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LEOPOLDO E SILVA, Franklin. Bergson - Intuição e Discurso Filosófico

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Fnlllklin Leopoldo c Silva

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INTUI AO E I

DISCURSO FlLOSOFICO

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COLEÇÃO FILOSOFIA

1. Para ler a Femmumologia do Espírito, 2' ed. Paulo Meneses

2. A vereda trágica do Grande Sertão: Veredas Sonia M. V. Andrade

3. Escritos de filosofia I Henrique C. de Lima Vaz

4. Marx e a natureza em O Capital Rodrigo A P. Duarte

5. Marxismo e liberdade Luiz Bicca

6. Filosofia e violência Marcelo Perine

7. A cultura do simu/ncro Hygina B. de Melo

8. Escritos de filosofia II: Ética e cultura, 2' ed. Henrique C. de Lima Vaz

9. Filosofia do mundo Filippo Selvagi

!O. O conceito de religião em Hegel Marcelo F. de Aquino

11. Filosofia e método no segundo Wittgenstein Werner Spaniol

12. A filosofia na crise do rnoderniMde Manfredo A Oliveira

13. Filosofia política Eric Weil

14. O caminho poético de Parmêni.des Marcelo Pimenta Marques

15. Antropologia filosófica I, 3' ed. Henrique C. de Lima Vaz

16. Religião e histúria em Kant Francisco J. Herrero

17. Justiça de quem? Q;uzl racionalidade? Alasdair MacIntyre

18. O grau zero do conhecimento Ivan Domingues

19. Maquiavel republicano Newton Bignotto

20. Moral e histúria em John ÚJcke

Edgar J. Jorge Filho 21. Estudos de filosofia da cultura

Regis de Morais 22. Antropologia Filosófica II

Henrique C. de Lima Vaz 23. Evidência e verdade no sistema

cartesiano Raul Landim Filho

24. Arte e verdade . Maria José Rago Campos

25. Descartes e sua concepção de homem Jordino Marques

26. Ética e sociabiliMde Manfredo A de Oliveira

27. A gênese do antologia fundomental de M. Heidegger João A A Mac Dowell

28. Ética e racionalidade moderna Manfredo A de Oliveira

29. Mímeses e racionaliMde Rodrigo Antonio de Paiva Duarte

30. Trabalho e riquezn na Fenomenologia do Espírito de Hegel José Henrique Santos

31. Bergson: intuição e discurso filosófico Franklin Leopoldo e Silva

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FILOSOFIA

Coleção dirigida pela Faculdade de Rlosofia do Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus

Diretor: Marcelo F. Aquino, SJ Co-Diretores: Henrique C. Uma Vaz, SJ e Danilo Mondoni, SJ

Instituto Santo Inácio Av. Cristiano Guimarães, 2127 (planaltp)

31720·300 - Belo Horizonte, MG

Silva, Franklin Leopoldo e Bergson: intuição e discurso filosófico/

Franklin Leopoldo e Silva. - São Paulo: Loyola, 1994. - (Coleção filosofia; 31)

Bibliografia. ISBN 85·15·00984-6

1. Bergson, Henri, 1859·1941 - Crítica e interpretação 2. Intuição 3. Metodologia 4. Tempo l. Título. I!. Série.

4-1518 CDD-143

Índices para catálogo sistemático: 1. Bergsonismo: Filosofia 143

Edições Loyola Rua 1822 n2 347 - lpiranga 04216-000 São Paulo - SP Caixa Postal 42.335 04299-970 São Paulo - SP

({) (011) 914·1922 Fax., (011) 63-4275

Todos os direitos reseroados. Nenhuma parte desta obra pode ser reprodUZida ou transmitida por qualquer forma e/ ou quaisquer meios (eletrónico, ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquiooda em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora.

ISBN, 85-15-00984-6

© EDiÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 1994

I

INmCE

Abreviaturas das obras de Bergson .............................................. 7

INTRODUÇÃO A LINGUAGEM DA FILOSOFIA

1 ....................................................................................................... . 2 ...................................................................................................... .. 3 ....................................................................................................... .

I INTUIÇÃO E MÉTODO FILOSÓFICO

9 15 21

1. Filosofia e Método (I) ............................................................... 29 2. Filosofia e Método (11) .............................................................. 39 3. Crítica do Método Filosófico (I) .............................................. 50 4. Crítica do Método Filosófico (lI) ............................................. 61 5. Crítica do Método Filosófico (III) ............................................ 73 6. Crítica da Idéia Geral- O contorno exteríor da intuição ...... 84 7. Filosofia e Metáfora (I) ............................................................. 95 8. Filosofia e Metáfora (11) ............................................................ 105

II ETAPA CRíTICA DA REINSTAURAÇÃO DO OBJETO

DA FILOSOFIA: EXAME DE TEORIAS TRADICIONAIS DO TEMPO

1. O problema da duração psicológica ....................................... 117 2. A segmentação da temporalidade. O exemplo aristotélico.. 123 3. Temporalidade formal............................................................. 139 4. Duração, descontinuidade e determinação ........................... 147 5. Temporalidade e causalidade ................................................. 156 6. Crítica do a priori temporal..................................................... 163 7. Tempo e conceito ..................................................................... 171 I

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III INTUIÇÃO E EXPRESSÃO

A QUESTÃO DA PRESENÇA DE ELEMENTOS ROMÃNTICOS NO PENSAMENTO DE BERGSON

L A crise do "gênero" conceitual ............................................... . 2. A dimensão da reflexão real .................................................... . 3. Pensamento e reflexividade .................................................... . 4. Exterioridade e aporia da reflexão ........................................ .. 5. Consciência e movimento da interioridade .......................... . 6. A cisão da totalidade: diferença e virtualidade ..................... . 7. A Vida como produção absolutamente criadora .................. . 8. Intuição, reflexão e interioridade ........................................... . 9. A Interioridade em si ............................................................... . 10. Intuição e expressão: a tensão do significado ....................... . 11. Emoção e verdade: a indeterminação significativa .............. . 12. Ser e significar: a intimidade criadora .................................. ..

