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2 Legado dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos Rio-2016: sustentabilidade, cobertura midiática e aspectos negligenciados Legacy of the Olympic and Paralympic Games Rio 2016: sustainability, media coverage and neglected aspects Valdir Lamim-Guedes & Renato A. Tagnin Centro Universitário Senac – Campus Santo Amaro {[email protected], [email protected]} Resumo. A organização e realização dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos Rio-2016 envolve um grande esforço dos entes públicos, com a execução de obras, da sociedade civil e da iniciativa privada, o que depois se tornará no chamado legado olímpico. Neste texto analisaremos a questão da sustentabilidade nos Jogos e o legado ambiental, consideraremos que esta análise engloba diversas dimensões, não sendo “apenas” ambiental, mas socioambiental. Desta forma, apresentaremos de forma geral a proposta de legado ambiental dos Jogos Rio-2016, o Plano de Sustentabilidade para a organização e contrapor com a efetivação destes e aspectos negligenciados. Discutiremos também a questão midiática envolvendo os Jogos, sobretudo as cerimônias de abertura e encerramento. Palavras-chave: sustentabilidade; mídia; conflitos ambientais; socioambiental. Absctract. The organization and conducting of the Olympic and Paralympic Games Rio-2016 involves a great deal of public entities, with the execution of works, civil society and the private sector, which then becomes the so-called Olympic legacy. In this paper, we analyze the issue of sustainability in the Games and the environmental legacy of this, consider that this analysis encompasses several dimensions, not being "only" environment, but socio-environmental. Thus, present in general the proposal of environmental legacy of the Rio 2016 Games, the Sustainability Plan for the organization and counter to the effectiveness of these and overlooked aspects. We will also discuss the media issue involving the Games, especially the opening and closing ceremonies. Key words: sustainability; media; environmental conflicts; environmental.

Legado dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos Rio-2016 ... · 1 Estas três dimensões são: econômico, ambiental e social, sendo o modelo mais divulgado o Triple bottom line ou tripé

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Legado dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos Rio-2016: sustentabilidade, cobertura midiática e aspectos negligenciados

Legacy of the Olympic and Paralympic Games Rio 2016: sustainability, media coverage and neglected aspects

Valdir Lamim-Guedes & Renato A. Tagnin

Centro Universitário Senac – Campus Santo Amaro

{[email protected], [email protected]}

Resumo. A organização e realização dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos Rio-2016 envolve um grande esforço dos entes públicos, com a execução de obras, da sociedade civil e da iniciativa privada, o que depois se tornará no chamado legado olímpico. Neste texto analisaremos a questão da sustentabilidade nos Jogos e o legado ambiental, consideraremos que esta análise engloba diversas dimensões, não sendo “apenas” ambiental, mas socioambiental. Desta forma, apresentaremos de forma geral a proposta de legado ambiental dos Jogos Rio-2016, o Plano de Sustentabilidade para a organização e contrapor com a efetivação destes e aspectos negligenciados. Discutiremos também a questão midiática envolvendo os Jogos, sobretudo as cerimônias de abertura e encerramento.

Palavras-chave: sustentabilidade; mídia; conflitos ambientais; socioambiental.

Absctract. The organization and conducting of the Olympic and Paralympic Games Rio-2016 involves a great deal of public entities, with the execution of works, civil society and the private sector, which then becomes the so-called Olympic legacy. In this paper, we analyze the issue of sustainability in the Games and the environmental legacy of this, consider that this analysis encompasses several dimensions, not being "only" environment, but socio-environmental. Thus, present in general the proposal of environmental legacy of the Rio 2016 Games, the Sustainability Plan for the organization and counter to the effectiveness of these and overlooked aspects. We will also discuss the media issue involving the Games, especially the opening and closing ceremonies.

Key words: sustainability; media; environmental conflicts; environmental.

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Introdução

Antes e durante todo o período dos jogos olímpicos, foi ressaltado pela organização do evento e boa parte da mídia o valor da integração entre os povos, promovida nessa maciça concentração de público local, turistas e de espectadores em todo o mundo.

Na abertura e no encerramento, a apresentação de vídeos, danças, coreografias e música trouxeram a manifestação das culturas e das etnias que integram o povo brasileiro, exibindo criatividade, o colorido das roupas e dos cenários e a tropicalidade nas diferentes paisagens do país. Os recursos visuais e sonoros ajudaram a criar um clima envolvente, que entusiasmou o público nativo e estrangeiro, e estimulou alguns dos atletas a cantar e dançar da forma que podiam.

