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Leonardo de Andrade MUNDOS partidos...Mundos Partidos ANDRADE, Leonardo de 1ª Edição Rio Grande do Sul Abril de 2018 EDITORA FUGITIVO LITERÁRIO Rua Marcos Costa, 256 Fragata Pelotas

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Leonardo de Andrade

MUNDOS partidos

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Copyright © by Leonardo de Andrade É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem

prévia autorização do autor e/ou da Editora Fugitivo Literário.

Edição & Preparação Leonardo de Andrade Revisão final Ketlen Aires

Capa Freepik (vetor modificado) Mundos Partidos ANDRADE, Leonardo de 1ª Edição Rio Grande do Sul Abril de 2018 EDITORA FUGITIVO LITERÁRIO Rua Marcos Costa, 256 Fragata Pelotas Rio Grande do Sul 96040-750 www.fugitivoliterario.com.br facebook.com/editorafugitivoliterario instagram.com/fugitivoliterario twitter.com/editorafugitivo

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A Cidade dos Malditos

Este livro é parte de um ciclo de romances de um universo literário singular. Os romances que fazem parte deste ciclo irão, eventualmente, se cruzar, mas apresentam, em sua própria particularidade, histórias totalmente únicas, que podem ser lidas em qualquer ordem e sem a necessidade de conhecimento específico sobre nenhuma das histórias, permitindo que o leitor explore e divirta-se com as referências encontradas entre as pontes que as histórias criarão. Apesar de interligadas, essas histórias vivem sozinhas sob as luzes parcas e as ruas perdidas da Cidade dos Malditos.

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Os homens sábios, em seu fim, sabem com brandura,

O porquê a fala de suas palavras está vazia, Não vás tão gentilmente nessa boa noite escura.

- Dylan Thomas.

O homem não tem um corpo separado da alma. Aquilo que chamamos de corpo é a parte da alma que se distingue pelos seus cinco sentidos.

- William Blake.

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NOTA DO AUTOR

Caro leitor, existem muitas coisas que fazemos em nossa vida que

marcam um período muito significativo, muito especial, de quem somos. Essas coisas remetem a experiência que tivemos e quem fomos, ou quanto crescemos fazendo isso e o quanto abandonamos pelo caminho. Todos temos esse tipo de experiência, que nos engrandece, nos molda, e nos faz, de muitas formas, diferentes do que éramos previamente. Imagino que tu entendeste a ideia. Para mim, o Mundos Partidos foi uma dessas experiências, assim como todos os outros livros que compõem a coletânea (alguns, hoje, usariam a palavra saga, mas ela não me apetece muito) da Cidade dos Malditos. No entanto, ele não é como os outros livros.

Por muito tempo, o Mundos Partidos ficou guardado porque eu não me senti confortável o suficiente para publicá-lo, ou porque uma parte de mim não queria encerrar esse ciclo, mas é algo, no entanto, inevitável. Nossas relações mudam, nossos mundos se partem, e mudam, e isso faz parte, eu acho, de crescer. Havia, também, a questão de que eu tinha seguido adiante e ido escrever coisas novas, mais políticas, com o meu novo pensamento fora da adolescência e da minha infância como escritor. Quando chegou,

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então, o momento de dar aos outros livros edições dignas, sob o meu selo, muito pensei na questão do Mundos Partidos.

É dessa forma que eu vos apresento a parte final da Cidade dos Malditos. Foi último livro nesse singular universo e merece ter uma publicação digna para encerrar as coisas. O Mundos Partidos está em casa, junto com seus irmãos, e é uma obra que eu gostei muito de escrever, porque me ensinou coisas que eu sabia e que eu precisava aprender na marra. É o ponto em que deixei de ser um escritor criança, aprendendo, batalhando, para passar a outro estágio que, na verdade, não faço a mínima ideia qual é. Quando eu descobrir, caro leitor e leitora, com certeza lhe aviso.

Boa leitura e um forte abraço!

Leonardo de Andrade Março, 2018

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Primeira parte

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1

Estava chovendo naquele dia. E, se uma história começa com chuva, fique ciente da

presença de um funeral. Aqui não é diferente. Há, infelizmente, um funeral acontecendo no cemitério Krow, aquele lugar sombrio na Rua Haras. Alguns dizem, no entanto, nem sempre ter sido assim. Há anos havia um lugar feliz ali. As casinhas coloridas dos primeiros colonizadores fortalecem a teoria das ruas. Chamamos de teoria das ruas porque é apenas isso. Teoria. A verdade é muito mais complexa e assustadora.

A verdade é sempre assim. Por falar em verdade, o filho do falecido não se encontrava.

Era apenas uma vasta multidão de conhecidos. Alguns estranhos, outros nem tanto. Três ou quatro quase viúvas do pobre infeliz. A viúva de verdade jazia ao seu lado, em um túmulo velho. Falecera há mais de uma década. Não chovia forte, eram apenas aqueles pingos incômodos. As lágrimas do céu. Caindo perdidas entre guarda-chuvas negros, mulheres atormentadas e homens de terno e cabeça baixa. Como é de se esperar no funeral de algum idoso, se um arqueólogo aparecesse por ali, poderia levar todos para um museu. Os homens estavam perto de seus setenta anos, acompanhados de suas amáveis esposas ou, como teriam dito em confissão para o velho defunto, suas correntes para a vida inteira. Ambos iriam rir e tomar mais um trago no bar da Dorothy, perto da fruteira de Ernest Soloff, em Darby. O melhor amigo do homem não estava rindo agora. Não tinha guarda-chuva. Não tinha pensamentos. Tinha apenas tormentos e lembranças de uma vida inteira. Olhou para o

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céu e deixou os pingos escorrerem pelo seu rosto enrugado, lhe marcando para sempre.

Perdeu muitos, mas queria partir antes de ver aquele camarada ir embora.

Amamos nossos pais, claro. Nossas esposas e nossos irmãos de sangue. Apesar disso, um amor por um irmão de alma é completamente diferente. Existem confidências nessa relação. Um laço forjado sob as estrelas do universo e algumas bebedeiras. Segredos tão enterrados que nunca contaremos a ninguém. Às vezes, precisamos das memórias de um irmão de sangue para lembrar nossas próprias verdades. Tony Gianos sentia uma parte de seu cerne sendo arrancada e jogada na sarjeta. Pior de tudo, não gostava de chorar na frente de estranhos, então deixou a chuva cair em seu corpo para esconder as lágrimas de seu lamento.

- Vai ficar doente disse-lhe a esposa. Tanto fazia. Gostaria de estar na cova com seu melhor

amigo. Combinaram assim, há mais de cinquenta anos, quando ainda eram moleques correndo pela velha Rua Groth. Tony Gianos baixou seu rosto e o olhar percorreu uma fileira de pessoas estranhas. Algumas velhas conhecidas. Jeffrey Coipel estava lá. Ou assim parecia. O menino sofria de algum mal mental e seu olhar estava sempre vago. A senhora Coipel, sua afável mãe, carregava um lenço e uma carta em uma de suas mãos. Na outra, trazia um guarda-chuva branco. Cor favorita do homem partindo para seu descanso. A carta seria depositada em cima do caixão e perder-se-ia para sempre na escuridão eterna de John Brooks. Ao lado de Ana senhora essa descrita anteriormente estava Claire Thompson. Era uma mulher com seus trinta e poucos anos. Cabelos ruivos e longos, um rosto cansado pelo tempo e pelos infortúnios. Olhava seus sapatos de renda, tão simples quanto seu dinheiro suado como atendente de supermercado poderia pagar.

Tony Gianos continuou olhando ao redor.

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O padre estava diante da cova com uma bíblia em suas mãos. Um coroinha segurava outro guarda-chuva negro. Que mania era aquela de preto? Pensou Tony. Seria uma espécie de respeito? Ou uma condescendência pelo fato de encararem a penumbra da vida em algum momento? Não merecemos isso, uma cor tão desprezível e lúgubre no dia de nossa morte. O homem deitado à sua frente estaria chutando algumas portas naquele momento. Começaria com uma filosofia básica sobre aquelas coisas iguais da nossa querida sociedade.

- Um homem chega aos seus cinquenta anos, a ponte da idade, e olha outros idiotas como nós também na ponte da idade, sentando no sofá e assistindo ao noticiário. O que ele faz? Joga-se da ponte, junto com eles. Por quê? Porque esse homem é um idiota, pelo amor de Deus.

Aquele era John Brooks. O padre continuou a rezar sua missa. Olhava para as

páginas brancas da Bíblia. Disse uma ou duas palavras mandadas por sua alma ou pelo espirito divino e então retirou um cantil prateado de dentro do seu casaco. Abriu. O cheiro forte de uísque chegou à suas narinas. Derramou parte do liquido sobre o caixão de John Brooks e bebeu o resto. Fitou novamente os presentes, que o olhavam em um estado de profundo abismo, desrespeito ou terror. Talvez tudo junto, com exceção de Tony Gianos.

- Uma antiga promessa a esse velho bastardo. As senhoras conservadoras gritaram em um uníssono.

Absurdo! Tony Gianos abriu um sorriso de canto. Aquele era John Brooks. Havia algo, porém, faltando. Tony Gianos continuou olhando ao redor. Falou sobre John Brooks quando lhe pediram. Claire Thompson depositou a carta junto com Ana Coipel. Jeffrey estava caçando moscas na chuva e achando ser um sapo. O céu parecia desabar naquele lamento sem fim.

- Preciso ficar sozinho falou Tony à Moira Gianos.

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Não havia mais ninguém ali. Todos partiram para viverem suas vidas e lamentarem secretamente a morte de John Brooks. Não era imortal, mas chegou perto. Três décadas depois e as pessoas ainda se lembrariam dele. Mais lembrado seria seu filho, Oliver Brooks. Afinal, a roda continua girando. Eternamente. Faz parte deste fardo chamado de vida. Devemos ir em frente e esquecer quem já passou. Somente assim iremos encontrar paz e, de algum modo muito remoto, pensarmos estar fazendo aquele ente feliz. Se nos ajoelharmos diante de velhos retratos e imaginarmos o tempo passado, iremos virar poeira e jamais conseguiremos seguir o legado. Iremos falhar com a vida. Iremos cair.

Sozinho, diante de uma imensidão de túmulos e vidas partidas, mundos quebrados, Tony Gianos encarou aquele campo enlameado. Olhou para os muros distantes e os portões negros do cemitério. Viu as casinhas coloridas. Água escorria por seu rosto velho. Olhou ao redor mais uma vez antes de dizer adeus para a única pessoa que o conhecia de verdade. Procurou pelo filho de seu melhor amigo. Nada. Então decidiu fechar os olhos e imaginar. Iria encontrar John em alguns anos. Era sua certeza absoluta e assim teria paz para seguir em frente. Afinal, basta isso, não é? Paz para ir em frente. Tony Gianos virou às costas para seu amigo pela primeira vez em uma vida inteira e partiu para encontrar a esposa. Antes de ir embora, olhou para o cemitério pela última vez. Procurando por alguém. Apenas procurando, pois, um fato singular fez toda a diferença nesta história. E na vida de muitos presentes naquele funeral.

Oliver Brooks não estava ali.

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A chuva cessou algumas horas depois do intenso funeral de John Brooks. Quem estivesse passando pela Rua Haras, emocionado com as casas coloridas, não veria mais a multidão revestida em preto. Encontraria apenas o coveiro do cemitério fumando um cigarro em frente ao portão. Porém, um funeral nunca acaba de verdade. Tony Gianos estaria bebendo uma cerveja neste momento e pensando em John Brooks. A velha Ana Coipel estaria assando um bolo de banana e, institivamente, embrulhando um pedaço para o bom homem. Sairia de casa às pressas, deixando o portão de sua varanda pender, correria pelo asfalto até a casa da frente e subiria as escadas de madeira. Bateria na porta com nós nos dedos. Fitaria aquele céu nublado e pensaria no motivo de estar assim, tão azul. Por que tão triste? Porque somos tristes, às vezes, quando temos tudo que precisamos?

Então se daria de conta. John Brooks partiu para o próximo plano. A senhora

Coipel sentaria na varanda, desolada, com o bolo em mãos. Era meio gorducha, de fato, então aproveitaria sua tristeza sem fim para dar cabo daquele enorme pedaço enquanto Jeff correria para a rua em busca de sua mãe. Claire caminharia com passos vagos, vindo dos canteiros da Avenida das Alamedas, em Darby, para sentar-se junto da senhora Coipel. Depois de John Brooks, Ana Coipel era a pessoa mais próxima de uma família.

- Vai ficar tudo bem disse-lhe Ana, vendo Claire se aproximar.

- Será que vai?

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Claire Thompson mirou seus sapatos de renda. Estavam sujos de lama. Seu rosto, marcado do tempo tortuoso e da vida batalhadora para pagar seus estudos tardios, contorceu-se em uma expressão amargurada. Estavam sujos de lama.

- Acho que... Desistiu. Estavam sujos de lama. Jeff caçava moscas. O céu

tornou-se cinzento. Alguns carros passaram a toda velocidade e jogaram água na calçada. Claire Thompson amargurou-se ainda mais. Olhou para sua saia cumprida. Havia um pequeno rasgo de um prego e sua meia-calça era velha e enrugada. Sentiu um aperto em seu coração. Por que as coisas são assim? Seus sapatos brancos estavam sujos de lama.

- Não sei. Então desatou a chorar.

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Ainda não está noite e não há chuva. Apenas cinza. O mundo tornou-se cinza. As nuvens foram

embora quase para sempre. O verde está escurecido e a cerveja tem um gosto estranho, como se estivesse cheia de água. O álcool não parece fazer efeito e aquele burburinho da vida é incomodo. Tony Gianos está apoiado em sua varanda de tinta descascada enquanto sua esposa, Moira, permanece sentada no banco atrás dele. Moira aproxima-se e suas mãos percorrem o torso do marido, consolando-o. Tony Gianos permanece de cabeça baixa e sente uma lágrima escorrer de sua face. A lágrima percorre aquele mundo sombrio, partindo para o infinito, partindo para juntar-se ao universo.

Juntar-se a John Brooks. - Aquele filho da mãe. Tony Gianos observa a Avenida das Alamedas. O vento

assovia forte, quase levando os galhos embora. Está frio ali. Normalmente, Darby é sempre frio devido ao vento vindo das ondas. Vento percorrendo o mundo, atravessando o continente, para chegar ao calor de nossos corações e então esfriar tudo. Apaziguar as coisas com o poder do mar. Naquele dia, o vento estava congelante. Pareceu adentrar a alma de todos. Congelar os nervos e a espinha. Talvez fosse o espirito de John Brooks finalmente deixando esta terra.

- Por que tinha de morrer? De repente, as folhas começaram a despencar das árvores.

Era o começo do fim. Anunciavam consigo o início de dias ainda mais tortuosos. Apenas porque as coisas são assim. Faz parte da

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natureza. Impõe fardos grandes ao homem. Maiores do que o mesmo pode carregar. Tony Gianos sabia disso. E teria de aceitar. Não se pode fugir da natureza.

- Tony, lembra-se do que John falou antes de partir? Tony lembrava-se. Segurou a mão de seu velho amigo até

o último instante. John Brooks estava pálido há duas noites. Sua casa permanecia envolta na escuridão, sem luzes acesas, com exceção de uma vela. Parecia ter pressentido o pior. Chamou Tony para visitá-lo e disse-lhe que os cavaleiros do apocalipse estavam à sua espera. Ria sozinho conforme dançava pela sala com uma garrafa de conhaque e lembrava-se de uma mulher chamada Dana Scott. Então pediu para Tony ficar. Beberiam até cair. Como nos dias da juventude. Caíram rápido porque não eram mais jovens. Beberam até duas da madrugada. Recordaram de suas amantes, suas namoradas de escola e seus pecados.

John falou incessantemente de Oliver, seu filho. Pediu também um favor. Algo que deveria ser feito quando

o filho pródigo a casa retornasse. Aconteceria, disse para Tony. Tinha certeza. Nunca teve certeza de nada em sua vida. Nunca teve certeza se acertou ou falhou com Oliver. Não teve nem mesmo certeza se amou sua esposa. Nunca teve certeza se era realmente um bom homem. Nunca teve certeza, por fim. Exceto no momento final. Ao invés de um túnel, disse a Tony poder ver um trem. Então fechou os olhos, filosofou e foi atropelado pelo tal trem.

- Todas as coisas acontecem por uma razão, mesmo que eu não tenha certeza delas.

Tony riu sozinho à meia luz da varanda. Moira abriu um sorriso enquanto segurava a mão do marido.

- Acha que ele virá? - Não tenho certeza.

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O vento os açoitou com força, trazendo no ar a noite infinda e o sentimento de serenidade. O sentimento de que John Brooks estava realmente morto.

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No final da rua, não longe daquelas casas simples de madeira, com tinta descascada, vidros borrados e almas quebradiças dentro, existe um lugar onde muitos em Darby costumam se reunir aos finais de semana. Fica próximo ao chamado vulgarmente, devemos admitir, de Barracão, lugar que abriga vendedores de todos os tipos de coisas. Sério. Todos os tipos. Certa vez, assim como nos filmes antigos de velho oeste, um homem tentava vender uma garrafa de água chamando-a de Elixir da Vida.

John Brooks comprou essa garrafa. Quando John Brooks percorreu os quatro quarteirões

abaixo, com aquela garrafa em mãos, uma boina surrada pendendo em sua cabeça protegendo-lhe do sol, para entrar no bar da velha Dorothy Campbel, John foi observado com intensa curiosidade por todos seus conhecidos ali presentes. Não eram muitos, pois ainda não passava do meio dia. Alguns homens permaneciam encostados no balcão apenas olhando o trago em frente a eles. Outro cara estava mais longe, junto da máquina de jukebox, embalando-se e tentando decidir se colocava The Ring of Fire para tocar. A voz de Johnny Cash ecoou pelo cômodo. Brooks aproximou-se da bancada e puxou um banco para sentar. Ainda carregava aquela pequena garrafa em suas mãos. Pegou os óculos em seu bolso e analisou.

- Que coisa é esta? Música do cantor country Johnny Cash, composta por June Carter Cash e Merle Kilgore.

Nota do Autor.

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Steven um homem alto, envelhecido pelo poder da bebida e com uma carranca de sono fitou Brooks e esboçou um sorriso.

- Por que comprou isso, John? - Eu não tenho a menor ideia. Pareceu interessante. A velha viúva Dorothy aproximava-se do balcão naquele

instante. Estava limpando, como de costume. Era maníaca por essas coisas. Não haveria um bar em Darby tão limpo quanto o de Dorothy Campbel. Dorothy morava em Darby há anos. Mudou-se

campeão de boxe, e construiu seu bar na década de 90. Mesma época em que seu marido passou para a melhor. Ou como Dorothy sempre

Não se engane. Dorothy não tinha afeto pelo marido

falecido, apesar de carregar uma foto do homem na carteira e tê-lo emoldurado em um quadro na parede.

- Não podemos desrespeitar os mortos sempre disse. Dorothy, normalmente, tinha uma boa aparência apesar de

seus setenta e poucos anos (qualquer um capaz de mencionar sua idade também era capaz de aceitar uma briga de facas lá fora). Era magricela, parecendo nunca ter se alimentado, tinha umas mechas de cabelo azul escuro junto com os cabelos grisalhos, usava dentadura e o rosto possuía cicatrizes das surras de Rover. Apesar disso tudo, era a mulher mais durona que John Brooks conheceu durante toda a sua vida. E esteja certo de algo: John Brooks conheceu muitas mulheres. Exceto sua esposa.

- Esposa não se conhece sempre falou a Tony Gianos. Então, de tal modo, a viúva Dorothy parou em frente a

John Brooks naquela tarde, qual parecia tão distante nestas recordações.

- É algum tipo de bebida?

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- Obviamente, mulher. Dorothy Campbel colocou um copo em frente a John

Brooks e serviu seu trago favorito. Um conhaque de dez anos mantido escondido atrás do balcão. Guardava especialmente para seu melhor cliente.

- Vai embebedar? - Não sei. Talvez dê um belo soco daqui a algumas

semanas. Talvez seja só água ou talvez... John Brooks bebeu o conhaque em apenas um gole. Sua

língua contornou os lábios, aproveitando cada gota do verdadeiro elixir.

- Talvez o quê, John? As sobrancelhas de Dorothy ergueram-se. John olhou para

os lados timidamente. Sabia que Dorothy começava a ficar sem paciência.

- Seja mesmo o Elixir da Vida. Vou beber esta porcaria. - Boa sorte. Se você estiver vivo em cem anos, por favor,

não desenterre meu corpo para dançar com o esqueleto por aí. - Por que não? Seria uma bela coisa. Dorothy serviu uma taça de cerveja para John Brooks.

Sabia a rotina de bebidas do homem. John Brooks era um pouco maluco, filosofava sem necessidade, mas era previsível. Em sua opinião, é claro. Feito isso, John despejou parte do liquido na cerveja e bebeu tudo sem parar.

- Já me sinto mais jovem disse, pouco antes de deixar o bar.

Morreu duas noites depois. Agora, sentado em seu lugar, está Steven. Fausto

McMurphy ao seu lado, com a cabeça baixa e a sombra de seu chapéu de palha cobrindo os olhos. O jukebox em silêncio. Não havia razão para ninguém ligá-lo aquela noite. O bar tinha seus beberrões de costume e uns jovens que nunca ouviram falar em John

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Brooks bebendo cerveja, perto da porta, porém, ninguém estava realmente vivo. Nem mesmo os jovens. Sentiram algo errado e deram o fora. Dorothy varria o local. No momento seguinte, começou a passar um pano no balcão. Parou quando encontrou a garrafa de conhaque.

Lembrou-se daquela tarde com o elixir. - Alguém pode acreditar? A voz calma e metálica de Steve quebrou o silêncio. Em

parte. Quando envolto em um transe, um luto tão forte, o silêncio nunca se quebra. Apenas pausa. As ondas percorrem o cômodo, chegam aos presentes e todos tentam assimilar aquilo que escutaram. A verdade, como sempre, é mais complexa. Ninguém escutou de verdade. Suas mentes vagueiam perdidas e assoladas. Amedrontadas do futuro. Ainda pensam em quem partiu. Pensam em quem partirá e pensam quando partirão.

- Não sei, cara Fausto respondeu-lhe. Encheu seu copo de uísque e bebeu tudo. Sentiria falta das

conversas com John Brooks. Aprendeu muito com o homem. Todos aprenderam.

- Deixem de serem meninas Dorothy aproximou-se do balcão.

O timbre de sua voz estava rachado. Puderam sentir isso. Dorothy era sempre firme, nunca com medo. Os rapazes perceberam que agora não era assim. Sentiram-se confortados pelo fato da mulher querer animá-los, mas sabiam estar tão doída por dentro quanto eles. Nunca viram Dorothy daquele jeito. Infelizmente, veriam novamente em um futuro não tão distante.

- Vamos apenas beber falou novamente, à meia voz. Enquanto limpava, Dorothy cruzou com a garrafa de

conhaque dez anos de John Brooks. Escondeu seu rosto na escuridão enquanto uma lágrima cruzou-lhe a cicatriz da boca. Sorriu de canto.

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- Seu bastardo disse a ninguém. Os rapazes a olharam. Dorothy colocou copos limpos em

cima do balcão e os encheu com o conhaque. Suas mãos trêmulas foram em busca do copo cheio, levantou-o no ar.

Então beberam, honrando a memória de John Brooks.

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Os lobos uivaram naquela noite. Tony Gianos não se lembrava de uma noite tão longa.

Parecia o longo dia das bruxas em que trabalhou como bombeiro há quase cinquenta anos. Aquele foi um dia terrível, quase insuportável. As pessoas mortas retiradas de um incêndio na velha fábrica de Oswell Childs não eram seus conhecidos. Nunca viu seus rostos e nunca pensou voltarem para assombrá-lo. Voltaram naquela noite. Tony Gianos demorou a dormir. Deitou-se ao lado de Moira. A mulher o abraçou com força e chorou por John Brooks. O homem era amigo de seu marido, mas foi padrinho de sua filha. Donna Gianos partiu para estudar no Velho Continente e viajar pelo mundo há um longo tempo. Seus pais conseguiam vê-la uma vez a cada ano, talvez. John Brooks, contudo, estava sempre na casa. Moira lembrou-se dos dias em que John chegava à varanda, trazendo consigo um pequeno engradado de cerveja e um sorriso maroto em seu rosto. Lembrou-se de um dia em particular, quando viu o homem pela última vez. John Brooks era fechado em relação ao seu passado. Gostava de contar suas aventuras, mas raramente falava sobre Oliver ou sua esposa. Havia um mistério pendendo no ar. A maioria das pessoas em Darby conhecia John Brooks como a própria palma da mão. Fazia bastante das mesmas coisas todos os dias, cumprimentava a todos, gastava dinheiro como um louco, bebia como um louco, e simplesmente vivia.

Novamente, um fato inconveniente e complexo: não se conhece alguém de verdade.

- Tem alguém em casa? gritava.

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- Sempre, John. Você sabe. - Nunca machuca perguntar, Moira. - É claro. - Oliver sempre batia antes de entrar nos lugares... - Como está Oliver? Moira serviu o almoço. Sentou-se na ponta da mesa. Tony

não estava em casa naquele dia. Havia deixado a cidade para fazer algum curso relacionado à sua antiga profissão. Apesar de estar aposentado há vinte anos, depois de ter sido sargento, ainda gostava de encontrar-se com seus antigos companheiros. Os vivos e funcionais.

- Eu não sei respondeu-lhe John. - Por que não tenta saber? John pousou sua boina em cima da mesa e abriu uma

cerveja. Provou a comida de Moira. Estava soberba, como sempre. A mulher era uma bela cozinheira.

- Oliver... É um homem ocupado. Não quero intrometer-me em sua vida. Grande peixe.

- Homens ocupados também sentem. Não acha que ele sente sua falta?

- Sinceramente? John Brooks sempre perguntava se as coisas deveriam ser

respondidas com sinceridade. Ninguém ligava. - Sinceramente, John. - Não acho. Então riu sozinho. Um peso tomou-lhe a consciência. Seu

próprio filho, provavelmente, não sentia sua falta. Oliver não ligava para John Brooks há quase cinco anos. Sua última visita estava completando uma década. Quando esteve na casa, trocaram poucas palavras e Oliver levou o resquício de seus pertences. Deixou dinheiro pelo incômodo ao pai e partiu sem olhar para trás.

- Um de vocês deveria engolir o ego e conversarem.

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Como Moira era tão compreensiva? John, em todos os seus anos de vida, não conseguia ter certeza. Ora, não tinha certeza de nada mesmo. Achava que era o fato dela ser mulher.

- Um dia Oliver vai voltar. John Brooks esboçou seu sorriso maroto, escondendo toda

a decepção do mundo em seus olhos e uma dor profunda em seu coração. Trocou de assunto e almoçou, partindo logo depois para um encontro às cegas na Praça Central, longe de Darby. Moira Gianos permaneceu parada na varanda, observando John Brooks andar de cabeça baixa, com seus sapatos surrados, chutando pedrinhas no chão e os pensamentos deixando seu corpo, tentando alcançar alguém. Tentando, inutilmente, dizer a verdade: sentia falta de Oliver Brooks. Sentia muito por não ter estado presente na vida do garoto, não o ter visto tornar-se um homem, não ter lhe dado a primeira cerveja. Não ter tido a grande conversa sobre mulheres. Sentia muito por não o conhecer e ser tarde demais.

Moira deixou a varanda e decidiu assistir televisão, sem saber que veria John Brooks pela última vez.

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6

Aquele uivo foi eterno. Dilacerou a noite. Moveu as nuvens. Fez a chuva cessar

quando a primeira claridade do sol alcançou esta terra. O cemitério, muito longe de Darby, estava vazio. Apenas o coveiro parado nos portões negros da eternidade. Na morada dos senhores que não pertencem mais a este plano. O homem fumava um cigarro. Tragou com lentidão e deixou subir a fumaça, chegar ao céu e tentar alcançar algo. Alguém. Existiria realmente algo além daquelas nuvens? Talvez, em um dia muito mais sereno. Talvez, quando deixarmos de sermos as pessoas quem somos e nos juntarmos ao pó. Talvez, quem sabe talvez, iremos cumprimentar John Brooks e descobrir algo maior do que essa falsa verdade. Quem sabe, quando a verdade absoluta nos alcançar, poderemos sentir sermos realmente algo ou alguém?

Daquele modo estranho, sentindo o peso trancar sua garganta e cortar suas vísceras, Claire acordou no dia seguinte para trabalhar.

Os lobos ainda uivavam. Eram eternos. Cães da madrugada, suspirando por um ente falecido. Claire Thompson levantou-se da cama e se olhou no espelho. Estava horrível. Seu rosto, cansado, mostrando três décadas, pedia por mais sono. Sua alma pedia por mais lágrimas. Não poderia ceder nenhum deles. Decidiu entrar em um longo banho e dizer adeus a tudo. Vestiu seu uniforme do supermercado, colocou seus sapatos novos que já não eram mais brancos, amarrou os cabelos e olhou-se no espelho mais uma vez. Aquelas malditas lágrimas estavam presas. Olhou o

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horário. Oito da manhã. Esperou a batida na porta. Sentou-se no sofá. Esperou outra vez. Esperou mais um pouco. Ninguém chegava. Então deu por si. O homem que batia à sua porta todos os dias para acompanhá-la ao trabalho, presenciar todos os seus aniversários, abraçá-la quando o dia era nublado, não estava mais ali. John Brooks partiu sem dizer-lhe adeus. Claire Thompson nunca conheceu seu verdadeiro pai e passou sua infância ao lado de Oliver Brooks, tendo John como figura paterna. Sua mãe não era muito presente. Precisava trabalhar para sustentar a casa. Claire perdeu o pai ainda criança, com pouco mais de dois anos, e lembrava-se vagamente de uma silhueta e um perfume do homem.

Não sentiu nada, no entanto. Era nova demais. As crianças não têm uma percepção tão grande do luto.

Não sabem, exatamente, a dimensão de uma morte. Não sentem como os adultos, já conscientes da presença de algo muito maior, cientes da escuridão eterna capaz de agarrá-los a qualquer momento. Crianças imaginam seus entes caminhando em campos floridos. Andando sobre as nuvens. Estão dormindo. Acreditam na palavra de alguém mais velho e muito mais sábio. Crianças não sabem o que é a morte e como deve ser temida. Esperam ver aquela pessoa entrar correndo pela porta. Entretanto, agora Claire entendeu como sua mãe sentia-se naqueles dias.

Levantou do sofá e caminhou para a saída, tentando não derramar nenhuma lágrima e desfazer sua maquiagem. Deixou sua diminuta casa e exerceu força maior do que tinha para fechar aquela maldita porta. Estava emperrada há anos, precisando ser raspada na parte de baixo. John sempre a fechava e prometia toda semana consertá-la. Não mais iria. Claire lembrou-se disso e desceu as escadas da varanda com pressa. Não havia ninguém na rua ainda. Caminhou com passos rápidos em direção ao ponto de ônibus enquanto fitava seus pés avançando na imensidão da vida.

O que seria dela agora?

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Seguiu andando. Andando. De cabeça baixa. - Erga esse rosto angelical, menina. Parece que está sempre

catando moedas dizia-lhe John. - Estou sempre catando moedas, preciso pagar as contas

Claire respondia. - Vamos resolver então, lhe dou umas moedas. Ao lembrar-se disso, levantou o rosto para o céu. Claire chegou ao ponto, vendo o ônibus aproximar-se ao

longe. Aproveitou para chorar antes de embarcar diante de todos aqueles estranhos. Aproveitou para chorar pelo resto do dia uma última vez, antes que as estrelas caíssem no mundo e pudesse chorar no conforto de seu travesseiro branco.

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7

Ana Coipel permaneceu em frente à televisão da sala. Estava desligada. Escutou o ponteiro do meio dia bater no relógio. Permaneceu parada mais um tempo, olhando, desatenta, uma planta morta. Suas pernas estavam cansadas de andar. Havia feito uma longa caminhada com Jeff até o grande Barracão. O menino, entediado de estar em casa, sentia algo diferente na atmosfera. Jeff Coipel não tinha noção do mundo e como as coisas funcionavam. Vivia aprisionado dentro de sua mente, contando palitos quando caíam no chão e caçando moscas quando passavam à sua frente, no entanto, tornava-se sentimental e afoito quando percebia o sofrimento de sua doce mãe. Sacudia seu braço em busca da rua e falava alto.

- Caminhar lá fora dizia. Ana Coipel não teve escolha. Decidiu tomar a mão do garoto Jeff possuía seus vintes

anos e facilmente alguém poderia confundi-lo com uma criança de dez e andar por Darby. O dia não estava mais tão nebuloso como anteriormente. Mesmo assim, Ana não esqueceu nem por um momento a morte de John Brooks. Quando chegou ao Barracão, comprou um algodão doce para Jeff e alguns chocolates para as crianças da vizinhança. Comprou também um presente singelo para Claire Thompson. Eram sandálias novas, pretas desta vez, para não ficarem sujas de barro. Sabia que a garota não conseguia arcar com essas coisas, especialmente tendo de pagar o aluguel, e não se importou de gastar o dinheiro do falecido marido. Em seu caminho de volta, cruzou com Dorothy Campbel abrindo seu bar. Ambas se

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cumprimentaram com um aceno de cabeça e Ana seguiu seu caminho.

Encontrou Tony Gianos abrindo a casa de John Brooks. Decidiu entrar. Bateu na porta com nós nos dedos, vendo

a figura de Tony perder-se na penumbra do local. Sentiu um cheiro adocicado no ar. Era o perfume galanteador de John Brooks. Segundo John, conquistou muitas mulheres em sua juventude com a simples fragrância do perfume. Disse para Ana, certa vez, em confissão:

- Eu mesmo faço. - E qual é o ingrediente? - Está maluca? - Não custa perguntar respondeu-lhe, zangada. - Vá fazer o jantar, mulher. Passo lá à noite. E seguiu seu caminho como sempre fazia. Os móveis estavam empoeirados. John Brooks apenas

voltava para casa em dias de chuva e, ocasionalmente, à noite. Vivia em todos os tipos de lugares assim como os lugares viviam naquele homem. Seu sofá era impecável e ainda possuía a etiqueta. Não era dono de uma televisão ou aparelho de rádio. Sua fonte de informação residia em uma pilha de jornais amarrados dentro de um cesto ao lado de plantas mortas.

- Então era por isso que ele nunca quis um gato disse Ana.

Tony Gianos olhou-a de sobressalto. Estava perdido em um retrato seu e de John nos tempos da juventude. Ainda lhe restavam cabelos naquela época e usava um bigode ao melhor estilo dos anos 70. Lembrava-se daquele dia como se estivesse vivendo-o. Tudo era tão nítido. Haviam ido pescar naquela tarde, longe da cidade e próximo do litoral. Ambos eram tão jovens e inconsequentes quanto aquela idade lhes permitia ser. Tiveram a ideia de ir para uma das pequenas ilhas que rodeiam a cidade. Podem

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ser vistas dos prédios, ficam distantes e tão próximas, como se fosse uma alucinação febril. Eram, em sua maioria, atrações turísticas onde poucas pessoas moravam.

- Temos de pegar a lancha disse-lhe Tony naquela tarde. - Vamos pegar. John Brooks enfiou a mão em seu bolso na busca perdida

por moedas e encontrou apenas fiapos. Estavam em apuros. Gastaram todo o dinheiro nas cervejas. As varas de pescar foram feitas com galhos cumpridos e quebradiços. John aproximou-se do cais. Era ainda manhã. O sol estava escondido em meio às nuvens brancas do horizonte, esperando o momento certo para sair e iluminar o mundo com seus raios fugidios.

- Que diabos você está fazendo, John? - Indo pescar, molenga. E foram pescar. Com um barco roubado. John e Tony

remaram febrilmente em direção a ilha, cuidando-se por cima dos ombros para ninguém lhes encontrar roubando um barco.

Agora Tony estava velho. Lembrou-se de tudo aquilo. O pequeno peixe pendendo nas mãos de ambos. Aquela foto foi tirada por uma moça da ilha a quem John depois conheceu mais intimamente, como sempre fazia. Quando Tony viu Ana, a memória desapareceu como poeira no ar e sentiu a presença de John Brooks ir embora.

- John nunca foi muito cuidadoso. Exceto com seus livros. De fato, o livreiro estava impecável. Tomava conta de uma

parede na sala de estar e não se via uma singular poeira. Se possível, John Brooks havia limpado aqueles livros até encontrar os átomos.

- John lhe deixou a chave? - Na verdade, não. Tenho que deixá-la para uma pessoa. - Quem? - Oliver. - Quem é Oliver?

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-busca de uma mosca perdida. Seria sua amiga pela eternidade.

Tony Gianos riu-se à meia luz do sol. Parou no marco da porta. Segurava o retrato com calma. Desceu as escadas com ainda mais calma e parou em frente àquela casa. A tinta estava descascando. Oliver iria vender aquele lugar, tinha certeza. Compraria se tivesse dinheiro. Do contrário, daria boas-vindas aos novos vizinhos e seguiria sua vida. John Brooks partiu.

O último de seus amigos havia partido. Ana Coipel levou a planta consigo. Não a deixaria morrer

de modo algum. Se aquele maluco de John não conseguia cuidar, Ana iria. Tony esperou Jeff sair da casa e trancou tudo. Seguiu andando pela rua ao lado de Ana. Estavam perto da casa dela. A noite anterior havia torturado as árvores de Darby. Folhas caídas espalhavam-se pelo chão enquanto o vento frio do mar tentava levá-las embora. Tony achou o dia agradável para a solidão.

- O que vai acontecer com a casa? perguntou-lhe Ana. - Não sei, Ana. Oliver vai vendê-la, provavelmente. Não

que ele precise. Ouvi dizer que vai muito bem. - Pobre Claire. Seria ótimo se tivesse um lugar para viver.

Acha que John tinha um testamento? - Se tinha, não fui capaz de encontrar. Jeff corria à frente deles. Estava agora subindo pela varanda

de sua casa, ignorando a existência dos frágeis degraus. - Tenha um bom dia, Ana. Tony Gianos estava prestes a partir, sentindo a claridade

em seus olhos e a escuridão em seu coração, quando a voz de Ana lhe chamou de volta.

- Ainda não me disse. - O que foi? Jeff pulou a varanda, apenas para subir outra vez. - Quem é Oliver?

