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UMA LEITURA HERMENÊUTICA DAS CARACTERÍSTICAS DO NEOCONSTITUCIONALISMO A HERMENEUTICAL READING ON NEW CONSTITUTIONALISM Lenio Luiz Streck 1 Professor da Unisinos/RS e Unesa/RJ 1 Doutor em Direito (UFSC), Pós-Doutor em Direito (Universidade de Lisboa), Procurador de Justiça/RS. Professor Visitante da Universidades Javeriana (CO), Roma TRE (IT) e FDUC (PT), Membro Catedrático da ABDCONST – Academia Brasileira de Direito Constitucional, Presidente de Honra do IHJ – Instituto de Hermenêutica Jurídica. RESUMO: O presente artigo traz uma introdução, descrição e crítica do neoconstitucionalismo, entendido este como o movimento que procura, a partir das constituições estabelecidas após o segundo pós-guerra, reaproximar direito e moral, oferecendo uma resposta ao fracasso do positivismo. Sendo assim, pretendo primeiro me distanciar deste movimento; após, mostrar as diversas falhas na sua crítica muito simplificada ao positivismo e realizando; e, por fim, fazer uma nova leitura sobre este fenômeno, a partir de uma visão hermenêutica. PALAVRAS-CHAVE: Hermenêutica; direito constitucional; neoconstitu- cionalismo; positivismo. ABSTRACT: The present paper brings an introduction, description and critique of the new constitutionalism, understood as a movement that based on post-WWII constitutions wishes to reconcile law and morality, offering an answer against positivism’s failure. In this sense, I intend to distance myself from this movement and then show the failure of its followers on their critique of positivism. In the end, I intend to provide a new reading on this phenomenon, after a hermeneutical point of view. KEYWORDS: Hermeneutics; constitutio- nal law; new constitutionalism; positivismo. SUMÁRIO: Introdução; I – Ainda e sempre a questão do positivismo; II Superação do positivismo?; III – As ditas características do neo- constitucionalismo; Aportes finais; Referências. SUMMARY: Introduction; I – Still the problem of positivism; II – Overcoming positivismo?; III – The so said characteristics of the new constitutionalism; Final observations; References.

Lenio - neoconstitucionalismo

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  • UMA LEITURA HERMENUTICA DAS CARACTERSTICAS DO NEOCONSTITUCIONALISMO

    A HERMENEUTICAL READING ON NEW CONSTITUTIONALISM

    Lenio Luiz Streck1Professor da Unisinos/RS e Unesa/RJ

    1 Doutor em Direito (UFSC), Ps-Doutor em Direito (Universidade de Lisboa), Procurador de Justia/RS. Professor Visitante da Universidades Javeriana (CO), Roma TRE (IT) e FDUC (PT), Membro Catedrtico da ABDCONST Academia Brasileira de Direito Constitucional, Presidente de Honra do IHJ Instituto de Hermenutica Jurdica.

    RESUMO: O presente artigo traz uma introduo, descrio e crtica do neoconstitucionalismo, entendido este como o movimento que procura, a partir das constituies estabelecidas aps o segundo ps-guerra, reaproximar direito e moral, oferecendo uma resposta ao fracasso do positivismo. Sendo assim, pretendo primeiro me distanciar deste movimento; aps, mostrar as diversas falhas na sua crtica muito simplificada ao positivismo e realizando; e, por fim, fazer uma nova leitura sobre este fenmeno, a partir de uma viso hermenutica.

    PALAVRAS-CHAVE: Hermenutica; direito constitucional; neoconstitu-cionalismo; positivismo.

    ABSTRACT: The present paper brings an introduction, description and critique of the new constitutionalism, understood as a movement that based on post-WWII

    constitutions wishes to reconcile law and morality, offering an answer against positivisms failure. In this sense, I intend to distance myself from this movement and then show the failure of its followers on their critique of positivism. In the end, I intend to provide a new reading on this phenomenon, after a hermeneutical point of view.

    KEYWORDS: Hermeneutics; constitutio-nal law; new constitutionalism; positivismo.

    SUMRIO: Introduo; I Ainda e sempre a questo do positivismo; II Su perao do positivismo?; III As ditas caractersticas do neo- consti tucionalismo; Aportes finais; Referncias.

    SUMMARY: Introduction; I Still the problem of positivism; II Overcoming positivismo?; III The so said characteristics of the new constitutionalism; Final observations; References.

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    INTRODUO

    Em tempos ps-positivistas ou de fortes crticas aos diversos positivismos , absolutamente relevante discutirmos as condies de possibilidade que a teoria do direito possui para construir respostas aos grandes dilemas surgidos com o advento do assim denominado neoconstitucionalismo.

    nesse sentido que, j de pronto, preciso ter presente que o termo neoconstitucionalismo incorpora em si uma pliade de autores e posturas tericas que nem sempre podem ser aglutinadas em um mesmo sentido. A cincia poltica norte-americana, por exemplo, chama de new constitucionalism os processos de redemocratizao que tiveram lugar em vrios pases da chamada modernidade perifrica nas ltimas dcadas. Entre esses pases possvel citar o Brasil, a Argentina, os pases do leste europeu, a frica do Sul, entre outros2. J, no caso da teoria do direito, possvel elencar uma srie de autores, espanhis e italianos principalmente, que procuram enquadrar a produo intelectual sobre o direito a partir do segundo ps-guerra como neoconstitucionalismo, para se referir a um modelo de direito que j no professa mais as mesmas perspectivas sobre a fundamentao do direito, sobre sua interpretao e sua aplicao, no modo como eram pensadas no contexto do primeiro constitucionalismo e do positivismo predominante at ento. Assim, jusfilsofos como Ronald Dworkin e Robert Alexy (entre outros) representariam, na sua melhor luz, a grande viragem terica operada pelo neoconstitucionalismo.

    Minha obra, neste contexto, por vezes se aproximava dessa leitura sobre os movimentos que marcaram o direito no segundo ps-guerra, porm, sempre marcada por uma profunda diferena: o modo como se pensava e se procurava dar solues para o problema da interpretao do direito. No meu caso, minha filiao s filosofias que redescobriram a hermenutica ainda na primeira metade do sculo XX (no caso, a fenomenologia hermenutica e a hermenutica filosfica) sempre me colocou margem de algumas das principais concluses apuradas pela grande maioria dos tericos do neoconstitucionalismo. Isso porque nunca consegui concordar com o modo de encarar a relao entre direito e moral ou o problema da interpretao e da aplicao do direito nos termos propostos pelo neoconstitucionalismo. Assim, se em um primeiro momento houve uma

    2 Por todos, conferir: HIRSCHL, Ran. O novo constitucionalismo e a judicializao da poltica pura no mundo. Revista de Direito Administrativo, n. 251, p. 139-175, maio/ago. 2009.

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    aproximao entre a minha proposta terica e o neoconstitucionalismo, isso se deu muito mais por uma questo nominal do que propriamente real.

    Explico: em nenhum momento me filiei aos postulados tericos provenientes da teoria da argumentao, que veem uma relao de complementariedade entre o direito e a moral. Tampouco fui partidrio da frmula/regra da ponderao como modelo privilegiado de realizao do direito atravs dos princpios. Na verdade, em minhas pesquisas, sempre desenvolvi uma atividade crtica em relao a ambos os fatores.

    Tambm nunca pude concordar com aquelas propostas neoconstitucio-nalistas que procuravam desenvolver uma verso mais analtica do fenmeno jurdico, uma vez que minha filiao hermenutica me atirava inexoravelmente no cho da histria e da necessidade de dar conta da tradio sobre a qual repousa o fenmeno jurdico (algo que passa ao largo das preocupaes de uma teoria de matriz analtica). Assim, no contexto do que pode ser entendido por neoconstitucionalismo, minhas ideias sempre representaram muito mais uma atitude de crtica do que de associao ou defesa de seus postulados.

