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LITERATURA BRASILEIRA LEITURAS OBRIGATÓRIAS – FAG TEMÍSTOCLES ZAMPROGNA PASSO FUNDO, OUTUBRO DE 2014

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LITERATURA BRASILEIRA

LEITURAS OBRIGATÓRIAS – FAG

TEMÍSTOCLES ZAMPROGNA

PASSO FUNDO, OUTUBRO DE 2014

I JUCA PIRAMA

Autor: Gonçalves Dias. Escola literária: Romantismo Brasileiro.

Momento histórico-social na Europa: Século XIX – Revolução Francesa (plano político) e Revolução Industrial (plano econômico).

Momento histórico-social no Brasil: Século XIX – Pós-independência brasileira – busca de nacionalidade e tentativa de implantação de um projeto de literatura verdadeiramente brasileira.

Gênero literário: Gênero lírico (poesia romântica brasileira).

Temas: Independência político-econômica brasileira. Eliminação dos traços culturais europeus. Busca de identidade nacional brasileira. Criação de símbolos nacionais: índio inserido na natureza exuberante. Idealização indígena (ndianismo): índio forte, aguerrido, bravo, combatente, equilibrado, coerente, leal, valoroso, brioso, incorruptível (que não se corrompe pelas forças do mal) = mito do bom selvagem = Rosseau.

Local: Rio de Janeiro.

CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL BRASILEIRO

Na primeira metade do século XIX, várias missões estrangeiras vieram ao Brasil. Eram compostas por cientistas e artistas que, coletando, espécimes, fazendo desenhos e escrevendo textos, registraram as características do novo reino.

Desses viajantes, dois merecem atenção especial: Auguste de Saint-Hilaire, respeitado professor do Museu de História Natural de Paris, que veio em 1816 acompanhando a Missão Artística Francesa, e Carl Friedrich von Martius, naturalista que chegou em 1817, como integrante da Missão Autríaca.

Foram eles que apontaram os índios e a natureza exuberante como elementos mais representativos da identidade brasileira, símbolos ideais para a nação. Em seus textos, os integrantes das missões científicas também divulgavam as ideiais liberais e nacionalistas que estavam em moda na Europa. Como estes textos circulavam entre nossos intelectuais, eles foram aos poucos revelando a “face brasileira” aos próprios brasileiros e ajudando a construir uma identidade nacional, fortemente influenciada pela ideologia romântica.

O RESGATE DO MITO DO TERRITÓRIO SAGRADO

O modo como Saint-Hilaire via a natureza brasileira fica evidente nos textos que escreveu: “após pôr-me a caminho, subi durante algum tempo, atravessando florestas virgens da mais bela vegetação e cheguei ao pé de uma montanha inacessível que, mais alta que todas as outras, apresenta a forma aproximada de um pão de açúcar e cuja vegetação magra e rasteira contrasta com as matas vigorosas dos montes vizinhos. [...] Comecei a descer, e logo o mais majestoso espetáculo se ofereceu aos meus olhos. Ao redor de mim altas montanhas, cobertas de espessas florestas, dispunham-se em semi-círculo. O céu mais brilhante e os efeitos de luz mais variados aumentavam a beleza dessa vista imensa. Não pude, confesso, contemplá-la sem profunda emoção”.

A vegetação é “bela”, o espetáculo da natureza é “majestoso”, o céu é mais “brilhante”. O texto revela que a expressão de emoção e deslumbramento diante da natureza faza parte do discurso científico do início do século XIX. Expressões como “florestas virgens”, “montanha inacessível”, “espessas florestas” somam a essa emoção características próprias de um território quase sagrado, uma espécie de paraíso intocado pela civilização.

Von Martius e a gênese do povo brasileiro

Em 1840, o recém-fundado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro promoveu um corcurso para premiar o trabalho que apontasse a melhor maneira de compor uma história geral do Brasil. O vencedor foi Von Martius. Em seu trabalho, ele destacou a importância das três raças (branca, indígena e negra) na formação do povo brasileiro.

A ideologia romântica em voga na Europa ensinou a Von Martius que somente aquilo que é nativo pode ser entendido como nacional. Desse modo, os elementos verdadeiramente nativos do Novo Mundo seriam os povos indígenas que aqui se encontravam antes da chegada dos colonizadores portugueses. Por esse ponto de vista, não havia dúvida de que o índio representava a essência da nacionalidade. Com a vinda dos portugueses e, poteriormente, dos negros, as três raças que aqui se encontraram deram origem ao povo brasileiro.

PROCLAMAÇÃO DA INDEPENDÊNCIA: O IMPACTO DA PRODUÇÃO CULTURAL

De todos os acontecimentos desencadeados pela chegada da família real, o que teve maior impacto cultural foi a Proclamação da Independência política brasileira, ocorrida em 1822.

Esse fato ofereceu aos inteectuais brasileiros o pretexto de que precisavam para levar adiante o que vinha sendo sugerido pelos participantes das várias expedições científicas e artísticas estrangeiras. Era urgente criar referências concretam que consolidassem a ideia de uma nação brasileira, separada de Portugal.

Os símbolos escolhidos para marcar a identidade brasileira foram apontados pelos estrangeiros que percorreram o país descrevendo os costumes dos povos nativos, catalogando espécimes da fauna e da flora, pintando os quadros de uma natureza que deslumbraria as capitais europeias.

Jovens intelectuais, muitos deles educados ou vivendo na Europa, entusiasmados com a independência política, abraçaram a missão de escrever os textos que apresentariam, para brasileiros e estrangeiros, a face do novo país independente.

Resumindo:

• Brasil: recém independente de Portugal (1822);

• O homem romântico: sentimento de euforia;

• Sentimento de pertencimento à nação = NACIONALISMO.

• RJ: elite intelectual brasileira;

• Ações nacionalistas :

1) Não ao estrangeirismo; 2) Criação e valorização de uma IDENTIDADE NACIONAL;3) Elaboração de símbolos nacionais.

A poesia indianista da primeira geração

Foi Gonçalves de Magalhães quem resumiu o espírito que animaria a produção literária dos poetas da primeira geração romântica: “Cada povo tem sua literatura própria, como cada homem seu caráter particular, cada árvore seu fruto específico”. Escrever, para eles, significava plantar a árvore da literatura brasileira, garantindo que ela frutificasse.

A intenção desses poetas era divulgar uma identidade nacional que, além de promover o sentimento de amor à pátria, também nos libertasse das influências literárias portuguesas.

Os textos literários escritos para divulgar a imagem do índio e da natureza americana como elementos definidores da identidade brasileira são reconhecidos como nativistas ou indianistas. Por extensão, os poetas e romancistas que desenvolvem essa temática também são chamados assim. Os mais importantes autores românticos indianistas são o poeta Gonçalves Dias e o romancista José de Alencar.

Os românticos, inspirados pela definição de “\bom selvagem”, feita por Rousseau, projetarão no índio o espírito do homem livre e incorruptível. Trata-se de uma imagem literária completamente idealizada, bem diferente da realidade histórica dos índios que aqui viviam.

O interesse dos autores indianistas era encontrar um veículo ideal para os valores e princípios que desejavam apresentar ao público leitor. Na Europa, esses valores foram representados pelo cavaleiro medieval; no Brasil, pelo índio.

Gonçalves de Magalhães é considerado o fundador do Romantismo no Brasil, com a publicação de Suspiros poéticos e saudades, em 1836. Ornamentados com referências neoclássicas, os poema desse livro afirmam uma crença no progresso da humanidade, no triunfo do belo, do santo e do justo pelo exercício da razão.

O PROJETO LITERÁRIO DA POESIA DA PRIMEIRA GERAÇÃO

O projeto literário que orienta os primeiros românticos brasileiros foi declarado por Gonçalves de Magalhães nas páginas da revista Nitheroy: criar textos que divulgassem os símbolos da nacionalidade brasileira, resgatados de um passado histórico que antecede a chegada dos portugueses à América.

Os agentes do discurso

O contexto de produção da primeira geração romântica brasileira foi muito influenciado pela propaganda nacionalista que tomou conta do país. Primeiro, com os textos dos participantes da missões estrangeiras; segundo, com a concretização da independência política.

Como boa parte dos escritores românticos viva na Europa, para onde tinham ido completar seus estudos, lançam um olhar idealizado para a pátria, fazendo com que a representação literária dos elementos nacionais ganhe o tom exagerado da saudade dos exilados.

Aqui no Brasil também são observadas importantes modificações no contexto de circulação das obras. A fundação da Imprensa Régia facilitou bastante o processo de impressão de periódicos, jornais e revistas, que criaram um espaço até então inexistente para a publicação dos textos literários.

Além de Nitheroy, duas outras revistas surgiram para divulgar os textos dos primeiros românticos: Minerva Brasiliense (1843 – 1845) e Guanabara (1849 – 1856).

Aos poucos se formava um público-leitor de perfil mais definido e que consumia literatura brasileira. Era esse o passo definitivo para que se consolidasse o nascimento da literatura brasileira, com a interação regular entre autores, leitores e obras.

A poesia da primeira geração e suas características

Os versos indianistas não exploram a liberdade formal característica do Romantismo. Eles são marcados pelo controle da métrica e pela escolha das rimas.

Como veremos nos versos apresentados logo adiante, uma das formas de aproximar os leitores dos costumes indígenas é fazer com que o ritmo dos versos se assemelhe ao toque ritual dos tambores, usados nas cerimônias desses povos.

Outro recurso de linguagem utilizado com frequência pelos poetas é uma delicada caracterização da natureza brasileira, espaço no qual se desenvolvem os acontecimentos narrados nos poemas indianistas. Muitas vezes, as imagens da natureza são usadas para expressar os sentimentos dos índios, promovendo uma interessante identificação entre os dois símbolos da nacionalidade brasileira.

Gonçalves Dias: os índios, a pátria e o amor

O grande nome da primeira geração da poesia romântica brasileira foi Antônio Gonçalves Dias (1823 – 1864). De origem mestiça, filho de um comerciante português e de uma cafuza (descendente de índios e de negros), o poeta orgulhava-se de ser descendente das três raças que formaram o povo brasileiro.

Foi para Portugal muito jovem, como era costume na época, estudar Direito na célebre Faculdade de Coimbra. Lá entrou em contato com os textos românticos de Almeida Garrett e Alexandre Herculano, que influenciariam sua forma de escrever.

Em sua poesia, Gonçalves Dias abordou os grandes temas românticos: natureza, pátria e religião. O casamento entre a expressão dos sentimentos individuais, a idealização, a religião e a natureza mostra a força da vinculação do poeta aos sentimentos exagerados do Romantismo.

Entre suas obras, merecem destaque Primeiros cantos (1846), seu primeiro livro de poesia, Segundos cantos, As sextilhas do frei Antão (ambas de 1848) e Últimos cantos (1851). Escreveu também algumas peças de teatro. A mais conhecida delas é Leonor de Mendonça (1847).

Os bravos índios brasileiros

Gonçalves Dias alcançou seu ponto mais alto como poeta nos versos indianistas que escreveu. Poemas como “Os timbiras”, “Canto do piaga”, “Deprecação” e “I Juca Pirama construíram a imagem heroica e nobre dos índios brasileiros. O domínio do ritmo fez com que os versos caíssem no gosto popular e fossem memorizados e repetidos pelos quatro cantos da corte, contribuindo para divulgar a versão romântica dos símbolos nacionais e fortalecer o projeto literário da primeira geração.

O que é digno de ser morto: “I Juca Pirama”

O poema “I Juca Pirama” ilustra as características dos poemas indianistas do autor. Nele é narrada a história do último descendente da tribo tupi, feito prisioneiro pelos índios timbiras. O poema começa apresentando o cenário da aldeia onde o prisioneiro será morto e, depois, devorado em um ritual antropofágico.

