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LEITURA SOB A PERSPECTIVA DISCURSIVA
Autora: Adriane Scherer1
Orientadora: Célia B. Fernandes2
Resumo
O projeto “Leitura por meio de tiras” foi desenvolvido com o intuito de otimizar a prática de leitura dos alunos, por conta das dificuldades apresentadas por eles, advindas da falta de incentivo da família, bem como da classe social a qual pertencem, que restringe ou não lhes possibilita o contato com livros, revistas, jornais, entre outros. Assim, tivemos por objetivo desenvolver uma proposta de leitura com tiras, sob o viés da Análise do Discurso de tradição francesa. Ao final da aplicação da Unidade Didática, observamos que os alunos demonstraram grande interesse por esse tipo de texto, assim como pelo “Bullying”, tema escolhido para desenvolver o trabalho e bem atual no meio escolar”.
Palavras Chave: Tiras; Discurso; Interpretação
Abstract
The Project “Reading by Strips Cartoons” has been developed with the objective of the practice of students’ reading, thinking about the difficulties shown for them, arising the lack of family’s incentive, as well as of the social class that they belong, what restrict or don’t give the oportunity to them to be in touch with books, magazines, newspapers, and others means of reading comunication. Therefore, had intent to develop a reading propose with strips cartoons, under the gore of the French
1 Pós-Graduada em Didática e Metodologia de Ensino pela Universidade Norte do Paraná, e
professora de Língua Portuguesa no Colégio Estadual John Kennedy. 2 Orientadora, doutorado em Estudos da Linguagem pela Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Professora de Linguística do Departamento de Letras, da Universidade Estadual do Centro-Oeste/UNICENTRO. Membro do Grupo de Pesquisa Interfaces entre Língua e Literatura, filiada à linha de pesquisa Texto, memória, cultura. Membro do Laboratório de Estudos Linguísticos e Literários (LABELL), da UNICENTRO.
tradition’anlysis Speech. At the end of the aplication of a didacticism Unit, could observ that the students demonstrated a increased interest for that kind of text, as well as to “Bullying”, topic choseen to develop the job that is current in the school enviroment.
Keywords: Strips Cartoons. Speach. Interpretation
INTRODUÇÃO
De acordo com o artigo 5º da Constituição Brasileira,
“todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]”.
Porém, sabe-se que há uma diferença muito grande entre o que a lei propõe e
a realidade em que vivem algumas camadas sociais. O papel da escola é, em
especial, nas aulas de Língua Portuguesa, o de aprimorar a capacidade
comunicativa dos alunos de forma que os mesmos sejam inseridos na sociedade,
pois é no cotidiano escolar que o aluno de escola pública, principalmente, encontrará
espaço para as práticas de linguagem que lhe possibilita em interagir no meio social,
nas diferentes circunstâncias de uso da língua, em instâncias públicas e privadas.
Sabe-se também, que essa instituição secular não vem cumprindo seu papel como
deveria. Note-se o caso da leitura, por exemplo, um dos grandes problemas a serem
enfrentados pelos professores, em especial, os de língua materna, pois os alunos
não gostam de ler e, por vezes, não compreendem aquilo que leem.
Do nosso ponto de vista, alguns fatores contribuem para essa situação: a
falta de incentivo da família, já que são raríssimos os pais que consideram a leitura
importante; a condição social, pois na grande maioria, os alunos são provenientes
de classes baixas e não tem condições de comprar livros, jornais, revistas, etc. e, se
as tem, compram computadores ou outros objetos que consideram mais
importantes. Além disso, as crianças acham a leitura chata e desinteressante, pois
consideram o computador mais atrativo.
Outra justificativa para essa falta de interesse é que esse “gesto” não foi
bem desenvolvido na escola, nas séries iniciais do Ensino Fundamental, uma vez
que, não raro, a prática de leitura é convertida numa mera lista de exercícios que
visam somente a responder à questão: “O que este texto quer dizer?”. De acordo
com a Revista Na Ponta do Lápis (2010, p. 24), “[...] a leitura se tornou um fazer
dirigido. Ela se define pelo estabelecimento de metas: lê-se para responder a
perguntas; lê-se para fazer exercícios das diversas disciplinas; lê-se para completar
a tarefa de ler”.
A partir dessa constatação, e tendo em vista as dificuldades apresentadas
pelos alunos durante a prática da leitura e dos “gestos de interpretação” (Orlandi,
2007, p.18), não só nas aulas de Língua Portuguesa, mas também nas demais
disciplinas, propôs-se desenvolver uma proposta de leitura de tiras sobre bullying,
tema atual no cotidiano do Colégio Estadual da Vila John Kennedy – Ensino
Fundamental e Médio, com os alunos da quinta série, que em conversa informal, e
quando questionados se gostavam de ler ou se os seus pais o faziam com
frequência, pouquíssimos responderam afirmativamente.
Em sentido mais restrito, almejou-se ainda: a- compreender os efeitos de
sentido decorrentes das tiras, pela observação das condições nas quais foram
produzidas; b- oportunizar momentos para que o aluno perceba que ler é um “gesto
de interpretação” e não apenas um mero processo de decodificação, e que um texto
pode ter várias leituras, as quais devem ser socializadas com os colegas da turma;
c- levar o aluno a compreender como esse tipo de texto funciona, ou seja, quais são
os mecanismos linguísticos e extralinguísticos que colaboram para a produção dos
sentidos das tiras.
Para atingir esses objetivos, optou-se pela Análise de Discurso de vertente
francesa – teoria da leitura que fornece o respaldo teórico necessário para ler e
interpretar textos – tal como proposta por Michel Pêcheux, nos anos 60, do século
XX, na França, e que como o próprio nome indica, tem como objeto de estudo o
discurso, entendido como a prática linguageira dos sujeitos.
A escolha das tiras justifica-se porque elas constituem um tipo de texto cuja
característica principal é retratar, por meio do humor, um assunto atual, quase
sempre aliando a linguagem verbal e não-verbal. Contudo, não necessariamente as
tiras causam o riso. Nesse sentido, há ainda, tiras de ação, aventura, mistério,
espionagem, policiais, drama, de heróis e de super-heróis. Essa tipologia textual
caracteriza-se, geralmente, pela sua comicidade, tendendo para um discurso lúdico
e polêmico, apresentando-se como texto resumido e crítico que quanto aos aspectos
formais, na sua maioria, elas são dispostas horizontalmente, e apresentam não mais
que quatro quadros. São publicadas com qualquer periodicidade, dependendo do
suporte em que circulam, como por exemplo, em revistas, jornais ou internet.