    Nesse sentido, torna-se necessrio afirmar que a adoo do nomen juris neoconstitucionalismo certamente motivo de ambiguidades tericas e at de mal entendidos. Reconheo, porm, que, em um primeiro momento, foi de importncia estratgica a importao do termo e de algumas das propostas trabalhadas pelos autores da Europa Ibrica. Isto porque o Brasil ingressou tardiamente nesse novo mundo constitucional, fator que, alis, similar realidade europeia, que, antes da segunda metade do sculo XX, no conhecia o conceito de constituio normativa j consideravelmente decantada no ambiente constitucional estadunidense. Portanto, falar de neoconstitucionalismo implicava ir alm de um constitucionalismo de feies liberais que, no Brasil, sempre foi um simulacro em anos intercalados por regimes autoritrios em direo a um constitucionalismo compromissrio, de feies dirigentes, que possibilitasse, em todos os nveis, a efetivao de um regime democrtico em terrae brasilis.

    Destarte, passadas mais de duas dcadas da Constituio de 1988, e levando em conta as especificidades do Direito brasileiro, necessrio reconhecer que as caractersticas desse neoconstitucionalismo acabaram por provocar condies patolgicas, que, em nosso contexto atual, acabam por contribuir para a corrupo do prprio texto da Constituio. Ora, sob a bandeira neoconstitucionalista, defende-se, ao mesmo tempo, um direito constitucional da efetividade; um direito assombrado pela ponderao de valores; uma concretizao ad hoc da

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    Constituio e uma pretensa constitucionalizao do ordenamento a partir de jarges vazios de contedo e que reproduzem o prefixo neo em diversas ocasies, tais quais: neoprocessualismo [sic] e neopositivismo [sic]. Tudo porque, ao fim e ao cabo, acreditou-se ser a jurisdio responsvel pela incorporao dos verdadeiros valores que definem o direito justo (vide, nesse sentido, as posturas decorrentes do instrumentalismo processual).

    Desse modo, fica claro que o neoconstitucionalismo representa apenas a superao no plano terico-interpretativo do paleo-juspositivismo (como bem lembra Luigi Ferrajoli), na medida em que nada mais faz do que afirmar as crticas antiformalistas deduzidas pelos partidrios da escola do direito livre, da jurisprudncia dos interesses e daquilo que a verso mais contempornea desta ltima, da jurisprudncia dos valores.

    Portanto, possvel dizer que, nos termos em que o neoconstitucionalismo vem sendo utilizado, ele representa uma clara contradio, isto , se ele expressa um movimento terico para lidar com um direito novo (poder-se-ia dizer, um direito ps-Auschwitz ou ps-blico, como quer Mrio Losano), fica sem sentido depositar todas as esperanas de realizao desse direito na loteria do protagonismo judicial (mormente levando em conta a prevalncia, no campo jurdico, do paradigma epistemolgico da filosofia da conscincia).

    Assim, reconheo, j na introduo da nova edio de Verdade e consenso3, que no faz mais sentido continuar a fazer uso da expresso neoconstitucionalismo para mencionar aquilo que essa obra pretende apontar: a construo de um direito democraticamente produzido, sob o signo de uma constituio normativa e da integridade da jurisdio.

    Em suma: para efeitos destas reflexes, nomearei o meu lugar de fala como Constitucionalismo Contemporneo (com iniciais maisculas) para me referir ao movimento que desaguou nas constituies do segundo ps-guerra e que ainda est presente em nosso contexto atual, evitando os mal entendidos que permeiam o termo neoconstitucionalismo.

    I AINDA E SEMPRE A QUESTO DO POSITIVISMOA partir de campos diferentes do conhecimento, possvel, j de pronto,

    separar o velho e o novo no direito. Em outras palavras, se no h segurana para apontar as caractersticas de uma teoria efetivamente ps-positivista e

    3 Cf. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. 4. ed. So Paulo: Saraiva, 2011.

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    neoconstitucional, h, entretanto, condies para que se possa dizer o que no e o que no serve para a contempornea teoria do direito, mormente em pases com sistemas e ordenamentos jurdicos complexos.

    Mas o que a hermenutica na leitura que proponho a partir de Verdade e consenso e Hermenutica jurdica e(m) crise4, imbricando Gadamer e Dworkin pode contribuir para a compreenso desse novo constitucionalismo? Quais os pontos de encontro entre as anlises hermenuticas e aquelas advindas do terreno da(s) teoria(s) da argumentao? Ou, do mesmo modo, qual a ligao entre a hermenutica e as teorias discursivas compreendidas lato sensu?

    Diferenas parte e sobre essas falarei mais adiante , uma coisa certa: sob o novo paradigma constitucional (do segundo ps-guerra), o mundo prtico passou a importar os juristas. O direito j no seria mais o mesmo. O direito j no poderia mais ser epitetado e/ou acusado de ser uma mera racionalidade instrumental ou um instrumento destinado proteo dos interesses das classes dominantes, resultado das duas fases do legalismo, do nascedouro da modernidade ao direito contemporneo. As questes morais, polticas e econmicas rejeitadas pelo positivismo jurdico passaram a fazer parte da preocupao da comunidade jurdica.

    Lembremos que, historicamente, as teorias positivistas do direito recusaram-se a fundar suas epistemologias em uma racionalidade que desse conta do agir propriamente dito (escolhas, justificaes, etc.). Como alternativa, estabeleceram um princpio fundado em uma razo terica pura: o direito, a partir de ento, deveria ser visto como um objeto que seria analisado segundo critrios emanados de uma lgica formal rgida. E esse objeto seria produto do prprio sujeito do conhecimento. Da o papel do sujeito solipsista (Selbstschtiger).

    Para o positivismo jurdico (clssico), pouco importava colocar em discusso no campo d(e um)a teoria do direito questes relativas legitimidade da deciso tomada nos diversos nveis do poder estatal (Legislativo, Executivo ou Judicial). No fundo, operou-se uma ciso entre validade e legitimidade, sendo que as questes de validade seriam resolvidas atravs de uma anlise lgico- -semntica dos enunciados jurdicos5, ao passo que os problemas de legitimidade que incluem uma problemtica moral deveriam ficar sob os cuidados de uma

    4 Cf. STRECK, Lenio Luiz. Hermenutica jurdica e(m) crise. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011; STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso, op. cit.

    5 Veja-se a umbilical relao/ligao entre o positivismo normativista e as teorias analticas da linguagem.

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    teoria poltica que poucos resultados poderiam produzir, visto que esbarravam no problema do pluralismo de ideias presente em um contexto democrtico, o que levava, inexoravelmente, a um relativismo filosfico (essa problemtica se gravou em pases com grandes perodos de ausncia de democracia, como o Brasil).

    Por certo, a pretenso das teorias positivistas era oferecer comunidade jurdica um objeto e um mtodo seguro para produo do conhecimento cientfico no direito. Isso levou de acordo com a atmosfera intelectual da poca (problemtica que, entretanto, ainda no est superada) a uma aposta em uma racionalidade terica asfixiante que isolava/insulava todo contexto prtico de onde as questes jurdicas realmente haviam emergido. Melhor dizendo, essa racionalidade terica possibilitou e continua a possibilitar a entender o direito em sua autnoma objetividade. Repetindo o que j foi dito anteriormente: os fatos sociais, os conflitos, enfim, a faticidade, no faziam parte das preocupaes da teoria do direito. Portanto, ironicamente, a pretenso estabilizadora e cientificizante do positivismo jurdico acabou por criar uma babel resultante da separao produzida entre questes tericas e questes prticas, entre validade e legitimidade, entre teoria do direito e teoria poltica.