CONCLUSÃO

185 199 2ll 225 238 249 265 277 289 302 313 325

O comentário da criação ................................................................ 337

BIBLIOGRAFIA

I. Obras de Bergson ..................................................................... 353 11. Obras de Bergson traduzidas para o português ..................... 353 111. Comenta dores de Bergson e outras obras .............................. 353

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ABREVIATURAS DAS OBRAS DE BERGSON

D.1. = Essai sur les Données Immédiates de la Conscience, PU F, Paris, 1970

M.M. = Matiere et Mémoire, PUF, Paris, 1968

E.C. = L'Évolution Créatrice, PUF, Paris, 1969

P.M. = La Pensée et le Mouvant, PUF, Paris, 1969

E.S. = L'Énergie Spirituelle, PUF, Paris, 1967

D.S. = Les Deux Sources de la Morale et de la Religion, PUF, o Paris, 1967

Le Rire = Le Rire, Essai sur le Comique, PUF, Paris, 1950

As citações são feitas das seguintes maneiras:

I) Ex: Bergson, H., P.M.-120

2) Ex: E.C.-98

3) As traduções dos textos de Bergson, quando citadas, referem­-se sempre à edição da Abril Cultural (Pensadores), São Pau­lo, 1979.

Neste caso é feita a menção Abril em seguida ao número da página.

Ex: P.M.-87 Abril ou Bergson, H .. P.M.-96 Abril

Por vezes, a referência traz o título do ensaio que está sendo especificamente citado. Ex: P.M.-ll8 (Int. Phil.)

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INTRODUÇÃO

A LINGUAGEM DA FILOSOFIA

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Qual é a linguagem da Filosofia? Se tomarmos esta pergunta como critério orientador para uma leitura da obra bergsoniana, chegare­mos ao final do percurso sem encontrar uma resposta efetiva. Esta ausência decorre do caráter que Bergson atribui à linguagem: produ­to da inteligência concebida como faculdade instrumental. A inteli­gência é o meio de que a natureza nos dotou para triunfar sobre a matéria e organizar o mundo da perspectiva das necessidades hu­manas. A intenção pragmática define, pois, a inteligência, que é no homem O sucedâneo do instinto. No entanto, a possibilidade de re­conhecermos na inteligência o seu caráter utilitário toma-a significa­tivamente diferente do instinto, regido pela espontaneidade e auto­matismo, ou seja, pela imediatidade. O caráter mediato da inteligên­cia, o espaço que se abre para o homem entre a representação e a ação, revela-se no intento fabricador da inteligência, na sua vocação para fabricar instrumentos que sirvam para fabricar outros instru­mentos, permitindo assim o aperfeiçoamento e a variabilidade das formas de ação sobre a matéria. Esta mediação que se revela na re­presentação das condições de possibilidade do agir é o que permite à inteligência refletir sobre si mesma: a filosofia nasce desta suspeita da interioridade. Originalmente, entretanto, a inteligência confunde­-se com a atividade. "( ... ) ela se manifesta por uma atividade que é um prelúdio à arte mecânica e por uma linguagem que anuncia a ciência" (P.M.-84). O alcance do pragmatismo da inteligência se manifesta no entrelaçamento originário entre técnica e ciência: "Uma mecânica a princípio grosseira suscita uma matemática ainda im­precisa: esta, tomando-se científica e fazendo então surgir em tomo dela as outras ciências, aperfeiçoa indefinidamente a arte mecânica" (P.M.-84). A atividade inteligente recobre pois tanto a técnica de ma­nipulação da matéria como as teorias cientificas que visam conhecê-la.

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r INTRODUÇÃO

Há também uma relação de complementaridade entre estas duas manifestações da inteligência. Ao mesmo tempo em que a ciência surge a partir da instrumentalidade técnica, esta se aperfeiçoa pro­gressivamente por via de uma ampliação do conhecimento da maté­ria e dos meios de agir sobre ela. Por isto, no plano da gênese, há uma relação estreita entre arte mecânica e matemática. A matemá­tica é o desdobramento teórico da ação mecânica: seu surgimento provoca por outro lado o nascimento das outras ciências que, en­quanto produtos da atividade da inteligência, estão também estrei­tamente relacionadas com a arte mecânica, ou com a técnica em sentido geral. Há portanto duas direções paralelas da atividade inte­ligente: técnica e ciência; a relação constante entre estes dois planos da inteligência revela a unidade da forma que é caracteristica da racio­nalidade instrumental. "Ciência e arte nos introduzem assim na intimi­dade de uma matéria que uma pensa e outra manipula" (P.M.-84).

Devemos observar que a proximidade entre mecânica e mate­mática tem em Bergson um profundo significado, e insere-se na compreensão do eixo critico do pensamento bergsoniano. Com efei­to, como teremos oportunidade de explicitar mais adiante, o objeto da ação mecânica é o fisico-inerte, a matéria considerada na sua configuração espacial. A matemática, como desdobramento teórico da ação mecânica, pensa o seu objeto como espacial e inerte. Aí está portanto uma conseqüência da relação sujeito-objeto na modalida­de da inteligência que repercutirá no plano ontológico, quando a estrutura desta relação for tomada pela filosofia clássica como tese metafísica. Não apenas a técnica encerra a matematicidade como princípio constitutivo de ação material como também as ciências se modelarão sobre a matematicidade ao visarem teoricamente à maté­ria que já lhes é dada como objeto da técnica. Existe uma relação de continuidade que faz com que o "pressentimento da matéria", está­gio vago da objetividade da inteligência, se prolongue no delinea­mento nítido da materialidade operado pela matemática e pelas ciên­cias que surgem "em torno dela". Esta postura diante da realidade, tradicionalmente tomada como a única relação possível entre sujeito e objeto, constitui no entanto um modo de atenção, que mais tarde caracterizaremos como intencionalidade pragmática: a atenção que o espírito presta à matéria (P.M.-85).

