhecerestranhos. Ningum sabia da agitao que ia no seu peito nemda estranha sensao do seu estmago quando era inevitvelconhec-los. No gostava da cidade; no queria ir para aescola.Era to injusto que ela tivesse de ir! A Maria queria serprofessora, mas no podia porque era cega. Laura no queriaensinar, mas teria de o fazer para agradar me.

    Provavelmente passaria toda a sua vida entre pessoasestranhas e a ensinar crianas estranhas. Teria sempre medo enunca o demonstraria.No! O pai dissera que no devia ter medo, nunca, e ela noteria. Seria corajosa, nem que isso a matasse. Mas mesmo queconseguisse vencer o medo, no conseguiria gostar de genteestranha. Sabia como os animais reagiam, compreendia o quepensavam, mas a respeito das pessoas nunca se podia ter a

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    certeza.Enfim, pelo menos as cortinas nas janelas impediriam osestranhos de olhar para dentro de casa.

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    Carrie colocara as cadeiras simples roda da mesa. O choera de limpas e bonitas tbuas de pinho e a grande sala ficoucom um aspecto muito agradvel quando a me e Laura colocaramum tapete feito de tiras de pano entranadas defronte de cadaporta.O pai estava a instalar o fogo na cozinha. Depois de armar achamin, direita e slida, foi buscar o armrio dos gneros eencostou-o parede, do outro lado da porta.- Pronto! - exclamou. - O fogo e o armrio ficam ambos mo, relativamente mesa da outra sala.- Sim, Charles, bem pensado - elogiou a me. - Quando

    levarmos as camas para cima, depressa ficar tudo arrumado.O pai levantou as peas das camas, enquanto a me e Laura asfaziam passar pelo alapo do cimo da escada. Depois elepassou pelo alapo os grossos colches de penas, oscobertores, as mantas e as almofadas. Em seguida foi comCarrie encher os enxerges de palha com o feno da meda. Tinhade ser com feno porque no havia palha naquela nova regioonde ainda no fora cultivado cereal.Sob o telhado do sto, um tabique de papel de construodividia o espao em dois quartos. Um tinha uma janela paraoeste e outro para leste. Da janela oriental, no cimo da

    escada, a me e Laura viram a longnqua linha do horizonte ea pradaria, a casa nova e o estbulo e o pai e Carrie todosatarefados a encherem os enxerges de feno.- O pai e eu ficamos com este quarto ao cimo da escada -decidiu a me. - Vocs ficam com o da frente.Montaram as camas e puseram as travessas. Depois o paiempurrou pela abertura do alapo os enxerges bem cheios ecom o feno a estalar, e Laura e Carrie fizeram as camasenquanto a me descia para tratar do jantar.As cores do poente brilhavam na janela ocidental e inundavamo quarto todo de luz dourada, enquanto elas endireitavam o

    feno perfumado e crepitante dos enxerges, lhe punham em cimaos colches de penas e os afofavam e alisavam. Depois, uma decada lado, estenderam os lenis, os cobertores e as mantas,esticaram-nos bem e dobraram-nos e entalaram-nos, a formar umngulo muito certinho, aos cantos. Afofou cada uma suaalmofada, colocou-a no seu lugar e a cama ficou feita.Quando as trs camas estavam feitas, no havia mais nada quefazer.

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    Laura e Carrie pararam, envoltas na luz colorida do poente, aolhar pela janela. O pai e a me conversavam em baixo, nacozinha, e dois homens desconhecidos falavam na rua. Aolonge, mas no muito, algum assobiava uma cano e ouviam-semuitos outros sons alm desse

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    - os sons que, todos juntos, formavam o som de uma cidade.Subia fumo da parte de trs das fachadas das lojas. Depois daLoja de Ferragens Fuller, a 2.a Rua seguia para oeste, pelapradaria, at ao edifcio solitrio, que se erguia no meio daerva morta. Tinha quatro janelas e a luz do poente brilhavaatravs delas, o que significava que devia ter mais janelasdo outro lado. Tinham um alpendre entaipado na empena dafrente, como um nariz, e o cano de uma chamin pelo qual nosaa fumo. Laura disse:

    - Creio que a escola.- Quem me dera que no tivssemos de ir - lamentou-se Carrie,num sussurro.- Mas temos.Carrie olhou, curiosa, para a irm e perguntou-lhe:- No tens... medo?- No h nada de que ter medo! - respondeu Laura,ousadamente. - E se houvesse, ns no teramos.Em baixo estava calor, do lume aceso no fogo da cozinha, e ame dizia que a casa estava to bem construda que pouco lumeera necessrio para a aquecer. A me preparava o jantar e

    Maria punha a mesa.- No preciso de ajuda - disse Maria, toda contente. - Oarmrio est num lugar diferente, mas a me ps os pratos nosmesmos stios e assim eu encontro-os facilmente como sempre.A me ps o candeeiro na mesa do jantar e a sala da frentepareceu espaosa. As cortinas cor de creme, a secretria e acadeira amarelas e envernizadas, as almofadas das cadeiras debalano, os tapetes de tiras de pano e a toalha de mesaencarnada, alm da cor de pinho no cho, das paredes e dotecto, era tudo alegre. O cho e as paredes eram to slidasque no entrava a mnima corrente de ar.

