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Jornal de Leiria 16 de Agosto de 2018 33 Almanaque Os olhos piscam devagar quando és velhinha. Se fores mesmo muito velhinha, piscam pequenos e devagarinho. A vida toda em slow motion, como se a cada vez que fechas os olhos, não tivesses a certeza de que os podes voltar a abrir. Para quem está de fora, ver-te assim a desistir de vez – e não te tiro razão nenhuma - de cada vez que piscas os olhos, pareces estar a querer confundir ainda mais esta humanidade-pânico. Serás tu ou serei eu a morrer ali? Ora velhinha, ora bebé. Numa cama, parecemos todos o mesmo. Tinhas uma promessa tácita de viver para sempre. Mas quem te visse ali, a dar o dito por não dito, não imagina uma vida tão cheia de dedo em riste às convicções. Sabes, avó, a tua geração não é esta. Quem te visse ali, não saberia nunca o que é mandar dois filhos para a guerra. Não sabe o que é perdê-los. Ou ao amor da tua vida. Viver em ditadura e esconder pessoas em casa, pela calada da noite. Ver um irmão preso pela PIDE. Perdê-lo. As portas sempre abertas para quem tivesse fome e frio. As portas sempre abertas. Não sei em que parte da vida ficaste tão dura. Tão teimosa. Quem te visse ali, não saberia nunca a importância que davas aos caminhos do pinhal. Ao mar. O valor que tem, saber o nome de cada rocha de São Pedro. E saber que Moel se escreve com O e porquê. Disseste sempre que a tabuada não se conta pelos dedos. Usa a cabeça! Mas até tu, avó, se te visses ali, saberias que nem sempre a cabeça consegue fazer as contas certas à vida. O coração então, coitado, anda por aí feito parvo. Mas ainda bem. Quem te visse ali, avó, não saberá nunca que nos deste os livros. A cultura. A liberdade de experimentar a vida contra todos os teus avisos. Contra todas as tuas previsões. A liberdade de partir o coração à James Dean medricas por ter sempre o teu a servir de backup. A medida certa de todas as coisas. Uma tabuada infalível. A família. Sempre a família. Quem te visse ali, não te imaginaria tão rija. Tão forte. As pernas cansadas, os olhos cegos e, ainda assim, as mãos agarradas a cartas de amor carcomido pelo tempo. Avó, quem te visse ali, não via o teu coração. Desde o dia em que te chamaram Olinda e ficaste, para sempre, avó ‘Linda por defeito. No teu caso, por virtude. Realizadora, pessoa criativa de conteúdos Avó ‘Linda Mesa de Cabeceira Raquel Martins Se acontecesse um cataclismo e só pudesse salvar três músicas quais seriam? Dada a ambiguidade da questão, em vez de proteger três composições musicais, salvava três compositoras: nunca ouvi a minha mãe a cantar, mas assumindo não precisar de credenciais, ela teria um lugar na minha Arca de Noé... desculpem, “Arca de Marinho”. A Mariza e Dulce Pontes seriam as outras duas felizardas (que teriam de certo facilidade na composição de novos fados inspirados pela catástrofe). Está no baile da aldeia e dá-lhe uma vontade repentina de dançar. Quem convidaria para seu par? Telefonava ao 112, pois uma tal vontade seria com certeza o prenúncio de alguma grave maleita. Que remédio usa para baixar a tensão? Desaperto o cinto e continuo a comer. Qual o roteiro para um dia perfeito? Acordo 10 segundos antes do despertador; levanto- me sem pesar; enquanto recordo o sonho deslumbrante que tive, encontro um pequeno manjar à minha espera; saio à rua e o Sol brilha (se estiver em Inglaterra, creio já estar a fantasiar em demasia); por artes do acaso, encontro-me numa floresta, junto a um lago, comigo tenho um livro, um caderno e uma caneta; passo o dia a ler e a escrever, iluminado por uma estranha inspiração. Faço um piquenique com a minha tágide e talvez aproveite ainda para dar um mergulho nas águas límpidas e convidativas do lago. À noite, as estrelas agraciam-nos com a sua luz e assistimos a uma bela chuva de estrelas cadentes que rasgam uma magnífica aurora boreal. Vai ter um jantar romântico à luz das velas. Que ementa prepara? Se o jantar tem de ser à luz das velas imagino que não paguei a conta da luz, o que é grave, pois o meu fogão é eléctrico. Bom, não tem problema: faço uma fogueira com alguma mobília dispensável (quem é que precisa de cadeiras quando se pode sentar no chão?) e faço o meu fantástico puré de batata com bacalhau (que deveria ser no forno, mas dadas as condições terá de ser assado). O que faria se acordasse milionário? Fechava os olhos e continuava a dormir. Que personagem de Hollywood gostaria de ter sido? Batman, mas mudava-me para uma cidade mais calma. A justiça foi injusta, o tribunal enganou-se e vai ter de estar em prisão domiciliária durante um ano. Três objectos indispensáveis... Se tivesse um computador com acesso à internet nem notava que estava preso. Para completar, queria a minha cama e uma escova de dentes. Se, por acaso, algum dia morrer, como gostaria de ser recordado? Como o “gajo que sobreviveu à sua própria morte”. O sonho que comanda a vida é... Contribuir para um mundo melhor. I'll be back! De onde é que sai com esta frase mítica? Casa de banho? Vai para Tenerife assistir a uma demonstração de colchões, mas decide desviar o avião. Para onde? Para um hospital? Entre dançar e ponderar assistir a uma demonstração de colchões, receio pela minha sanidade mental. Se tivesse de passar seis meses numa ilha deserta, quais seriam os três livros que levaria? O Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, que quero reler. Os Miseráveis, de Victor Hugo, que ainda não li e me parece ter páginas suficientes para alguns dias desses seis meses. Por fim, um livro em branco, para eu escrever. Em criança, quando fosse grande, gostaria de ser... Primeiro queria ser banqueiro, pois não fazia ideia de onde mais poderia usar a Matemática. Depois queria saber tudo e, por isso, pensei que, como historiador, pudesse abarcar todo o conhecimento da Humanidade. Eventualmente, percebi que a História se limitava, muitas vezes, a pequenas estórias, pelo que a troquei pela Física, a Ciência capaz de explicar o Universo. Como se depreende, sempre fui uma criança muito modesta. Marinho Lopes, investigador na Universidade de Exeter “Sempre fui uma criança muito modesta” DR Mariza