Na gênese descrita por Bergson, a ação está para a técnica assim como a linguagem está para a ciência. À variabilidade dos meios para se atingir um objetivo no campo da ação corresponde a mobilidade

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A LINGUAGEM DA FILOSOFIA

dos significados com os quais a ciência vai moldando as teorias so­bre a realidade. Mas entre as duas existe a passagem do "vago" ao "nítido", o que se mostra na progressiva consolidação do caráter exato da linguagem teórica. A linguagem, originariamente um meio "de estabelecer uma comunicação em vista de uma cooperação" (P .M.-86), acaba por tornar-se um sistema de signos precisos, pelo simples progresso na direção do aprofundamento da índole matemática da ciência. A variabilidade dos significados lingüísticos se deve ao cará­ter convencional das palavras, que não deve ser confundido com o caráter convencional da linguagem. "Cada palavra de nossa língua é efetivamente convencional, mas a linguagem não é uma convenção, e é tão natural ao homem falar quanto andar" (P.M.-86). A mobilida­de dos significados e o caráter convencional das palavras estão ins­critos na mediação que caracteriza a atividade inteligente, isto é, na invenção dos meios pelos quais se exerce a racionalidade instrumen­tal. Entre a oscilação total do significado e a precisão dos signos da linguagem teórica está o processo de consolidação pragmática dos significados, tendo em vista os critérios de comunicação e coopera­ção que regem a sociabilidade. O convencionalismo e a pragmatici­dade contribuem para realizar a tendência à fixidez dos significados. Isto se deve ao fato de que as palavras em princípio necessitam cor­responder ao recorte que a percepção e a inteligência operam no real. Para que este recorte cumpra a função de assegurar um relacio­namento estável com o real, é preciso que corresponda à identifica­ção de propriedades que permitam o pronto reconhecimento das virtualidades de ação, ou seja, à ordem da realidade. É assim que a linguagem adquire um caráter diretamente instrumental: "prescre­ve", isto é, faz apelo à ação imediata; ou "descreve", assinala coisas ou propriedades com vistas à ação iminente (P.M.-86). A origem da consolidação dos significados e da cristalização das palavras está pois na necessidade prática de convenção. Uma vez recortado o real e identificadas as coisas e propriedades, a palavra será a mesma sem­pre que a ação requerida for a mesma. É portanto a atividade que determina a cristalização convencional dos significados. Quando a linguagem teórica superar as oscilações imediatamente presentes no universo da práxis, ela prolongará esta tendência à fixidez e à unifor­midade, chegando à elaboração de um sistema de signos precisos. Esta fixação dos significados não tem a ver apenas com as palavras, mas também com as idéias. Uma vez que o recorte da realidade é elaborado pela percepção e pela inteligência, haverá sempre um dis­curso "mental" que corresponderá a este recorte. Por isto tanto as

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INTRODUÇÃO

palavras como as idéias têm origem na esfera da atividade: o homem pensa em virtude das necessidades do seu agir.

A mobilidade dos significados, figura lingüística da mediação da atividade inteligente, faz com que se conserve entretanto um interstício em que é possível que se insira a negação da instrumen­talidade da linguagem. O espaço de reflexão que se instaura entre a representação e a ação, entre a percepção e a nomeação das coisas possibilita a gênese dos significados não diretamente utilitários. Este espaço de reflexão não é outra coisa senão a franja instintiva/intui­tiva que rodeia a inteligência, sobre a qual nos estenderemos mais adiante. Foi este resíduo intuitivo que "deu nascimento à poesia, depois à prosa, e converteu em instrumentos de arte as palavras que antes eram apenas sinais: foi sobretudo através dos gregos que este milagre se realizou" (P.M.-87). Este suplemento significativo não muda, contudo, a estrutura da linguagem e não revoga seu caráter instrumental: apenas tira proveito da mobilidade originária das sig­nificações. Tal uso da linguagem redunda em eleger como virtude o caráter vago que possuem as palavras antes de serem adaptadas à racionalidade instrumental nos planos da ação e da ciência. Esta adaptação deriva de outra, mais geral, do espírito à matéria. Ora, diante da importância vital e social da racionalidade instrumental, o discurso da arte não se põe com a força de um paradigma. Assim, a essência intelectual da linguagem prevalece quando da constituição do discurso filosófico na Grécia. Foi portanto o recorte da linguagem comum, aquele elaborado sob o critério da atividade prática, que se ofereceu primeiramente como base para a invenção do discurso filo­sófico. "Um Platão, um Aristóteles adotam o recorte da realidade que encontram já pronto na linguagem: 'dialética', dialegein, dialegestai, significa ao mesmo tempo 'diálogo' e 'distribuição'; uma dialética como a de Platão era ao mesmo tempo uma conversação em que se procurava o acordo sobre o sentido de uma palavra e uma repartição das coisas segundo as indicações da linguagem" (P.M.-88). O acordo e a distribuição do sentido aparecem portanto como a maneira pró­pria que tem o discurso filosófico para chegar à verdade. Esta é en­tendida portanto como a fixação de significados e a filosofia, ao lado da ciência e do senso comum, aparece como mais uma atividade destinada a superar a mobilidade dos significados. Isto determina a forma do discurso filosófico e ao mesmo tempo institui o culto da Forma como característica do pensamento filosófico. Quanto à sua forma, o discurso filosófico aparece como articulado pela inteligên-

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A LINGUAGEM DA FILOSOFIA

cia; ao mesmo tempo, institui como objeto privilegiado a hipóstase da tendência à fIXação do significado, própria da inteligência: a For­ma ou Essência são vistas pela filosofia como o ideal ou o paradigma do pensamento e da linguagem, que estariam, doravante, em condi­ções de organizar suas estruturas a partir da realidade definitiva­mente articulada no mundo das idéias. A dialética é a tentativa de fazer com que o resultado do discurso reproduza, tanto quanto pos­sível, a articulação das formas eternas. Com este procedimento a inteligência projeta no plano do absoluto a sua função unificadora, originalmente de caráter prático.

A origem da Metafísica está assim associada à objetivação platô­nica da exigência intelectual de fixação de sentido. Esta relação de continuidade entre o pragmatismo da inteligência e as característi­cas da especulação filosófica determinou a feição da linguagem da filosofia. Na raiz desta atitude está a recusa da oscilação do significa­do e da mobilidade dos signos. Mas estas duas recusas podem ser vistas como subsidiárias da adoção dos critérios de objetividade da inteligência. Isto significa que o discurso filosófico se constitui no interior da esfera da atividade, a mesma que já englobava os discur­sos do senso comum e da ciência. É claro que os discursos da ciência e da filosofia não estão diretamente submetidos às mesmas injunções que pesam sobre o discurso do senso comum, preso imediatamente aos requisitos da ação. Como diz Bergson, ciência e filosofia são for­mas de "pensamento solitário", ao passo que a organização das ações vincula-se às formas sociais de pensamento (P.M.-88). Ainda assim, a linguagem continua expressando o pensamento solitário nas for­mas do pensamento "em comum", uma vez que esta modalidade de expressão é constitutiva da linguagem. Como a ciência é o desdobra­mento teórico da ação e visa em última análise ao aperfeiçoamento de suas condições de possibilidade, esta continuidade não trai a vocação do pensamento cientifico. No caso da filosofia, entretanto, os parâmetros de expressão e as regras de constituição do discurso estarão em oposição com o objeto. A situação da filosofia em sua origem determina pois a questão, nunca convenientemente tratada no pensamento tradicional, da adequação entre o conteúdo e os meios de expressão. Todos os problemas e impasses do pensamento filosófico derivam desta relação, que entretanto nunca foi pensada em si mesma, pois, para Bergson, salvo algumas intuições que fica­ram por desenvolver, a filosofia nunca questionou com rigor e radi­calidade os critérios da objetividade da inteligência e, conseqüente-