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- Você não sabe? Ana Coipel estava impaciente. Jamais soube da existência

dos três filtros de Sócrates. Se soubesse, também não ligaria. Qualquer notícia boa, ruim, útil ou não , iria virar seu dia de cabeça para baixo. Afinal, Ana gastava seus dias escutando lorotas de seus vizinhos sobre outros vizinhos. Sentiria falta de John Brooks. Adorava as lorotas do homem sobre seu passado, entretanto, John nunca lhe revelou a existência de um filho. Sempre pensava no homem como um velho solteirão, solto em sua vida e sem nenhuma família.

- Fale logo, homem! - Oliver Brooks, Ana. Filho de John. Tony Gianos partiu em direção à sua casa do outro lado da

rua. Sentiu cheiro das almondegas de carne de Moira quando se aproximava da varanda e olhou para o sol mais uma vez antes de entrar. Olhou para o retrato em suas mãos e lembrou-se daquele dia tão distante. Sentiria falta de John Brooks.

Mas agradecia por estar vivo.

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8

Talvez, para compreender com exatidão todos os fatos aqui sendo relatados, devemos voltar alguns dias antes dos últimos acontecimentos. Voltaremos para uma tarde calma, dessas que não são nada além de poucas palavras. São folhas silenciosas caídas de árvores, tentando alcançar uma finitude de sentimentos sem dizer nada e simplesmente dizendo tudo.

Veremos um homem correndo. Antes, caminhava. Decidiu correr. Não fazia isso já havia

certo tempo. Estava no auge da sua idade, sentindo seu corpo vibrar com o mundo e correndo em direção ao futuro. Estava em seus 33 anos, a idade do sucesso. Tinha um medo profundo em seu coração de chegar aos quarenta anos e deixar aquela idade. Começar a sentir-se cansado, indisposto e afundar o pé na cova. Seu funeral já estava pago há anos. Não acreditava em acasos ou coincidências, ou destino e a força das estrelas. Sabia que ao atravessar a rua poderia ser atropelado por um ônibus ou coisa do tipo. Melhor pagar o funeral, então. Não necessitava de caridade ou do favor dos seguros. Muito menos necessitaria que seu velho pai desembolsasse o próprio dinheiro para custear tudo.

De repente, pegou-se pensando em morte. Corria devagar, quase como um rápido passo de caminhar.

Já havia feito cinco voltas inteiras na Canaleta e suava em bicas. Mechas de seu cabelo liso e curto caíam na testa. Viu uma ou duas mulheres avaliando seus músculos e sorriu de canto. Ainda tinha tudo em cima. Era isso o que importava, não era? Ser quem somos, agir como agimos e conquistar o mundo. A idade do sucesso. Já não

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pensava mais em como morreria e, por um rápido momento, o rosto de seu velho pai cruzou-lhe a mente atormentada. Balançou a cabeça com rapidez e dissipou o pensamento. Por que pensar naquele homem? Tanto fazia. Continuou correndo. Desta vez, avaliou duas mulheres passando ao seu lado. Conquistar o mundo. A idade do sucesso. Tanto faz.

Seguiu correndo. Suas passadas marcavam a canaleta. Era um homem

correndo por ali. Acelerando no tempo, deixando o vento para trás e uma marca na história. Talvez não. Nessas corridas matinais, refletia sobre isso. Pensava sobre os acontecimentos em sua vida. Pensou sobre Margaret, uma de suas inúmeras namoradas. Poderia estar esperando-o em seu apartamento naquele momento, vestida apenas com uma camisola. Não estaria. Não depois da última noite.

Lembrou-se claramente de Margaret vestindo-se às pressas e em seguida jogando-lhe um abajur. Gostava daquele abajur e agora não acharia um novo para comprar.

- Narcisista bastardo. Porco egoísta! Sim, essas foram as lindas palavras de Margaret. Tanto

fazia. Seguiu correndo. Fechou os olhos por um instante, logo após atravessar a movimentada rua cruzando a Canaleta. Seguiu correndo. Correndo. Sentiu a brisa fresca daquela manhã voando contra seu corpo, o sol tocando seu rosto e as folhas caídas das árvores, tentando alcançar a plenitude humana. Parou de correr e apenas observou as árvores da primavera se alinharem em uma estrada reta e infinita. Algo em seu peito ardeu e o fez sentar-se em um banco enquanto observava aquela multidão de cores. Há anos não fazia isso. Talvez desde sua infância. Desde o último dia em sua vida que chorou. A morte da mãe. Olhou ao redor e encontrou a casa de rações e a Igreja do Salvador no outro lado da rua.

Destino? Não. - Idiotice balbuciou.

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Coincidência? Não. Estava no mesmo lugar que esteve há mais de uma década.

Era garoto, tinha os cabelos cumpridos e namorava uma garota chamada... Como era seu nome? Sabia, em seu íntimo, seu nome. Não quis lembrar-se ou pronunciá-lo. Iria arder seu peito e fazê-lo repensar na vida.

- Que há de mal com a vida que levo? murmurou sozinho à luz do sol.

Viu uma tartaruga passar nadando nas águas da Canaleta. Aquele lugar era pútrido. Efeitos da urbanização. Efeitos da vida social imutável.

- Não há nenhum mal. Não quis, do mesmo modo, lembrar seu nome. Porém,

lembrou-se das lágrimas derramadas naquele banco em nome de sua falecida mãe. Prometeu que nunca mais faria isso. Derramou lágrimas por si só e por seu velho pai, um cão sem coração. Lembrou-se do velho pai. Por onde andaria? Tanto faz. Há alguns anos já não falava com o homem, enviava uma carta, ou um sinal de fumaça. Tanto faz. Estava em seus trinta anos, a idade do sucesso. Era um publicitário de alta classe. Usava terno todos os dias. Dormia com garotas diferentes toda noite. Bebia uísques caros e tinha sua própria secretária. Tanto faz. Deste modo, levantou-se do banco e olhou para as árvores floridas, suspirando. Seguiu correndo pela vida sem realmente encará-la em seus olhos. Sem realmente vê-la em todas suas cores e sentir a força de sua derrubada. Sem realmente se importar, mesmo sabendo das mentiras em seu coração. Dos segredos e dos fardos. Estava preso em sua própria invenção porque, no final, tanto faz.

Oliver Brooks seguiu correndo. Sempre correndo.

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Oliver Brooks nunca voltou para casa naquela noite. Tinha algum compromisso pela cidade. Algo inadiável

requerendo sua atenção. Ao terminar sua corrida matinal, parou em uma loja de sucos e comprou algum. Pediu qualquer um. Tanto fazia. A atendente estava demorando e isso lhe deixou sem paciência. Era uma mulher em seus vintes e poucos anos, não estava nem aí para o serviço ou mesmo para a fila de pessoas acumulando-se na calçada.

- Irá demorar? perguntou. - Apenas um minuto, senhor. Oliver tornava-se mais impaciente. Olhou seu relógio de

pulso. Quase meio dia. Suava em bicas. O sol era forte naquela manhã e não sentiu nenhum sinal de chuva. Talvez o céu começasse a desabar apenas daqui a dois dias. Sempre talvez. Oliver teve uma sensação de não saber nada em sua vida. Tinha esse tipo de epifania momentânea. Afinal, era um homem. Qual homem não possui epifanias e dúvidas sobre suas certezas mais absolutas? Ou, melhor ainda, qual homem nunca duvidou de seus conceitos enquanto estava parado em algum lugar observando a magnitude do céu azul? Oliver não era diferente. Sua humanidade lhe permitia questionar, analisar e pensar se as coisas estavam certas com o mundo. Olhou para trás e viu aquela enorme fila de pessoas. Estava certo?

- Sinto muito, mas há pessoas esperando. Poderia ir mais rápido?

- Senhor...

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A moça tinha olheiras profundas e um lábio rasgado. Havia uma tatuagem de anarquismo em seu braço esquerdo.

- Eu não me importo com seu suco ou a maldita fila, vai precisar esperar.

Oliver era um homem de negócios. Ganancioso ao limite de seu coração. Apesar de sua humanidade clamar por compaixão, também clamava por vingança. Era um homem, afinal. O bem e a maldade são conceitos equivocados de um único espirito. O homem não é bom por ser bom, apenas porque precisa alcançar seus meios.

- Você sabe quem eu sou? - Não ligo a atendente respondeu. - É melhor ligar, mulher incompetente. Ou vou enterrá-la

tão fundo na sua própria miséria que, quando estiver em seu momento de morte, vai pronunciar meu nome. Sabe de uma coisa? Talvez sua tatuagem de anarquismo seja uma máscara para sua vida miserável. Talvez, no fundo, você sinta pena de si mesmo e continua criando um escudo para se proteger. Você não consegue ser boa em atender clientes. E, minha cara, um macaco sem braços consegue fazer o seu trabalho.

Então o silêncio reinou. Oliver estava enfurecido. Sentiu seu coração disparar mais

rápido do que costumeiro. Nunca pensava em fazer essas coisas até realmente fazê-las. Sabia ser parte de sua natureza intolerante. Não aguentava seu próprio pai, por que aguentaria uma mulher qualquer? Certas coisas precisavam ser ditas. Em seu âmago, sentiu ser o certo. E esboçou um sorriso de vencedor. Nunca pensou em desculpas. Essas coisas não valem nada. Desculpas? Continuava sorrindo. Havia ganhado a discussão. Enquanto isso, naquela enorme fila arrastando-se pelo quarteirão, as pessoas permaneceram em silêncio profundo. Houve um cochicho e alguns indivíduos também enfurecidos reclamando. A atendente, uma moça chamada Melinda, estava, também, em silêncio. Sentiu seu mundo desabar

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quando soube que um macaco poderia fazer seu trabalho. Seria verdade, pensou? Aquele cara teria razão? Como um cliente afetou tanto sua vida? Iria provar o contrário. Fez o suco do modo mais rápido possível e entregou para o cliente com um sorriso no rosto.

Seu sorriso sumiu quando Oliver jogou-lhe o suco de volta. - Liga agora, macaquinha? Oliver Brooks virou às costas e seguiu andando pela

canaleta. Era hora de ir para o apartamento. Havia planos para aquela noite. Houve, no entanto, uma grande balbucia sobre o homem. A moça sentiu-se ultrajada e foi para casa. Nunca Oliver poderia saber de sua tentativa de se enforcar naquele mesmo dia. Felizmente, a vida é cheia de coincidências e o peso de seu corpo rebentou os pilares do porão de sua casa, cuja infestação de cupins era eminente. Certamente, mesmo que soubesse Oliver jamais iria ligar para tal fato. Estava vestindo-se em seu apartamento no momento do ocorrido. Um terno com camisa branca e gravata preta. Um verdadeiro homem se vestiria assim. Tinha muito a perder e precisava impressionar os novos clientes da firma. Eram dois magnatas vindos do sul. Cabeças de vento pensando apenas em dinheiro e não no panorama geral. Oliver iria convencê-los da melhor publicidade para sua companhia. Seria um trabalho inesquecível capaz de render-lhe novos prêmios. E, naquela noite, o mundo mudaria. Oliver partiu para o bar na Rua Groth. Estava pronto.

Quando cruzou as portas, foi realmente notado por todos.

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10

O homem do momento caminhou com elegância. Sentiu o perfume de mulheres à sua volta, a inveja dos

homens e o poder que o mundo estava lhe conferindo naquele exato instante. Caminhou de cabeça erguida, sentindo o trabalho duro valer a pena. As coisas simplesmente eram assim. E Oliver adorava. Tinha o poder para fazer tudo. E iria usar esse poder para conseguir aqueles malditos novos clientes. O violino começou a tocar no bar conforme Oliver caminhou com passos lentos em direção à sua mesa. Avistou os dois homens conversando. Um deles era careca e o outro usava um bigode de motoqueiro. Seus ternos já haviam completado uma década. Decadência pensou Oliver. Viu também uma loira com óculos redondos caminhando em sua direção. Usava um jeans surrado e uma jaqueta de couro.

- Que diabos, Stacy. - O que foi? Sua voz sempre irritante. Porém, Stacy era competente no

trabalho. - Lembra o que eu lhe disse? - Vinho branco e uísque caro para os homens da

Goldenberg? - Traje a rigor, Stacy. Você veio de um clube de

motoqueiros ou algo assim? - Desculpe, Sr. Brooks. - Está demitida, Stacy. - Por favor, Sr. Brooks, prometo não errar da próxima vez,

por favor...

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- Relaxe. Estou brincando. Então... Faça seu trabalho. Stacy relaxou os ombros e ajeitou os óculos com o dedo

indicador. Odiava aquelas brincadeiras. Odiava Oliver Brooks com toda a fúria possível. O homem, aos seus olhos, era arrogante e ingrato. Stacy trabalhava com Oliver desde muito jovem. Começaram a parceria há quase uma década e Oliver nunca conseguiu perceber seu potencial. Nunca lhe disse que estava fazendo um bom trabalho. Escutava apenas as piores coisas. Em certos dias, Stacy cuspia em seu café e Oliver nunca reclamou.

- Está maravilhoso, Stacy. Agora volte a porcaria do seu trabalho sempre dizia.

Stacy voltava para sua casa todos os dias com a sensação de não estar fazendo nada útil. Gostaria de ser enfermeira e não tinha tempo para os estudos. Reclamava para as amigas de seu chefe e sentia que não aguentava nem mesmo o perfume do homem. Todos os dias, todas as semanas e todos os meses. Não podia fazer nada. Precisava do emprego e, apesar de tudo, Oliver nunca lhe foi desonesto. Sempre pagou mais do que a firma deixava. Conhecia as horas de esforço de Stacy e lhe recompensava em dinheiro. Afinal, para Oliver, era assim que a coisa devia funcionar. Dinheiro valia tudo.

- Tudo bem, Sr. Brooks. Os dois estão esperando a proposta mais simplista que houver. Não esperam grandes coisas do senhor. Ouviram sobre suas excentricidades e já formaram uma opinião. Caso não os derrube do cavalo, não vai fechar com eles.

- Stacy. - Sim? - Quando eu não derrubo as pessoas do cavalo? Oliver Brooks sorriu para sua secretária e beijou-lhe no

rosto, partindo em direção ao ataque. Stacy mostrou-lhe a língua por trás de suas costas e o seguiu imediatamente. Ambos sentaram à mesa com os homens. Oliver deixou o sorriso imediatamente. Um

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deles não estava usando nenhum perfume e fedia a gordura. Fitou Stacy brevemente. Seria uma bela noite.

- Senhores, nós não precisamos desta reunião. - Podemos ir embora então? respondeu Noah

Goldenberg. Um fato sobre os homens: eram irmãos. Os irmãos

Goldenberg estavam na cidade há cerca de um ano e tentavam consolidar um mercado difícil diante de tantas marcas existentes. Eram donos de uma fábrica de chocolate. Faziam os melhores

grande público. E os irmãos Goldenberg decepcionaram-se com a personalidade de Oliver Brooks. Desde seu início, permaneceram humildes irmãos criados por uma mãe solteira na década de 60. E fundaram sua companhia com base na humildade. Procuravam um publicitário do mesmo modo, capaz de inspirar as pessoas e talvez levá-los a outros rumos. Oliver Brooks não era o homem.

- Senhores Oliver sorriu. Já estamos aqui. Deixe-me apenas dizer que seus biscoitos são deliciosos.

- Você provou? sussurrou Stacy. Oliver fitou-a de canto, ignorando seu comentário. Já

devia conhecê-lo a essa altura. - Ficamos felizes. - Eu não como doces disse Oliver. - Então porque os provou? Está tentando nos impressionar,

Sr. Brooks? Oliver Brooks cruzou as pernas. Serviram-lhe uma dose de

uísque. - Honestamente, não. Estou apenas dizendo que podemos

alcançar todo tipo de público. Eu posso fazer isso. Com um simples slogan.

- E qual seria?

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- Todas as vidas são amargas. Biscoitos Goldenberg são doces.

- Um pouco pessimista, não acha? - O mundo é pessimista, senhores. Sou o melhor no ramo. Oliver bebeu seu uísque em um único gole. Stacy roía as

unhas. Fechar com aqueles homens iria lhe render um belo aumento. Havia sido gentil com eles até o momento em que Oliver estragasse tudo.

- Se não querem me contratar, procurem George Thunder. É um bastardo arrogante, presunçoso e medíocre. Publicitário? Chame de amador. Eu sou o melhor dos melhores. Nós nos vemos por aí.

Oliver Brooks levantou-se e abotoou seu terno. Stacy pediu desculpas aos homens gentilmente e seguiu seu chefe. Oliver sabia como os dados rolariam. Estava partindo quando ouviu a voz rouca de um dos irmãos. Sorriu dentro de si mesmo. Aquela técnica de desprezo sempre funcionava.

- Está contratado. Os homens passaram por Oliver e Stacy, cochichando

sobre o melhor dos melhores. Oliver Brooks mandou Stacy para casa em táxi e pediu outra dose de uísque. A noite seria longa.

Afinal, era o homem do momento.

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11

Oliver não soube exatamente onde acordou. Olhou ao redor, sentindo o crânio latejar e uma súbita

náusea subir-lhe a garganta. Onde estava? Continuou olhando ao redor, sentindo tonturas e pequenos pedaços de um mundo há muito distante. Memórias passadas. Noite anterior. Risos. Corações partidos. Uma ligação de alguém. Uma mulher de vermelho batendo em seu rosto e beijando-lhe em seguida. Que diabos? Sentiu o lençol de seda roçar em seu corpo desnudo e viu-se em um grande espelho no teto. Era selvagem, mas não tinha espelhos em seu apartamento. Então olhou para o lado.

Encontrou uma mulher ao seu lado. Ruiva, vinte e poucos anos, roncando. Oliver sempre

possuiu uma tendência para as ruivas, como se tentasse substituir alguém. Odiava admitir a verdade. Não lembrava daquele rosto até vê-la no espelho do outro lado. Qual era o problema? Por que tantos espelhos? Fitou-se por um minuto. Estava bem. As corridas haviam ajudado seu tórax. Talvez começasse a deixar os cabelos brancos aparecerem. Seria uma espécie de charme. Mulheres tinham essa coisa inexplicável com homens mais velho. Ou não? Não.

Tinha dinheiro, pensou. Assim as coisas funcionavam. Dinheiro compra tudo e

todos. Certamente precisaria de bastante para fazer aquela mulher ao seu lado desaparecer. Tentou lembrar-se das coisas. Noite passado. Os irmãos indo embora. Stacy pegando um táxi. Então os

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espelho do teto. Cruzou os braços por trás da cabeça e refletiu sobre todas aquelas memórias perdidas. Estava em seu auge. Lembrou-se dos risos tão descontraídos. E tão falsos. Seu sorriso sumiu lentamente, deixando de ser o que era de modo silencioso. Eram risos de outras pessoas sobre suas histórias e sobre seu auge. Sentia-se bem. Era rico e poderoso. Tinha aquele único sentimento capaz de tornar homens bons em maus. Não são maus por verdadeira maldade ou uma natureza cruel. São maus apenas porque podem ser. O mundo lhes permite. Não nega nada.

Há uma mágica naquele sentimento. Está lá, e meio a todos, esperando o momento da vida

acertá-lo e jogá-lo no chão como fez algumas vezes antes. Então os segundos se esvaem, a noite derrama sua negritude pelas calçadas de um mundo perdido e o momento continua. Oliver sorri para todos. Aperta mãos. Ainda está no topo. Está de pé. Pensando em como as coisas são. Há uma felicidade em seu peito por estar ali, mas há um vazio por não ter conseguido outras coisas. Coisas realmente valiosas, diria seu pai.

Pai. Isso era hora de pensar no velho John? Diabos. Por que

andava pensando tanto em seu pai? Ocorreu-lhe pensar no velho pai aquele outro dia, na Canaleta. Pensou na mãe também. Talvez devesse telefonar. Bobagem. Para o inferno com seu pai. Para o inferno com tudo. E, então, os pensamentos de Oliver Brooks tornaram-se fumaça, perdendo-se na longitude deste mundo. Perdendo-se para sempre. Encontrando-se com a mulher ao seu lado. Sentiu aquela delicada mão percorrer seu peitoral.

- Bom dia, tigrão ouvi-a dizer. - Bom dia... Moça. - Como está, Sr. Brooks? - Estive melhor. - Foi uma ótima noite, não foi?

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- Claro. Agora eu preciso ir. Oliver estava de pé em um salto, recolhendo suas roupas e

pertences do chão e dos móveis. Antes de se vestir, fitou seu reflexo uma vez mais no espelho e esboçou um sorriso malandro de canto. Estava mesmo em forma. Por que brigava tanto consigo? Filosofias, ideologias. Já as conciliou uma vez. Abriria sua carteira e as conciliaria novamente. Oliver estava prestes a sair pela porta.

Então ouviu a voz daquela mulher. Tinha um timbre rouco, mas seu corpo escultural era perfeito como uma deusa do olimpo. Com certeza, Oliver ainda tinha bom gosto.

- Você irá me ligar? perguntou. - Claro Oliver respondeu. Então a deixou para trás com uma piscadela. Deixou tudo

para trás e tornou-se, outra vez, o homem do momento.

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Oliver Brooks contemplou o mundo diante de seus pés. Estava parado em frente à vidraça de seu escritório. Já

próximo ao meio dia tinha um copo de uísque em sua mão direita. Bebeu aquela dose, sentindo-a descer por sua garganta com naturalidade por já estar acostumado com a bebida. Continuou olhando a imensidão. Havia um véu azul acima dele, cheio de nuvens e poeira. Talvez houvesse outra coisa no ar, perdido entre as buzinas incessantes e os passos apressados da urbanização. Os tratores rugiam enquanto o vento lufava lá fora e seu cerne gritava, incompreendido e escondido atrás de uma janela embaçada de sentimentos confusos. Oliver não conseguiu compreender o motivo dos últimos acontecimentos.

Stacy não quis interrompê-lo. E o desenrolar dos eventos não foi bonito.

Oliver chegara atrasado como em todos os dias de sua vida. Stacy já o esperava a duas horas, tentando distrair os irmãos Goldenberg. Eram homens demasiadamente simpáticos e simples, pensou a pobre Stacy. Haviam entrado no escritório e distribuído uma caixa de biscoitos para cada empregada no local. Como bem se devem imaginar, gentilezas geram gentilezas e os irmãos não apenas ganharam novas consumidoras, como ganharam sorrisos e cantadas de todas as mulheres. Stacy estava feliz com sua caixa de biscoitos e tratou de ser o mais gentil possível com aqueles homens. Vestia uma saia preta e uma camisa com o colarinho aberto. Sua melhor roupa. Limpara seus óculos, cuja poeira da vida cansada estava acumulada. Pediu aos homens que sentassem no sofá vermelho de Oliver Brooks

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e ofereceu-lhes bebida e aperitivos. Recusaram. Pediram para saber da vida de Stacy.

- Ora, são muitas coisas, senhores. Não quero lhes aborrecer com detalhes lhes disse gentilmente.

- Mas não vai respondeu-lhe Noah Goldenberg. - Sim, temos tempo até seu querido patrão resolver

aparecer falou Josiah Goldenberg. Stacy sentiu o tom zombeteiro embutido na voz de Josiah.

Não gostavam de Oliver Brooks desde o primeiro dia. Nada os ajudaria a simpatizar com seu chefe. Então decidiu falar.

E falou. Muito. A verdade é que Jane Stacy era tímida e recatada. Além de

uma pobre vítima como muitas outras de uma rotina esmagadora. Acordava sempre as seis da matina. Tinha os olhos inchados, o cabelo amassado e o rosto cansado. Ainda morava com sua mãe, qual sofria de uma deficiência nas pernas e a inspirou a ser enfermeira. Stacy apenas sonhava. Gastava suas poucas horas livres tentando ler os livros e juntando dinheiro para pagar os estudos. Estava prestes a ingressar na faculdade. Segundo os conselhos de seu

- Sonhos são apenas sonhos, Stacy. Esqueça-os. Enterre-os

tão fundo que não verá sua própria cor disse um dia. Stacy nunca escutou Oliver Brooks. O Sr. Brooks não sabia

nada e também não era capaz de ver além de seu próprio egocentrismo. O sonho não era para Stacy, e sim sua mãe. Stacy era filha única e precisava cuidar da mulher que a cuidou quando seu pai partiu, anos atrás. Porém, Stacy era uma refém do trabalho. E da tal rotina. Rotinas são más, todos sabem. São como indivíduos invisíveis, grudados na matéria negra e no mal do mundo. Estão sempre à espreita, cuidando sua presa das esquinas. Naquele momento fatídico, quando nos vemos correndo em direção à luz, a rotina irá lhe caçar e fazê-lo cansar. Com Stacy, nada diferente.

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Como já dissemos, acorda às seis, entra em um longo banho, veste suas melhores roupas bem se sabe que Oliver Brooks jamais iria admiti-la com uma roupa surrada e prepara o café de sua mãe e o seu. Deixa a velha Ângela Stacy confortável em frente à televisão e parte em busca do trem. Atravessa a cidade, desde o outro lado da Canaleta, cruzando a Vila Bourbon e Cosco, em uma longa viagem de aproximadamente uma hora, para então cruzar os portões da Winter e Garner Publicidade. Deixa o café de Oliver Brooks preparado, sua agenda em cima da mesa e arranja desculpas para todas as donzelas perdidas ligando em busca de seu patrão.

Quando Stacy deu por si, os homens estavam deslumbrados com sua simplicidade e Oliver Brooks observava a cena, com sua sobrancelha de rancor Stacy tinha certos apelidos para todas as excentricidades de seu patrão -, os braços cruzados e o corpo encostado no marco da porta.

- Stacy. - Sr. Brooks? Iria ser demitida. Estava certa. - Dê o fora do meu escritório disse Oliver. - Sim, senhor. Stacy estava fora do escritório o mais rápido possível,

sentando-se em sua cadeira desconfortável e perdendo-se em sonhos férteis da juventude.

- Desculpem, senhores. Às vezes Stacy passa um pouco dos limites...

- Deveria tratar seus funcionários melhor, Sr. Brooks. Afinal, eles quem fazem todo o trabalho duro.

Oliver não conseguiu segurar o riso. - Está bem, Sr. Goldenberg. Vamos aos negócios. O que

fazem aqui? - Queremos um novo slogan. Achamos o seu... Como foi?

Algo sobre vida amarga? falou Noah.

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- Todas as vidas são amargas. Biscoitos Goldenberg são doces.

- Sim, isso interrompeu Josiah. Olhe, Sr. Brooks, gostamos de ser simples. Nosso pai começou a vender chocolates quando ainda éramos crianças. Faça algo simples.

Oliver Brooks mordeu seu lábio inferior. Sua mente era genial e os prêmios em seu escritório confirmavam isso. Como alguém podia lhe dizer o que fazer em seu próprio ramo?

- Senhores Goldenberg, não lhes digo como fabricar a porcaria de seus biscoitos. Deixem-me fazer o meu trabalho. Terão o melhor dos resultados.

- Porcaria de biscoitos? Stacy, enquanto escutava toda a conversa, já classificava

aquela causa como perdida. Adeus aumento e adeus clientes. - Tudo bem, podemos trabalhar em algo novo Oliver

sentou-se em frente aos homens. Os irmãos Goldenberg estavam de pé. Olharam Stacy ao

longe, concentrada em seu próprio cubículo. - Desculpe, mas não queremos - retrucou Josiah. Seu irmão pareceu concordar. - O que isso quer dizer? Vão pular do barco, seus gordos

de meia tigela? Stacy tinha certeza que a causa estava perdida. Ambos os

irmãos balançaram a cabeça negativamente. Oliver continuou: - Sabem quem eu sou? Sou o maldito Oliver Brooks. Eu

vendo coisas. E sabe a alma de uma publicidade, independentemente de ser boa ou ruim? A alma está na boca das pessoas. Se aquele bando de acéfalos continuarem falando de um anuncio significa que funciona. Porém, acho que os senhores não conseguem enxergar. Suas bocas estão cheias de doce. Adivinhem? A barriga também.

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Noah Goldenberg aproximou-se de Oliver Brooks e bateu em seu ombro. Não pareceu ter rancor em seu rosto e o coração permaneceu em paz. Lembrou-se de algo que seu pai lhe disse há anos, sobre homens como aqueles. Algo sobre seguir em frente e deixá-los em sua própria ruína.

- O senhor é um monstro, Oliver Brooks. Passar bem. E agora, quase uma hora após o ocorrido, Oliver Brooks

segurava um copo de uísque enquanto observava o mundo lá fora. Não haveria consequências, afinal, era um sócio majoritário. Punições? Nunca. O que ocorreria devido ao seu comportamento? Nada.

Arremessou o copo de uísque em uma parede, derrubando a moldura de seu ídolo, Henry Ford.

Voltou a fitar aquele mundo pequeno. Formigas andando lá embaixo, perdidas em suas preocupações cotidianas, tentando ganhar a vida, conquistada por Oliver com tanta facilidade. Tentando não sofrer as consequências de seus atos. Eram pessoas boas, algumas. Pessoas de bem. Indo para a casa todos os dias, revendo seus filhos e passando por mais um dia. Dormiam em paz, pois seu travesseiro era leve e o coração sem venenos. Oliver não sabia quem era. Filosofias estavam longe daquele escritório. Perdera as ideologias há anos. Lembrava-se de algumas coisas quando corria, apenas.

Enquanto estava ali, diante da imensidão, lembrou-se de John Brooks. Algo lhe dito há anos.

- Cuidado, filho. O mundo está cheio de sussurros. Sussurros ruins, capazes de fazer um homem esquecer sua própria natureza. Seu próprio sangue. Por favor, não deixe esses sussurros chegarem a seus ouvidos. Empreendedor norte americano, conhecido por ser o fundador da Ford Motor Company

e o pai do método Fordismo, utilizado para trabalho em grande escala. Nota do Autor.

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- Vá para o inferno, velho foram as palavras de Oliver naquela época.

Agora refletia. Quem era? Por que era? - Vá para o inferno, meu velho cochichou para si mesmo

naquele instante. Agora não via mais a imensidão, e sim seu próprio abismo.

Pegou-se pensando no que é e no que há. Oliver apenas conseguiu lembrar-se das palavras de Noah Goldenberg.

O senhor é um monstro, Oliver Brooks. Passar bem.

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Não corria daquele modo há anos. O suor pingava por seu rosto e as nuvens escondiam o sol

desta terra. O tempo iria virar. Estava negro e estranho, confuso os pensamentos daquele homem lúgubre distante da terra. Oliver baixou a cabeça e continuou correndo pela Canaleta. Não viu as árvores e pouco ligou para a ventania lhe açoitando. Tanto fazia. Precisava apenas correr. Correr mais. Suas pernas não acompanhavam o ritmo de seu coração e seu coração fazia o oposto de sua mente.

O senhor é um monstro. Um monstro. - Um monstro sussurrou. Sentiu seu suspiro perder-se no ar. Olhou as horas em seu

relógio naquela manhã. O dia anterior havia sido terrível. Perdeu ambos os irmãos Goldenberg para aquele idiota na Rua 5. Quem eram aqueles caras, afinal? Capazes de ditar o certo e o errado? Eram clientes.

- Clientes. Tanto faz. Oliver seguiu correndo. Os pingos de suor desciam por seu

pescoço. O vento atacando-o fortemente. Por que estava correndo tanto hoje? Tinha medo de algo? Não. Era Oliver Brooks. Não temeria mal algum.

- Um homem é escravo de sua própria consciência disse a voz.

Subitamente parou de correr. Estava perdido em uma maré de emoções incontroláveis.

Sentiu vontade súbita de gritar. Não tinha aquele sentimento há um

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longo tempo. Seu peito arfava e a respiração perdia-se no ar, assim como suas próprias ideologias e pensamentos. Olhou as nuvens no céu, tornando o mundo em uma única penumbra. Uma sarjeta perdida. Então aquela voz. Sabia a quem pertencia. Era calma e pausada, causando-lhe aversão. Oliver Brooks aproximou-se da Canaleta e vomitou seu café da manhã. Sentou-se em um banco de pedra e limpou os lábios. Aquela voz.

Aquela voz pertencia a John Brooks. Seguiu correndo. Não havia nada a se fazer e precisava

trabalhar. Arranjar novos clientes. Voltou para seu apartamento, cruzando o portão de entrada e subindo o elevador. A escuridão do local era acolhedora. Permaneceu muitas vezes naquela penumbra, sentado em um banco, com a cabeça baixa e o tormento em seu coração. Sem saber sobre o certo e o errado. Mas desta vez não tinha tempo e decidiu acender as luzes. Encontrou um bilhete embaixo da porta. Uma mulher chamada Natalie. Diabos, quem era Natalie? Oliver Brooks não sabia e não podia ter ligado menos. Tanto fazia se alguém o procurava, ou amava. Jogou aquele bilhete no lixo e banhou-se longamente, vestindo em seguida uma camisa branca e terno preto. Estava pronto para o dia a seguir.

Era o rei do mundo ao cruzar os portões da Winter e Garner.

Stacy caminhou com passos rápidos atrás de seu patrão quando o viu, levando para o mesmo uma agenda de compromissos naquela tarde e pronto para lhe falar sobre certo homem esperando -o em seu escritório. Não houve tempo, é claro.

- Stacy. - Sr. Brooks. - Quem é aquele homem estranho em meu escritório? - Sr. Thomas Port. Advogado. Nunca ouvi falar. - Mande-o embora. - Disse ter notícias urgentes.

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Brooks, caracterizado pela sobrancelha levantada, o rosto impassível e o lábio retorcido. Sabia o que fazer. Bastava expulsar o homem do escritório. Porém, o estranho homem já havia ido até Oliver Brooks antes que o mesmo sumisse de seu radar. Oliver fitou Stacy em desaprovação.

Thomas Port estendeu-lhe a mão. O advogado, cujo bigode caía de modo arqueado sob seus

lábios, tinha os cabelos grisalhos e lambidos para trás. Cheirava a colônia barata e usava um terno que poderia, provavelmente, ter pertencido ao seu próprio avô. Os cotovelos eram remendados e havia apenas um botão. Seus sapatos foram polidos recentemente e mascava chicletes de nicotina. Suas mãos trêmulas sugeriam bebida e as marcas no rosto indicavam fumar desde a juventude. Juntando tudo isso, Thomas Port era a personificação de um advogado meia tigela, cujo salário servia para pagar pensão às suas três ex-mulheres. Além de tudo, sua voz lembrava a de um radialista e suava em bicas.

Imagina-se o repúdio de Oliver pelo homem em seu escritório.

No entanto, Thomas Port pareceu familiar. Talvez fosse aquela colônia ou seu jeito esquisito de andar e cumprimentar alguém. Oliver pensou já ter ouvido sua voz em algum momento de sua vida. Em seus pesadelos, supôs.

- Receio ter algumas notícias ruins, Sr. Brooks. - Aqueles dois pilantras lhe mandaram aqui? Os

Goldenberg? - Gold-o-quê? Não, não, não, não, não... Ah, sim. Oliver lembrou-se imediatamente. Thomas Port

possuía um problema nervoso. Repetia as mesmas palavras diversas vezes. John Brooks conhecia um homem assim. Alguém de algum bar. Oliver pensou em seu pai outra vez. Por que pensava tanto em John Brooks nos últimos dias? Talvez fosse alguma espécie de sinal.

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Besteira. Nunca acreditou nisso. Entretanto, era seu pai. O que havia de errado pensar no velho?

- Não, não... - Desembuche, homem. - Claro, me desculpe, desculpe. É sobre seu pai. John

Brooks. - Se veio aqui pedir dinheiro, mande-o para o inferno por

mim. Diga para me esperar lá e reservar um assento. Thomas Port permaneceu em silêncio enquanto segurava

sua maleta cuja alça estava rasgada. Olhou para o chão por um instante. Então respirou fundo. Suor escorria por suas axilas. Thomas Port odiava ser advogado. Sempre quis abrir um maldito bar em algum lugar. Ou então virar um jogador profissional de sinuca. Ou velejar. Ou fazer qualquer coisa que não fosse advocacia. Era advogado de testamento e cumpria alguns papeis difíceis. Já havia sido esfaqueado porque o falecido não deixou nenhuma herança a seus filhos.

Thomas Port havia enfrentado coisas demais nessa dura vida. Queria apenas aposentar-se. Sentiu, em seus ossos, que John Brooks não iria deixá-lo descansar em paz.

- Seu pai está morto, morto.

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O mundo inteiro pareceu parar. Apenas por um momento. Oliver Brooks não conseguiu enxergar nada. A vista da

cidade era apenas um imenso borrão. Seu rosto estava corado e os nervos aflitos. Sentiu o coração bater rápido e começou a suar. Afrouxou a gravata e suas pupilas dilataram. Não escutava nada. As buzinas da urbanização começaram a voltar gradualmente conforme viu as secretárias passarem aflitas por seu escritório, Stacy com o rosto nos livros e Thomas Port perguntando-lhe se passava bem. Apoiou-se em sua mesa e pensou que fosse cair. Por que tanto? Nem mesmo gostava de seu pai.

- Sim, estou bem falou Oliver, finalmente. - É bom. Bom, bom, bom... - Pare com isso. - Desculpe, desculpe. Thomas Port teve de morder o lábio inferior para apaziguar

seus próprios tormentos. Sua incessante mania de repetição. - Sr. Brooks, sei que é um homem ocupado, ocupado,

mas... Precisa vir ao meu escritório em Darby. - Por quê? - O testamento de seu pai. - Aquele velho deixou um testamento? Oliver tentou disfarçar o tremor em suas mãos enchendo

um copo com água e bebendo-o o mais rápido possível. Seu coração poderia pular para fora a qualquer minuto. Sentia como se um trator tivesse o atropelado e permanecido em suas costas. A pulsação estava acelerada e podia vomitar novamente. Pensou primeiramente ser um

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ataque de pânico. Não. Aquilo era demais até para si mesmo. Era algo mais além. Um sentimento de lamúria trancado dentro de seu peito, gritando para sair e arrombando todas as portas. Como um lobo sem uivar.

- Sim, deixou. Mas há certas peculiaridades, peculiaridades, sim.

Thomas Port estava nervoso. Mordia o lábio inferior para controlar sua língua e pensou quase deixar sua maleta escorregar por entre os dedos magricelas.

- Peculiaridades? perguntou Oliver. - Excentricidades, excentricidades. - Tudo bem. Deixe o endereço com minha secretária e

passarei lá amanhã pela manhã. - Ah, não. O funeral é amanhã. - Já? - Seu pai deixou tudo acertado com o Sr. Gianos. Tony Gianos. Oliver lembrou-se daquele nome

imediatamente. Tony Gianos era o melhor amigo de seu pai, e havia anos que Oliver não o via. Pensou que o homem já devia ter morrido a essa altura. Aquela seria uma semana difícil, tinha certeza. Uma espécie de túnel ao passado. Iria visitar as areias de Darby, cruzando a grande Avenida das Alamedas e as casinhas com varanda de madeira. Os vizinhos curiosos com cabeças para fora da janela, tentando cuidar a história do próximo sem a noção da sua. Aquele mundo brilhante em Darby, um lugar quais poucos escapam sem amarguras. Para Oliver Brooks, uma ida ao próprio inferno.