    II SUPERAO DO POSITIVISMO?De todo modo, vale a pena insistir nos pontos de convergncia das

    teorias autodenominadas neoconstitucionalistas e as demais teorias crticas (de cariz ps-positivista): diante dos fracassos do positivismo tradicional, a partir da busca da construo de uma autnoma razo terica, as diversas posturas crticas buscaram, sob os mais diversos mbitos, (re)introduzir os valores no direito. Assim, por exemplo, diante de uma demanda por uma tutela que esteja relacionada com a vida, com a dignidade da pessoa, enfim, com a proteo dos direitos fundamentais, o que fazer? Qual a tarefa do jurista?

    Na medida em que existem vrios neoconstitucionalismos, uma coisa possvel dizer: mesmo que muitas das concepes neoconstitucionalistas tenha resvalado para o voluntarismo, elas no trouxeram a indiferena. Sem excluses, para elas h uma preocupao de ordem tico-filosfica: a de que o direito deve se ocupar com a construo de uma sociedade justa e solidria. Em outras palavras, o desafio tem sido o seguinte: Como fazer com que o direito no fique indiferente s injustias sociais? Como superar o positivismo exegtico (embora

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    para as posturas neoconstitucionalistas o positivismo seja entendido lato sensu a partir do conceito clssico)? Como fazer com que a perspectiva moral de uma sociedade que aposte no direito como o lugar da institucionalizao do ideal da vida boa no venha pretender, em um segundo, corrigir a sua prpria condio de possibilidade, que o direito que sustenta o Estado Democrtico?

    Vejamos isso. Parece que, para Oto e Pozzolo, assim como Carbonell e Prieto Sanchis, para falar apenas destes, no parece haver dvida de que neoconstitucionalismo sinnimo de novo paradigma. O direito deixa de ser meramente regulador para assumir uma feio de transformao das relaes sociais, circunstncia que pode ser facilmente constatada a partir do exame dos textos constitucionais surgidos a partir do segundo ps-guerra. Com a desconfiana em relao ao legislativo (e s mutaes produzidas pelas maiorias incontrolveis), passou-se a apostar em uma matriz de sentido dotada de garantias contra essas maiorias eventuais (ou no). Isso implicou e continua a implicar mudanas de compreenso: Como olhar o novo com os olhos do novo, sem correr o risco de transformar o novo no velho? Esse passou a ser o grande desafio da teoria do direito.

    Alis, cio Oto quem indaga, na esteira de Prieto Sanchs: em que medida o constitucionalismo ou o juzo de constitucionalidade obriga a uma importante reviso da teoria do direito e, dado que nossa teoria do direito basicamente uma construo positivista6, a questo consiste em determinar at que ponto este ltimo ficou obsoleto? Por isso, desde logo tenho que indagar: Se as posturas neoconstitucionalistas no abrem mo da discricionariedade judicial, por que razo pode(ria)m ser consideradas ps-positivistas?

    De todo modo, possvel dizer que Pozzolo, Oto e Sanchs e tantos outros efetivamente se perguntam acerca da questo que fulcral na discusso: Quais as condies de possibilidade que tem a teoria do direito para atender s demandas de um novo paradigma que, primordialmente, tem a funo de superar as insuficincias das teorias positivistas?

    6 Observe-se que tudo est a indicar que em autores como Prieto Sanchis o positivismo continua a ser o clssico (positivismo exclusivo). Aqui importante destacar, desde j, que adoto a tese de que o positivismo e isso deixo claro em Verdade e consenso e Hermenutica jurdica e(m) crise no se resume ao exegetismo. Toda postura terica que aposte na discricionariedade judicial pode ser considerada positivista.

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    III AS DITAS CARACTERSTICAS DO NEOCONSTITUCIONALISMO

    Quais seriam os elementos caracterizadores desse movimento neoconstitucionalista? Seria uma espcie de positivismo sofisticado? O neoconstitucionalismo teria caractersticas de continuidade e no de ruptura? No h suficiente clareza nas diversas teses acerca do significado do neoconstitucionalismo7. Mas isso no constitui um problema. Ao contrrio, possibilita a abertura para a reflexo. Alguns importantes juristas8 procuram seguindo uma antiga classificao de Norberto Bobbio para o positivismo classific-lo em neoconstitucionalismo ideolgico, terico ou metodolgico. Penso, entretanto, que, exatamente pela perspectiva ruptural que assume e porque a questo paradigmtica, essa classificao no assume relevncia, pelo menos para os limites de minhas reflexes.

    Com efeito mesmo que se admita essa tricotomia , a um s tempo, o neoconstitucionalismo ideolgico, porque ala a Constituio a elo conteudstico que liga a poltica e o direito (aqui se poderia falar no aspecto compromissrio e dirigente da Constituio, que , assim, mais do que norma com fora cogente: representa uma justificao poltico-ideolgica); terico, porque estabelece as condies de possibilidade da leitura (descrio) do modelo de constitucionalismo e dos mecanismos para superao do positivismo (papel dos princpios como resgate do mundo prtico expungido do direito pelo positivismo, problemtica que deve ser resolvida a partir dessa teoria do direito e do Estado); e tambm metodolgico, porque ultrapassa a distino positivista entre descrever e prescrever o direito, sendo que, para tal, reconecta direito e moral (que ocorre sob vrios modos, a partir de teses como a cooriginariedade

    7 Aqui vale lembrar, como destaquei inicialmente, que essa heterogeneidade que permeia o chamado neoconstitucionalismo acaba por gerar srios problemas com relao ao uso (e o abuso, em alguns casos) dessa nomenclatura. Por essa razo, e na tentativa de tornar ainda mais clara a minha posio terica, optei por chamar de Constitucionalismo Contemporneo o meu lugar de fala. Portanto, quando falo aqui de neoconstitucionalismo refiro-me s posies tericas que, de alguma forma, esto escoradas no constitucionalismo do segundo ps-guerra; propem uma atitude crtica perante o positivismo, mas que, ao fim e ao cabo, acabam por professar teses similares ao positivismo normativista. Ou seja, representam, quando muito, uma superao do positivismo exegtico-conceitual-primitivo, mas, no efetuam um salto qualitativo com relao reviso do positivismo efetuada pelos tericos normativistas. No o caso, evidentemente, de Oto, Pozzolo e Prieto Sanchis. Refiro-me aqui, principalmente, ao ab-uso do termo no Brasil, onde o neoconstitucionalismo tem servido para incentivar, nos diversos ramos do direito, protagonismos judiciais.

    8 Essa classificao feita por COMANDUCCI, Paolo. Formas de (neo)constitucionalismo. Un anlises metaterico. In: CARBONELL, Miguel (Org.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003.

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    entre direito e moral ou o papel corretivo que a moral assumiria neste novo modelo de direito).

    O neoconstitucionalismo efetivamente vem gerando controvrsias. Tem sido teorizado sob os mais diferentes enfoques. cio Oto, de forma percuciente, faz uma descrio das principais propriedades/caractersticas desse fenmeno. Essa planta do neoconstitucionalismo possui a assinatura de autores do porte do prprio cio Oto, Susanna Pozzolo, Prieto Sanchs, Sastre Ariza, Paolo Comanducci, Ricardo Guastini, com variaes prprias decorrentes das matrizes tericas que cada um segue9. A elas procuro fazer uma anlise, na sequncia. Com efeito:

    Primeira caracterstica Pragmatismo: de plano, h que se reconhecer que existe certa anemia significativa na expresso pragmatismo. Com efeito, pragmatismo pode ser entendido na teoria do direito contempornea como quase sinnimo de realismo e axiologismo. O pragmatismo e suas variantes guardam estreita relao com a sua origem pragmaticista de Peirce, isto , uma filosofia sem fundamentos ontolgicos a priori. Mas sua origem anterior, na medida em que vem do termo grego pragma, que quer dizer uma ocorrncia, um fato concreto, em particular algo prtico, com efeitos relevantes. As primeiras manifestaes pragmati(ci)stas no direito podem ser encontradas no realismo escandinavo (Alf Ross, Olivecrona) e norte-americano (Wendell, Pound e Cardozo), da a semelhana entre as duas posturas sobre o direito (realismo jurdico e pragmatismo).