I-Juca Pirama

No meio das tabas de amenos verdores, Cercadas de troncos - cobertos de flores, Alteiam-se os tetos d’altiva nação; São muitos seus filhos, nos ânimos fortes, Temíveis na guerra, que em densas coortes Assombram das matas a imensa extensão.

São rudos, severos, sedentos de glória, Já prélios incitam, já cantam vitória, Já meigos atendem à voz do cantor: São todos Timbiras, guerreiros valentes! Seu nome lá voa na boca das gentes, Condão de prodígios, de glória e terror!

As tribos vizinhas, sem forças, sem brio, As armas quebrando, lançando-as ao rio,

Quem é? - ninguém sabe: seu nome é ignoto, Sua tribo não diz: - de um povo remoto Descende por certo - dum povo gentil; Assim lá na Grécia ao escravo insulano Tornavam distinto do vil muçulmano As linhas corretas do nobre perfil.

Por casos de guerra caiu prisioneiro Nas mãos dos Timbiras: - no extenso terreiro Assola-se o teto, que o teve em prisão; Convidam-se as tribos dos seus arredores, Cuidosos se incubem do vaso das cores, Dos vários aprestos da honrosa função.

Acerva-se a lenha da vasta fogueira Entesa-se a corda da embira ligeira, Adorna-se a maça com penas gentis: A custo, entre as vagas do povo da aldeia Caminha o Timbira, que a turba rodeia, Garboso nas plumas de vário matiz.

Em tanto as mulheres com leda trigança, Afeitas ao rito da bárbara usança, índio já querem cativo acabar: A coma lhe cortam, os membros lhe tingem, Brilhante enduape no corpo lhe cingem, Sombreia-lhe a fronte gentil canitar,

O incenso aspiraram dos seus maracás: Medrosos das guerras que os fortes acendem, Custosos tributos ignavos lá rendem, Aos duros guerreiros sujeitos na paz.

No centro da taba se estende um terreiro, Onde ora se aduna o concílio guerreiro Da tribo senhora, das tribos servis: Os velhos sentados praticam d’outrora, E os moços inquietos, que a festa enamora, Derramam-se em torno dum índio infeliz.

II

Em fundos vasos d’alvacenta argila Ferve o cauim; Enchem-se as copas, o prazer começa, Reina o festim.

O prisioneiro, cuja morte anseiam, Sentado está, O prisioneiro, que outro sol no ocaso Jamais verá!

A dura corda, que lhe enlaça o colo, Mostra-lhe o fim Da vida escura, que será mais breve Do que o festim!

Contudo os olhos d’ignóbil pranto Secos estão; Mudos os lábios não descerram queixas Do coração.

Mas um martírio , que encobrir não pode, Em rugas faz A mentirosa placidez do rosto Na fronte audaz!

Que tens, guerreiro? Que temor te assalta No passo horrendo? Honra das tabas que nascer te viram, Folga morrendo.

Folga morrendo; porque além dos Andes Revive o forte, Que soube ufano contrastar os medos Da fria morte.

Rasteira grama, exposta ao sol, à chuva, Lá murcha e pende: Somente ao tronco, que devassa os ares, O raio ofende!

Que foi? Tupã mandou que ele caísse, Como viveu; E o caçador que o avistou prostrado Esmoreceu!

Que temes, ó guerreiro? Além dos Andes Revive o forte, Que soube ufano contrastar os medos Da fria morte.

Andei longes terras Lidei cruas guerras, Vaguei pelas serras Dos vis Aimoréis; Vi lutas de bravos,

III

Em larga roda de novéis guerreiros Ledo caminha o festival Timbira, A quem do sacrifício cabe as honras, Na fronte o canitar sacode em ondas, O enduape na cinta se embalança, Na destra mão sopesa a iverapeme, Orgulhoso e pujante. - Ao menor passo Colar d’alvo marfim, insígnia d’honra, Que lhe orna o colo e o peito, ruge e freme, Como que por feitiço não sabido Encantadas ali as almas grandes Dos vencidos Tapuias, inda chorem Serem glória e brasão d’imigos feros.

"Eis-me aqui", diz ao índio prisioneiro; "Pois que fraco, e sem tribo, e sem família, "As nossas matas devassaste ousado, "Morrerás morte vil da mão de um forte."

Vem a terreiro o mísero contrário; Do colo à cinta a muçurana desce: "Dize-nos quem és, teus feitos canta, "Ou se mais te apraz, defende-te." Começa O índio, que ao redor derrama os olhos, Com triste voz que os ânimos comove.

IV

Meu canto de morte, Guerreiros, ouvi: Sou filho das selvas, Nas selvas cresci; Guerreiros, descendo Da tribo tupi.

Da tribo pujante, Que agora anda errante Por fado inconstante, Guerreiros, nasci; Sou bravo, sou forte, Sou filho do Norte; Meu canto de morte, Guerreiros, ouvi.

Já vi cruas brigas, De tribos imigas, E as duras fadigas Da guerra provei; Nas ondas mendaces Senti pelas faces Os silvos fugaces Dos ventos que amei.

Vi fortes - escravos! De estranhos ignavos Calcados aos pés.

E os campos talados, E os arcos quebrados, E os piagas coitados Já sem maracás; E os meigos cantores, Servindo a senhores, Que vinham traidores, Com mostras de paz.

Aos golpes do imigo, Meu último amigo, Sem lar, sem abrigo Caiu junto a mi! Com plácido rosto, Sereno e composto, O acerbo desgosto Comigo sofri.

Meu pai a meu lado Já cego e quebrado, De penas ralado, Firmava-se em mi: Nós ambos, mesquinhos, Por ínvios caminhos, Cobertos d’espinhos Chegamos aqui!

O velho no entanto Sofrendo já tanto De fome e quebranto, Só qu’ria morrer! Não mais me contenho, Nas matas me embrenho, Das frechas que tenho Me quero valer.

Então, forasteiro, Caí prisioneiro De um troço guerreiro Com que me encontrei: O cru dessossêgo Do pai fraco e cego, Enquanto não chego Qual seja, - dizei!

VI

- Filho meu, onde estás? - Ao vosso lado; Aqui vos trago provisões; tomai-as, As vossas forças restaurai perdidas, E a caminho, e já! - Tardaste muito! Não era nado o sol, quando partiste, E frouxo o seu calor já sinto agora! - Sim demorei-me a divagar sem rumo, Perdi-me nestas matas intrincadas, Reaviei-me e tornei; mas urge o tempo; Convém partir, e já! - Que novos males Nos resta de sofrer? - que novas dores, Que outro fado pior Tupã nos guarda?

V

Soltai-o! - diz o chefe. Pasma a turba; Os guerreiros murmuram: mal ouviram, Nem pode nunca um chefe dar tal ordem! Brada segunda vez com voz mais alta, Afrouxam-se as prisões, a embira cede, A custo, sim; mas cede: o estranho é salvo.

Timbira, diz o índio enternecido, Solto apenas dos nós que o seguravam: És um guerreiro ilustre, um grande chefe, Tu que assim do meu mal te comoveste, Nem sofres que, transposta a natureza, Com olhos onde a luz já não cintila, Chore a morte do filho o pai cansado, Que somente por seu na voz conhece. - És livre; parte. - E voltarei. - Debalde. - Sim, voltarei, morto meu pai. - Não voltes! É bem feliz, se existe, em que não veja, Que filho tem, qual chora: és livre; parte! - Acaso tu supões que me acobardo,

Que receio morrer!

- As setas da aflição já se esgotaram, Nem para novo golpe espaço intacto Em nossos corpos resta. - Mas tu tremes! - Talvez do afã da caça.... - Oh filho caro! Um quê misterioso aqui me fala, Aqui no coração; piedosa fraude Será por certo, que não mentes nunca! Não conheces temor, e agora temes? Vejo e sei: é Tupã que nos aflige, E contra o seu querer não valem brios. Partamos!... - E com mão trêmula, incerta Procura o filho, tacteando as trevas Da sua noite lúgubre e medonha. Sentindo o acre odor das frescas tintas,

VII

"Por amor de um triste velho, Que ao termo fatal já chega, Vós, guerreiros, concedestes A vida a um prisioneiro. Ação tão nobre vos honra, Nem tão alta cortesia Vi eu jamais praticada Entre os Tupis, - e mas foram Senhores em gentileza.

"Eu porém nunca vencido, Nem nos combates por armas, Nem por nobreza nos atos; Aqui venho, e o filho trago. Vós o dizeis prisioneiro, Seja assim como dizeis; Mandai vir a lenha, o fogo, A maça do sacrifício E a muçurana ligeira: Em tudo o rito se cumpra! E quando eu for só na terra, Certo acharei entre os vossos, Que tão gentis se revelam, Alguém que meus passos guie; Alguém, que vendo o meu peito Coberto de cicatrizes, Tomando a vez de meu filho, De haver-me por se ufane!" Mas o chefe dos Timbiras, Os sobrolhos encrespando, Ao velho Tupi guerreiro Responde com tôrvo acento:

- Nada farei do que dizes: É teu filho imbele e fraco! Aviltaria o triunfo Da mais guerreira das tribos Derramar seu ignóbil sangue: Ele chorou de cobarde; Nós outros, fortes Timbiras, Só de heróis fazemos pasto. -

Do velho Tupi guerreiro A surda voz na garganta Faz ouvir uns sons confusos,

VIII

"Tu choraste em presença da morte? Na presença de estranhos choraste? Não descende o cobarde do forte; Pois choraste, meu filho não és! Possas tu, descendente maldito De uma tribo de nobres guerreiros, Implorando cruéis forasteiros, Seres presa de via Aimorés.

"Possas tu, isolado na terra, Sem arrimo e sem pátria vagando, Rejeitado da morte na guerra, Rejeitado dos homens na paz, Ser das gentes o espectro execrado; Não encontres amor nas mulheres, Teus amigos, se amigos tiveres, Tenham alma inconstante e falaz!

"Não encontres doçura no dia, Nem as cores da aurora te ameiguem, E entre as larvas da noite sombria Nunca possas descanso gozar: Não encontres um tronco, uma pedra, Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos, Padecendo os maiores tormentos, Onde possas a fronte pousar.

"Que a teus passos a relva se torre; Murchem prados, a flor desfaleça, E o regato que límpido corre, Mais te acenda o vesano furor; Suas águas depressa se tornem, Ao contacto dos lábios sedentos, Lago impuro de vermes nojentos, Donde fujas com asco e terror!

"Sempre o céu, como um teto incendido, Creste e punja teus membros malditos E oceano de pó denegrido Seja a terra ao ignavo tupi! Miserável, faminto, sedento, Manitôs lhe não falem nos sonhos, E do horror os espectros medonhos Traga sempre o cobarde após si.

"Um amigo não tenhas piedoso Que o teu corpo na terra embalsame, Pondo em vaso d’argila cuidoso Arco e frecha e tacape a teus pés! Sê maldito, e sozinho na terra; Pois que a tanta vileza chegaste, Que em presença da morte choraste, Tu, cobarde, meu filho não és."

Como os rugidos de um tigre, Que pouco a pouco se assanha!

IX

Isto dizendo, o miserando velho A quem Tupã tamanha dor, tal fado Já nos confins da vida reservada, Vai com trêmulo pé, com as mãos já frias Da sua noite escura as densas trevas Palpando. - Alarma! alarma! - O velho pára! O grito que escutou é voz do filho, Voz de guerra que ouviu já tantas vezes Noutra quadra melhor. - Alarma! alarma! - Esse momento só vale a pagar-lhe Os tão compridos trances, as angústias, Que o frio coração lhe atormentaram

De guerreiro e de pai: - vale, e de sobra. Ele que em tanta dor se contivera, Tomado pelo súbito contraste, Desfaz-se agora em pranto copioso, Que o exaurido coração remoça.