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Jornal de Leiria 16 de Agosto de 2018 33

Almanaque

� Os olhos piscam devagarquando és velhinha. Se fores mesmo muito velhinha,piscam pequenos e devagarinho.A vida toda em slow motion,como se a cada vez que fechas osolhos, não tivesses a certeza deque os podes voltar a abrir.Para quem está de fora, ver-teassim a desistir de vez – e não tetiro razão nenhuma - de cada vezque piscas os olhos, pareces estara querer confundir ainda maisesta humanidade-pânico. Serás tu ou serei eu a morrer ali?Ora velhinha, ora bebé. Numacama, parecemos todos omesmo. Tinhas uma promessa tácita deviver para sempre. Mas quem tevisse ali, a dar o dito por nãodito, não imagina uma vida tãocheia de dedo em riste àsconvicções. Sabes, avó, a tua geração não é esta.Quem te visse ali, não saberianunca o que é mandar dois filhospara a guerra. Não sabe o que éperdê-los. Ou ao amor da tua vida. Viver em ditadura e esconderpessoas em casa, pela calada danoite. Ver um irmão preso pelaPIDE. Perdê-lo. As portas sempreabertas para quem tivesse fome efrio. As portas sempre abertas.Não sei em que parte da vidaficaste tão dura. Tão teimosa.Quem te visse ali, não saberianunca a importância que davas aoscaminhos do pinhal. Ao mar. Ovalor que tem, saber o nome decada rocha de São Pedro. E saberque Moel se escreve com O eporquê. Disseste sempre que a tabuadanão se conta pelos dedos. Usa acabeça! Mas até tu, avó, se tevisses ali, saberias que nemsempre a cabeça consegue fazeras contas certas à vida. O coraçãoentão, coitado, anda por aí feitoparvo. Mas ainda bem. Quem te visse ali, avó, não saberánunca que nos deste os livros. Acultura. A liberdade deexperimentar a vida contra todosos teus avisos. Contra todas astuas previsões. A liberdade departir o coração à James Deanmedricas por ter sempre o teu aservir de backup. A medida certade todas as coisas. Uma tabuadainfalível. A família. Sempre afamília. Quem te visse ali, não teimaginaria tão rija. Tão forte. Aspernas cansadas, os olhos cegose, ainda assim, as mãos agarradasa cartas de amor carcomido pelotempo.Avó, quem te visse ali, não via oteu coração. Desde o dia em quete chamaram Olinda e ficaste,para sempre, avó ‘Linda pordefeito. No teu caso, por virtude.