    - Gostava que tivssemos uma casa assim na reserva - disseLaura.- Ainda bem que a temos na cidade, pois assim vocs podem ir escola este Inverno - observou a me. - No podiam virtodos os dias a p da reserva, se o tempo estivesse mau.- uma satisfao para mim estarmos onde temos a certeza dearranjar carvo e mantimentos - declarou o pai. - O carvo muito melhor do que a lenha oca que est por a, d um calor

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    certo. Guardaremos no alpendre carvo suficiente para adurao de qualquer nevasca, e poderei sempre arranjar maisna serrao. Vivendo na cidade, no corremos o risco de senos esgotar qualquer espcie de provises.- Quantas pessoas esto agora na cidade? - perguntou-lhe ame.

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    O pai fez contas:- Catorze estabelecimentos e o depsito; e depois as casas doSherwood, do Garland e do Owen, ou seja, dezoito famlias semcontar com trs ou quatro barracas nas ruas de trs. Osirmos Wilder tambm esto instalados no armazm de raes echegou um homem chamado Foster, com uma parelha de bois, oqual ficou em casa do Sherwood. Contando todos, devem estaragora a viver aqui na cidade setenta e cinco a oitenta

    pessoas.- E pensar que no havia c uma alma, por esta altura, noOutono passado! - lembrou a me, e depois sorriu ao pai. -Ainda bem que, finalmente, vs alguma vantagemem viver numlugar povoado, Charles.O pai teve de admitir que via. Mas acrescentou:- Por outro lado, tudo isto custa dinheiro, que uma coisamais rara do que dentes de galinha. O caminho-de-ferro onico lugar onde um homem pode ganhar um dlar por dia detrabalho, mas neste momento no est a meter gente. E a nicacaa que resta por aqui so lebres. O Orgo o lugar para

    viver, neste tempo. Mas alm no tardar a estar povoado.- Pois sim, mas chegou a altura de as pequenas frequentarem aescola e aprenderem alguma coisa - disse a me firmemente.

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    CAPTULO IX

    CAP GARLAND

    Laura no dormiu muito bem. Foi como se passasse a noite toda

    consciente de que a cidade a envolvia e de que de manh teriade ir para a escola. Ficou cheia de receio quando acordou eouviu passos na rua, em baixo, e desconhecidos a falar. Acidade tambm estava a acordar; os lojistas abriam os seusestabelecimentos.As paredes da casa no deixavam entrar os desconhecidos. MasLaura e Carrie sentiam o corao pesado, pois tinham de sairde casa e de travar conhecimento com desconhecidos. E Maria

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    estava triste porque no podia ir para a escola.- Laura e Carrie, no tm motivo nenhum para se preocupar -afirmou a me. - Tenho a certeza de que podem acompanhar aclasse a que pertencem.Olharam para a me, surpreendidas. Ela ensinara-as to bem,em casa, que elas sabiam que podiam acompanhar as classes.No era isso que as preocupava. Mas limitaram-se a dizer:- Sim, Ma.Atarefaram-se a lavar e limpar a loua e a fazer a cama e,apressadamente, Laura varreu o cho do quarto. Depoisvestiram com cuidado os vestidos de l de Inverno e,nervosamente, pentearam e entranaram o cabelo. Puseram asfitas de domingo e, com o abotoador de ao, abotoaram asbotinas.- Despachem-se, filhas! - avisou a me. - J passa das oito.Nesse momento, por causa do nervoso, Carrie arrancou um botodas botinas, que rolou e desapareceu numa fenda no cho.

    - Oh, desapareceu! - exclamou Carrie, desesperada.No podia ir para um lugar onde estavam desconhecidos com umafalta na srie de botes pretos da botina.- Temos de tirar um boto das botinas de Maria - sugeriuLaura.

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    Mas a me ouvira o boto cair, no andar de baixo, encontrou-oe pregou-o, e depois abotoou a botina da Carrie. Estavamfinalmente prontas.