Quando publicadas nesta última, são normalmente denominadas webcomic, e
surgiram devido ao pouco espaço nos jornais. A primeira tira brasileira foi a do
cãozinho “Bidu”, publicada em 1959, de autoria do escritor e cartunista Maurício de
Souza. Por volta de 1960, surgiu uma revista em quadrinhos com personagens
brasileiros, intitulada “A Turma do Pererê”, que trazia textos e ilustrações do
cartunista Ziraldo, criador do “Menino Maluquinho”.
Na atualidade, as tiras vêm ganhando um espaço expressivo nos meios de
comunicação, como em jornais impressos e revistas, e é também comum encontrá-
las em provas de concursos de vestibulares ou para cargos públicos, nas avaliações
realizadas pelo Ministério de Educação e Cultura (MEC), tais como a Provinha Brasil
e Enem, em livros didáticos, e em outros materiais que exercem importante papel na
formação do sujeito-leitor, pois de uma forma lúdica e divertida, levam o sujeito-leitor
a refletir sobre os variados problemas sociais existentes no cotidiano.
Desse modo, esse tipo de texto tem um papel muito importante na escola,
pois não se trata apenas de apreender um sentido que já está posto nelas, mas de
atribui-los, levando em conta as condições em que elas foram produzidas, e que
compreendem não só os sujeitos (autor/leitor), mas também a ideologia, que
segundo Orlandi (2009, p.48)
[...] não é vista como conjunto de representações, como visão de mundo ou como ocultação da realidade. Não há aliás realidade sem ideologia. Enquanto prática significante, a ideologia aparece como efeito da relação necessária do sujeito com a língua e com a história para que haja sentido (Orlandi, 2009, p. 48).
Portanto, em conformidade com o que se sabe, na escola, esse tipo de
texto, muitas vezes é trabalhado voltado para a análise de conteúdo, cujo objetivo é
responder à questão “o que este texto quer dizer”? No entanto, pela perspectiva
discursiva, essa questão se desloca para “como esse texto significa?”, e se leva em
conta os processos de constituição e de formulação de sentidos. Outro fator a ser
considerado no trabalho com esse tipo de texto, é que ele alia a linguagem verbal
com a não-verbal, por muito tempo também excluída do contexto escolar. De acordo
com Orlandi (2008, p. 38):
A relação do aluno com o universo simbólico não se dá apenas por uma via – a verbal -, ele opera com todas as formas de linguagem na sua relação com o mundo. Se considerarmos a linguagem não apenas como transmissão de informação mas como mediadora (transformadora) entre o homem e sua realidade natural e social, a leitura deve ser considerada no seu aspecto mais consequente, que não é o de mera decodificação, mas o de compreensão (Orlandi, 2008a, p. 38).
Conforme a autora citada, a escola deve considerar o trabalho com as
várias formas de linguagem às quais o aluno tem acesso, evitando assim, privilegiar
apenas textos escritos, já que esse sujeito-leitor “[...] traz para a leitura a sua
experiência discursiva, que inclui sua relação com todas as formas de linguagem”
(ORLANDI, 2008, p. 38).
DESENVOLVIMENTO:
1 Dimensão Histórica do Ensino de Língua Portuguesa
Na época do Brasil colônia, a língua mais falada por aqueles que aqui
viviam, era o tupi. O português “era a língua da burocracia” (Ilari, 2007, s/d), ou seja,
era a língua usada nos documentos oficiais e também para comprar e vender.
Contudo, o convívio entre colonizados e colonizadores deu origem a uma Língua
Geral (tupi-guarani), usada pelos portugueses para conhecer a terra conquistada, e
utilizada, por muito tempo, pelos não escolarizados. Nessa época, a educação ficava
a cargo dos jesuítas que, pautados na doutrina católica, se dispunham, de um lado,
a catequizar e a alfabetizar os indígenas, e de outro, à formação de uma elite
colonial, o que favoreceu o surgimento de um modelo de sociedade que obedecia às
regras do país colonizador. As práticas pedagógicas eram pautadas no Latim, e o
ensino de Língua Portuguesa se restringia à leitura e escrita. Aqueles que chegavam
às escolas secundárias aprendiam Gramática Latina e Retórica.
Em 1758, um decreto do Marquês de Pombal expulsou os jesuítas do país,
e tornou a Língua Portuguesa o idioma oficial do Brasil. A partir disso, a educação
jesuítica foi substituída pelas “aulas régias”, ministradas por professores nomeados
pelo Rei, que tratavam das humanidades em geral, e eram destinadas a uma
pequena parcela da elite colonial, que futuramente estudaria na Europa.
Em 1808, com a vinda da família real ao Brasil, particularmente, ao Rio de
Janeiro, instalaram-se as primeiras faculdades no país, que privilegiavam apenas a
Corte. As classes baixas continuaram sendo deixadas à margem, até o final do
século XIX, quando teve início um amplo processo de industrialização, e a escola foi
aberta para as camadas menos favorecidas.
A disciplina de Língua Portuguesa passou a integrar os currículos escolares
brasileiros, nas últimas décadas do século XIX, pois até 1869, privilegiavam-se as
disciplinas clássicas. Em 1871, passou a ser denominada “Português”, e nesse
mesmo ano, foi criado o cargo de professor de Português. Contudo, os
frequentadores da escola eram ainda, os mais favorecidos socialmente.
Logo após a Independência do país, que coincidiu com o advento do
movimento romântico, houve uma maior luta pela valorização da língua nacional,
que foi retomada na Semana da Arte Moderna, realizada em 1922, e que contribuiu
para a valorização do falar brasileiro, uma vez que os escritores e demais artistas
eram a favor do rompimento com os modelos burgueses.
A partir de 1960, ampliaram-se as vagas do ensino primário e, em 1971
foram extintos os conhecidos exames de admissão, o que permitiu que os falantes
de outras variedades do português passassem a também frequentar a escola. Tem
início então, nesse momento, o confronto entre a variedade culta da língua e
aquelas trazidas pelos filhos das classes trabalhadoras.
