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Ordem dos Arquitectos – Secção Regional Sul Le Corbusier e livro do congresso 1948 O seminário «Repensar Le Corbusier», a comemoração dos 60 anos do primeiro congresso dos arquitectos portugueses e a recordação da Carta de Atenas (texto de 1933 publicado dez anos mais tarde) são os temas de um dossiê que a Secção Regional Sul preparou. Textos de António Henriques* * Jornalista Auto-retrato: « [Le Corbusier] usou tudo o que tinha ao alcance para comunicar: jornais, artigos, livros, conferências, exposições, rádio, filmes e TV. Foi o primeiro arquitecto a compreender na perfeição os meios de comunicação de massa», segundo a investigadora Beatriz Colomina Imagem: FLC/VG Bild-Kunst, Bonn, 2007

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Le Corbusier e livro do congresso 1948

O seminário «Repensar Le Corbusier», a comemoração dos 60 anos do primeiro congresso dos arquitectos portugueses e a recordação da Carta de Atenas (texto de 1933 publicado dez anos mais tarde) são os temas de um dossiê que a Secção Regional Sul preparou. Textos de António Henriques* * Jornalista

Auto-retrato: « [Le Corbusier] usou tudo o que tinha ao alcance para comunicar: jornais, artigos, livros, conferências, exposições, rádio, filmes e TV. Foi o primeiro arquitecto a compreender na perfeição os meios de comunicação de massa», segundo a investigadora Beatriz Colomina Imagem: FLC/VG Bild-Kunst, Bonn, 2007

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Congresso de 1948

A Ordem dos Arquitectos organizou o seminário «Repensar Le Corbusier» em Maio passado e vai editar uma edição fac-similada do livro que reuniu as teses apresentadas no primeiro Congresso Nacional de Arquitectura em 1948 – o lançamento decorre no salão nobre do Instituto Superior Técnico a 3 de Julho (18h30). A data, 3 de Julho, marca o décimo aniversário da existência da Ordem dos Arquitectos (até aí Associação dos Arquitectos Portugueses) com a publicação do seu estatuto, concretizando uma vontade já manifestada nos anos 30 do século XX. E assinala-se 60 anos sobre a primeira grande reunião dos arquitectos portugueses. A edição fac-similada, que reúne as teses, conclusões e votos do primeiro congresso, tem a novidade da inclusão da tese apresentada por Artur Andrade, que não foi incluída na publicação original. À edição fac-similada acrescenta-se, ainda, um caderno com imagens e textos (uma introdução de Ana Tostões e dois textos de enquadramento de Nuno Teotónio Pereira e Francisco Silva Dias) e um DVD com depoimentos de arquitectos sobre o significado da participação no congresso de 1948. Com edição de Ana Tostões e Ana Silva Dias, o livro fac-similado «constitui um valioso documento de surpreendente actualidade» que pretende «não só fixar a memória mas sobretudo oferecer às novas gerações o testemunho dessa vitalidade», de acordo com a Ordem dos Arquitectos. A 4 de Julho, na Casa dos Açores em Lisboa, é feito o lançamento de uma outra publicação da Ordem dos Arquitectos – a segunda edição da «Arquitectura Popular em Portugal», uma obra coordenada por João Vieira Caldas. A obra é apresentada por Nuno Teotónio Pereira. Noutro plano, o arquitecto Michel Toussaint organiza os materiais de uma exposição a decorrer de 4 a 31 de Julho na biblioteca da Ordem dos Arquitectos (10-19h) centrada na evocação do primeiro congresso nacional de arquitectura e na comemoração dos 10 anos de existência da Ordem dos Arquitectos. Do espólio representativo da história centenária da vida associativa dos arquitectos portugueses vão destacar-se algumas obras publicadas e fotografias da época (alusivas ao congresso e a outros acontecimentos desse passado associativo).

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3 Julho 18h30 Salão nobre do Instituto Superior Técnico Avenida Rovisco Pais, Lisboa Tel. 218 417 000 Programa - Carlos Matos Ferreira, presidente do Instituto Superior Técnico – João Belo Rodeia, presidente da Ordem dos Arquitectos/«A aventura associativa dos arquitectos portugueses» – Lançamento do concurso para a nova imagem da Ordem dos Arquitectos – Lançamento do concurso para a selecção da equipa editorial do orna Arquitectos 2009-2011

– Tomada de posse da comissão instaladora do Colégio da Especialidade de Urbanismo (Nuno Portas, João Cabral e Jorge Bonito) – Lançamento da edição fac-similada das teses do primeiro congresso nacional de arquitectura (Edição Ordem dos Arquitectos, Junho 2008) – Ana Tostões, vice-presidente da Ordem dos Arquitectos

Conferências:

- José António Bandeirinha, Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra – Ana Isabel Ribeiro, mestre em história/«Relembrando o congresso de 1948» – Francisco Silva Dias, provedor da arquitectura e presidente da Associação dos Arquitectos Portugueses (1990-92) /«Notas sobre o primeiro congresso» – Nuno Teotónio Pereira, presidente da Associação dos Arquitectos Portugueses (1984-1989) – Encerramento/«cocktail» 4 Julho 19h Casa dos Açores em Lisboa Rua dos Navegantes, 21 Tel. 213 907 427 Programa – Abertura sessão solene: Duarte Brás, Casa dos Açores em Lisboa; Ana Tostões, vice-

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presidente da Ordem dos Arquitectos – Apresentação da obra por Nuno Teotónio Pereira com os autores Ana Tostões, Filipe Jorge Silva, João Vieira Caldas, José Manuel Fernandes, Maria de Lurdes Janeiro, Nuno Barcelos e Victor Mestre «Cocktail»

Porto organiza eventos a 4 e 11 Julho A Secção Regional Norte (SRN) organizou uma programação própria, que decorre a 4 e 11 de Julho. No dia 4 (22h, na Rua Álvares Cabral, 142) é feita a apresentação do projecto da sede futura da SRN pelos NPS Arquitectos (Ateliê de arquitectura, formado em 2001 por Rui Neto, Odete Pereira e Sérgio Silva, com especialização em reabilitação urbana). Pode ser vista, também, uma exposição de 27 fotografias de Luís Ferreira Alves, comissariada pelo arquitecto Pedro Bandeira e organizada pela SRN e departamento de arquitectura da Universidade do Minho. «Em Obra», nome da exposição, reflecte «a arquitectura em construção ou reabilitação», como é caso de um grupo de imagens sobre o Palácio do Freixo (uma recuperação de Fernando Távora) e apresenta uma dualidade entre uma arquitectura que parece decadente e sem dignidade e, por outro lado, um olhar esteticamente relevante e de promessa «capaz de exaltar uma beleza oculta mas pronta a emergir». Nascido em Valadares (1938), Luís Ferreira Alves é fotógrafo profissional desde 1984. A progamação completa desta noite está em www.oasrn.org. A 11 de Julho, no Cinema Batalha (Praça da Batalha) é apresentada por Ana Tostões a edição fac-similada do livro do primeiro congresso dos arquitectos portugueses, seguida de uma conferência, de Edite Rosa, sobre o manifesto do grupo Organização dos Arquitectos Modernos (ODAM), fundado em 1947 no Porto. A ODAM, juntamente com como o grupo Iniciativas Culturais Arte e Técnica em Lisboa, ICAT (1946), tinha sido criada «pela «geração mais nova e reivindicativa», diz o investigador José António Bandeirinha, para intervir no congresso. A ODAM levou à reunião magna várias das 31 teses discutidas. ODAM e ICAT procuraram levar «uma coerência de princípios em defesa da profissão no plano

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programático e em realizações», diz a investigadora Ana Isabel Ribeiro.