A taba se alborota, os golpes descem, Gritos, imprecações profundas soam, Emaranhada a multidão braveja, Revolve-se, enovela-se confusa, E mais revolta em mor furor se acende. E os sons dos golpes que incessantes fervem, Vozes, gemidos, estertor de morte Vão longe pelas ermas serranias Da humana tempestade propagando Quantas vagas de povo enfurecido Contra um rochedo vivo se quebravam.

Era ele, o Tupi; nem fora justo Que a fama dos Tupis - o nome, a glória, Aturado labor de tantos anos, Derradeiro brasão da raça extinta, De um jacto e por um só se aniquilasse.

- Basta! Clama o chefe dos Timbiras, - Basta, guerreiro ilustre! Assaz lutaste, E para o sacrifício é mister forças. -

O guerreiro parou, caiu nos braços Do velho pai, que o cinge contra o peito, Com lágrimas de júbilo bradando: "Este, sim, que é meu filho muito amado!

"E pois que o acho enfim, qual sempre o tive, "Corram livres as lágrimas que choro, "Estas lágrimas, sim, que não desonram."

ANÁLISE DA OBRA:

Gonçalves Dias publicou o livro Últimos cantos e deve ter sido escrito entre 1848 e 1851, e na obra se encontra o poema I – Juca Pirama.

X

Um velho Timbira, coberto de glória, Guardou a memória Do moço guerreiro, do velho Tupi! E à noite, nas tabas, se alguém duvidava Do que ele contava, Dizia prudente: - "Meninos, eu vi!

"Eu vi o brioso no largo terreiro Cantar prisioneiro Seu canto de morte, que nunca esqueci: Valente, como era, chorou sem ter pejo; Parece que o vejo, Que o tenho nest’hora diante de mi.

"Eu disse comigo: Que infâmia d’escravo! Pois não, era um bravo; Valente e brioso, como ele, não vi! E à fé que vos digo: parece-me encanto Que quem chorou tanto, Tivesse a coragem que tinha o Tupi!"

Assim o Timbira, coberto de glória, Guardava a memória Do moço guerreiro, do velho Tupi. E à noite nas tabas, se alguém duvidava Do que ele contava, Tornava prudente: "Meninos, eu vi!".

I – Juca Pirama é considerada pelos críticos como um dos mais elaborados poemas do Romantismo brasileiro.

O título do poema é tirado da língua tupi e significa, conforme explica o próprio autor, “o que há de ser morto, e que é digno de ser morto.” Embora tenha nome próprio, “Juca Pirama” não tem nada a ver com o nome do índio aprisionado pelos Timbiras.

Apesar de ter uma fama narrativa que configura o gênero épico e um conteúdo dramatizável, predomina no poema o gênero lírico – um lirismo fácil e espontâneo, perpassado das emoções e subjetividade do poeta. Como é próprio do romantismo, estilo a que está ligado Gonçalves Dias, é um lirismo que brota do coração e da “imaginação criadora” do poeta e que expressa bem o sentimentalismo romântico. A obra é indianista e vale ressaltar a musicalidade dos versos que é uma característica típica de Gonçalves Dias.

O poema I–Juca Pirama nos dá uma visão mais próxima do índio, ligado aos seus costumes, idealizado e moldado ao gosto romântico. O índio integrado no ambiente natural, e principalmente adequado a um sentimento de honra, reflete o pensamento ocidental de honra tão típico das novelas de cavalaria medievais - é o caso do texto Rei Arthur e a Távola Redonda. Se os europeus podiam encontrar na Idade Média as origens da nacionalidade, o mesmo não aconteceu com os brasileiros. Provavelmente por essa razão, a volta ao passado, mesclada ao culto do bom selvagem, encontra na figura do indígena o símbolo exato e adequada para a realização da pesquisa lírica e heróica do passado.

O índio é então redescoberto, embora sua recriação poética dê idéia da redescoberta de uma raça que estava adormecida pela tradição e que foi revivida pelo poeta. O idealismo, a etnografia fantasiada , as situações desenvolvidas como episódios da grande gesta heróica e trágica da civilização indígena brasileira, a qual sofre a degradação do branco conquistador e colonizador, têm na sua forma e na sua composição reflexos da epopéia. da tragédia clássica e dos romances de gesta da Idade Média. Assim o índio que conhecemos nos versos bem elaborados de Gonçalves Dias é uma figura poética, um símbolo.

Gonçalves Dias centra I – Juca Pirama num estado de coisas que ganham uma enorme importância pela inevitável transgressão cometida pelo herói, transgressão de cunho romanesco (o choro diante da morte) que quando transposta a literatura gera uma incrível idealização dos estados de alma. Como exemplo, podemos citar as reações causadas pelo "suposto medo da morte". Com isso, o autor transforma a alma indígena em correlativos dos seus próprios movimentos, sublinhando a afetividade e o choque entre os afetos: há uma interpenetração de afetos (amor,ódio, vingança etc.) que estabelece uma harmonia romântica entre o ser que está sendo julgado e a sua natureza - a natureza indígena, com a consequente preferência pelas cenas e momentos que correspondem ao teor das emoções. Daí as avalanches de bravura e de louvor à honra e ao caráter.

FOCO NARRATIVO

I – Juca – Pirama é narrado em 3ª pessoa por um índio timbira que relata às gerações posteriores as proezas do guerreiro tupi que lá esteve. A posição do narrador é distante, revelando-se onisciente e onipresente.

O poema descreve, a partir de um “flash-back”, a estória de um índio tupi que, por ser um bravo e corajoso guerreiro, deveria ter sua carne comida numa cerimônia religiosa (antropofagia).

TEMPO/AÇÃO/ESPAÇO

O autor, através do narrador timbira, não faz menção ao lugar em que decorre a ação; sabe-se, entretanto, que os timbiras viviam no interior do Brasil, ao contrário dos Tupis, que se localizavam no litoral.

Quanto ao tempo, não há uma indicação explícita, mas percebe-se que é a época da colonização portuguesa, quando os índios já estavam sendo dizimados pelo branco, como diz, no seu canto de morte, o guerreiro Tupi – um triste remanescente “da tribo pujante/ que agora anda errante”.

ESTRUTURA DA OBRA

A metrificação de Gonçalves Dias é bastante original, pois “menospreza regras de mera convenção”. O poeta sempre busca a forma ideal para cada assunto, adequando bem forma e conteúdo.

Em I – Juca – Pirama, alterna versos longos e curtos, ora para descrever (verso lento), ora para dar a impressão do rufar dos tambores no ritual indígena.

O poema nos é apresentado em dez cantos, organizados em forma de composição épico – dramática. Todos sempre pautam pela apresentação de um índio cujo caráter e heroísmo são salientados a cada instante.

Canto 1 - Apresentação e descrição da tribo dos Timbiras. Como está descrevendo o ambiente, o autor usa um verso mais lento e caudaloso, que é hendecassílabo (onze sílabas). A estrofe é sempre de seis versos (sextilha) e as rimas obedecem ao esquema: AA (paralelas) e BCCB (opostas ou intercaladas).

Canto 2 - Narra a festa canibalística dos timbiras e a aflição do guerreiro tupi que será sacrificado. O poeta alterna o decassílabo (dez sílabas) com o tetrassílabo (quatro sílabas), o que sugere o início do ritual com o rufar dos tambores. As estrofes são de quatro versos (quarteto) e o poeta só rima os tetrassílabos.

Canto 3 - Apresentação do guerreiro tupi – I – Juca Pirama. Sem se preocupar com rimas e estrofação, o poeta volta a usar o decassílabo (com algumas irregularidades), novamente num ritmo mais lento, que se casa bem com a apresentação feita do chefe Timbira.

Canto 4 - I - Juca Pirama aprisionado pelos Timbiras declama o seu canto de morte e pede ao Timbiras que deixem-no ir para cuidar do pai alquebrado e cego. O verso pentassílabo (cinco sílabas), num ritmo ligeiro, dá a impressão do rufar dos tambores. As estrofes com exceção da primeira (sextilha), têm oito versos (oitavas), e as rimas seguem o esquema AAA (paralelas) e BCCB (opostas e intercaladas).

Canto 5 - Ao escutarem o canto de morte do guerreiro tupi, os timbiras entendem ser aquilo um ato de covardia e desse modo desqualificam-no para o sacrifício. Dando a impressão do conflito que se estabelece e refletindo o diálogo nervoso, entre o chefe Timbira e o índio Tupi, o poeta altera o decassílabo com versos mais ou menos livres. Não há preocupação nem com estrofes nem com rimas.

Canto 6 - O filho volta ao pai que ao pressentir o cheiro de tinta dos timbiras que é específica para o sacrifício desconfia do filho e ambos partem novamente para a tribo dos timbiras para sanarem ato tão vergonhoso para o povo tupi. Reproduzindo o diálogo entre pai e filho e também a decepção daquele, o poeta usa decassílabo juntamente com passagens mais ou menos livres. Não há preocupação com rimas ou estrofes.

Canto 7 - Sob alegação de que os tupis são fracos, o chefe dos timbiras não permite a consumação do ritual. Num ritmo constante, marcado pelo heptassílabo (sete sílabas), o poeta reproduz a fala segura do pai humilhado e do chefe Timbira. A estrofação e as rimas são livres.

Canto 8 - O pai envergonhado maldiz o suposto filho covarde. Para expressar a maldição proferida pelo velho pai, num ritmo bem marcado e seguro, o poeta usa o verso eneassílabo (nove sílabas), distribuindo-os em oitavas, com rimas alternadas e paralelas.

Canto 9 - Enraivecido o guerreiro tupi lança o seu grito de guerra e derrota a todos valentemente em nome de sua honra. Casando-se com o tom narrativo e a reação altiva do índio Tupi, o poeta usa novamente o decassílabo com estrofação e rimas livres.

Canto 10 - O velho Timbira ( narrador ) rende-se frente ao poder do tupi e diz a célebre frase: "meninos, eu vi". Alternando o hendecassílabo com pentassílabo, o poeta fecha o poema, de forma harmoniosa e ordenada, o que reflete o fim do conflito e a serenidade dos espíritos. Casando com essa ordem restabelecida, as estrofes vêm arrumadas em sextilhas e as rimas obedecem ao esquema AA (paralelas) e BCCB (opostas e intercaladas).

MEU SONHO, De ÁLVARES DE AZEVEDO

EU

Cavaleiro das armas escuras,Onde vais pelas trevas impurasCom a espada sanguenta na mão?Porque brilham teus olhos ardentesE gemidos nos lábios frementesVertem fogo do teu coração? 

Cavaleiro, quem és? o remorso?Do corcel te debruças no dorso....E galopas do vale através...Oh! da estrada acordando as poeirasNão escutas gritar as caveirasE morder-te o fantasma nos pés? 

Onde vais pelas trevas impuras,Cavaleiro das armas escuras,Macilento qual morto na tumba?...Tu escutas.... Na longa montanhaUm tropel teu galope acompanha?E um clamor de vingança retumba? 

Cavaleiro, quem és? — que mistério,Quem te força da morte no impérioPela noite assombrada a vagar?

O FANTASMA 

Sou o sonho de tua esperança,Tua febre que nunca descansa,O delírio que te há de matar!...

Localizado na terceira parte da obra de nome Lira dos Vinte anos, o poema constitui uma espécie de diálogo entre o eu-lírico e o fantasma. O eu lírico descreve um sonho em que o cavaleiro perambula pelo reino da morte. Bem de acordo com a estética ultrarromântica, a cena se dá em um ambiente onírico, sombrio, noturno e soturno. Na realidade, isso se constitui como uma espécie de metáfora para as angústias sexuais do eu-lírico: colocação do símbolo fálico (espada sangrenta na mão), no ritmo de galope conferido pelos versos eneassílabos (acentuando a tensão e a sugestão de movimentos repetidos numa alusão implícita à masturbação) e, por fim, na atmosfera de trevas, que metaforiza o sentimento de culpa do eu-lírico.

