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Lenda do Pai Quati Existe uma importante incidência da cultura negra na literatura rio-grandense, e este tema provém, em última hipótese, da abundância do material folclórico que as populações africanas herdaram de seus antepassados. No tempo da escravidão, no Rio Grande do Sul, era comum a fuga de escravos, e os que fugiam, arriscando a própria vida, ficaram conhecidos como “caiambolas”. Conta-se, que durante este período, em uma grande fazenda nos Banhados, município de Santa Maria, começaram misteriosamente a desaparecer coisas. Entretanto, sempre ficava um presente em seu lugar. Algo bem rústico ou artesanal era deixado como troca como: balaios, esteiras, potes de barro, enfeites de pena, etc. Nestas circunstâncias, o que realmente ocorria era uma troca e não um roubo. Esta diferenciada atitude, despertou a curiosidade do povo. -“É incrível!”, diziam todos. O imaginário popular passou então a fantasiar em torno do caso. E tal mistério logo foi associado com o demônio. A princípio, o povo não tocava nos objetos, temendo serem artes do diabo ou por achar que estivessem enfeitiçados. Mas, como o passar do tempo, verificando-se que as esteiras e os balaios não faziam mal a ninguém, muito pelo contrário, eram muito úteis, a prevenção desapareceu, chegando ao ponto de algumas pessoas deixarem à noite, em frente de suas casas, facas, tesouras, cordas, na esperança de que fossem trocadas por uma esteira ou balaio. Durante muitos anos estas transações ocorreram com muita naturalidade, pois já haviam perdido o cunho sensacionalista. Em certa ocasião, andando a melar escravos na mata virgem, que no centro de uma floresta, próxima de Banhados, elevava-se espiralando uma tênue nuvem de fumaça branca.

Lenda Do Pai Quati

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Lenda do Pai Quati

Lenda do Pai Quati

Existe uma importante incidncia da cultura negra na literatura rio-grandense, e este tema provm, em ltima hiptese, da abundncia do material folclrico que as populaes africanas herdaram de seus antepassados.

No tempo da escravido, no Rio Grande do Sul, era comum a fuga de escravos, e os que fugiam, arriscando a prpria vida, ficaram conhecidos como caiambolas.

Conta-se, que durante este perodo, em uma grande fazenda nos Banhados, municpio de Santa Maria, comearam misteriosamente a desaparecer coisas. Entretanto, sempre ficava um presente em seu lugar. Algo bem rstico ou artesanal era deixado como troca como: balaios, esteiras, potes de barro, enfeites de pena, etc. Nestas circunstncias, o que realmente ocorria era uma troca e no um roubo. Esta diferenciada atitude, despertou a curiosidade do povo.

- incrvel!, diziam todos.

O imaginrio popular passou ento a fantasiar em torno do caso. E tal mistrio logo foi associado com o demnio. A princpio, o povo no tocava nos objetos, temendo serem artes do diabo ou por achar que estivessem enfeitiados. Mas, como o passar do tempo, verificando-se que as esteiras e os balaios no faziam mal a ningum, muito pelo contrrio, eram muito teis, a preveno desapareceu, chegando ao ponto de algumas pessoas deixarem noite, em frente de suas casas, facas, tesouras, cordas, na esperana de que fossem trocadas por uma esteira ou balaio. Durante muitos anos estas transaes ocorreram com muita naturalidade, pois j haviam perdido o cunho sensacionalista.

Em certa ocasio, andando a melar escravos na mata virgem, que no centro de uma floresta, prxima de Banhados, elevava-se espiralando uma tnue nuvem de fumaa branca. Curioso e procurando desvendar o enigma, um preto galgou a copa de uma rvore gigantesca e lanando seu olhar em direo de onde saa a tal fumaa, descobriu uma clareira em meio a mata espessa, em a qual, um negro se entretinha a preparar uma carne nas brasas.

Descendo, comunicou aos companheiros a descoberta. Foi ento que resolveram capturar o negro, que logicamente, acreditavam fugido. Armados at os dentes, fizeram o cerco ao desconhecido e, avanando cautelosamente, caram sobre ele, subjugando-o, apesar da resistncia oposta pela vtima.

Era um negro de propores avantajadas e de aspecto medonho, em razo do cabelo emaranhado e plo irsuto que lhe cobria o rosto, onde os olhos cintilavam como brasas. Cobria-lhe o peito e as costas uma couraa de pele de quati costurada com cip e, presa aos quadris, uma espcie de tanga de pele do mesmo animal.

Levado at a fazenda, foi chamado de Pai Quati em razo de apresentar to estranha indumentria. Entretanto, nada mais foi possvel saber dele, pois no compreendia a lngua portuguesa.

Foi ento chamados alguns escravos que haviam nascido na frica, para que pudessem compreender o que Pai Quati tentava dizer. Fianalmente o contato foi estabelecido e descobriu-se que o estranho era de Moambique. Explicou-se deste modo, o mistrio das esteiras e dos balaios.

O caso era o seguinte:

Tendo o negro chegado ao Rio Pardo, em uma leva que seria vendida em um leilo, conseguiu ele evadir-se e, atravessando rios, precipcios e banhados, lutando com feras e as intempries, alcanou a salvo Banhados, onde, dentro da mata virgem, armou sua choupana e vivia recluso.

Como era um homem de boa ndole e muito honesto, no queria se apropriar dos utenslios de que precisava, nem da carne que comia quando no conseguia caa. Assim, perito em manufatura de cestos e esteiras, meio de vida que o sustentava em sua terra, trabalhava, durante o dia, arduamente na fabricao de tais objetos, para, na calada do noite, misteriosamente, troc-los por tudo aquilo que achasse mo e que pudesse ser til.

No demorou muito para que a comovente histria do Pai Quati, correndo de boca em boca, enchesse a redondeza. Logo, todos passaram a admir-lo. Uma aurola glorificadora circundou sua fonte negra, compensando-lhe os dias de amargura. Como era um homem livre, foi contratado para trabalhar como peo em uma fazenda. Entretanto, quando a saudade apertava, abandonava tudo e voltava a viver no mato, caando quatis.

Morreu de velho, passando quase toda sua existncia solitrio, mas acalentado pelo seio da floresta.

O negro marcou e marca presena em nossa histria, religio, geografia, lngua, artes, esporte e poltica. Braos bravios de ancestrais negros lutaram em guerras que no eram suas, saindo da clandestinidade para tornarem-se uma presena consciente e smbolo de orgulho e esperana de sua raa. Sua contribuio para construo de um Rio Grande do Sul forte e livre deve ser sempre relembrada e agradecida por todos ns.