Carta de Atenas: quando nasceu era para todos Para compreender a psicologia da rua não basta gozar-lhe as delícias como se goza do calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos flaneur e praticar o mais interessante dos esportes – a arte de flanar. João do Rio, A Alma Encantadora das Ruas O manifesto de 95 pontos que saiu da assembleia do Congresso Internacional de Arquitectura Moderna (CIAM) de 1933 (que viria a constituir a Carta de Atenas publicada em 1943) tem o ar grave de uma Constituição e a poesia requintada de uma peça literária. Solidarizou-se, angustiada, com a «solidão», as «fadigas» e «os perigos» que corroíam os seres humanos. Proclamou que «a geografia e a topografia desempenham um papel considerável no destino dos homens» ao mesmo tempo que os seus autores se mostravam espantados como «a era do maquinismo», em que «tudo é movimento», «o caos entrou nas cidades», há «um ritmo furioso associado a uma precariedade desencorajante» e é consequência de «um dos grandes males do século, o subúrbio».

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Com o arquitecto Karl Moser e com o crítico de arquitectura Siegfried Giedion, o arquitecto, escultor, pintor, escritor e viajante de origem suíça, Le Corbusier, foi um dos grandes impulsionadores da criação dos CIAM, inaugurados em 1928 e que pretendiam elaborar um quadro de crítica teórica da arquitectura moderna assente em assembleias colectivas de trabalho. E teve um papel decisivo na redacção das conclusões do quarto congresso CIAM, realizado em 1933, que «chegou ao seguinte postulado: o Sol, a vegetação, o espaço são as três matérias-primas do urbanismo». A concentração urbana, a «total falta de espaços verdes criadores de oxigénio» que a cidade devora ao crescer para lá do tempo e do modo de vida pré-industriais, tudo isso, «aumenta proporcionalmente a desordem higiénica».

Corbusier contempla parte da «Cidade Radiosa»: a felicidade dos homens antecipada na maqueta Imagem: home.worldonline.dk

O texto da Carta de Atenas é a sua própria «irradiação» – palavra de tal modo ligada ao corpo do léxico de Le Corbusier, que ele lhe dedicou um projecto, a Cidade Radiosa (1930), muito justamente sem lugar (uma utopia). E o texto é a sua própria irradiação no sentido mais literal: «Introduzir o Sol é o novo e o mais imperioso dever do arquitecto», «o Sol é o senhor da vida», «o primeiro dever do urbanismo é pôr-se de acordo com as necessidades fundamentais dos homens (…) o Sol, que comanda todo o crescimento, deveria penetrar no interior de cada moradia», são algumas frases que exacerbam a ambição deste manifesto iluminado. «A palavra 'radioso' não estava lá [na obra 'A Cidade Radiosa', 1935] por acaso;

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excede o funcional e vem situar-se perto da consciência. Com efeito, a consciência está em jogo em tudo isto (nos acontecimentos prodigiosos que vivemos) sobrepondo-se aos aspectos económicos e técnicos e, no fim de contas, só ela é capaz de constituir através de justas reivindicações o próprio programa das nossas produções», explica, por palavras próprias, Le Corbusier.

Imagem: Fundação Le Corbusier O subúrbio, diz o texto numa das suas belas inumeráveis passagens de fulgor literário, «é o símbolo, ao mesmo tempo, do fracasso e da tentativa. É uma espécie de onda batendo nos muros da cidade». Erro urbanístico, descendente degenerado dos arrabaldes, resultado do desenvolvimento sem controlo, freio e autoridade, o subúrbio é uma apropriação do solo «sem disciplina», que não serve a felicidade dos homens. A arquitectura não foi, de longe, a primeira actividade a legitimar-se (também), de forma mais ou menos genuína, heróica ou ingénua, pela tentativa de encontrar um meio de tornar as populações «felizes». Pensar na felicidade dos outros não seria já subordiná-los às nossas ideias? Mas como pôr reticências a um texto, escrito entre duas devastadoras guerras mundiais, um texto culto, inteligente, ético, deliciosamente excessivo, que afirma que «é preciso tornar acessível para todos (…) uma certa qualidade de bem-estar, independentemente de qualquer questão de dinheiro» e que repetidamente diz «É preciso exigir»? «É preciso exigir». Tão só que os homens retomem o contacto com a natureza, para que não paguem «caro, com a doença e a decadência, uma ruptura que enfraquece o seu corpo e arruína a sua sensibilidade, corrompida pelas alegrias ilusórias da cidade». Urbanizadores da alma, os artesãos da Carta de Atenas acreditam no «aperfeiçoamento crescente» dos seres humanos, se o solo urbano for planeado de

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modo a garantir a todos um pouco de ar, silêncio e paz, se os serviços essenciais (saúde, escolas) estiverem tão perto quanto as organizações desportivas e intelectuais, se erguermos construções elevadas controladas pelo estudo estatístico preciso e virmos na sua densidade a validação das organizações colectivas, se pudermos descansar os olhos em «amplas superfícies verdes», se destruirmos a insalubridade, se planearmos até as novas «mil oportunidades de actividades saudáveis» que podemos oferecer ao fim-de-semana, se cultivarmos hortas, se repensarmos as redes de ligação porque a «circulação se tornou hoje uma função primordial da vida urbana». E como Le Corbusier, se soubermos História: «A vida de uma cidade é uma acontecimento contínuo, que se manifesta ao longo dos séculos por obras materiais, traçados ou construções que lhe conferem a sua personalidade própria e dos quais emana pouco a pouco a sua alma».

São Paulo, Brasil: é preciso imaginação para encontrar a liberdade individual no meio da «desordem indizível» imagem: Lalo de Almeida Daqui decorre que «os valores arquitectónicos devem ser salvaguardados». Mas só desde que a «sua conservação não acarrete o sacrifício de populações mantidas em condições insalubres» ou que «em nenhum caso o culto do pitoresco [tenha] primazia sobre a salubridade da moradia». Em tudo o mais, primeiro as pessoas, depois o que elas construíram. A Carta de Atenas é uma afirmação de cidadania: «o crescimento incessante dos

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interesses privados» não esconde os sentimentos que devem controlar esses interesses: «responsabilidade administrativa e solidariedade social». Os subscritores escrevem a palavra «violência» para se referir à «construção de habitações ou de fábricas, a organização de rodovias, hidrovias ou ferrovias, tudo se multiplicou numa pressa (…) da qual estavam excluídos qualquer plano preconcebido e qualquer reflexão prévia». Ao mesmo tempo que o urbanismo deveria assegurar a moradia saudável, devia imiscuir-se na «boa utilização das horas livres» – a retórica dos dispositivos de controlo sobre as pessoas, dizendo-lhes o que devem fazer quando estão a trabalhar e o que devem fazer quando não estão a trabalhar espalhou-se de tal modo que o tempo livre é classificado como devendo ser «benéfico e fecundo». Contundente é que isso fosse feito para «romper a opressão esmagadora de usos» que as cidades ostentavam e que o novo urbanismo poderia redimir – não encontrando os autores do texto um modo de pensar, desde logo, que um tal programa podia criar uma opressão pelo menos tão grande quanto a que queria esmagar.

«A circulação tornou-se hoje uma função primordial da vida urbana. Ela pede um programa cuidadosamente estudado, que saiba prever tudo o que é preciso para regularizar os fluxos», dizia a Carta de Atenas. Imagem: Nelson Kon «A cidade deve assegurar, nos planos espiritual e material, a liberdade individual e o benefício da acção colectiva», sublinha o documento.