    9 Alm da presente obra de cio Oto Ramos Duarte e Susanna Pozzolo, h importantes discusses acerca da caracterizao do neoconstitucionalismo brasileiro. Vejam-se as contundentes crticas que Dimitri Dimoulis faz s trs caractersticas defendidas por Luis Roberto Barroso (reconhecimento da fora normativa da Constituio, expanso da jurisdio constitucional e nova interpretao constitucional). Para Dimitri, o elemento peculiar para ele, o nico do que se vem denominando de neoconstitucionalismo estaria na crena de que a moral desempenha um papel fundamental na definio e na interpretao do direito (Cf. Neoconstitucionalismo e moralismo jurdico. In: SARMENTO, Daniel (Org.). Filosofia e teoria constitucional contempornea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 213-225). Outro trabalho de flego feito por Daniel Sarmento (O neoconstitucionalismo no Brasil. In: LEITE, George Salomo; SARLET, Ingo. Wolfgang (Coord.). Direitos fundamentais e estado constitucional: estudos em homenagem a J. J. Gomes Canotilho. So Paulo: RT, 2008. p. 9-49), em que faz uma defesa do neoconstitucionalismo, entendendo este como uma teoria voltada para os princpios e para o uso da ponderao, alm da firme atuao da justia constitucional para a defesa dos valores e da conectividade do direito com a moralidade crtica. Em Sarmento, nota-se nitidamente que o neoconstitucionalismo est umbilicalmente ligado defesa do poder discricionrio dos juzes e do uso da ponderao.

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    Contemporaneamente, o pragmatismo pode ser identificado sob vrios matizes, como a anlise econmica do direito, de Richard Posner, os Critical Legal Studies e as diversas posturas que colocam na subjetividade do juiz o locus de tenso da legitimidade do direito (protagonismo judicial). O pragmatismo pode ser considerado como uma teoria ou postura que aposta em um constante estado de exceo hermenutico para o direito; o juiz o protagonista, que resolver os casos a partir de raciocnios e argumentos finalsticos. Trata-se, pois, de uma tese anti-hermenutica e que coloca em segundo plano a produo democrtica do direito.

    Assim, ao se pretender colocar o neoconstitucionalismo como superador do positivismo (mormente no que tange teoria das fontes, da relao entre direito e moral que implica a distino regra-princpio e o problema da discricionariedade), sua filiao ao pragmatismo pode representar um problema, a partir da ideia de grau zero de sentido e de um certo nominalismo nsitos ao pragmatismo que propicia discricionariedades e/ou arbitrariedades interpretativas. E grau zero sinnimo de decisionismo, de discricionarismo. E discricionarismo caracterstica do positivismo. Mas, ento, tem-se uma contradio: ao apostar no pragmatismo, no parece haver superao do positivismo. Consequentemente, se o neoconstitucionalismo se pretende ps- -positivista, no pode ser pragmati(ci)sta. Mas isso parece impossvel.

    Segunda caracterstica Ecletismo (sincretismo) metodolgico: efetivamente, um dos traos mais marcantes do neoconstitucionalismo o ecletismo metodolgico. De fato, entendendo a metodologia como teoria do direito, corre-se o risco de comprometer o resultado aplicativo do direito toda a vez que se lanar mo de mixagens de matrizes tericas incompatveis. Essa questo fica mais ntida quando confrontamos, por exemplo, a hermenutica filosfica com as teorias da argumentao, para ficar apenas nesse confronto: enquanto aquela tem a pr-compreenso (antecipao de sentido) como condio de possibilidade, esta fica no plano da explicitao lgico-procedimental. Alm disso, enquanto a hermenutica, calcada na tradio, aposta em um antirrelativismo, as teorias da argumentao no abrem mo da discricionariedade, o que denuncia seu atrelamento ao esquema sujeito-objeto10. Finalmente, no se pode olvidar a indevida mixagem feita por determinados autores neoconstitucionalistas das

    10 Sobre esse ponto especfico das crticas s teorias da argumentao, permito-me remeter o leitor especialmente ao meu Verdade e consenso, op. cit.

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    posies de Ronald Dworkin e Robert Alexy11; ou das teorias habermasianas e alexianas12, que agregam ao proceduralismo de Habermas a ponderao de Alexy.

    Mas, veja-se: o sincretismo no se mostra adequado a uma teoria que pretende superar o(s) positivismos. Na verdade, os sincretismos so (ou foram) um fator de enfraquecimento do neoconstitucionalismo (embora Oto queira coloc-lo como virtude). Se em algum momento o neoconstitucionalismo visava a ir alm do positivismo normativista ou congneres, na medida em que a superao do paleojuspositivismo sempre pareceu evidente, a falta de uma coerncia teortica o fragilizou sobremodo.

    Terceira caracterstica Principialismo: essa caracterstica seria o lcus da juno entre direito e moral no neoconstitucionalismo. Princpios seriam, assim, pautas axiolgicas ou mandados de otimizao, representando a assuno dos valores aos textos constitucionais. A Constituio seria uma ordem suprapositiva de valores, conforme expresso cunhada pelo Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional alemo) no auge de sua prtica de jurisprudncia dos valores (Wertungsjurisprudenz). Assim, no parece haver qualquer dvida de que o principialismo elemento caracterizador do neoconstitucionalismo. A questo saber o que se entende por princpio e qual o seu papel na aplicao do direito13. Ou seja, aqui tambm vai a pergunta: Essa caracterstica tambm estaria posta como uma virtude do neoconstitucionalismo?

    Ora, que os diversos positivismos eram avessos aos princpios, tambm parece no haver dvidas. Efetivamente, o neoconstitucionalismo (no modo defendido por autores como Prieto Sanchis, cio Oto, Susanna Pozzolo) est fundado no principialismo como modo de fazer ingressar os valores para dentro do direito (aqui reside um ponto de minha forte discordncia com o

    11 No que tange, especificamente, a essa mixagem entre as posturas de Dworkin e Alexy, possvel mencionar MORESO, Jos Juan. Conflito entre princpios constitucionales. In: Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, p. 99-121.

    12 Por todos, vale referir, no Brasil, Rogrio Gesta Leal (O Estado-juiz na democracia contempornea: uma perspectiva procedimentalista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007) e Antonio Maia (A distino entre fatos e valores e as prelenses neofrankfurtianas. In: Perspectivas atuais da filosofia do direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005).

    13 Nesse sentido, a obra de Rafael Tomz de Oliveira vai alm das teses tradicionais que povoam o discurso panprincipiologista ao procurar elucidar um conceito de princpio hermeneuticamente adequado (Cf. Deciso judicial e o conceito de princpio: a hermenutica e a (in)determinao do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008).

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    neoconstitucionalismo, uma vez que os valores fragilizam o grau de autonomia alcanado pelo direito; como venho referindo de h muito, os princpios introduzem o mundo prtico no sentido filosfico da expresso no direito).