- Tudo bem. Pode ir. Passarei por lá. - Mais uma coisa, Sr. Brooks. Seu pai deixou esta carta,

carta, para o senhor. Thomas Port abriu a maleta e fuçou em meio ao

redemoinho de papéis perdidos. Pediu um minuto para Oliver Brooks e sentou-se em seu sofá. O minuto se esvaiu e os papéis

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estavam ainda mais bagunçados. A cabeça diminuta do homem parecia entrar dentro daquele labirinto branco e voltar para a superfície em busca de oxigênio. Então, com um pulo, Thomas puxou um envelope amassado com o nome de Oliver escrito à mão. Tentou desamassá-lo rapidamente antes de passar ao seu cliente. Quando não conseguiu, contentou-se em deixar o envelope em cima da mesa. Aquele envelope branco pareceu flutuar por um ínfimo instante, como se uma força sobrenatural estivesse segurando-o. Como uma pena levada ao vento, navegando pelas marés desta vida injusta.

- Desculpe, Sr. Brooks. Tenho que ir. - Vá, homem. Por favor. Thomas Port fechou sua maleta e deixou o escritório

apressado. Repetiu bom dia para todas as mulheres que viu e mais algumas vezes para si mesmo. Stacy correu para dentro do escritório de Oliver assim que conseguiu.

- Está tudo bem, Sr. Brooks? perguntou. - Sim, Stacy. - Certo. Stacy estava prestes a retirar-se quando Oliver tocou em

seu ombro gentilmente. Stacy nunca vira seu rosto pálido daquele modo e os lábios fechados em uma espécie de lamento silencioso. Segurava o envelope em sua outra mão.

- Stacy, - começou cancele meus compromissos. E tire o dia de folga.

- Está bem. - E... Houve uma pausa. Um trovão atingiu a cidade, ecoando

seu barulho pelo silêncio fúnebre. - Desculpe por tudo continuou. Oliver Brooks afrouxou sua gravata ainda mais e andou

calmamente em direção ao elevador. Precisava ir embora. Stacy

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permaneceu observando-o ao longe, enquanto caminhava com os ombros caídos e os olhos pregados em seu próprio nome no envelope. Viu-o sumir pela multidão de pessoas no escritório e depois pegar o elevador. Oliver Brooks havia pedido desculpas. Isso nunca acontecia. O coração de Stacy estava pesado. Seus pensamentos estavam pesados.

E o mundo estava prestes a mudar. Seu próprio mundo.

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Oliver sentiu as gotas corroerem o restante de sua alma. Os pingos de chuva caindo com força em seu rosto

conforme corria pela Canaleta. Havia voltado para casa e se livrado daquele terno e gravata. Precisava correr um pouco. Havia deixado a carta em cima da mesa de centro na sala. Precisava apenas correr. E foi o que fez. Não se importou com a chuva, o vento empurrando-o para o outro lado ou a solidão de sua corrida. Não viu uma pessoa por horas enquanto corria sem parar em volta da Canaleta. Forçou seu corpo a isso, não se importando de estar encharcado. Precisava correr. Suas pernas cortavam o vento, correndo com velocidade e implorando que não parasse. Precisava correr. De tudo e de todos. Sua mente era uma tormenta, uma pilha de segredos emocionais. Guardados em baús que não ousava abrir. Havia pensado demais em seu velho pai nos últimos dias. Nunca teve um bom relacionamento com o homem, mas jamais desejou verdadeiramente sua morte. Era apenas mais um...

Seria sua culpa? A culpa de uma ingratidão cheia de demônios? Sentiu as

chibatadas dos segredos em suas costas. O remorso corroendo suas entranhas como vermes. Que sentimento era aquele? Por que o mundo continuava a desabar em cima de Oliver? Não sabia as respostas. Nunca soube. Seu pai lhe falava disso. Quanto mais respostas estivesse à procura, mais perguntas encontraria. Prometeu fazer aquele velho engolir suas próprias verdades. Suas filosofias baratas de ser um boêmio, alguém perdido na própria vida, sem rumo, sem estrada e sem um caminho. Alguém cujos dias resumiam-

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se em uma longa caminhada pela Avenida das Alamedas, uma parada em um bar, conversa jogada fora e as frustrações despejadas em seus pecados, seu filho e sua esposa. Por um segundo, Oliver sentiu-se bem com a morte do pai. Talvez as coisas começassem a se acertar. Era o pagamento por tudo que fez a sua pobre mãe. Mas então, lembrou-se que jamais daria o troco. Nunca provaria seu valor a John Brooks.

O homem morreu sem saber. Oliver continuou correndo, com o capuz escondendo seu

rosto. As sombras abraçando seu próprio luto. De repente, ao chegar à ponta da Canaleta, parou. Os carros passaram rápido por Oliver, traçando seu próprio destino. Destino pensou. O que era destino?

- Que destino é o meu? perguntou-se. - Traçamos nosso próprio destino disse-lhe John Brooks. Escutou a voz de seu pai como se estivesse presente, ao seu

lado. Uma figura viva em seus pensamentos e morta em um mundo incessante. Seu pai. Sangue de seu sangue. Por quê? Oliver queria gritar. Desejava uivar como uivam os lobos. As coisas começavam a desmoronar. Seu emprego. Seu pai. Tudo. Fitou o céu em busca de uma resposta. Nunca chegou. As gotas de chuva apenas molharam seu rosto. Talvez aquela fosse a resposta suprema. Uma noite aproximando-se. Um véu negro para mascarar tudo. Oliver decidiu correr de volta para seu apartamento. Correr. Resumia todos os seus sentimentos. Seu trajeto não era um trajeto e as coisas à sua volta, as casas e pessoas escondidas em seus próprios problemas e torturas não passavam de borrões diante de seus olhos. Suas próprias

aflições, desejos e sonhos juntavam-se à poeira do universo e fugiam, por um minuto, deste mal da sociedade. Tornavam-se um, e zero, e mil. Para então tornarem-se apenas nada. Por isso, Oliver Brooks corria. O trajeto era seu e nele estava. Fundindo-se ao mesmo.

Oliver parou de correr quando chegou diante de seu apartamento.

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Não havia pessoas na rua. Viu uns poucos guarda-chuvas à distância. Entrou no prédio e, pela primeira vez em anos, cumprimentou seu porteiro. Tomou o elevador e chegou a seu corredor, no nono andar. Apartamento 901. Abriu a porta com as mãos trêmulas e despiu-se rapidamente, secando-se com uma toalha. Vestiu uma roupa velha e sentou em seu sofá. A carta estava ali, diante dele. Era hora de descobrir a verdade de John Brooks. Suas mãos vacilaram. Abriu o envelope. Abriu a carta. A letra de John Brooks despontou. Verdades falsas.

- O que você tem a me dizer, pai? murmurou consigo. Então leu.

Faz um longo tempo, não faz? Desde nossas últimas cartas.

Nunca conversamos muito. Eu sei. Sempre fomos muito distantes. Você e eu. Você era o garoto da sua mãe, e não o meu. Desculpe por tudo que causei à Marie. Sei como você me culpa. As coisas não deram certo. Não éramos feitos um para o outro. Faz parte da vida. Espero que descubra, um dia, como não me julgar. Como não falar de meus fantasmas e dizer que faria melhor. Desejo, do fundo de meu coração, que esteja em meus sapatos e aprenda como a vida não é uma receita. Fazemos planos e os planos saem errado. A vida gosta de impor desafios próprios e nos cutucar com vara curta. Desculpe Oliver. Estou fugindo do assunto.

Se você está lendo esta carta, estou morto. Enterrado ao lado de sua mãe, apodrecendo como um pedaço de carne em um dia ensolarado. É parte da vida. Realmente não ligo. Preciso morrer uma hora, não é? Enfim, significa que você está feliz, provavelmente, pela minha morte. Não negue. Admita. Faça o que um homem deve fazer. Filho, você provavelmente não compareceu em meu funeral e gostaria de saber que estava cheio. Que fiz impacto na vida de alguém. Falhei como pai. Algo de bom preciso ter feito. Bem,

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Oliver, eu sinto muito, mas tenho más notícias. Desculpe importuná-lo mesmo depois de ter batido as botas e ido dançar com o cão. Espero que ele seja bom bailarino. Não tenho ilusões. Não estou com Deus.

Agora a má noticia. Você vai morrer. Sabe disso, não sabe? Mas não vai ser

quando acha. Deixei-lhe uma herança da qual nunca contei. Não achei necessário, desculpe. Pensei que cuidaria de meu filho. Nunca pensei que me abandonasse, mas não importa. É uma condição de coração. Hereditário. Eu deveria ter morrido perto de meus trinta, como seu avô. Ele também tinha. Não vivemos mais do que isso. Trinta ou quarenta anos. Esse problema cardíaco nos mata. Tive sorte e consegui viver bastante.

Adeus filho. Não vás tão gentilmente nessa boa noite escura.

Aquela carta escorregou das mãos de Oliver Brooks.

Escutou a voz de John Brooks em seus ouvidos, em cada letra e cada palavra, conforme lia a carta. Eram informações demais. Seu pai não lhe pediu desculpas. Seu pai voltou do túmulo apenas para assombrá-lo mais. Para dizer que iria morrer. Seu pai era um miserável.

Oliver jogou a mesa de centro longe. Escutou o vidro partir-se e os pedaços saltarem. Socou a

parede furiosamente, deixando o sangue marcá-la e escorrer por sua mão. Então cansou. Estava cansado. Caiu em uma cadeira, apoiando os cotovelos em seus joelhos e as mãos em seu rosto. Estava cansado. De tudo. Cansado da memória de seu pai. Cansado do mundo. Cansado de esperar pela morte. Perto de seus trinta ou quarenta anos iria morrer. Estava perto dos quarenta. Quanto tempo lhe restava? Não sabia. Decidiu encher um copo de uísque e bebê-lo. Bebeu outro copo. O copo voou de sua mão, atingindo a parede. Passou as

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mãos em seus cabelos e gritou com fúria. Algo dentro de seu peito remexeu-se. Soluçou. Escutou os pingos baterem na janela.

Oliver Brooks desatou a chorar, acompanhando aqueles pingos de lamúria da chuva lá fora.

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16

O céu fechou-se em negritude. Oliver via tudo pelo lado de fora, com os dentes batendo

de frio, e as mãos nos bolsos ensopados de seu longo casaco preto. Seus cabelos molhados grudados no rosto com lágrimas suas e do céu escorrendo. Estava diante de um imenso portão. Não ousou passar dali. Não tinha a coragem necessária para fazê-lo ou a determinação de homens melhores. Recuou com passadas largas. Pensou em voltar e o fez imediatamente.

Recuou outra vez. Sentimento sinistro aquele. Quão estranho era ver tudo

aquilo pelo lado de fora. Uma multidão de pessoas aglomeradas. Viu o topo de alguns guarda-chuvas protegendo senhoras inocentes e suas filhas. Viu outros homens caminharem de cabeça baixa e a voz de um padre ecoar pelo gramado da eternidade. Oliver caminhou em volta da murada branca, espiando por entre as frestas daquelas grades. A chuva continuou a cair em seus ombros, sempre forte e impetuosa, rogando-lhe a praga dos céus. Oliver caminhou, sentindo o chão duro demais. Pensou em correr. Estava molhado. Estava cansado de tudo. Seus pensamentos eram uma vastidão de sentimentos confusos. Não tinha mais certeza de sua própria vida e sabia agora o quanto temia à morte. Fitou a vasta rua cheia de casinhas coloridas, conforme caminhava em volta do cemitério Krow. O dia, envolto na penumbra, enquanto aquela rua permanecia sempre em seu estado inalterado, tentando ser alegre em meio aos pecados dos homens.

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- Como pode? perguntou-se Oliver. Como poderia, realmente? Como a natureza segue seu

curso todos os dias quando o homem a interfere e a machuca, deixando seu próprio sangue manchar o verde? Oliver não sabia. Continuou caminhando. Não entrou no cemitério. Nunca entrou. Avistou de longe Tony Gianos. Era praticamente óbvio que veria o homem. Melhor amigo de seu pai. Estava uma bagunça. Tony era lembrado por Oliver como um homem altivo, sempre pensador e cheio de ideais. Diferente de seu pai, um beberrão filosófico. Agora Tony não passava de um homem velho.

- Então é isso? Oliver olhou para as nuvens escuras, esperando uma

resposta. Nada veio em seu caminho. Pensou que sua vida não

passaria daquele momento. Ontem, estava em seus trinta e poucos, sonhando na velhice confortável em algum lugar ao norte. Hoje era um homem caminhando na rua de um cemitério, sem certezas e convicções, esperando o singular momento em que fecharia os olhos e abraçaria os anjos. Mas talvez não fosse o fim. Determinava-se a provar o quão errado estava seu pai. Disse-lhe em sua carta que nunca compareceria ao funeral e, mesmo assim, Oliver compareceu. Observava o funeral de seu pai distante, pensativo e tentando modificar algo no tempo. Tentando pará-lo para ver o homem uma última vez sem ser visto.

Foi quando a viu. Claire Thompson. Oliver parou imediatamente. Talvez

sua respiração estivesse presa. Talvez houvesse se tornado um homem tão tolo quanto era há vinte anos. Cresceu ao lado de Claire e imediatamente lembrou-se de tudo que um dia pareceu ser bom em sua vida. A única parte boa de sua infância. Corria pelas colinas de Darby ao lado de Claire, observando o nascer do sol. Bebeu pela primeira vez ao lado de Claire. E, ao lado de Claire, descobriu

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praticamente tudo. Diferente de Tony, Claire estava igual. O tempo não havia sido generoso com a moça, de fato, mas Oliver viu-a com os mesmos olhos de sua infância e, por um singular momento, descobriu-se humano outra vez. Correu rápido. A chuva não iria esperá-lo. Suas mãos envolveram o portão do cemitério e seu pé tocou o gramado.

Então o funeral acabou. Oliver recuou. Era melhor não. Seria o último a chegar.

Correu para longe dali, em uma esquina distante e esperou o tempo do relógio correr. Esperou. Bastante. Esperou as nuvens se afastarem e viu um homem quebrado procurar por alguém fora do cemitério. Tony Gianos. Foi embora em seguida. Então, Oliver correu para o cemitério Krow. Passou pela grade. Sentiu um nó em sua garganta. Descobriu apenas um coveiro fumando um cigarro antes de enterrar o defunto.

- Está meio atrasado disse o coveiro. - Estive sempre atrasado. - E não estamos todos? Aquela figura enigmática de cabelos cumpridos e dedos

sujos de terra partiu com seu cigarro, fazendo um barulho estranho com sua capa de chuva conforme caminhava por aquele gramado amarelo. Em pouco tempo, Oliver não conseguiu vê-lo. Havia sumido na neblina. Desaparecido como o fantasma que todos somos. Oliver descobriu-se sozinho com seu pai. O caixão há sete palmos, esperando um pouco de areia molhada.

- Olá, John. Houve apenas silêncio. Oliver riu-se sozinho, abrindo os

braços para o céu. Quão estranho era falar com um homem morto quando não o havia feito enquanto vivo. Oliver riu-se outra vez e virou as costas para seu pai, caminhando pela solidão do cemitério, pensando se viveria para o amanhã.

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Imaginou por um instante se era hora de começar a fazer as coisas de modo diferente.

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17

- Não sei o que lhe dizer Sr. Brooks. Oliver fechou sua camisa enquanto olhava ao redor. O Dr.

Stein era um homem, de fato, muito macabro. Oliver consultava-se com o sujeito há anos e sempre se sentia ameaçado em seu escritório com fotos de esqueletos. A figura sombria tornava-se ainda mais aterrorizante quando a sombra de seu bigode se unia aos lábios. Era magricelo, com dedos escorregadios, e cheirava a perfume feminino. No entanto, era o melhor em seu ramo. Possuía manias esquisitas e odiava sua secretária, porém, não admitia que ninguém falasse da pobre moça e nunca questionou sua lealdade. Demiti-la? Stein ficaria possessivo apenas com o pensamento de demiti-la.

- Você realmente tem algo aí. - Pode me dizer o que é? perguntou Oliver. - Já vi isso antes, uma ou duas vezes. - Stein Oliver estava sério pode me dizer o que é? - Duas vezes, definitivamente. Oliver não aguentava esse tipo de enrolação. Tomou os

exames das mãos do homem e olhou. Não entendeu nada. Largou-os na cama ao seu lado lentamente, fitando o chão de modo breve, em ordem de esconder sua própria ignorância. O Dr. Stein virou-lhe às costas e escreveu algo em um pequeno caderno de notas, depois se sentou em sua cadeira e mirou o teto enquanto assoviava. Oliver esperou. O homem continuou naquele estado de transe por alguns minutos quando deu por si.

- Ah, sim. Você vai morrer, definitivamente disse. - Obrigado pela parte tocante.

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- Pensei que era um homem direto. Gosto de ser direto. Esse tipo de coisa falta nas pessoas hoje em dia. São muito falsas, frias. Sabe, outro dia minha filha ficou circulando, dizendo que me amava e que eu era um homem muito bom, coisas assim. Puxando meu saco. Sr. Brooks, não tenho ilusões.

Dr. Stein realmente não tinha ilusões sobre sua bondade. Mesmo porque estava longe de ser bom. Stein era preconceituoso. Odiava mendigos, negros e asiáticos. Ou qualquer tipo de homem diferente de sua categoria de classe e cor. Stein caminhava com uma bengala e usava gravata borboleta todos os dias, tentando arrumar os últimos cabelos de sua cabeça careca e berrava com atendentes lentos. Odiava pessoas mais novas e foi nazista por alguns anos. Tudo isso apenas quando estava de bom humor.

- Então? perguntou-lhe Oliver. - Então que a vagabunda queria dinheiro. Oliver caminhou pelo consultório do homem. Podia

gritar. Que importava os problemas alheios? Tinha seus próprios. Sentou-se na cadeira em frente ao homem.

- Stein, pode ser direto? Ou tem algum problema nessa sua cabeça desmiolada? Estou falando sobre minha situação aqui.

- Ah, perdão. Sim, você vai morrer. Não sei lhe dizer quando. Sua situação é hereditária. Uma condição no coração demasiado severa. Poderia lhe receitar alguns remédios terapêuticos, dizer para levar a vida mais leve, mas isso é besteira.

- O que posso fazer então? - Minha sugestão? - Estou lhe perguntando, não estou? O Dr. Stein esboçou um sorriso estranho, juntando as

mãos de forma macabra e lambendo seu próprio bigode. - Pague uma mulher mais jovem para viver os últimos dias

ao seu lado e trate-a bem todos os dias até o final. Entendeu o que eu quis dizer?

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- Não. - Trate-a bem. - Tem outra sugestão? - Não sei o que lhe dizer. Nem sei datas. Vi essa coisa duas

vezes em minha carreira e os dois homens que a tinham estão dançando com o diabo neste exato momento. Que posso lhe falar? Você vai morrer.

E aquilo foi tudo que Oliver Brooks conseguiu ouvir. Deixou o consultório de Stein em estado de desolação. Caminhou pelas ruas da cidade como nunca tinha feito antes e certamente não o faria novamente -, observando as coisas como podia agora. Bem, como um homem morto. Oliver decidiu tomar um sorvete e sentou na Praça Central. Recebeu uma ligação de Stacy sobre o advogado de seu pai esperando-o no escritório. Maldito seja. Um homem morto não pode tomar um sorvete? Jogou o sorvete na lixeira e seguiu andando por aquelas ruas feitas de fumaça. Cruzou pessoas sem olhá-las no rosto. Atravessou ruas sem importar-se de ser atropelado. Então, entrou no escritório. Não estava de terno, então seu físico foi visto por secretárias de outros departamentos. Arrancou-lhes breves suspiros, porém, seguiu andando sem importar-se. Encontrou Stacy.

- Aquele homem estranho está lhe esperando disse a moça.

- Tudo bem. Thomas Port caminhava de um lado para o outro no

escritório, tentando aproximar-se da vista e se afastar dela ao mesmo tempo. Malditas alturas. O homem começou a sentir-se claustrofóbico em minutos, tendo vertigens terríveis, também, e suando em bicas. Mordia seus lábios com força, sentindo o gosto do sangue metálico em sua boca. Sentou-se e bebeu um copo da água. Voltou a levantar e a sentar. Foi quando viu Oliver Brooks e correu imediatamente em direção ao filho de seu cliente. Não esticou sua

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mão e foi direto ao assunto, abrindo a maleta e deixando centenas de papéis caírem. Não os juntou com rapidez.

- Estava na cidade e decidi passar aqui para acertarmos, acertarmos, tudo sobre o testamento começou.

Oliver sentou-se no sofá, desligado do mundo. Não pareceu escutar Thomas Port.

- Sabe aquela coisa dos bens, bens? Seu olhar voltou-se para o estranho homem. Por que

continuava encontrando sujeitos assim? - E o que eu ganhei? - Bem, como já lhe disse antes, existem certas

peculiaridades, peculiaridades. - Peculiaridades? Thomas Port encontrou, por fim, os papeis que procurava.

Tratavam-se do testamento de John Brooks. John não havia realmente feito algo formal, apenas escrito seus últimos desejos e os bens de Oliver à mão, então enviado ao seu amigo advogado para que a coisa virasse legitima. No entanto, os desejos de John Brooks fizeram-se totalmente presentes. Havia ainda uma nova carta para Oliver. Thomas fez o favor de entregá-la e então se preparou para declarar a Oliver todos os bens deixados pelo seu falecido e terno pai.

- John doou seu dinheiro para a igreja, naturalmente. Fora isso restou apenas a casa, qual será sua.

- Ótimo. Venda. - Ah, não. - O que foi? - Você não pode vendê-la, Oliver. Está aqui. Não pode

vendê-la até que realize o último desejo de seu pai. - E seria? - Precisa viver um ano em Darby. Então a casa é sua e tudo

o que tem dentro.

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- Um ano? Preciso viver um ano na praia? Naquele fim de mundo?

Oliver não acreditou em seus ouvidos. Seu pai voltou do túmulo como o mesmo homem de vinte anos atrás. Um homem mesquinho pensando apenas em suas próprias vaidades. Como poderia Oliver acatar tal ordem? Iria, então, abdicar de toda sua vida na cidade e todo o seu trabalho para viver como John queria? Iria abdicar de tudo para repetir os pecados de seu pai? Oliver Brooks tentou permanecer sentado, mas acabou levantando. Então se sentou novamente e sentiu o rosto enrubescer. A ira contra seu pai cresceu em seu peito. O homem conseguia atingi-lo mesmo no inferno. Torceu para que queimasse junto do demônio. Quis vê-lo mais uma vez apenas para dizer quanto o odiava. Oliver Brooks pensou em tudo que vivera até ali.

E agora? Precisava pensar sobre tudo aquilo. Tinha mais uma carta

de John Brooks em suas mãos. Precisava ponderar sobre todas as questões lhe acometendo. Parecia que tudo estava prestes a desmoronar. Era um homem morto e sem herança. Não podia passar também nenhuma herança, afinal, carregava um presente maligno em seus próprios genes.

- Sr. Brooks, cabe a você decidir. A chave da casa está lá, embaixo do carpete. Se quiser ir morar na casa, dentro de doze meses será sua. Caso contrário irá apodrecer e tornar-se nada. Agora eu preciso ir. Preciso ir.

Thomas Port juntou seus papeis dentro da maleta e ajeitou a gravata, despedindo-se de Oliver Brooks com um aceno de cabeça e deixando o escritório. Stacy entrou no mesmo instante. Ambos se fitaram por um momento. Oliver nunca pediu conselhos a Stacy, mas pensou que talvez, naquela situação, fosse o correto a fazer.

No entanto, não o fez. - Stacy...

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Havia outra coisa a ser feita. Uma demanda que apenas os homens correndo contra o relógio sentem. A sensação de impotência perante um mundo tão grande. A sensação das fundações ruindo diante de seus olhos se não fizer o necessário. Se não enterrar seus pecados fundo o suficiente. A sensação capaz de corromper e destruir todas as almas, mesmo as mais fortes. Uma sensação única, capaz de acabar com os melhores laços e tornar qualquer um frio o suficiente.

Precisava pedir-lhe perdão. - Fui um terrível chefe, Stacy. - Sr. Brooks... - Me desculpe por tudo. Oliver Brooks segurou as mãos da jovem e beijou-lhe a

testa com compaixão, sorrindo em seguida. Tocou seu ombro com nada mais do que amizade e gratidão. Stacy, contudo, estava paralisada. Não sabia se devia dizer algo. Nunca viu Oliver Brooks daquele jeito e nunca esperou vê-lo assim. Fitou o chão e afastou-se lentamente, pois agora sentiu certo medo do homem, e quis manter sua própria distância.

- O que você quer da vida, Stacy? Stacy estava paralisada. Não abriu os lábios e seus olhos

procuraram os de Oliver. Sua mente trabalhou em uma resposta. Nada. Quem era aquele homem? foi o único pensamento que elaborou.

- Eu não sei... Gosto de trabalhar aqui. Por favor, não me demita.

- Não vou lhe demitir, Stacy. Mas você vai perder o emprego de qualquer jeito. Estou me demitindo.

- O quê? - Quer o meu cargo? Ainda tenho poder para isso. Não será

sócia, obviamente, mas todos os meus clientes são seus. E você já os conhece melhor ainda. Acha que dá conta?

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Stacy não soube o que fazer. Publicidade? Escreveu alguns textos certa vez para Oliver Brooks e foi elogiada, mas nunca pensou no ramo como uma carreira de verdade. Encontrou-se boquiaberta, balançando a cabeça positivamente e sentindo uma espécie de alegria invadir seu peito. Não fez mais nada além de acenar e mexer com as mãos. Não havia palavras. Não sabia, na verdade, o que fazer a seguir. O futuro chamou uma Stacy despreparada.

- Boa sorte respondeu-lhe Oliver. Em seguida, Oliver Brooks deixou os escritórios da firma

de cabeça baixa, segurando a carta de John Brooks em seus dedos e sentindo-se mais leve. Não soube dizer o motivo. Apenas sabia, em seu íntimo, que algo estava prestes a mudar. Iria morrer. Essa certeza era agora ainda mais inevitável, mas precisava mudar algo. Talvez fosse realmente viver na casa e acabar com a lembrança de John Brooks. Matá-lo de uma vez por todas e, quando tudo acabasse, venderia a casa e morreria em paz. Claro, se não caísse morto enquanto isso. Na verdade, gostaria de morrer lendo. Há anos não lia algo bom o suficiente para chamar-lhe a atenção. Sendo assim, em seu caminho para casa, entrou em uma livraria e comprou Dois Toques e o Fim do Mundo, por Evan Doyle. Ouvira falar muito bem daquele homem. Um escritor promissor morador de Darby. Era da cidade. Quem sabe conseguiria um autógrafo?

Oliver voltou para casa com o livro e a carta em mãos. Decidiu escutar a voz de John Brooks outra vez. Retirou o papel do envelope e encheu um grande copo de uísque. A bebida encharcou sua garganta e desceu seca. Era perfeita para um homem moribundo. Oliver sentou-se em frente à janela e fitou o mundo.

Partido. Seus olhos buscaram a primeira palavra.

Ainda morrendo? Desculpe minha morbidade, mas é assim

que sou. Desculpe mesmo. Por tudo. Não acha um desejo estranho

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pedir desculpas à beira da morte? Aposto que você o tem agora, não tem? Se você está lendo esta carta, ainda está vivo. Isso é bom. Espero que viva tanto quanto eu. E vou lhe dizer como, mas antes precisamos conversar.

Meus amigos vivem em Darby, Oliver. Uma grande amiga sua também, você bem lembra. Tratei-

a como minha própria filha. E nos últimos anos a moça simplesmente se afeiçoou a mim. Falamos em você algumas vezes. Claire, bem, você sabe. Mulheres nunca esquecem o primeiro amor. Há também Tony. Vai ficar zangado de não o ter visto em meu funeral. Não minta para mim, Oliver. Sei que você não foi. Nunca iria. Talvez tenha entrado depois para cuspir no caixão. Desculpe se sou ruim assim, meu garoto. E desculpe se vou arruinar sua vida pedindo que mude para a casa de Darby, mas as coisas precisam ser assim, Oliver. É o único jeito de viver tanto quanto eu. E faça-me um favor. Vá até o bar da velha Dorothy para beber um trago por mim.

Para finalizar tenho um presente. É um livro antigo. Contém um segredo que descobri em

minhas viagens. Algo místico. Foi assim que vivi tanto, Oliver. Consegui descobrir o segredo da imortalidade, garoto! Imortalidade. E vou lhe dar. Você é meu filho e o merece. Está em Darby, eu sei. Apenas o encontre. Possui uma capa de couro preta e uma fita vermelha. O nome de sua mãe está escrito na parte de dentro. Está lá, sei que sim.

A fórmula da vida eterna está dentro daquele livro, Oliver. Encontre-o. E viva para não ir tão gentilmente nessa boa noite escura.

Oliver deixou a carta escorregar por entre seus dedos e

bebeu o uísque restante no copo. Vida eterna? Imortalidade? Seu pai

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pirou de vez. Era um maluco, tinha certeza disso. Porém, talvez houvesse realmente um livro respondendo como seu pai viveu tantos anos com aquela condição. Deveria achá-lo? Piada. Decidiu foi beber outra grande dose de uísque. E o fez. Entretanto, o maldito livro não deixou seus pensamentos naquela noite vazia. Remexeu-se para os lados na cama, com os olhos abertos e a mente em polvorosa. Não viu a hora da manhã chegar. Escutou os pássaros cantando ao longe e levantou-se com um pulo. Fez suas malas o mais rápido possível, deixando seu livro e a carta em mãos. Vestiu-se casualmente e, pela primeira vez em anos, não se mirou no espelho.

Oliver apenas precisava saber. Existiria realmente algum livro místico? Alguma cura para

sua condição? Haveria, de fato, seu pai, em suas inúmeras jornadas pelo mundo, encontrado a tão procurada imortalidade e escondido o segredo de todas as pessoas? Imortalidade, quão complexo, ousado e irreal aquilo parecia. Oliver pegou suas malas e chamou um táxi. Não iria de carro. Decidiu apanhar um ônibus. Podia ter mais tempo para pensar. Sabia que não iria ler. Sua mente estava atordoada e cheia de questões.

- A fórmula da vida eterna está dentro daquele livro, Oliver. Encontre-o. E viva ouviu seu pai dizer.

Oliver escutou John Brooks como se estivesse vivo. Era um fantasma. Seu fantasma. Parecia presente ao seu lado.

- Imortalidade Oliver disse a si mesmo enquanto embarcava no ônibus.

Estava indo para Darby. Que diabo, havia algo a perder? Afinal, o tempo corria contra Oliver. Fechou os olhos por um instante enquanto reclinava-se no ônibus e escutava os passageiros acomodando-se. Sentiu o embalo do veículo e sabia que iria para Darby. Não havia nada a perder. Sua mente girava em torno de uma verdade. A única verdade desta vida. Não é absoluta, pois ainda nos

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foge da razão descobrir o outro lado da porta, no entanto, não é mentira. E pensava com afinco.

Você vai morrer, Oliver Brooks.

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Segunda parte

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1

O céu estava tão azul quanto Oliver lembrava. Permitiu-se, por um pequeno instante, fitar as nuvens do

céu e deixar seus pulmões sentirem o ar calmo de Darby. Um vento levado pelas histórias de inúmeras pessoas que caminharam por aquelas ruas e conversaram e viveram do mesmo jeito que John Brooks viveu. Oliver permitiu-se, enquanto estava parado no ponto de ônibus da pequena cidadela, refletir sobre sua vida e as questões acerca. Iria morrer. Teve mais convicção sobre aquilo. Sentiu-se, naquele instante infinito, atordoado pelo silêncio. Não havia voltado àquele lugar há mais de uma década e não lembrava como era viver ali.

Viu todos, sem ser visto por ninguém. As pessoas andavam calmas e desatentas, despreocupadas.

Diferentes daquele mundo de onde viera. Aquele mundo de loucuras cotidianas, pressões sociais e questões sem respostas. Habitou-se àquela vida tão estranha e tão corrida, cheia de ansiedades e destinos incertos. Oliver não sabia mais o que era ser um homem. Era, na maioria dos momentos, apenas uma máquina. Não ligava para seus semelhantes e denegria seus próprios sentimentos em troca de uma moeda. Que maravilha de mundo era aquele no qual se encontrava agora? Foi cumprimentado por dezenas de pessoas desconhecidas.

Oliver sentiu estranho. Inconformado. E, sem realmente admitir, havia sentido saudades de Darby.

Colocou sua mochila nas costas e pegou a mala com as mãos livres. Quinze anos sumiram no tempo desde que seus pés

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encontraram o solo cheio das areias da praia de Darby. Quinze anos desde que respirou aquele ar limpo das árvores. Quinze anos e ainda lembrava cada canto e cada caminho da cidadela como se fosse hoje. Seguiu de modo automático, lembrando-se das maluquices logo na próxima esquina, dobrando a Rua dos Álamos. Tinha um amigo chamado George. Era um rapaz gentil, bondoso e um pouco estranho. Usava unhas cumpridas e escutava música pesada, pensando sempre no dia anterior e nunca no dia de amanhã. Era um cara legal, ponderou Oliver. Beberam juntos até ambos caírem na sarjeta e serem acordados por um policial. John buscou Oliver na delegacia.

Mais uma discussão. Lembrou-se dessa parte, pois, veja bem, John Brooks era

um perfeito moralista. Oliver recordou-se dos passos pesados de seu pai avançando na delegacia e tomando-o pelo colarinho da camisa. Levou-o para casa praticamente arrastado.

- O que está pensando, garoto? Quer matar sua mãe? perguntou-lhe com voz zangada.

- Se importa com isso? - Importo-me com nosso nome. O que vão pensar de você

por aí, com aquele moleque, enchendo a cara? - Vão pensar que realmente sou seu filho. Agora, recordando de tudo, enquanto avançava pela Rua

10, sentindo a brisa fresca da praia tocar seus cabelos, Oliver pensou em John Brooks. Nestas memórias tão perdidas nos porões empoeirados de sua mente, conseguiu escutar perfeitamente a voz de John Brooks, e sentir a mão do homem segurando sua camisa. Tudo estava errado. Como podia aquele homem, um sonhador desvairado, bêbado inveterado e frequentador assíduo de bordéis, falar sobre um garoto e sua bebedeira inconsequente, porém, juvenil? Poderia John, então, cometer tais pecados sem ser punido?

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Oliver riu-se quando se lembrou da reação de sua falecida mãe.

A Sra. Brooks, nas lembranças de Oliver Brooks, estava intacta. Bem sabia: era santa, pois ninguém o é, contudo, foi a melhor pessoa que Oliver conheceu. Estava já doente naqueles anos, mas ainda mantinha a beleza de sua juventude e uma lealdade desenfreada por John Brooks. Estava ainda apaixonada pelo homem aventureiro que conheceu há mais de uma década. Um homem qual não fora feito para o sagrado matrimônio. Naquela manhã distante, Oliver chegou a sua casa, enfurecido. Contou-lhe a história e escutou sua mãe rir.

- Agora você se tornou um homem respondeu. Em seguida, acariciou os cabelos do filho. Oliver parou de andar. Deixou sua mala cair ao pé da

escada. Tocou a varanda de madeira com as mãos trêmulas e lembrou-se de sua mãe, ao final da vida, sentada ali. Era sua casa. A casa de John Brooks. Oliver deixou para trás tudo que lhe era sagrado ali. Avançou com passos calmos e tocou a maçaneta. Sentiu o peso do mundo em seus ombros. Caminhou pela varanda, observando as árvores e as macieiras na Rua das Alamedas. Ficou sabendo de um golpista preso pelos federais naquele lugar, há certo tempo. E lembrou-se de um homem em sua infância, um veterano da Segunda Guerra. Chamava-se Nortier Jackson e foi responsável pelo cultivo de tantas macieiras em Darby. Gostava de maçãs.

Oliver sorriu sozinho. Sentiu que as coisas estavam prestes a mudar. Iria morrer.

E iria vencer seu pai. Precisava encontrar aquele livro. Foi à busca de uma chave embaixo do carpete. Seus dedos tocaram o metal. Abriu a porta em seguida. Adentrou na penumbra. Sentiu o cheiro da casa. Era o perfume de John Brooks. Um cheiro terrivelmente insuportável para Oliver, capaz de inspirar-lhe as piores lembranças. Os móveis eram os mesmos e não havia plantas. Um livreiro limpo

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e uma poltrona. Seguiu andando pelo corredor da casa, encontrando seu antigo quarto do mesmo modo deixado há tanto tempo. Encontrou o quarto de seu pai e mãe intocado. John provavelmente nunca dormia em casa.

Oliver caminhou pela simplória cozinha, notando os retratos antigos de sua mãe, todos removidos. Supôs ter sido após sua saída de casa. A mesa permanecia do mesmo modo, com a pata quebrada e uma cadeira a menos em um dos quatro cantos. Estava tudo igual. Tudo como John Brooks deixara. Oliver guardou suas malas no quarto e sentou na poltrona da sala.

Estava em casa.

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Sabe-se muito bem como são as cidades pequenas. Em uma cidade pequena, todos são dotados de

popularidade, pois se conhecem desde sua infância. Existe uma grande amizade e um sentimento de simpatia pela maioria das pessoas. Existem, também, as intrigas. Na verdade, as fofocas. Jamais poderia John Brooks cometer um de seus atos heroicos e suas aventuras sem a notícia espalhar-se como o fogo selvagem em uma mata morta. As pessoas sabiam de tudo ou assim pensavam sobre a vida do falecido. Sabiam de suas indiscrições e mulheres fora do casamento. Não levavam à mal, pois bem conheciam John Brooks. Era um homem de muitas regalias, andando com o vento e sorrindo para todos, observando o sol e deitando em bancos públicos enquanto bebia uma cerveja. Era um boêmio clássico. Se pudesse, cantaria as mais diversas músicas ao lado de andarilhos em praças públicas. Repassavam adiante suas histórias do tempo de pescador. Diziam que John Brooks já havia conquistado muitas mulheres bonitas, derrotado homens selvagens e desbravado todos os mares do mundo. Inclusive Atlantis.