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Trazer ordem, classificar, organizar, determinar, exigir: a Carta de Atenas reivindica um papel regenerador para tentar dar um sentido à «desordem higiénica», à «decadência», «perigos da rua», «vida sem disciplina», «desordem indizível» que a ruptura da antiga organização do trabalho provocou, «vícios», «anarquia», «irracionalidade, falta de precisão, falta de flexibilidade, de diversidade e de adequação» da malha das ruas. «Não nos esqueçamos de que a sensação de espaço é de ordem psico-fisiológica», lembrava o manifesto, convocando as ciências da mente para justificar a grande história jamais terminada sobre ‘o que sentimos sobre nós mesmos’.

Um país com vista para Le Corbusier «Era preciso rejeitar tudo o que se considerava caduco, convencional ou simplesmente académico». «As mais altas aspirações de ser útil ao país podem ser expressas» – começa assim, num tom de leveza grandiloquente, o regulamento do primeiro congresso nacional de arquitectura (que decorreu entre 28 de Maio e 4 de Junho de 1948) e que anuncia as duas grandes questões em discussão no primeiro grande fórum dos arquitectos portugueses: A arquitectura no plano nacional; e o problema português da habitação. Mas «as mais altas aspirações» eram contraditórias em muitos sentidos. José António Bandeirinha (JAB), investigador e professor na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, um dos oradores do seminário «Repensar Le Corbusier», descreve um ambiente necessariamente tenso nos bastidores desta reunião magna. «Do lado do poder, Cottineli Telmo e Pardal Monteiro (…) sentiam perigar a sua situação profissional e estatutária» desde a morte do ministro Duarte Pacheco e viam crescer as influências dos industrialistas ( «a prioridade ao fomento das infra-estruturas industriais vai-se sobrepondo»).

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Plano para uma «cidade contemporânea de três milhões de habitantes», apresentado por Corbusier em Novembro de 1922 no Salão de Paris. É um dos destaques da exposição do Museu Colecção Berardo, em Lisboa, que pode ser vista até 17 de Agosto. Imagem: FLC/VG Bild-Kunst, Bonn 2007

«Para uma parte bastante representativa dos quase 200 participantes (…) porém, as motivações eram bem outras (…) a impossibilidade de fazer qualquer coisa que não o moderno», mesmo levando em conta «as ridículas imposições estilísticas que as instituições estatais cada vez mais faziam». «Era preciso rejeitar tudo o que se considerava caduco, convencional ou simplesmente académico», recorda o arquitecto Nuno Teotónio Pereira num texto escrito para assinalar os 50 anos do primeiro congresso – o qual, refere ainda, representou um «terramoto» por duas razões: foi garantido que as comunicações não seriam censuradas pelo Governo e que os estudantes finalistas poderiam participar. Nas mais altas aspirações de ser útil ao país podia incluir-se não ignorar, entre o meio «intelectual urbano e sua tertúlia» um «surto de greves e motins espoletado durante os anos da guerra pelo campesinato pobre do norte e centro do país, pelos assalariados rurais do sul e pelo operariado industrial», defende JAB.

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Crítica à ortodoxia do congresso «Foi neste contexto [reconstrução do pós-guerra] que os arquitectos foram chamados a um papel de primeiro plano. E estavam bem preparados para isso com a doutrina messiânica da Carta de Atenas e as propostas redentoras de Le Corbusier, fazendo apelo a um ‘Espírito Novo’», diz Teotónio Pereira, que já se tinha encarregado de traduzir os principais artigos da Carta de Atenas para a revista do Instituto Superior Técnico. É por isso que JAB afirma que, para os arquitectos mais jovens, «começa a ser impossível dissociar a reivindicação da utilização das linguagens do estilo internacional doutras reivindicações de carácter socioeconómico mais vasto». Conta JAB que a geração mais jovem e reivindicativa tinha criado organizações para intervir no congresso – Iniciativas Culturais Arte e Técnica em Lisboa (ICAT, 1946), Organização dos Arquitectos Modernos no Porto (ODAM, 1947) – essa intervenção podia vestir a roupa da «divulgação da arquitectura moderna», mas pressentia «uma contestação mais activa e sistemática ao regime» – um verdadeiro «Cavalo de Tróia», na expressão célebre de Nuno Portas. Analisando a prestação de Teotónio Pereira e de Costa Martins, JAB assinala que propõem «soluções diversas para cada caso»: classes médias ou proletárias. Fazem um estudo dos espaços interiores para cada classe social e afirmam que «as ‘unidades habitacionais’ só têm razão de ser quando incorporadas em ‘unidades de vizinhança’» com a presença de vários grupos sociais. Foi uma «crítica à ortodoxia moderna que dominou o congresso».

Nuno Teotónio Pereira: primeiro congresso dos arquitectos foi «um terramoto». O arquitecto já tinha traduzido os principais artigos da Carta de Atenas Imagem: Núcleo de arquitectura e urbanismo do LNEC

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Nos dois problemas postos à discussão no congresso (A arquitectura no plano nacional; o problema português da habitação), Teotónio Pereira diz que foi aproveitada ao máximo «a liberdade de expressar ideias que iam contra a retórica oficial». JAB refere-se ao «posicionamento profundamente crítico da maioria das comunicações, o seu contundente tom de desagravo em relação à situação da profissão e do ensino, a consciência política que revela, por vezes numa frontalidade e num radicalismo surpreendentes». A arquitecta e crítica de arquitectura Ana Vaz Milheiro nota que «a tónica do congresso centra-se no papel social da arquitectura e na abertura às teses internacionais, numa fixação que se prenderá à obra de Le Corbusier (cuja faceta meridional encontra eco nas afectividades nacionais) e, do ponto de vista urbanístico, à Carta de Atenas». Segundo Teotónio Pereira, «no congresso a Carta de Atenas e a construção em altura foram erigidos em modelos a adoptar mas também se falou de «reajustamento social, em habitação proletária, em unidades de vizinhança, num novo humanismo e nas catedrais dos Tempos Modernos citando Le Corbusier». «Em vez de se preocuparem com os Corbusiers…» De um lado, o arquitecto Mário Bonito, referido no seminário «Repensar Le Corbusier» por JAB, podia simbolizar esse desejo: «Em tudo o útil, o humano e o novo estão implícitos (…) os homens estão incondicionalmente unidos pela constituição da espécie a despeito da diversidade dos climas, posições geográficas, éticas, etc. (…) Este ponto de vista impõe um problema de consciência, uma linguagem arquitectónica internacional». Do outro lado da trincheira podia encontrar-se, como exemplo, o arquitecto Mário de Oliveira, afirmando que os arquitectos «em vez de se preocuparem a imitar os Wrights, os Corbusiers, etc. deveriam antes tentar estudar uma arquitectura portuguesa». Estas intervenções estavam no primeiro tema de discussão, «Arquitectura no plano nacional». Diz Ana Vaz Milheiro que «os cinco princípios corbusianos fixados na Villa Savoye (1929) – planta e fachada livre, edifício assente sobre pilotis [pilares], janelas em comprimento e cobertura em terraço – encontram-se nos trabalhos iniciais de Viana de Lima ou de Celestino de Castro, ambos intervenientes no Congresso».