    Visto desse modo, correto colocar o principialismo como caracterstica do neoconstitucionalismo. A ressalva que se pe diz respeito ao risco de uma expanso desmesurada de princpios, acarretando uma espcie de pamprincipiologismo, o que enfraquece sobremodo o grau de autonomia que o direito alcanou justamente no seio do constitucionalismo exsurgido a partir do segundo ps-guerra.

    Como venho insistindo: se princpios so normas e, portanto, possuem um carter deontolgico, deve haver um cuidado com a transformao destes em uma espcie de instncia corretiva do direito produzido democraticamente. Antes de os princpios serem a porta de entrada dos valores14 esquecidos pelo positivismo nos textos constitucionais, so eles a porta de entrada do mundo prtico no direito como um todo, fazendo com que se supere a ideia de uma razo terica com pretenses autnomas, caracterstica do positivismo jurdico.

    Podemos dizer que isso tudo funciona da seguinte forma: quando nos ocupamos com questes jurdicas, possumos, antecipadamente/pr- -compreensivamente, um todo conjuntural que nos permite articular os diversos instrumentos que a tradio jurdica construiu. H sempre um todo antecipado em cada ato particular que praticamos como advogados, procuradores, promotores, juzes, etc. No contexto da tradio em que estamos inseridos, este todo representado pela Constituio. Mas no a Constituio enquanto um texto composto de diversas fatias: artigos, incisos, alneas, etc., mas, sim, a Constituio entendida como um evento que introduz, prospectivamente, um novo modelo de sociedade.

    Este evento, que a Constituio, est edificado sob certos pressupostos que chegam at ns pela histria institucional de nossa comunidade. Tais pressupostos condicionam toda tarefa concretizadora da norma, porque a partir deles que podemos dizer se o direito que se produz concretamente est legitimado de acordo com uma tradio histrica que decidiu constituir uma sociedade democrtica, livre, justa e solidria.

    14 Veja-se: o grande problema da jurisprudncia dos valores tem sido exatamente esse conceito lquido de valores. Qual seria a diferena dos valores propugnados pela Wertungsjurisprudenz da que - les valores defendidos pelo neoconstitucionalismo? Tratar-se-ia, em ambos os casos, de um realismo moral?

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    Este todo conjuntural, portanto, ir determinar os juzos concretos e particulares que fazemos para solucionar os problemas jurdicos. Neste sentido, por mais que essa conjuntura no aparea de modo explcito no trabalho de fundamentao que todo jurista deve realizar, ela condiciona os argumentos alinhavados na deciso de modo subterrneo.

    Para ser mais claro: no h causa judicial, no h caso concreto em que no exista uma discusso ainda que encoberta sobre a igualdade, por exemplo. Ora, sempre no direito lidamos com alguma situao discriminatria. A concesso de uma liminar, por exemplo, j por si s o exerccio de um tratamento diferenciado dado a algum que faz jus a determinados requisitos de ordem formal. Porm, na concesso desta liminar, o juiz que profere a deciso estar obrigado a justificar o porqu do tratamento diferenciado dado quele que requer a medida antecipatria. Do mesmo modo que haver de justificar no caso de negao do pedido. Uma liminar negada para algum ser a concesso/manuteno de um direito em favor de outrem. Assim tambm ocorre com aquilo que conhecemos por devido processo legal. No pode haver processo que no tenha se desenvolvido no contexto de seu mbito de aplicao.

    por isso que, neste sentido, no se pode falar em abertura inter-pretativa15 no que tange aos princpios jurdicos: nos dois casos analisados parece ficar claro que eles condicionam o intrprete no sentido de obrig-lo a decidir de modo a no comprometer o todo conjuntural da comum-unidade dos princpios constitucionais.

    Mas, ento, necessrio perguntar, como fica a distino que se realiza entre regras e princpios? vlida tal distino? essa distino uma distino lgica-estrutural, epistemolgica, ou nela se esconde algo mais do que a simples determinao do objeto a ser conhecido?

    A (tradicional) distino estrutural oferece uma resposta sistemtica, mas no resolve a questo da concretizao propriamente dita. Isto porque deita razes na velha questo presente a partir do neopositivismo lgico e sua superao pela filosofia da linguagem ordinria. A circunstncia agravante que corre em prejuzo teoria da argumentao que amadrinha a distino lgico- -es trutural entre regra e princpio reside na relevante circunstncia de que a fi losofia da linguagem ordinria apostou na pragmtica como um salto para

    15 Os princpios no abrem a interpretao e, sim, a fecham. Nesse sentido, ver meu Verdade e consenso, op. cit., em especial o Captulo 13.

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    alm da plenipotenciariedade das anlises sintticas e semnticas (lembremos que, para o neopositivismo lgico, somente eram cientficos os enunciados que passassem pelo filtro da sintaxe e da semntica, desconsiderando totalmente a pragmtica), ao passo que as teorias da argumentao apostam, ao mesmo tempo, nas concepes neopositivistas e da filosofia da linguagem ordinria.

    Ou seja, as teorias da argumentao, nos casos simples, contentam-se com as anlises sinttico-semnticas ( o caso da subsuno); j quando esto em face de um caso difcil, apelam para a pragmtica. Mas somente apelam para esse nvel quando o primeiro no responde s demandas significativas. Ora, a filosofia da linguagem ordinria, ao se dar conta das demandas resultantes desse terceiro nvel da semitica (relao dos usurios com os signos), considerou como estando superado o neopositivismo, exatamente porque este se contentava com os dois primeiros nveis (sinttico e semntico). Isso de uma clareza meridiana. J a teoria da argumentao jurdica trabalha, ao mesmo tempo, com as concepes neopositivistas pragmati(ci)stas (filosofia da linguagem ordinria), porm faz isso desconsiderando que o neopositivismo no realizava a anlise semntica no mesmo nvel da linguagem objeto. Isto , para o neopositivismo, haveria a necessidade de uma metalinguagem para certificao dos resultados das contradies lgicas da linguagem objeto.

    O problema que, ao ser feita a distino estrutural (que ocorre no nvel semntico), os princpios acabam adquirindo algo que lhes tira a razo principiolgica, isto , ala-se-lhes a meta-regras, o que faz com que, no fundo, o princpio apenas ingresse no sistema para revolver insuficincias nticas das regras, como ocorre, por exemplo, com a teoria da argumentao jurdica. S para recordar: como sabido, para teoria da argumentao jurdica, o problema das regras se resolve por subsuno e o dos princpios pela ponderao (embora esta se concretize como uma regra, que tambm ser aplicada por subsuno). Isso tambm se aplica diferena entre axiologia e deontologia, e por isso que e me permito insistir neste ponto princpios no so valores. Para que um princpio tenha obrigatoriedade, ele no pode se desvencilhar da democracia que se d por enunciados jurdicos concebidos como regras.

    Quarta caracterstica Judicialismo tico-jurdico: por esse elemento caracterizador, o neoconstitucionalismo exigiria dos operadores jurdicos cada vez mais a elaborao de juzos de adequao e juzos de justificao com natureza tica, ao lado das tcnicas estritamente subsuntivo-jurdicas. No se pode discordar dessa demanda proveniente do novo paradigma. Com

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    efeito, na medida em que diminui o grau de liberdade de conformao do legislador (essa era uma caracterstica do positivismo), h um deslocamento do polo de tenso em direo ao Poder Judicirio (ou da judicializao, questo que assume grau de dramaticidade em pases como o Brasil provavelmente, no h pas no mundo com um grau de judicialiao como o de terrae brasilis). Consequentemente, aumenta o poder dos juzes e dos Tribunais. Os juzes no so mais a boca da lei, como se costuma dizer nas diversas posturas crticas que surgem a partir do segundo ps-guerra e, no Brasil, a partir da Constituio de 1988. Veja-se, nesse sentido, a deciso, em sede liminar, proferida pelo Ministro Roberto Barroso, no MS 32326, em que, explicitamente, fez meno ao uso de argumentos-fundamentos metajurdicos e apelo moral.