Especial destaque tiveram a biodiversidade brasileira e as culturas coexistindo em paz e harmonia, desde a chegada dos portugueses e sua surpreendente acolhida pelos índios, integrando esses dois mundos. Montou-se uma grande festa, em que os valores da solidariedade e sustentabilidade, explicitados nas diferentes manifestações, sensibilizaram os comentaristas da mídia nacional e internacional.

Será que é tudo isso?

Essa dúvida tem cabimento, e nem é preciso ser desconfiado para se sentir apertado e desconfortável entre esse ‘mundo olímpico’ e o cotidiano, povoado por desigualdades, que motivam parte das manifestações de rua, e as reações da população nas pesquisas de opinião. Esses pontos ressaltados em torno do evento têm grande valor simbólico, e por isso merecem um olhar mais aprofundado, que vá além do tom emocional, alegórico (ou marqueteiro?) com que foi representado.

No entanto, outra face foi mostrada, a das mudanças climáticas ameaçando populações nas cidades e no campo, com manifestações de extrema intensidade, em que a água aparece com violência em ressacas e inundações, ou desaparece, mudando a face da terra e das pessoas.

O nosso objetivo neste texto é o de analisar a questão da sustentabilidade, incluindo mensagens, símbolos e o legado na realização dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos Rio-2016, considerando que ela não é “apenas” ambiental, mas engloba diversas dimensões. Desta forma, apresentaremos de forma geral a proposta de legado ambiental dos Jogos Rio-2016, o Plano de Sustentabilidade para a organização e contrapor com a efetivação destes e aspectos negligenciados.

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1. Desenvolvimento sustentável e sustentabilidade

O debate sobre a sustentabilidade tem ganhando cada vez mais destaque. Desde 1962, quando Rachel Carson publicou o livro Primavera Silenciosa (título original em inglês: Silent Spring), no qual ela denunciava os problemas decorrentes do uso indiscriminado do agrotóxico DDT nos Estados Unidos. Dez anos após, a Organização das Nações Unidas (ONU) promoveu a Conferência Mundial sobre o Homem e o Meio Ambiente em Estocolmo, que se tornou um marco para a mobilização em relação às questões socioambientais. Outras conferências de grande destaque foram realizadas 20 anos após Estocolmo (Rio92), 30 anos depois (Rio+10, Johanesburgo), e 40 depois (Rio+20), entre outras, demonstram a atualidade do debate sobre a crise ambiental, tanto no âmbito internacional, quando no nacional.

A crise ambiental tem como consequências diversos problemas socioambientais, como: poluição, esgotamento de recursos naturais, perda de biodiversidade, mudanças climáticas, entre outros. Esta requer um conjunto de ações para minimizar o impacto do homem no planeta, evitando ações que impactam a própria humanidade. Contudo, autores como Porto-Gonçalves (2013), entendem que a superação dos problemas socioambientais acarretados pela crise ambiental exigirá mudanças profundas na atual concepção de mundo, de natureza, de poder e de bem-estar, tendo por base novos valores individuais e sociais. Portanto, afirma-se que o momento atual é caracterizado por uma crise civilizatória.

Neste sentido, diversas propostas têm sido discutidas desde os anos 1960 e, mais recentemente, nos anos 1980, foi proposto o conceito de Desenvolvimento Sustentável, que envolve ideias de pacto intra e intergeracional e perspectiva de longo prazo (BARBIERI; CAJAZEIRA, 2012). A definição amplamente usada é a dada pelo Relatório Nosso Futuro Comum, de 1987, segundo o qual “por desenvolvimento sustentável entende-se o desenvolvimento que satisfaz as necessidades atuais sem comprometer a capacidade das gerações futuras para satisfazerem as suas próprias necessidades” (CMMD, 1991, p. 9).

Conceitos como o de sustentabilidade e desenvolvimento sustentável, apesar de integrarem fortemente o nosso cotidiano, não há um consenso sobre eles. Segundo Scotto, Carvalho e Guimarães (2009, p. 8), estes conceitos "são, mais do que conceitos homogêneos e bem delimitados, campos de disputa sobre diferentes concepções de sociedade”. A percepção de que não há uma homogeneidade nos dois conceitos reforça a necessidade de uma percepção mais crítica da realidade (LAMIM-GUEDES, 2015).