CANÇÃO EXCÊNTRICA, de Cecília Meireles

Ando à procura de espaço

Para o desenho da vida.

Em números me embaraço

E perco sempre a medida.

Se penso encontrar saída,

Em vez de abrir um compasso,

Projeto-me num abraço

E gero uma despedida.

Se volto sobre o meu passo,

É já distância perdida.

Meu coração, coisa de aço,

Começa a achar um cansaço

Esta procura de espaço

Para o desenho da vida.

Já por exausta e descrida

Não me animo a um breve traço;

- saudosa do que não faço,

- do que faço, arrependida.

Movimentos do poema:

1º: v. 1-10

2º: v. 11-14

3º: v. 15-18

Sobre o título: Canção excêntrica

É uma canção por sermos música. É a invocação dos poetas às Musas, quando entusiasmados cantam, uma vez que a fala

é o canto na medida em que este só o é na música.

Excêntrico é o que foge do centro, ou seja, é a procura inevitável que cada um de nós faz na vida. Assim, considerando o

círculo, o centro pode ser entendido como um ponto de partida para o qual caminhamos perenemente ansiando o seu reencontro.

Nesse sentido, centro não é só o local para o qual algo converge, mas o princípio de onde um questionamento começa.

Portanto, Canção excêntrica é o canto inaugural que realizamos na procura do que nos é próprio.

1º movimento

O primeiro movimento está centrado no “eu”, isto é, em mim. Em você, mas não sendo o outro e sim sendo o próprio.

Noutras palavras, o foco está sobre quem lê no ato da leitura sem ser observado por um suposto agente. Já que é este agente

instituído que serve como referência para a determinação das pessoas verbais no discurso, ou seja, “ele” só é terceira pessoa

porque existe um “eu” (primeira pessoa) que determina tal “hierarquização” ao observar o outro. Logo, retomando o início, o

centro do primeiro movimento está em mim, em você ou nele sendo único no momento da leitura.

Tendo como ponto de partida os verbos, “andar” indica o procurar, o caminhar responsável pelo desenho da vida (v. 2). E

este desenho é o que nos diferencia como pessoas ao mesmo tempo em que nos identifica como seres inquietos e incompletos

enquanto viventes (sendo vida). Então, à proporção que ando (v. 1), lanço-me na vida à procura do que me é próprio.

Observando os verbos, notamos que todos se referem gramaticalmente à primeira pessoa do discurso. Exceto um que não

manifesta o suposto sujeito gramatical eu: o é (ser). Se fôssemos traçar um viés gramatical, seria dito que o verbo “ser”, conjugado

na terceira pessoa do singular, funciona como verbo de ligação entre o substantivo distância (v. 10) e o adjetivo perdida (v. 10).

Contudo, como não queremos incorrer na superficialidade gramatical que prima exclusivamente pela funcionalidade, o tal verbo

de ligação É (v. 10) deixa essa perspectiva de palavra vazia de significado e figura poeticamente como o que viabiliza, por seu

vigor, a possibilidade de a distância (como o caminho a ser percorrido no “andar”) se plenificar mediante a tensão entre o que se

tem e o que não se tem (perdida – v. 10), ou melhor, entre ser e não-ser, quando jogados no tempo (já – v. 10). Mas, por enquanto,

deixemos essa discussão em suspenso.

Retomando o verbo “andar”, temos que, à medida que andamos, perdemo-nos da mesma forma que nos encontramos

constantemente. Então, é na tensão entre “embaraçar” ((...) embaraço(...), v. 3) e (...) encontrar (...) (v. 5) que o andar/perder se

manifesta quando somos lançados no tempo – (...) sempre (...), v. 4. E a ideia do tempo se mostra também na tensão entre o medir

– (...) medida, v. 4 – e o sair – (...) saída, v. 5 – uma vez que a impossibilidade de uma medida para a vida se expurgaria numa

saída ou solução. Porém, novamente, a resposta não se dá por encerrada quando, na incerteza demonstrada pela conjunção

alternativa Se (...) (v. 5), projetamo-nos adiante de algum lugar, inviabilizando o fim do caminhar.

Perder a medida é ir contra a razão, já que medir é uma instituição racional de tentar conter uma totalidade num conceito, quando

este limita a ambiguidade daquilo que acontece como questão. Assim, perdemos sempre a medida, pois a vida nos joga ao embate

contínuo do estar vivendo.

No verso 6, (...) abrir um compasso nos diz uma tentativa, ainda, de solucionar o inesperado através de uma resposta que

já se teria pronta (um conceito). Todavia, abrir é nos mostrar o novo, irromper com o que está fechado, definido, conceituado.

Noutras palavras, é quebrar o que já está determinado, posto que o compasso (v. 6), embora relacionado com o círculo, não se

poderia atribuir essa identidade ao que se chama círculo poético. Uma vez que, neste, o círculo não se fecha no início, mas, tendo

em vista o contexto aqui inserido, principia-se no fim quando proporciona a soltura do eixo a que a outra ponta do compasso se

prende. Daí que na abertura ocorre uma projeção – projeto-me (v. 7) – e neste movimento de ir além é que nos geramos

continuamente. Gerar – (...) gero (...) (v. 8) – é, então, dar origem, desvelar o que se vela indo ao originário. Por isso, quando o

verso 8 diz E gero uma despedida, tal despedida é o acontecimento do porvir, pois despedir-se de algo é deixá-lo para trás quando

nos lançamos na tensão entre o que está acontecendo e o que irá acontecer, enfim, é o experienciar da e na história.

No final do 1º movimento nos vem que:

Se volto sobre o meu passo,

É já distância perdida.

Aqui, retomamos o que fora dito sobre o verbo “ser” quando ele extrapola a condição gramatical de se constituir apenas

como verbo de ligação para imprimir o vigor que depreende na conjuntura do homem como manifestação do Ser.

Na medida em que volto (v. 9), não é possível refazer ou reviver um percurso. Este se completa à proporção que passa e

se constitui em passado imutável. Dessa maneira, traz a ideia temporal que é reforçada pelo advérbio de tempo já (v. 10), quando

este nos diz “o agora”. Ou seja, manifesta o tempo no qual imergimos e desponta no que está por acontecer, sabendo que o agora

só se dá enquanto vigor do entre, pois é sempre uma tensão do presente em disputa com o futuro sendo passado.

2º movimento

Neste movimento, o coração (v. 11) também se relaciona diretamente com o título, isto é, com a ideia de “fuga do

centro” quando sinaliza o centro do homem ou da vida ainda numa perspectiva superficialmente orgânica. Mas, se considerarmos

a amplitude do pensamento oriental, ao coração se atribui a tensão do entre. De outro modo, seu movimento de sístole e diástole é

a percepção da ação e retração do corpo quando inserido no tempo, ou seja, tanto se expande quanto se retrai num ciclo temporal,

tendo em vista que o ciclo é infinito, não mensurado e circular. Em Meu coração, coisa de aço (v. 11), aço é vigor. É o que traduz

a dicotomia do coração, revelando a disputa que se harmoniza no equilíbrio.

À medida que a vida avança, transbordamo-nos de procura, de achar o que é nosso, nosso princípio. Daí, caminhar

incessantemente causa dor, aflição, cansaço (v. 12). Já que viver é estar lançado na liminaridade, portanto, é uma constante tensão

que nos movimenta, retirando-nos da letargia, portanto, da inércia. Assim, perder o centro, aquilo que racionalmente confortaria a

vida quando vista sob uma ótica linear, é traumático e causa mudança.

“Procurar um espaço para que a vida se desenhe” é o mesmo que ficar atrelado ao compasso quando este não rompe com

o que cristaliza o movimento de repetição: o centro no qual sua outra haste se fixa. Este centro deve ser rompido ao nos abrirmos e

nos projetarmos na vida. Então, temos que o segundo movimento se focaliza no coração, mas não como órgão físico, e sim como

centro, vitalidade oriunda da dicotomia entre ação e retração do tempo, ou melhor, entre vida e morte.

3º movimento

Quase uma continuação do segundo movimento, o terceiro muda o foco quando o verbo animar – me animo (v. 16) –

retoma o eu, o nós, enfim, aquele que lê (conforme já discutido anteriormente).

Animar é principiar, voltar-se à origem num ímpeto vigoroso de dar vida. Entendendo a vida por energia, a alma é o

centro dessa energia, dessa força e vigor. Entretanto, não numa separação metafísica entre corpo e alma, e sim pensando nos dois

como um só, já que um e outro se completam à medida que se compreendem, quando compreender é se entender ao se perceberem

mutuamente .

Habitando temporalmente o limiar entre o desgaste e a descrença, onde a conjunção e manifesta tal acontecimento, como

vemos no trecho Já por exausta e descrida (v. 15), inserimo-nos e nos realizamos como morada desta tensão na medida em que

desejamos a realização de um ideal ao mesmo tempo em que este perde seu brilho e se descaracteriza como procura ao ser

realizado quando é alcançado: - saudosa do que não faço, / - do que faço, arrependida (v. 17-18).

Então, ao relacionarmos os verbos “animar” e “fazer”, tanto um quanto o outro trazem a ideia de movimentação. Um –

“animar” – dá a possibilidade e é em si o movimento enquanto o outro – “fazer” – é o movimento em sua realização. Todavia, eles

vêm acompanhados de uma partícula negativa: o advérbio de negação “não”, ou seja, Não me animo (...) (v. 16) e (...) não faço (v.

17). Essa negação ainda é reforçada mais adiante pelo adjetivo arrependida (v. 18). Daí vem que tais negações demonstram a

condição liminar do homem quando negando ele se afirma. Logo, no trecho (...) um breve traço (v. 16) vemos a figura do seu

caminhar em diálogo com o sentido do compasso (v. 6), reavendo a discussão entre a liberdade do viver e o aprisionamento do

centralizar, considerando este uma moldura racional que não dá conta da plenitude humana.

Portanto, o centro deste terceiro movimento está, exatamente, na conjunção e (v. 15) por manifestar a tensão inerente ao

homem, sendo este o ser do limiar concretizado na procura do que lhe é próprio.

PRIMEIRAS ESTÓRIAS, de João Guimarães Rosa

Análise da obra

O livro Primeiras estórias faz parte do terceiro tempo do Modernismo brasileiro e foi publicado em 1962. As 21 estórias, portanto, são narrativas preocupadas em tematizar, simbolicamente, os segredos da existência humana.

Trata-se do primeiro conjunto de histórias compactas a seguir a linha do conto tradicional, daí o "Primeiras" do título. O escritos acrescenta, logo após, o termo estória, tomando-o emprestado do inglês, em oposição ao termo História, designando algo mais próximo da invenção, ficção. Na obra há a intenção de apresentar fábulas para as crianças do futuro.

À primeira vista, a leitura de Primeiras Estórias pode, falsamente, parecer difícil e a linguagem soar erudita e ininteligível, mas essa é uma avaliação precipitada. Na verdade, o autor busca recuperar na escrita, a fala das personagens do sertão mineiro; a poesia presente nas imagens, sons e estruturas de uma linguagem que está à margem da norma estabelecida pelos padrões urbanos.

Quanto ao emprego dos tempos verbais, nota-se que, na maior parte das estórias, o relato se faz através de uma mistura do pretérito perfeito com o pretérito imperfeito do indicativo.

A obra aborda as diferentes faces do gênero: a psicológica, a fantástica, a autobiográfica, a anedótica, a satírica, vazadas em diferentes tons: o cômico, o trágico, o patético, o lírico, o sarcástico, o erudito, o popular.