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A Villa Savoye expõe os famosos cinco pontos da nova arquitectura: planta livre da configuração estrutural, possibilitando diversidade no espaço interno; casa assente em pilares, elevando a habitação acima do solo; cobertura da edificação com jardins; disposição da fachada independente da configuração estrutural, com possibilidade de máxima abertura para paredes externas em vidro; janelas que cortam toda a extensão do edifício, permitindo grande iluminação e vistas panorâmicas para o exterior. Imagem: www.bluffton.edu/.../savoye/corbuindex.html

«Apesar das questões políticas que a realização do Congresso subentende, ou do conflito geracional a que foi associado, o que se opõe verdadeiramente é um entendimento das linguagens e do papel da arquitectura perante a sociedade portuguesa». Nuno Teotónio Pereira diz que o regime se desembaraçou do que considerava secundário («o controlo da expressão arquitectónica, cujas normas apertadas começaram a ser suavizadas») e manteve o essencial: «censura à imprensa, polícia política, restrições ao direito de associação, eleições fraudulentas». «Com o impulso do congresso e os novos ventos que sopravam do mundo, os arquitectos portugueses forjaram uma consciência profissional que inspirou a prática associativa e a sua própria intervenção cívica e cultural ao longo dos anos que se seguiram», sublinha. Nova consciência JAB refere que, com excepção de duas ou três comunicações, «a toada de forte de descontentamento (…) apoiada numa avaliação realista da situação cultural do país» passou a ser o prato do dia do congresso. Arménio Losa defendeu a «construção em altura (…) e o ‘apetrechamento industrial do país», Francisco Keil do Amaral, eleito presidente do Sindicato nas vésperas do congresso, e nas palavras de JAB, «deixa transparecer o seu irónico e lúcido desespero face à situação do ensino da arquitectura».

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JAB relembra ainda Matos Veloso, «que cita obsessivamente Le Corbusier»: «Os problemas actuais da arquitectura e urbanismo só podem ser examinados, daqui para diante, sob o ponto de vista de uma nova consciência (…) certos da nossa missão, construtores das novas cidades, das casas para homens, ponhamos como fim a atingir (…) os interesses da comunidade, do homem em geral».

Diz JAB que, face ao tom de reivindicação e de admiração por Le Corbusier e pela citação da Carta de Atenas, os dois temas do congresso foram «um mero pretexto para se falar da arquitectura moderna». O investigador da Universidade de Coimbra afirma que é no segundo tema (O problema português da habitação) «que os congressistas encontram uma motivação mais forte para dissertar sobre a prática possível dessa arquitectura e sobre a obsolescência dos obstáculos que lhe eram colocados» – em face das «condições da habitação urbana e suburbana que tinham atingido (…) um estado extremo de degradação». As várias intervenções colocam em causa a «contradição cidade-campo» (Matos Veloso), as vantagens da habitação colectiva (Lobão Vital) e a criação de espaços verdes, jardins infantis, escolas (Viana de Lima), entre outros aspectos muito ligados ao belo texto da Carta de Atenas, publicada então há cinco anos. Sem prática urbanística inovadora JAB diz que o congresso consagrou «as doutrinas que emolduravam a prática da arquitectura moderna e do Estilo Internacional» mas que tais ideias «não pressentiam o assomo da utopia urbana e social, subjacente à prática que reivindicavam». «A grande contradição deste congresso [foi] a adopção das teorias dos Congressos Internacionais de Arquitectura Moderna face à gritante inexistência de uma prática urbanística inovadora e continuada». Diz Ana Tostões que «no quadro político então vigente, o equívoco residiu no facto de a nova geração ter querido acreditar, mesmo por momentos, no poder transformador dos programas e da expressão internacional. Apesar da sua qualificada produção, foi veículo de divulgação de um ‘estilo internacional’ facilmente apreensível e repetível desprovido da razão social que o enformava e justificava.

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Restou a arquitectura de autor: teimosamente qualificada, marginalizada entre a fidelidade crítica à arquitectura do movimento moderno e o fluído compromissos com a natureza do real e do tempo histórico». Keil do Amaral disse, muito tempo depois da realização do congresso, que «nunca tínhamos tido oportunidade de falar em arquitectura, de maneira que dissemos tudo o que considerávamos importante, de uma maneira caótica, mas cheia de vida e de intenções generosas… acreditávamos que havia um mundo novo em gestão, mais belo e equitativo e que tínhamos um papel importante a desempenhar nele: uma função social». Após o congresso, Francisco Keil do Amaral cedo seria demitido pelo governo da primeira direcção eleita do Sindicato dos Arquitectos. Textos consultados: Bandeirinha, José António, «1948-2008. 60 anos do 1º Congresso Nacional de Arquitectura. A fragilidade do possível e a solidez do impossível», comunicação apresentada no seminário «Repensar Le Corbusier», 27 Maio 2008. (O site da OASRS agradece a gentil cedência do texto) Milheiro, Ana Vaz, «Entre o ‘português suave’ e o modernismo», Jornal Arquitectos 186, Setembro de 1998 Pereira, Nuno Teotónio, «Que fazer com estes 50 anos?», ibidem Tostões, Ana, «Congresso de 48 e ruptura moderna», ibidem

Foi um ‘livro do destino’ Francisco Silva Dias, hoje provedor da arquitectura da Ordem dos Arquitectos, diz que o conteúdo do livro (relatório da comissão executiva, teses, conclusões e votos) «foi uma espécie de Livro do Destino porque todos os problemas que viriam a enfrentar estavam lá apontados». Silva Dias defende que o contexto político e social do país do final da Segunda Guerra «encontra no microcosmos da arquitectura, dos arquitectos e do congresso, com a nitidez das imagens reduzidas, um reflexo fiável».

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Capa da versão original do livro do primeiro congresso nacional de arquitectura . O arquitecto Francisco Silva Dias, hoje provedor da arquitectura, afirma que a reunião de 1948 fundou a investigação na prática profissional e lançou os estudos da construção racional da habitação Imagem: Ordem dos Arquitectos

Francisco Silva Dias é da opinião que, nos últimos 50 anos, houve duas vezes em que «a classe assumiu atitudes colectivas e demonstrou capacidade de concretização de tarefas de grande complexidade»: no primeiro congresso (1948) e no Inquérito à Arquitectura Regional Portuguesa (1955). Mesmo os temas escolhidos para o congresso de 1948 («A arquitectura no plano nacional» e «O problema português da habitação») demonstram uma «sabedoria», porque as conclusões e votos «apontaram certeiras linhas de rumo que permitem hoje passar, num empolgante exercício, da futurologia de então à visão histórica de hoje». Mais: o congresso pode ser visto «como introdução da investigação na prática profissional: com a proposta de realização de um estudo estendido a todo o país envolvendo os conceitos de tradição e regionalismo, foram lançados os germes do Inquérito à Arquitectura Regional Portuguesa». E começaram os estudos da «construção racional da habitação». Mais de meio século depois, «a democratização do ensino levou às escolas de arquitectura do país um grande número dos mais aptos (…) e o Programa Erasmus vence fronteiras e estabelece igualdades». A população «sente como adquirido o direito à arquitectura». Dois objectivos por atingir: a criação de um museu da arquitectura moderna portuguesa e a criação de um instituto que defina as bases do problemas do urbanismo e da habitação.