    Ou seja, esse aumento de tenso em favor da jurisdio pode acarretar problemas na democracia. E isso no tem sido muito bem pensado por alguns adeptos do neoconstitucionalismo, ao confundirem a exigncia de um direito moralizado com a moralizao do direito, na medida em que esta a moral utilizada de forma corretiva (confessadamente ou no, j que, na maior parte das vezes, a moral corretiva entra pela porta dos fundos do direito, por intermdio de um pamprincipiologismo ou diretamente via ativismo judicial, com o livre exerccio da discricionariedade)16.

    Por isso, mais do que suscitar um judicialismo tico-jurdico, h que se indagar acerca das condies de possibilidade que temos para controlar (racionalizar) as decises judiciais. Neste ponto a teoria do direito deve fazer uma opo: admitir discricionariedades judiciais ou no. Se se conferir aos juzes um poder discricionrio, estar-se- fazendo um retrocesso em direo ao positivismo.

    Por tais razes, h que se fazer uma diferenciao entre judicialismo (ou judicializao) e ativismo: o primeiro decorre das contingncias de um paradigma; o segundo pode ser destrutivo, uma vez que permite substituir os juzos morais e polticos institucionalizados no direito produzido democraticamente pela opo pessoal dos juzes. Por isso que insisto na questo de que o problema do positivismo e sua superao est umbilicalmente ligado derrocada do sujeito da modernidade: o Selbstschtiger. Em uma palavra: o judicialismo uma

    16 Veja-se como, nesses casos, aquilo que se quer chamar de neoconstitucioonalismo nada mais do que o velho positivismo aplicado a partir da discricionariedade forte (que vira, fatalmente, arbitrariedade). Aquilo que aparece como julgamento conforme a conscincia [sic] do juzes acaba sendo a mais pura substituio da produo democrtica do direito (inclusive da Constituio) pelos juzos morais do intrprete/julgador.

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    caracterstica do neoconstitucionalismo; e isso tambm um dos seus maiores defeitos.

    Sexta Caracterstica Interpretativismo moral-constitucional: esta caracterstica representaria uma espcie de imperialismo da moral, nas palavras crticas de Mauro Barberis17, debitando teoria dworkiniana da leitura moral da Constituio esse trao distintivo do neoconstitucionalismo. Penso, entretanto, que essa ineludvel interveno dos juzos de valor a expresso de cio Oto constitui um problema apenas se considerarmos a discricionariedade como um componente ineludvel do neoconstitucionalismo. Dworkin, por exemplo, inimigo figadal do poder discricionrio.

    Dito de outro modo, se pensarmos que a discricionariedade um problema e no uma soluo, o assim denominado interpretativismo moral passa ao largo dessa discusso, uma vez que essa parece no ser como, de fato, no a tese defendida por Dworkin. Nesse sentido, e uma vez mais visando a evitar mal entendidos, preciso compreender que do mesmo modo que Gadamer, em seu Wahrheit und Method Dworkin no defende qualquer forma de solipsismo (a resposta correta que ele sustenta no produto da atitude de um Selbstschtiger). Tenho que Dworkin superou e de forma decisiva a filosofia da conscincia (e as suas vulgatas voluntaristas). E a discricionariedade produto do paradigma do voluntarismo. Melhor dizendo, o juiz Hrcules apenas uma metfora para demonstrar que a superao do voluntarismo. Ou seja, a morte do sujeito solipsista da modernidade no significou a morte do sujeito que sempre est presente em qualquer relao de objeto. Na verdade, h uma falsa impresso de que Hrcules representa o portador de uma subjetividade assujeitadora, problemtica que explico amide em Hermenutica jurdica e(m) crise.

    Haver um interpretativismo moral e, com isso, uma fragilizao de qualquer teoria que se pretenda neoconstitucional se, a uma, considerarmos que os juzos morais possam vir a corrigir o direito produzido democraticamente, o que, por sua vez, implica a admisso da discricionariedade, problemtica que est presente, por exemplo, em Alexy; se, a duas, considerarmos que o exerccio dessa interveno da moral no direito estiver a cargo de um juiz (sujeito), que, a partir da conscincia de si do pensamento pensante, interprete esses valores e os traga tona. Para a hermenutica filosfica esse problema no se apresenta, em face da pr-compreenso, que funciona como uma blindagem contra o

    17 Cf. BARBERIS, Mauro. Neoconstitucionalismo, democracia y imperialismo de la moral. In: CARBONELL, Miguel (Org.). Neoconstitucionalismos. Madrid: Trota, 2003. p. 270.

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    relativismo. Do mesmo modo, no penso que esse problema se apresente em Dworkin, exatamente pela necessidade de o juiz obedecer a integridade e a coerncia do direito, alm deste ter o dever de decidir a partir de argumentos de princpio. A hermenutica que eu proponho (crtica hermenutica do Direito) forja-se na imbricao dos elementos que caracterizam a tradio em Gadamer com a coerncia e a integridade defendidas por Dworkin, culminando na tese de que o cidado possui o direito fundamental a obter respostas adequadas Constituio.

    Em uma palavra: se neoconstitucionalismo quer dizer imperialismo da moral no direito ou moralizao do direito a partir de discursos que pretendem corrigir exogenamente o direito , ento o neoconstitucionalismo no representa qualquer avano na teoria do direito e na teoria constitucional. Consequentemente, perderia uma especial caracterstica: o antipositivismo ou ps-positivismo.

    Sexta caracterstica Ps-positivismo: nas palavras de Pozzolo e referidas por Oto na primeira parte da obra, o Direito do Estado Constitucional, formado (tambm e sobretudo) por princpios, no seria apto para a aproximao rgida e pouco ductil do mtodo juspositivista, que finalizaria por desatender as exigncias de justia (substancial e no meramente formal) que a realidade prtica do direito levaria em si mesmo. Veja-se, de novo, que o embate do neoconstitucionalismo parece ser com o positivismo clssico. Essa minha observao, alis, recorrente no presente texto.

    Acrescento que, mais do que isso, o ps-positivismo deveria ser a principal caracterstica do neoconstitucionalismo. Deveria, mas no . Ou seja, o neoconstitucionalismo somente tem sentido enquanto paradigma do direito se for compreendido como superador do positivismo ou dos diversos positivismos. Ps-positivismo no uma continuidade do positivismo, assim como o neoconstitucionalismo no deveria ser uma continuidade do constitucionalismo liberal. H uma efetiva descontinuidade de cunho paradigmtico nessa fenomenologia, no interior da qual os elementos caracterizadores do positivismo so ultrapassados por uma nova concepo de direito. Penso que o ponto fundamental que o positivismo (e falo no apenas do positivismo exclusivo) nunca se preocupou em responder o problema central do direito, por considerar a discricionariedade judicial como uma fatalidade. A razo prtica que o positivismo chama de discricionariedade no poderia ser controlada pelos mecanismos tericos da cincia do direito. A soluo, portanto, era simples: deixemos de lado a razo prtica (discricionariedade) e faamos apenas

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    epistemologia (ou, quando esta no d conta, deixe-se ao alvedrio do juiz eis o ovo da serpente gestado desde a modernidade).