Desta forma, estes conceitos não são homogêneos, variando da relação com três dimensões ou pilares1, adotada em contextos empresariais, para visões mais complexas, com diversas dimensões, como a inserção do aspecto cultural como variável a considerar, assim como questões espaciais e de política nacional e internacional (por exemplo, conforme SACHS, 2002).

Neste contexto, na organização dos jogos olímpicos,

a preocupação com a sustentabilidade tem sido uma das exigências do Comitê Olímpico Internacional (COI) quando realiza seus eventos. Desde a Conferência Rio/92, a atenção do COI com as questões ambientais é crescente. Em 1996, uma modificação na Carta Olímpica reconheceu o meio ambiente como terceiro pilar do Olimpismo e, em 1999, o Comitê produziu a Agenda 21 do Movimento Olímpico, que definiu políticas associadas ao esporte. Ainda na edição de Pequim-2008, a poluição da capital chinesa colocou em dúvida a realização da maratona, competição mais tradicional das Olimpíadas, o que despertou ainda mais a atenção do COI (TCU, 2016b, p. 4).

A seguir, apresentaremos, de forma geral, a proposta de legado ambiental dos Jogos Rio-2016, o Plano de Sustentabilidade para a organização e contrapor com a efetivação destes e aspectos negligenciados.

1 Estas três dimensões são: econômico, ambiental e social, sendo o modelo mais divulgado o Triple bottom line

ou tripé da sustentabilidade, voltada para o ambiente empresarial (por exemplo, veja a discussão de BARBIERI; CAJAZEIRA, 2012, capítulo 2). Contudo, esta visão tem sido muito criticada porque diversos autores tentam ampliar esta visão para países ou sociedades. Neste sentido, o professor José Eli da Veiga afirma que “a verdade, contudo, é que em 1992 [se referindo à Rio 92, onde o conceito de Desenvolvimento Sustentável passou a ser amplamente adotado] essa bizarra parábola dos ‘três pilares’ nem sequer havia sido inventada. Ela só começou a ser difundida a partir de 1997, e no contexto das empresas, não das nações” (VEIGA, 2013, p. 108).

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2. Proposta do legado ambiental dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos Rio-2016

Os principais documentos que tratam de sustentabilidade nos jogos Olímpicos e Paraolímpicos Rio-2016 são: Dossiê de Candidatura (2009), Plano de Gestão da Sustentabilidade (Sigla PGS, 2013), Relatórios de Sustentabilidade (2013, 2014), produzidos pelo Comitê Organizador.

O Dossiê de Candidatura traz a visão geral de como seria o processo de organização e os Jogos em si, caso a cidade do Rio de Janeiro fosse escolhida como sede. Neste sentido, até mesmo buscando um alinhamento com documentos e eventos oficiais da ONU, a sustentabilidade nos jogos é apresentada da seguinte forma:

Alinhado com os princípios de desenvolvimento sustentável propostos pela Organização das Nações Unidas no relatório “Nosso Futuro Comum”, e ratificados na Cúpula Mundial do Meio Ambiente Rio 92, os Jogos Rio 2016 funcionarão como catalisador da legislação e dos programas de meio ambiente dos três níveis de Governo, através do Plano de Gestão de Sustentabilidade Rio 2016 (PGS). Os três pilares do PGS – planeta, pessoas e prosperidade – vão integrar os elementos econômicos, ambientais e sociais para que se concretize a visão Rio 2016 de “Jogos Verdes para um Planeta Azul”:

• Planeta significa o compromisso ambiental geral dos Jogos através da promoção de ações locais, mas com uma visão global para a sustentabilidade

• Pessoas se refere à necessidade de importantes ganhos sociais para toda a população do Rio

• Prosperidade é o símbolo de Jogos bem administrados e geridos de maneira transparente,

contribuindo para o crescimento econômico da cidade (COMITÊ ORGANIZADOR, 2009, p. 94).