Conforme rezava a lenda, dizia-se também que era imortal. Poucos sabiam, contudo, sobre o destino do filho de John

Brooks. Os mais novos na cidade nem sabiam da existência de um filho. Por este fato foi fácil para Oliver Brooks manter sua identidade escondida. Durante três dias e três noites, era um completo estranho. Despercebido. Andava de cabeça baixa, com as mãos nos bolsos e então voltava para a casa. Alguns pensaram ser um morador de rua. Outros, disseram ser a reencarnação de John Brooks em um rapaz

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elegante, dado ao fato de sua semelhança ao falecido. Os mais sensatos diziam outra coisa.

- Isso é um advogado pilantra. Está morando na casa do defunto.

- Você está louco? É John Brooks. Voltou dos mortos! - John Brooks voltou dos mortos? - Claro que sim. - Pouco me admiro. Aquele homem voltou de Atlantis! Sabemos que não era John Brooks. Quem olhasse por fora, nada veria. Entretanto, ao avançar

pelos degraus da casa, encontraria um lar destruído. Oliver revirou cada assoalho e cada prego em busca do livro. Nada encontrou. A poltrona estava brutalmente destruída, com as vísceras para fora e as molas saltando. Nada. As paredes de gesso abertas em locais ocos por dentro. Encontrou uma mala cheia de dinheiro. John Brooks era sovina, sempre soube. Iria torrar aquele dinheiro. Literalmente. Não precisava do dinheiro de seu pai. Não destruiu o quarto de seus pais, porém, vasculhou onde era possível. Pensou que seu pai poderia ter sido irônico e escondido o livro em seu quarto. Lá nada encontrou além de revistas eróticas de sua adolescência.

Então estava acabado. Oliver Brooks revistou cada centímetro do jardim,

procurou em cada canto escuro e nada achou. A imortalidade sumira. O elixir de John Brooks desvanecido. Aquele livro a única salvação de Oliver havia desaparecido. Não estava na casa. E Oliver tornou-se profundamente cansado de tudo. Desistiu daquela procura incessante e resolveu quebrar a casa de uma vez por todas, destruindo as janelas e o piso. Sua fúria começou a torná-lo possessivo. Destruiu os pertences do pai enquanto amaldiçoava-o por aquele presente grego. Fez uma fogueira no jardim para queimar todas as roupas e objetos pessoais de John Brooks. Pediu desculpas à sua mãe, se estivesse em algum lugar, mas precisava fazer aquilo.

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Era necessário matar John Brooks. No quarto dia, com a casa revirada, deixou apenas o

livreiro intacto. O que não fora destruído foi jogado fora. Agora Oliver estava sozinho em uma casa contendo apenas livros e a cama de sua mãe. Era manhã quando Oliver escutou os passos na escada da varanda. A porta abriu-se com suavidade e um rosto espantado encontrou aquele cenário dominado pela ira. O espanto tornou-se também raiva. O visitante caminhou pela casa vazia em busca de alguém naquele lugar. Encontrou o novo morador.

- Olá... falou. Oliver Brooks voltou-se em direção a voz. Reconheceu

imediatamente. Tony Gianos, o melhor amigo de seu pai. - Tony? - Oliver Brooks. O filho pródigo retorna. - Por pouco tempo. - Vejo que está redecorando. - Estou me livrando. Mandando aquele bastardo em

direção ao inferno. Tony Gianos considerou aquelas palavras como blasfêmias,

contudo, nada disse. Não havia nada a se fazer. Oliver tomava a casa como sua, e realmente era. Sempre soube da discórdia entre o garoto e seu pai. Culpava John por aqueles erros terríveis.

- Não o vi no funeral começou Tony. Hesitou antes de responder sua mentira deslavada. - Porque não fui. Oliver passou por Tony com pressa. Ainda procurava o

livro. - Está procurando por algo? - Não. Tony caminhou pelo corredor. Não conseguiu mais

reconhecer aquela casa. Oliver estava louco. - Ei, garoto!

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- O que foi, velho? Oliver Brooks fitou-o seriamente. Quem era aquele

homem para falar tão altivamente? Apenas mais um velho enganado a respeito de John Brooks. Para todos, John era um santo.

- Não percebe o que está fazendo? - Estou fazendo o que devia ter sido feito há anos.

Acabando com a memória de meu pai. Por acaso ele deixou algum livro com você?

- Deixou-me uma carta. - Queime. - Prometi ao seu pai lhe entregar. - Meu pai está morto. Sua promessa não vale de nada. Tony Gianos segurou o braço de Oliver. Fitaram-se

furiosamente. Não houve respeito mútuo. Tony conseguiu ver, lá no fundo daqueles olhos, uma raiva incontida prestes a explodir. Para Tony, Oliver era ingrato e virou as costas para todos necessitando dele. Nenhum homem de verdade perderia o funeral do próprio pai. Aquele rapaz era apenas um menino mimado.

Para Oliver, Tony era um homem cego. Seu pai fazia isso com as pessoas. Perguntou-se, durante

todos os dias de sua vida, como sua mãe conseguiu apaixonar-se por John Brooks. Como caiu em seus encantos fatais. Sabia a verdade. Era o poder de John. Usava seu charme, sua lábia e as mil promessas. Era um boêmio, como já falamos. Encantava os outros com sua naturalidade e, além de tudo, era um bom cidadão. Oliver bem sabia: um bom cidadão não significa um bom homem.

Oliver empurrou Tony Gianos, colocando-o contra a parede.

- Toque em mim de novo, velho. Por favor. Enterro-o junto com meu pai.

A porta da casa, antes deixada encostada por Tony, agora se abriu. Escutaram ambos uma leve batida na madeira. Sem força e

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com nós nos dedos. Oliver fitou a visitante e afastou-se de Tony naquele exato instante. Seu coração palpitou. A boca secou. Eram os fantasmas do passado lhe assombrando, tentando arrastá-lo para um buraco do qual escapou há tantos anos.

- Oliver. Aquela voz, tão suave e tão pausada, alterada pelo tempo,

mas ainda igual. Oliver aproximou-se lentamente. - Claire.

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Era noite de sábado. Tony Gianos decidiu, por pedido de Claire, permitir

Oliver fazer como queria. Além disso, não poderia jamais impedi-lo. Decidiu então deixar a carta e partir. Oliver gastou aquela tarde tentando entender seus próprios motivos. Não compreendia em seu íntimo as coisas atraindo-o de volta para Darby e não quis compartilhar com ninguém seu futuro. Era um homem morto. Não havia diferença. Quando partisse deste plano para o próximo, todos entenderiam. Apesar de tudo, não conseguiu livrar-se de Claire.

As estrelas para Oliver não eram nada. Permaneceu obcecado com o rosto de Claire. Suas feições,

não mais as mesmas de quando eram adolescentes, mas ainda poderosas. Mais bonitas. Sentiu-se imediatamente atraído por ela, mas resolveu guardar aqueles sentimentos confusos dentro de si. Como sempre fez. Caminharam durante muito tempo pela Avenida das Alamedas, olhando as macieiras e permanecendo em silêncio. Era estranho estar com Claire. Não havia nada a dizerem um para o outro. Precisavam de perdão pelas coisas do passado, mas Oliver não tinha essa força. Era um homem morto, mantendo seu próprio orgulho. Pedir perdão para Stacy havia sido algo no calor do momento.

Caminharam em direção à praia. Estavam em silêncio por um longo tempo. Sentaram-se em um banco de pedra da Avenida. Viram um ou dois carros passarem por ali. A cidade já sabia sobre Oliver Brooks.

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- Não vai falar comigo, Ollie? Após tantos anos Oliver ainda não se esquecera da voz de

Claire Thompson. Parecia-lhe um uivo, arrancando sua própria alma. Era o único som capaz de quebrar suas algemas.

- O que você quer saber? perguntou, fitando-a. - Por que está fazendo isso? - O quê? - Destruindo as memórias de seu pai? Tentando acabar

com o que ele deixou aqui? - Você não conhecia meu pai, Claire. - Conhecia-o melhor do que você. O vento da praia bateu em seu rosto enquanto fechava os

olhos lentamente. Os fantasmas voavam contra sua face. Aquela era Darby. E, ao seu lado, estava a mulher que devia ter levado embora.

- Sobre o que é isso, afinal? - Deixa para lá. - Vamos, fale. Espera desculpas por minha parte? Está

sendo tão dramática assim? - Dramática? Apenas espero decência de você, Ollie.

Decência. Oliver olhou-a com ferocidade. Estava destruída por

aquele olhar. Aquele não era o rapaz que amou durante tanto tempo. Era alguém diferente. Um homem com rancor, discórdia e ganancia em seu coração. Não o reconheceu ao olhar seus olhos. Tocou em seu peito por impulso, como sempre fez na adolescência. Não sentiu seu coração.

- Decência é a queda de todos os homens, Claire. Não sou decente. Não sou bom. Eu sei disso. Meu pai era pior e ninguém sabe. Vou garantir que saibam.

Oliver empurrou a mão de Claire, tornando-se ainda mais furioso, virou-lhe às costas e partiu pelo gramado, arrancando uma

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das maçãs em seu caminho e jogando-a longe. Ouviu os passos de Claire.

- Não me siga gritou-lhe. - Oliver... Oliver Brooks virou-se para encará-la. - Quem é você? Claire perguntou. Voltou a caminhar, pensativo. Estava quase na praia. Era

noite. Olhou as estrelas enquanto sentava na areia. John Brooks. Tony Gianos. Claire Thompson. Por quê? O que estava acontecendo? Como sua vida mudou de modo tão brusco? Iria realmente morrer? Desejou, por um minuto, ter conhecimento de todas as respostas do mundo. Tinha dúvidas em seu coração e queria gritar. Queria apagar John Brooks da existência. Naqueles breves segundos, desejou morrer de uma vez. Desejou não existir.

Decidiu falar sozinho à meia-noite. Estava escuro. Sem ninguém. Apenas o oceano. Mirou as águas e escutou sua voz seca ressoar na negritude infinita. Perdida no mundo de homens mesquinhos e sombrios. Perdida para sempre na imensidão do oceano, correndo pela água para girar o mundo e não ser encontrada.

- Oliver Brooks, quem é você? perguntou-se. Não soube responder.

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Sabe-se muito bem, porém, nem tanto se compreende, como o tormento dos homens é abafado.

Oliver andava pela pequena cidade à noite. Os olhos perdidos naquele breu. Os sentimentos caminhando a sua frente, correndo e escapando-lhe pelos dedos, como faz com todos nós. Nada conseguimos compreender, ou assimilar e, de algum modo muito esquisito, seguimos caminhando por ruas sinuosas esperando o quebra-cabeça encaixar. Dormimos à noite com o aperto no lado esquerdo. Nada parece se ajeitar, pensamos. Fitamos a chuva calma e esperamos pelo melhor. Torcemos pelos problemas desaparecerem. Nada acontece.

Mas um dia somem. E tudo começa outra vez. Estava então, aquele homem quebrado, caminhando como

que sem rumo. Estilhaçado. Sendo devorado por angústias às quais esteve tanto tempo alheio. Nunca gostou de seus próprios sentimentos. Abafou-os desde a morte da mãe para não lidar com esses problemas cotidianos. Os problemas foram embora, de fato. Porém, voltaram demasiadamente rápido, derrubando Oliver de seu próprio pedestal. Voltou-se para o mais poderoso dos solventes. A água divina dos homens quebrados. O torpor daqueles que já não sabem como proceder diante de tanta confusão. Tanta bagunça podendo ser evitada com palavras sinceras!

Sabia bem: palavras sinceras ferem o orgulho. Adentrou o bar de Dorothy Campbel. Estava com os

cabelos oleosos e as mãos sujas de areia, assim como seu jeans caríssimo. Sentiu falta do terno. Percebeu dois indivíduos estranhos

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sentados no balcão, fumando um cigarro e bebendo conhaque. Havia outro cara no fundo. Um velho, com o poder da história em seus olhos e a sabedoria de uma vida nos calos das mãos. Dorothy Campbel era uma figura sombria, saída de contos macabros e mentes férteis. Poderia facilmente não existir e, caso Oliver a descrevesse para alguém, não acreditariam nele. Era uma mulher estranha, com certeza. Carregava certo ar masculino, com músculos definidos em seus braços magros e cicatrizes no rosto. Fumava um charuto, qual tirava da boca entre dois dedos, e bebia absinto. Fitou-o de canto, percebendo não ser um homem daquela região. As notícias viajam rápido. Percebeu a semelhança.

Era o filho de John Brooks. Este filho pródigo aproximou-se do balcão e sentou

afastado dos homens curvados. Olharam-no de esguelha. Steven um rapaz alto e magro, qual já mencionamos anteriormente pediu outra bebida para Dorothy e engoliu de uma só vez. Permaneceu com os olhos fixos no estranho. Dorothy aproximou-se do novo homem no pedaço. Percebeu seus cabelos grisalhos e as feições tristonhas, confusas. Sabia do que se tratava.

- Foi uma mulher? perguntou-lhe. Limpava copos, como de costume. Serviu-lhe uma dose de

uísque. Oliver bebeu. - Um homem. - Essa é nova gritou Fausto McMurphy do outro lado. Steven olhou para Fausto de relance. Permaneceram em

silêncio, rindo baixinho e contando piadas que ninguém podia escutar. Dorothy pegou o copo de volta, largando-o na pia atrás de si

- Olhe aqui, cara, não sei que tipo de bar você pensa que é esse, mas não gostamos dessas piadas por essas bandas. Ou você dá o fora, ou meto chumbo.

- Meu pai.

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Silêncio outra vez. - Você é filho dele, não é? - Sou o filho do demônio respondeu-lhe Oliver. - Não desrespeite os mortos, garoto retrucou Dorothy,

servindo outra dose da bebida. Oliver bebeu em um único gole. Seus olhos passearam pelo

bar em seguida. Notou, além da excepcional limpeza daquele lugar,

adolescência. Lembrava-se do homem. Era um carrancudo mal-encarado. John levou-o algumas vezes para ver as lutas de boxe acontecendo longe da cidade. Eram clandestinas. Rover conseguiu, durante muitos anos, ser um atleta profissional e ganhar dinheiro. Começou a ficar velho, sarcástico e violento demais. Contam, erroneamente, que quebrou o nariz de seu treinador.

Na verdade, Rover arrancou-lhes os dentes e o fez engolir. A partir de então, Rover nunca mais foi chamado para uma

luta profissional. Oliver lembrava-se do homem vagamente. Sua postura era altiva e estava sempre bufando. Descontava a violência em sua esposa e tinha pavio curto. Em qualquer oportunidade, iria destruir um homem apenas por desviar de seu olhar. Por alguma razão particular, tinha certo respeito por John Brooks. Oliver nunca soube como se conheceram. Recordava-se, no entanto, de Rover dirigir-lhe a palavra certa vez em relação ao seu pai.

- Garoto, seu pai cruzou Atlantis. É um herói. Atlantis. John gostava de contar uma de suas maiores

mentiras para qualquer um disposto a acreditar. A verdade é que John conseguiu cruzar um rio no Alaska durante o inverno e não morrer afogado. Disse ter encontrado paz naquela experiência. A correnteza o arrastou e bateu de cabeça em uma árvore, sonhando com a cidade perdida.

- O que aconteceu com o Cachorro?

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Oliver perguntou, bebendo outra dose. - Foi dormir com o capeta. Riu por um instante. Levantando-se do banco. - Não desrespeite os mortos. Dorothy Campbel abriu um largo sorriso como não fazia

há anos. Sentia algo diferente em relação a Oliver. Certamente, não era nenhum John Brooks. Mal sabia o rapaz, contudo, ser melhor. Enquanto limpava o balcão e despachava Steven e Fausto McMurphy para seus respectivos lares, ponderou sobre o rapaz. Há anos não sentia certa energia e positividade perto de ninguém. Desde seu marido, perdeu a fé nas pessoas. Achou que nunca encontraria bondade. Gostava de John, claro, mas não sentia nele a melhor das

Oliver tinha uma boa.

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Seguindo as areias de Darby, encontramos uma cidade tão silenciosa quanto um cemitério. Não há ninguém nas ruas. As luzes iluminando a Avenida das Alamedas piscam frequentemente. O vento leva as folhas embora e derruba algumas maçãs. Existem, também, luzes nas varandas de algumas casas. Distante da praia, em um abismo de pensamentos, encontramos um conhecido com uma garrafa de cerveja entre seus dedos.

Tony Gianos mira a noite, sentindo o espirito de John Brooks passar por ali.

- Você está bem? Tony perguntou para a moça ao seu lado. Claire

Thompson. Usava suas sapatilhas brancas, sujas de terra, e tinha seus olhos escuros perdidos na noite. Tony sabia como se sentia. Tinha saudades de John, assim como a garota. Talvez Claire fosse ainda mais próxima do velho homem nos últimos anos. E agora turbulentos sentimentos estavam de volta. Oliver Brooks era seu único e verdadeiro amor. Tony lembrava-se.

Claire e Oliver conheciam-se desde pequenos. Quando o pai de Claire partiu para o próximo plano, John encontrou uma mulher desamparada com uma filha. Os rumores diziam que John teria tido um caso com a mulher logo em seguida. Claire cresceu entre uma casa e outra, vivendo com Oliver como um irmão. Cresceram juntos e estudaram juntos. No primeiro dia de escola, estavam de mãos dadas esperando voltarem para a casa. Nos dias de sol, corriam para a praia em busca de colchas do mar e riam juntos. Claire lembrava-se de tudo. Às vezes, antes de tudo acontecer, ia

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sozinha para a beira da praia em busca de lembranças e mirava a casa da colina lá no alto. Recordava-se de ir junto com Oliver importunar o velho morador.

- Querem maçãs? perguntava o velho Nortier Jackson. - Sim! respondiam as crianças. - Fiz a melhor torta, apenas esperando-os. Entrem logo

crianças! Comiam todas as guloseimas possíveis na casa de Nortier e

ambos eram bem recebidos por sua esposa, Annabelle. Conta-se que Annabelle, uma artista talentosíssima, nunca conseguiu engravidar. Então, as duas crianças viravam sua alegria. Voltariam correndo para casa. Com o passar dos anos, descobriram estar apaixonados. Oliver mudou drasticamente após a morte de sua mãe. Partiu sem olhar para trás, guardando rancor de John Brooks. E agora estava de volta, trazendo tudo à tona.

- Quero perdoá-lo respondeu Claire a Tony Gianos. Tony segurou a mão da garota. - John me avisou que viria. Fez algo no testamento. Mais

uma de suas provações. - Por quê? - Não sei. Disse que saberíamos quando fosse a hora certa.

Ou que talvez não acontecesse. Penso que estava tendo ilusões nos últimos momentos. Meu amigo era um homem estranho. Não culpo Oliver. John nunca soube ser pai.

- Soube. Foi um bom pai para mim, Tony. Mas Oliver... Eu não o entendo, sabe? Não se abre. E fomos sempre bons amigos. Quando tínhamos nossos quinze anos, me contava tudo. Cada segredo e cada pensamento. Quando olhei em seus olhos, ele simplesmente não estava lá. Não era meu Ollie. Era um estranho.

Tony não lhe respondeu. Tinha suas próprias opiniões sobre o assunto. E sabia da relação entre John e a mãe de Claire. Seu amigo havia cumprido uma promessa de cuidar da menina. Nada

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mais. Caminhou pela varanda, apoiando-se na madeira. A noite estava fria. Claire tocou o ombro de Tony.

- O que devo fazer? perguntou antes de partir naquela noite escura.

- Não sou bom com isso. Seu coração está lhe dizendo algo? Claire Thompson fitou as estrelas de modo lúgubre. - Está me dizendo para amar o novo homem. E perdoá-lo. Tony sorriu de canto. - Boa noite, Tony. Claire retribuiu seu sorriso e partiu pela estrada de terra

em direção à sua casa. Precisava dormir. Ainda havia muito para acontecer. Tony permaneceu sozinho por alguns minutos, observando as estrelas e pensando sobre o velho John Brooks. Bebeu o resto de sua cerveja enquanto olhava o céu.

- O que você está fazendo, John? perguntou à meia voz. Houve apenas silêncio.

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Oliver tropeçou nos estragos de sua antiga casa. Estava escuro. Não sentia seu corpo, pois se entorpecera de

pecados e uísque. Encontrou o interruptor e cambaleou pela sala à procura de algum lugar para cair e simplesmente dormir. Encontrou, no entanto, a carta de John Brooks deixada por Tony Gianos. Mais um tormento para sua pobre alma. Decidiu abri-la com medo.

Escutou nitidamente a voz de seu pai. Ou o fantasma dele.

Conhecendo-o, imagino ter tentado algum atalho. Receio

lhe dizer que não vai encontrar o livro nesta casa. Minha imortalidade não está aqui. Você precisa merecê-la. Quer ser imortal, rapaz? Prove que consegue. Não serão tarefas simples. Não para o seu egocentrismo e egoísmo desenfreado. Você precisará abdicar de tantas coisas quanto eu abdiquei quando você nasceu. Então verá como foi a minha vida. Deixei esta carta nas mãos de Tony. E existem ainda outras cartas. Você as receberá no momento certo. O momento oportuno.

Quero que saiba de algo. Você está com pessoas boas em Darby. Pessoas melhores

do que eu jamais fui. Não as trate mal, ou com indiferença. Tente entendê-las. Viva como elas. Viva como o resto de nós. Não há nada errado nisso. Viva como nós devemos viver, livres das algemas do sistema e aproveitando cada dia como se fosse o último. Há certa

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ironia nisso, consegue ver, Oliver? Pode realmente ser o último. Sem minha ajuda, você vai cair morto a qualquer momento. Quero que viva, meu filho. Mas precisa confiar em mim. Uma única vez. O primeiro passo depende de você. Deixe sua antiga vida morrer. Livre-se dos antigos costumes. Agora você está em Darby. Quero que seja um Brooks. Não apague nossas memórias. Apague as suas, para reconstruí-las outra vez.

Boa sorte, meu filho. E lembre-se: não vás tão gentilmente nessa boa noite escura.

Oliver deixou a carta escorregar por entre seus dedos. O

que seu pai queria? Queria transformá-lo? Mudar sua vida completamente? Como conseguiria? Permaneceu olhando para o teto, ponderando sobre o futuro. Como poderia ser um Brooks? Fitou o retrato de sua mãe na parede e imediatamente soube. Iria jogar o jogo de seu pai, afinal, o importante era aquele maldito livro. Pegou as chaves da casa e correu rua a fora. Atravessou a Avenida das Alamedas, correndo pela Rua 5 e sentindo o vento gélido da praia voar contra seus cabelos. Encontrou o bar de Dorothy Campbell fechado. As luzes de neon piscando de modo irregular. Um homem com chapéu de palha fumava um cigarro na rua e segurava um cantil. Ofereceu-o para Oliver.

Oliver hesitou. - Viva como o resto de nós balbuciou. Decidiu aceitar a oferta e sentou-se ao lado do homem. Era

Fausto McMurphy. Tinha uma voz rouca e certo sotaque sulista. Movimentava demais suas mãos conforme falava e cuspia às vezes. Em outros tempos, fora o radialista da rádio Cidade Praiana, mas tinha se aposentado porque perdera o gosto pelo negócio. Entregava de tempos em tempos o cantil de uísque qual diminuía sensivelmente - para Oliver e falava sobre coisas que não haviam

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acontecido, mencionando garotas que nunca conheceu e lugares onde nunca foi. Então falou sobre John Brooks e o momento decisivo quando arrancou a cabeça de um homem das estrelas. Oliver Brooks estava bêbado. Que lhe importava?

- Cara, aquela foi uma viagem irada. Eu vi o jato de sangue e o coroa Brooks com o machado, então as estrelas começaram a cair e eu acordei pelado...

- Como assim? Do que você está falando? interrompeu. Fausto lhe sorriu e Oliver sabia institivamente. Nunca

devia ter perguntado. - Foi em uma tarde de sol... começou. Oliver precisou beber outro trago. Seria uma longa noite.

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7

Foi mesmo em uma tarde de sol. Sobre isso não há dúvidas. Helen McMurphy morou em Darby durante toda a sua

vida e conheceu um anjo vindo das nuvens para lhe salvar durante a gravidez não planejada. Helen McMurphy, mãe de Fausto, era uma mulher da vida. Ganhava seus poucos trocados com homens sinistros em becos e garotos tímidos que não conseguiam uma mulher sem dinheiro. Engravidou sem querer. Ponderando sobre a vida humana crescendo em seu ventre decidiu manter a criança sabendo, em seu instinto, ser um garoto e mudar de vida.

Conheceu Elijah Terrence. Terrence não era nenhum milionário ou o homem mais

bonito no mundo. Usava um bigode cumprido e um cavanhaque, óculos escuros em dia de sol, com uma barriga de cerveja e beirava os cinquenta anos. Alguns diriam que Helen não se apaixonou, apenas procurou um pai para sua criança. De qualquer modo, a criança realmente teve um pai. Elijah era mesmo um anjo. Um homem vindo dos céus para atender aos pedidos da moça. Nunca conseguiu um filho e sua primeira esposa falecera há anos. Ao conhecer Helen, apaixonou-se por seu corpo cheio de curvas e tão perfeito quanto a melhor melodia. Registrou o pequeno Fausto como seu filho e deu-lhe uma boa vida.

Fausto McMurphy nasceu na boa vida de Darby Desde pequeno costumava ir para a varanda e olhar as

estrelas. Sonhava com as coisas habitando lá fora. Elijah bem sabia. - Esse garoto não bate bem dos pinos costumava

balbuciar enquanto suspirava.

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Helen, feliz, preparava-lhe uma torta das maçãs presenteadas por sua amiga Annabelle Jackson e fazia o homem esquecer seus tormentos.

- Deixe-o ser, Elijah. É um garoto feliz. Pessoas felizes não batem bem dos pinos.

- Você tem razão, querida. Você é feliz? perguntava-lhe com olhar sério.

- É claro, seu tolo. Nunca mentiu para seu marido. Fausto McMurphy realmente não batia bem dos pinos. Era

um menino magricelo desde a infância, esquisito por já ter nascido com uma pequena barbicha, ombros diminutos e um andar torto. Seus olhos se perdiam em qualquer coisa parecendo uma estrela e desde os dez anos sempre gostou de usar chapéus. Adorava seu pai adotivo que jamais soube não ser realmente o seu pai e chamava Helen apenas de madame por algum motivo estranho. Quando cresceu, sob a influência de canções artísticas de David Bowie, conheceu os mistérios do mundo e tentou decifrar suas respostas. Durante os anos noventa, já beirando os vinte anos, era fanático por Arquivo X e explorava a ideia de vida alienígena. Tinha poucos amigos, mas entre eles figurava o valentão Steven Beven e o falecido

- Você já imaginou, Steve? - Imaginei o quê? - A ideia de criaturas místicas lá fora, mano. - Você tá louco.

Famoso seriado dos anos noventa estrelando David Duchovny e Gillian Anderson como

Fox Mulder e Dana Scully, respectivamente. A trama girava em torno de uma conspiração governamental encobrindo a vida extraterrestre presente no planeta Terra. Teve uma

duração de 9 temporadas, rendendo dois filmes e duas novas temporadas em 2016 e 2018,

20 anos depois de sua criação. Nota do autor.

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Os diálogos entre os três amigos consistiam, basicamente, nisso. Todos os dias de suas vidas. Então, certo dia, também ensolarado, Fausto encontrou seu pai lendo o jornal Now na poltrona. Lia os obituários e procurava seus colegas de faculdade. Era o último da turma a estar vivo.

- Ei, coroa. Estou partindo. Seu pai fitou-o por cima dos óculos de aumento. Fausto já

deixara seu bigode crescer a essas alturas da vida e usava cabelos longos. Possuía entradas de calvície precoce e fumava um baseado sempre que podia.

- Está bem. Volte antes das dez. Fausto McMurphy colocou uma sacola de roupas nas

costas e partiu para a galáxia mais distante possível, nunca voltando naquele dia. Precisava encontrar respostas sobre os seres de outro mundo antes de voltar para casa. Era uma viagem de

Rodou o país em busca da verdade lá fora. Conheceu planta da melhor qualidade, uísque, mulheres,

jogos de azar e um punhado de mentiras. Não havia verdade nenhuma, mas frequentemente encontrava algum maluco em algum bar falando sobre alguma coisa. Eram sempre homens das estrelas, decididos a abduzir aqueles os céticos. Fausto rodou por muitos quilômetros antes de encontrar alguma prova verdadeira. Foi enquanto entrou no bar Galáctus. Era um lugar temático com uma espaçonave no teto, homens tatuados mal-encarados e mulheres em cima do balcão. Havia um cara no canto. Era caolho, sem uma das mãos e usava muleta. Tinha os cabelos cumpridos e desgrenhados.

Fausto aproximou-se com um andar descontraído, óculos escuros e um cigarro nos beiços.

- Você é o Ginger? inqueriu com olhar perigoso. Ginger gostava de fingir ser um cara mal. Certa vez

apontaram-lhe um revólver e correu mais rápido do que uma lebre.

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- Sou ninguém. Sou todos. Vi tudo e vi nada. Qual é a sua? O que você quer?

O homem tinha voz fraca e cheirava a queijo. Fausto sentou-se no lugar à sua frente.

- Sabe o que eu quero. Alienígenas. - Você está procurando por coisas perigosas aqui, moleque.

Sabe quem sou? - Ginger, a lenda viva. Foi abduzido, costurado e mandado

de volta. Fausto ofereceu seu cigarro mágico para o homem. Ginger,

a lenda viva, decidiu aceitar e bebeu uma dose de seu trago em seguida. Sorriu para Fausto.

- A floresta. Siga pela trilha às dez horas, dobre à esquerda na árvore morta e encontre o campo. Espere a meia noite. Leve uma oferenda ou vão querer sua cabeça.

- Algo mais? - Dê o fora daqui gritou-lhe Ginger, jogando o cigarro

longe. Fausto esperou a noite cair. Estava com as mãos trêmulas e

ansiando para embarcar naquela jornada de mistério. A floresta permanecia envolta de segredos e tramas malignas. Seguiu pela trilha pouco antes das dez horas. Encontrou uma grande árvore sem folhas. Parecia ter uma boca. Havia algo místico ali, como se alguém houvesse morrido há anos. Viu uma forca balançar com o vento e o assovio gélido do mundo na grama.

Quis partir, então respirou fundo. Seguiu à esquerda da árvore morta e avistou de longe uma

antiga plantação de milho. Eram os sinais. Luzes no céu e fumaça. Quando avançou, percebeu ter esquecido a tal oferenda. Pensou novamente em partir, mas era tarde demais. Os sinais no campo pareciam tremer diante de seus olhos. Sua visão turva viu um vulto

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nas sombras. Parecia levitar. Eram as luzes no céu. Pegou seu cantil e bebeu outro trago.

De repente, uma força maligna estava despindo-o. Viu aquela força correndo para longe no campo. Levava

sua bebida, seus cigarros, suas roupas e sua carteira. Carregava um feixe de luz. Não era uma lanterna, estava certo disso. Acordou no dia seguinte coberto por um trapo velho e com memórias obscurecidas. Recordava-se, com absoluta convicção, de ver alguém verde correndo pelo campo. Os feixes de luz eram fortes em sua memória. Ria e bebia de seu uísque. Fumava seus cigarros. Recordou também de ver as estrelas girarem e de levitar, até não ver mais nada além de escuridão. Acordou no dia seguinte com a cabeça doendo e uma sombra bloqueando o sol à sua frente.

- Você está bem, filho? a voz do homem era altiva, vindo de longe, como se fosse divina.

- Onde estou? - Ora essa. Está peladão no meio de uma plantação. Deve

ter sido uma noite bem selvagem, menino. Já tive dessas. Agora tenho que voltar para casa e ver meu filho. Está me esperando. De onde você é?

- De Darby, meu senhor. - Sou de lá também. Qual é o seu nome, filho? O velho sorria de canto, achando graça da situação.

Aproximou-se e ajudou o garoto a se levantar, oferecendo-lhe um trago já naquela hora da manhã.

- Fausto McMurphy, senhor. - É filho de Helen McMurphy e Elijah? Ora essa, rapaz.

Conheço sua mãe desde que você usava fraldas. Não está me reconhecendo?

Fausto comprimiu os olhos e viu o rosto daquele velho salvador longe do sol. Tinha cabelos grisalhos e um semblante cômico, quase trágico. Um misto de sabedoria e poder. Trazia em

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seu rosto um sorriso galanteador e uma pele manchada de história. Reconheceu-o imediatamente e levantou em um pulo.

- John Brooks, o homem! A lenda viva! - Calma lá. - Você o matou? - Matei o quê, rapaz? - O ET? O alienígena que me abduziu ontem à noite? O sorriso de John Brooks desapareceu imediatamente.

Precisou de outro trago. Aquele pobre rapaz pensou ter sido abduzido. Fora vítima de um simples assalto. John decidiu brincar um pouco. Bebeu outro trago e aproximou-se com confidencia.

- Não conte para ninguém, mas arranquei a cabeça daquela coisa com meu machado.

Fausto McMurphy perdeu a voz. Havia sido abduzido e salvo por John Brooks na mesma noite. Nunca teria uma história melhor para contar.

- Vamos, rapaz. Ainda é cedo e quero encontrar uma donzela no bar mais próximo. Depois levo você para casa.

Era hora de voltar e Fausto sabia. Porém, nada mais importava. Sua jornada de descoberta estava completa. Voltaria para casa com um novo chapéu, novos cigarros e comeria as tortas de sua mãe. Tinha encontrado um novo mundo e conhecido pessoas interessantes. E sido abduzido. Jamais esqueceria. Além de tudo isso, foi salvo pelo homem cujas lendas eram contadas na escola.

Foi salvo pelo mito de John Brooks.

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8

O sol bateu forte em seus olhos, despertando-o do transe da noite.

Oliver Brooks levantou-se do chão com rapidez, notando um punhado de pessoas passarem por ali e irem direto para o grande Barracão. Arrumou seus cabelos lisos com a mão e sacudiu a poeira da roupa. Procurou pela presença de Fausto McMurphy, lembrando-se das loucuras contadas pelo homem na noite anterior.

Encontrou-o dormindo em seu próprio vômito. Oliver espreguiçou seu corpo e esperou, encostado na

parede. As luzes de neon estavam fracas durante o dia. Escutou a porta abrindo e deparou com o rosto impassível de Dorothy Campbel. Ainda era cedo e Dorothy já tinha um cigarro entre seus lábios e as sobrancelhas arqueadas de modo inquisitivo. Os olhos claros da mulher foram de encontro ao corpo moribundo na calçada. Oliver viu-a sumir pela escuridão do bar e voltar com um balde de água. Jogou-o em cima de Fausto. O homem acordou-se de ímpeto, pulando em uma única perna e procurando por sua própria alma.

- Que diabo! gritou. - Vá-se embora, menino. Sua mãe está preocupada. - Volto mais tarde... respondeu Fausto com a voz

quebrada. Oliver viu Fausto McMurphy partir pela Rua 5 sem olhar

para trás. Acendia um de seus cigarros mágicos e ajeitava o chapéu, deixando-lhe a sombra cair no rosto. Era mesmo hora de voltar para casa.

- O que você quer, Brooks?

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Dorothy abriu a porta do bar e em seguida as janelas. Oliver entrou no estabelecimento de modo hesitante. Tudo estava limpo. Dorothy não parecia precisar de alguma ajuda.

- Ainda está contratando? perguntou. - Não você. - Por que não? Sou o melhor em tudo que faço. - Exatamente. O que aquilo significava? Oliver não sabia. Que tipo de

pessoa não gostaria de contratá-lo? Afinal, era apenas um trabalho em um bar. Decidiu testar a mulher mais uma vez. Caminhou para trás do balcão e serviu uma dose de uísque em um copo.

- Pode ser mais fácil do que isso? - Garoto, dê o fora. - Você nem precisa me pagar. Dorothy Campbel parou naquele mesmo instante,

largando a vassoura em suas mãos. Seus olhos encontraram o de Oliver.

- Fechado. No momento seguinte, voltou a limpar.

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9

Após o primeiro dia, Oliver Brooks quase desistiu. Voltou para casa à noite, quase madrugada, sentindo

cheiro de vômito em sua roupa e bebida em suas mãos. Suas pernas doíam ao passar tanto tempo em pé. Escutou as mais diversas e estúpidas lorotas já inventadas. Ouviu um homem dizer ser responsável pela morte de Pablo Escobar. Outro havia encontrado Jesus neste caso, o homem referia-se ao infame justiceiro que assolou a cidade há quase uma década e agora era padre -, e ainda escutou uma história estranha sobre alguém que enfrentou a fúria do Monstro do Lago Ness.

Tudo era loucura. Como podia Dorothy Campbel aguentar aqueles homens?

Eram patéticos e sem esperança. Entravam no bar todos os dias ainda cedo, arrastando seus corpos moribundos em direção ao balcão. Seus olhares vazios buscavam certa consolação naqueles demônios da garrafa. Como poderiam ser homens dignos se viviam daquele modo? Suas vidas acabadas, encontrando o último resquício de humanidade quando a dose acabava. Bebiam. Bebiam mais para lembrar-se de seu passado, tentar resgatar a última lágrima e poder sobreviver durante aquele dia. Não eram mais homens. Eram almas perdidas. Tentavam reviver o que já foi, pois em seu âmago sabiam de uma verdade inconsequente: não possuíam futuro.

Oliver refletiu sobre aquela loucura. O que era ser normal, afinal? Não passava então, nosso

protagonista, por uma mudança drástica de seu cotidiano? Perdera tudo que considerava importante. Sua carreira agora era apenas uma

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sombra. Algo que um dia foi e jamais será. Seus amores eram mulheres perdidas, buscando um pai para seus futuros filhos. O verdadeiro amor cruzava a rua naquele instante. Sua vida estava arruinada. Iria morrer em poucos meses caso não encontrasse a

de seu pai, nunca encontraria. Então, ao lembrar-se dos olhos de homens sem alma cruzando seu caminho no bar de Dorothy, caiu em um sono estranho e confuso. Cheio de memórias. Algumas verdadeiras, outras mais ainda. Todas com John Brooks.

Sonhou com seu pai. Caminhavam em um campo verde, com macieiras por

todos os lados. Era um dia nublado e com uma espécie de confusão no ar. Quando percebemos o verdadeiro, estamos delirando e achamos ser mentira, mas não temos certeza. Seu pai o esperava ao longe, com sua roupa maltrapilha e a barba malfeita, do mesmo modo que o lembrava da infância. Tinha os dedos sujos, uma boina em seus cabelos grisalhos e um cigarro nos beiços. Esticou a mão para Oliver.