A fim de suprir as necessidades linguísticas desses novos alunos, a escola
passou a utilizar a Pedagogia Tecnicista, baseada em exercícios de memorização e
de reforço, nos moldes do behaviorismo, que resultou no cerceamento da reflexão e
da crítica, no ambiente escolar, já que coincidiu também, com a censura imposta
pelo regime militar.
Ainda nessa época, a Lei 5692/71 dispôs que o ensino deveria estar voltado
para a qualificação profissional, e o ensino de língua materna passa a ancorar-se no
estruturalismo saussureano, que elege a língua como objeto de estudo e a concebe
como um sistema fechado de signos. Mas ainda assim, o aluno pertencente às
classes baixas da sociedade, afastava-se cada vez mais da norma culta da língua
portuguesa. Ainda de acordo com essa lei, a disciplina de português passou a ser
denominada Comunicação e Expressão, por influência da Teoria da Comunicação
proposta por Jakobson, e segundo a qual, a linguagem era concebida como
instrumento de comunicação.
Nessa mesma década de 70, surgem teorias como a “Sociolinguística”, “a
Análise de Discurso”, “a Semântica” e a “Linguística Textual”, que questionavam o
ensino de Língua Portuguesa pautado na gramática tradicional. No entanto, não
houve muitas mudanças, e apesar de ter sido dado mais importância para a
produção textual, ainda assim, o texto era entendido como meio para transmitir uma
mensagem. Os exercícios utilizados ainda apresentavam cunho estrutural e
priorizavam-se as técnicas de redação e o desenvolvimento das habilidades de
leitura, uma vez que ela era entendida como um ato mecânico.
Na década de 80, o livro “O texto em sala de aula”, organizado por João
Wanderley Geraldi, apresenta artigos de linguistas de renome, como Carlos Alberto
Faraco, Sírio Possenti, Percival Leme Brito e do próprio Geraldi, e têm início as
discussões acerca do ensino da Língua Portuguesa, no Paraná. Nos artigos, os
autores convidam os professores a repensar o ensino da língua materna e o seu
trabalho em sala de aula. Geraldi propõe centrar o ensino de Língua Portuguesa em
três eixos: leitura, produção textual e análise linguística, tendo como ponto de
partida o texto.
Os estudos desses teóricos suscitaram acaloradas discussões, no Paraná,
que resultaram na reestruturação do Ensino de 2° grau, em 1988, e no Currículo
Básico, em 1990, que direcionavam os professores de Língua Portuguesa para um
trabalho amparado na leitura e na produção de textos, condenando o ensino
tradicional, embasado na gramática normativa. Além disso, esses artigos também
serviram de base para os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), documento
elaborado no final da década de 1990, que normatiza o ensino de língua materna em
todo o território nacional, mas que foi criticado por afastar-se do dialogismo
bakhtiniano, impedindo, de acordo com Brait (2000, p. 24) “[...] um trabalho mais
aberto e histórico com os textos e seus leitores”.
Em meio a todos esses acontecimentos que nortearam a história da
disciplina de Língua Portuguesa, e confrontando-os com a situação em que se
encontrava o ensino de Língua Portuguesa nas escolas, após estudos e discussões,
foram elaboradas as Diretrizes Curriculares Estaduais (DCEs), para o estado do
Paraná. Segundo esse documento, fica a cargo da escola estabelecer condições
para que o aluno aprenda a utilizar a leitura, a escrita e a oralidade com
desenvoltura, em diferentes circunstâncias.
1.1 Leitura e Análise do Discurso
Fundada por Michel Pêcheux, na França, no final dos anos 60, do século
XX, e cuja principal referência no Brasil, é Eni Orlandi, a Análise de Discurso de
tradição francesa (daqui em diante AD), não se volta, como a maioria das
abordagens que tratam do texto, para a análise do conteúdo, já que não procura
extrair o(s) seu (s) significado(os). Ao contrário, essa teoria da interpretação procura
explicar como ele significa, por meio da análise das condições de sua produção, e
que compreendem os sujeitos envolvidos no processo discursivo, a situação em que
se produz o dizer, e também a memória discursiva.
Dito de outra maneira, a AD não busca realizar leituras que reduzem o texto
aos aspectos meramente linguísticos, à simples decodificação, mas objetiva
compreender como esses objetos simbólicos produzem sentido. Desse modo, não
compreende a língua só como estrutura, mas como acontecimento. Conforme
Orlandi (2009, p.19):
Nos estudos discursivos, não se separam forma e conteúdo e procura-se compreender a língua não só como estrutura mas sobretudo como acontecimento. Reunindo estrutura e acontecimento a forma material é vista como o acontecimento do significante (língua) em um sujeito afetado pela história (Orlandi, 2009, p. 19).
Visando a criar um dispositivo teórico da interpretação, o arcabouço teórico
da AD foi formado por conceitos advindos de diferentes domínios do saber. Da
Linguística vem a ideia de que a linguagem não é transparente. Ela tem seu objeto
próprio que é a língua, mas ela só interessa na sua relação com a exterioridade,
com o mundo; do Materialismo Histórico herda o conceito de sujeito afetado pela
história, e da Psicanálise vem o deslocamento da noção de homem para a de
sujeito. Sendo assim, essa perspectiva se constitui pela relação de três domínios
disciplinares, e produz, de acordo com Orlandi (2009, p.20) “ [...] um novo recorte de
disciplinas, constituindo um novo objeto que vai afetar essa forma de conhecimento
em seu conjunto: este novo objeto é o discurso”.
Por esse viés, o discurso é entendido como a palavra em movimento, como
“efeito de sentidos” entre interlocutores (PÊCHEUX, 1997, p. 82). Assim, essa teoria
da interpretação se distancia da forma como o esquema elementar da comunicação
– proposto por Jakobson, na década de 69 – dispõe seus elementos, a fim de definir
o que é mensagem, pois a língua não serve apenas para transmitir informações,
porque ela não é apenas um código. Também não há separação entre emissor e
receptor, já que eles realizam, ao mesmo tempo, o processo de significação.