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Francisco Silva Dias fala, ainda, na questão de «uma maleita que percorre este mais de meio século desde o congresso» – a «ditadura do parecer’, quantas vezes censório e arbitrário», quando em 1948 já se reclamava que os arquitectos tivessem «o direito de defender as suas concepções antes de um indeferimento definitivo». Para justificar este ponto, Silva Dias socorre-se da sua experiência como provedor: «mais de metade das queixas (…) são do âmbito das relações população-administração autárquica ou da interpretação subjectiva e prepotente dos agentes licenciadores». Importante é, também, a reflexão que Silva Dias faz sobre como se exerceria a «censura» sobre a arquitectura: «São escassos os discursos da ditadura [de Salazar] sobre a arquitectura, mal deixando vislumbrar linhas de rumo que conduzissem ao exclusivo da expressão nacionalista. E conhecem-se atitudes de tolerância ou talvez de indiferença em relação à modernidade». Diz Francisco Silva Dias que é provável que «a censura viesse dos escalões intermédios da governação e fosse alimentado por ‘académicos’ cujo estatuto social próximo do poder influenciasse os decisores». E «os conservadores mais notáveis apresentaram-se discretos e não terão sequer confrontado por comunicações ou diálogo o pensamento moderno que dominou o evento. A defesa de uma arquitectura nacional de cariz político apresentou-se esporádica e foi ostensivamente olvidada». Silva Dias recorda que «até o discurso de abertura do presidente da comissão executiva do congresso, Cottinelli Telmo, não é panegírico» para os governantes presentes. Foca-se no «esforço caloroso e honesto dos arquitectos para o bem comum, ideia que reforça no discurso de encerramento». Um homem dos media Usou tudo o que tinha à mão para comunicar. A certa altura, começou a sentir-se mal na televisão Para a investigadora e professora de arquitectura Beatriz Colomina, uma das conferencistas do seminário «Repensar Le Corbusier», não há dúvida de que «Le Corbusier foi o mais influente arquitecto do século XX. Os seus edifícios estão entre as mais belas obras da arquitectura moderna». Mas foi igualmente um grande comunicador. «Usou tudo o que tinha ao alcance para comunicar: jornais, artigos, livros, conferências, exposições, rádio, filmes e TV. Foi o

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primeiro arquitecto a compreender na perfeição os meios de comunicação de massa». Le Corbusier escreveu mais livros do que desenhou edifícios. Colomina enumera 79 livros, catálogos e panfletos; 511 artigos, 51 artigos científicos editados, inúmeras fotos, 29 anúncios, participação em 13 filmes mais 16 filmes amadores, 20 programas de rádio, 25 programas de TV e um arquivo.

O quadro negro que usava nas suas conferências, onde desenhava, começou a ficar mal na TV. Beatriz Colomina afirma que «Corbusier deixou de entender o modo de funcionamento da televisão» Imagem: FLC/VG Bild-Kunst, Bonn, 2007

Nenhum exagero em dizer que a escrita está à altura da sua arquitectura. Tal como o historiador de arquitectura William J.R. Curtis chamou a atenção durante o seminário - um esboço, uma ideia remota podia muitos anos mais tarde percorrer o seu caminho até se transformar numa obra arquitectónica - Le Corbusier reciclou vezes sem conta os seus pensamentos escritos, voltando atrás, acrescentando, cortando, aperfeiçoando e, por vezes, fazendo-o como se recuperasse no tempo presente um remoto pensamento interrompido. Le Corbusier olhava para os livros e artigos como séries, compilando-os para chegar às obras completas – da mesma forma que o fez com projectos e edifícios. «Livros e artigos foram uma parte íntima da sua prática arquitectónica», afirma Beatriz Colomina. Antes do desenho, a palavra. Criou com Amadée Ozenfant e o poeta Paul Dermée a revista «L´Esprit nouveau - revista internacional de estética» (1919, com o primeiro número a ser publicado em Outubro de 1920 e o último em 1925), pela qual não passava só o prazer de escrever. Colomina diz que «a revista foi um instrumento fundamental para construir uma clientela para as suas obras».

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«A escrita abre a possibilidade de uma encomenda que, depois, legitima a escrita». Ele publicava artigos e desenhava projectos, projectos que eram solicitados pelos escritos. «Esta espiral de eterno retorno conduzia os escritos às encomendas, mas também aos edifícios do passado. Le Corbusier movimentava-se, ao mesmo tempo, entre a revisitação do passado e do presente. As mais recentes inovações são, paradoxalmente, legitimadas por estarem ligadas às já realizadas», afirma a investigadora espanhola. É o caso da Villa Savoye, em Poissy (1928), França, pensada como uma residência de veraneio, expondo a sua reflexão sobre a questão da habitação de modo tão eloquente quanto ele a escreveu: «Quando criámos ‘L´Esprit nouveau’ eu tinha dado à casa a sua importância fundamental, qualificando-a de ‘máquina de habitar’ e exigindo assim dela uma resposta total e impecável a uma questão bem posta. Programa exclusivamente humano, que repunha o homem no centro da preocupação arquitectónica». Le Corbusier vociferava contra o ensino escolar que não incluía preocupações com a habitação. «Nenhuma atenção dada àquilo que faz a vida de todos os seres: o quotidiano, esses momentos e essas horas passados dia após dia, desde a infância até à morte, em salas, em espaços quadrangulares e simples que podem ser emocionantes e que constituem, de facto, o teatro primordial em que a nossa sensibilidade evolui». A bela Villa Savoye é essa máquina que expõe os famosos cinco pontos da nova arquitectura: planta livre da configuração estrutural, possibilitando diversidade no espaço interno; casa assente em pilares, elevando a habitação acima do solo; cobertura da edificação com jardins; disposição da fachada independente da configuração estrutural, com possibilidade de máxima abertura para paredes externas em vidro; janelas que cortam toda a extensão do edifício, permitindo grande iluminação e vistas panorâmicas para o exterior. Foram inovações que tiveram tanto impacto, que ainda hoje são estudadas aprofundadamente. Mas «a modernidade da Villa Savoye é antiga», diz Colomina, remetendo para o próprio Le Corbusier: «A arquitectura árabe dá-nos uma preciosa lição (…) é porque andamos, porque nos movemos que podemos ver a arquitectura a desenvolver-se. Trata-se de um princípio contrário à arquitectura barroca, concebida sobre o papel em redor de um ponto teórico fixo. Eu prefiro o que nos ensina a arquitectura árabe». A frase explica uma das ideias fortes das suas vida e obra, a ideia de passeio e de fruição dos espaços.

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Escola Secundária Padre António Vieira, em Lisboa. Ruy Jervis Athouguia desenhou-a de forma a que os alunos e professores tivessem, em permanência, uma panorâmica da cidade dentro da sala de aula. «É um momento em que a arquitectura moderna se monumentaliza e uma obra maior do século XX», disse o arquitecto Ricardo Carvalho, numa visita guiada ao local Imagem: Direitos reservados Dentro de um ‘travelling’ Foi com «a ideia de passeio» que o arquitecto Ricardo Carvalho propôs que se sentisse a arquitectura da Escola Secundária Padre António Vieira – caso da cenográfica rampa que o autor Ruy Jervis Athouguia desenhou para ligar os andares da escola, que podemos percorrer como se viajássemos dentro de um ‘travelling’ e fôssemos, simultaneamente, a câmara de filmar e o espectador das imagens captadas. Esta foi uma das duas visitas guiadas organizadas pela Secção Regional Sul a Lisboa a propósito do seminário «Repensar Le Corbusier», realizada a 7 de Junho. Ricardo Carvalho lembrou como «todas as salas de aula têm uma panorâmica sobre a cidade», permitindo continuar esse mesmo passeio até na aula, «embora hoje sobre uma cidade que Jervis Athouguia não imaginava que fôssemos capazes de construir». Uma panorâmica limitada às vicissitudes da disciplina escolar, visto que um aviso à entrada diz que só os professores podem mexer nos estores – só eles podendo, aparentemente, autorizar que os alunos se ausentem para uma viagem à volta do mundo sem sair da sala. Ricardo Carvalho, para quem Ruy Athouguia é uma «figura de primeira grandeza» dos que seguiram os princípios universais da linguagem arquitectónica moderna, destacou as escolas construídas nas décadas de 50 e 60 do século XX em Alvalade (escolas primárias Teixeira de Pascoaes e do bairro de São Miguel e a Escola Padre António Vieira), além, claro, da grande obra de referência de Lisboa nos anos 50 (Bairro das Estacas, de parceria com Sebastião Formosinho Sanchez) «com os seus edifícios a pairar sobre um jardim contínuo que corre sob eles», como descreve num texto.