As personagens embora variem muito quanto à faixa etária e experiência de vida, elas se ligam por um aspecto comum: suas reações psicossociais extrapolam o limite da normalidade. São crianças e adolescentes superdotados, santos, bandidos, gurus sertanejos, vampiros e, principalmente, loucos: sete estórias apresentam personagens com este traço.

A relação com a morte e com o desejo de imortalidade está presente em toda a obra de Guimarães Rosa, mas talvez com mais intensidade em "Primeiras Estórias".

Em cada um dos contos deste livro o narrador configura sua experiência de forma diferente, atravessando estágios emocionais distintos, conforme o ponto do percurso em que se encontra. Tanto em As Margens da Alegria, quanto em Os Cimos, contos extremos do livro, ele se identifica profundamente com o protagonista, como se ele espelhasse sua própria trajetória, sua infância, como se assim universalizasse, de certa forma, essa travessia. Ou seja, ele tenta perceber o que há de comum na infância de cada menino, nessas delicadas passagens, em seus estados de alma, nos dolorosos conflitos, nas fascinantes descobertas.

Os personagens de Rosa parecem caminhar pelas veredas da memória, vagar pelos labirintos de sua psique, ser guiados pelos fios das experiências por eles vividas e não completamente elaboradas no plano da consciência. Eles são movidos pela necessidade de transmitir suas vivências, para melhor compreendê-las e ordená-las em sua mente consciente. Diante do tempo transcorrido, os protagonistas rosianos mantêm uma constante atitude interrogativa.

Luas-de-mel (Conto de Primeiras estórias), de Guimarães Rosa

O conto, narrado em primeira pessoa, introduz o motivo, fundamental na obra rosiana, do eterno feminino. A mulher é a ponte que une o passado e o futuro, assegurando a continuidade da existência e a indestrutibilidade do elan vital. A mulher madura e a jovem noiva constituem as duas pontas do fio da vida, e a consciência de sua interconversibilidade situa o homem na eternidade, libertando-o de seu isolamento e restituindo-o à totalidade cósmica.

Do nada é que as coisas acontecem. Essa frase pode ser entendida como uma defesa do desapego, presente em Sorôco, sua mãe, sua filha, Os Cimos, A Terceira Margem do Rio, O Espelho ou Nada e a Nossa Condição. Pode também ser entendida como uma explicação para as ações de Liojorge e Zé Centeralfe, de Os Irmãos Dagobé e Fatalidade, respectivamente. Mas é uma frase proferida por Joaquim Norberto, protagonista do presente conto.

A narrativa deste conto pode ser interpretada como ilustração para a idéia de que em meio a situações corriqueiras, banais, é possível viver fortes emoções e grandes amores. É o que ocorre com Joaquim Norberto e Sa-Maria Andreza, velho casal acostumado com a vida pacata da fazenda Santa-Cruz-da-Onça e que tem a mesmice de sua vida quebrada pelo pedido do Coronel Seotaziano de proteção a um casal que quer casar-se, contrariando a decisão da família da moça. Deve-se notar que, além de a filiação de Joaquim a Seotaziano lembrar o feudalismo, a chegada do casal provoca duas conseqüências: cria, em forte crescendo, uma expectativa tensa de um combate, o que faz todos ficarem armados, até o padre, que viera celebrar o matrimônio. Gera, também, o renascer do amor em Joaquim Norberto e sua esposa Sa-Maria Andreza.

No final, outra vez se manifesta no obra o recurso ao anticlímax. O irmão da noiva surge, mas não traz a guarda, apenas o convite de um almoço para comemorar a união. Todos vão ao festejo, menos Joaquim Norberto e Sa-Maria Andreza. Os dois ficam para aproveitar o sentimento renovado. Amor traz amor.

Eu, feliz, olhei minha Sa-Maria Andreza; fogo de amor verbigrácia. Mão na mão, eu lhe dizendo – na outra o rifle empunhado –: — ‘Vamos dormir abraçados...

Nesta frase podemos observar que o amor do casal maduro é retratado numa atmosfera de proteção e serenidade.

Enredo

No início do conto, o fazendeiro Joaquim Norberto, senhor já idoso e de paz (apesar de seu passado) recebe uma carta de Seu Seotaziano, um amigo seu que pedia para que ele desse guarda e abrigo a um jovem casal que havia fugido para poder casar. “Essas doidices de amor!” – pensa Joaquim Norberto. Ele atende o pedido do amigo e inicia os preparativos para a hospedagem.

O casal chega, mas ainda não haviam consumado o casamento. Joaquim Norberto também não queria saber quem eles eram, pois podia ser parente ou conhecidos. Mais tarde ele fica sabendo que ela era filha do Major Dioclécio, que era contra a união dos dois. Visto ser ele um homem poderoso e duro, Norberto monta guarda contra um eventual ataque do pai da noiva.

O padre é chamado para o casamento, e a cerimônia é realizada. Ao ver o prazer nos olhos dos noivos, a emoção e o amor contagiam Norberto, que sente-se apaixonado mais uma vez por sua esposa Sa-Maria Andreza. “Recebi mais natureza – fonte seca brota de novo – o rebroto, rebrotado. Sa-Maria minha Andreza me mirou com um amor, ela estava tão bela, remoçada. (...) Eu, feliz, olhei minha Sa-Maria Andreza; fogo de amor, verbigrácia. Mão na mão, eu lhe dizendo – na outra o rifle empunhado – : – ‘Vamos dormir abraçados'”

No dia seguinte, chega à fazenda um irmão da noiva que diz que o pai acabara cedendo à união e que convidava os presentes para uma festa. Os vizinhos que faziam a vigília vão embora. Da varanda, Sa-Maria Andreza, eu, nós, a gente contemplava: os cavaleiros, na congracez, em boa ida. Tudo tão determinado, de repente, se me se diz, tudo tão quitado. Nem guerra, nem mais lua-de-méis.

A PARTIDA, de Osman Lins

Hoje, revendo minhas atitudes quando vim embora, reconheço que mudei bastante. Verifico também que estava aflito e que havia um fundo de mágoa ou desespero em minha impaciência. Eu queria deixar minha casa, minha avó e seus cuidados. Estava farto de chegar a horas certas, de ouvir reclamações; de ser vigiado, contemplado, querido. Sim, também a afeição de minha avó incomodava-me. Era quase palpável, quase como um objeto, uma túnica, um paletó justo que eu não pudesse despir.

Ela vivia a comprar-me remédios, a censurar minha falta de modos, a olhar-me, a repetir conselhos que eu já sabia de cor. Era boa demais, intoleravelmente boa e amorosa e justa.Na véspera da viagem, enquanto eu a ajudava a arrumar as coisas na maleta, pensava que no dia seguinte estaria livre e imaginava o amplo mundo no qual iria desafogar-me: passeios, domingos sem missa, trabalho em vez de livros, mulheres nas praias, caras novas. Como tudo era fascinante! Que viesse logo. Que as horas corressem e eu me encontrasse imediatamente na posse de todos esses bens que me aguardavam. Que as horas voassem, voassem!

Percebi que minha avó não me olhava. A princípio, achei inexplicável ela fizesse isso, pois costumava fitar-me, longamente, com uma ternura que incomodava. Tive raiva do que me parecia um capricho e, como represália, fui para a cama.

Deixei a luz acesa. Sentia não sei que prazer em contar as vigas do teto, em olhar para a lâmpada. Desejava que nenhuma dessas coisas me afetasse e irritava-me por começar a entender que não conseguiria afastar-me delas sem emoção.

Minha avó fechara a maleta e agora se movia, devagar, calada, fiel ao seu hábito de fazer arrumações tardias. A quietude da casa parecia triste e ficava mais nítida com os poucos ruídos aos quais me fixava: manso arrastar de chinelos, cuidadoso abrir e lento fechar de gavetas, o tique-taque do relógio, tilintar de talheres, de xícaras.

Por fim, ela veio ao meu quarto, curvou-se:

— Acordado?

Apanhou o lençol e ia cobrir-me (gostava disto, ainda hoje o faz quando a visito); mas pretextei calor, beijei sua mão enrugada e, antes que ela saísse, dei-lhe as costas.Não consegui dormir. Continuava preso a outros rumores. E quando estes se esvaíam, indistintas imagens me acossavam. Edifícios imensos, opressivos, barulho de trens, luzes, tudo a afligir-me, persistente, desagradável — imagens de febre.

Sentei-me na cama, as têmporas batendo, o coração inchado, retendo uma alegria dolorosa, que mais parecia um anúncio de morte. As horas passavam, cantavam grilos, minha avó tossia e voltava-se no leito, as molas duras rangiam ao peso de seu corpo. A tosse passou, emudeceram as molas; ficaram só os grilos e os relógios. Deitei-me.

Passava de meia-noite quando a velha cama gemeu: minha avó levantava-se. Abriu de leve a porta de seu quarto, sempre de leve entrou no meu, veio chegando e ficou de pé junto a mim. Com que finalidade? — perguntava eu. Cobrir-me ainda? Repetir-me conselhos? Ouvi-a então soluçar e quase fui sacudido por um acesso de raiva. Ela estava olhando para mim e chorando como se eu fosse um cadáver — pensei. Mas eu não me parecia em nada com um morto, senão no estar deitado. Estava vivo, bem vivo, não ia morrer. Sentia-me a ponto de gritar. Que me deixasse em paz e fosse chorar longe, na sala, na cozinha, no quintal, mas longe de mim. Eu não estava morto.

Afinal, ela beijou-me a fronte e se afastou, abafando os soluços. Eu crispei as mãos nas grades de ferro da cama, sobre as quais apoiei a testa ardente. E adormeci.

Acordei pela madrugada. A princípio com tranqüilidade, e logo com obstinação, quis novamente dormir. Inútil, o sono esgotara-se. Com precaução, acendi um fósforo: passava das três. Restavam-me, portanto, menos de duas horas, pois o trem chegaria às cinco. Veio-me então o desejo de não passar nem uma hora mais naquela casa. Partir, sem dizer nada, deixar quanto antes minhas cadeias de disciplina e de amor.

Com receio de fazer barulho, dirigi-me à cozinha, lavei o rosto, os dentes, penteei-me e, voltando ao meu quarto, vesti-me. Calcei os sapatos, sentei-me um instante à beira da cama. Minha avó continuava dormindo. Deveria fugir ou falar com ela? Ora, algumas palavras... Que me custava acordá-la, dizer-lhe adeus?

Ela estava encolhida, pequenina, envolta numa coberta escura. Toquei-lhe no ombro, ela se moveu, descobriu-se. Quis levantar-se e eu procurei detê-la. Não era preciso, eu tomaria um café na estação. Esquecera de falar com um colega e, se fosse esperar, talvez não houvesse mais tempo. Ainda assim, levantou-se. Ralhava comigo por não tê-la despertado antes, acusava-se de ter dormido muito. Tentava sorrir.

Não sei por que motivo, retardei ainda a partida. Andei pela casa, cabisbaixo, à procura de objetos imaginários enquanto ela me seguia, abrigada em sua coberta. Eu sabia que desejava beijar-me, prender-se a mim, e à simples idéia desses gestos, estremeci. Como seria se, na hora do adeus, ela chorasse?

Enfim, beijei sua mão, bati-lhe de leve na cabeça. Creio mesmo que lhe surpreendi um gesto de aproximação, decerto na esperança de um abraço final. Esquivei-me, apanhei a maleta e, ao fazê-lo, lancei um rápido olhar para a mesa (cuidadosamente posta para dois, com a humilde louça dos grandes dias e a velha toalha branca, bordada, que só se usava em nossos aniversários.

