Upload
ngodien
View
220
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
Luís Filipe Castro Mendes
Lendasda Índia
LENDAS DA ÍNDIA
Luís Filipe Castro Mendes
LENDAS DA ÍNDIA
PUBLICAÇÕES DOM QUIXOTE
LISBOA
2011
Publicações Dom Quixote[Uma editora do Grupo LeYa]Rua Cidade de Córdova, n.° 22610-038 Alfragide • Portugal
Reservados todos os direitosde acordo com a legislação em vigor
© 2011, Luís Filipe Castro Mendes e Publicações DomQuixoteEdição: Maria da Piedade Ferreira
1.a edição: Junho de 2011Paginação: José Campos de Carvalho
Revisão: Ana Lúcia Parga
ISBN: 9789722047685
www.leya.com/www.dquixote.pt
Nenhuma cousa desta vida humana he tão aproueitiuel aos viuentesque lembrança e memoria dos bens e males passados
GASPAR CORREIA, Aos Senhores Letores, in Lendas da Índia
9
APRESENTAÇÃO
Octavio Paz, sabedor fino e profundo das coisas da Índia, definiu oseu livroVislumbres de la India: Vislumbrar: atisbar, columbrar, distinguirapenas, entrever. Vislumbres: realidades percibidas entre la luz y la sombra.
É uma ousadia escrever do que mal entrevemos? Mas não será sem-pre uma ousadia impensável o acto de escrever?
Um poeta de língua telugu (aqui convenientemente traduzido parainglês) não teve dúvida em responder:
Blank white paperis more importantthan what I write now.My poetryis in the white spaces between the words.
(Nara, pseudónimo de Velcheru Narayana Rao, nascido em 1932,autor deWhen God is a Customer, publicado em 1994)
Mas sem pretender a plenitude em branco do papel (ou da tela docomputador) que la blancheur défend, como igualmente dizia Mallar-mé, sente quem aqui escreve (e sentirá quem lê?) a necessidade depreencher uma infinidade de espaços brancos entre as suas expe-riências e as suas palavras. Por isso não teremos aqui vislumbres,como na inteligência poética de Paz, mas tão-só lendas: lembrança ememória dos bens e males passados.
LENDAS DA ÍNDIA
13
LENDO TRADUÇÕES DE POEMAS ANTIGOS(traduções de poemas sânscritos)
Que ficará das palavrasque tantos escreveram sobre a terra?
Às vezes, num velho mosteiro, aparece um rolomanuscrito e os poemas sânscritos são tão vivos, maliciosos,e ao mesmo tempo tão obedientes às fórmulas e às metáforasconsagradas,como os poemas helenísticos da Antologia Palatina.Um mesmo espírito liga esses gregos romanizadosaos hindus decadentes e fesceninos que tais versos escreveramno oitavo século já da nossa era.
Os corpos reinam: próximos, confundem-senuma aproximação eterna de tão efémerae assumidamente mortal. Eram assim os deuses, dizes?Algum dia saberemos?
14
CALICUTE: AQUI DESEMBARCOU VASCO DA GAMA
Depois de cruzarmos rios e passarmos outras praias,mais ao norte de Calicute,mostraram-nos, por fim, o lugaronde verdadeiramente ancorou a frota do Gama:
as naus ficavam ao largoe em pequenos barcos se iam cruzando e descobrindoos da terra e os do mar.
Uma mesquita aqui construída não deixa de ser uma homenagem[irónica:
os rapazes pescam e correm pela praia, mas a nenhum ocorrebanhar-se no mar, mergulhar, nadar…Vejo poucas mulheres. Vendem-se, porém, doces numa barraquinha.
O historiador indiano conta pormenores: vem tudo nas crónicas,assevera,não se entende como os ingleses se enganaram no locale foram construir um mamarracho comemorativo,
[a dez quilómetros daqui!«Basta ler as crónicas portuguesas» insiste o Professor John
[«para reconhecer o lugar certo».
O Samorim espera-nos! Irão os nossos pobres presentes uma vez maiscausar o seu enfado? Entramos no automóvel, agradecemose esperamos que desta vez corra melhor a audiência!
15
A CAMILO PESSANHA, PASSANDO EM JAIPUR
Uma imagem a passar pela retinae nada mais: venham outros falar-nos de experiência,de transformar o vivido em consciência,de reter o que é fugaz!
Uma imagem a passar pela retina,porque o sentido de tudo está na velocidade do carroque me permitiu fotografar…
16
O TRAIDOR
Tomaste o chá de folhas negras da melancolia?Porque fugiste às palavras que te deixaram?Espera-te o mais amargo fruto e depois vão-te sorrir.E tu? Porque não disseste simplesmente quem eras?
Sabes que é tarde e já nada podemos fazer.Como ummédico na sala de operações, a tua alma encolhe os ombros,porque tu renunciaste às palavrase escolheste o silêncio das convicções.
Goa, 22 de Março de 2009
17
CAVALOS DA ARÁBIA(sobre fotografia de uma instalação de Subodh Kerkar
na praia de Goa Velha)
Aqui chegavam os cavalos da Arábia,sempre prontos para cavalgar os desertose enfrentar as espadas:e aqui eram trocados por especiarias,essas que aos homens do desertofaziam tanta falta para conheceremo sabor do paraíso.Assim se passavam as coisas,ou assim as contaram nos livrosem que as lemos e acreditámos.
Foi antes de nós chegarmos. Os cavalosolhavam para esta terra com a mesma maravilha,mas sem o nosso terror.Mas que fazer,se para nós é do terror a maravilha?
18
ANOITECER NO GANGES
Lembras-te da «pequenina luz bruxuleante» do verso de Sena?Anoitece no Ganges, tudo nos é tão estranho aqui, e no entanto,vinda de onde não sabemos, de uma casa, de uma ruína,
[de um templo,vem uma pequena luz chamar-nos para dizer do nosso comum[destino.
Vou contar: íamos para Belur,onde ensinaram Ramakrishna e Vivekananda,compenetrados, atentos aos pormenores do caminho fluvial(os ghats, o povo que lava e queima os seus mortos no rio,com troncos e tábuas, mas sem caixão) e íamos a meditar
[em coisas muito sériase muito hindus e multiculturais.Mas de repente tudo o que nos rodeava perdeu o seu sentido,porque anoitecia simplesmente e uma luz nos chamava dentre
[o lusco-fusco.Uma pequenina luz bruxuleante. Just a little light…
Tudo se tornou ao mesmo tempo mais comum e mais simples[na sua estranheza.
São momentos em que entendemos que somos da mesma gente,
19
neste país de tão diversa gente…Mas só porque uma luz se acendeu na margem do Gangesentre Calcutá e Belur – uma pequena luz vitoriosa!
20
OS GHATS
Antes da piralimpam os pés do corpo no rio sagrado,antes mesmo de chegarem os padres, os familiares, os amigos.Só vemos aqui o povo e os intocáveis (diz-se dalits, my friend)encarregados de manejar a morte.
Vi num documentário um desses : «Ninguém mais pode tocar[nos mortos»
dizia com orgulho o sem-casta. «Mesmo que seja o Primeiro[Ministro.
Só nós podemos preparar os mortos para o seu final.»
Eles não têm medo de olhar os mortos.Apenas têm quem cuide deles,quem prepare a lenha, a amontoe,quem embrulhe o corpo nos panos,o limpe nas águas sagradase ofereça ao filho mais velho a tocha para acender a pira.