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’Silêncio aristocrático’ Todas as formas de escrita a que Le Corbusier deitou mão – cartas, manifestos, ensaios, panfletos, livros, catálogos e outros – culminaram na monumental obra completa de sete volumes, concebida pelo próprio quando andava pelos trinta anos de idade. O primeiro volume foi publicado em 1929, quando tinha 42 anos e o último em 1969, cinco anos após a sua morte, já publicado pelos seus colegas. Beatriz Colomina diz que escrever sobre arquitectura histórica cria a possibilidade da nova arquitectura e de um quadro para a ler. «Não é que Le Corbusier escrevesse sobre a sua arquitectura, ele escrevia a arquitectura».

Le Corbusier rodeado da sua colecção particular em 1931. O arquitecto, conhecedor da história, preparou cuidadosamente a publicação do seu legado. Mas não evitou que o meio de comunicação mais volátil e superficial, a televisão, tivesse perdido grande parte do seu património. Para quê guardar coisas que superam a espuma dos dias? Imagem: FLC/VG Bild-Kunst Bonn, 2007 Neste sentido, enquanto Le Corbusier escreveu a sua história, legando aos estudiosos a forma como queria que encontrassem os elementos da sua própria investigação, Athouguia, «é o arquitecto em que se encontram os grandes temas da arquitectura moderna, mas sem grande elaboração teórica». «Isso terá contribuído para ter sido esquecido por longo tempo», disse Ricardo Carvalho. «No seu silêncio aristocrático, terá sido prejudicado» até investigadores mais recentes recolocarem o seu trabalho de grande sensibilidade num lugar de destaque merecido. A Escola Padre António Vieira não é só «o momento em que a arquitectura moderna se monumentaliza» em Portugal, nas palavras de Ricardo Carvalho, é como «Ruy Athouguia, considerando, de algum modo, a escola uma cidade, desenha uma arquitectura de olhar lírico e sensibilidade poética, com ambientes completamente diferentes» que coexistem insuspeitamente uns ao lado dos outros. Por exemplo, junto ao refeitório da escola há um pequeno jardim onde se pode comer e conviver ao ar livre; as actividades exteriores (campos de jogos, recreios) são hierarquizadas pela proporção dos espaços e pela sua colocação precisa no desenho geral; há dezenas de vistas de profunda beleza, estando no exterior do

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edifício; ou no interior a olhar cá para fora, onde nunca parecemos estar dentro de Lisboa, mas num recanto em que a fruição da luz e da natureza nos é proporcionada sem esforço aparente. Desenhar após fotografar Beatriz Colomina afirma como é claro que «para Le Corbusier o mundo da comunicação não é secundário em relação ao da arquitectura construída. O mundo da escrita não é secundário em relação ao mundo da arte (…) é precisamente na forma de comunicar as suas ideias que ele vestiu a identidade de artista moderno». O desenho teve um papel fundamental na apropriação por Le Corbusier do mundo exterior [usar auto-retrato dele para imagem]. Mas muitos dos desenhos, nota a investigadora, são feitos depois de fazer fotografias ou de usar reproduções de obras de arte e postais ilustrados – e , na verdade, quer os desenhos quer as experiências arquitectónicas são concebidas de um modo fotográfico A fotografia (conservou meio milhar de fotos tirada apenas entre 1907 e 1912) foi parte de um íntimo processo de produção da arquitectura. Inúmeras fotos são encontradas quer no início, quer no fim do trabalho. «Este processo começa, muitas vezes, com fotos como as que tirou nas suas viagens, que depois se tornaram em esboços e estes esboços em projectos». Se andar «cria uma diversidade no espectáculo que se abre perante os nossos olhos», como disse Le Corbusier na obra «Vers une architecture», e a visão é um instrumento de gravação [dos quadros que vamos apanhando] «a janela é, sobretudo, comunicação. Ele, repetidamente, impõe a ideia de uma janela ‘moderna’, a janela horizontal, a janela panorâmica» ligada à realidade dos novos media, «máquinas que permitem abolir o tempo e o espaço».

O habitante é o coreógrafo da casa Como não interessar-se pelos filmes? «Os olhos modernos movem-se. Nos textos de Le Corbusier, a visão está sempre ligada ao movimento, ao ‘passeio arquitectónico’. O ponto de vista da arquitectura moderna nunca é fixado (…) mas está sempre em movimento». O corredor da Escola Padre António Vieira desenhado por Ruy Jervis Athouguia podia estar fixo se o conseguíssemos ver transversalmente, mas para quem o

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percorre, é como se o corredor andasse connosco. «São imagens como estruturas construídas» diz Colomina. São, como ele diz, «paredes de luz», quer dizer, «as paredes que definem o espaço já não são estruturas sólidas pontuadas por pequenas janelas mas foram desmaterializadas, reduzidas com as novas tecnologias construtivas e substituídas por extensas janelas, superfícies de vidro que definem o espaço», diz Colomina. «As janelas tomam conta das paredes como se fossem ecrãs de cinema». Na casa, máquina de habitar, desenrola-se um espectáculo que a deslocação do observador proporciona sempre na ânsia de descobrir o próximo pormenor. No caso da Villa Savoye, Le Corbusier descreveu-a como uma «caixa no ar», dizendo Colomina que ela «pode estar em qualquer lugar. Num certo sentido, a casa é imaterial. A casa não é simplesmente construída como um objecto material a partir do qual é possível obter um conjunto de vistas. A casa é uma série de vistas coreografadas pelo visitante, tal como um realizador faz uma montagem de um filme ou um curador organiza pinturas numa galeria (…) A casa é um museu do século XX». «Peço desculpa, não estou de acordo» «Para um homem que sempre tentou atrair o máximo de audiência, a televisão nos inícios da década de 50 estava para lá do irresistível». Mas este fascínio «começou a esmorecer até se transformar em desinteresse e mesmo desprezo», à medida que lhe escapava das mãos a mínima possibilidade de controlar o modo como podia comunicar. «Nos anos 60», diz Beatriz Colomina, «ele sentia-se completamente abusado pela televisão, rejeitando a maior parte das ofertas para aparecer», passando a aceitar os convites que não exigiam a sua presença, apenas a da sua arquitectura. Colomina diz que Corbusier deixou de entender o modo de funcionamento da televisão, invocando que «nos programas ele usava a mesma técnica que desenvolveu para as suas conferências, muitas vezes desenhando as suas ideias num quadro negro». Acrescenta a investigadora que lhe faltava o à vontade de arquitectos que lhe sucederam como Philip Johnson que, «tal como J.F. Kennedy e Andy Warhol era feito para [aparecer] na televisão» e que Le Corbusier «parecia rígido [stiff]» no ecrã. Beatriz Colomina conta que, em 1953, numa carta à BBC, Corbusier escreve: «Peço imensa desculpa, mas não estou de acordo com a televisão. Não quero fazer uma conferência de arquitectura ou de urbanismo em cinco segundos, é uma coisa fatigante e aborrecida (…) é melhor abster-me se é para pregar diante de quatro milhões de incompetentes. Já não tenho idade para esse tipo de cruzadas». «Rígido», que também podemos entrever como severo, resoluto, firme, resistente, pouco fluído e desconfortável, não remeteria para o conflito insanável do espectáculo que a televisão promete da forma mais ‘natural’ mas feito através de mecanismos tão invisíveis quanto rígidos, como o de que é preciso ‘falar simples’? Colomina diz que ele já não controla o meio, da mesma forma que o fazia em filmes, revistas ou livros. Entre 1950 e a data da morte, recebeu pelo menos 56 convites para participar em programas de televisão, havendo evidência de ter aparecido em