Assim sendo, de acordo com Orlandi (2009, p. 21), o discurso também não
corresponde à noção de fala da dicotomia saussureana, pois não é livre de
determinações históricas ou dos condicionamentos linguísticos, e nem a língua é
fechada em si mesma, já que não é livre de falhas ou equívocos. Desse modo “a
língua é assim condição de possibilidade do discurso”, o que implica dizer, que as
fronteiras entre a língua e o discurso não podem ser delimitadas.
Desse modo, a Análise de Discurso vai além da interpretação, pois trabalha
os mecanismos de funcionamento do texto, que não é mais concebido como uma
soma de frases nem como uma unidade fechada em si mesma, mas como um objeto
simbólico que se abre para diferentes leituras. O texto é a unidade de análise e o
lugar onde o discurso se materializa. Orlandi (2008b, p. 73) assim explica como o
texto e o discurso se imbricam, na AD:
[...] tomo o texto, em sua representação linear e bidimensional, como contrapartida do discurso: considero o discurso no domínio teórico (efeito de sentidos entre locutores), enquanto o texto é seu correspondente no domínio da análise (como unidade significativa). Desse modo tenho procurado estabelecer o estatuto analítico do texto no próprio seio das ciências da linguagem (Orlandi, 2008, p. 73).
Assim, pela perspectiva discursiva, o texto – exemplar do discurso – não é
uma superfície plana, ao contrário, ele é, segundo Orlandi (2007, p. 14), “um bólido
de sentidos”, que se abre em várias direções. De fato, por essa perspectiva teórica,
as palavras estão carregadas de significados, mas não é possível pensar num
sentido literal para elas, porque esse sentido muda de acordo com as posições
ocupadas por aqueles que as empregam. Isso significa que elas adquirem seu
sentido em relação às formações ideológicas dentro das quais se acham inscritas, e
que “[...] comportam necessariamente, como um de seus componentes, uma ou
várias formações discursivas interligadas que determinam o que pode e deve ser
dito [...] a partir de uma posição dada numa conjuntura” (PÊCHEUX, 1997b, p. 166,
grifos do autor).
Dizendo de outro modo, segundo Pêcheux (1997a, p.161, grifos do autor):
“[..] Os indivíduos são ‘interpelados’ em sujeitos falantes (em sujeitos do seu
discurso) pelas formações discursivas que representam ‘na linguagem’ as formações
ideológicas que lhe são correspondentes”. Portanto, os sentidos do discurso
decorrem, segundo Orlandi (2009, p. 43), de dois pontos:
a- Tudo o que o sujeito diz se inscreve em uma dada Formação Discursiva, que
no discurso, representa as formações ideológicas. Ou seja, tudo que o sujeito diz
apresenta um traço ideológico em relação a outros traços ideológicos, e é o estudo
do discurso que permite explicitar o modo como a linguagem e a ideologia se
imbricam reciprocamente e como esta se materializa naquela. De fato, para a AD, o
sujeito é ideologicamente marcado, mas a ideologia não é vista como um conjunto
de representações, como visão de mundo ou como ocultação da realidade, mas
como efeito da relação que se estabelece entre o Sujeito, a Língua e a História.
Conforme Orlandi (2009, p.48):
A ideologia, por sua vez, nesse modo de a conceber, não é vista como conjunto de representações, como visão de mundo ou como ocultação da realidade. Não há aliás realidade sem ideologia. Enquanto prática significante, a ideologia aparece como efeito da relação necessária do sujeito com a língua e com a história para que haja sentido (Orlandi, 2009, p. 48).
Também não há uma relação direta entre linguagem/mundo/pensamento, já
que, essa relação só se torna possível, porque a ideologia intervém com seu modo
de funcionamento imaginário, permitindo que as palavras “colem” com as coisas.
Logo, é a ideologia que interpela o indivíduo em sujeito, inaugurando a
discursividade e produzindo o efeito de evidência do sentido, que resulta na ilusão
da transparência da linguagem. No entanto, a linguagem, os sentidos e os sujeitos
não são transparentes, já que eles têm sua materialidade e se constituem em
processos em que a Língua, a História e a Ideologia concorrem conjuntamente
(Orlandi, 2009, p.48). Assim, os sentidos não são produzidos no interior da língua,
mas resultam das formações discursivas nas quais os sujeitos se inscrevem. Isso
implica negar a existência de um único sentido.
b- Palavras iguais podem significar diferentemente porque se inscrevem em
formações discursivas diferentes, que por sua vez, se encontram diretamente
relacionadas às formações ideológicas. Isso implica dizer que as palavras mudam
de sentido de acordo com a posição ocupada por aqueles que as empregam.
Pêcheux (1997a, p. 160, grifos do autor) afirma que “as palavras, expressões,
proposições, etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles
que as empregam”. Logo, os sentidos esses são determinados em referência às
formações ideológicas nas quais se inscrevem essas posições.
Cabe lembrar, que para a perspectiva discursiva, o sujeito não é um
organismo empírico individual, mas uma posição, o que significa que, nos discursos,
ele fala desse lugar no qual se inscreve. No entanto, quando produz seu discurso é
afetado por duas ilusões ou “esquecimentos”. De acordo com o esquecimento
número dois – da ordem da enunciação – o sujeito tem a ilusão de que aquilo que
ele diz só pode ser dito daquela forma, ou seja, com aquelas palavras. Já o
esquecimento número um ou esquecimento ideológico resulta da forma como o
sujeito é afetado pela ideologia. Ou seja, de acordo com ele, o sujeito reflete o sonho
adâmico de ser a origem do dizer.
Contudo, para a teoria materialista do discurso, nenhum discurso é novo e
todo dito é um já-dito. Assim, é no interdiscurso – na memória discursiva – onde se
encontram todos os dizeres já feitos e esquecidos, que os sentidos vão se
constituindo dando-nos a impressão de que aquilo que falamos nunca foi dito antes.
Portanto, para a teoria materialista do discurso todo o dito constitui um já-dito e não
é possível atravessar o texto para encontrar um sentido que está por detrás dele.
Conforme Orlandi (2001, p. 21) “a questão do sentido torna-se a questão própria da
materialidade do texto, de seu funcionamento, de sua historicidade, dos mecanismos
dos processos de produção”. Pela perspectiva discursiva, analisar um texto implica
então, explicar como ele significa. Assim sendo, a leitura é:
[...] o momento crítico da produção da unidade textual, da sua realidade significante. É nesse momento que os interlocutores se identificam e, ao fazê-lo, desencadeiam o processo de significação do texto. Leitura e sentido, ou melhor, sujeitos e sentidos se constituem simultaneamente, num mesmo processo (Orlandi, 2008a, p. 9-10).