    Este ponto fundamental para que fique bem claro para onde as teorias do direito ps-positivistas (ou no positivistas, o que d no mesmo) pretendem apontar sua artilharia: o enfrentamento do problema interpretativo, que o elemento fundamental de toda experincia jurdica. Isto significa que, de algum modo, todas as teorias do direito que se projetam nesta dimenso ps-positivista procuram responder a este ponto; procuram enfrentar o problema das vaguezas e ambiguidades dos textos jurdicos; procuram, enfim, enfrentar problemas prprios da chamada razo prtica que havia sido expulsa do territrio jurdico-epistemolgico pelo positivismo18. Da o epteto ps-positivismo, que se refere emergncia de um novo modelo de teoria do direito, no interior da qual o problema da razo prtica recebe uma espcie de dignidade epistemolgica.

    Ocorre que este enfrentamento realizado por vrios autores, cada um com orientaes jusfilosficas distintas. Apresento aqui uma espcie de determinao sumria de cada uma destas orientaes jusfilosficas: h um ps- -positivismo de matriz analtica, que pode ser sentido em autores como Robert Alexy, bem como naqueles que o seguem no modo de sua teoria da argumentao jurdica; podemos notar tambm uma orientao ps-positivista de cunho discursivo-comunicacional, que se manifesta, obviamente, na teoria do direito de Habermas; temos tambm uma matriz estruturalista, que est presente no ps- -positivismo de Friedrich Mller, embora sofra este autor uma grande influncia da hermenutica de corte gadameriano; por fim, h um ps-positivismo de matriz hermenutico-fenomenolgico, que est presente nas obras de Ronald Dworkin, Arthur Kaufmann e, em alguma medida, em Josef Esser. Tambm a minha Crtica hermenutica do direito possui esta raiz filosfica.

    Cada uma destas diferentes facetas do ps-positivismo enfrentar o problema da razo prtica de uma forma diferente. Este modo de enfrentar o problema tem um profundo impacto em cada uma das teorias, visto que a partir dele que se projetar o modo pelo qual cuidar de resolver a questo da

    18 importante consignar que essa expulso da razo prtica em favor de uma plenipotenciria razo terica algo comum, que atravessa ambos os positivismos (tanto o primitivo-legalista quanto o normativismo-discricionrio). Com efeito, aquilo que se iniciou com a codificao e a crena na pura lgica formal para conformao dos sentidos jurdicos chegou ao paroxismo com as construes normativistas (cujo maior exemplo Kelsen) que chegaram ao ponto de, inclusive, separar os nveis de cientificidade do mundo jurdico.

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    validade, da legitimidade e, ao mesmo tempo, definir o significado conceitual de norma, regra, princpio, etc.

    Para se realizar uma efetiva teoria ps-positivista, dois elementos so, inexoravelmente, necessrios: a) ter total conscincia do nvel terico sob o qual esto assentadas as projees tericas efetuadas, ou seja, uma teoria ps- -positivista no pode fazer uso de mixagens tericas; b) enfrentar o problema do solipsismo epistemolgico que unifica todas as formas de positivismo.

    Nessa medida, preciso ressaltar que s pode ser chamada de ps- -positivista uma teoria do direito que tenha, efetivamente, superado o positivismo, tanto na sua forma primitiva, exegtico-conceitual, quanto na sua forma normativista, semntico-discricionria. A superao do positivismo implica enfrentamento do problema da discricionariedade judicial ou, tambm poderamos falar, no enfrentamento do solipsismo da razo prtica. Implica, tambm, assumir uma tese de descontinuidade com relao ao conceito de princpio. Ou seja, no ps-positivismo, os princpios no podem mais serem tratados no sentido dos velhos princpios gerais do direito, nem como clusulas de abertura.

    Stima caracterstica O juzo de ponderao: se o ps-positivismo tem sido considerado como o principal elemento diferenciador/caracterizador do neoconstitucionalismo, penso que e aqui minha discordncia com Pozzolo, Oto e Prieto Sanchs, e, obviamente, Robert Alexy a ponderao acabou por se transformar no grande problema e, por assim dizer, em um obstculo ao prprio neoconstitucionalismo. O neoconstitucionalismo no pode(ria) depender de juzos de ponderao, mormente se percebermos que ponderao e discricionariedade so faces de uma mesma moeda.

    Permito-me delinear minha discordncia: como sabido, a falta de concretizao das Constituies programticas demandou uma reformulao na teoria dos princpios, representada pelo abandono do chamado critrio fraco de diferenciao (que considera princpio e regra com a mesma estrutura lgica hipottico-condicional e com diferentes densidades semnticas) para a adoo do critrio forte de distino, onde os princpios assumiam estrutura lgica diferente daquela que identificava a regra. Isso colocou os princpios sob o manto metodolgico da ponderao (enquanto que a regra se mantinha na subsuno), permitiu novas possibilidades para os princpios e no demorou muito para que estivssemos falando em aplicao direta mediante ponderao controlada pela proporcionalidade. Mas o fato que esse giro no conferiu ao princpio suficincia ntica-semntica, alm de ter mantido intacto o erro

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    originrio: o mundo prtico foi jogado para dentro do sistema e, a partir dessa operao, pensado como tal (como sistema). Ou seja, o mundo prtico que concreto ou, na falta de uma melhor palavra, pragmtico, paradoxalmente retratado ao modo da abstratalidade prpria da ideia de sistema. A percepo originria de que os princpios no possuam densidade semntica conteve, bem ou mal, o avano do pamprincipiologismo, mas o equvoco no diagnstico da crise fez com que os princpios elevassem o grau de discricionariedade, decisionismo e arbitrariedade. A problemtica do uso da ponderao19 se agrava com a sua extenso s regras20 (claro que essa extenso no endossada por Oto, Pozzolo ou Prieto Sanchis).

    De todo modo, o problema principal da ponderao a sua filiao ao esquema sujeito-objeto e a sua dependncia da discricionariedade, ratio final. Desse modo, se a discricionariedade o elemento que sustenta o positivismo jurdico nos casos difceis e nas vaguezas e ambiguidades da linguagem dos textos jurdicos, no parece que a ponderao seja o mecanismo que livre (ou arranque) o direito dos braos do positivismo. Ao contrrio, a ponderao no deixa de ser a repristinao agora de forma sofisticada da discricionariedade prpria das posturas normativistas e de suas variaes. Veja-se: a teoria da argumentao de onde surgiu a ponderao no conseguiu fugir do velho problema engendrado pelo subjetivismo, a discricionariedade, circunstncia que reconhecida pelo prprio Alexy21.

    Por tais razes, dizer que a ponderao um elemento caracterizador do neoconstitucionalismo est correto. S que isso me afasta sobremodo do neoconstitucionalismo.

    Oitava caracterstica Especificidade interpretativa: segundo parte da doutrina neoconstitucional (por todos, refira-se Comanducci22), a interpretao

    19 No modo como a ponderao vem sendo convocada (e aplicada) em terrae brasilis, tudo est a indicar que no passa daquilo que Philipp Heck chamava, na jurisprudncia dos interesses, de Abwgung, que quer dizer sopesamento, balanceamento ou ponderao. Com a diferena de que, na Interessenjurisprudenz, no havia a construo da regra da ponderao.

    20 Por todos, vale mencionar Humberto vila (Teoria dos princpios. 9. ed. So Paulo: Malheiros, 2009), Luis Roberto Barroso e Ana Paula Barcellos (O comeo da histria. A nova interpretao constitucional e o papel dos princpios no direito brasileiro. In: BARROSO, Lus Roberto. A nova interpretao constitucional: ponderao, direitos fundamentais e relaes privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003), que sustentam a possibilidade de ponderao de regras.