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mais de 25 programas. Colomina acrescenta, no seu trabalho de investigação, que «paradoxalmente, é na televisão [que está] o mais frágil dos registos» do seu trabalho. Há na Fundação Le Corbusier objectos tão anódinos como conchas que ele apanhou na praia mas não há gravações dos seus programas de televisão dos anos 50 e 60, tal como nos registos das próprias empresas emissoras» – um esplendor exemplar da fragilidade autofágica da televisão. Pelo contrário, Corbusier armazenava tudo, «tendo decidido muito cedo cada traço de si e do seu trabalho que devia ser guardado»: correspondência, contas de electricidade, postais, documentos legais, fotos, inúmeros objectos, revistas, livros, recortes de jornais e uma infinidade de materiais pertencentes à Fundação com o seu nome – onde há 32 volumes do seu arquivo com 32 mil desenhos de arquitectura, urbanismo e mobiliário ou 73 cadernos de apontamentos com esboços feitos entre 1914 e 1964 entre os 450 mil documentos existentes. Textos consultados: Colomina, Beatriz, «Vers une architecture médiatique», Le Corbusier. The Art of Architecture, Vitra Design Museum (em colaboração com The Netherlands Architecture Institute e Royal Institute of British Architects), 2007 Le Corbusier, Conversa com os estudantes das escolas de arquitectura, Edições Cotovia, 2003

«O que interessa são os edifícios» O historiador William J.R. Curtis participou no lançamento de uma edição brasileira da sua monumental «Arquitectura moderna desde 1900». home is the house you build with your bones yes home is the house you build with your bones Simone White, I am the Man No segundo dia do seminário «Repensar Le Corbusier» (28 de Maio), o historiador, pintor, fotógrafo, crítico e escritor inglês William J. R. Curtis participou no lançamento de uma versão brasileira (Bookman, uma chancela da Artmed editora) do seu livro «Arquitectura moderna desde 1900», no Museu da Electricidade em Lisboa. Parecendo marginal relativamente à importância, por exemplo, da sua própria comunicação no seminário, a existência do livro em língua portuguesa é um acesso directo ao ponto de vista deste bem-humorado investigador sobre o que significa a

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arquitectura. Classifica-se como «autor itinerante que trabalha em muitos países», num texto de 2007 de apresentação do seu livro em língua castelhana. «Arquitectura moderna desde 1900» ocupou-o mais de 25 anos e teve três edições (1982, 1987 e 1996), sendo a última «uma grande transformação» da obra, «fruto de uma rigorosa autocrítica e de uma revisão completa» que levaram ao acrescento de sete novos capítulos e ao redesenho editorial que incluiu mais de 800 ilustrações. Uma nova secção incluía a arquitectura até meados da década de 90 do século XX.

Capela de Notre Dame du Haut, Ronchamp, uma das inspirações primordiais de Frank Gehry, sem a qual o Museu Guggenheim não teria sido desenhado Imagem: FLC/VG Bild-Kunst, Bonn, 2007

Entre os aspectos da autocrítica «dei-me conta da simplificação excessiva da contribuição de Mies van der Rohe, de que não havia dito nada sobre a extraordinária qualidade de Erich Mendelsohn e praticamente nada sobre o papel de países como Portugal e Espanha». Quando o livro surgiu em 1982, «assombrava-me ver com que facilidade uma tendência sem substância [arquitectura pós-moderna] podia colonizar as mentes dos professores e estudantes». O livro foi concebido como uma forma de «desmistificar a arquitectura moderna, de salvá-la dos seus próprios mitos e defensores, de evitar as caricaturas criadas pelos seus inimigos e pelos seus partidários e, afinal, de expor as coisas em toda a sua complexidade». No início da sua conferência no Museu da Electricidade, William J.R. Curtis disse que estava sempre a pensar em Le Corbusier mas que «é um pouco especulativo imaginar sobre como ele pode ser repensado. Podemos fazê-lo através de textos, fotos, lembrando-o fisicamente ou lembrando-nos de nada – afirmando a sua presença na nossa mente».

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A arte da história Um dos charmes de William J.R. Curtis é a boa disposição com que fala de coisas complexas com um tom de simplicidade sorridente. Outra, talvez mais substancial, é a forma como quer distanciar-se das ideias feitas. «[O livro] chegou a ser parte de uma identidade [minha] que respondia à necessidade de guardar uma certa distância em relação ao mundo académico, facilmente presa de modas intelectuais». Diz ele que «o livro procura desocultar a complexidade do passado e torná-la inteligível. Não há lugar para o obscurantismo, as falsas teorias e o jargão».

Catedral de Chartres, França. Os «maestros modernos [Corbusier, Wright, Mies, Aalto, Kahn] transformaram «as ideias básicas num novo sistema simbólico e formal, uma nova linguagem e uma expressão moderna» Imagem: http://www.sunrisemusics.com/paris.htm

«Escrever história implica tanto usar a razão quanto a imaginação e todos os pressupostos têm de submeter-se a um certo cepticismo. As teorias têm o seu papel mas um bom livro, como um bom edifício, nunca é a simples manifestação de uma posição previamente adoptada», sublinha William J.R. Curtis. «O meu trabalho não se vincula a nenhuma escola de pensamento em particular e, ainda que as teorias tenham um papel, ficam em segundo plano. Afinal de contas, a escrita da história é uma arte em si e quando um autor nos diz no prefácio de um livro que pertence a uma certa ‘escola’ intelectual, já sabemos que estamos a lidar com alguém que joga na segunda divisão». A sua obra foi também «um passaporte internacional que abriu muitas portas» e lhe permitiu ter acesso a tantas geografias diferentes (Harvard, Queensland, na Austrália, Beirute, onde «quase perdi a vida num ataque com ‘rockets’», Ardèche, no sul de França) quantas as que ele procura mapear diligentemente no seu livro. Frank Gehry disse-me No seminário, William J.R. Curtis contou uma conversa com Frank Gehry, numa ocasião de apresentação do Museu Guggenheim. «Ele disse-me que duas das suas inspirações primordiais eram a Catedral de Chartres [século XII] e a Capela de Ronchamp [Capela de Notre Dame du Haut, 1950] de Le Corbusier. E acrescentou que nunca teria conseguido obter os espaços complexos e as geometrias curvas do museu de Bilbau sem o exemplo de Ronchamp.