Há que se considerar ainda, que pela perspectiva discursiva, o mesmo leitor
não lê o mesmo texto da mesma maneira, em diferentes momentos e em condições
distintas de produção de leitura. Há, portanto, leituras possíveis para um mesmo
texto, pois o que se lê no presente, não será lido da mesma forma quando uma nova
leitura for realizada. Como coloca Orlandi (2008, p.41), “leituras possíveis em certas
épocas não o foram em outras, e leituras que não são possíveis hoje serão no
futuro”. Além disso, há leituras já previstas para um texto. No domínio religioso, essa
leitura é legitimada pelo teólogo, no jurídico, pelo jurista, e na escola, pelo
professor, que não rara as vezes, ao interpretar textos, leva em consideração o
sentido proposto no livro de respostas dado pelo autor do livro didático. Conforme a
autora citada, “as leituras já feitas de um texto e as leituras já feitas por um leitor
compõem a história da leitura em seu aspecto previsível”. (ORLANDI, 2008a, p. 43).
Contudo, ainda segundo ela, “as leituras têm suas histórias, no plural”. Isso
significa que as leituras previstas devem ser consideradas, mas há outras leituras
possíveis para cada texto, pois todo texto e todo sujeito-leitor estão intimamente
relacionados com o contexto histórico-social, cultural e ideológico.
Assim, para a teoria materialista do discurso, a leitura tem um sentido mais
amplo, que envolve a interpretação e a compreensão dos sentidos produzidos pelo
texto. Não há nada oculto nessa materialidade, nem apenas um sentido único para
ele. Além disso, a perspectiva discursiva não reduz a leitura à simples
decodificação, nem procura apreender um sentido que já está dado, mas procura
observar o processo da sua significação, por meio da análise das suas condições
de produção. Conforme Orlandi (2008a p.37): “[...] o leitor não apreende um sentido
que está lá; o leitor atribuiu sentidos ao texto. Ou seja, considera-se que a leitura é
produzida e se procura determinar o processo e as condições de sua produção”. A
fim de não submeter a leitura a “reducionismos”, a escola/professor deveria
considerar as histórias de leituras dos alunos, a história de leitura dos textos e
destes com a escola e com o conhecimento legítimo.
Além do mais, deve-se considerar que a relação do aluno com o universo
simbólico não se dá apenas pela linguagem verbal. Ao contrário, ele opera com
todas as formas de linguagem na sua relação com o mundo. Ou seja, o aluno está
em contato direto com vários tipos de textos, tais como, tiras, outdoors, grafites e até
mesmo pichações, entre outros, que o interpelam a interpretar. No entanto, no meio
escolar, tem-se dado maior valor aos textos escritos, privilegiando assim, a escrita
em detrimento da oralidade, isto é, a escola não considera o fato de que o aluno
também lê fora dela. Para Orlandi (2008a, p.39), na escola, o processo de
constituição do sujeito-leitor abrange dois aspectos negativos: “[...] exclui-se a sua
relação com outras linguagens e exclui-se a sua relação a sua prática de leitura não-
escolar”.
Nesse sentido, também as Diretrizes Curriculares Estaduais (2008, p. 71)
salientam a importância de trabalhar com uma grande variedade de textos,
considerando inclusive, aqueles que não operam somente com a linguagem verbal:
Ler é familiarizar-se com diferentes textos produzidos em diversas esferas sociais: jornalísticas, artística, judiciária, científica, didático-pedagógica, cotidiana, midiática, literária, publicitária, etc. No processo de leitura, também é preciso considerar as linguagens não-verbais. A leitura de imagens, como fotos, cartazes, propagandas, imagens digitais e virtuais, figuras que povoam com intensidade crescente nosso universo cotidiano (DCEs 2008, p. 71).
Assim, pensar o texto pela perspectiva discursiva implica, segundo Orlandi
(2008a, p. 8), em refletir sobre alguns pontos:
a- O de se pensar a produção da leitura e, logo, a possibilidade de encará-la como possível de ser trabalhada; b- O de que a leitura, tanto quanto a escrita, faz parte do processo de instauração do(s) sentido(s); c- de que o sujeito-autor tem suas especificidades e sua história; d- o de que tanto o sujeito quanto os sentidos são determinados histórica e ideologicamente; e- o fato de que há múltiplos e variados modos de leitura; f- finalmente, e de forma particular, a noção de que a nossa vida intelectual está intimamente relacionada aos modos e efeitos de leitura de cada época e segmento social (Orlandi, 2008a, p. 8).
Pode-se dizer então, que a Análise de Discurso é uma teoria da leitura que
se ocupa em compreender como um texto verbal ou não-verbal funciona, isto é,
como ele produz sentidos. Sintetizando, podemos dizer que a AD coloca em xeque a
questão da interpretação, entendida como uma questão aberta e passível de
equívocos.
1.2. A IMPLEMENTAÇÃO DO PROJETO
Para desenvolver o projeto de leitura de tiras, escolheu-se trabalhar com
o tema “bullying”, uma vez que existe uma discussão intensa sobre esse tema, e que
essa prática vem ocorrendo na sociedade em geral e, em especial, nas instituições
escolares, em que comportamentos agressivos e violentos vêm sendo cada vez
mais frequentes. Diante desse contexto, avalia-se a urgência, não apenas de
debater e compreender essa forma de violência, como também a importância de
elaborar ações que possam ser desenvolvidas junto aos alunos, às suas famílias,
às escolas, às sociedades, de modo mais amplo, a fim de minimizá-lo.
Muito tem sido dito acerca do que seja o bullying. De acordo com Ramos
(2008, p. 1), ele ocorre quando
um ou mais alunos passam a perseguir, intimidar, humilhar, chamar por apelidos cruéis, excluir, ridicularizar, demonstrar comportamento racista e preconceituoso ou, por fim, agredir fisicamente, de forma sistemática, e sem razão aparente, um outro aluno.