A título de esclarecimento, não há relação direta entre o relatório Nosso Futuro Comum (1987) com a proposição do modelo triple bottom line (de 1997), como comentado na seção anterior e por Veiga (2013). Ciente disto, a similaridade entre os três pilares do PGS (Planeta, Pessoas e Prosperidade) com o modelo triple bottom line não é mera casualidade, trata-se da adoção deste último como base para o planejamento das ações referentes à organização dos Jogos Olímpicos de forma semelhante a uma empresa. Esta ligação fica clara, por exemplo, no comentário realizado por Giacomo (2016, sem página), no site do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS), instituição que colaborou com questões relacionadas às compras sustentáveis realizadas pelo Comitê Organizador:

O conceito das Olimpíadas está mais ligado às práticas sustentáveis do que pensamos. Além das competições em si, o Movimento Olímpico está permanentemente trabalhando com diversos países, pregando valores como a busca da prosperidade para todos, a importância do investimento em práticas sociais e em inovação, o trabalho em equipe e a harmonia entre as nações.

São conceitos cruciais para que seja possível desenvolver um modelo global e viável de crescimento econômico aliado ao ambiental e social, ao qual chamamos de Sustentabilidade.

A estreita relação entre crescimento econômico com a sustentabilidade, citada por Giacomo acima, apesar de ter se tornado o discurso oficial da ONU2 nos últimos anos, não pode ser colocado como um consenso, muito menos como a única forma possível de termos um futuro diferente. Por questão de espaço e foco, não nos estenderemos nesta discussão neste texto.

Estes três pilares são explicados pelo Comitê Organizador no PGS e no site rio2016, sendo que neste último, já são apresentados diversos resultados implementados e a visão de legado (COMITÊ ORGANIZADOR, 2016). A definição e as áreas de concentração das ações distribuídos entre os três pilares são citados a seguir.

2 No site oficial da Rio+20, o desenvolvimento sustentável foi definido como “modelo que prevê a integração entre economia,

sociedade e meio ambiente. Em outras palavras, é a noção de que o crescimento econômico deve levar em consideração a

inclusão social e a proteção ambiental” (COMITÊ NACIONAL DE ORGANIZAÇÃO RIO+20, 2011).

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Planeta, resumido como Pegada ambiental reduzida. É descrito no site rio2016 sustentabilidade como “entregar Jogos de baixo impacto, reduzindo, ao máximo, a pressão sobre recursos materiais e energéticos, sem comprometer a qualidade do evento” (COMITÊ ORGANIZADOR, 2016). Sendo as ações centrais: Transporte e Logística; Desenho e Construção Sustentável; Conservação e Recuperação Ambiental; Gestão de Resíduos;

Pessoas: “Promover Jogos para todos, oferecendo a melhor experiência olímpica e paralímpica em todos os momentos” (COMITÊ ORGANIZADOR, 2016). Sendo as ações centrais: Engajamento e Conscientização; Acessibilidade Universal; Diversidade e Inclusão;

Prosperidade: “Promover Jogos prósperos, impulsionando a formação de uma cadeia de fornecedores qualificada e um modelo de gestão que privilegia a transparência” (COMITÊ ORGANIZADOR, 2016). Cadeia de Suprimentos Sustentável; Gestão e Reporte.

Nas duas seções a seguir, tratamos da cobertura da mídia e do legado ambiental referentes aos Jogos Rio 2016.

3. Mídia e os Jogos

A realização dos Jogos Olímpicos envolve interesses de várias ordens, sendo a propaganda do país no exterior uma das razões mais fortes. Neste sentido, as cerimônias de Abertura e Encerramento, sobretudo a primeira, são momentos de grande relevância e grande audiência. No dia 5 de agosto, a audiência estimada foi de 3 bilhões de pessoas (TOLEDO, 2016).

A abertura dos Jogos Rio2016 foi considerada por alguns canais de comunicação como o maior evento de divulgação científico já realizado, devido à audiência e à abordagem sobre as mudanças climáticas e possíveis soluções para este problema socioambiental. Foi projetado um vídeo com cerca de 2 minutos com informações sobre o aumento da concentração de Gases Causadores de Efeito Estufa (GEEs), suas causas e uma possível solução: o plantio de árvores. A sequência de imagens começa com o aumento da temperatura no último século; a redução da calota polar, o aumento do nível do mar em Amsterdam, Dubai, Flórida, Shangai, Lagos e Rio de Janeiro caso a temperatura média suba 4 graus; a seguir, houve uma intervenção realizada no estádio por um jovem negro que apresentava ao público uma muda de árvore; logo depois, foi realizada uma nova projeção com algumas informações sobre o plantio de árvores em diferentes partes do mundo. A parte seguinte, a entrada dos atletas no estádio, foi também muito simbólica, pois cada um plantou uma semente, cujas mudas serão plantadas no parque que será um dos legados ambientais destes Jogos.