Osman Lins nasceu a 5 de julho de 1924, em Vitória de Santo Antão (PE). Publicou seu primeiro romance, O visitante, em 1955 e, em 1957, Os gestos. Em 1960, concluiu o curso de dramaturgia na Escola de Belas Artes, da Universidade do Recife. Estreou peça de sua autoria, Lisbela e o prisioneiro, no Rio de Janeiro, em 1961. No mesmo ano, editou o romance O Fiel e a Pedra. Em seguida viajou para a Europa como bolsista da Alliance Française. Em 1962, transferiu-se para São Paulo. Publicou, em 1966, Nove, novena, narrativas e Um mundo estagnado, ensaios sobre livros didáticos de português e a peça Guerra do "Cansa-Cavalo" . Em 1970, ingressou no ensino superior como professor de Literatura Brasileira. Em 1973, publica Avalovara, romance, traduzido posteriormente para o espanhol, francês e alemão. Obtém o grau de Doutor em Letras pela Faculdade de Filosofia e Letras de Marília (1973), com a tese "Lima Barreto e o espaço romanesco", publicada em 1975. Foi professor titular de Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Marília (SP) até 1976, quando deixa o ensino universitário dedicando-se exclusivamente à atividade de escritor. Obras do autor: O visitante (1955) romance, Os gestos (1957) contos, O fiel e a pedra (1961) romance, Marinheiro de primeira viagem (1963) notas de viagem, Lisbela e o prisioneiro (1964) teatro, Nove, Novena (1966) narrativas, Um mundo estagnado (1966) ensaio, "Capa Verde" e o Natal (1967) teatro infantil, Guerra do "Cansa Cavalo" (1967) teatro, Guerra sem testemunhas: o escritor, sua condição e a realidade social (1969) ensaio, Avalovara (1973) romance, Santa, automóvel e soldado (1975) teatro, Lima Barreto e o espaço romanesco (1976) ensaio e A Rainha dos Cárceres da Grécia (1976), romance.

Seu conto "A ilha no espaço" foi adaptado e apresentada no programa Caso Especial da TV Globo.

A partir de 1976, começa a colaborar ativamente na imprensa e a escrever para televisão, além de redigir ensaios em colaboração com Julieta de Godoy Ladeira: Do Ideal e da Glória e Problemas Inculturais Brasileiros. Recebeu os prêmios literários: "Fábio Prado" (SP),1955, "Monteiro Lobato" (SP), "Coelho Neto", da Academia Brasileira de Letras (1955), "Vânia Souto Carvalho" (Recife), 1957, "Nacional de Comédia", "Mário Sette" (Recife), 1962 e "José de Anchieta" (SP), 1965. Faleceu em São Paulo a 8 de julho de 1978.

VESTIDA DE PRETO, de Mário de Andrade

Tanto andam agora preocupados em definir o conto que não sei bem se o que vou contar é conto ou não, sei que é verdade. Minha impressão é que tenho amado sempre. Depois do amor grande por mim que brotou aos três anos e durou até os cinco mais ou menos, logo o meu amor se dirigiu para uma espécie de prima longínqua que freqüentava a nossa casa. Como se vê, jamais sofri do complexo de Édipo, graças a Deus. Toda a minha vida, mamãe e eu fomos muito bons amigos, sem nada de amores perigosos.

Maria foi o meu primeiro amor. Não havia nada entre nós, está claro, ela como eu nos seus cinco anos apenas, mas não sei que divina melancolia nos tomava, se acaso nos achávamos juntos e sozinhos. A voz baixava de tom, e principalmente as palavras é que se tornaram mais raras, muito simples. Uma ternura imensa, firme e reconhecida, não exigindo nenhum gesto. Aquilo aliás durava pouco, porque logo a criançada chegava. Mas tínhamos então uma raiva impensada dos manos e dos primos, sempre exteriorizada em palavras ou modos de irritação. Amor apenas sensível naquele instinto de estarmos sós.

E só mais tarde, já pelos nove ou dez anos, é que lhe dei nosso único beijo, foi maravilhoso. Se a criançada estava toda

junta naquela casa sem jardim da Tia Velha, era fatal brincarmos de família, porque assim Tia Velha evitava correrias e estragos. Brinquedo aliás que nos interessava muito, apesar da idade já avançada para ele. Mas é que na casa de Tia Velha tinha muitos quartos, de forma que casávamos rápido, só de boca, sem nenhum daqueles cerimoniais de mentira que dantes nos interessavam tanto, e cada par fugia logo, indo viver no seu quarto. Os melhores interesses infantis do brinquedo, fazer comidinha, amamentar bonecas, pagar visitas, isso nós deixávamos com generosidade apressada para os menores. Íamos para os nossos quartos e ficávamos vivendo lá. O que os outros faziam, não sei. Eu, isto é, eu com Maria, não fazíamos nada. Eu adorava principalmente era ficar assim sozinho com ela, sabendo várias safadezas já mas sem tentar nenhuma. Havia, não havia não, mas sempre como que havia um perigo iminente que ajuntava o seu crime à intimidade daquela solidão. Era suavíssimo e assustador.

Maria fez uns gestos, disse algumas palavras. Era o aniversário de alguém, não lembro mais, o quarto em que estávamos fora convertido em dispensa, cômodas e armários cheios de pratos de doces para o chá que vinha logo. Mas quem se lembrasse de tocar naqueles doces, no geral secos, fáceis de disfarçar qualquer roubo! estávamos longe disso. O que nos deliciava era mesmo a grave solidão.

Nisto os olhos de Maria caíram sobre o travesseiro sem fronha que estava sobre uma cesta de roupa suja a um canto. E a minha esposa teve uma invenção que eu também estava longe de não ter. Desde a entrada no quarto eu concentrara todos os meus instintos na existência daquele travesseiro, o travesseiro cresceu como um danado dentro de mim e virou crime. Crime não, "pecado" que é como se dizia naqueles tempos cristãos... E por causa disso eu conseguira não pensar até ali, no travesseiro.

— Já é tarde, vamos dormir — Maria falou.

Fiquei estarrecido, olhando com uns fabulosos olhos de imploração para o travesseiro quentinho, mas quem disse travesseiro ter piedade de mim. Maria, essa estava simples demais para me olhar e surpreender os efeitos do convite: olhou em torno e afinal, vasculhando na cesta de roupa suja, tirou de lá uma toalha de banho muito quentinha que estendeu sobre o assoalho. Pôs o travesseiro no lugar da cabeceira, cerrou as venezianas da janela sobre a tarde, e depois deitou, arranjando o vestido pra não amassar.

Mas eu é que nunca havia de pôr a cabeça naquele restico de travesseiro que ela deixou pra mim, me dando as costas. Restico sim, apesar do travesseiro ser grande. Mas imaginem numa cabeleira explodindo, os famosos cabelos assustados de Maria, citação obrigatória e orgulho de família. Tia Velha, muito ciumenta por causa duma neta preferida que ela imaginava deusa, era a única a pôr defeito nos cabelos de Maria.

— Você não vem dormir também? — ela perguntou com fragor, interrompendo o meu silêncio trágico.

— Já vou — que eu disse — estou conferindo a conta do armazém.

Fui me aproximando incomparavelmente sem vontade, sentei no chão tomando cuidado em sequer tocar no vestido, puxa! também o vestido dela estava completamente assustado, que dificuldade! Pus a cara no travesseiro sem a menor intenção de.

Mas os cabelos de Maria, assim era pior, tocavam de leve no meu nariz, eu podia espirrar, marido não espirra. Senti, pressenti que espirrar seria muito ridículo, havia de ser um espirrão enorme, os outros escutavam lá da sala-de-visita longínqua, e daí é que o nosso segredo se desvendava todinho.

Fui afundando o rosto naquela cabeleira e veio a noite, senão os cabelos (mas juro que eram cabelos macios) me machucavam os olhos. Depois que não vi nada, ficou fácil continuar enterrando a cara, a cara toda, a alma, a vida, naqueles cabelos, que maravilha! até que o meu nariz tocou num pescocinho roliço. Então fui empurrando os meus lábios, tinha uns bonitos lábios grossos, nem eram lábios, era beiço, minha boca foi ficando encanudada até que encontrou o pescocinho roliço. Será que ela dorme de verdade?... Me ajeitei muito sem-cerimônia, mulherzinha! e então beijei. Quem falou que este mundo é ruim! só recordar... Beijei Maria, rapazes! eu nem sabia beijar, está claro, só beijava mamães, boca fazendo bulha, contato sem nenhum calor sensual.

Maria, só um leve entregar-se, uma levíssima inclinação pra trás me fez sentir que Maria estava comigo em nosso amor. Nada mais houve. Não, nada mais houve. Durasse aquilo uma noite grande, nada mais haveria porque é engraçado como a perfeição fixa a gente. O beijo me deixara completamente puro, sem minhas curiosidades nem desejos de mais nada, adeus pecado e adeus escuridão! Se fizera em meu cérebro uma enorme luz branca, meu ombro bem que doía no chão, mas a luz era violentamente branca, proibindo pensar, imaginar, agir. Beijando.

Tia Velha, nunca eu gostei de Tia Velha, abriu a porta com um espanto barulhento. Percebi muito bem, pelos olhos dela, que o que estávamos fazendo era completamente feio.

— Levantem!... Vou contar pra sua mãe, Juca!

Mas eu, levantando com a lealdade mais cínica deste mundo!

— Tia Velha me dá um doce?

Tia Velha – eu sempre detestei Tia Velha, o tipo da bondade Berlitz, injusta, sem método — pois Tia Velha teve a malvadeza de escorrer por mim todo um olhar que só alguns anos mais tarde pude compreender inteiramente. Naquele instante, eu estava só pensando em disfarçar, fingindo uma inocência que poucos segundos antes era real.

— Vamos! saiam do quarto!

Fomos saindo muito mudos, numa bruta vergonha, acompanhados de Tia Velha e os pratos que ela viera buscar para a mesa de chá.

O estranhíssimo é que principiou, nesse acordar à força provocado por Tia Velha, uma indiferença inexplicável de Maria por mim. Mais que indiferença, frieza viva, quase antipatia. Nesse mesmo chá inda achou jeito de me maltratar diante de todos, fiquei zonzo.

Dez, treze, quatorze anos... Quinze anos. Foi então o insulto que julguei definitivo. Eu estava fazendo um ginásio sem gosto, muito arrastado, cheio de revoltas íntimas, detestava estudar. Só no desenho e nas composições de português tirava as melhores notas. Vivia nisso: dez nestas matérias, um, zero em todas as outras. E todos os anos era aquela já esperada fatalidade: uma, duas bombas (principalmente em matemáticas) que eu tomava apenas o cuidado de apagar nos exames de segunda época.

Gostar, eu continuava gostando muito de Maria, cada vez mais, conscientemente agora. Mas tinha uma quase certeza que ela não podia gostar de mim, quem gostava de mim!... Minha mãe... Sim, mamãe gostava de mim, mas naquele tempo eu chegava a imaginar que era só por obrigação. Papai, esse foi sempre insuportável, incapaz de uma carícia. Como incapaz de uma repreensão também. Nem mesmo comigo, a tara da família, ele jamais ralhou. Mas isto é caso pra outro dia. O certo é que, decidido em minha desesperada revolta contra o mundo que me rodeava, sentindo um orgulho de mim que jamais buscava esclarecer, tão absurdo o pressentia, o certo é que eu já principiava me aceitando por um caso perdido, que não adiantava melhorar.

Esse ano até fora uma bomba só. Eu entrava da aula do professor particular, quando enxerguei a saparia na varanda e Maria entre os demais. Passei bastante encabulado, todos em férias, e os livros que eu trazia na mão me denunciando, lembrando a bomba, me achincalhando em minha imperfeição de caso perdido. Esbocei um gesto falsamente alegre de bom-dia, e fui no escritório pegado, esconder os livros na escrivaninha de meu pai. Ia já voltar para o meio de todos, mas Matilde, a peste, a implicante, a deusa estúpida que Tia Velha perdia com suas preferências:

— Passou seu namorado, Maria.