Realizadora, pessoa criativa deconteúdos

Avó ‘Linda

Mesa deCabeceiraRaquelMartins

� Se acontecesse um cataclismo e só pudessesalvar três músicas quais seriam?Dada a ambiguidade da questão, em vez deproteger três composições musicais, salvava trêscompositoras: nunca ouvi a minha mãe a cantar,mas assumindo não precisar de credenciais, elateria um lugar na minha Arca de Noé... desculpem,“Arca de Marinho”. A Mariza e Dulce Pontes seriamas outras duas felizardas (que teriam de certofacilidade na composição de novos fadosinspirados pela catástrofe). Está no baile da aldeia e dá-lhe uma vontaderepentina de dançar. Quem convidaria para seupar?Telefonava ao 112, pois uma tal vontade seria comcerteza o prenúncio de alguma grave maleita. Que remédio usa para baixar a tensão? Desaperto o cinto e continuo a comer. Qual o roteiro para um dia perfeito?Acordo 10 segundos antes do despertador; levanto-me sem pesar; enquanto recordo o sonhodeslumbrante que tive, encontro um pequenomanjar à minha espera; saio à rua e o Sol brilha (seestiver em Inglaterra, creio já estar a fantasiar emdemasia); por artes do acaso, encontro-me numafloresta, junto a um lago, comigo tenho um livro,um caderno e uma caneta; passo o dia a ler e aescrever, iluminado por uma estranha inspiração.Faço um piquenique com a minha tágide e talvezaproveite ainda para dar um mergulho nas águaslímpidas e convidativas do lago. À noite, as estrelasagraciam-nos com a sua luz e assistimos a umabela chuva de estrelas cadentes que rasgam umamagnífica aurora boreal. Vai ter um jantar romântico à luz das velas. Queementa prepara?Se o jantar tem de ser à luz das velas imagino quenão paguei a conta da luz, o que é grave, pois omeu fogão é eléctrico. Bom, não tem problema:faço uma fogueira com alguma mobília dispensável(quem é que precisa de cadeiras quando se podesentar no chão?) e faço o meu fantástico puré debatata com bacalhau (que deveria ser no forno,mas dadas as condições terá de ser assado). O que faria se acordasse milionário?Fechava os olhos e continuava a dormir.

Que personagem de Hollywood gostaria de tersido?Batman, mas mudava-me para umacidade mais calma.A justiça foi injusta, o tribunalenganou-se e vai ter de estar emprisão domiciliária durante umano. Três objectosindispensáveis...Se tivesse um computador comacesso à internet nem notavaque estava preso. Paracompletar, queria a minhacama e uma escova de dentes. Se, por acaso, algum dia morrer,

como gostaria de ser recordado?Como o “gajo que sobreviveu à suaprópria morte”.O sonho que comanda a vida é...Contribuir para um mundo melhor.I'll be back! De onde é que sai com esta frasemítica?Casa de banho? Vai para Tenerife assistir a uma demonstração decolchões, mas decide desviar o avião. Para onde?Para um hospital? Entre dançar e ponderar assistira uma demonstração de colchões, receio pelaminha sanidade mental. Se tivesse de passar seis meses numa ilha deserta,quais seriam os três livros que levaria?O Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa,que quero reler. Os Miseráveis, de Victor Hugo,que ainda não li e me parece ter páginassuficientes para alguns dias desses seismeses. Por fim, um livro em branco, para euescrever.Em criança, quando fosse grande, gostaria de ser...Primeiro queria ser banqueiro, pois não fazia ideiade onde mais poderia usar a Matemática. Depoisqueria saber tudo e, por isso, pensei que, comohistoriador, pudesse abarcar todo o conhecimentoda Humanidade. Eventualmente, percebi que aHistória se limitava, muitas vezes, a pequenasestórias, pelo que a troquei pela Física, a Ciênciacapaz de explicar o Universo. Como se depreende,sempre fui uma criança muito modesta.

Marinho Lopes, investigador na Universidade de Exeter

“Sempre fui uma criança muito modesta”

DR

Mariza