Abordar este tema em um evento deste nível é uma ação educativa importante, pelo menos, para estimular que os telespectadores reflitam sobre estas questões e busquem se informar mais. Além disto, este evento tem repercussão na cobertura jornalística e nas mídias sociais, de forma que o número de pessoas alcançadas é ampliado.

Na cerimônia de encerramento, foi dado destaques às pinturas rupestres localizadas no Parque Nacional da Serra da Capivara, localizadas em São Raimundo Nonato, Piauí. Este sítio arqueológico é de extrema relevância turística e para a ciência, já que resquícios localizados nesta região são usados para contestar a teoria de colonização da América através de migrações de povo asiáticos através do Estreito de Bering (veja ESTEVES, 2014, para mais detalhes). Contudo, este foi mais um episódio das contradições entre o discurso e a prática, neste caso, não relacionado à organização do evento. Na semana do encerramento, o Parque Nacional da Serra da Capivara foi fechado ao público devido à falta de recursos para manutenção deste.

O portal Observatório 20163 realizou o acompanhamento dos temas que tiveram maior repercussão a partir de dados de redes sociais antes e durante os Jogos Olímpicos Rio 2016. A parte do monitor de temas é bastante revelador em relação às contradições envolvendo os Jogos. Um dos temas foi a morte da onça Juma, uma onça-pintada mantida em cativeiro pelo exército brasileiro e que foi sacrificada em 20 de junho em Manaus, durante a passagem da Tocha Olímpica. Outros temas, entre os quais destacaremos os socioambientais, foram os problemas de poluição da Baía da Guanabara, mobilidade, legado ambiental e Zika Vírus.

Um assunto que teve grande repercussão foram as violações aos direitos humanos durante a organização e realização dos Jogos. Entre estas violações, denunciadas pela Anistia Internacional (2016), estão as remoções forçadas de comunidades para a construção de novas instalações desportivas e outras infraestruturas; restrições

3 http://oo.impa.br/

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indevidas à liberdade de expressão e manifestação pacífica; e detenções arbitrárias e abusivas contra a população mais carente.

3.1. O que fazemos com o rico folclore se não podemos ser felizes?

Muito além do espetáculo, a integração entre povos, culturas e a valorização de sua sabedoria pode ajudar a entender o que “deu errado”. Isto se realmente houver esse encontro entre nós todos, sem disputas por medalhas ou riquezas. É aí que fica o gosto do ‘quase’; do sonho bom, do qual fomos obrigados a acordar para uma realidade, que tem jeito mas não muda sozinha.

Muito investimento é realizado para vender a embalagem de valores universais, mas a caixa está vazia; o que você comprou foi um símbolo que não tem como usar, pois não foi criado por você, e nem pelos vizinhos do bairro ou do resto da cidade onde mora. É essencial partir de algum lugar e começar a fazer algo para iniciar uma transformação. Sonhar faz bem, mas é preciso saber para onde estamos indo e o que precisa ser mudado. É aí que a ciência ajuda. Ela depende da inquietação, do incômodo e da curiosidade, mas é preciso mais.

Em relação ao Brasil, por exemplo, toda essa integração e acolhimento são verdadeiros? E como estamos no “placar da sustentabilidade”?

Não faltam informações e registros consistentes sobre os conflitos socioambientais brasileiros; o que é um bom ponto de partida para se saber mais da sustentabilidade. Mas o que ela tem a ver com conflitos e culturas, e onde entra a biodiversidade? O clima muda se tudo isso mudar?

Estamos tratando de relações e não de “coisas”, e isso vale para quase tudo, mas nem sempre é compreendido por pesquisadores “ambientais”. Às vezes, parece mais confortável não ter de pensar em tudo e escolher algo menor, menos “complicado”. O ambiente não é algo que se reduza a um punhado de coisas, como hoje é frequente ver: água, esgotos, o verde e, não podemos nos esquecer, da reciclagem.

Os problemas ambientais não acontecem sozinhos, eles dependem das questões sociais para existir, e para se entender como, quanto e para quem o ambiente e seus recursos são explorados, usados e descartados, e no colo de quem isso tudo acaba. Isso inclui as catástrofes “naturais”, que alcançam alguns e não todos.