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INTRODUÇÃO

mente, nunca duvidou seriamente de sua linguagem. O resultado disto é que a consolidação histórica desta linguagem acabou inver­tendo a relação natural entre linguagem e pensamento. A exigência de se chegar a conceitos, etapa lógica da fixação de significados, faz com que pensemos já a partir de conceitos. Tanto isto é verdadeiro que a inteligência, na sua acepção geral, pode ser definida como a "faculdade de organizar 'razoavelmente' os conceitos e manejar con­venientemente as palavras" (P.M.-89). A crítica filosófica é um exem­plo deste pensamento que parte dos conceitos para chegar aos con­ceitos, isto é, que trabalha unicamente com o exame das possibilida­des de articulação conceitual, sem questionar a gênese dos conceitos e sua adequação à realidade que deveriam representar. Nisto a filo­sofia é encorajada pela definição de inteligência em sentido estrito, "função matemática do espírito" (P.M.-89J, especializada no conhe­cimento teórico da matéria.

O fascínio que a tendência para a fixação do sentido exerce sobre o saber filosófico tem a ver com a vocação profunda da percepção e da inteligência para a estabilidade. Com efeito, enquanto faculdades que governam o relacionamento prático com o mundo, percepção e inteligência devem cumprir primordialmente funções sociais e vi­tais; nada mais natural do que inserir neste relacionamento o grau de uniformidade e de estabilidade necessário ao bom desempenho das ações e do trabalho em comum, garantindo assim os beneficios da inserção de todos os individuos na sociabilidade que lhes garante a realização dos objetivos práticos. O equilíbrio assim conseguido define a situação natural do homem no mundo. Quando o espírito volta sua atenção para questões desvinculadas desta situação natu­ral, manifesta-se a tendência de estender ao exame destas questões as formas de pensamento já empregadas na esfera da práxis. Isto significa, mais ou menos indiretamente, assumir a continuidade entre a percepção, a ciência e a filosofia, como se a diferença entre estas três formas de contato com a realidade fosse apenas de grau de com­plexidade. O que está em questão, na verdade, é a essência da atitu­de filosófica, da qual decorreria a constituição da linguagem da filo­sofia. É preciso portanto que a crítica das filosofias supere a dimen­são do remanejamento conceitual e interrogue a própria diferença que deveria existir entre a objetividade da inteligência e a filosofia. Para que isto seja feito é preciso que se examine o que Bergson de­nomina de maneira geral o simbolismo da linguagem e o propósito platônico de superar a mobilidade dos significados. Isto permitirá

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A LINGUAGEM DA FILOSOFIA

avaliar o teor expressivo do discurso filosófico constituído na tradi­ção e pensar o problema da adequação entre o poder expressivo ·e o conteúdo a ser expresso quando tematizamos o objeto da filosofia na sua diferença específica. A objetividade da inteligência, pela sua ín­dole compatível com o espacial e o fisico-inerte, privilegia natural­mente a atenção à materialidade. A adaptação das palaVras à expres­são da articulação espacial é a principal questão que se apresenta para a crítica do discurso filosófico.

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Essa adaptação é natural e deriva do convencionalismo das pa­lavras. Comunicação e cooperação são as coordenadas pelas quais a linguagem se insere na práxis. Sendo a linguagem o instrumento mais imediato da inteligência, nela devem desenhar-se as características que definem a inteligência como a faculdade de sobrevivência, isto é, de adaptação. Por isto os signos que constituem a linguagem terão as duas virtudes práticas que os farão combinar-se com a espacial i­dade: descontinuidade e articulação. A primeira destas característi­cas faz com que a função designativa das palavras se amolde a um mundo de coisas distintas e distribuídas espacialmente. A segunda assegura a possibilidade de relacionar estas mesmas coisas sem que elas percam a identidade de elementos distintos e situados conven­cionalmente. Assim constituídos, os elementos e a forma do discurso cumprem uma dupla função: representam de maneira estável o mundo da consciência empírica, permitindo distinguir com nitidez as possibilidades de ação que melhor correspondam às exigências de integração entre o individuo e o seu meio; asseguram ao pensamen­to um meio de situar-se com eficiência e economia diante da com­plexidade do mundo externo, uma vez que possui nas palavras um acervo confiável de marcas suscetíveis de identificação intersubjeti­va. É a tentativa de fazer desta segurança prática a característica por excelência da especulação filosófica que leva a metafisica a recusar, desde sua origem, a mobilidade do significado. Tal mobilidade con­vive, originariamente, com o convencionalismo das palavras. A críti­ca deste desequilíbrio semântico faz com que a filosofia se afirme primeiramente como correção do discurso e fixação do sentido. Com isto a orientação do pensamento fica estreitamente ligada à catego­rização da linguagem. A determinação do sentido conceitual passa a ser o caminho para encontrar a verdade. Uma vez definida a Iingua-

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INTRODUÇÃO

gem da filosofia no interior do gênero conceitual. fica predetermina­da toda e qualquer investigação acerca do método filosófico. Mais do que isto. fica pré-delineado o próprio objeto da filosofia. uma vez que a projeção da atividade de fixação de sentido faz com que este objeto seja doravante procurado na esfera do imóvel e do imutável. à qual corresponde o sentido definitivamente fixado.