Por esse ponto de vista, o bullying pode ser entendido como as atitudes
agressivas, intencionais e repetidas, praticadas sem motivação e, geralmente, de
forma velada, e que podem levar as vítimas a apresentar um baixo desempenho
escolar, resistência em frequentar a escola, medo, baixa autoestima, estresse, e que
pode culminar em depressão e ansiedade. Há a probabilidade, ainda, de as vítimas
se tornarem adultos com comportamentos antissociais e violentos. Já as
testemunhas, embora não sofram as agressões, podem se sentir inseguras,
influenciando negativamente sua vida escolar.
A implementação da Unidade Didática teve início no dia 11 de agosto de
2011, numa 5ª série, do Colégio Estadual John Kennedy. A princípio, foi explicado
aos alunos que a professora de Português aplicaria seu Projeto sobre leitura, nessa
turma. A turma mostrou-se bastante interessada pela forma pela qual as aulas do
projeto seriam desenvolvidas, e também gostou da ideia de ter um caderno em
separado para desenvolver as atividades solicitadas. Na primeira aula, foi proposta
uma pesquisa no Laboratório de Informática, sobre o conceito do tipo de texto em
questão, porém isso não foi possível, porque dos doze computadores existentes,
apenas quatro estavam funcionando, e a turma era formada por 25 alunos.
Então, a professora explicou aos alunos o que é uma tira, e perguntou a eles
se conheciam esse tipo de texto, e se sabiam em que meios de comunicação ele
circula. Em seguida, foi-lhes explicado que as tiras são compostas por quadros, e
normalmente, apresentam onomatopeias, recursos gráficos e balões. Os alunos
participaram bastante da aula, e desenvolveram exercícios sobre os tipos de balões
encontrados nas tiras.
Nesse ponto, faz-se necessário salientar que as tiras escolhidas inicialmente
para o desenvolvimento do projeto não puderam ser usadas, porque o autor não
cedeu os direitos autorais, e em sites de domínio público, não foi encontrado esse
tipo de texto. Diante disso, foi feita uma pesquisa em jornais da região, a fim de
obter alguma informação sobre os autores das tiras que neles circulam. Foi
encontrado então, na cidade de Laranjeiras do Sul, um quadrinista – que publica seu
trabalho na Folha de Palotina, jornal que divulga notícias do oeste do Paraná – que
se dispôs a desenhar cinco tiras, e a ceder os direitos autorais das mesmas para
que o projeto pudesse ser viabilizado..
Na sequência da implementação do projeto, foi apresentada a biografia do
autor das tiras, Leandro Pereira. Os alunos acharam curioso o fato de ele ter apenas
sete anos de idade quando começou a desenhar, de suas professoras não o
incentivarem e de ter começado a trabalhar num jornal, desenhando charges. A
professora explicou-lhes que esse talento, quando posto em prática, pode ser muito
bem remunerado, e além disso, muito respeitado, podendo levar alguns à fama, já
que são poucas pessoas que o apresentam. Após isso, os alunos responderam
questões acerca da biografia do autor, e foram-lhes explicadas as diferenças entre a
linguagem verbal e a não-verbal. Foram indicados também, alguns sites para a
leitura de tiras.
Em seguida, foram apresentadas tiras sobre o tema escolhido, discutidas as
diferenças entre bullying e brincadeira, e mencionadas as formas mais comuns
desse tipo de violência, bem como suas consequências. Também foram mostrados,
na tevê pendrive, vídeos retirados do youtube, sobre casos de pessoas que
sofreram esse tipo de agressão. A princípio, os educandos não levaram o assunto
muito a sério, até que perceberam que não somente a vítima pode vir a apresentar
problemas psicológicos graves, podendo até mesmo precisar de tratamento, mas
que da mesma forma, aqueles que praticam o bullying também são considerados
doentes. A partir disso, demonstraram um enorme interesse e um maior
comprometimento durante as aulas, pois compreenderam que essas situações são
mais sérias do que eles imaginavam.
Continuando, foi apresentada a primeira tira aos alunos. Ao ler a imagem,
eles lembraram que a situação retratada (um garoto correndo, porque encontrou
outros membros da torcida rival, não acontece somente em quadrinhos, mas
também nas escolas, em ginásios de esporte, em jogos escolares e até mesmo em
sala de aula). Esse sentido foi possível, porque a tira remete aos discursos sobre a
violência fora do campo de futebol e aos constantes embates entre torcedores de
times diferentes. Do ponto de vista discursivo, esse é o trabalho da memória, que faz
ressoar, no fio do discurso, discursos que já circularam antes, em outro lugar.
Conforme Orlandi (1998, p.143) “[...] a leitura de todo texto, como objeto novo de
relação, tem por condições evidências anteriores que as sustentam, que as
estruturam”, porque toda leitura remete a outras leituras, à memória discursiva ao
interdiscurso.
Depois disso, os alunos realizaram atividades escritas de interpretação do
texto (disponíveis na unidade didática), sobre a tira em questão, mas o exercício
que mais gostaram foi aquele que envolvia analisar as condições de produção do
texto, e o de criar enunciados para os balões. Nesse momento, surgiram diversas
leituras, pois como se sabe, para a AD, os sentidos podem sempre ser outros.
Houve ainda, a possibilidade de trabalhar com a linguagem não-verbal, com a
imagem, articulando-a em seguida, com a verbal, e cumprindo assim, com o que
determinam os documentos oficiais, e que apontam, de acordo com Orlandi (2008 a,
p. 40), “[...] para uma inserção no universo simbólico que não é a que temos
estabelecido na escola”, tendo em vista que as diferentes linguagens se entrelaçam
e que é esse entrelaçamento que deve ser explorado, quando se deseja trabalhar a
capacidade de compreensão do aluno.
Após a apresentação da tira nº 2, em que a mãe entrega ao garoto a mochila
e o lanche, mas também um escudo e um capacete para que ele vá à escola, os
alunos falaram sobre os possíveis motivos que a levaram a fazer isso. Eles disseram
que, provavelmente, seria porque o garoto estava sofrendo agressões e essa era a
maneira de protegê-lo, ou ainda, porque acontecia muita confusão no pátio da
escola e sua mãe temia que ele fosse agredido. Esses diferentes sentidos dados ao
texto, atestam, novamente, a multiplicidade de leituras e a negação do sentido
único, literal. Além disso, de acordo com a AD, os sentidos mudam de acordo com a
posição sujeito adotada pelo leitor, como relata Orlandi (2009, p. 49), “[...] o sujeito
discursivo é pensado como “posição” entre outras”. Com relação ao texto lido, os
alunos ocupam a posição de “sujeito-aluno”, e partem dela para compreender a
imagem e interpretá-la.