- O que foi, filho? - Pai? - Nunca me chamou de pai antes. - Devo estar sonhando. - Deve estar. Oliver apertou sua mão e despertou. Olhou pela janela e

viu a luz do sol invadindo o quarto. O retrato de sua mãe uma doce mulher de cabelos negros e olhos azuis brilhou na cômoda. Estava perdido. Partido. Não sabia quem era. Iria morrer. Como seria seu dia? Como seria o dia de todos? Oliver pensou, refletiu e chorou internamente antes de levantar-se e viver. Lembrou-se novamente das almas perdidas. Os homens de olhares vazios e futuros incertos.

Era hora de começar tudo outra vez.

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10

As próximas semanas voaram para Oliver. Nunca as viu. Nunca as sentiu. Apenas foi atingido de um

modo estranho, como se uma força superior enviasse algo para sua vida. Um sinal. Decidiu, nas duas semanas seguintes, consertar todos os seus estragos. Gastou parte de seu dinheiro restaurando a casa. Não contratou ninguém, apenas comprou os materiais. Fazia o serviço à noite com a ajuda de seu único amigo naquele lugar, Fausto McMurphy. Ambos bebiam uísque e recolocavam as coisas de volta. Restauravam o chão e reconstruíam a parede. No final da noite, Fausto acendia um cigarro na varanda e contemplava as estrelas, imaginando se tudo já foi ou já era. Oliver se aproximava do homem com passos felinos, fumava um pouco de seu baseado e voltava ao trabalho. Quando o sol da manhã engatinhava pela janela, clareando os cômodos e mandando embora a escuridão de Oliver Brooks, Fausto McMurphy ia embora.

- Até amanhã dizia. Então tudo começava outra vez. Oliver trocou as portas e

as janelas, deixando novas outra vez. Precisava reparar esses danos se quisesse apagar a memória de John Brooks. Iria reconstruir a casa em honra à sua mãe. Fazer um lugar seu. E precisava fazer por si só. Nunca sentiu o esforço de um trabalho árduo. O sentimento de acabar com tudo, lavar as mãos empoeiradas e procurar maquinalmente uma cama para dormir era extasiante. Restavam-lhe duas horas de sono, mas caía como uma pedra. Não sonhava e não sentia. Apenas dormia em paz.

Levantava, lavava seu rosto e partia para o bar.

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Dorothy raramente mantinha o bar aberto à noite. Seus fregueses não eram corujas e a mulher não gostava de farra. Se mantivesse aberto, iriam chegar alguns jovens malucos que não eram frequentes e destruir tudo, então preferia a companhia de Fausto, Steven e mais alguns bêbados. Agora tinha Oliver Brooks servindo-os. Neste caso passava o resto do tempo limpando em silêncio. Pouco falava nas últimas semanas. E, após o serviço no bar, Oliver começaria tudo novamente.

Foi quando se aproximou do fim. Terminou de pintar a varanda e dividia um pouco de

bebida com Fausto. Percebeu uma silhueta estranha caminhando pelos arbustos, curvada, caçando moscas. Era um menino. Logo atrás, vinha uma mulher carregando tortas e um sorriso simpático em seu rosto. Aproximou-se de ambos os homens.

- Boa noite, Fausto disse. - Sra. Coipel. Houve silêncio por um tempo. Oliver avançou. - Gostaria de lhe dar as boas-vindas, Sr. Brooks. - Sou Oliver. - Eu sei. De repente, como um trovão, a torta foi jogada aos céus e

o garoto passou correndo em busca de uma mosca. Parou de correr quando a perdeu e aproximou-se de Oliver. Puxou seu braço. Tinha os olhos vagos, perdidos no mundo dos sonhos. Sorria abobalhado.

- Vamos ser amigos? gritou. - O quê? Não... Oliver afastou-se rispidamente e Ana Coipel repreendeu

-seguinte, arrancava folhas da árvore.

- Perdoe meu garoto. - Claro. - Seja bem-vindo.

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Zap-Zap voltou para o lado de Oliver, encarando-o de modo sorridente.

- Amigos? Oliver ser meu amigo. Ana Coipel tomou seu filho pelo braço e o afastou,

levando-o de volta para casa. A torta feita pela mulher estava agora no chão, espatifada. Fausto McMurphy juntou alguns pedaços e seguiu andando pela Avenida das Alamedas enquanto comia. Oliver permaneceu observando a cena. Que tipo de pessoas eram aquelas? Sempre tão alegres e sorridentes? Vinham lhe dar as boas-vindas com torta. Não queria falar com ninguém e não desejava ver ninguém. Virou as costas para a noite e voltou à sua morada solitária. Em sua concepção, aquelas pessoas perdidas em sua própria felicidade não passavam de indivíduos loucos, tentando buscar razão sem razão. Iria morrer. Por que precisava ser feliz? Não bastava ser melhor? Não ligava para os outros quando talvez devesse começar a ligar. Lembrou-se do garoto chamando-lhe de amigo sem conhecê-lo. Era estranho. Sorriu sozinho com a lembrança. Pessoas felizes. Eram todas loucas.

Talvez fossem mesmo.

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11

Quase um mês após trabalhar no bar de Dorothy Campbel, a casa estava finalmente consertada.

Oliver terminou a pintura final da varanda verde claro misturado com uma espécie de azul celeste, a cor favorita de sua mãe. Sentiu-se ainda mais cansado, mas existia algo diferente em seu cerne. Caminhou pelo novo piso da casa e fitou a parede de livros. Sua mãe estaria orgulhosa e isso importava. Apenas isso. De algum modo estranho, no entanto, a memória de John Brooks ainda vivia por entre aquelas paredes. Mesmo após Oliver ter se livrado de todos os pertences do homem, sua pilha de jornais e as plantas mortas.

- Sinistro, cara. Fausto McMurphy andou cambaleante pelos corredores da

casa, procurando por algo entre as frestas de portas e o teto. Voltou correndo para o lado de Oliver quando escutou o gato da vizinha derrubar a lata de lixo.

- John está por aqui, mano. Posso sentir. - Claro que está respondeu-lhe Oliver. Estava mesmo. Parecia uma longa jornada para extinguir

John Brooks. Decidiu sentar na varanda naquela noite. Seus braços

doíam, suas pernas pediam por descanso e sua alma desejava um pouco de paz. Bebeu uma cerveja conforme o vento do mar tocava seus cabelos. Iria ler um livro, talvez. Aquele que ainda não começara. Era uma noite clara, cheia de estrelas no céu e uma mágica no ar. Escutou passos no gramado.

- Boa noite ouviu às suas costas.

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Era Tony Gianos, trazendo sua própria cerveja e palavras presas na garganta. Apoiou-se na sacada e observou a noite. Sem ninguém naquela rua vazia. Apenas o som do mar e o fantasma de homens. Apenas o som da humanidade.

- Lhe devo desculpas começou, voltando-se para Oliver. Oliver bebericou sua cerveja, coçando a barba rala. - Desculpas aceitas. Tony Gianos pareceu esperar por algo. Oliver pensou se

devia desculpar-se com o homem por sua agressividade. Não. Iria morrer, mas não se desculpar por estar certo.

- Vejo que reconstruiu tudo. - Vou matar John. - Ainda com essa ideia? Oliver acenou. - Cabeça dura. Como seu pai. Tony Gianos bebeu um gole de sua cerveja. Lembrou-se

daquela noite. A noite fatídica em que John Brooks morreu. Bebia, também, uma cerveja na varanda no dia seguinte. Sua esposa o abraçava. Os lobos uivavam. Não os escutou gritar mais. Na verdade, talvez Oliver houvesse realmente matado John Brooks, pois não conseguia sentir a presença de seu amigo. Era apenas um vulto, como uma luz fraca perdendo-se na imensidão do céu. Poderia tocá-lo e lembrar o passado, mas já não sofria mais. Habituou-se a sua ausência e o sentimento de saudade.

- Oliver, por que está fazendo tudo isso? Seu pai disse que viria. Esperava que você encontrasse algo.

- Meu pai não me deixou escolha. Preciso ficar aqui por um ano.

- E depois? Oliver sorriu, aproximando-se de Tony. Bebeu o resto de

sua cerveja. - Apenas beba Tony. É sério.

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- Seu pai não foi o melhor homem que conheci Oliver. Era meu melhor amigo, claro, mas sempre soube que poderia ser um homem melhor. Alguém que as pessoas pudessem contar. Quando sua mãe morreu e você foi embora... Eu o avisei.

Os olhos de Oliver encontraram o rosto encanecido de Tony Gianos. Não era mais como lembrava. O Tony Gianos de sua infância possuía energia, altivez e certo jeito taciturno. Talvez a vida houvesse o alterado. Os anos o modificaram. As perdas o modificaram. Chegou a conclusão de que ninguém continua o mesmo.

- Avisei que você iria embora. Iria perder seu filho para sempre. John não quis me escutar. Deixou você partir.

Tony Gianos virou o rosto para esconder uma lágrima escorrendo por seus lábios. Para Tony, nunca existiria nada mais importante do que um filho. Sua menina, Donna Gianos, estava por aí, viajando e vivendo. Voltava para vê-lo ocasionalmente. Tony sentia saudades, mas não podia fazer nada, pois precisava deixar seu pássaro voar. E agora tinha Oliver, o filho de seu melhor amigo. Não o deixaria escapar por ego.

- Oliver... Os olhos de Tony encontraram os de Oliver na penumbra

da noite. Oliver não sabia o que fazer, mas seu coração dizia para abraçar o velho homem. E abraçou. Permaneceram assim por alguns minutos, lembrando-se da infância e das brincadeiras. Tony sempre foi um homem admirado por Oliver. Era sua verdadeira figura paterna.

- Oliver, escute bem. Seu pai não era um bom homem. As pessoas gostavam dele porque era gentil e engraçado, mas não era bom. Apenas... Não o destrua.

Oliver afastou-se de Tony por um segundo. Segurou o homem pelos ombros.

- Eu preciso respondeu.

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- Não. Você não precisa. Pode ser mais. Seja melhor. Seja você um bom homem.

Tony Gianos bebeu o rosto de sua cerveja e secou as lágrimas com a palma da mão. Desceu as escadas da varanda com um sorriso no rosto e o coração mais leve. As palavras não estavam mais presas em sua garganta. Disse o necessário. Viu Claire Thompson entrando em sua casa no outro lado da rua chegando do trabalho.

De fato, faltou dizer algo. - E fale com Claire. Ela sente sua falta. Oliver acenou enquanto Tony virava as costas e seguia

caminhando de modo taciturno pela Avenida das Alamedas. Buscou conciliação com a noite. Seus tormentos agora em paz. O velho Tony, aquele homem admirável de sua infância, estava de volta. Sentiu certa placidez. E algo diferente começou a agitar-se em seu peito quando pensou em Claire Thompson. Iria visitá-la no dia seguinte. Por enquanto, permaneceu apoiado na sacada.

O vento da noite balançava seus cabelos e a luz das estrelas tocava seu rosto. Sorriu sozinho com os pensamentos cruzando sua mente. Sentia algo estranho. Não pensou, em nenhum minuto, quando iria morrer. Não pensou em terminar com tudo. E não pensou em destruir John Brooks. Seu pai agora não passava de um fantasma, uma memória desvanecendo entre as lendas e a poeira desta terra deixada para trás. Assim como Tony, sentiu pela primeira vez John Brooks realmente partir para a próxima. E Oliver estava bem. Reconsiderou sobre tudo. Talvez destruí-lo não lhe traria bem algum. Talvez não precisasse. Talvez era hora de tentar diferente.

Tentar ser melhor.

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Terceira parte

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1

Durante sete noites seguidas, Oliver Brooks fitou-a. Seus cabelos, às vezes amarrados, caíam com perfeição sob

o torso. Aquele pequeno nariz torto e os lábios rosados o faziam sorrir em silêncio, nas trevas. Lembrou-se de seu toque e das promessas juvenis trocadas há tantos anos. Lembrava-se de tudo enquanto seu peito ardia com força. As palavras trancadas na garganta e o ego gritando em seus ouvidos. Bebia uma cerveja, escondido na penumbra, vendo-a chegar a sua casa todas as noites. Assistindo-a caminhar, sozinha, cheia de demônios e aflições, enquanto abria aquela maldita porta emperrada. Fausto McMurphy fumava um baseado ao lado de Oliver na maioria dessas noites.

Oliver tragou, deixando a fumaça da erva encontrar a noite colorida.

- Devia ir falar com ela, cara. Sinto sua respiração pesada daqui. Existe algo aí...

- Eu deveria fazer muitas coisas, Fausto. - Qual é. A menina é um chuchuzinho. - Quem ainda fala assim? Fausto McMurphy pareceu pensativo. Na verdade, apenas

tinha os olhos presos nas estrelas. Oliver o acompanhou em direção ao céu. Não encontrou nada. Sorriu abobalhado.

- Vou embora, maluco disse Fausto, de repente. - Para onde? Fausto McMurphy já levantava com pressa. Claire ainda

não chegara, por isso Oliver sabia ser ainda cedo. Cedo demais para Fausto.

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- Para casa. Oliver deu de ombros. Fausto jogou a guimba do baseado

longe, indo embora com uma cerveja. - Até amanhã. Nos vemos no bar. - Mano, não vou para o bar amanhã. - Por que não? perguntou Oliver. - Preciso parar de beber respondeu Fausto enquanto

bebia uma cerveja e atravessava a Avenida das Alamedas. Oliver não soube responder. Apenas permaneceu lá,

sentado na varanda, observando a noite infinda. Claire ainda não havia chegado. Decidiu pegar todas as suas ferramentas e cruzar a rua. Aproveitou a solidão da casa e abriu a porta.

Em Darby, havia apenas pessoas hospedeiras e portas abertas.

Consertou a maldita porta emperrada. Não sabe quanto tempo levou no processo de retirá-la totalmente do lugar, lixá-la na parte de baixo e colocá-la de volta, mas já era tarde quando escutou os passos ecoando na escuridão. Suas mãos estavam sujas de poeira e havia lascas de madeira em todo lugar. Não existiria tempo suficiente para limpar. Então fez aquilo que não queria. Pensou se devia realmente ficar ali. Pensou se tinha ponderado toda a questão. Já era tarde. Claire subia as escadas. A pequena lâmpada da varanda iluminou seu rosto pálido e sua expressão de transtorno. Oliver olhou para o chão.

Houve silêncio. - Vim consertar sua porta respondeu Oliver. Claire escondeu um sorriso. Sentiu um formigamento

percorrer seu corpo. Suas mãos estremeceram e a boca secou. Oliver Brooks estava diante dela.

- Agradeço a intenção respondeu. Oliver já deixava a sacada, descendo pelas diminutas

escadas. Suas pernas fraquejaram quando ouviu o timbre suave da

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voz de Claire. Falou, vacilando, com lágrimas presas em sua garganta.

- Quer entrar? perguntou. Oliver parou. Refletiu. Deveria? Sim, deveria. Ou talvez

não. Sentiu um nó formar-se em sua garganta. - Agradeço a intenção respondeu igualmente. Claire Thompson mirou o chão com um misto de

vergonha e tristeza. - Tudo bem, Oliver. - Nunca disse que não queria.

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Oliver e Claire compartilharam um sorvete naquela noite.

Nos primeiros momentos, estavam ambos desacostumados à presença um do outro. Não se viam ou se falavam há tanto tempo. Não tinham mais a mesma intimidade. Além disto, não eram mais os mesmos de quando tinham apenas quinze anos de idade. Claire lhe ofereceu algo para beber e Oliver aceitou. Então começaram a conversar. Oliver viu-a corar perante sua presença.

- Você é a mesma tola disse. - Apenas envelheci, não foi? - Nem um pouco. - Então, Senhor Publicitário do Ano. Como é a vida lá

fora? Oliver Brooks refletiu por alguns instantes. Há semanas

não pensava na vida lá fora e em tudo deixado para trás. Não pensava como era o ontem e não pensava em como era o amanhã. Estava apenas vivendo com aquela nuvem negra pairando sob sua cabeça. Aquela voz lá no fundo de sua alma dizendo-lhe que o tempo estava prestes a esgotar.

- Selvagem - respondeu. Permaneceram em silêncio. Oliver ainda conhecia o

silêncio de Claire Thompson. - Diga-me o que está pensando. Não vou me zangar. Não

tenho tempo para isso...

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Claire franziu a testa, mexendo devagar com a colher em seu copo de sorvete. Deixou-o sob a mesa e os olhos encontraram os de Oliver.

- Por que nunca voltou Ollie? - Nunca pude Claire. Meu pai, minha mãe. Nosso passado. Do mesmo modo, Claire sabia quando Oliver Brooks

mentia. Segurou sua mão com força. Seus rostos estavam próximos. Oliver conseguiu sentir sua respiração. Afastou-se dela.

- Diga-me a verdade Claire falou. - Eu nunca quis. - Não se sente melhor? Oliver fitou-a de modo interrogativo. - Dizendo a verdade. Riu da ingenuidade de sua antiga namorada. - Você realmente continua a mesma. Oliver nunca viu o tempo passar diante de seus olhos. Não

notou o pote de sorvete diminuindo gradativamente ou o sol aparecendo na janela. Percebia apenas as pequenas coisas. Os cabelos, em um momento, soltos de Claire. Sua voz mudando de timbre, tornando-se mais suave. Sua risada diante das histórias absurdas de Oliver no escritório. Sua risada diante das memórias do passado. Lembraram de tudo, sem se importar com que iria acontecer.

- Você lembra a nossa primeira vez Ollie? Estava tão sem graça!

- Acho que comeu sorvete demais, mocinha. Lembro do nosso primeiro beijo.

- É sério? - Achou que eu esqueceria? Tínhamos catorze. - Sei que não foi o seu primeiro. Você me disse naquela

época. E, nossa, faz tanto tempo...

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- Era mentira. Apenas queria aparecer. Você tinha todos esses garotos na sua volta na escola e eu não ligava para outra menina além da minha vizinha ruiva.

- Você mentiu para mim?! Claire sorriu, abobalhada, jogando uma almofada em

Oliver enquanto a luz do sol entrava pela janela da sala. Ambos riram sob a claridade da manhã. Então estavam juntos, colados. Claire em cima de Oliver. Suas respirações tornando-se apenas uma. Silêncio. Miravam suas almas, lembrando-se daquele dia na praia. O dia do primeiro beijo. Oliver levantou bruscamente, deixando Claire em cima do sofá. Ficaram em silêncio por alguns minutos.

- Conversamos a noite inteira declarou Claire. Senti sua falta, Ollie.

- Preciso ir, Claire. Ou a maluca Dorothy vai me demitir. Oliver sentiu-se demasiadamente desconfortável. - Está trabalhando no bar? - Estou. Todo o dia. - Por quê? - Preciso ocupar a mente. E conhecer as pessoas. Acho que

não gostam muito de mim por aqui. Claire não respondeu, esboçando apenas um sorriso de

canto. Oliver conhecia aquele sorriso. Assim como conhecia cada parte de seu corpo e sua alma. Sorriu de volta enquanto espreguiçava-se e se aproximava da porta. Sentiu Claire segurá-lo pelo braço.

- Ollie... Seus olhos se cruzaram. O nó na garganta de Oliver estava

de volta. Viu-a se aproximar dele. Os corpos colados. Claire beijou-o ternamente nos lábios e se afastou. Oliver olhou para o chão.

- Desculpe disse, virando as costas rapidamente. Abriu a porta e encontrou a rua. Correu para o bar.

Precisou correr. Precisou fugir daquelas memórias como fugiu há

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tanto tempo. Por que estava tudo voltando para assombrá-lo? Claire, as memórias de infância, toda a sua vida. Tudo isso quando não havia motivo para viver. Todos aqueles sentimentos confusos gritando dentro de seu peito. Quis uivar, gritar aos céus, arrancar seus cabelos. Percebeu algo. Queria tudo aquilo. Queria estar com Claire. E não queria morrer sem tê-la tratado bem.

Percebeu que não precisava mais correr.

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Claire Thompson flutuou durante certo tempo. Claro, a reação de Oliver não foi adequada. Viu-o correr

pela rua, mas sorriu por deixar sua mente tão confusa quanto podia. Em seguida, sentou-se no sofá e mirou o teto. Ria sozinha, sem realmente entender a razão de tudo aquilo. Sentia uma forte ardência em seu peito. Uma ansiedade para poder tocá-lo novamente, respirar seu perfume e mirar em seus olhos. Era Oliver Brooks, afinal. O homem de sua infância. Havia mudado e Claire sabia disso, mas algo lhe dizia: ainda era aquele garoto alegre. O pequeno menino cujos sofrimentos eram apenas um borrão em um céu mais azul.

O garoto que a tratou tão bem durante muito tempo. Sejamos francos agora. A vida de Claire Thompson era um

verdadeiro desastre. Em sua diminuta casa, apenas sua sala mantinha-se limpa. O único lugar realmente organizado da casa porque Claire recebia pessoas ali e pouco parava no cômodo. Ao avançar pelo pequeno corredor, chutou suas roupas do dia anterior para baixo de uma cadeira e avançou pela cozinha, onde alguns pratos sem lavar a esperavam. Suspirou e decidiu ir para o quarto. Jogou sua roupa em qualquer lugar. Caiu em meio aos seus cobertores desarrumados por um minuto e pensou em sua vida.

Era apenas mais um dia. Levantou-se em um pulo e foi para o banheiro. Hora do

banho matinal. Após isso, gastaria menor tempo possível arrumando-se, ajeitando seus cabelos e esperando pelo melhor. Vestiu seu uniforme do supermercado e as sapatilhas brancas.

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Estranhamente, quando as fitou, não pensou na morte de John Brooks. Pensou no filho do homem. E seu peito ardeu outra vez. Então, partiu para o trabalho maquinal de colocar preços em produtos ou passar a tarde sentada em uma cadeira rotatória cumprimentando as pessoas de Darby. Hoje era esta última opção.

- Bom dia, Claire. Como vai? perguntava-lhe uma senhora que comprava abacates todos os dias da sua vida.

- Muito bem, Sra. Collins. -

Coipel passou na fila com sua cesta recheada de morangos e outras frutas vermelhas. Havia também farinha e uns chocolates. Dia de torta, pensou Claire. Zap-Zap fitava o nada, imaginando um mundo completamente novo cheio de cores vibrantes.

- Amiga Claire disse com voz calma - Amigo Jeff! respondeu Claire. Aquele garoto, apesar da deficiência, era uma alma pura.

Para Claire, todas as almas puras devem ser tratadas bem. Pensou diversas vezes sobre isso e martirizou-se enquanto chorava em seu banheiro. Desde Oliver, esteve com pouquíssimos homens. Não eram casos sérios. Homens, às vezes, violentos. Não a tratavam com dignidade e respeito. John Brooks mandava-os embora.

- Se eu o ver novamente, vou tirar minha espingarda do armário dizia-lhes.

No final das contas, quando pensava em sua fracassada vida amorosa, percebia que nenhum daqueles homens era Oliver Brooks. Nenhum deles olhava em seus olhos como Oliver ou tinha seu toque. Nenhum deles amava como Oliver. Nenhum nunca iria mentir para protegê-la. Porém, Oliver também a abandonou, causando-lhe sérios problemas emocionais. Sempre pensou se era realmente boa. Ponderou se era uma alma pura.

Ana Coipel tirou Claire Thompson do feitiço e Oliver desapareceu de seus pensamentos como faz há tantos anos.

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- Fiquei sabendo que certo rapaz deixou sua casa nesta manhã relatou Ana, em confidência.

Maldita cidade pequena pensou Claire. - Quero saber tudo. - Não foi nada, Ana. Ana era sua única e verdadeira amiga, apesar da diferença

de quase trinta anos de idade. Claire nunca pensou como algo importante.

- Apenas conversamos a noite inteira. Oliver... Ainda é aquele rapaz de antigamente. O menino gentil, cujas mentiras procuram alguma salvação. Não sei se me ama.

- Você está escondendo o jogo menina. - Estou sim. Foi incrível, Ana desabafou Claire com

empolgação. - Eu sabia! Claire empacotava as compras, porém, Ana ainda

mantinha a conversa. Tinha suas táticas. Enquanto isso, Zap-Zap corria pelo supermercado, observando o teto em forma de abóbada e as luzes da vida cotidiana.

- Devo me animar? perguntou Claire, passando o próximo cliente.

Ana pensou em como responder. Claire já sofrera demais e qualquer queda poderia lhe destruir.

- Tenho certeza que sim. Tudo vai dar certo respondeu, sem saber.

Não conhecia Oliver Brooks de verdade. Como poderia saber?

Claire viu Ana partir com um sorriso em seu rosto. Então continuou trabalhando. Entretanto, o dia estava diferente. Não era apenas mais um dia. Pensou em Oliver. Pensou na sua vida. Imaginou o futuro ao lado daquele homem. As horas foram embora e, pela primeira vez em muito tempo, não sentiu. Descobriu-se

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deixando o trabalho quando caminhava pelas ruas de Darby com o vento da praia batendo em seus cabelos. Sorria abobalhada, esperando por algo que não sabia ser verdade. Em sua fértil imaginação, Oliver estaria lá como na noite anterior. Sentado na varanda, na parca luz, observando-a de longe. E sorrindo. Quando se aproximou, não viu nada além de escuridão. Na noite e em seu espírito. Não viu ninguém e as luzes da casa de Oliver estavam apagadas. Teria ido embora? Não sabia, mas perdeu o sorriso. Quando subiu as escadas teve ainda vãs esperanças ao abrir a porta. Iria encontrá-lo?

Ao entrar e enfrentar a penumbra daquela casa solitária viu apenas mais um dia à sua frente.

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4

Dorothy Campbel abriu a porta da sua casa e entrou na divisão: o bar.

De fato, não gostava de morar no mesmo lugar em que mantinha um estabelecimento destinado aos bêbados. Então, há alguns anos, ordenou a construção de uma divisão entre a sua diminuta casa e o bar. Gastava pouco tempo em casa, é verdade, mas ao trancar a porta todas as noites tinha certa segurança. Se escutasse um barulho no bar, ninguém poderia passar para o outro lado. E se passasse, bem...

Iria estar a sete palmos da terra em breve. Não foi o caso daquela madrugada, no entanto. Já é bem

sabido nestas páginas que Dorothy Campbell não mantém o bar aberto na madrugada. Não é lucrativo e precisa do capital daqueles caipiras cuja bebida é a única consolação de seus pobres espíritos quebrados. Então levantou da cama quando escutou copos sendo movidos e barulho de vidro. Sem vozes. Já havia passado das oito horas, horário em que Oliver devia fechar o bar e dar o fora. Suas ordens eram claras. Com isso, avançou com calma em direção a porta. Colocou seu ouvido e esperou. Viu uma sombra embaixo da porta.

Havia alguém. Voltou. Caminhou até a cristaleira e sua mão buscou

automaticamente algo atrás do móvel. Procurou apenas com o tato até encontrar o revólver calibre .22 de seu marido. Ainda estava ali. Nunca teve que usá-lo, entretanto, sempre há a primeira vez para tudo. Quem sabe não meteria um balaço em alguém? Avançou com

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cautela, inserindo a chave na fechadura e segurando firmemente a arma com a outra mão. A porta abriu-se com um estalo, ringindo. Ecoou pela noite infinda.

Baixou sua arma, guardando o cão de volta no lugar. - Ei... falou Oliver, fitando-o de uma mesa perto da

porta. Dorothy o repreendeu com o olhar. Oliver tinha uma garrafa de conhaque em cima da mesa e

um copo vazio ao seu lado. Já bebera algumas boas doses e, provavelmente, estava bêbado. Não foi para casa. Não achou que conseguiria. Sabia que Claire talvez o estivesse esperando. Apesar daquele sentimento estranho em que não queria correr, Oliver correu. Não gostava de enfrentar as consequências de suas ações.

enfrentou consequência nenhuma. Exceto aqueles malditos comedores de chocolate pensou imediatamente.

- Eu precisava de uma bebida. E este é o único bar por aqui. Oliver encheu uma dose de conhaque e bebeu. A bebida

desceu quente por sua garganta. Era hora de outra dose. Dorothy Campbel pegou um copo do balcão e aproximou-se da mesa de Oliver, sentando-se em frente ao rapaz. Pousou a arma ao seu lado.

- Ia meter bala em mim? Dorothy fitou-o com um sorriso de escárnio. Encheu seu

copo e bebeu. Ficaram assim, daquele modo estranho e tão normal para pessoas cuja convivência parece realmente normal, bebendo em silêncio, na penumbra do bar. Às vezes seus olhos se cruzavam e sorriam de canto, sentindo de algum modo o que o outro carregava dolorosamente no peito. Não finalizaram aquela garrafa de conhaque. Passava da meia noite e Oliver precisou falar algo. No final de tudo, o silêncio começou a consumi-lo.

- Não sei o que faço desabafou. - Eu deveria demiti-lo respondeu Dorothy Campbel.

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- Eu sei. - Mas você é gente boa. Seu pai nunca falaria dos

sentimentos, nem mesmo comigo. Oliver sorriu de canto. Não sabia bem se agradecia.

Decidiu beber outra dose de conhaque. - As notícias viajam rápido por aqui começou Dorothy. Oliver apenas escutou. - Você e a garota do supermercado. Clara, é isso? - Claire corrigiu. - Então não sabe o que faz, não é? - Estou bebendo, à meia noite, com uma velha ranzinza.

Parece que sei? Dorothy Campbel, pela primeira vez em um longo tempo,

sorriu verdadeiramente. Através de todos os seus anos de vida, poucos tiveram os colhões de chama-la de velha ranzinza. Aqueles que fizeram tornaram-se bons amigos para a vida.

- Velha ranzinza? testou. Queria saber se Oliver iria pedir-lhe desculpas. - Não gosta de velha? Sei que é ranzinza. Dorothy continuou sorrindo. - O que devo fazer? - Primeiro de tudo, não devia estar conversando com uma

velha ranzinza. Segundo: qual é o problema de vocês, homens? Perguntei-me isso a vida inteira. Desde meu marido até seu pai.

- O quê? Somos criaturas indecisas. Mágicas por sua própria criação. Homens não tem noção do que estão fazendo a não ser que tenham um grande nível de moralidade e ética. Nunca fui bom nesses últimos dois.

- Escute bem, rapaz: o tempo passa. Em breve você vai estar velho e ranzinza como eu e não terá a garota. Por que não dá o fora daqui e vai até ela?

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Sua garganta apertou com as palavras de Dorothy Campbell. O tempo não iria passar. Quando Oliver despertasse e descobrisse, estaria morto. Seu corpo apodreceria na terra úmida. Não encontraria ninguém no cemitério para chorar sua morte. Não tantas pessoas como no funeral de John Brooks, estava certo. Seria apenas comida de vermes e sua Claire, a pobre Claire, teria passado despercebida. Não a abraçaria e beijaria uma última vez. Contudo, aquele segredo o corroía. Estava destruindo-o por dentro. A nuvem negra pairava diante de sua cabeça e a voz de John Brooks gritava em seu ouvido.

Além de tudo, sua própria percepção da vida estava destruída. Tornou-se uma mancha negra pela morte.

- Não posso... - Se não pode, fazer o quê? Hora de dar o fora. Dorothy Campbell estava prestes a levantar-se. - Vou morrer Oliver desabafou, com a voz metálica. E sentou-se outra vez, caindo na cadeira com um baque. - Sobre o que está falando? - Tenho menos de um ano de vida... Graças ao meu pai. Dorothy abriu a garrafa de conhaque e bebeu diretamente

no gargalo. Seus olhos não deixaram os de Oliver. Parecia genuinamente preocupada.

- Sabe como John morreu? - Muita bebida? - Um problema de coração. Hereditário. - Mas morreu como um velho rato, esgueirando-se por aí.

Você ainda tem tempo. - A doença não age assim. Geralmente mata na minha

idade. Meu pai teve sorte. Vou morrer Dorothy. Não posso procurar Claire. Não posso viver normalmente.

Dorothy Campbel permaneceu em silêncio. Suas mãos enrugadas procuraram as de Oliver. Sua alma tentou consolar o

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desespero na do rapaz. Sentiu tudo, como não fazia há tanto tempo. Uma lágrima escorreu por seu rosto.

- Não há tempo para a vida, Oliver. Ou você morre ou vive. Se escolher viver, viva como quiser. Viva como se não houvesse muito tempo, sendo isso verdade para você. Mas viva. O relógio é rápido.

Oliver escutou-a. Iria desmoronar. Talvez fosse apenas a bebida falando, não sabia.

- Sou uma velha ranzinza. E sabe por quê? O olhar de Dorothy Campbel perdeu-se na luz bruxuleante

do bar. Encostou-se à cadeira. As memórias de sua vida inteira percorreram sua mente, passando diante de seus olhos. Seu passado, sua vida. Tudo.

- Porque não vivi...

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Dorothy Campbel nem sempre foi uma velha ranzinza durona dona de bar.

Era, em sua essência, uma moça adorável na juventude. Os anos sessenta quando tinha seus quinze anos de idade foram, para Dorothy, uma revelação. Algo em seu espírito certamente mudou ali e, com o final da guerra, já beirando os vinte anos, decidiu a hora de começar a viver. Abraçou a vida na cidade. Seus pais nunca foram pessoas muito presentes, apesar de seu grande capital econômico. O pai de Dorothy, Merlin Belacqua, era homem da indústria bélica e ficou abarrotado de dinheiro durante a Primeira Guerra, momento em que a crise econômica de outros países o fez nadar em verdinhas. A mãe de Dorothy, ironicamente Merlinda Belacqua era, perante a sociedade cega e tradicional da época, uma moça inocente e puritana que realmente não era nada puritana.

Não conseguiria contar em seus dedos quantos amantes tinha. O caso não é diferente com Merlin.

Por isso nunca deram muita atenção a sua filha e, se desejava ser uma grande estilista e seguir o sonho na cidade grande, assim seja. Seu pai lhe deu aquilo necessário: o capital. Sempre quis uma filha advogada, mas não iria implicar com isso. Verdade seja dita: pouco ligava. Sendo assim, em seus vinte anos, na flor da idade, Dorothy Belacqua decidiu arriscar e viver em um apartamento na cidade grande. Dividia com uma moça estranha, corpulenta, publicitária por fora e comunista por dentro. Era um verdadeiro caos de ideologias, na verdade. Nunca sabia o que queria.

Dorothy pouco se importava. Vivia o sonho.

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E vivia com intensidade. Toda a noite conhecia pessoas novas na capital. Cruzava a Rua Groth com felicidade, vendo os homens passarem com seus ternos engomados e os chapéus em mãos. As damas com vestidos longos, entrando em restaurantes chiques. Dorothy, com o capital de seu pai, seguia o estilo. Logo mudou de ideia sobre a carreira de estilista, quando conheceu um homem chamado Vander Carmine. Foi em um desses restaurantes cheio de pessoas ricas, gastando à custa da sociedade dos oprimidos. Vivendo a boa vida sem saber o que existe lá fora.

Carmine era um homem estranho por dentro. Dorothy nunca quis realmente descobrir. Vestia-se bem,

parecia um santo e trazia consigo um sorriso capaz de arrebatar os melhores corações. Era um executivo da alta indústria do entretenimento e, ao ver a beleza radiante de Dorothy, seu rosto corado e os cabelos cacheados, descobriu sua perfeição.

- Você será modelo da minha nova marca de batons. Faremos muitas coisas juntos!

A coisa deu certo por alguns meses. Dorothy seguiu os ensinamentos de Carmine à risca e trabalhou para o homem durante muito tempo, ganhando seu próprio dinheiro e aproveitando cada vez mais as noites da cidade. Nada nunca parava e Dorothy espantava-se com isso. Todo o dia podia sair caminhando, bebendo um café junto com suas supostas amigas e quando as estrelas despencassem no céu e a noite viesse substituir o dia, iria vestir-se com um de seus melhores vestidos e viver. Pensou algumas vezes, enquanto dançava e bebia com homens estranhos, fitando aqueles rostos alucinados pela felicidade, que iria viver para sempre.

Então conheceu Rover Campbel. O ano já era 1975 e Dorothy, cansada da vida de modelo

e sendo excluída do ramo, especialmente por Carmine, encontrou as lutas de boxe. Elogiavam sua maravilhosa beleza e seria incrível tê-la no ringue anunciando as lutas, diziam. Dorothy foi em frente.

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Era hora de viver com mais intensidade. Sentia de perto o cheiro de sangue e via aqueles homens suados, lutando até o fim. Havia excitação naquilo tudo. Depois, o vencedor iria levá-la para um jantar em algum bar e viveriam. Pensou que seria assim até o final de seus dias. Não se importava. Adorava aquela vida.

Porém, algo mudou com Rover. Era galanteador, conquistador, usando seus cabelos com

brilhantina e um jeito moleque capaz de levá-la para qualquer canto e fazê-la amá-lo. Não demorou a Rover lhe pedir em casamento e a tirar dos ringues apenas para assistir as lutas. Entretanto, foi quando conheceu o verdadeiro Rover. Era um beberrão, ameaçador e violento mesmo fora do ringue. Espancou um homem, um coitado, apenas por olhar errado para Dorothy, que agora carregava seu sobrenome e, pensava a pobre moça, um filho no ventre. Conhecendo Rover, não poderia deixar aquela criança nascer.

Então, em um piscar de olhos, sua vida inteira mudou. Os sonhos do futuro, de ir para Paris e viver lá, viajando

pela Europa, estavam acabados. Abortou por escolha o filho de Rover e mentiu-lhe ter perdido a criança, desencadeando a fúria do

destruído pelo infortúnio de não ter um herdeiro e pela bebida consumindo sua alma, começou a perder as lutas de alto calibre e logo não lhe queriam no ringue, aumentando sua fúria. Foi preso duas vezes por agressão. Espancava Dorothy todos os dias, estuprando seu espirito e seu corpo. A moça não aguentava mais, pensando em suicídio.

Foi quando, no início dos anos noventa, mudaram-se para Darby. Um local pequeno e aconchegante. Tinham pouco dinheiro, pois Rover gastara todas as economias do casal. Rover voltou a lutar boxe na categoria amadora. O pequeno clube fechou um ou dois

Não havia, na cidade pequena, desafiantes para o homem brutal.

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Batia em seus adversários até caírem e continuava batendo depois. O dono do clube morreu por causas desconhecidas logo em seguida. E, então, aquele foi o fim de Cachorro. E o fim de Dorothy. Sua vida estava arruinada, seu corpo não era mais o mesmo e sua beleza fora roubada pelas mãos violentas do marido. Tornou-se amargurada e esperou a morte de Rover pela tristeza.