Há portanto uma correlação de forças na determinação da signi­ficação no interior do discurso filosófico. O fundamento da recusa da mobilidade dos significados se encontra no nível da práxis e é origi­nariamente uma atitude prática. Por outro lado. o telas da constitui­ção do discurso filosófico é o estabelecimento de significações abso­lutamente unívocas. Esta univocidade total corresponde ao anelo fi­losófico do encontro do objeto na sua forma eterna e imutável. Como vimos antes. práxis e teoria confluem para o mesmo objetivo; ape­nas. no plano do discurso teórico. ficam eliminados os obstáculos que são inerentes às ambigüidades propriamente constitutivas das significações no nível da ação. Pensamento. linguagem e ação exer­cem assim uma cumplicidade que tem sua origem profunda na te­leologia vital que governa o comportamento do homem. Entre o pensamento e a ação. a constituição dos significados na linguagem cumpre um papel mediador que tradicionalmente tem encorajado a visão do pensamento no interior das coordenadas da objetividade de inteligência. A atividade mediadora da linguagem se exerce em dupla direção: ao mesmo tempo em que expressam os pensamentos. as palavras os realimentam. configurando assim uma espécie de círculo conceitual que corresponde ao objetivo natural da fixação de senti­do. A crítica estrutural não pode romper esse círculo; somente a crí­tica genética pode proceder a uma arqueologia da atividade concei­tual e dispor o pensamento para uma avaliação da adequação entre expressão conceitual e realidade. no plano do pensamento filosófico. Por isto o método filosófico é inseparável de uma crítica desta espé­cie. que se concretiza positivamente numa teoria da vida. É esta a única maneira de percebermos por que a linguagem teórica desem­boca no simbolismo conceitual. O simbolismo conceitual é um sub­produto do simbolismo da linguagem. A crítica da linguagem da fi­losofia deve interrogar primeiramente a estrutura desta atividade simbólica.

Uma das teses fundamentais do pensamento de Bergson é que a linguagem da filosofia desfigura o objeto filosófico. E o faz porque traduz num discurso formalizado o fluxo da duração. O sentido desta

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l

A LINGUAGEM DA FILOSOFIA

constatação de caráter crítico é solidário de uma proposta positiva de teoria do conhecimento a1icerçada na intuição. Esta é portanto o motivo originário que orienta a crítica do discurso. O pensamento. atendendo às prerrogativas da inteligência. recusa a intuição e faz da análise do espaço uma figuração do conhecimento da duração. A linguagem na qual se exprime o conhecimento filosófico da realida­de é. pois. uma linguagem figurada. É necessário no entanto esclare­cer pelo menos dois aspectos dessa afirmação. Num certo sentido. toda linguagem é figurada pelo próprio caráter convencional das palavras e. em Bergson. como veremos na última parte deste traba­lho. as próprias idéias já são o pensamento figurado. Na verdade. a expressão linguagem figurada pressupõe uma referência a algo oposto à descontinuidade e articulação das figuras. Onde situar este refe­rente? A própria percepção já nos oferece um mundo recortado. partes dispostas para a articulação. A inteligência completa este trabalho. sobretudo no nível da simbolização. De maneira que. quando avalia­mos o poder designativo das palavras. não basta. no contexto berg­soniano. referirmo-nos à generalidade imanente aos nomes. como. por exemplo. em Locke. A designação é simbólica não apenas por agrupar coisas ou feixes de percepção sob uma única palavra. mas também por figurar espacialmente (descontínua e articuladamente) algo que em si é continuidade e fluência. Para a inteligência. as pa­lavras não remetem ao fluxo da duração. mas a algo que lhes é de certa forma homogêneo. posto que também de índole espacial. tam­bém descontínuo e articulado. Entre as palavras e as coisas. para a inteligência. existe a comunidade da forma. Por isso a filosofia pôde acreditar que o caminho da formalização leva à realidade em si. aos arquétipos das coisas. que SÓ poderiam ser formas puras. ou então conceitos que. enquanto formas lógicas. realizam a vocação formal que o pensamento crê detectar na aparência do devir. Esta vocação lógica já se encontra no nível das próprias idéias enquanto formas de pensamento. Não é evidentemente sob este aspecto que Bergson afirma que a linguagem da filosofia é figurada. Sendo a inteligência. com suas formas de apreensão do devir. já uma figuração. a lingua­gem figurada da filosofia deve ser remetida a um estrato mais pro­fundo. aquém da inteligência e das formas intelectuais. Esta referên­cia verdadeiramente ontológica da linguagem é que nos permite fa­lar em simbolismo. não no simples sentido de generalização. mas no sentido mais fundamental de heterogeneidade entre símbolo e sim­bolizado. A crítica da linguagem da filosofia passa pela constatação de que o meio de expressão é de natureza diversa do conteúdo a ser

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INTRODUÇÃO

expresso. Sendo a linguagem essencialmente intelectual, isto é, apta para expressar primordialmente (ou mesmo exclusivamente) con­teúdos de índole espacial, o fluxo da duração, enquanto oposto à articulação espacial, não pode ser expresso por palavras. Não há nenhuma comunidade entre conteúdo e expressão. Quando Bergson fala em simbolismo da linguagem devemos pois entender uma desnaturação completa daquilo que deveria ser o significado. Há uma distância que a princípio parece ser intransponível entre o objeto da filosofia e a sua linguagem.

Entre a espacialidade e a temporalidade a diferença é de nature­za: a filosofia de Bergson começa por esta constatação, quando reco­nhece nos dados imediatos da consciência algo que a Psicologia ja­mais poderia exprimir quantitativamente. Mas, podemos perguntar, não é próprio da expressão simbólica que o significante remeta a algo de natureza diversa dele mesmo? Poderíamos colocar a questão nes­tes termos se, para Bergson, o caminho que vai do pensamento à linguagem não tivesse também uma direção contrária e tão determi­nante quanto a primeira. Isto é, se o conceito não fosse tanto o re­sultado quanto igualmente o ponto de partida - se os meios de expressão não determinassem por sua vez o pensamento. Mas, como já vimos, o fascínio da articulação espacial faz com que as palavras determinem o pensamento, ao menos no plano da inteligência. Isto significa que não podemos identificar verdadeiramente o outro na relação símbolo/simbolizado. É como se o significado estivesse dado, avant la lettre, nas condições de possibilidade de expressão dos sig­nificantes. Se pudéssemos introduzir aqui a noção de motivação como tipo de relação entre significante e significado, diríamos que, no quadro de uma linguagem essencialmente intelectual, os signos e a articulação entre eles são motivados pela natureza espacial que a inteligência confere às palavras e ao discurso. Da mesma maneira, se nos referirmos à imitação para explicar a mesma relação, teremos de dizer que as palavras imitam não as coisas, ou cada coisa a que se referem, mas a descontinuidade e o ritmo dos elementos da percep­ção. Se é bem verdade, como afirma Todorov referindo-se aDubos e a outros autores do século XVIII, que já não podemos reconhecer na linguagem a motivação efetiva que estaria na origem das pala­vras', poderíamos dizer que em Bergson tal motivação situa-se na

L Todorov, T .. Teorias do Símbolo. Edições 70, Lisboa, 1979, p. 144.