Nesse mesmo momento, foi feita uma atividade comparando essa tira a outra
do Menino Maluquinho, em que, ao saber que seu primo iria visitá-lo, colocou um
balde em cima da porta, para esperá-lo. Os alunos disseram que ambos os casos
podem ser considerados bullying, e que um texto estava relacionado com outro.
Disso se deduz que há uma relação entre o já-dito e o que está se dizendo, ou em
outras palavras, entre o eixo da constituição e o eixo da formulação, pois esta
determina aquela. Isso significa que o discurso se origina da confluência entre a
memória e a atualidade.
A tira nº 3 retrata um patinho que nasce diferente dos demais e, por isso,
todos o rejeitam. Os alunos disseram que isso acontece em muitos lares, como, por
exemplo, naqueles em que se dá preferência a um filho, desvalorizando os demais,
ou ainda, poderia remeter ao preconceito sofrido por pessoas, devido à cor da pele,
à opção sexual, à condição financeira, ao temperamento, entre outros. Assim, o
texto faz irromper, no eixo da formulação, discursos não somente acerca do
preconceito, mas também aqueles que defendem a diversidade.
Os sujeitos-leitores estabeleceram ainda, relações de sentido entre a tira
apresentada, com o conto de fadas “O Patinho Feio”, e que atestam, conforme
Orlandi (2008, p. 11) “[...] a intertextualidade, isto é, a relação de um texto com
outros (existentes, possíveis, ou imaginários)”. Assim, saber ler um texto é saber ler
o que ele diz e o que ele não diz, mas que o constitui significativamente, além de
estabelecer relações com outros que já circularam socialmente.
A tira nº 4 apresenta um menino que se dirige à escola, com um cartaz na
mão, no qual está escrito “Diga não ao Bullying”, e causou estranhamento, porque
não condiz com aquilo que Pêcheux (1997c, p. 34) denomina mundo
semanticamente normal”. Ou seja, quando perguntados se protestariam dessa
forma, com cartazes nas mãos, os alunos responderam que não, por vergonha ou
pelo fato de que por serem muito jovens ainda, os adultos poderiam alegar que eles
não têm ainda, consciência crítica/opinião formada (?). Mais uma vez, foram
atribuídos vários sentidos para o texto. Alguns alunos disseram que, talvez, o
menino estivesse sofrendo algum tipo de discriminação por ser menor, outros
responderam que foi a forma que encontrou para protestar contra o bullying, e
alguns ainda disseram que ele fez aquilo para ajudar o menino maior e gordinho que
aparece no último quadro. Assim, foram muitos os sentidos atribuídos ao texto, pois
conforme já adiantamos, os sentidos mudam de acordo com quem lê, pois como cita
Orlandi (2009, p.50), “[...] os sentidos não se esgotam de imediato. Tanto é assim
que fazem efeitos diferentes para diferentes interlocutores. Não temos controle
sobre isso. Mas tentamos”. Portanto, é imprescindível que a leitura não seja vista
pelo sujeito-leitor como decodificação de palavras, mas como um processo de
atribuição de sentidos. Além disso, a escola também não pode excluir o trabalho
com outras formas de linguagens que não seja a verbal. Ao contrário, deve valorizar
o universo simbólico do aluno, pois:
[...] o processo de compreensão de um texto certamente não exclui a articulação entre as várias linguagens que constituem o universo simbólico. Dito de outra maneira: o aluno traz, para a leitura, a sua experiência discursiva, que inclui sua relação com todas as formas de linguagem
(Orlandi, 2008, p. 38).
A tira de nº 5 mostra um garotinho indo à escola, acompanhado por dois
seguranças. Os alunos disseram que não é somente nos grandes centros que os
alunos precisam ser acompanhados por alguém até à escola, ou na volta, para casa.
De acordo com ele, em nossas escolas, pais, irmãos mais velhos ou parentes vêm
buscá-los na porta da escola, e disseram que na tira, isso pode ter acontecido por
vários motivos, dentre eles, talvez porque o garoto estivesse sendo ameaçado por
garotos mais velhos; porque os pais têm receio da violência que ocorre fora das
portas das escolas; porque o garotinho implicou com alguns colegas e eles
prometeram vingar-se dele.
Como se pode notar, mais uma vez, vários sentidos foram atribuídos ao texto
pelos alunos. Trata-se, segundo Orlandi (2008a, p. 43), da leitura polissêmica. Para
ela, a “[...] a polissemia é a fonte da linguagem uma vez que ela é a própria condição
de existência dos discursos pois se os sentidos – e os sujeitos – não fossem
múltiplos, não haveria necessidade de dizer”. A partir disso, pode-se dizer, que são
leituras previstas por um texto, e que na escola, essas leituras já previstas exclui
qualquer tentativa de levar em consideração a relação que se estabelece entre ele, o
sujeito-leitor e a exterioridade.
Como atividade final, foi proposta a produção de uma tira acerca do tema
abordado. Para tanto, os alunos trouxeram para a sala de aula, revistas e gibis
velhos, que depois de recortadas, transformaram-se em textos maravilhosos.
Percebeu-se que os alunos não fizeram apenas leituras parafrásticas de outros
textos lidos em livros didáticos ou de modelos apresentados pela professora. O que
houve foram definições emancipatórias, novas, em que o sujeito-leitor produziu
textos, assumindo a autoria do que escreveu. Como diz Orlandi, “[...] a escola,
enquanto lugar de reflexão, é um lugar fundamental para a elaboração dessa
experiência, a da autoria, na relação com a linguagem”, porque é no espaço escolar,
que deve ser dada a oportunidade para que o aluno passe de sujeito-leitor para
sujeito-autor. Para a teoria materialista do discurso, a autoria é um importante
processo em que o sujeito só se faz autor se o que produz for interpretável:
Ele inscreve sua formulação no interdiscurso, ele historiciza seu dizer. Porque assume sua posição autor (se apresenta nesse lugar), ele produz assim um evento interpretativo. O que só repete (exercício mnemônico) não o faz. O que nos leva a distinguir: a) a repetição empírica; b) a repetição for mal; c) a repetição histórica” (Orlandi, 1998, p. 70).