— Não caso com bombeado — ela respondeu imediato, numa voz tão feia, mas tão feia, que parei estarrecido. Era a decisão final, não tinha dúvida nenhuma. Maria não gostava mais de mim. Bobo de assim parado, sem fazer um gesto, mal podendo respirar.

Aliás um caso recente vinha se ajuntar ao insulto pra decidir de minha sorte. Nós seríamos até pobretões, comparando com a família de Maria, gente que até viajava na Europa. Pois pouco antes, os pais tinham feito um papel bem indecente, se opondo ao casamento duma filha com um rapaz diz-que pobre mas ótimo. Houvera um rompimento de amizade, mal-estar na parentagem toda, o caso virara escândalo mastigado e remastigado nos comentários de hora de jantar. Tudo por causa do dinheiro.

Se eu insistisse em gostar de Maria, casar não casava mesmo, que a família dela não havia de me querer. Me passou pela cabeça comprar um bilhete de loteria. "Não caso com bombeado"... Fui abraçando os livros de mansinho, acariciei-os junto ao rosto, pousei a minha boca numa capa, suja de pó suado, retirei a boca sem desgosto. Naquele instante eu não sabia, hoje sei: era o segundo beijo que eu dava em Maria, último beijo, beijo de despedida, que o cheiro desagradável do papelão confirmou. Estava tudo acabado entre nós dois.

Não tive mais coragem pra voltar à varanda e conversar com... os outros. Estava com uma raiva desprezadora de todos, principalmente de Matilde. Não, me parecia que já não tinha raiva de ninguém, não valia a pena, nem de Matilde, o insulto partira dela, fora por causa dela, mas eu não tinha raiva dela não, só tristeza, só vazio, não sei... creio que uma vontade de ajoelhar. Ajoelhar sem mais nada, ajoelhar ali junto da escrivaninha e ficar assim, ajoelhar. Afinal das contas eu era um perdido mesmo, Maria tinha razão, tinha razão, tinha razão, que tristeza!

Foi o fim? Agora é que vem o mais esquisito de tudo, ajuntando anos pulados. Acho que até não consigo contar bem claro tudo o que sucedeu. Vamos por ordem: Pus tal firmeza em não amar Maria mais, que nem meus pensamentos me traíram. De resto a mocidade raiava e eu tinha tudo a aprender. Foi espantoso o que se passou em mim. Sem abandonar o meu jeito de "perdido", o cultivando mesmo, ginásio acabado, eu principiara gostando de estudar. Me batera, súbito, aquela vontade irritada de saber, me tornara estudiosíssimo. Era mesmo uma impaciência raivosa, que me fazia devorar bibliotecas, sem nenhuma orientação. Mas brilhava, fazia conferências empoladas em sociedadinhas de rapazes, tinha idéias que assustavam todo o mundo. E todos principiavam maldando que eu era muito inteligente mas perigoso.

Maria, por seu lado, parecia uma doida. Namorava com Deus e todo o mundo, aos vinte anos fica noiva de um rapaz bastante rico, noivado que durou três meses e se desfez de repente, pra dias depois ela ficar noiva de outro, um diplomata riquíssimo, casar em duas semanas com alegria desmedida, rindo muito no altar e partir em busca duma embaixada européia com o secretário chique seu marido.

Às vezes meio tonto com estes acontecimentos fortes, acompanhados meio de longe, eu me recordava do passado, mas era só pra sorrir da nossa infantilidade e devorar numa tarde um livro incompreensível de filosofia. De mais a mais, havia Rose pra de-noite, e uma linda namoradinha oficial, a Violeta. Meus amigos me chamavam de "jardineiro", e eu punha na coincidência daqueles duas flores uma força de destinação fatalizada. Tamanha mesmo que topando numa livraria com The Gardener de Tagore, comprei o livro e comecei estudando o inglês com loucura. Mário de Andrade conta num dos seus livros que estudou o alemão por causa dum emboaba tordilha... eu também: meu inglês nasceu duma Violeta e duma Rose.

Não, nasceu de Maria. Foi quando uns cinco anos depois, Maria estava pra voltar pela primeira vez ao Brasil, a mãe dela, queixosa de tamanha ausência, conversando com mamãe na minha frente, arrancou naquele seu jeito de gorda desabrida:

— Pois é, Maria gostou tanto de você, você não quis!... e agora ela vive longe de nós.

Pela terceira vez fiquei estarrecido neste conto. Percebi tudo num tiro de canhão. Percebi ela doidejando, noivando com um, casando com outro, se atordoando com dinheiro e brilho. Percebi que eu fora uma besta, sim agora que principiava sendo alguém, estudando por mim fora dos ginásios, vibrando em versos que muita gente já considerava. E percebi horrorizado, que Rose! nem Violeta, nem nada! era Maria que eu amava como louco! Maria é que amara sempre, como louco: ôh como eu vinha sofrendo a vida inteira, desgraçadíssimo, aprendendo a vencer só de raiva, me impondo ao mundo por despique, me superiorizando em mim só por vingança de desesperado. Como é que eu pudera me imaginar feliz, pior: ser feliz, sofrendo daquele jeito! Eu? eu não! era Maria, era exclusivamente Maria toda aquela superioridade que estava aparecendo em mim... E tudo aquilo era uma desgraça muito cachorra mesma. Pois não andavam falando muito de Maria? Contavam que pintava o sete, ficara célebre com as extravagâncias e aventuras. Estivera pouco antes às portas do divórcio, com um caso escandaloso por demais, com um pintor de nomeada que só pintava efeitos de luz. Maria falada, Maria bêbeda, Maria passada de mão em mão, Maria pintada nua...

Se dera como que uma transposição de destinos... E tive um pensamento que ao menos me salvou no instante: se o que tinha de útil agora em mim era Maria, se ela estava se transformando no Juca imperfeitíssimo que eu fora, se eu era apenas uma projeção dela, como ela agora apenas uma projeção de mim, se nos trocáramos por um estúpido engano de amor: mas ao menos que eu ficasse bem ruim, mas bem ruim mesmo outra vez pra me igualar a ela de novo. Foi a razão da briga com Violeta, impiedosa, e a farra dessa noite – bebedeira tamanha que acabei ficando desacordado, numa série de vertigens, com médico, escândalo, e choro largo de mamãe com minha irmã.

Bom, tinha que visitar Maria, está claro, éramos "gente grande" agora. Quando soube que ela devia ir a um banquete, pensei comigo: "ótimo, vou hoje logo depois de jantar, não encontro ela e deixo o cartão". Mas fui cedo demais. Cheguei na casa dos pais dela, seriam nove horas, todos aqueles requififes de gente ricaça, criado que leva cartão numa salva de prata etc. Os da casa estavam ainda jantando. Me introduziram na saletinha da esquerda, uma espécie de luís-quinze muito sem-vergonha, dourado por inteiro, dando pro hol central. Que fizesse o favor de esperar, já vinham.

Contemplando a gravura cor-de-rosa, senti de supetão que tinha mais alguém na saleta, virei. Maria estava na porta, olhando pra mim, se rindo, toda vestida de preto. Olhem: eu sei que a gente exagera em amor, não insisto. Mas se eu já tive a sensação da vontade de Deus, foi ver Maria assim, toda de preto vestida, fantasticamente mulher. Meu corpo soluçou todinho e tornei a ficar estarrecido.

— Ao menos diga boa-noite, Juca...

"Boa-noite, Maria, eu vou-me embora"... meu desejo era fugir, era ficar e ela ficar mas, sim, sem que nos tocássemos sequer. Eu sei, eu juro que sei que ela estava se entregando a mim, me prometendo tudo, me cedendo tudo quanto eu queria, naquele se deixar olhar, sorrindo leve, mãos unidas caindo na frente do corpo, toda vestida de preto. Um segundo, me passou na visão devorá-la numa hora estilhaçada de quarto de hotel, foi horrível. Porém, não havia dúvida: Maria despertava em mim os instintos da perfeição. Balbuciei afinal um boa-noite muito indiferente, e as vozes amontoadas vinham do hol, dos outros que chegavam.

Foi este o primeiro dos quatro amores eternos que fazem de minha vida uma grave condensação interior. Sou falsamente um solitário. Quatro amores me acompanham, cuidam de mim, vêm conversar comigo. Nunca mais vi Maria, que ficou pelas Europas, divorciada afinal, hoje dizem que vivendo com um austríaco interessado em feiras internacionais. Um aventureiro qualquer. Mas dentro de mim, Maria... bom: acho que vou falar banalidade.

Mário de Andrade (1893-1945), nasceu em São Paulo, mostrando desde cedo inclinação pela música e literatura. Seu interesse pelas artes levou-o a realizar em São Paulo, de parceria com Oswald de Andrade, a Semana de Arte Moderna, que rasgou novas perspectivas para a cultura brasileira.Sua obra, essencialmente brasileira, reflete um nacionalismo humanista, que nada tem de místico e abstrato. "Macunaíma", baseada em temas folclóricos é, geralmente, considerada a sua obra-prima.

SENHORA, DE JOSÉ DE ALENCAR

Análise

Senhora foi publicado em 1875. O romance pode ser considerado uma das obras-primas de seu autor e uma das principais da

literatura brasileira. Uma vez que trata do tema do casamento burguês, ou seja, baseado no interesse financeiro, pode ser considerada precursora do Realismo ou pré-realista.  

Alencar classifica a obra dentro de seus “perfis de mulher”, já que concentra na mulher o papel mais importante dentro da sociedade de seu tempo. Aurélia é a protagonista do romance, uma jovem mulher dividida entre o amor e o ódio, o desejo e o desprezo pelo homem que ama. Essa personalidade dividida apresenta um desvio psíquico ocasionado a partir do rompimento do noivo, Fernando Seixas, e que causou um certo caso de esquizofrenia na personagem.

A personagem Aurélia Camargo é idealizada como uma rainha, como uma heroína romântica, pelo narrador. De "régia fronte, coroada de diadema de cabelos castanhos, de formosas espáduas", essa personagem, no entanto, é ao mesmo tempo "fada encantada" e "ninfa das chamas, lasciva salamandra". Ao estereótipo da "mulher-anjo" romântica, o narrador acrescenta, assim, um elemento demoníaco, elemento que, em vez de explicitar, deixa sugerido, "sob as pregas do roupão de cambraia que a luz do sol não ilumina", e também "sob a voz bramida, o gesto sublime, escondendo o frêmito que lembrava silvo de serpente" ou quando "o braço mimoso e torneado faz um movimento hirto para vibrar o supremo desprezo". Tal maneira de caracterizar a personagem - pelos elementos exteriores - é típica do narrador observador. Tal caracterização, por sua vez, humaniza a personagem, afastando-a do maniqueísmo romântico e acrescentando-lhe traços realistas.

O conflito entre os protagonistas gera momentos de grande emoção e sofrimento. É desse embate entre o desejo de vingança e o desejo de amar em plenitude que nasce a ação psíquica que se transforma em enredo. Se a temática e o psiquismo da obra representam antecipações realistas, ambos fortemente consolidados pela evidente critica de uma sociedade que valoriza mais a aparência e o dinheiro que os sentimentos humanos, a idealização das personagens reflete o universo romântico presente na obra. O desenlace configura, por si só, a vitória do Romantismo em Alencar sobre a possibilidade realista.