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comunidade da índole espacial que liga as palavras e as coisas. O teor representativo das palavras deriva de que aquilo que elas repre­sentam já foi filtrado pela percepção e pela inteligência. A intencio­nalidade dos signos lingüísticos é solidária do fato de que a conven­ção que lhes deu origem provém da atitude natural da consciência empírica diante do mundo estruturado em termos perceptivos e in­telectuais. Num certo sentido, o impasse com que se defrontou Les-/ .. sing, segundo Todorov, retrata uma realidade: a linguagem imita, mas os signos são arbitrários. Como pode o arbitrário imitar a natu­reza?' Em termos bergsonianos, a explicação adviria de que é a inte­ligência a função estruturadora dos signos e é ela que delimita o cam­po onde se articularão significante e significado. É no interior deste campo já simbólico que se vão constituir as relações simbólicas, por assim dizer, de segunda ordem, ligando a realidade da inteligência aos signos da inteligência que a exprimem. Lessing procura diferen­ciar os signos da pintura dos signos da poesia argumentando que os primeiros se justapõem no espaço e os segundos se sucedem no tem­po: "Se é incontestável que os signos devem ter uma relação natural e simples com o objeto significado, então os signos justapostos não podem exprimir senão objetos justapostos ou compostos de elemen­tos justapostos, do mesmo modo que os signos sucessivos não po­dem traduzir senão objetos sucessivos'''. Mas o que nos autoriza a afirmar que as cores numa pintura se justapõem, ao passo que as palavras num poema se sucedem? Se pensarmos em termos de su­gestão significativa, ambas as coisas podem ocorrer tanto num qua­dro como numa composição poética. Aliás, seria próprio do caráter arbitrário dos signos poder exprimir tanto uma coisa como outra. Em qual dos dois casos estariam exprimindo a realidade? Se a represen­tação visa ao conhecimento, a resposta a esta última pergunta seria importante posto que decidiria acerca da autenticidade da expres­são. No contexto bergsoniano, haveria que decidir se alguma dessas duas expressões simbólicas é fiel ao conteúdo que deve ser expresso no discurso filosófico. Ora, sendo as palavras produtos da inteligên­cia, padecem da confusão, própria a esta faculdade, entre justaposi­ção e sucessão, pois para a inteligência sucessão é justaposição no tempo, considerado como meio vazio homogêneo. Assim, não é nem nos elementos simbólicos, nem na sua articulação num discurso que

2. Todorov, T., ob. cit., p. 148. 3. Lessing, Laocoon. citado in Todorov, T., ob. cit., p. 148.

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INTRODUÇÃO

deveremos procurar a expressão da realidade, se a consideramos como devir, se seu ser originário consiste no fluir.

A inteligência é um instrumento natural de interpretação do mundo. Isto significa que nosso contato com a realidade é natural­mente mediado por esquemas intelectuais que constituem as chaves de leitura da exterioridade. Com elas procuramos no mundo exterior as formas que correspondem às categorias próprias de nossa inteli­gência. Na medida em que isto requer nossa atenção voltada para a exterioridade, somos em conseqüência levados a adaptar a relação que mantemos conosco mesmos, com nossa interioridade, à dinâmi­ca das solicitações externas. Nos códigos da tradição filosófica, o su­jeito não poderia representar a autêntica interioridade pelo simples fato de que isto fugiria aos requisitos da relação com o mundo da consciência pragmática. A representação da interioridade é, então, habitualmente, apenas o lado subjetivo da construção intelectual do mundo prático ou a intencionalidade pragmática. A consciência in­telectual nos põe na exterioridade porque esta é o meio em que o conjunto de nossas ações constitui um Eu que encontra nelas o seu sentido. Assim, a subjetividade que se estrutura em termos de inte­ligência é a representação externa da interioridade. O caráter natural

. da interpretação intelectual do mundo faz com que a totalidade do real, aí incluída a consciência, seja dada em termos de exterioridade. Somos por natureza exteriores a nós mesmos para que não haja heterogeneidade na nossa relação com o mundo. Ora, isto nos per­mite compreender que o sentido de nossa apreensão de toda e qual­quer realidade, seja ele em termos de percepção, seja de linguagem, tenha na exterioridade a sua chave principal. Por isso, como já assi­nalamos aqui, a margem de reflexão que a inteligência se dá para projetar-se no exterior serve apenas como impulso necessário para que a subjetividade se situe fora de si. Eis por que não se pode dizer aqui, como em Leibniz, que existe uma reciprocidade expressiva entre in­terioridade e exterioridade. No plano da inteligência, esta oposição é ilusória e a harmonia não se constitui através da interexpressão dos opostos, mas de uma homogeneidade fundamental entre o que nos habituamos a denominar interioridade e exterioridade. Isto nos mostra que o sentido das palavras está primordialmente a serviço da expressão da exterioridade e que nas palavras não se projeta o espí­rito naquilo que intimamente o definiria. Assim, a carga significativa das palavras está originariamente vinculada às virtudes práticas da linguagem. A impossibilidade de encontrar, em princípio, uma di-

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A LINGUAGEM DA FILOSOFIA

mensão interior da linguagem repercute de maneira drástica na cons­tituição da linguagem da filosofia, pois, para Bergson, a especulação filosófica segue a direção oposta da intencionalidade pragmática da consciência. Se a relação entre significante e significado se estrutura inteiramente no plano da exterioridade, como poderia a linguagem expressar a qualidade interna do real, objeto da filosofia? Dito de maneira mais direta, que tipo de discurso pode propor à filosofia uma teoria do conhecimento que busca o encontro entre o pensa­mento e o objeto na modalidade da intuição?