Com relação ao GTR (Grupo de Trabalho em Rede), curso online oferecido
pela Secretaria de Estado da Educação, aos professores da Rede Estadual de
Ensino, o professor PDE atua como tutor, na medida em que discute, junto aos seus
pares, a implementação de seu projeto na escola, bem como a teoria utilizada para
sua aplicação. No GTR, a perspectiva discursiva foi muito bem aceita pelos
integrantes do curso, por se tratar de professores de Língua Portuguesa, que tem
um interesse muito grande por essa teoria da interpretação, uma vez que a maioria
deles têm muitas dificuldades para trabalhar com a questão da leitura em sala de
aula.
Assim, os anseios desses professores foram ao encontro do trabalho
apresentado, que encontrou, na Análise de Discurso, o dispositivo teórico necessário
para respaldar a prática da leitura e a compreensão de textos na sala de aula.
Durante o curso, as professoras fizeram muitas observações sobre o trabalho com
tiras, afirmaram já ter trabalhado com esse tipo de texto em suas aulas. Disseram
ainda, ter aplicado algumas das atividades propostas na Unidade Didática em sala
de aula. Com efeito, acredita-se que as tiras têm um importante papel no estudo da
linguagem e dos discursos por ela divulgados. Compreende-se ainda, que não se
trata apenas do humor, provocado pela imagem, que frequentemente representa os
sujeitos de forma caricata, mas do imbricamento da imagem e dos dizeres ali
instados. Assim, não é possível tratar esse tipo de texto como mera diversão, como
um discurso lúdico, “[...] em que a polissemia está aberta, o referente está presente
como tal, sendo que os interlocutores se expõem aos efeitos dessa presença
inteiramente não regulando sua relação com os sentidos” (Orlandi, 2009, p. 86),
porque sabe-se que há toda uma ideologia por detrás não apenas das palavras, mas
também das imagens.
Acredita-se, portanto, que a Análise de Discurso contribuiu muito na forma de
trabalhar com a leitura e a interpretação em sala de aula, pois os professores
compreenderam que os textos não têm um único significado, aquele que é
autorizado pelo autor do livro didático, mas que existem outras leituras, que derivam
da história de leitura do sujeito-leitor e que devem ser levadas em conta na escola.
Considerações Finais
Considerando as dificuldades enfrentadas com a leitura na escola, propôs-se
trabalhar com tiras, tipo de texto que tem como característica principal conjugar a
linguagem verbal e a não-verbal, com o objetivo de narrar histórias de ação,
aventura, mistério, espionagem, policial, drama, dentre outras. No entanto, as tiras
mais populares são aquelas que tratam de temas polêmicos, de forma bem
humorada. Assim sendo, escolheu-se trabalhar com o bullying, tema sempre
presente no contexto escolar, sob o viés da Análise de Discurso, tal como proposta
por Michel Pêcheux.
Durante o desenvolvimento do trabalho observamos que os alunos
manifestaram um grande interesse por essa tipologia textual, o que cumpre um dos
objetivos propostos pelos documentos oficiais que normatizam o ensino de Língua
Portuguesa, que é o de proporcionar ao aluno, o contato com uma grande
quantidade de textos que circulam socialmente, de modo que ele seja capaz de
atribuir sentidos a esses textos e também de produzi-los. Contudo, sabe-se que o
trabalho não deve estacionar nas tiras, e que cabe ao professor possibilitar o
acesso a outros tipos de textos.
Constatou-se ainda, que a Análise de Discurso fornece um eficaz aparato
teórico para ler e compreender textos, pois para essa vertente teórica, a questão a
ser respondida não é mais “o que o texto quer dizer?”, mas “como esse texto
significa?”. Distanciando-se das análise de conteúdo, essa teoria da leitura leva em
conta as relações que se estabelecem entre a língua, o sujeito e a história, e leva
em conta ainda, a história de leitura do texto e do sujeito-leitor, o que implica negar a
transparência da linguagem, isto é, a existência de um único sentido para o texto,
haja vista que ele significa diferentemente, para cada sujeito-leitor. Não se trata,
portanto, de extrair um sentido do texto, mas de considerar que o sentido sempre
pode ser outro.
Desse modo, acredita-se que a aplicação da proposta de leitura de tiras
sobre o bullying no colégio já referenciado foi proveitosa, porque todos os objetivos
propostos foram atendidos, já que além de tratar de um assunto polêmico e atual,
proporcionou compreender que os sentidos não estão no texto, mas fora dele e que
só podem ser verificados se forem observadas as condições em que foram
produzidos.
Desse modo, para que o aluno se interesse pela leitura e sinta prazer em
fazê-la, o professor precisa proporcionar que ele saiba "para quê" e "por quê" ler um
texto, pois uma das características das tiras é retratar determinado acontecimento
histórico, a partir de discursos que irrompem no intradiscurso sob determinadas
condições de produção. Todavia, isso não se dá sem a interferência da memória
discursiva ou do interdiscurso, eixo no qual se encontram os dizeres já feitos e
esquecidos, que retornam no fio do discurso, produzindo o efeito do novo.
Outro aspecto importante observado no desenvolvimento da unidade didática,
refere-se à produção textual, tendo em vista que os alunos demonstraram grande
facilidade para produzir os textos solicitados. Acredita-se que isso se deve ao fato de
que esse tipo de texto é bem conhecido e apreciado pelos alunos, por aliar a
linguagem verbal e não-verbal, além de frequentemente provocar o riso, fugindo,
portanto, ao tipo de texto normalmente usados na escola, e proposto pelo livro
didático.
Concluiu-se por fim, que boa parte dos alunos mudaram sua visão sobre a
leitura, e não a encaram mais como algo chato e entediante, mas que ela pode ser
agradável, dependendo de que tipo de texto se lê, bem como da forma como se lê,
pois ler não é apenas decodificar as palavras, mas compreender como o texto
funciona. Dessa forma, a Análise de Discurso contribuiu para compreender como
sujeito, história e ideologia se entrelaçam na formação dos sentidos, tornando a
leitura das tiras, um “gesto” prazeroso e simples, e preparando os sujeitos para
outras leituras e outros tipos de textos.
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