    - Esto muito bonitas - disse a me, a sorrir.Vestiram os casacos, puseram os capuzes e pegaram nos livrosescolares. Despediram-se da me e de Maria e saram para aRua Principal.Os estabelecimentos estavam todos abertos. O Sr. Fuller e oSr. Bradley acabaram de varrer os seus e estavam parados, devassoura na mo, a admirar a manh. Carrie deu a mo a Laura.Ajudava Laura saber que a irm ainda estava mais assustada doque ela.Atravessaram corajosamente a Rua Principal e meteram comfirmeza pela 2.a Rua. O sol brilhava vivamente. Um emaranhado

    de ervas mortas projectava sombras ao lado dos rastos dasrodas. As suas prprias sombras compridas caminhavam frentedelas, por cima das muitas pegadas dos carreiros. Pareciamuito grande a distncia para a escola, que ficava napradaria, sem outros edifcios prximo.Defronte da escola, rapazes desconhecidos jogavam bola eduas raparigas desconhecidas estavam paradas na plataformaque levava porta do alpendre.

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    Laura e Carrie foram-se aproximando cada vez mais. Lauratinha a garganta to seca que mal podia respirar. Uma dasraparigas era alta e morena e tinha o cabelo preto e lisotorcido num pesado carrapito, na nuca. O seu vestido defazenda azul-ndigo era mais comprido do que o vestidocastanho de Laura.De sbito, Laura viu um dos rapazes saltar no ar e apanhar abola. Era alto e veloz e tinha movimentos belos como os de umgato. O seu cabelo louro estava quase branco, do sol, e tinhaolhos azuis - olhos que viram Laura e se abriram muito.Depois um sorriso espontneo iluminou-lhe o rosto todo e orapaz atirou-lhe a bola.Laura viu a bola curvar no ar, a descer rapidamente, e semter tempo de pensar deu uma corrida e um salto e apanhou-a.Os outros rapazes desataram a gritar:- Eh, Cap! As raparigas no jogam bola!- No pensei que ela a apanhasse - respondeu Cap.

    - No quero jogar - declarou Laura, e atirou a bola.- Ela joga to bem como qualquer de ns! -- gritou Cap. -Anda jogar - disse a Laura, e depois convidou tambm asoutras raparigas: - Venham, Maria Power e Minnie, joguemtambm connosco!Mas Laura apanhou os livros que deixara cair e voltou a pegarna mo de Carrie. Foram ter com as outras raparigas, que seencontravam porta da escola. Estas, claro, no brincavamcom rapazes.

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    Ela prpria no sabia porque fizera semelhante coisa e estavaenvergonhada e receosa do que as outras pensariam dela.- Sou Maria Power - apresentou-se a rapariga morena - e esta Minnie Johnson.Minnie Johnson era magra, loura e plida e tinha sardas.- Eu sou Laura Ingalls e esta a minha irm mais nova,Carrie - respondeu Laura.Os olhos de Maria Power sorriram. Eram azul-escuros e tinhampestanas compridas e pretas. Laura sorriu tambm e decidiuque no dia seguinte torceria o prprio cabelo num carrapito e

    pediria me que lhe fizesse o prximo vestido to compridocomo o de Maria.- O que te atirou a bola o Cap Garland - continuou Maria.No houve tempo para dizer mais nada, pois a professora veioporta com a sineta e entraram todos na escola.Penduraram os casacos e os capuzes numa srie de pregos quehavia entrada, onde a vassoura estava a um canto, junto do

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    balde da gua, em cima de um banco. Depois entraram na aula.Era to nova e limpa que Laura se sentiu de novo tmida eCarrie se deixou ficar parada ao lado dela. Todas ascarteiras eram de madeira to polida e lisa como vidro.Tinham ps de ferro preto, os assentos curvavam um pouco e ascostas, que faziam parte das carteiras de trs, tambmcurvavam. A parte de cima das carteiras tinham uns sulcospara os lpis e por baixo havia prateleiras para as ardsiase os livros.Havia doze carteiras umas atrs das outras, de cada lado dagrande sala. No meio da sala estava um grande fogo deaquecimento, com mais quatro carteiras frente e quatroatrs. Quase todos os lugares estavam vagos. Do lado dasraparigas, Maria Power e Minnie Johnson estavam sentadasjuntas numa das carteiras de trs. Cap Garland e trs outrosrapazes crescidos ocupavam carteiras de trs do lado dosrapazes - nos lugares da frente sentavam-se alguns rapazes e

    raparigas mais pequenos. Frequentavam todos a escola havia juma semana e sabiam onde se deviam sentar, mas Laura e Carrieno sabiam.A professora dirigiu-se-lhes:- So novas, no so?Era uma senhora nova e sorridente, com uma franjaencaracolada. O corpo do seu vestido preto era abotoado frente com uma enfiada de brilhantes botes pretos. Lauradisse-lhe como se chamava e ela respondeu:- E eu sou Florence Garland. Moramos atrs da casa do teupai, na rua seguinte.

    Cap Garland era, ento, irmo da professora e moravam na casanova da pradaria, que ficava a seguir ao estbulo.

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    - Conheces o quarto livro de leitura? - perguntou aprofessora.- Conheo, sim, minha senhora! - respondeu Laura, que naverdade o conhecia de ponta a ponta.- Ento veremos como te sais com o quinto - dec