A questão da linguagem da filosofia pode ser colocada como a da possibilidade de se encontrar o símbolo filosófico. A oposição entre inteligência e intuição traz evidentemente como conseqüência a re­cusa, por parte da filosofia, do símbolo conceitual. Mas este símbolo representa apenas a vocação natural da linguagem levada a um limi­te extremo, o da linguagem teórica. Não há como retirar de qualquer discurso a característica simbólica intrínseca à linguagem, posto que já é intrínseca ao próprio pensamento no plano da inteligência. O compromisso entre a discursividade e o símbolo, constituído no pla­no exterior da linguagem, impede que o discurso filosófico venha a possuir, em princípio, qualquer teor de expressividade, pois para isto seria preciso que o exterior expressasse o interior, ou que a tradução do tempo em espaço guardasse alguma autenticidade. De que ma­neira se pode, então, falar de uma relação entre intuição e discurso filosófico?

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O convencionalismo das palavras faz com que o teor simbólico da linguagem seja governado em princípio pelas necessidades práti­cas. A linguagem deve descrever situações e prescrever ações. Se nos remetemos à distinção de Todorov entre signos arbitrários e motiva­dos, procurando pensá-la no contexto bergsoniano, poderemos che­gar à seguinte situação. Sendo as palavras convencionais, toda desig­nação é arbitrária. Neste sentido, o simbolismo da linguagem se fun­da na arbitrariedade, já que não é possível descobrir para a maior parte das palavras nenhuma relação natural com aquilo que ela sim­boliza. De outro lado, sendo a linguagem natural, este simbolismo é governado pelas necessidades práticas e, neste plano, os signos são motivados por tais necessidades. São os caracteres descritivo e pres-

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INTRODUÇÃO

critivo da linguagem que motivam a cunhagem das significações, embora cada uma delas seja arbitrária quando focalizada sob o pris­ma da relação palavra/ coisa ou palavra/ ação. O caráter de símbolo arbitrário das palavras exprime-se para Bergson principalmente atra­vés de seu poder de generalidade significativa. Isto se explica pelo objetivo que possui no filósofo a análise da linguagem: a crítica da conceitualização. Interessa-nos sobretudo notar que o símbolo pode ser visto ao mesmo tempo sob dois aspectos: arbitrário (convencio­nal) e natural (necessário). Pois se cada signo é arbitrário, é da natu­reza da linguagem simbolizar. Ora, se o sentido de cada palavra é arbitrariamente estabelecido, não existe o que se poderia chamar de sentido próprio como o grau zero da significação. Qualquer palavra é metafórica e, portanto, qualquer palavra é um conceito em poten­cial. A linguagem se define como ato metafórico e é, de alguma maneira, a intenção deste ato que vai servir para distinguir as fun­ções da linguagem.

Como a linguagem se define pela instrumentalidade, o ato meta­fórico possui em princípio o telos da fixação de sentido. Dentro des­tes limites, a expressão é o que resulta da intersecção entre sociabi­lidade e comunicação. Nesta perspectiva, a função comunicativa, dividida em descrição e prescrição, é a única função da linguagem. No plano reflexivo, ao constatarmos que a expressão comunicativa de ordem utilitária não esgota as possibilidades do dizível, vemos então aparecer uma diferença entre o dizível e o exprimível que permitirá pensar o símbolo num horizonte maior do que o da instru­mentalidade. É a função fabuladora da inteligência, mencionada no Deux Sources e que abordaremos na última parte deste trabalho, que permitirá pensar este outro estatuto do símbolo. Nele, a motivação expressiva já não será simplesmente a nomeação e a ordenação das coisas na esfera da intencionalidade pragmática, mas a subjetivida­de, parcialmente desligada do caráter mais imediato das necessida­des práticas, atuará como fonte de estabelecimento de significações. Esta reflexão de inteligência, que é ainda apenas uma suspeita de interioridade, sem a dimensão metafisica do acesso à Presença, pres­supõe no entanto uma mobilidade dos significados ou um excedente de significação, que já extravasam o âmbito da pura instrumentali­dade. No entanto, trata-se apenas da dimensão subjetiva da objeti­vidade de inteligência: não é ainda a dimensão em que a reflexão, ao coincidir com a intuição, se dará como expressão da Totalidade ou da temporalidade subjetiv%bjetiva. Não se trata de opor o vinculo

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A LINGUAGEM DA FILOSOFIA

expressivo que une as coisas e as palavras a outro vinculo que ligaria as palavras à subjetividade: a expressão subjetiva da inteligência ain­da não está totalmente liberada das necessidades práticas, pois con­tinua prevalecendo o regime da necessidade quando a inteligência trabalha com seu próprio excedente de significação. Isto significa apenas que, como é evidente, no domínio da inteligência não se supera a instrumentalidade da linguagem.

U ma vez que a linguagem da filosofia implicaria tal superação, devemos buscar algumas indicações desta possibilidade em Berg­sono Se nos remetemos a alguns aspectos da semi ótica agostiniana, tal como é exposta por Todorov"', vemos que a relação entre os signos e as coisas pode ser pensada em dois contextos: o da significação ou designação e o da comunicação. "Numa palavra, tudo o que é perce­bido, não pelo ouvido, mas pelo espírito, e que o espírito guarda em si próprio, chama-se dizível, exprimível. Quando a palavra sai da boca, não em relação a ela, mas porque significa qualquer coisa, chama-se dictio, expressão.'" Há algo de comum ao processo de significação e de designação e ao de comunicação: é o sentido, que, por assim di­zer, opera de maneira diferente em cada um dos casos. No plano do dizível ou do exprimível, o sentido é concebido e vivido, e em segui­da enunciado e compreendido. No plano da expressão, o sentido pertence à palavra independentemente de sua enunciação. A relação entre os dois contextos é, no entanto, mais complexa do que pode parecer à primeira vista já que, para Santo Agostinho, a designação pode vir a tornar-se um instrumento de comunicação, o que se torna visível quando inserimos a linguagem no contexto da sociabilidade. "Não podendo o homem construir uma sociedade sólida sem o re­curso à palavra, pela qual ele, de certo modo, transmite a sua alma e os seus pensamentos aos outros, a razão compreendeu que era necessário dar nomes às coisas, ou seja, certos sons dotados de sig­nificação, para que, já que não se podia perceber sensivelmente o espírito, os homens se servissem, para unir as suas almas, dos sen­tidos como intérpretes'." Cremos que se pode mostrar que a concep­ção bergsoniana da relação entre linguagem e expressão pode ser vista como derivada da limitação da teoria agostiniana implícita nes­te texto. Com efeito, a construção da sociabilidade pressupõe, para

4. Todorov, T., ob. cit., pp. 33 55. 5. Todorov, T., ob. cit., p. 34. 6. Santo Agostinho, Sobre a Ordem, citado in Todorov, T., oh. cit .. p. 35.