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Também [o arquitecto japonês] Tadao Ando falou a William J.R. Curtis do «impacto fundamental que sobre ele tiveram dois edifícios: o Panteão de Roma [originalmente do século I a.C.] e a Capela de Ronchamp, ambos descritos como ‘vazios de luz’. Que arquitectos mais opostos [poderíamos pressupor] atraídos pelo mesmo? Cada um foi capaz de encontrar algo distinto no mesmo exemplo histórico. Ronchamp tem mais de 50 anos mas isso não é nada no desenvolvimento da história das formas». Foi por Ronchamp que William J.R. Curtis guiou por momentos a assistência – um momento de grande significado da história da arquitectura que consegue fazer com que «as pessoas encontrem coisas diferentes para (re)pensar a arquitectura a partir do mesmo objecto». No referido texto de 2007, William J.R. Curtis afirma que «os ‘maestros modernos’ tinham uma extraordinária capacidade para transformar e metamorfosear o passado», como é o caso de Corbusier, «profundamente em dívida com a história» – tal como Frank Gehry e Tadao Ando se sentem inspirados quando examinam Ronchamp. Esses maestros modernos [Corbusier, Wright, Mies, Aalto, Kahn] transformaram «as ideias básicas num novo sistema simbólico e formal, uma nova linguagem e uma expressão moderna». «Eu diria que as melhores obras de arquitectura de qualquer tempo conseguem ‘viver’ em diferentes níveis; cristalizam uma realidade com todas as suas contradições culturais; adoptam uma posição em relação às obsessões do momento e apresentam-nos visões inovadoras de futuros possíveis. Mas também transformam os ensinamentos da arquitectura moderna anterior: ideias espaciais, conceitos estruturais e imagens (…) e talvez questionem a própria natureza da arquitectura se tiverem qualidades que transcendem o espaço e o tempo», diz o historiador. Respigar o passado para ser moderno «Ao longo da história da arquitectura moderna, os arquitectos convocaram com frequência ideias vanguardistas para criar o mundo de novo mas quando se tratou de dar forma real às ideias inevitavelmente remeteram-se às obras dos seus antecessores». Para William J.R. Curtis, a «transformação inventiva de Le Corbusier» é «uma vasta obra de observações e imaginação, que resulta num encantamento mágico. Ele é obcecado por história, por toda a cultura antiga. Ele dizia: só tenho um mestre, o passado».

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Pavilhão Philips na Exposição Mundial de Bruxelas em 1958, já destruído. No seu trabalho, Corbusier não fez uma ruptura com a história como aparentam as suas maravilhosas propostas arquitectónicas. Recriou antes «os lugares de representação e glorificação do colectivo que estiveram na origem da nossa cultura» Imagem: FLC/VG Bild-Kunst, Bonn, 2007

A arquitecta Marta Sequeira, que se prepara para defender, na Universidade da Catalunha, uma tese de doutoramento sobre a cobertura da Unidade de Habitação de Marselha (1945), afirma «que é comum a ideia de que existe uma ‘ruptura em relação à história’ na génese dos lugares públicos das cidade de Le Corbusier e de que os seus espaços preconizam uma separação entre o seu tempo e a experiência precedente». Mas, na verdade, o arquitecto franco-suíço «não faz mais que recriar a espacialidade grandiosa e pitoresca dos lugares públicos da Antiguidade, os lugares de representação e glorificação do colectivo que estiveram na origem da nossa cultura e que constituem o âmago da nossa tradição: a praça pública grega e o fórum romano». Marta Sequeira escreve que, «através de um apurado sentido histórico mas também de abstracção (…)», e contrariando «um enredado de ideias preconcebidas, demonstra-se que o lugar público de congregação de Le Corbusier do período imediatamente a seguir à Segunda Guerra não só não estabelece uma cisão com o passado histórico como constitui o testemunho da inabalável continuidade da criação humana ao longo de todos os tempos». Le Corbusier passava longo tempo coleccionando fragmentos do passado, respigando imagens aqui e objectos ali, procurando o que o rodeava. «Na verdade», diz William J.R. Curtis, descubro nos seus desenhos esquemáticos as ideias que irá desenvolver mais tarde. É claro que para descodificar esses esquissos preciso saber o que significam as linhas que ele desenhou». Outro respigador, Curtis vai buscar desenhos e apontamentos e tentar saber em que circunstância os fez Le Corbusier, podendo demonstrar que um desenho veio a tornar-se numa ideia para um projecto mais tarde. Um dos legados de Le Corbusier fala-nos de como as nossas influências podem tornar-se vivas e actuantes a qualquer momento mesmo depois de terem sido soterradas com camadas de tempo, história e ilusão.

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William J.R. Curtis: «O que conta são os edifícios e não as declarações teóricas, confusas e frequentemente pretensiosas de arquitectos e dos respectivos aduladores e críticos» Imagem:http://blogdoalencastro.blogspot.com/ 2008/04/hiperinflao.html

O que interessa são os edifícios ’Arquitectura moderna desde 1900’ «examina uma transição e um ponto de inflexão importantes na história da arquitectura: o aparecimento da chamada ‘arquitectura moderna’. Este fenómeno é inseparável da modernização tecnológica e do processo de urbanização. Mas a arquitectura moderna nunca foi monolítica e não pode ficar enredada em termos simplistas como o ‘funcionalismo’ e o chamado ‘estilo internacional’». Uma parte do livro contém capítulos sobre o passado mais recente (1980-1995). «Poderia dizer que atribuo muito mais importância ao que os arquitectos constroem do que ao que dizem. A arquitectura comunica em silêncio mas muitos arquitectos contemporâneos adoram fazer ruído». «O que conta são os edifícios e não as declarações teóricas, confusas e frequentemente pretensiosas de arquitectos e dos respectivos aduladores e críticos», diz William J.R. Curtis. A obra [«Arquitectura moderna desde 1900»] ocupa-se da «reconstrução do passado mas também insiste na presença dos edifícios (…) o que sugere que são os próprios edifícios que constituem a matéria primordial para o historiador de arquitectura». «Os edifícios conferem materialidade aos mitos em formas e em espaços expressivos». «Pensar e escrever a história implica uma oscilação constante entre os dados e a opinião, entre análises detalhadas e interpretações amplas, entre indução [raciocínio de que se retira uma conclusão genérica] e dedução», diz William J.R. Curtis.

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«Vivemos em tensão crítica com o que foi o passado e tentamos manter à distância as ilusões e as decepções do nosso tempo. Não há nada mais restritivo e provinciano do que o presente». Textos consultados: - Carneiro, Marta Sequeira, «A cobertura da Unité d’ Habitation de Marselha e a pergunta de Le Corbusier pelo lugar público. Resumo da Tese de Doutoramento», 4 Abril 2008 - Curtis, William J.R., «La perspectiva de um historiador sobre la arquitectura moderna», tradução de Jorge Sainz, Janeiro de 2007

‘Le Corbusier, Arte da Arquitectura’ até 17 Agosto A exposição do Museu Colecção Berardo para descobrir e duas visitas guiadas a 12 e 26 de Julho A exposição no Museu Colecção Berardo, «Le Corbusier – Arte da Arquitectura», no CCB em Lisboa, é uma grande retrospectiva organizada em três módulos (Contextos; Privacidade e Publicidade; Arte Construída), que pretende oferecer um conhecimento alargado sobre as ligações entre Le Corbusier e arquitectura, urbanismo, pintura, design, cinema e outras disciplinas. É uma exposição do Vitra Design Museum Weil Am Rhein (Alemanha) organizada em colaboração com o RIBA (Royal Institute of British Architects) e o NAI Rotterdam (Netherlands Architecture Institute) que vai estar no Museu Colecção Berardo até 17 de Agosto (abriu a 19 de Maio). Começou por ser apresentada na cidade holandesa de Roterdão em Maio de 2007 transitando para o Vitra Museum de Setembro de 2007 até Fevereiro deste ano. Depois da presença em Lisboa, ruma a Liverpool e encerra em Londres. O núcleo mais expressivo da exposição inclui 20 pinturas originais, oito esculturas, peças de mobiliário, cerca de 80 desenhos originais e 70 objectos da colecção particular do arquitecto. As obras arquitectónicas mais relevantes estão representadas com maquetas originais. Algumas são propositadamente feitas para esta exposição. O programa do serviço educativo do Museu Colecção Berardo organiza visitas à exposição para o público escolar. O Museu Colecção Berardo tem em curso um ciclo de visitas guiadas à exposição, iniciado a 31 de Maio. Sempre às 16h, as últimas visitas são guiadas Michel Toussaint (12 Julho) e Fernando Sanchez Salvador (26 Julho).