    21 Cf. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Luis Virgilio A. Silva. So Paulo: Malheiros, 2008. p. 611.

    22 Cf. Comanducci, Paolo. Formas de (neo)constitucionalismo, op. cit., p. 84.

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    da Constituio exigiria especificidades hermenuticas em relao aos demais materiais normativos. Tambm nesse sentido o dizer de Pozzolo, para quem a linguagem constitucional no interpretvel com os instrumentos comumente utilizados para a interpretao do direito infraconstitucional.

    Tambm aqui h que se fazer um delineamento acerca do lugar do qual estamos falando quando nos referimos interpretao do direito (ou da Constituio). Se entendermos que a interpretao uma espcie de ars interpretandi ou uma tcnica (mtodo), de fato haveremos de concordar com a afirmativa de Comanducci e Pozzolo.

    Mas, por outro lado, se entendermos que interpretar aplicar (applicatio) e que no h uma subdiviso entre compreender, interpretar e aplicar, ento haveremos de concluir que interpretar (portanto, aplicar) fazer hermenutica. E hermenutica compreenso, que depende de uma pr-compreenso antecipadora. Portanto, est-se a tratar da interpretao como explicitao da compreenso, isto , est-se a tratar da interpretao no interior da viragem ontolgico-lingustica23.

    Por tais razes, entender que o neoconstitucionalismo exige uma especificidade interpretativa colocar a Constituio como uma mera ferramenta disposio (Ge-stell) do intrprete, funcionando o mtodo como supremo momento da subjetividade do intrprete. Se hermenutica compreenso, no pode haver diferena entre compreender infraconstitucionalidades e compreender constitucionalidades. Na verdade, compreendemos um fenmeno ou no o compreendemos. E esse fenmeno nos aparece (se manifesta) no interior do crculo hermenutico: do todo para a parte e da parte para o todo.

    APORTES FINAISDas caractersticas delineadas pelos neoconstitucionalistas e pelos

    seus crticos e parece que, no mago, h um certo consenso em relao a esses elementos conformadores h algumas autoevidentes e outras no. Entre as autoevidentes esto o ecletismo, o judicialismo tico-jurdico, o imperialismo do interpretativismo moral, a ponderao, o estatalismo garantista e a especificidade interpretativa. Entretanto, no parecem elementos caracterizadores do neoconstitucionalismo o ps-positivismo e o conceito no positivista de direito.

    23 Nesse sentido, ver Streck, Verdade e consenso, op. cit.; Jurisdio constitucional e deciso jurdica. So Paulo: RT, 2013, em especial o Captulo 6.

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    Evidentemente que as caractersticas dependem do que se entende por neoconstitucionalismo, mormente se levarmos em conta a questo positivismo versus ps-positivismo. Para tanto, necessrio ter presente se a concepo de neoconstitucionalismo adotada supera como uma descontinuidade tanto a noo liberal como a noo de constitucionalismo social; do mesmo modo, h que se indagar se o neoconstitucionalismo deve ser entendido como superador do positivismo jurdico, naquilo que so os seus elementos fundantes no decorrer da histria: as fontes sociais, a separao entre direito e moral e o problema da discricionariedade dos juzes. Qualquer desses elementos caracterizadores do positivismo uma vez no compreendidos pode colocar por terra a classificao de uma postura em neoconstitucional ou no.

    De todo modo, penso que o uso do termo neoconstitucionalismo se tornou de tal modo problemtico que a melhor opo me parece ser mesmo o seu abandono. A concretizao daquilo que se manifesta historicamente como constitucionalismo depende, efetivamente, de uma teoria ps-positivista que, olhando mais de perto, no possui grande semelhana com aquilo que os tericos do neoconstitucionalismo postulam.

    Considero que a elaborao de uma teoria ps-positivista tem de levar em conta os seguintes elementos:

    I H que se ter presente que o direito do Estado Democrtico de Direito supera a noo de fontes sociais, em face daquilo que podemos chamar de prospectividade, isto , o direito no vem reboque dos fatos sociais e, sim, aponta para a reconstruo da sociedade. Isso facilmente detectvel nos textos constitucionais, como em terrae brasilis, onde a Constituio estabelece que o Brasil uma Repblica que visa a erradicar a pobreza, etc., alm de uma gama de preceitos que estabelecem as possibilidades (e determinaes) do resgate das promessas incumpridas da modernidade.

    II Essa problemtica tem relao direta com a construo de uma nova teoria das fontes, uma vez que a Constituio ser o locus da construo do direito dessa nova fase do Estado (Democrtico de Direito); consequentemente, no mais h que se falar em qualquer possibilidade de normas jurdicas que contrariem a Constituio e que possam continuar vlidas; mais do que isso, muda a noo de parametricidade, na medida em que a Constituio pode ser aplicada sem a interpositio legislatoris, fonte de serdias teorias que relativizavam a validade/eficcia das normas.

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    III No pode restar dvida de que tanto a separao como a dependncia/vinculao entre direito e moral esto ultrapassadas, em face daquilo que se convencionou chamar de institucionalizao da moral no direito (esta uma fundamental contribuio de Habermas para o direito: a cooriginariedade entre direito e moral), circunstncia que refora, sobremodo, a autonomia do direito. Isto porque a moral regula o comportamento interno das pessoas, s que esta regulao no tem fora jurdico-normativa. O que tem fora vinculativa, cogente, o direito, que recebe contedos morais (apenas) quando de sua elaborao legislativa.

    IV evidente que a elaborao legislativa no esgota nem de longe o problema do contedo do direito. Quando concordamos que as questes morais, polticas, etc., faam parte da tarefa legislativa, isso no quer dizer que haja, de minha parte e, por certo, dos adeptos das posies substancialistas uma viravolta na questo procedimentalismo-substancialismo. Se as posturas procedimentalistas pretendem esgotar essa discusso a partir da garantia do processo democrtico de formao das leis, isso, no entanto, no esgota a discusso da concreta normatividade, locus do sentido hermenutico do direito. De fato, mais do que apostar na formulao democrtica do direito, h que se fazer uma aposta paradigmtica, isto , acreditar na perspectiva ps-positivista do novo constitucionalismo e sua materialidade principiolgica. A virtude soberana no se d simplesmente na formulao legislativa e na vontade geral. Fundamentalmente, ela ser encontrada na Constituio, que estabeleceu uma ruptura com a discricionariedade poltica que sempre sustentou o positivismo. E isso quer dizer controle da atividade da jurisdio. Na hermenutica, h um efetivo controle da interpretao a partir da tradio (da autoridade desta), da obrigao da integridade, da coerncia, da igualdade, da isonomia, enfim, da incorporao dos princpios constitucionais que podemos chamar aqui de virtudes soberanas em homenagem a Dworkin. Por isso, os discursos predadores do direito so rechaados por essa blindagem hermenutica que protege o direito produzido democraticamente. E exatamente por isso que possvel sustentar respostas adequadas Constituio, portanto, apostar em uma teoria da deciso e no apenas em uma teoria da legislao. Mltiplas respostas dizem respeito ao relativismo, e, portanto, esto umbilicalmente relacionadas com o positivismo.

    Em uma palavra final, h uma angstia que perpassa o imaginrio dos juristas preocupados com o direito para alm de suas clssicas funes. O constitucionalismo engendrado a partir do segundo ps-guerra deu azo ao surgimento de uma teoria cuja funo a de propiciar as condies para a efetiva

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    Revista da AJURIS v. 40 n. 132 Dezembro 2013

    Doutrina Nacional

    realizao dos contedos materiais dos textos normativos (Constituies). Com os qualificativos ou caracterizaes que a ela se d, pode-se dizer, antes de qualquer discusso, que a superao do positivismo seus problemas, suas insuficincias e suas indiferenas exigiu, e ainda exige, uma teoria que albergue as diversas posturas que pretendem dar significao e concretizao ao novo paradigma constitucional.

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