Dorothy decidiu que era hora de seguir com sua vida.

Contudo, agora era tarde. O que poderia fazer além de amargurar a adversidade? Não tinha dinheiro. Não tinha mais seu sustento. Decidiu abrir um bar em um dos cantos de Darby, bem onde morava, e aguentar todos aqueles beberrões entrando e contando-lhe as mil mentiras. Pendurou um quadro de Rover na parede para lembrar-se sempre do veneno causado pelo marido em sua vida. Para recordar que não podia desistir e morrer ou o deixaria vencer. Usou seu jeito novo e ranzinza de viver para controlar os homens.

Tornou-se a velha e durona Dorothy Campbel conhecida por todos.

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Dorothy Campbel caminhou pelo bar com calma, sentindo o passado lhe sufocar a garganta. Parou na bancada e tocou com seus dedos enrugados uma inscrição feita com faca quando conheceu John Brooks.

- Sabe, seu pai me ajudou muito quando Rover morreu. Pensei que teríamos um caso, mas eu era muito velha e feia para seus gostos peculiares. Foi apenas um bom amigo. A ideia de montar um bar foi dele. Para beber de graça, me disse. Mas sempre pagou as bebidas.

- Meu pai gostava de ajudar estranhos. - Eu sei o que veio fazer aqui, rapaz. Nunca se deram bem.

John falou de você e Marie algumas vezes. Oliver Brooks deixou sua cadeira e caminhou em direção a

porta de saída. Sentiu a noite silenciosa tocar seu rosto de forma afável. Parou e fitou as estrelas, sentindo-as gélidas contra seu coração. Estava pesado e leve ao mesmo tempo. Não morreria sozinho, percebeu agora, mas não sabia exatamente se deveria viver. A presença de Dorothy surgiu ao seu lado e parou, observando o que aquele rapaz observava. Era tudo diferente para Dorothy, já sem graça e sem nenhuma vida.

- Sempre fui muito perceptiva, sabe. Minha mãe costumava dizer que eu não faria amizades por isso. É verdade. Nunca tive amigos verdadeiros, com exceção de John. Mas eu sabia o que ele era.

- Como assim? Dorothy Campbel fitou-o com simplicidade.

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- John era seu pai. Bondoso com estranhos. Um ótimo amigo para beber. Um ótimo cidadão. E você sabe o que dizem sobre os bons cidadãos?

- O quê? - Ou você é bom cidadão ou bom homem. Oliver Brooks tornou-se silencioso e voltou a notar as

estrelas. Viu um risco de fogo cruzar o céu. Estrela cadente. Refletiu se era sua sorte voltando para este mundo sombrio. O toque suave de Dorothy em seu ombro o despertou de todas as aflições humanas corroendo-o por dentro.

- Você não é seu pai. Posso ver em seus olhos. Está preocupado com sua vida, com Claire e com as pessoas que vivem aqui. Por Deus, está preocupado comigo!

- Foi uma bela história que você me contou lá dentro. Fiquei tocado.

Dorothy riu calmamente. - Não deveria ter deixado uma velha falar besteiras por

tanto tempo. Faça-me um favor. Vá para casa. Oliver sorriu de volta para Dorothy e seguiu caminhando

pela rua estreita. O vento do mar gelou seus ossos. - Estou indo. - Não para a sua, Oliver. Para a dela. Dorothy Campbel viu a silhueta de Oliver Brooks sumir

na escuridão da noite. A negritude tornava-se apenas uma e completa com o homem indo embora, cujo andar era exatamente igual o de John Brooks. Seu olhar era igual e seu sorriso de escárnio. Dorothy permaneceu lá, lembrando-se do de John ir embora após todas as conversas sobre a vida e Rover. Não contou para Oliver sobre seu amor por John Brooks, obviamente. Não queria desenterrar aquelas mágoas passadas. Não poderia fazer nada por um homem que não a desejava. Então agora fez o certo. Juntou duas pessoas apaixonadas. O destino de Oliver e Claire.

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- Faça o certo, Oliver sussurrou. O sussurro de Dorothy Campbel perdeu-se na noite

infinda, sendo levado pelas memórias e pelo vento de oceano.

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7

Oliver caminhou com passos vagos. Parecia perdido e ciente ao mesmo tempo. Todas as palavras de Dorothy Campbel pesaram em seu cerne. Entretanto, ainda não decidira. Devia simplesmente ceder ao egoísmo apenas porque queria estar com Claire? E o futuro? Acreditava mesmo no livro da imortalidade de John Brooks? E se as coisas dessem errado?

- Oliver, Oliver... dizia para si mesmo. Iria morrer. Tinha pura convicção deste fato único que

mudou sua vida completamente. Como seria o futuro se morresse nos braços de Claire? Estaria mais feliz nos últimos momentos de sua vida? Estaria tão deslumbrado com essa possibilidade que iria causar a pobre Claire esse mesmo sofrimento? Então, quando percebeu, descobria-se parado em frente à varanda de Claire Thompson. Havia apenas uma única luz acesa lá dentro e duas opções. Olhou para trás, como se houvesse algo lá. Era a saída mais difícil. Abandoná-la outra vez e morrer sozinho em algum lugar afastado. Porém, havia a porta de entrada. A opção mais fácil e mais egoísta. Retirou um chiclete de menta do bolso e colocou na boca.

Não houve tempo para escolha. A porta abriu-se lentamente. Não estava mais emperrada.

A silhueta de Claire apareceu na luz parca da varanda. Tinha os cabelos desgrenhados e os olhos cerrados de sono. Oliver sorriu.

- Boa noite, senhora. - Que horas são? Claire perguntou com a voz rouca. - Madrugada. Desculpe acordá-la. - Tudo bem... Quer entrar?

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Oliver apenas fitou-a pelo que pareceu a eternidade. Decidiu levar aquela lembrança para o seu túmulo. Era a hora de fazer a decisão. E, como sempre em sua vida, optou pela saída mais fácil e egoísta. Acompanhou Claire para dentro de casa. Quando a porta se fechou e permaneceram juntos na escuridão, com seus corpos colados, o coração de Oliver disparou.

- Você está bem? - Estou. Acho que não estive por um longo tempo... Oliver estava bêbado e Claire sabia bem. O bafo de

conhaque misturado com a menta do chiclete o denunciava. - Desculpe por tudo, Claire. Perdoe-me. Eu tentei não ser

meu pai ao ir embora e fiz exatamente o que John faria. Eu a abandonei quando precisava de mim. Abandonei tudo o que prezei. Por favor, perdoe-me...

Oliver sentiu o toque suave das mãos de Claire em seu rosto. Fitaram-se na penumbra.

- Ah, Oliver. Você não me conhece, não é? Oliver segurou a mão de Claire e beijou sua palma com

ternura. - Por que diz isso? - Tínhamos sete anos e você me derrubou na água de

propósito. Eu o perdoei. Tínhamos dez anos e você me deu o maior susto, se fingindo de morto lá na montanha. Eu o perdoei. Tínhamos catorze anos e você mentiu para mim dizendo ter ficado com outras garotas apenas para me magoar.

- Você sabia da minha mentira? Claire riu no escuro. - Eu o perdoei. - Entendi. - Sempre vou perdoá-lo, Oliver Brooks. Mesmo nas

maiores tormentas.

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Então Oliver Brooks decidiu beijá-la e selar seu destino. Não iria morrer sozinho, como um cão em uma noite de chuva raivosa.

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8

Houve silêncio no bar de Dorothy Campbel quando Oliver entrou no estabelecimento.

Dorothy sorriu atrás do balcão e os homens sentiram uma presença diferente. Aquele não era mais um estranho entre eles. Não era simplesmente o filho de John Brooks. Seu aspecto era mais leve. Seu espirito parecia, aos olhos daqueles estranhos que já viram coisa demais, finalmente contente por estar vivo. Talvez os últimos dias de Oliver Brooks não fossem tão miseráveis quanto ponderou. Sendo assim, Oliver aproximou-se do balcão e cruzou para o outro lado. Era cedo da manhã e todos viram Claire Thompson passar em frente ao bar, aparentemente indo embora após a entrada de Oliver. Aquele era um trajeto nunca feito pela moça. Fausto McMurphy decidiu pagar uma rodada de bebidas para todos os homens e então levantaram seus copos.

- Um brinde à Oliver Brooks! Houve gritos de saudação por todo o bar. Dorothy

Campbel aproximou-se de Oliver e seus olhares se cruzaram. Não precisaram dizer nada. Sabiam, em sua confidência, Oliver ter feito a atitude certa.

E assim começou mais um dia em suas vidas. Servia a todos no bar e escutava as conversas mais

estranhas. Fausto McMurphy geralmente sentava-se com Steve e ambos permaneciam taciturnos, em silêncio. Trocavam alguns olhares, umas palavras ou jogavam cartas. Um ou outro freguês diferente passava pelo bar apenas para beber uma dose. Dorothy Campbel continuava com sua mania de limpeza, arrumando tudo

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que desarrumavam. O barulho de bilhar na mesa ao canto era forte e as risadas inundavam o lugar. Oliver sentiu-se feliz naquela manhã e naquela tarde. Houve o intervalo do meio dia e a maioria dos homens voltou para sua casa, porém, logo estavam no bar. Fausto e Steve sentaram-se na bancada. O bar ficava mais silencioso após o horário do almoço. Restavam apenas os frequentes.

- Então falou com ela? perguntou Fausto. Oliver sorriu atrás do bar, secando os copos e arrumando

as garrafas. - Falei. - E aí? Steve os observava. Não tinha tanta intimidade com

Oliver. - Acho que as coisas vão se acertar respondeu. - É isso aí! gritou Fausto. Me vê uma dose de conhaque. - Uma dose de conhaque saindo. Oliver pousou um copo no balcão e serviu-lhe a bebida. - Sabe quem gostava de conhaque com cerveja? falou

Steve. Sua voz era calma, quase interrupta e um tanto metálica.

Tinhas as feições de um verdadeiro cowboy do velho oeste e usava botinas com esporas todos os dias. Perdeu um dos dentes da frente há um longo tempo. Segundo Steve, havia sido em uma briga de punhos. Fausto e Oliver esperaram a resposta.

- John. Houve silêncio. Oliver serviu uma dose de conhaque para

si. - Um salve ao maluco de John Brooks! falou, bebendo

em seguida. - Um salve! disseram ambos os homens em uníssono.

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- Seu pai era um cara legal começou Steve. Você é gente boa, mas seu pai me tirou de uma enrascada há um tempo. O homem era uma lenda!

- Uma lenda concordou com Oliver. Oliver, pela primeira vez em sua vida, brindou ao seu velho

pai. A lenda começava gradativamente a morrer e tornar-se apenas isso, uma lenda. E Oliver não podia estar mais feliz.

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9

Os dias começaram a passar mais rápido para Oliver. Não sabia se devia temê-los, afinal, o relógio conspirava.

Todos os dias, Oliver preparava-se para ir ao bar e trabalhava maquinalmente, escutando uma infinidade de histórias diferentes e rindo com aquelas pessoas do bar. Fizeram até mesmo uma grande vaquinha para ajudar nos remédios de um dos bêbados inveterados. Porém, no final, nada disso realmente importava para Oliver. O que importava eram as risadas ecoando pelo bar, os homens divertindo-se e Dorothy Campbel sorrindo-lhe no canto. Então, quando o dia encontrava seu fim, Oliver caminhava pelas pacatas ruas de Darby com apenas um objetivo: Claire. Não sentia seu coração pesar porque apenas queria estar junto de sua antiga paixão. Ambos se encontravam todos os dias na casa dela e conversavam até a luz da manhã encher os cômodos. Dormiam brevemente para começar tudo outra vez. Às vezes, era diferente e simplesmente abraçavam-se para dormir. Nos finais de semana, Claire permanecia na antiga casa de John Brooks.

Então aquele sábado foi especial. Oliver pouco se importou com datas comemorativas. Já se

esquecera dessas formalidades há muito tempo, desde sua partida para a cidade. Passou a maioria de seus aniversários como um lobo solitário dentro do apartamento. Nunca teve amigos verdadeiros na firma e o mais próximo foi sua secretária, Stacy. Era uma tarde praticamente comum nas ruas de Darby. Oliver cruzou a pequena cidadela, vindo diretamente do bar de Dorothy e sentindo a brisa do oceano levar seus cabelos e acariciar sua barba por fazer. Parou

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embaixo de uma das árvores para observar o estranho homem. Era bem-apessoado, com terno italiano e os olhos claros. Tinha, geralmente, um chapéu em suas mãos e o olhar perdido em uma casa na Avenida. Era a casa de Sufina de uma firma de construção ali perto, e suas filhas. O homem, quem Oliver conhecia apenas de vista, não era de Darby, sentada todos os finais de semana naquele mesmo banco, com aquele mesmo olhar. O coração parecia despedaçado.

Oliver decidiu sentar-se ao seu lado. Ambos se cumprimentaram brevemente. Tinham praticamente a mesma idade.

- Quem é você? questionou Oliver. Não quis parecer rude. Era apenas seu jeito de ser. - Ah, desculpe. Meu nome é Murphy. - Está bem. Sou Oliver. Oliver Brooks. Estendeu sua mão ao desconhecido e em breve voltavam

ao silêncio. - Vejo você todos os sábados aqui. - Eu costumava morar naquela casa apontou com o

chapéu. Acho que apenas sinto falta daqui. E você? - Eu moro aqui Oliver apontou a casa. - Ah, a casa do velho John Brooks. - Sim. - Não cheguei a conhecê-lo, mas ouvi histórias. Você ouve

todo o tipo de coisa por aí, sabia? Homens jogando-se de prédios com paraquedas para fugir da polícia, fuga da prisão na traseira de um caminhão. Conspirações. Está difícil acreditar no mundo, não é?

- Com certeza. - Você gosta daqui? Eu costumava apreciar o oceano e as

pessoas.

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O olhar de Murphy buscou uma moça na casa de Manolo. Ela saía à varanda para retirar o lixo. Murphy girou o pulso e colocou o chapéu na cabeça, deixando a lapela cair em sua testa.

- As pessoas são bacanas. Ótimos corações. São loucas, mas é legal.

- Legal. Ei, foi ótimo conhecê-lo, Oliver. Nós nos vemos por aí.

Murphy levantou-se com um sorriso maroto e seguiu caminhando pela Avenida das Alamedas com um olhar distante e um passo felino. Oliver percebeu um dispositivo piscando no tornozelo do homem, mas não quis falar nada. Deixou aquele assunto para lá e seguiu seu caminho em direção a casa de John Brooks. Estava tudo silencioso e escuro, como se a vida tivesse deixado aquele lugar. Oliver acostumou-se com a sensação, principalmente pelo fato de não ter voltado naquela casa durante as últimas semanas. Então acendeu a luz e Claire esperava-o com um bolo em cima da mesa na pequena sala. Sorriram e partiram ao encontro um do outro, beijando-se.

Esqueceram-se do bolo naquele aniversário de Oliver Brooks.

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10

Viveram como um verdadeiro casal nas últimas semanas. Ana Coipel visitava-os praticamente todos os dias à noite e

Oliver procurava incessantemente as moscas no quintal junto com Zap-Zap. Ambos iriam olhar em cada canto daquela selva, explorar os arbustos e depois cair no chão em gargalhadas. Claire permanecia na janela da cozinha, com o sorriso mais radiante que já esboçou seu rosto. Ana aproximava-se por trás da moça e pousava a mão em seu ombro.

- Eu disse que tudo iria dar certo falou. - Pensei que Oliver nunca iria assumir algo assim. Acho

que me enganei. - Claro que sim. Mas, diga-me, como estão as coisas? - Estão... Claire sorriu, abobalhada, enquanto secava um dos pratos.

Seu olhar perdeu-se por um instante ao lembrar-se dos melhores momentos de sua vida: a última semana. Mordeu o lábio inferior com alegria e voltou a sorrir. Levantou o olhar para Ana Coipel.

- Está tudo ótimo, Ana. Eu o amo. Mas sempre soube disso.

- As pessoas de Darby também. Sabia disso? - Sério? - Tem ajudado a todos com seus problemas. Você tirou a

sorte grande, menina. Oliver Brooks entrou em casa correndo. Arfava e suava em

bicas.

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- Esse seu garoto é elétrico, Ana. Ana sorriu, tomando o braço de Jeff quando o garoto

passou pela cozinha à procura de Oliver. - Vamos embora, querido. Já é tarde. O olhar de Jeff fixou-se em Oliver e o menino estendeu-

lhe a mão. Oliver retribuiu. - Oliver amigo. Ana Coipel deixou a casa naquela noite e os dias

continuaram passando. Às vezes, Tony Gianos iria aparecer para beber uma cerveja. Nestes mesmos dias, Fausto McMurphy encontrava-se presente e os três homens bebiam perante o silêncio da noite na varanda, observando as estrelas e percebendo o mundo em que viviam. Iriam se despedir e partir para seus respectivos lares. Oliver caminhava pela sala e encontrava Claire no quarto, apenas à sua espera. Abraçava-a e eternizavam cada momento juntos.

Para Oliver, tudo era novo. Nunca viveu daquela maneira, como um homem casado,

com responsabilidades e horário para chegar a sua casa. Também nunca amou ninguém como Claire. Às vezes, quando juntos, perdia seu olhar nas coisas mais banais da moça, como uma pinta no rosto e uma mecha de cabelo caída em frente aos olhos. Com um sorriso juvenil lhe roubava um beijo. Então, certa noite, antes que caíssem nos braços de Morfeu, Oliver fitou seus olhos e deixou algo escapar de seu peito. Vinha contendo aquele sentimento há um longo tempo apenas porque tinha medo.

- Claire sussurrou na penumbra. Sentiu as mãos suaves de Claire acariciando seu rosto. - Ollie respondeu também com um sussurro. Oliver hesitou. Nunca havia dito aquelas três palavras a

ninguém. Sentiu medo e pensou em recuar. - Eu amo você.

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Claire Thompson sorriu na escuridão e beijou-o, sentindo seu mundo flutuar.

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11

- Ei começou Claire em uma tarde no final do verão. Oliver estava no jardim, podando as terríveis ervas daninha

que invadiam as cercas da casa de John Brooks. Oliver lembrava-se do ódio de sua mãe pelas ervas destruindo as plantas que cultivava no jardim com tanto cuidado. Plantas que John deixou morrer nos últimos anos. Oliver voltou a plantá-las, prometendo cuidar de todas, mesmo se estivesse morto em alguns dias. Enterrar-se-ia ali e serviria a si mesmo de adubo. Ria sozinho com essas ideias macabras. Porém, ao lembrar-se disso, percebeu caçoar a morte. Nem mesmo lembrava-se dela. A ideia da verdadeira morte pareceu ter desaparecido de sua mente nas últimas semanas.

E isso fez seu sangue gelar. - Ei! gritou Claire. Oliver estava novamente no planeta Terra. - Sim? - Não leve a mal, Ollie... Claire aproximou-se de Oliver. Havia um pedido no ar,

sabia disso. Era o jeito Claire de pedir algo. - Claire, pela milésima vez, eu não vou plantar uma

macieira no meio do jardim. - Não é isso! respondeu, rindo. Oliver puxou-a pela mão para perto de seu corpo e roubou

um beijo de seus doces lábios com gosto de canela. Claire estava sempre comendo algo com canela.

- Você acha que podemos, sabe... Visitar seu pai?

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Oliver afastou-se brevemente de Claire, voltando aos seus afazeres. Um nó se formou em sua garganta enquanto pensava sobre a questão. Visitar John Brooks em seu túmulo? Parecia fora do mundo. Oliver prometeu nunca mais voltar naquele lugar. Seu plano, quando veio para Darby, era esquecer aquele maldito homem e tudo à sua volta. Iria destruir sua memória. Entretanto, decidiu ser melhor. Questionou a si mesmo se ser melhor não significava também deixá-lo finalmente ir embora.

- Faça o que for melhor, filho escutou em sua mente. Era a voz de John Brooks, voltando para assombrá-lo.

Oliver fitou Claire e o sol bateu em seus olhos. Seu rosto era lúgubre, pedindo-lhe uma chance de ver o homem que um dia também foi seu pai.

- Ollie, eu sei que é difícil, mas eu não voltei lá desde o funeral. E você nunca foi. Apenas achei que...

- Eu fui, Claire. Estava lá no dia do funeral. Quando todos foram embora, entrei e o amaldiçoei.

Os braços de Claire Thompson rodearam seu corpo. - Eu entendo. - Entende mesmo? Oliver tornou-se o homem frio novamente enquanto

recuava do toque de Claire. Não queria voltar lá. - Oliver, olhe para mim. Claire o parou imediatamente e tomou sua mão. Oliver

sentia medo daquela Claire. - Por que começou tudo isso? Esse ódio frenético por seu

pai? - Você não conheceu o mesmo John. - Isso não importa mais. John se foi... E você... Claire aproximou-se outra vez de Oliver e tocou seu rosto

com ternura. Sua voz estava calma. Oliver sentiu-se calmo.

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- Você não é mais o mesmo. Sabe o que eu senti quando o vi novamente? Senti medo, Oliver. Pelo homem que estava diante de mim. Alguém que eu não conhecia. E sabe o que sinto agora?

Oliver desviou o olhar. - Orgulho do homem que amo. As pessoas nesta cidade o

amam e o querem bem. Você as ajuda, seja financeiramente, ou moralmente. Você voltou para mim. Então, o que me diz? Estarei lá para segurar sua mão.

Oliver fitou-a seriamente. Era hora de deixá-lo ir embora, sabia disso. Não queria morrer como John Brooks. Precisava ser melhor e deixar o rancor desvanecer desta terra, sumir como as folhas levadas pelo vento.

- Tudo bem. Claire sorriu. Chegava o momento de enfrentar o fantasma

de John Brooks e fazê-lo sumir na imensidão deste azul.

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12

Antes de ir para o cemitério, Oliver decidiu abandonar também seu passado.

Pediu a Claire para esperá-lo no cemitério. Justo ao chegar à cidade, Oliver resolveu acertar todos os seus problemas. Vendeu para um homem rico, um velho infame da alta sociedade, seu antigo apartamento. Era seu vizinho de porta querendo expandir devido aos seus cinco filhos com a esposa trinta anos mais nova. O homem, na concepção de Oliver da época, era um capitalista dos piores, sendo a fruta podre do cesto. Seu vizinho vinha querendo comprar o apartamento há anos e Oliver lhe negava. Decidiu deixar seu passado para trás. Vendeu, também, seus móveis e guardou todo o dinheiro em uma conta. Depois disso, caminhou pela Canaleta, como fazia antigamente. Seguiu pela cidade, observando este mundo fora da vidraça. Tudo parecia inteiramente novo. Cheio de cores e questões.

Assistindo-as pelo olhar eminente da morte. As árvores perdiam suas folhas, anunciando o fim do verão.

Oliver passou pela loja de sucos cuja fila agora estava vazia. Viu a jovem que demorava a atender e pensou em pedir desculpas por aquele dia tão distante. Seguiu pela Canaleta e encontrou a firma de publicidade na qual trabalhou por tantos anos. Cruzou sua entrada de vidro e subiu os andares maquinalmente, chegando ao seu antigo escritório. Encontrou uma Stacy atarefada, correndo de um lado para o outro, e tendo seu próprio assistente. Stacy parou tudo ao ver Oliver e foi em seu encalço.

- Sr. Brooks! gritou, animada.

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Abraçaram-se. - Apenas Oliver, Stacy. - Você está... Diferente! E estava. Oliver deixou os ternos no armário e tinha os

cabelos bagunçados, caindo na testa, barba por fazer e o aspecto tranquilo. O aspecto de um homem cujas dívidas com a sociedade estão saciadas e as preocupações são vãs. Não são mais as preocupações perdidas. Tinha agora, em seu peito, um único sentimento. O mais temível dos sobreviventes desta terra: o final. Oliver estava finalmente em paz, tentando ser seu próprio eu.

- Estou bem, Stacy. Pela primeira vez disse com sinceridade em sua voz.

- É bom saber, Sr. Brooks. - Como andam as coisas por aqui? - Loucas! Eu consegui um acordo com os irmãos

Goldenberg. Você assistiu ao novo comercial? - Aquele dos chocolates saltitantes? - Esse! - Foi você? É incrível, Stacy. Parabéns. E o seu sonho de

enfermagem? - Já era Sr. Brooks. Estou feliz escrevendo anúncios. E

também comecei um romance. Vai ser ótimo! Oliver sorriu com a agitação de Stacy. A moça sempre lhe

passou boas energias, por isso a contratou há tanto tempo. Abraçou-a outra vez e despediu-se, deixando os escritórios com o sentimento de paz em seu peito. No entanto, perguntou a si mesmo se veria Stacy outra vez em sua vida. Provavelmente não. Achava também que nunca mais cruzaria os portões da sua antiga companhia de publicidade. Nunca mais veria a Canaleta e nem mesmo o céu. Iria morrer. E queria morrer ao lado de Claire.

Após uma longa caminhada cheia desses pensamentos, Oliver encontrou-a nos portões do cemitério da Rua Krow. A moça

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tinha lágrimas escorrendo em seu rosto e manchando sua maquiagem. Oliver a abraçou e sentiu soluçar em seus braços.

- Eu sinto falta dele, Ollie. Todos os dias. Sinto falta daquele perfume barato e o barulho dos sapatos.

- Eu sei, Claire. Eu sinto muito... Esqueceu o fato de John Brooks ter sido seu pai quando

Oliver a abandonou. Talvez esse fosse seu único arrependimento na hora da morte. Agora era o momento de deixar outros para trás. Claire lhe ofereceu algumas flores e Oliver cruzou os portões da morada dos mortos. Um arrepio atravessou sua espinha.

Aquele era o destino final. Caminhou pelo gramado cinzento enquanto avançava com

passos calmos perante aqueles túmulos e pessoas que um dia foram alguém como nós. Pessoas vivas e altivas, tentando ser felizes em um mundo cuja felicidade é sugada a cada momento desprezível. Pessoas tentando viver. Oliver tinha a cabeça baixa, assim como as flores. Viu o coveiro ao longe e cumprimentou-o com um aceno. O coveiro retribuiu, continuando seu trabalho maquinal de preparar o descanso final de alguém.

O coveiro era um cara gente fina. Oliver encontrou-se, finalmente, com o homem. Seu pai.

Jazia ao lado de Marie Brooks. Deixou as flores no descanso de sua mãe e juntou as mãos atrás das costas diante da cova de John Brooks.

- Não sei o que dizer aqui, John. Claire Thompson aproximou-se de Oliver, segurando sua

mão, assim como prometeu. Com a mão livre, tocou seu peito. Seu coração.

- Ollie, olhe para mim... Oliver a olhou. - Diga o que está aqui dentro. Como se sente. John, diga o

que for e onde estiver, vai compreendê-lo. Apenas diga o que sente. Diga o que diria apenas a mim.

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- Tem certeza? fitou-a, sentindo o ar faltar seus pulmões. Claire fez que sim. Oliver suspirou. A voz estava rouca

quando começou a falar. - John... houve uma pausa. Não soube se podia

continuar, mas o fez. - Eu odeio com todas as fibras de meu corpo por ter abandonado a mim e minha mãe. Eu odeio por ser quem foi. Odeio por todos os aniversários que passei sem sua presença. O odeio por ter sido pai de todos, menos meu. O odeio. Sinto gosto de cinzas e sangue quando sua memória cruza minha mente.

Estavam agora em silêncio. O coveiro os observava de longe, assim como o anjo da morte em algum ponto daquele lugar tão lúgubre quanto o céu revestido de azul e as nuvens brancas pairando acima de nossas cabeças e inspirando-nos confiança.

- Acima de tudo, eu o odeio por ser a lenda. O odeio por ser John Brooks.

Lágrimas encheram seus olhos, cravados no chão, e finalmente ajoelhou-se perante John. Tinha um nó em sua garganta. Claire sentou-se junto a Oliver enquanto seus braços o rodeavam em um abraço cheio de ternura. Também chorava. Chorava porque era boa e sentia falta de John, mas também chorava porque nunca escutou a verdade de Oliver sobre o homem. Chorava pelo homem que amava.

- John, eu o odeio por ter ido embora quando mais precisei, mas não posso mais odiá-lo... Preciso viver. Deixe-me viver, por favor... Preciso ir embora e deixá-lo para trás.

Então finalmente sentiu. A presença de John Brooks deixou seu espirito. Agora era apenas Oliver. Um homem alterado pela perspectiva de morte. Um homem capaz de amar e ser amado. Procurou, com todas as suas forças, a definição de ser humano. Deixou para trás um homem mesquinho e egoísta para descobrir seu íntimo.

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Agora, apreciava as pequenas dúvidas desta vida estranha. A intensidade de seus sentimentos. Abraçava sua natureza. E, como todos nós deveríamos fazer ao longo desta incomum jornada, temia sua morte sem temer a vida. Lembrou-se da promessa de John Brooks sobre o livro da imortalidade e não o desejou mais. Não valeria a pena ser imortal sem Claire para abraçá-lo como fazia agora. Não valeria apenas ser imortal se não pudesse desfrutar do homem que se tornou. Chorou como uma criança diante daquele túmulo, sentindo saudades de sua mãe.

No entanto, em seus pensamentos, Oliver ainda fez um pedido final incapaz de pronunciar diante de Claire. Um último pedido para John Brooks.

- Por favor, deixe-me viver sussurrou. Aquele sussurro destinado a John Brooks foi levado

embora pelo tempo, assim como as verdadeiras lágrimas de Oliver e o abraço de Claire.

Nada poderia jamais ser imortal.

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13

Oliver questionou-se muito, ainda naquela tarde. Estavam agora em Darby, aproveitando a última tarde de

verão, antes de jantarem na casa de Moira Gianos. A mulher iria realizar um grande banquete para comemorar o final dos dias ensolarados, assim como todos os anos. Convidaria uma porção de vizinhos e confraternizariam todos juntos. Porém, neste ano, havia alguém especial a quem gostariam de agradecer a presença: Oliver. Apenas Claire sabia do fato singular de terem-lhe comprado diversos presentes para agradecer o carinho das últimas semanas e sua ajuda prestada a algumas pessoas necessitadas em Darby.

Oliver era um bom samaritano. E, obviamente, egoísta. Nas últimas semanas, juntou parte de seu dinheiro e

montou um grupo de apoio composto essencialmente por Fausto McMurphy, Steven Beven, Ana Coipel e o único filho homem de Manolo (o dono da construtora) aos mais necessitados de Darby. O último inverno, em particular, fora rigoroso com as pessoas e destruiu suas casas, deixando algumas famílias praticamente desabrigadas. Outros indivíduos também foram aparecendo. Aqueles que a cidade grande rejeita e manda embora. São incapazes de sustentar-se no mundo selvagem. Sem ajuda, acabam por virar poeira, marginalidade, e voltam-se ao terrível pecado dos homens. Oliver era a quem procuravam.

Ajudava-os a encontrar um lar de passagem. Reconstruía casas e fazia seu melhor. Planejava até mesmo montar um lar para desabrigados em Darby. Tinha dinheiro e queria fazê-lo. Além disso, também sabia das conexões filantrópicas de seu tempo como

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publicitário. Seria seu legado antes de partir. Fazia aquilo por ser genuinamente bom, porém, era dotado de suas próprias razões. Toda filantropia é cercada de razões pessoais.

Seu pai jamais fez algo igual em todos os seus anos em Darby. Ajudava moralmente seus amigos? Claro. John Brooks era um bom camarada, especialmente nas horas boas e de bebedeira. Com exceção de Claire e Tony, sempre sumiu da vista de todos quando as situações ficavam mais difíceis. Enquanto isso, Oliver prometeu a si mesmo ser melhor.

E foi mesmo. As pessoas sentiam orgulho de sua amizade e sabiam poder correr em seu encalço caso qualquer problema viesse à tona.

De qualquer modo, a tarde tinha sido desgastante. Caminhava na Avenida das Alamedas com Claire, seguindo pela calçada de tijolos enquanto a brisa fresca do mar era carregada até ambos, acariciando seus rostos e seus espíritos. Às vezes, enquanto progredia lentamente de mãos dadas com Claire, fechava seus olhos e desejava que aquele momento nunca encontrasse seu derradeiro fim. Via as pessoas passarem por ali correndo, em exercício, caminhando com cães e desfrutando o companheirismo. Oliver viu coisas que nunca observou antes. Então, quando se aproximavam do final da Avenida das Alamedas, Oliver fitava o rosto sereno de Claire Thompson. A moça sorria com o canto de seus lábios pequenos o olhava como se Oliver fosse seu inteiro mundo.

Aquele olhar o destruía inteiramente. Fazia questionar-se sobre as atitudes certas. Desejou correr

em disparada, fugindo de tudo, avançando em direção ao mar e pedindo perdão por seu egoísmo. Como seria quando tudo estivesse acabado? Morreria nos braços de Claire, vislumbrando uma última vez seu rosto pacífico e a pinta na bochecha? Seus cabelos cairiam no rosto de Oliver, assim como as lágrimas do luto. Acabaria com seu mundo apenas por ter sido egoísta e desejar ficar ao seu lado.

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Inúmeras vezes quis contar a verdade. - Claire, eu vou morrer encontrava-se repetindo em um

sussurro desesperado. - Está tudo bem, Ollie imaginou-a dizendo. Como seria aquela conversa? Você está louco, Oliver

pensava sempre. Está louco. Estava realmente louco? Não importava. Seria um homem

morto.

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14

- Um brinde à Oliver Brooks! gritaram em uníssono. Um brinde à Oliver Brooks. Por quê? Oliver nunca foi

digno de um brinde. Jamais fez algo bom em todos os seus dias de vida. Oliver Brooks era um canalha, enganador de mulheres, um porco. Ou como já disseram: era um monstro.

Não mais. Todas aquelas pessoas conseguiram arrancar um sorriso de

- na varanda enquanto Fausto McMurphy e Steven Beven tocavam Starman ao som do violão. Claire, Moira Gianos e Ana Coipel estavam na cozinha, fofocando sobre a vida pessoal de Oliver e Claire, falando sobre seus casamentos e dando as melhores dicas de uma convivência saudável. Encontrava-se presente, também, alguns vizinhos menos frequentes do círculo de amigos, mas conhecidos de John Brooks e admiradores das boas ações de Oliver. Amigos de Tony e Moira.

Porém, Dorothy Campbel estava ausente. E o próprio Oliver não se sentiu muito disposto e foi beber

uma cerveja na varanda. Disse que iria observar Zap-Zap por alguns instantes. Tony Gianos aproximou-se do filho de seu antigo melhor amigo e tocou em suas costas. Abriu uma cerveja e apoiou-se na varanda ao lado de Oliver. Fitaram as estrelas sem pronunciar nada durante um longo tempo. Tony lembrou-se de John e Oliver viu o anjo da morte cruzar seus olhos.

Estava, de fato, ficando louco. - Oliver, você está bem?

Música do artista David Bowie. Nota do Autor.

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- Estou Tony. Apenas... Não sei. Não poderia contar a verdade. - Como estão as coisas com Claire? Oliver virou-se para olhá-lo. Sorriu brevemente. - Melhor do que jamais foram. - Ainda lembro quando vocês começaram a namorar. Falei

a seu pai sobre isso no dia em que aquela garotinha veio morar em Darby. Era uma pequena ruivinha, desnutrida e com o sorriso mais inocente que jamais encontrei em uma criança. Oliver, você apaixonou-se imediatamente e nem mesmo sabia.

- Eu sabia. Oliver bebeu um gole de sua cerveja. A noite tocou seu

rosto, sussurrando em seus ouvidos. - Vocês tinham o quê? Catorze ou quinze anos? - Por aí. Senti tanto a falta dela quando parti. Desejei voltar

com todas as minhas forças e levá-la embora. Claire... Simplesmente não deixaria John para trás.

- Você alguma vez a perguntou? Oliver balançou a cabeça. - Então como sabe? - Deixaria...? - Oliver, aquela garota chorou todas as noites desde sua

partida. Gritou aos céus que jamais falaria com você novamente. Prometeu diante daquela maldita árvore que marcaram lá na Avenida. Diabo, ela fez eu e seu pai prometer!

- Meu pai não falaria comigo de qualquer jeito retrucou. - Você não sabe. John carregava muitos arrependimentos

em seu coração. Um deles era você. - Meu nascimento? Claro, típico. - Não, Oliver! Não ter estado ao seu lado quando precisou.

Não ter estado com sua mãe. John arrependia-se em todos os momentos.

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- Falava de mim? Tony ficou em silêncio. Oliver o conhecia tão bem quanto

conhecia John Brooks. Sempre soube que John nunca carregou nenhum arrependimento em seu gélido coração.

- Não sou seu pai Oliver, mas estou orgulhoso de tudo que fez pela comunidade.

Tony tocou o ombro de Oliver, fitando-o em seus olhos com um sentimento de cumplicidade e amizade. Oliver ainda o via como pai.

- Obrigado, Tony. - Apenas lhe peço que não decepcione aquela garota outra

vez. Por favor. Oliver permaneceu em silêncio. Não iria decepcioná-la.

Estava decidido a isso, mas não poderia prometer. - Tenho algo para você. - Ei, Tony, vamos ficar apenas no abraço, está bem? disse

Oliver falou em tom zombeteiro. Tony bebeu mais um gole de sua cerveja e balançou a sua

cabeça, rindo. Colocou a mão no bolso traseiro de sua calça e retirou um envelope branco. Oliver reconheceu a caligrafia em que seu nome estava escrito, imediatamente. Mais uma carta de John Brooks vinda do além.

- Seu pai pediu para entregá-la quando estivesse pronto. - Não estou pronto. - Não é você quem decide. Oliver tomou a carta em suas mãos, olhando-a, receoso.

Maldito John Brooks. Moira Gianos anunciou o jantar dentro da casa. O cheiro saboroso da comida estava forte e Tony foi imediatamente ao chamado de esposa. Oliver permaneceu na varanda enquanto Zap-Zap estava perdido no quintal ao seu lado. A carta de John Brooks gritava por Oliver.

Decidiu abri-la.

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Se você está lendo esta carta é porque agora entende minha vida. Compreende como era ser John Brooks em Darby. As pessoas me amam. Sei que sou irresistível. E sei que você me odeia com todas as suas fibras por isso. Desculpe filho. Minha intenção nunca foi abandoná-lo. Nunca foi abandonar sua mãe quando os piores momentos de nossas vidas se apresentaram. Sei também que minhas desculpas aqui são praticamente inúteis. Você jamais encontrará espaço em seu coração para perdoar minhas transgressões.