Tomemos o exemplo dos índios, que nos antecederam em dezenas de milhares de anos nas “nossas terras”. Como puderam se transformar em invasores? E do pior tipo, daquele que o “jeito” encontrado é persegui-los e mata-los, mesmo quando crianças, como vem acontecendo com mais intensidade no Mato Grosso do Sul e no Pará. A preservação de sua cultura em filmes e museus parece ser mais segura, apesar de não permitir que compartilhem o longo aprendizado que tiveram em viver no Brasil, sem acabar com ele. A rapidez com que seus inimigos estão fazendo isso deixa clara a disputa pelo que sobrou.

4. Quando o legado ambiental não é bem como o previsto

O Tribunal de Contas da União (TCU) avaliou as obras do chamado legado ambiental propostas pelo Comitê organizador Jogos Olímpicos e Paraolímpicos Rio-2016. Segundo a nota publicada em junho de 2016 (TCU, 2016a), que resume um acórdão realizado neste mês (TCU, 2016b), o TCU conclui que diversas obras do legado ambiental não estariam concluídas até o término dos Jogos. Apesar dos pontos positivos apresentados, como as compras sustentáveis, o esforço para a ecoeficiência (uso mais eficiente de água e energia elétrica) e a redução e compensação das emissões de GEEs, obras, principalmente de saneamento, não foram concluídas o que foi colocado como um grande risco.

Em um relatório anterior do TCU, de dezembro de 2015, foi relatado que

o TCU constatou que a organização das Olimpíadas do Rio de Janeiro, a cargo do Comitê Rio 2016, está pautada pelas normas e padrões nacionais e internacionais de sustentabilidade (ISSO 20.121); constituindo-se em boa prática verificada. No entanto, com relação ao legado ambiental, grande parte das ações previstas no Plano de Políticas Públicas (PPP) não serão concretizadas até a realização das Olimpíadas, principalmente no que se refere à despoluição das águas da Baía de Guanabara e das lagoas de Jacarepaguá, ficando evidente a ausência de coordenação do Legado Ambiental e a insuficiência da articulação entre os atores

responsáveis pelas obras constantes do Plano (TCU, 2015, sem página).

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Uma destas obras atrasadas era a captação e tratamento de esgoto antes de ser lançado na Baía de Guanabara. Apesar da obra ter previsão para conclusão apenas em dezembro de 2016, técnicos da Secretaria de Estado do Ambiente (SEA/RJ) comentaram que “as raias olímpicas ficam no canal central da baía, onde há maior renovação das águas em função da proximidade com o oceano, o que favorece a condição de balneabilidade dessa área” (TCU, 2016b, p. 11) e que obras emergenciais foram realizadas na Marina da Gloria de forma a aumentar a balneabilidade nas raias mais próximas da costa. Com isto fica evidente que a opção ideal de não lançamento de esgoto na Baía de Guanabara foi substituída pela localização das raias em local de maior balneabilidade. Esta questão teve grande atenção da mídia nacional e internacional, pois demonstrou a incapacidade dos governos estadual e municipal para implementar esta obra que traria resultados positivos para a cidade do Rio de Janeiro. Novamente, temos um caso de dicotomia entre o discurso de sustentabilidade nos Jogos e as ações práticas. Tal situação apenas reforça as disputas próprias da gestão da sustentabilidade em grandes centros urbanos, sobretudo em países em desenvolvimento ou pobres.

5. Considerações finais

A crise climática, assim como a da água (e outras que ainda não foram percebidas), tem fundas raízes no sistema político, econômico e social e os espetáculos poderiam ir além de mostrar manifestações folclóricas (belíssimas), aproveitando a atenção de bilhões de pessoas para virar o jogo.

Trata-se, aqui, de um convite à pesquisa, em se abordar campos onde se manifestam as causas e consequências da insustentabilidade socioambiental, superando a atração quase irresistível de se avançar no saber específico, na aferição da eficácia tecnológica de abordagens “ambientais” inofensivas, que não mudam nada.

Trata-se de descobrir o Brasil real, saber do que ele (nós) precisa(mos) e como é possível concretizar o que aparece no sonho-espetáculo.

Querer saber mais cria incômodo, tira a gente do conforto e pode desagradar quem se acha flagrado pela pesquisa. Fazer o que? Ciência para deixar tudo como está já tem bastante; falta aquela que mude o placar crítico da sustentabilidade local e planetária.

Ajudar nisso é ganhar medalha e a gente espera que no pódio-planeta caiba todo o mundo.

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Referências

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