Para melhor entendermos a obra, devemos perceber as interações do artista que a criou. Alencar acreditava sinceramente na vitória do homem na reforma de si mesmo e da sociedade. Não havia nele ainda o traço de pessimismo profundo e de ceticismo que tantas páginas maravilhosas fizeram nascer em Machado de Assis. É dessa crença nos sentimentos humanitários que bruta o Romantismo alencariano, do qual bruta a força vital de suas personagens. Divididos entre o ódio e o perdão, a necessidade financeira e os apelos do coração, vencem sempre os segundos. O mesmo caso pode ser observado na construção do romance Lucíola, mas com um final trágico. Em ambos os romances a premente necessidade do dinheiro, veículo central de uma sociedade aristocrática e burguesa, obriga personagens a trocarem seus sentimentos por dinheiro. O grande vilão, o antagonista, é sempre a sociedade e seus hábitos doentios e seus costumes imorais. Se é essa a pretensão do autor, o seu recado para a sociedade de seu tempo, devemos classificar Senhora com um romance de costumes. Se o cenário das personagens é o Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX, podemos também considerá-lo como um romance urbano com traços de psicologismo e critica social.

Estrutura da obra

Senhora é um romance dividido em quatro partes e não obedece uma ordem cronológica, isto é, a primeira parte (O Preço), narra os episódios atuais, enquanto que a segunda parte (Quitação), fala-nos do passado de Aurélia, seguem os capítulos: Posse e Resgate. A narrativa é feita por um narrador que parece penetrar na alma de Aurélia Camargo para transmitir suas confidências mais intimas.

Esses títulos contrariam ostensivamente o espírito de uma história de amor, como efetivamente é o romance Senhora. Mas, como se trata de um amor contrariado pelos hábitos sociais, fica clara a idéia de que os títulos foram assim escolhidos para hipertrofiar a metáfora contida no livro. Eles explicitam, em tom caricatural e hiperbólico, a idéia de que a compra efetuada por Aurélia é uma metáfora do casamento por interesse, muito corrente na época, mas sempre disfarçado por elegantes e frágeis encenações sociais.

Enredo

Na primeira parte, O Preço,  Aurélia Camargo dá a conhecer para o leitor: jovem de 18 anos, linda e debutando nos bailes. A principal ação desta primeira parte do romance começa quando Aurélia pede ao tio que ofereça ao jovem Fernando Seixas, recém-chegado na corte após uma longa viagem ao Nordeste, a sua mão em casamento. Entretanto, uma aura de mistério cobre o pedido, pois Fernando não deve saber a identidade da pretendente e além disso a quantia do dote proposto deve ser irrecusável: cem contos de réis ou mais, se necessário.

A habilidade mercantil de Lemos, que chega a ser caricata, e a péssima situação financeira de Fernando - moço elegante mas pobre, que gastou o espólio deixado pelo pai e que precisava restituí-lo à família para a compra do enxoval da irmã - fazem com que dêem certo os planos de Aurélia.

Na noite de núpcias, Fernando se surpreende ao ver nas mãos de Aurélia, um recibo assinado por ele aceitando um adiantamento do dote. Aurélia se enfurece, acusa-o de mercenário e venal. E ela começa a contar a vida e os motivos que a levaram a comprá-lo.

Na segunda parte, Quitação, conhecemos a vida de ambos os protagonistas. Aqui há um retorno aos acontecimentos em suas vidas, o que explica ao leitor o procedimento cruel de Aurélia em relação a Fernando.

Na terceira parte, Posse, a história retorna ao quarto do casal. Vemos Fernando arrasado de vergonha, mas Aurélia toma o seu silêncio como cinismo. É o início da fase de hipocrisia conjugal.

Na quarta parte, Resgate, temos o desenrolar da trama. Intensificam-se os caprichos e as contradições do comportamento de Aurélia, ora ferina, mordaz, insaciável na sua sede de vingança, ora ciumenta, doce, apaixonada. Intensifica-se também a transformação de Fernando, que não usufrui da riqueza de Aurélia, tornando-se modesto nos trajes, assíduo na repartição onde trabalhava, e assim adquirindo, sem perder a elegância, uma dignidade de caráter que nunca tivera.

No final, Fernando, um ano após o casamento, negocia com Aurélia o seu resgate. Devolve-lhe os vinte contos de réis, que correspondiam ao adiantamento do montante total do dote com o qual possibilitava o casamento da irmã, e mais o cheque que Aurélia lhe dera, de oitenta contos de réis, na noite de núpcias.

Separam-se, então, a esposa traída e o marido comprado, para se reencontrarem os amantes, a última recusa de Seixas sendo debelada quando Aurélia lhe mostra o testamento que fizera, quando casaram, revelando-lhe o seu amor e destinando-lhe toda a sua fortuna.

O enredo deste romance mostra claramente a mistura de elementos romanescos e da realidade. Foco narrativo - O romance é narrado em terceira pessoa por um narrador onisciente, ou seja, que tudo sabe sobre as personagens, penetrando em seus pensamentos e em sua alma. Esse narrador é também intruso, já que interfere em vários momentos, apresentando-se ao leitor. A técnica narrativa empregada por Alencar em Senhora é sem dúvida bem moderna, se tomarmos como base suas obras anteriores, já que o autor utiliza digressões.

Tempo - O tempo é cronológico, tomando como base o século XIX, durante o Segundo Império. Entretanto, não há linearidade, já que a história é contada a partir de flash-back.

Espaço

O espaço central da narrativa é Rio de Janeiro.

Problemática e principais temas

O conflito amoroso entre os protagonistas nasce desse choque entre os sentimentos e o interesse econômico. Aurélia Camargo é uma mulher de personalidade forte, carregada de sentimentalismo romântico. Daí sua contradição, sua personalidade marcada por extremos psíquicos: dá maior valor aos sentimentos, mas vale-se do dinheiro para atingir seu objetivo de obter o grande amor de sua vida, Fernando Seixas. Dessa forma, o dinheiro acaba impondo o valor burguês que lhe era atribuído na sociedade do século XIX. A realização amorosa só se cumpre depois de Aurélia vencer a aparente esquizofrenia que parece conduzi-la á dúvida quanto às intenções de Fernando Seixas. O comportamento esquizóide manifesta-se nas atitudes antitéticas de desejar o amor do marido com todas as suas forças, mas lutar contra o mesmo até suas últimas reservas.

TERRAS DO SEM FIM, DE JORGE AMADO

Introdução

Sangrenta disputa entre duas forças - a família Badaró e o latifundiário Horácio da Silveira - pelas terras de Sequeiro Grande, com

o fim de expandir suas plantações de cacau. Com intrigas políticas, tocaias, adultério e muitas reviravoltas, o romance foi

publicado em 1943. O amor de Jorge Amado à terra do cacau evidencia-se nesta obra que mescla lirismo poético com denúncia

social.

Resumo

"Eu vou contar uma história, uma história de espantar.” É com essa epígrafe, extraída do romanceiro popular, que Jorge Amado

inicia Terras do Sem Fim, concluída durante seu exílio em Montevidéu, em agosto de 1942, e publicada no ano seguinte. O

romance, de proporções épicas, narra a formação da zona cacaueira da Bahia, que abrange a região de Ilhéus e Itabuna, com seus

conflitos e paixões. Centrada nas disputas entre proprietários rurais pelas terras ainda devolutas do sul da Bahia, a obra faz parte

do chamado "ciclo do cacau”, e é uma das mais expressivas do ficcionista baiano. Ao contrário de Gabriela, Cravo e Canela, em

que a crítica social aparece camuflada na crônica de costumes, Amado denuncia claramente aqui o patriarcalismo, o clientelismo e

a violência do sertão, baseado na lei do mais forte e na demonstração do poder, evidenciando com isso, sem tom panfletário, a

injustiça social e a exploração do trabalhador, vítima da ambição dos coronéis sertanejos.

A história tem início com um navio que se aproxima de Ilhéus, trazendo a bordo pessoas ambiciosas e obcecadas com a promessa

de enriquecimento fácil na região, até então improdutiva. Os passageiros da embarcação em breve desbravariam a mata a ferro,

fogo e sangue para cultivar o cacau. Sequeiro Grande, um trecho da mata ainda intacto, passa a ser o alvo da cobiça dos coronéis,

que lutam entre si com todas as armas de que dispõem para conquistá-lo. Advogados eram muito bem-vindos à região. Os

coronéis os contratavam para que redigissem um documento falso ("caxixe”) que atestava a posse de determinado pedaço de terra

até então pertencente a algum pequeno lavrador. Quando impunha alguma resistência à expulsão, o camponês em geral era

perseguido e morto por jagunços tocaiados nas estradas solitárias.

Em Terras do Sem Fim, mais do que em nenhuma outra obra de Amado, percebe-se a pertinência das palavras do escritor Antonio

Carlos Villaça: "O poder descritivo de Jorge Amado penetra fundo na alma da gente. Porque há nele um sentido cósmico. O

romancista tem um amor pegajoso à terra, a uma terra determinada, à terra do cacau. A terra está no centro de sua obra: a terra

com o homem e com o mar”. Com efeito, há aqui uma espécie de humanismo natural, quase telúrico, em que se evidencia a

capacidade do romancista em mesclar o realismo bruto com certo romantismo, de narrar uma história real com lirismo poético ao

mesmo tempo em que expõe seus ideais políticos na busca de soluções para o problema social.

Terras do Sem Fim é o primeiro livro de Jorge Amado que pôde ser vendido livremente, após seis anos de censura, e foi lançado

poucos meses depois de o autor ter sido preso (por três meses) por seu envolvimento com o Partido Comunista Brasileiro e pela

oposição que fazia ao Estado Novo de Getúlio Vargas. A obra obteve grande sucesso; virou peça de teatro, filme, novela de rádio

e de televisão, e quadrinhos. Também foi editada em Portugal e publicada em outras 23 línguas.

A obra é inspirada na vida do pai do autor. Vindo da Paraíba, o pai de Jorge Amado participou das lutas pela conquista e posse das

terras cacaueiras no sul da Bahia, e plantou a fazenda Auricina onde nasceu o escritor. Quando menino, Jorge Amado

testemunhou uma tocaia em que seu pai foi ferido gravemente.

Desde cedo, Jorge Amado se preocupou com os problemas humanos dos trabalhadores das roças de cacau, posteriormente,

convivendo com o povo baiano, em Salvador, testemunhou as injustiças e dramas originados do preconceito social e racial.

Em Terra do Sem Fim, sua melhor obra do ciclo do cacau, apresenta-nos um legítimo bangue-bangue à brasileira. Dois poderosos

proprietários rurais disputam a última reserva de mata nativa onde estão as terras mais férteis para o plantio de cacau. Os Badarós

e Horácio Silveira disputam na Justiça, na política e nas armas o domínio da região de Tabocas, atual Itabuna.

Em meio à violência dos confrontos abertos das tocaias e das disputas judiciais, também os casos amorosos continuaram causando

escândalos, dissensões e mortes. Ester, mulher de Horácio, encontra nos braços de Virgílio o amor delicado e cavalheiresco que

seu marido nunca lhe dera.

Margot, amante de Virgílio, encontra em Juca Badaró um consolo para o amor traído. Horácio, depois de mandar matar Juca por

causa dos negócios e de conseguir a posse e o domínio da mata de Sequeira Grande, manda matar Virgílio seu aliado, amigo e

advogado para lavar a honra de marido traído. Virgílio, mesmo sabendo do perigo, escolhe morrer para ficar perto de Ester.

E os enormes cocos de cacau que as lavouras do Sequeiro Grande produzem, um ano antes do normal, são explicados pelo adubo

extra de sangue humano ali derramado em abundância como vaticinava o feiticeiro Jeremias.

Terras do Sem Fim é o segundo livro do ciclo do cacau do escritor baiano Jorge Amado (1912-2001), que compreende quase meio

século de escrita sobre o tema do cacau. Nos romances Cacau, Terras do Sem Fim e São Jorge dos Ilhéus, as relações sociais no

universo cacaueiro, com os donos da terra, os coronéis e as suas esposas e amantes, os trabalhadores, as meretrizes, os conflitos e

tocaias ganham um caráter épico e histórico, ultrapassando os limites do realismo socialista.