Eu o perdoo por isso. Oliver, você precisa compreender que está morrendo.

Assim como todos nós. Você está fazendo as escolhas certas? Eu deixei Darby há muito tempo, quando minha família precisava de mim, porque descobri o anjo da morte esperando-me em cada canto. Precisei viver. Você está vivendo? Seja sincero, filho. Não vale a pena esperá-lo. Sei também que se pergunta sobre o livro da imortalidade que tanto lhe prometi. Relaxe, você irá recebê-lo, quando chegar a hora certa. Até lá, não vás tão gentilmente naquela boa noite escura.

Até a próxima, filho.

Oliver sorriu para a penumbra da noite com raiva. Rasgou

a carta em mil pedaços e jogou-a ao vento. Sempre o maldito poema de Dylan Thomas. Parecia poético naquele momento dizer-lhe para não ir tão gentilmente naquela boa noite escura. Parecia poético e uma piada de mau gosto para um homem sem opção.

A boa noite escura era seu fim. A única opção restante. Oliver foi despertado de seu transe quando a mão de Claire

Thompson tocou seu torso com gentileza. Fitou a moça por cima do ombro e virou-se para beijá-la. Seus olhos se encontraram. Oliver relembrou as palavras de John Brooks. Você está vivendo? Não

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estava, mas estaria. E era hora de fazer as escolhas certas. O olhar de Claire lhe disse isso. Era hora.

- O jantar está pronto, Ollie. - Tudo bem. - No que você está pensando? - Estou pensando... Oliver agarrou-a pela mão e a levou para dentro da

pequena casa de Moira e Tony Gianos. Parou no meio da sala enquanto todos o olhavam de modo assustado. Fausto McMurphy parara de tocar o violão. Oliver levantou sua cerveja.

- Escutem todos! Houve silêncio. Claire o olhou de modo confuso. - O que está fazendo, Ollie? - As escolhas certas. Segurava a mão de Claire com ternura, olhando-a de modo

doce. Olhando-a como nunca o fez para nenhuma mulher. E, diante de todos aqueles amigos, decidiu ajoelhar-se perante sua vida e fazer a verdadeira escolha.

- Oliver! exclamou Claire. - Claire Thompson, já passou da hora de você ser minha

esposa. O que me diz? Casa comigo? Ana Coipel deixou uma lágrima escorrer pela bochecha

enquanto todos aplaudiam. Fausto McMurphy escondeu o rosto -o chorar. Tony e Moira

abraçaram-perdido na noite e abraçou o homem de sua vida. Estava feliz. Depois de tudo, estava realmente feliz. Depois de sua vida miserável, tinha essa coisa chamada felicidade. E Oliver? Não soube se era o correto. Iria deixá-la, eventualmente. Mas iria amá-la enquanto podia.

Antes de embarcar naquela boa noite escura, faria as escolhas certas.

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15

Oliver sorriu abobalhado ao final do jantar. Foi atacado pela primeira vez por uma inocência

demasiada. Jamais imaginou ganhar tantos presentes daquelas pessoas. Eram, em sua maioria, coisas bobas. Enfeites para sua casa, camisetas, canetas. Porém, para Oliver significou muito mais. Representou a apreciação de todos por sua pessoa e como o valorizavam como amigo. Enquanto abria os presentes e o observavam de maneira taciturna, Oliver descobriu estar tão feliz quanto Claire. Não deu um anel para a moça, mas deixou-a flutuando outra vez.

Nunca se sentiu daquele modo. Jamais pensou ter amigos. Jamais ponderou que alguém

pudesse gostar de sua personalidade um tanto arrogante, sempre fazendo piadas irônicas. Pouco sabia Oliver que a apreciação vinha de sua bondade em demasia. Seu verdadeiro eu. O verdadeiro Oliver Brooks.

- Obrigado por tudo Moira agradeceu Oliver no final da noite.

Moira abraçou o filho de John Brooks. Oliver lembrava seu pai constantemente, em todos os seus jeitos, entretanto, Moira nada disse. Sabia das desavenças e do ódio mortal de Oliver pela lembrança de John.

- Estamos sempre aqui para você, querido respondeu, segurando a mão de Oliver.

Tony e Oliver trocaram um abraço antes de despedirem-se.

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- Nos vemos amanhã. - Boa noite, Tony. Tony e Moira permaneceram em sua varanda, abraçados

naquela noite branda, assistindo Oliver e Claire atravessarem a Avenida das Alamedas em um abraço caloroso.

- Como ele está, Tony? questionou Moira, apoiando a cabeça no ombro do marido.

- Melhor. E assim as luzes em Darby apagaram-se e todos dormiram

enquanto as estrelas caíam e Oliver Brooks começava a ser lembrado.

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16

Era o último domingo do verão. Claire estava ansiosa pelo casamento. Corria para marcar

uma data com o padre da cidade antes do natal. Oliver tornou-se sombrio. Quando morreria? Nunca saberia. Poderia cair duro a qualquer tarde. Aquilo o assustava excessivamente. Então, decidiu aproveitar cada momento ao lado de Claire. Naquela tarde, bateu à casa de Ana Coipel e convidou Jeff para ir à praia. Seguiram pela Avenida das Alamedas enquanto o vento os açoitava com força. Sorria junto com Claire ao ver Jeff correr na frente em busca de moscas.

Caminharam, aproveitando a companhia e vendo o mundo ser apenas deles.

Lá estava a praia. Taciturna. As ondas iam e vinham. De longe, na montanha, podia-se ver um pequeno chalé rodeado de macieiras. Fumaça deixava a chaminé, anunciando alguém em casa. Sentaram-se na areia em silêncio enquanto Jeff corria pela beirada da água, molhando seus pés. Correu em direção ao casal e sentou ao seu lado, com o olhar desligado.

- Oliver, amigo! Oliver sorriu e apertou a mão do rapaz. - Jeff, amigo. De repente, Jeff disparou em uma corrida frenética outra

vez, perdendo-se em seu próprio mundo. Oliver retirou seus sapatos e enterrou os pés na areia, assim como Claire. Admiraram-se por um longo tempo. Claire esboçou um sorriso plácido.

- O que foi? perguntou Oliver.

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- Posso lhe perguntar algo? - Você vai perguntar de qualquer jeito. - Está certo Claire riu. O riso de Claire acalmou todos os nervos de Oliver. Era

sua própria melodia. O melhor som de sua vida. Houve silêncio. - Posso? - Pensei que iria fazer de qualquer maneira. Estavam a sós naquela praia, em frente a um gigante lençol

de águas cinza. Diante de todo aquele céu lúgubre e das nuvens brancas. Contudo, para Oliver, existiam apenas os cabelos ruivos de Claire e seu rosto angelical. Jeff corria pela areia, procurando colchas trazidas pelos segredos do mar.

- É sobre John. - Tudo bem. Chegou a hora de falar sobre John, não é? Claire fez que sim. Oliver suspirou, desviando o olhar. - Por que odeia tanto seu pai, Ollie? - É muito complicado. - Se eu tivesse um pai, teria o amado assim como amei

John. Chorei por seu pai na noite em que morreu. Pensei que o mundo iria acabar assim como...

- Na noite em que fui embora? E todas as outras noites? Claire baixou o olhar. - Sim. Você sabe o quanto doeu? Vê-lo partir naquele

ônibus sem me dizer adeus? - Eu tentei, mas... - Está tudo bem, Ollie. Superei. Assim como superei várias

coisas quando não esteve aqui. - Como assim? Claire fitou as ondas do mar. O vento levou seus cabelos e

seu perfume. Sorriu sem jeito, de modo pacato e angelical. - Batalhei minha vida inteira quando você se foi, Ollie.

Mamãe morreu logo depois e você não voltou por mim. John estava

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lá. Sei que isso não significava nada para você, mas foi bom para mim.

- John era bom para outras pessoas. - Todas as noites, eu esperava. E você não aparecia. Então

decidi seguir em frente, mas todos os homens, meus namorados depois, não eram você. Não tinham sua compaixão e seu jeito. Preferi ficar sozinha e seguir lutando. Sempre fiz isso, não foi?

- Estou aqui agora, futura senhora Brooks. Claire sorriu, deitando a cabeça no colo de Oliver e

mirando em seus olhos. Permaneceram em silêncio durante certo tempo, escutando os passos de Jeff na areia e a água batendo nas montanhas.

- Ollie, lembra-se de esperar John todas as noites? Brincávamos juntos na Avenida e você corria como se John fosse tudo. Eu sentia inveja. Seu olhar era... Mágico. John era seu melhor amigo.

- Claire, eu tinha oito anos. Cresci e descobri que John não valia a pena.

- Você o chamava de papai. Oliver lembrou-se de tudo aquilo. Há anos, desejava poder

apagar aquelas memórias. Agora era apenas poeira sendo levadas embora pelo tempo. Não importavam mais. Quem mais amou depois de Claire já não mais voltará.

- Você quer mesmo saber o que houve entre mim e John? As mãos de Claire rodearam o rosto de Oliver Brooks.

Beijaram-se com afeto e seus olhares encontraram-se durante um longo tempo. Era o momento da verdade.

- Já faz muito tempo, Claire. No final, não importa mais. John está morto.

Claire segurou as mãos de Oliver com firmeza. - Quando John Brooks destruiu Marie Brooks, destruiu a

todos nós.

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- Como assim? Oliver sentiu um nó formar-se em sua garganta. Observou

o azul imenso lá em cima tornar-se cinza conforme aquelas águas passadas voltavam para assombrá-lo. Memórias, perdidas no tempo, em seus confins mais remotos, enterradas no fundo de sua mente. No entanto, não mais as temeu. Afinal, John Brooks estava morto. Oliver lançou seu olhar sobre o horizonte. Sobre aquele lençol de luzes maravilhoso no crepúsculo, tornando o céu vermelho após as cinzas. Oliver recordou-se do poema completo de Dylan Thomas. Raiva, raiva contra a morte da luz que fulgura. John Brooks estava morto, na boa noite escura.

E Oliver não queria aprender tarde demais que o lamento toma sua via.

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Quarta parte

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1

Recordações são frágeis e Oliver avançou com cautela entre suas memórias de vidro.

Eram memórias quais nunca pensou em retornar. Já estavam tão distantes de Oliver, tão perdidas naquele túmulo de lamentos, mas talvez houvesse algo diferente dentro de si. Naquela praia, Oliver relembrou o passado. De tudo que um dia foi e jamais voltará. Relembrou do rosto sereno de sua mãe nas noites difíceis, sem John para apoiá-la. Relembrou a doce voz de Claire quando se conheceram.

Além de tudo, relembrou John Brooks. Antes de avançar por aquele túnel incompreendido de

Oliver, o leitor deve estar ciente de como John e Marie ficaram juntos. De como tudo realmente começou.

Foi há um longo tempo, naquelas areias movediças de Darby. Um tempo de amizade. Sendo assim, saiba que Tony Gianos e Marie eram inseparáveis. As más línguas diriam com pura convicção que Tony amava Marie muito antes de ter conhecido sua esposa, Moira. E era verdade. Estava um tolo apaixonado, sem as forças necessárias para declarar seu amor pela mulher. Marie talvez o amasse, também, mas não conseguia decidir a quem seu coração pertencia. John Brooks apareceu para roubá-la.

Tony nunca perdoou essa parte de John. John sabia da paixão fervorosa do amigo, ou tinha uma

ideia, e deixou de lado apenas porque Marie era, em suas palavras,

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- Essas são as melhores dizia John com um cigarro nos beiços.

Pouco tempo depois, Tony Gianos casaria com Moira e deixaria tudo para lá. Neste mesmo espaço de tempo, John Brooks também se casou com Marie em um beco sórdido em algum lugar dessa cidade. O fez apenas por pressão da moça, pois jamais se imaginou vivendo uma vida cônjuge e voltando para casa todos os dias com um trabalho medíocre e crianças no quintal. Não tinha nada em comum com Marie e imaginava sua vida completamente diferente, tendo descoberto, também, seu fardo. O fardo de seu pai. A condição no coração fez John Brooks repensar parte da sua vida. Não sabia estar certo ou não em viver com uma mulher em casa e deixar seus dias esvaírem completamente. Era aficionado por Dylan Thomas e o poema do autor, sobre embarcar na noite escura, não deixava sua mente. Gastava seus dias repetindo para si mesmo e bebendo. Não teve muita escolha, afinal, no casamento. Marie carregava uma criança no ventre.

Oliver Brooks nasceu.

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2

Oliver lembrava-se de praticamente tudo relacionado ao seu pai e sua infância.

John Brooks era um homem ausente. Às vezes, voltava para casa à noite apenas para dormir no sofá com uma garrafa de uísque embaixo do braço e uma revista pornô em cima do rosto. Quando não voltava, podia ser encontrado atirado em algum beco após uma bebedeira, ou em um motel com diversas mulheres diferentes. Encontravam John Brooks em bares durante o dia, contando histórias que não aconteceram e imaginando o momento de sua própria morte. Em seu próprio tormento, era um homem solitário, com medo da ignorância e tentando preencher o vazio com pessoas estranhas. Tentava preencher o vazio com algo inexistente, algo não seu. Algo não declarado. Arrependimento era para covardes, pensava. Realmente, não se arrependeu durante aqueles anos em que voltava para casa quando queria, sem saber do sofrimento de sua esposa e da batalha diária para sobreviver.

Marie Brooks trabalhava dia e noite para manter a casa, deixando o solitário Oliver com Tony durante aquelas tardes vazias. Quando John finalmente aparecia, seu mundo tornava-se um novo mundo, cheio de cores e vibrações. O homem carregava o filho nas costas e iriam para a praia em busca de colchas. No entanto, nem sempre as coisas conseguiram manter-se daquela forma. Oliver viu os anos passarem e a ausência do seu pai começou a ser mais notada. Agora, uma criança com seus cinco anos, caminhando em uma casa vazia e esperando o homem de seus sonhos cruzar a porta. Viu os natais chegarem, o ano novo surgir e John Brooks nunca estava lá.

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Em cada aniversário, cada vela soprada, cada promessa feita ao vento.

John Brooks nunca apareceu. Também não foi um bom marido para Marie, vamos ser

sinceros. Seu único desejo pela mulher foi aquela ardente competição. Quis, por alguma razão demasiadamente egoísta, tirá-la dos braços de um homem que verdadeiramente a amava. O destino pareceu ter outros planos para Marie. Trabalhava desde as cinco da manhã no grande Barracão, como vendedora, tentando dar o melhor ao seu filho. Voltava para casa sentindo seu corpo desmoronar e as pernas doerem de tanto tempo em pé à busca de clientes. Quando entrava em sua casa, Oliver dormia há um longo tempo. Marie caminharia com passos silenciosos até o quarto do filho, beijaria sua testa e iria sorrir na escuridão.

- Boa noite, pequenino sussurrava. Marie sempre foi grata a Tony e Moira Gianos pela ajuda

com Oliver. Cuidavam do menino e ajudavam sempre que podiam, apesar do ciúme latente de Moira.

O olhar apaixonado de Tony nunca sumiu de seus olhos.

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3

Talvez fosse uma tarde como qualquer outra quando aquele pequeno caminhão de mudança estacionou no outro lado da Avenida das Alamedas. Uma mulher ruiva desceu, carregando uma caixa de livros e segurando uma garotinha pela mão livre. Era uma menina adorável, com um vestindo florido, sardas em seu rosto e os cabelos ruivos como os da mãe. Tinha um dente a menos era época da fada e carregava consigo um pequeno urso de pelúcia apelidado de Sand, quem jamais deixava para trás em todos os momentos de sua vida.

Sua mãe, Donna Thompson, suspirou ao entrar na diminuta casa e largar a caixa.

Neste momento, John Brooks estranhamente estava por perto. Brincava com Oliver na Avenida das Alamedas em uma guerra inconsequente de maçãs. Quando viu a mulher, simplesmente parou. Ainda era um homem atraente. Sendo assim, com uma mulher nova na área, decidiu ajeitar a gola da camisa, sua boina e olhar-se no espelho que carregava dentro do bolso da calça. Tinha boa aparência. Era hora do show, como costumava dizer.

- Vamos, Ollie. Venha dar as boas-vindas aos vizinhos. - Não íamos ao cinema, papai? Oliver descobriu-se sozinho na Avenida. John Brooks

atravessava a rua naquele exato instante, esboçando seu melhor sorriso e esquecendo o filho, como sempre. Encostou-se no caminhão de mudanças enquanto o motorista fumava um cigarro.

- Boa tarde! disse John. - Olá falou a nova moradora.

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- Sou John Brooks, senhora. Moro no outro lado da rua. Posso ajudá-la em algo?

- É muita gentileza. - Bem, sou um cara gentil. Donna Thompson riu com a modéstia de John Brooks. O menino sozinho na Avenida correu para acompanhar o

pai. Ao aproximar-se da casa, cruzou o olhar com a menina segurando o urso de pelúcia e perdeu-se para sempre. Segurava uma maçã na mão direita e o coração na mão esquerda. Sua visão pareceu ficar turva e, de repente, achou ter visto um anjo descendo do céu. Puxou John Brooks pela mão.

- Papai. - Fique quieto, moleque sussurrou John. John estava preocupado com suas melhores cantadas.

Como poderia trabalhar seu desempenho com aquele moleque? - Papai! - O que foi, pivete? perguntou John, zangado. - É um anjo? - O quê? Então John percebeu a menina no canto, envergonhada,

com suas sapatilhas brancas, esperando aqueles estranhos irem embora. John sorriu para si mesmo. Parece que o garoto tinha o dom natural.

- Vá até lá, filho. Oliver caminhou com passos vagos, de cabeça baixa. Ao

aproximar-se da menina, estendeu sua mão e ofereceu a maçã. Claire aceitou, sem saber ter encontrado seu melhor amigo para o resto da vida.

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4

- Acho que minha mãe gostou de seu pai. Sem alcançar o chão, Claire balançava as pernas no banco

de pedra na Avenida das Alamedas enquanto Oliver permanecia encostado na árvore, com seus olhos fixos na menina e um sentimento estranho em seu peito. Olhou para o outro lado da rua de relance e viu John ajudando Donna Thompson com o possível. Se a mulher pedia, John estava lá carregando um sofá. Tocava a mão de Donna quando tinha a oportunidade e sorria como um verdadeiro babaca.

- Babaca balbuciou Oliver. - Você disse uma palavra feia! - O que significa? perguntou. - Eu não sei... Mas é feio. Minha mãe chama o homem

engravatado de babaca. Ele veio dar a notícia sobre meu pai. - O que tem seu pai? - Foi para o céu. Oliver baixou o olhar, aproximando-se de Claire e

sentando ao seu lado. - Sinto muito, Claire. Claire empurrou Oliver do banco e disparou em uma

corrida frenética pela Avenida das Alamedas. - Você não me pega! Oliver correu atrás de Claire. Assim como fez em toda a

sua vida.

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5

Apesar das tentativas, John Brooks nunca chegou a lugar nenhum com Donna Thompson. Donna o rejeitou no momento que soube ser um homem de família casado com Marie Brooks, sua vizinha da frente. De qualquer modo, os rumores em Darby alastraram-se como fogo. Iremos deixar claro o desgosto de Marie por Donna Thompson, falando mal da mulher com sua vizinha Moira em toda a oportunidade. Sua relação com John Brooks não era a melhor e via o marido duas vezes por semana, no máximo, mas preferia ignorar as transgressões conjugais de John, apesar da dificuldade. Eram realmente muitas escorregadas. Apenas deixava Oliver brincar com Claire porque lhe fazia genuinamente bem.

Para Oliver, tudo estava diferente. As promessas de John Brooks e sua ausência tornaram-se

apenas um borrão na vida do menino. Nada realmente parecia importar enquanto estivesse com Claire. Os próximos aniversários, quais John Brooks nunca apareceu, não eram nada. Oliver apenas lembrava-se de seu pai no final da noite, quando caminhava com Claire na Avenida. Estava em algum lugar, com alguma mulher, sendo uma lenda. Começou a odiar a lenda. Ouvia todo tipo de coisa, de todo tipo de pessoa, sobre todo tipo de feitos de John Brooks.

- Seu pai é uma figura, moleque. O melhor de todos! dizia alguém.

- Eu queria que seu pai fosse o meu! dizia outro. Conforme os anos avançaram e Oliver tinha idade

suficiente para compreender seus sentimentos por Claire,

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compreendia outras coisas também. Via sua mãe chorar todos os dias no banheiro, quando chegava do trabalho, pela ausência de John Brooks. As contas empilhavam em vencimento, comida faltava na geladeira e, sem a ajuda de Tony, jamais teriam conseguido sobreviver. John Brooks não estava lá para se importar. Sempre viajava para algum lugar, vivendo e fugindo dos problemas. Oliver repensava sobre as atitudes do pai, conversando com sua melhor amiga sobre isso.

Mais velho, decidiu trabalhar e conseguiu um emprego na fruteira de Ernest Soloff. Pagava mal, mas conseguia levar Claire ao cinema às vezes e pagar um ou duas contas de sua casa, aliviando as coisas para sua mãe. Marie nunca sonhou que Oliver estava trabalhando em algum lugar e o garoto pediu segredo a todos os amigos. Cederam as exigências de Oliver, pois sempre conseguiu o que queria. Tony via-o chegar todos os dias antes da mãe e sentia certa tristeza. Junto com isso, não entendia John. Tinha a família perfeita. Por que jogar tudo fora? Com a vida de Oliver mudando, tornou-se zangado com o próprio pai. O dia de sua mãe era árduo como seu próprio e John nunca compreendeu. Apenas adentrava a casa, sentindo-se ainda o dono do lugar, sem ligar para nada e ninguém, exigindo o jantar pronto.

Certo dia, as coisas explodiram. John passou pela porta assoviando, com um sorriso em seu

rosto. - Oliver, filho. Vamos dar uma volta? gritou, à procura

de Oliver. - No inferno, John. - Que bicho mordeu você, moleque? - Onde estava, velho? - Acho que alguém precisa de respeito por aqui. Cadê sua

mãe? - Trabalhando. Você sabe o que é isso?

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John Brooks riu de canto, abrindo a geladeira. Não havia nada além de uma jarra de água.

- Meu Deus, não tem nada nessa casa? Os olhos de Oliver encheram-se de lágrimas. Pura raiva

corroía seu coração. Desejou, naquele instante, matar John Brooks. Não iremos aqui criar casos. Através desta narrativa e todo o sofrimento de Oliver, você poderá imaginar seu ódio por um homem ausente sem a mínima consciência para a família sofrendo à sua espera. Era apenas um garoto, carregando o mundo em suas costas, e esperando um milagre. Decidiu agir e fazer esse milagre, por isso arremessou uma torradeira em John Brooks.

- Que diabos! John defendeu-se no canto enquanto um Oliver zangado

partia para cima de um homem mais velho e mais forte. O garoto atacava com toda a sua fúria. John não o perdoou por isso. E, após aquela noite, Oliver nunca mais foi o mesmo. Nunca mais olhou nos olhos de John Brooks e nem o chamou de pai.

- É hora de lhe impor um pouco de respeito, pivete. O barulho do cinto de John Brooks ecoou pela casa,

dilacerando a alma do garoto e seus gritos. Oliver berrou com força enquanto sentia o couro rasgar a pele de suas costas e os punhos ferozes de John segurarem seus braços. A carne sangrava enquanto Oliver o odiava com ferocidade. Então a porta se abriu e Tony Gianos empurrou John contra a parede. Os retratos caíram. Oliver correu para o canto, de cócoras, enquanto Moira o abraçava com um cobertor e o levava embora.

- O que pensa que está fazendo, John?! - Não se meta nisso, Tony. É entre eu e meu filho. - Seu filho? Tony segurava John pelo colarinho enquanto a vizinhança

aglomerava-se na rua, tentando entender os acontecimentos recentes.

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- Você nunca está aqui, John. Como pode ser seu filho? Como pode?

- Eu já sei sobre o que é isso... Ainda está zangada por causa daquela puritana da Marie, não é?

- O quê? - Você está bêbado, John. Bêbado. - Não John riu-se. É porque eu peguei ela, e não você!

É isso, não é? John sorriu, zombeteiro. E apagou. O punho de Tony

Gianos fechou seus olhos, deixando o sangue escorrer pela carne enquanto John desmaiava no meio da sala e Tony o deixava caído ali. Era seu melhor amigo, mas às vezes, o levava a loucura. Sabia em seu íntimo: iria eventualmente perdoá-lo. John Brooks era assim. No próximo dia, tudo seria novo. Teria esquecido seus pecados e iria tratar a todos como sempre, com amizade e uma espécie de carinho. Sempre foi assim.

Oliver nunca mais o perdoou.

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6

Oliver lembrava-se nitidamente dos dias posteriores ao acontecimento.

Caminhava pela praia com Claire Thompson, perto das montanhas. Tinha sua alma escorregando pelos dedos e medo do futuro. Não sabia o que fazer agora. Como podia voltar para casa e ver John quando estivesse lá? Marie não era solução. Amava John e, apesar de ter ficado furiosa com o fato, não teve forças para fazer nada além de abraçar seu filho e prometer protegê-lo acima de tudo. Oliver e Claire sentaram-se nas rochas, observando a fumaça do chalé ali perto subir para as nuvens. As ondas estavam calmas naquele dia. Tudo parecia calmo, menos o cerne consternado de Oliver Brooks. Começava a tornar-se homem. Um homem estranho, sombrio e aflito, diferente do pequeno garoto gentil e bondoso.

- Quero ir embora desse lugar, Claire começou. - Ollie... Claire segurou a mão do rapaz, deitando a cabeça em seu

ombro. - Por favor, me conta o que aconteceu. E sua mãe? Vai

deixá-la? - Eu não posso... E não, nunca! Quero que vá comigo. E

você também. Quando eu tiver a oportunidade, irei para a cidade. Quero fazer algo decente em minha vida. Ser melhor. Você vem comigo?

- Irei aonde você for. - Promete?

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As ondas bateram nas rochas naquele dia enquanto o lençol de luzes acima deles formava um crepúsculo. Oliver sentiu paz pela primeira vez em semanas. Estava com Claire e nada mais pareceu lhe importar. A moça segurou sua mão com força, inspirando-lhe confiança. O vento açoitou seus cabelos. Sentiam o sussurro do mar perto deles, carregando as promessas embora.

- Prometo. E você? Vai estar aqui para mim quando eu precisar?

- Sempre, Claire. Oliver não resistiu ao seu olhar e seu encantamento,

beijando-a mesmo sem saber o que fazer. Beijando-a com inocência e selando sua promessa. Claire sorriu abobalhada.

Ficaram em silêncio, imaginando um novo futuro. 7 Oliver cresceu rápido enquanto assistia sua mãe definhar. Marie Brooks foi diagnosticada com câncer terminal no

ano seguinte, justo quando a filha de Tony e Moira Gianos nascia. Os médicos disseram a Marie que não tinha mais que dois anos pela frente. De fato, lutou contra tudo e todos para viver aqueles dois anos e poder comparecer na formatura de seu filho. Oliver estava radiante, pronto para enfrentar a faculdade e os problemas reais da vida adulta. Não os temia, assim como não temeu nada durante sua vida inteira. Por um momento, procurou no meio da multidão alguém além de Marie e seus amigos. Procurou um homem com um sorriso e algum orgulho. Encontrou outros pais, mas não o seu.

Sim, você acertou. John Brooks nunca esteve lá. No final daquele ano, quando Oliver completou dezoito,

Marie Brooks o chamou ao quarto. A neve forte em Darby começava a causar uma tempestade. Cobria os carros e as árvores, destruindo as maçãs na Avenida das Alamedas e tornando o mundo daquela cidade em um lugar negro. Com o vento gélido do mar, ninguém se atrevia a deixar sua lareira e enfrentar a rua. Naqueles dias estranhos,

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Marie adoeceu mais e já podia ver as luzes do outro lado. O homem de preto a esperava no corredor, fitando-a com olhos lúgubres e um sentimento vazio. Oliver entrou no quarto com o coração pesado. Claire segurava são mão.

- Onde está seu pai, Ollie? - Eu não sei mãe. Você está bem? Quer algo? Oliver segurou a mão de sua mãe, olhando-a em seus olhos.

A mulher sentiu seu fim próximo. - Seu pai. Tente entendê-lo, Oliver. Por favor. - Mãe... Esqueça John. Estou aqui. - Eu sei, filho. Marie tocou o rosto de Oliver e sorriu. Em seguida,

segurou a mão de Claire e piscou para a moça. - Eu vou vê-lo quando acordar. Marie Brooks fechou os olhos em busca de seu sono eterno

e partiu para as estrelas enquanto Oliver sentia o último resquício de sua alma ir embora.

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8

A neve cobria todo o campo do cemitério da Rua Krow. Oliver estava diante do jazigo de sua mãe. A multidão se

dispersava, tristonha e desolada, enquanto a neve caía nos ombros do rapaz. Oliver não ligou para nada. Apenas fitava aquela terra negra e o caixão de madeira com flores. Não chorou. Prometeu a si mesmo não derramar nenhuma lágrima, sentindo seu coração apodrecer e ser corroído por dentro. Não queria e não podia fazê-lo. Jamais. Sussurrou as últimas palavras para sua mãe e levantou a cabeça. Claire segurava sua mão. Olhou ao redor e não encontrou mais nada além de solidão. Aqueles túmulos sozinhos, sem ninguém. Apenas o coveiro à distância, observando-os com uma pá em suas mãos, e a morte parada nos confins daquele lugar. Não o encontrou. Não o viu porque John Brooks nunca esteve lá.

- Ele não está aqui, Claire. - Oliver... Claire olhou para o chão. Defendeu John Brooks durante

toda sua vida. Não hoje. - Oliver, vamos embora. Vamos viver. Deixe John para

trás. Eu estarei com você. - Eu preciso ficar sozinho, Claire. Oliver soltou a mão de Claire, deixando-a parada no

cemitério em meio à neve. Caminhou com passos incertos para longe daqueles jazigos. Fora do cemitério, as casinhas coloridas da Rua Krow lhe pareceram preto e branco e o céu escuro e desiludido. Uma lágrima correu por seu rosto conforme a neve continuou a cair. Desatou em uma corrida frenética. Correu pelas ruas da cidade, sem

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destino algum, com o mundo desmoronando. Sua vida começou cedo. Estudou e trabalhou para ajudar a mãe enquanto o homem amado por ela não estava lá. Não estava lá nem mesmo no momento final. Oliver quis gritar aos céus, quebrar tudo e deixar seu corpo ser destruído pelo tempo.

Encontrou-se na grande canaleta da cidade. Os prédios eram altos ali. Estava sozinho, correndo pela

cidade, tentando enfrentar seus próprios demônios. Não conseguiu. Sentou em um banco de pedra e deixou o mundo cair. Deixou partir-se e chorou como nunca. Chorou como já deveria ter feito. Chorou por sua mãe, pelos pecados de John e chorou por si mesmo.

Sentado naquele banco, prometeu chorar pela última vez em toda a sua vida.

9 A neve continuou caindo do céu. Pareciam pequenos fragmentos, estilhaços de sofrimento.

Oliver estava sentado na Avenida das Alamedas enquanto observava seu pai subir pela escada da varanda. Nitidamente bêbado. Caminhava tropeçando e segurando-se nas paredes. Olhou para o céu e as estrelas lhe pareceram frias. Era noite. Oliver decidiu confrontá-lo. Caminhou como nunca. Como um homem diante de seus problemas. Atravessou a Avenida com passos pesados, os punhos cerrados e o sangue gelando. Seu coração pulava.

Iria matá-lo. - John! gritou. John caiu na escada da varanda. Tinha lágrimas nos olhos. - Oliver... Sua mãe... Oliver parou diante de seu pai. O homem era uma

bagunça. Chorava como uma criança, pedindo perdão pelos seus pecados e ainda assim bebendo como um porco. Oliver sentiu pena por um minuto, mas a raiva o consumia. Agarrou seu pai pelo colarinho da camisa e o levantou com força. Arfava, cheio de raiva

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em seu coração sangrento. John não reagiu. Não conseguiria. Era velho agora.

- Onde você esteve quando ela precisava? Onde estava, seu bêbado miserável, quando nós precisamos? Quando ela morria, todos os dias, de câncer?

Oliver socou o rosto de John, deixando-lhe os lábios sangrentos. Quis machucá-lo. Destruí-lo. Não conseguiu. Não tinha forças para isso. Em seu cerne, sabia que não era um homem mal. Desejou matá-lo naquele momento de raiva, mas iria arrepender-se pelo resto de sua vida. O arremessou pela porta da casa, quebrando -a em um estalo. John caiu no meio da sala com estrelas girando à sua volta e o mundo fechando-se em escuridão. Era o final de tudo. A morte os rondava.

- Lembre-se de mim, pai. Lembre-se que eu poderia tê-lo destruído. Lembre-se do homem que você não criou!

John Brooks permaneceu esparramado no chão enquanto Oliver juntava suas malas e saía pela porta. Era o final de tudo. Estava partindo. Chegava a hora de deixar Darby para trás. De deixar o passado onde realmente pertencia: no passado. Entretanto, por um momento, Oliver fraquejou. Ao sair pela porta Claire Thompson estava lá. Fitava-o assustada, sem entender. Quando viu suas malas, compreendeu.

- Está indo embora, Ollie? - Adeus, Claire. Oliver partiu pela Avenida das Alamedas. Tentou não

olhar para trás, contudo, não conseguiu. Parou na esquina e fitou o horizonte. Precisou ver Claire a última vez. Não iria mais voltar. Nunca mais, prometeu. Precisava partir e deixar aqueles tormentos no sótão de sua alma. Enterrá-los. Claire chorava, sentada na escada da varanda. Viu Tony na rua pela última vez. A neve continuava a cair. Oliver levantou o rosto para o céu e viu o ônibus aproximar-se. Ao entrar, viu o céu de Darby pela última vez, deixando Marie para

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trás. Deixando Claire, Tony e John. Era apenas Oliver Brooks. Fechou-se, tornando-se sombrio e atormentado. Tornando-se vil e cruel. Um burguês da sociedade forjado nas lástimas do destino. Fechou os olhos e dormiu, imaginando o futuro distante.

Naquele instante, tornou-se o homem do momento.

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Quinta parte

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1

Oliver Brooks nunca sentiu o tempo em seu encalço. Estava logo atrás, perseguindo-o, como faz com todos nós.

Carregava, junto com o vento, uma névoa de tormentas e preocupações, arrastando os dias com sua rapidez habitual. Oliver nunca percebeu a neve começar a cair nos telhados, as festividades aproximando-se e os dias sumirem diante de seus olhos, se tornando uma noite imersa na negritude, iluminada apenas por uma porção de estrelas de uma esperança parca. Todos aqueles dias, sorrindo e dançando com Claire, chegaram para cobrar suas dívidas. Foram rápidos. Um corte preciso. Então era final do ano.

O inverno foi rigoroso em Darby, deixando a água da praia gélida, as árvores sem folhas e a neve acumulada nas calçadas e telhados após uma longa tempestade. Os vizinhos hesitavam em deixar suas moradas. Oliver jantava ocasionalmente na casa de Ana Coipel e depois voltava para o pequeno chalé de John Brooks ao lado de Claire. Beijava-a sempre antes de entrarem em casa, permitindo uma brisa álgida de vento os açoitar e a neve cair em seus cabelos. Então dormiam abraçados. E tudo começava outra vez, afinal, sempre é assim para nós humanos.

Nunca percebemos nada. As preocupações do cotidiano, por mais cuidadosos que

sejamos em ignorá-las, nos perseguem e caminham ao nosso lado como velhas amigas. Recusamos o olhar, fugimos por becos escuros de nossa própria alma e acabamos encontrando-as outra vez. Seguimos caminhando sem olhar o espelho. Os cabelos tornam-se brancos, a pele envelhece e somos poeira, partindo juntos para um

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destino inexplorável. Antes de tudo isso? Éramos pessoas, caminhando e preocupando-se com nada que vale essa preocupação indigna da sociedade indiferente.

O tempo ataca a todos, individualmente, para cobrar suas dívidas.

Foi assim com Oliver. Estava em um estado desconhecido. Há anos não sentia tantas alegrias de uma única vez. Há anos não celebrava nenhum natal ou festa de ano novo com pessoas que realmente gostava de estar. Suas companhias eram tudo para Oliver. Em certos dias, apenas permanecia só e os observava de longe, escutando o burburinho de seus pensamentos e ideologias. Escutando seus corações.

Estou feliz pensava sozinho. Seguia vivendo. Então os temporais começaram a alcançá-

lo. Talvez tenha sido em uma tarde comum. Faltava praticamente uma semana antes de encontrarem o tempo. Antes de um novo ano se fazer presente nas páginas do calendário. Oliver servia alguns homens estranhos no balcão conversando sobre um lobo lendário nas montanhas. Parou, de repente. Uma pressão fortíssima surgiu em seu peito e seus olhos escureceram. Cambaleou pelo bar, derrubando alguns copos e indo em direção a uma mesa.

- Oliver, você tá legal? gritou Fausto McMurphy, correndo em socorro.

Oliver não respondeu, sentando-se. Não via nada. A pressão em seu peito era forte demais. Enquanto tudo escurecia, procurou Claire em sua própria solidão. Onde estava? Morreria sem ela? Aquilo não podia acontecer.

- Será agora? perguntou-se Tudo desvaneceu. Era apenas escuridão. Uma penumbra

lúgubre feita de sua própria solidão e miséria. Olhou diretamente para o ceifeiro da morte e encontrou-se com John Brooks.

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2

- Olá, filho. - John. Oliver procurou ao seu redor. Estavam na praia de Darby.

Nevava em seus ombros e o mundo pareceu distante e silencioso. Não escutou as ondas e não havia casa na montanha. Seu primeiro pensamento não foi em sua morte, mas em sua vida.

- Claire... - Claire está bem. Não esteve bem assim há muito tempo. - Estou morto? fez a pergunta fatídica. - Você não vai gostar da resposta. - Claro que não, velho. - Você está bem, filho. Na verdade, também não esteve tão

bem assim há muito tempo. - Desembucha logo. Os olhos de John Brooks entristeceram diante da confusão

no rosto de Oliver. O velho homem aproximou-se com sua serenidade costumeira. Estavam diante um do outro. Oliver nunca viu seu pai assim tão sereno. Não conseguiu evitar sentir pena do homem. Procurou ao redor, caminhando pela areia. Percebeu não sentir mais dores em seu peito e nem mesmo o coração bater. Estava morto? Começou a ser tomado pelo desespero. Precisava voltar.

- Filho... Não sei se poderá voltar. Já pensou em como será quando for verdade?

- Estarei morto. Não é problema meu. John Brooks riu. - Nunca é problema seu, Oliver. Apenas dos outros.

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- Quem é você para dizer algo assim? Oliver voltou-se furioso em direção ao fantasma de seu pai. - Não sou ninguém. Nunca fui. Você é diferente. É mais

amado e mais respeitado. As pessoas não o veem como um velho contador de histórias. O olham com amizade e amor. Guarde isso.

Oliver parou e mirou as areias da praia de Darby. Seu rosto trazia todas as aflições e remorsos que teve em vida. Sua voz estava metálica e havia algo preso na garganta. Não queria morrer agora. Não desejava isso. Como poderia ir, tão de repente? Não se despediu de ninguém. Nem de Tony. Nem de Claire. Claire! Se pudesse, o último pedido seria um deslumbre da moça, um último beijo roubado de seus lábios com gosto de canela. Gostaria de fitar seus olhos pela última vez e dizer-lhe adeus.

- Oliver... Procurou. Estava agora sozinho na praia. Escutou apenas

um sussurro sendo carregado pelo vento. O fantasma de John Brooks desvaneceu naquelas areias eternas, perdendo-se em um mundo vasto demais para o velho. Um mundo despreparado para suas histórias. Um mundo rachado, partido pelas pessoas que abandonou. Um mundo agora pertencente a Oliver. O sussurro, no entanto, continuou viajando.

- Desculpe por tudo, meu filho. Adeus... Oliver caiu de joelhos. Não queria estar morto. Então

fechou os olhos e deitou-se de costas. Sentiu a areia morna. Um abraço. Um toque suave. Quis abrir os olhos e não conseguiu. Era apenas a escuridão, abraçando-o. A morte se aproximando e gelando sua espinha. Tentou gritar inutilmente.

- Por favor, deixe-me voltar. Acordou em uma cama de hospital.

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3

A fraca luz do cômodo cegou Oliver Brooks. Olhou ao redor, tentando encontrar um rosto conhecido.

Claire Thompson dormia na cadeira ao seu lado com a mão pousada na cama. Pareceu-lhe uma visão divina. Estava cansada, acabada, mas ainda presente para Oliver. Quis levantar-se e abraçá-la imediatamente. Tony Gianos, parado no marco da porta, correu em direção a Oliver. Sorriu sem jeito e segurou o braço do rapaz, sentando-se na ponta da cama.

- Como está campeão? - Acha que eu tenho oito anos? retrucou Oliver de modo

zombeteiro. Tony abriu um sorriso e riu calmamente, balançando a

cabeça. - Desculpe. Como está se sente? - Morto. - Encontrou alguma coisa boa por lá? - Não. Apenas um velho babaca que era meu progenitor. - E como ele vai? - Continua babaca. Tony e Oliver riram com força, e depois, houve silêncio.

Precisavam discutir os últimos acontecimentos e sabiam disso, afinal, Oliver caiu no meio do bar para voltar a si apenas dois dias depois.

- Os médicos dizem que você tem problemas de coração. Alguns me falaram que você sabia.

- Não conte a Claire.

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- E então, Oliver? O que vai acontecer se precisar dela? - Estarei morto demais para precisar dela. Eu quero ir

embora desse lugar... Claire Thompson acordou de seu sono agitado, vendo os

homens à sua frente. Seu rosto pareceu pálido e levantou da cadeira com um pulo ao ver Oliver acordado. Tony afastou-se com calma e deu uma piscadela para Oliver, deixando o casal a sós.

- Você me assustou, Ollie. - Parecia real, Claire. Eu o encontrei. - Quem? - John. Pediu-me desculpas. Parecia real... Achei estar

morto. - Você está bem vivo. Aqui comigo. Oliver não soube lhe dizer por quanto tempo estaria lá. Ou

se estaria eternamente lá para Claire. Achou que não. Aconteceria novamente, tinha pura convicção disso. Era o final de sua jornada. Estava prestes a completar um ano e John Brooks gostava de suas exatidões, assim como os médicos. Oliver tinha certeza: a próxima vez seria fatal. Não voltaria mais daquelas areias mornas. Fechou os olhos enquanto pensava sobre essa questão. Deveria contar a Claire? Não. Faria a garota apenas sofrer. Decidiu tentar dormir.

Antes disso, viu um vulto negro em frente à porta. O anjo de sua morte.

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4

Oliver recebeu alta do hospital de Darby ainda naquela semana.

Apesar das recomendações médicas de levar a vida com calma, era hora de acertar todas as contas. Durante a noite, antes de dormir, ia até a varanda e pedia mais tempo ao seu anjo da morte enquanto observava as estrelas. Decidiu escrever seu testamento, deixando todos os seus bens para Claire, incluindo a casa de Darby, qual seria sua em um ou dois meses. Vendeu todas as suas ações na bolsa, deixando para Claire sua conta milionária. Procurou Thomas Port, o advogado de John cheio de hábitos esquisitos, para legalizar tudo e deixar o homem a par da situação. Thomas sentiu simpatia por Oliver e o abraçou de modo estranho. Oliver sorriu, retribuindo ao abraço. Pensou que há um ano odiaria o homem devido aquele abraço e provavelmente o mandaria ao inferno.

As coisas mudaram agora. Thomas Port prometeu-lhe fazer tudo de acordo e nunca

falar sobre sua morte com ninguém. Seria totalmente confidente. Oliver partiu do escritório com um peso em seu coração. Seus passos permaneciam na neve, mas seu corpo começava a dissolver-se para deixar esta terra. Parou embaixo de uma macieira próxima a Sede dos Artesões e colheu a última maçã da árvore. Era o fim. O final de tudo. Ainda havia, no entanto, uma última coisa a ser feita. Queria casar com Claire. Olhou para o céu, deixando a neve cair em seu rosto e pediu por aquele desejo. Morreria dois segundos após estar casado com a moça, mas não um minuto antes. Fechou os olhos para sentir o mundo pela última vez. Estava girando, como sempre.

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Lembrou-se de olhar pela vidraça em seu escritório e pensar como tudo era pequeno. Pensar em si mesmo como uma parte diminuta de toda aquela imensidão da vida.

Havia algum sentido nisto tudo? Nunca soube exatamente qual, mas talvez esse fosse o

mistério. Antes de tornar-se um novo homem, tinha as respostas na ponta de sua língua. Duvidava de todas as crenças e gozava de um pensamento único. Agora estava em conflito. Não sabia a verdade sobre nada. Achava que John viveu do jeito que queria e teve suas consequências. Oliver faria diferente. Não sabia se a morte era aquela praia ou se veria um Deus ou Diabo. Não sabia quem era. Não sabia se aquela maçã seria doce ou não. Estava em dúvida sobre tudo e, estranhamente, apreciava. Tinha conflitos. Sua única verdade era a escuridão. A morte.

Era agora um verdadeiro homem. Humano. Enquanto caminhava refletia sobre aquelas questões. Viu

toda sua vida mudar de repente apenas por conta de um único ponto: morte. Seus olhos não eram mais os de Oliver Brooks, e sim de um homem moribundo, disposto a mudar todas as convicções apenas pela morte. Temia-a, como todos nós, e ao mesmo tempo, a abraçava, pois precisava da sensação eminente de estar tudo acabado. Ao pensar em tudo isso, seguiu comendo a última maçã e se encontrou no bar de Dorothy Campbel. O bar estava vazio. Faltava apenas um dia para o final de ano. Entrou e achou a dona do estabelecimento, como sempre, limpando aquilo que já estava limpo. Oliver sorriu. Sentiria falta das esquisitices de todos, principalmente de Dorothy. Seria que os veria novamente?

- Como está, Oliver? - Morto respondeu, jogando na rua os resquícios da fruta. Dorothy riu satírica. - Vejo que está preocupado, rapaz.

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Oliver sentou-se no balcão. Dorothy o olhou de sobressalto. Viu um fantasma. Era igual John Brooks. Carregava certa paz de espirito, um jeito leviano de ser, e tantas desordens quanto um homem podia ter. Decidiu servi-lo uma dose de conhaque para acalmar aquele coração agitado.

- O que devo fazer Dorothy? Irei magoá-la de qualquer modo. O bom é que em um deles não estarei aqui para ver.

- Isso é cruel. Dorothy serviu-lhe outra dose. Oliver bebeu em um único

gole. - Talvez a garota seja mais durona que você pensa. Deveria

contar a verdade e descobrir. Vai querer ficar ao seu lado até o fim. Como será o momento em que cair duro e ela não souber o que fazer?

- Você está certa. Como sempre. - Tenho esse costume. - Vai precisar de mim aqui hoje? Ambos olharam ao redor. Nem mesmo Fausto McMurphy

estava no bar. - Nunca precisei de você, rapaz. - Então por que me contratou? Dorothy Campbel sorriu de canto. Sempre escondia algo. - Você é boa gente. E precisava descobrir isso conhecendo

outras pessoas que também são gente fina. Mais importante, estava disposto a trabalhar de graça.

- Obrigado. Oliver bebeu outra dose do conhaque para esquentar seu

sangue e partiu pela neve. Partiu para encontrar um novo ano à sua frente. Um ano qual não sobreviveria.

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5

Celebraram o ano novo na casa de Moira Gianos. Todos estavam felizes, contentes com o último ano. Coisas

boas aconteceram e houve a oportunidade de conhecerem Oliver Brooks, o filho de John Brooks. Brindaram, também, ao velho homem, uma perda insubstituível do último ano. Oliver não participou deste brinde. Permaneceu na varanda bebendo uma taça de champanhe e observando a neve. Houve anuncio de uma grande tempestade dentro de uma semana, porém, não parecia haver sinal. Oliver viu o vulto negro cruzando seus olhos novamente e voltou-se para a luz. Encontrou Tony Gianos.

- Tenho algo para você, Oliver. - Uma carta? Tony trazia uma caixa em suas mãos. Era quadrada e

parecia do tamanho exato de um livro. Oliver segurou-a, sentindo um peso maior, inesperado.

- Seu pai pediu para lhe entregar no último dia do ano. - Obrigado, Tony. - Não vai abrir? - Ainda não. Aproveite a festa. Oliver sorriu enquanto Tony voltava para a

confraternização dos vizinhos. Seu olhar cruzou o de Claire no outro lado do cômodo, conversando com Ana Coipel. Ambos sorriram um para o outro e Oliver lembrou-se de seus problemas. Ainda não contara a verdade para Claire e nem mesmo sabia se deveria. Decidiu abrir o pacote. Ali estava um livro de capa dura, velho e surrado, sem nenhuma escrita na frente. Descobriu, também, uma carta no pacote

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com seu nome escrito na frente do envelope. Oliver recuou diante da revelação. Seria possível? A imortalidade estaria diante de seus olhos? Seus dedos tocaram a capa do livro. Desejou abri-lo e descobrir naquele exato momento sobre o que se tratava.

- John, diga-me que é verdade... O sussurro de Oliver perdeu-se na noite. Decidiu não abrir

o livro e deixar a carta junto. Não possuía a coragem necessária para encarar a imortalidade. Deveria ou não? Deixou tudo isto para trás quando Claire Thompson veio à sua busca pedindo-lhe para dançar. Largou a caixa em cima de uma cadeira e esqueceu-se de John Brooks.

Por um ínfimo momento, esqueceu-se de sua morte.

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6

Oliver deixou os dias voarem. Sentia-se constantemente em terrível estado. Arfava com a

menor das caminhadas e uma pressão em seu peito indicava o resquício de seu tempo nesta vida, entretanto, ainda hesitava em abrir a caixa de John Brooks e descobrir o livro da imortalidade. Não sabia o motivo de sua hesitação. Veio para Darby com esse único objetivo. Ser imortal. O verdadeiro motivo é que as coisas mudaram, assim como sua própria vida. Oliver Brooks deixou de ser um homem mesquinho e importava-se com as vidas de outras pessoas, principalmente Claire. Era quase data de seu casamento e ainda não havia contado toda a verdade para a moça. O que faria agora? Pensou, diversas vezes, em ir embora, partir de Darby e morrer sozinho. Morrer em um lugar qualquer.

Deveria fazer isso. Era uma tarde de sábado quando começou a arrumar seus

pertences. Jogou algumas mudas de roupa em uma mochila e a caixa de John Brooks. Ainda não lera a última carta era a última, sabia bem e nem olhou dentro do livro. Desconfiava da verdade e, em seu âmago, não sabia realmente o que era imortalidade, e nem se a queria. Talvez fosse um dom proibido aos mortais. Talvez seja nosso destino viver nesta terra, chorar pela primeira vez sabendo quando será a última, acompanhar as pessoas em seu destino final e olhar uma última vez para as cores no céu, vendo sumir um último pôr do sol antes de nos entregarmos às cinzas.

Devemos caminhar de mãos dadas ao derradeiro fim. É natural.

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Oliver não sabia nada sobre isso. E agora não tinha mais certeza se sua luta contra John havia valido à pena. Perdeu tantos anos de sua vida quando podia ter estado ao lado de Claire. Parou, de repente, segurando um retrato recente seu e dela. Uma foto tirada por Moira Gianos no natal. Claire sorria abobalhada com um gorro na cabeça. Seu braço direito fazia a volta no pescoço de um sorridente Oliver. Decidiu ficar e morrer ao seu lado. Largou o retrato de volta na cômoda e sentou-se na cama. Ouviu passos na cozinha e Claire entrou no quarto com calma. Seus olhos imediatamente viram a mochila abarrotada de tralhas.

Precisava ficar. Não iria fugir. Não era John Brooks, afinal. - O que é isso, Ollie? - Besteira. - Você vai algum lugar? Oliver levantou-se, indo em direção a Claire. A moça

recuou. - Eu ia, mas... Não vou. Não posso fazer isso, Claire. Não

outra vez. Aproximou-se dela, segurando suas mãos. Claire se afastou,

parando na porta e olhando para o chão. Não acreditava em Oliver. - O que está dizendo, Ollie? Vai me abandonar de novo? E

nosso casamento? E nossa vida? Oliver, eu não posso perdê-lo outra vez, por favor...

- Vou, Claire. Mas não desse jeito. Estou morrendo. Claire Thompson riu sem jeito. - Não estou entendendo. Todos nós estamos morrendo. E

daí? Oliver sorriu e decidiu. Contou-lhe toda a verdade. Sentou

ao seu lado e falou o motivo real de ter voltado para Darby. Uma busca inútil por um livro mostrou-lhe o livro de John Brooks, sem nunca abri-lo que seu pai lhe disse carregar o segredo da imortalidade. Voltou porque era um homem mesquinho, sem

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nenhum sentimento alheio, e pretendia destruir todo o legado de seu pai. Enquanto contava, Oliver precisou andar pelo quarto. Era diferente agora. Não queria mais destruí-lo. Precisava ser melhor. E foi. Graças a todos. Graças a Claire. Claire aproximou-se de seu futuro marido. Seria verdade?

- Precisei deixar a lenda morrer. Apagar os pecados do pai. Precisei ser mais, Claire.

- Por que não me contou antes? Claire baixou a cabeça. O rosto estava em miséria. Fitou os

sapatos brancos e imaginou-se no cemitério, junto com Oliver. Não deixaria aquilo acontecer. Não outra vez. O abraçou com força e lágrimas nos olhos. Precisava haver outro jeito. Seus olhos buscaram o rosto de Oliver.

- Seu pai viveu, não foi? Com o mesmo problema, conseguiu viver.

- Não vou ter a mesma sorte, Claire. - Podemos ir a novos médicos, tentar tudo. Você precisa

tentar Oliver. Talvez seja o livro, talvez... - Já procurei todos. E não sei se quero abri-lo. Claire pegou o livro em mãos e o levou para Oliver. Estava

séria, impassível. - Você precisa. Por mim. Decidiram, juntos, abri-lo. Caminharam de mãos dadas pela Avenida das Alamedas

em silêncio. Oliver trazia consigo a caixa de John Brooks na outra mão. Após certo tempo, com o vento frio do oceano e daquele último inverno, pararam. Estavam embaixo de uma macieira marcada. Lia-percorreram o sulco da madeira marcada e as lembranças voltaram com força para sua mente. As últimas lembranças. Oliver sentiu o fim aproximar-se. Estava tudo muito perto. Olhou para o céu, esperando o último vislumbre de uma verdadeira felicidade. Sentia-

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se no penhasco, pronto para pular contra a escuridão. Sentaram-se ali, embaixo da macieira, e beijaram-se. Claire secou as lágrimas. Oliver decidiu abrir a carta de John Brooks.

Se você está com essa carta é porque segura meu segundo

bem mais precioso. Caso esteja se perguntando, o primeiro sempre foi você. Desculpe se nunca soube demonstrar meu amor. Desculpe se o magoei e magoei sua mãe. Desculpe por tudo, filho. É sério. Nunca fui um bom pai, um bom marido. Diabo, nunca fui um bom homem. Nunca fui bom em nada. Mas você, Oliver... Você sempre foi bom em tudo desde a infância. Não havia livro não lido, coisas que não aprendesse ou pedras que deixasse de revirar. Amava com tanta intensidade quanto odiava.

Você é uma criatura linda. Em todas as minhas andanças e foram muitas nunca

conheci uma criança como você. Arrependo-me de não ter aproveitado. Era meu filho. Meu fruto. Minha responsabilidade. Como você sabe, nunca fui bom com essa última parte também. Então, por todas as transgressões que cometi, peço-lhe, mais uma vez, minhas sinceras desculpas. A você e a sua mãe, onde quer que esteja. Amei-a como pude e sinto muito se a desapontei. Eu daria tudo para reverter isso.

Agora chegou a hora, Oliver. Você já o tem em suas mãos. Meu aprendizado sobre esta

vida. Aquilo que nos faz realmente imortais. A imortalidade, diferente do que muitos pensam, não vem da vida eterna. Não precisamos estar sempre presentes para sermos imortais. Basta que nós sejamos importantes para alguém e esse alguém, acredite em mim, vai guardá-lo do lado esquerdo para o resto de sua vida. E você será imortal. Mas lembre-se: não vás tão gentilmente nessa boa noite escura.

Mais uma vez, desculpe-me por tudo, meu filho. Até logo.

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O poema de Dylan Thomas mais uma vez trouxe Oliver

para este mundo. Sentiu a boa noite escura aproximar-se conforme seu coração doía. Não soube dizer se era a doença ou todo o seu mundo ruindo diante de si. Era o final. A boa noite. A penumbra cada vez mais perto, tocando-lhe com suas garras. Viu o vulto negro diante de si. Era hora de abrir o livro e descobrir se seria realmente imortal. Deixaria Claire partir, de um jeito ou outro.

- Vamos, Oliver. Estou aqui por você. Sempre estive. Claire segurou sua mão com força. Oliver fechou os olhos

por um instante, temendo pelo pior e abriu o pesado livro de couro. Lá dentro, viu tudo e não viu nada. Folheou as páginas para descobri-las todas em branco. O livro estava vazio, esperando uma história a ser contada. Oliver sorriu, abobalhado, e continuou procurando. Em meio às páginas, encontrou a caligrafia de John Brooks. Era uma escrita rápida, frenética e malfeita, rabiscada. Lia-se:

Os velhos deveriam arder e bradar ao fim do dia, Rai Oliver fitou os olhos de Claire Thompson como se fosse a

última vez e mirou o céu novamente. Neve. Continuou sorrindo, lembrando toda a sua vida. Então a beijou com a inocência que tinham há tantos anos diante daquela árvore. Quando sentiu o fim, descansou a cabeça em seu colo e fechou os olhos. Viu a penumbra. A escuridão. As lágrimas de Claire Thompson.

Então tudo desvaneceu e acabou.

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7

Oliver acordou outra vez em uma cama de hospital. Seus olhos abriram devagar enquanto escutava os barulhos

do monitor e os passos fora do quarto. As pessoas apressadas correndo em busca de suas vidas. Dormia e acordava, encontrando John e Marie Brooks em seus sonhos. Caminhava naquela praia todas as noites e perguntava as estrelas se voltaria. Conforme as semanas esvaíram, recobrou a consciência para encontrar uma Claire devastada ao seu lado. Há muito fora despedida de seu emprego e vivia com o dinheiro de Oliver, não que o homem de agora se importasse com isso. Tudo para Oliver era vê-la ao seu lado. O jovem Zap-Zap sentia-se triste por seu amigo Oliver, esperando com Ana na cadeira ao lado da cama. A mulher trazia refeições e tortas para Claire. Fausto e Steven apareciam frequentemente, trazendo cartões e perguntando sobre Oliver. O quarto estava cheio de flores de todas as pessoas em Darby. Tony e Moira Gianos também apareciam. Oliver os via enquanto fingia dormir. Estava cansado demais para conversar. Ambos falavam baixinho com Claire e os médicos sobre o estado de Oliver.

- Como ele está? perguntava Tony a Claire Thompson. - Os médicos dizem que está melhorando, mas me deram

uma notícia ruim... A condição é terrível. Não entendem como John conseguiu viver tanto tempo.

- John não tinha preocupações respondeu Moira. Claire franziu a testa, fitando o corpo moribundo de Oliver

na cama de hospital. Seu coração doía tanto quanto o do noivo, esperando melhorar e voltar para casa. Claire orava todos os dias,

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sentada na cadeira e com as mãos na cama. Fechava os olhos e pedia ajuda ao céu para enviar Oliver de volta. Em suas orações, pedia a Marie e John para não o levarem embora.

- Por favor, o deixem comigo rezava baixinho enquanto uma lágrima escorria em seu rosto.

Talvez não adiantasse. Sempre, na porta, esperava um vulto negro. O ceifeiro das almas. Caminhava no corredor com seus passos felinos, esperando o momento fatídico. Esperando tomar a mão de Oliver Brooks e embarcar com o homem naquela noite lúgubre e estrelada, levando-o embora para seu descanso. Oliver decidiu ser mais forte. Decidiu ficar para valer. Então, em uma tarde ensolarada, sua voz voltou, recobrou as forças e gritou.

Oliver Brooks retornava dos mortos.

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8

Os médicos lhe disseram para evitar qualquer esforço. Oliver não os escutou.

- Vou viver até os oitenta, cavalheiros disse, com entusiasmo.

A verdade é que não sabia. Algo em seu cerne o consternava. Viveria mesmo até os oitenta? Não gostaria de ver Claire partindo. Mas esse não era o problema. Ainda se sentia

certo cansaço físico e preferia ler embaixo das árvores em seu jardim. Claire não voltou a trabalhar por pedido de Oliver. Precisava dela ao seu lado todos os dias. Queria vê-la em todas as oportunidades. Enquanto isso, Oliver montou uma entidade em Darby para pessoas desabrigadas.

Lar Brooks para Indivíduos Sem Sorte lia-se no dia da inauguração.

Oliver e Claire estavam radiantes naquela tarde. Todos em Darby conseguem lembrar. E a foto no jornal O Fitzburgh os marcou para sempre, mostrando a alma bondosa de Oliver Brooks. Oliver conversou, também, com um homem taciturno vindo das montanhas. Tinha alguns fios de cabelos grisalhos, vestia uma jaqueta surrada e um jeans velho. Aproximou-se de Oliver com um sorriso no rosto e certa paz no coração. Parecia um anjo. Oliver nunca sentiu energia mais positiva. Quando o homem falou, sua voz emanava sabedoria e tinha o mundo aos seus pés. Um mundo bom para se viver.

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- Sr. Brooks, sou Evan Doyle. Trabalho para O Fitzburgh. Gostaria de entrevistá-lo.

Oliver reconheceu o nome imediatamente. Evan Doyle, como no livro que comprou antes de vir para Darby. Conseguiu lê-lo nas últimas semanas, mas não estava acabado. Concedeu a entrevista e pediu um autógrafo do bom homem. Oliver viu Evan partindo novamente para a antiga casa de Nortier Jackson nas montanhas. Caminhava como se estivesse nas nuvens, revendo suas anotações e pensando no mundo. Era um homem altivo, mas calmo. E estranho. Seus olhos carregavam uma espécie de fervor, de torpor inimaginável. De conhecimento. Oliver sorriu. Precisou perguntar-lhe algo.

- Quem é você, de verdade? Evan Doyle sorriu de canto, segurando um caderno de

anotações em suas mãos. - Quem somos todos nós? Cuide-se, Oliver Brooks. Nos

vemos por aí. Oliver voltou para sua vida. Todas as noites, quando

entrava em sua casa com Claire Thompson, sentava na varanda. Decidia olhar as estrelas e pensar sobre o mundo lá fora.

Era grande demais e tão pequeno. Como poderia descobrir sua imensidão com pouco tempo de vida? Estava ansioso para descobrir a magnitude. Ansioso para finalmente casar com Claire. Ansioso para viver sua vida e o tempo restante. Claire aparecia calmamente ao seu lado e sentaria em seu colo naquelas noites. Iriam se beijar longamente, fitando o olhar um do outro. Alguém passando na calçada cumprimentaria Oliver.

- Boa noite, Brooks! - Boa noite! respondia Oliver. Claire sorria. - Você é mais dos outros do que meu. - Fazer o quê? Sou um cara desejado.

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- Seu tolo! Oliver roubou-lhe um beijo com sabor canela. - Por que perdi tanto tempo, Claire? - Não perdeu nada, Ollie. Estou aqui para você. Sempre

estarei. - Eu não sinto mais raiva dele... Os braços de Claire rodearam o pescoço de Oliver

enquanto a moça mirava aquelas estrelas longínquas, sentindo a brisa infinita da noite bater em seu rosto. Já estavam na primavera e casariam em uma semana. Claire nunca se sentiu tão feliz em toda a sua vida. Tinha tudo. Oliver e felicidade. Viveria enquanto podia ao lado do melhor homem de sua vida.

- Sua mãe teria orgulho de você, Ollie. E John... É bom não sentir-se mais assim, não é? Temendo cada passo em falso. Você não é ele. Nunca teve nada a provar.

- Sempre tentei provar algo, não é? Claire não respondeu, mesmo sabendo a verdade. - Acho que John Brooks finalmente partiu. Você sente falta

dele? começou Oliver, olhando sua noiva. - Sinto. Mas é como se tivesse passado. É hora de seguir em

frente. Precisamos viver nossa vida, Ollie. Oliver Brooks fechou os olhos enquanto abraçava Claire e

deixou a vida levá-lo onde quer que fosse. Iria de bom grado.

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9

Darby nunca viu um casamento tão perfeito em todos os seus dias.

Oliver Brooks convidou Fausto McMurphy e Tony Gianos como padrinhos. Do outro lado, estava Moira, Ana Coipel e Dorothy Campbel, a contragosto. Zap-Zap era o homem encarregado das alianças. Enquanto isso, antes da igreja, Oliver sentiu-se nervoso. Não colocava seu terno há um longo tempo e, para ser honesto, sentia certo medo do traje. Parecia levá-lo de volta a tempos estranhos e sórdidos. Bobagem. Fitou-se no espelho, alisando os cabelos e o rosto sem barba. Sorriu sozinho.

- Você está perfeito, meu bom jovem disse-lhe Tony. - Estou? - Claro que sim! - Estou nervoso, Tony. Vou vomitar. Vomitou dentro de uma lata de lixo em sua cozinha. Não

conseguiu segurar. Suas mãos tremiam e suava em bicas. Imaginou Claire esperando-o pelo resto de suas vidas. Era o que queria, então por que temia tanto?

- Oliver, olhe para mim. Oliver passou água em seu rosto e olhou para Tony

Gianos. - Tudo vai ficar bem. Agora vamos. Hora de amarrar a

coleira! Oliver sorriu e partiu a pé para a igreja. Nunca viu tantas

pessoas aglomeradas naquele lugar. Praticamente Darby inteira estava diante da pequena igreja de pedra no centro da Avenida das

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Alamedas. Oliver subiu as escadarias e passou pela porta de madeira, seguindo pelo grande carpete vermelho enquanto os convidados sorriam deslumbrantes. Na fileira da frente encontrou Stacy, sua antiga secretária. Vira a moça outra vez. Oliver parou em frente ao padre do funeral de John Brooks.

- Quer uma birita para aliviar? perguntou o bom homem. - O quê? O padre retirou um cantil com uísque de dentro do casaco

e ofereceu. Oliver olhou para os lados, pegando o cantil e bebendo dois longos goles. Devolveu. Já sentia melhorar o ânimo. O padre sorriu com zombaria enquanto todos esperavam. Então os violinos começaram. Era hora. O sol bateu no rosto de Oliver, entrando pela vidraça colorida e ao mesmo tempo acompanhando a extasiante Claire Thompson pelo altar. Oliver sorriu como um tolo enquanto Claire caminhou pelo carpete vermelho trajada em um vestido branco com rendas. Carregava um buquê de flores e tinha os cabelos ruivos soltos, caindo em seu rosto. Para o noivo, estava linda como nunca antes.

A cerimônia foi rápida. -

carregou as alianças com serenidade, sem prestar atenção naquelas moscas zumbindo à sua volta. Os noivos disseram votos rápidos e colocaram as alianças douradas em seus dedos. Então Claire Thompson tornou-se Claire Brooks. E Oliver? Oliver era um homem completo, pronto para encarar a escuridão se batesse à sua porta. Tinha uma vida perfeita, com uma esposa perfeita e a devoção de todas as pessoas naquele lugar. Após o grande beijo, caminharam novamente pelo carpete enquanto os convidados jogavam grãos de arroz e gritavam em cumprimento a Oliver Brooks. Lá no fundo, ainda no altar, o padre bebia mais um gole de uísque ao lado de Fausto McMurphy. Ninguém pensava em John Brooks. Ninguém se lembrava do homem naquele instante.

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Naqueles segundos de felicidade, tudo se resumia a Oliver e Claire Brooks.

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10

A lenda de John Brooks não foi párea para a lenda de Oliver Brooks.

Oliver caminhava por aquelas ruas com serenidade sem sentir o tempo voar contra seu rosto. Pensou algumas vezes em ter um filho com Claire, mas não podia. Seus genes eram terríveis e não queria passar aqueles demônios para uma criança. Adotaram então dois gatos, cujos nomes eram Pingue e Pongue. A dica de nome veio de ninguém menos que Fausto McMurphy em um dos seus ínfimos momentos de filosofia, enquanto fumava um baseado na rua e dizia ver naves alienígenas. Oliver ria com os acessos de maluquice de seu amigo. Fazer o quê? Como poderia escolher seus amigos? Adotaram, também, uma menininha sardenta, pequenina, com pouco mais de dois anos, que precisava de alguém para amá-la profundamente. Chamaram-na de Marie Brooks. Para Oliver, o ciclo começava outra vez, mas não seria seu pai.

Às vezes, sentia os sintomas começarem a voltar. O cansaço era forte, junto com as dores em seu peito. Cuspia sangue e precisava dormir para recobrar as forças. Claire sempre estava lá para ampará-lo. Visitou o médico uma ou duas vezes, mas ainda não havia soluções. Em certos dias, quando se sentia mais de bem com a vida, sentava na varanda e abria o grande e velho livro de John Brooks. Seus dedos percorriam aquelas palavras de Dylan Thomas e depois as páginas em branco.

O que significava? Significava tudo sem realmente significar nada. John

Brooks era maluco. Aquela era sua imortalidade. Seu jeito único de

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viver a vida, ver as coisas entre mil e uma perspectivas. Enxergar o tecido complexo em todas as suas conjunções. O todo sem o nada. O nada sem o todo. E, pela primeira vez, sentado na varanda com uma cerveja ao seu lado, um gato em seu colo, e uma garotinha linda dormindo em seus braços, Oliver entendeu o que John Brooks quis dizer em uma de suas cartas. Vamos deixar algo claro: Oliver nunca perdoou o progenitor por seus pecados, mas o esqueceu. Precisou ver a vida com seus olhos, entender aquelas pessoas e aquele sofrimento tão intenso em Darby, para finalmente compreendê-lo. Abrangeu, em seu próprio modo, o significado da imortalidade. Sua criação por nossas crenças. Por nossa fé em algo maior. Entretanto, a verdadeira imortalidade vem de apenas fazer algo poderoso e grandioso.

Apenas estar lá. Então o tempo escorreu entre seus dedos outra vez.

Deixou-o passar sem saber quando realmente seria seu último momento ao lado de Claire. Não importava. Apenas queria vê-la

Claire e Oliver trocavam promessas e amavam-se quando a noite caía. Relembrava toda a sua vida quando conversavam sob aquelas estrelas geladas. Foi uma criança alegre e altiva, sendo corrompida pela ausência de um homem a quem idolatrava. Não seria assim para a pequena Marie. Tornou-se alguém rancoroso e cheio de ódio em seu coração. Seu sangue era negro e o gosto amargo. Via as pessoas como inúteis e apreciava apenas seu trabalho. Tinha amor, mas nunca soube como desfrutá-lo. Então encarou a morte. Era apenas um vulto às vezes. Em outros momentos, um homem de terno com um chapéu. Tinha os cabelos grisalhos e andava como um felino, sorrindo zombeteiro pelos cantos. Ensinou a Oliver como viver. Mudou tudo. As nuvens tornaram-se brancas e o céu azul. Oliver era imortal.

Então as estrelas voltaram a ser quentes.

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Epílogo

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O tempo para Oliver esvaiu. Era como sangue escorrendo. Nunca parecia suficiente.

Havia sempre muitas coisas a fazer. Talvez, enquanto narramos este estranho momento, tenham passado alguns anos desde o casamento entre Oliver e Claire. Estava tudo bem. Mas as coisas sempre estão bem antes de piorar. Oliver sabia disso. Era uma tarde de verão quando sentiu o coração fraquejar de modo letal. Tentou segurar-se em algo, mas caía. O sol iluminou seu rosto enquanto a escuridão o abraçava. Estava na rua, sem Claire, sem Marie, sem ninguém. Foi socorrido por duas pessoas que o encontraram e o levaram até o hospital de Darby.

Estava tudo bem, o médico disse. Oliver voltou para casa naquele dia com Claire, fazendo brincadeiras sobre o ocorrido, e abraçando sua filha. Iria viver até os oitenta anos, com certeza. Naquela tarde, antes da noite aproximar-se com seus passos vazios, decidiu abrir o livro da imortalidade outra vez e mergulhar naquelas páginas em branco. Talvez um dia escrevesse nelas. Havia tempo para isso. Bebeu uma cerveja com Fausto McMurphy, escutando algumas histórias hilárias sobre seu pai. Depois disso, levou Claire e Marie para caminharem na Avenida das Alamedas. Caminharam de mãos dadas enquanto eram observados pelo infinito. Olhavam para sua menina correndo pelos arbustos, feliz, colhendo flores. Pararam diante de sua árvore favorita. Aquela com as inscrições.

- O que vamos fazer amanhã, Ollie? Os dedos de Oliver percorreram as inscrições. - Não sei. Preciso ir até a cidade visitar uns engravatados

sobre montar um lar para deficientes por aqui. O hospital está com dificuldades em conseguir cadeiras de roda. Quer ir comigo?

Claire Brooks aproximou-se de Oliver e o beijou calmamente, enroscando seus braços no pescoço do marido.

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- Visitar engravatados e conseguir cadeiras de rodas para os necessitados? Estou nessa!

Oliver sorriu. - O antigo Oliver não estaria... disse sem pensar. - Você não o conhecia como eu. Acredite, estaria sim

respondeu Claire, pousando a mão no peito esquerdo de Oliver. - Estaria...? - Sempre existiu apenas um Oliver. Oliver sorriu e segurou a mão de sua esposa, caminhando

de volta para a velha casa de John Brooks. - Acredita que temos uma coisinha tão preciosa assim?

Oliver perguntou a Claire, olhando a menina. - Acredito. Jantaram brevemente. Oliver pôs sua menininha na cama

e leu-lhe uma história curta. A história do menino que não crescia, sua favorita na infância. Beijou a testa de Marie.

- Eu te amo, garota. Durma bem. - Eu te amo, pai. Boa noite disse Marie com a voz dos

sonhos. Depois, Oliver decidiu terminar mais um dos livros de

Evan Doyle. Tinha agora uma coleção deles junto com outro autor local, Jack Hartwig, no antigo livreiro de seu pai. Após isso, apagou as luzes do abajur e abraçou Claire como se fosse a última noite de sua vida. Fazia tudo como se fosse seu último momento nesta terra solene. Receava realmente ser. Pela primeira vez em muito tempo seu coração cessou o sofrimento que lhe impunha.

- Ei, Sra. Brooks. Carregava melodia em sua voz e candura em seu olhar.

Percebeu amar aquela mulher como jamais amou ninguém. Nem mesmo a si próprio. Claire lhe significava tudo e gostaria de poder parar o tempo e tornar aquela cena, aquele rosto, imortal, pelo resto de seus dias. Oliver sabia, em seu íntimo, sobre o perigo da

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imortalidade. Claire iria desvanecer, assim como o próprio Oliver, e um dia tudo deixaria de ser. Tudo se tornaria apenas parte desta vã existência.

- Diga-me, Ollie. O que está pensando? - Em você, como sempre. E aí, o que está pensando? - No dia em que nos conhecemos. Você me ofereceu uma

maçã enquanto John dava em cima da minha mãe. - John não conseguiu sua mãe, mas eu ganhei você. - Convencido. Como sabe? - Sou bom com as garotas Oliver sorriu com uma

piscadela. Claire mordeu o lábio inferior e beijou seu marido,

abraçando-o com força. - Prometo amá-la pela eternidade, Claire Brooks

cochichou Oliver na escuridão. Claire adorava o som do nome Brooks junto ao seu.

Beijaram-se e ficaram juntos naquela noite. Quando a madrugada enfim gelou, Oliver acordou de sobressalto, suando e sentindo algo percorrer sua espinha. Era frio e suave, quase como um toque sereno e pacato. Aquele velho conhecido, forjado em um semblante negro, viajou pelo quarto. Seu coração voltou a doer. Deitou a cabeça no travesseiro e sorriu em paz. Fechou os olhos e escutou um sussurro acompanhando o vento e as histórias imortais de Darby. Um último sussurro.

- Até logo. Então, quase sem querer, tornou-se homem. Deixou de ser

monstro para virar anjo. Era todos e todos queriam sê-lo. Oliver seria lembrado por suas convicções e suas próprias memórias. Seria lembrado por ter contado a verdade e por amar com intensidade. Seria lembrado por ser um bom pai. Um bom marido. Um bom amigo. Um bom ser humano. Ainda quase sem querer, continuou vivendo em sua própria imortalidade.

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E daquele modo tão gentil e solene, Oliver Brooks embarcou na boa noite escura.

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