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INTRODUc;AO

Bergson, que os atos de significação ou designação se dêem total­mente subordinados ao contexto de comunicação, pois só assim a linguagem servirá como instrumento da práxis social. Para que uma tal subordinação ocorra, e para que se tome útil dar nomes às coisas, é preciso que a comunicação entre as "almas", de que fala Santo Agostinho, se dê num regime de exterioridade, em que o sentido esteja vinculado apenas à função comunicativa. A interpretação dos pensamentos se guia, neste caso, pelo critério seguro da referência material como fundadora de sentido. Neste regime se estabelece a fixação de sentido e o ato metafórico de designação se cristaliza em termos unívocos. No entanto, se assim se realiza a vocação própria da linguagem, a comunicação não esgota todas as possibilidades da desig­nação: prova-o a fabulação, que faz oscilar a fixação de sentido já no próprio âmbito da inteligência. Esta possibilidade "suplementar" de designação e de significação que a linguagem guarda na instância da subjetividade corresponde a certa defasagem entre o exprimível e a expressão, entre o dizível e o dito. Já vimos que, quando a inteligência reflete, a expressão efetiva mostra-se como um recorte do exprimível, o que deriva da arbitrariedade das palavras e da mobilidade primiti­va dos significados. Ora, assim como a intuição (conforme pretende­mos mostrar) encontra a gênese de sua efetividade como meio de conhecimento no espaço aberto pela reflexão de inteligência, que no entanto ainda é apenas uma interioridade externa, assim também a possibilidade da linguagem filosófica enquanto expressão da intui­ção aparece quando a mobilidade dos significados no nível dos atos de designação tomados em si mesmos pode ser vista a partir do as­pecto criador, isto é, a partir da possibilidade de atos metafóricos totalmente independentes do critério instrumental da linguagem. A constituição da linguagem da filosofia depende de a linguagem trair sua vocação pragmática. A linguagem da filosofia só pode se consti­tuir contra a linguagem tomada em seu sentido próprio.

É preciso, no entanto, prevenir um equívoco. O que comenta­mos acerca da relação entre o exprimível e a expressão não deve ser entendido como diferença apenas de grau entre as duas instâncias. Pois seria trair o bergsonismo acreditar que a expressão no seu nível pragmático é apenas um recorte quantitativo das possibilidades do exprimível. A expressão não é apenas o empobrecimento do expri­mível: é sua realização possível. O fato de que a linguagem da filoso­fia só possa ser pensada num registro em que a linguagem atuaria contra si mesma exprime a impossibilidade, constitutiva da lingua-

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A LINGUAGEM DA FIWSOFIA

gem, de a expressão vir a incorporar o exprimível. Neste sentido, o exprimível, os atos de designação e significação em si mesmos reve­lam tão-somente a possibilidade da metáfora como ato, e não ape­nas como consolidação pragmática de significação. Recuperar o ato designativo para aquém de seu telos natural, isto é, antes que o mo­vimento de significação se consuma na fixação de sentido, é a única possibilidade de expressão metafórica da intuição. Mas na medida em que há expressão há significado: o método da filosofia (como mostraremos na primeira parte) deve procurar um meio de evitar a cristalização metafórica (o conceito), pela conservação do movimen­to de significação, substituindo, através da multiplicidade metafóri­ca, o significado pela direção de significação. É neste sentido, mais primitivo mas também, de certa forma, mais dramático, que a lin­guagem da filosofia deve procurar recuperar a radicalidade intencio­nal do ato de designação: quando a intenção ainda não se compro­meteu com o telos a que está naturalmente dirigida. A grande dificul­dade, senão o impasse do método filosófico na instância do discurso, consiste em ter de capturar a linguagem antes que ela se tome, ple­namente, ela mesma.

Ora, se a linguagem plenamente realizada no seu teor natural consiste na designação instrumental, a linguagem incompletamente realizada consistirá na designação não instrumental. Dito de outra forma: se a linguagem realiza seu telos natural relativo à instrumen­talidade quando os atos de designação e de significação se dão no regime da exterioridade, a tentativa de superação da instrumentali­dade só poderá consistir em impedir que tal instrumentalidade se consolide a partir da intencionalidade pragmática da inteligência, fazendo com que a linguagem se detenha no seu movimento: fazen­do com que a interioridade deixe de ser apenas o impulso inicial para que os atos de designação se realizem na exterioridade e tome­-se o campo em que os atos metafóricos exprimam-se como tais, o que significa um início de expressão da interioridade. Esta deixa de ser um impulso a favor da exterioridade para tomar-se um impulso na direção de si, movimento antinatural de interiorização. Somente desta forma a conjunção entre intuição e reflexão pode apontar para alguma possibilidade de expressão. Por isto a arte, principalmente a IiterJ!.t~úsica, pode ser tomada como paradigma da filosofia: nela o telas da expressão não é a fixação do sentido unívoco, mas sim o movimento da subjetividade e da totalidade - da Realidade -surpreendido e capturado no registro de sua transição.

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o gênero conceitual é o que menos convém à linguagem da filo· sofia porque nele a consolidação dos significados se dá à custa do esquecimento da origem da designação, o ato metafórico no seu movimento de nomeação. Ocorre então a oposição entre a expressão cristalizada e o conteúdo fluente. A inaptidão do conceito deriva de sua índole contrária ao objeto da filosofia. Daí a estreita vinculação entre o problema do método e o problema da linguagem. Na primei­ra parte deste trabalho, tentaremos acompanhar o movimento de recusa da precisão conceitual (exatidão) que em Bergson é uma etapa importante da reflexão metodológica. Num primeiro momento, a crítica do conceito parece basear-se apenas na sua generalidade, o que poderia nos levar a entender que Bergson recusa o conceito porque este não alcança o individual na sua singularidade'. Mas esta característica na verdade apenas indica a imprecisão do conceito: se por um lado é verdade que este não exprime o individual, por outro lado ele não exprime tampouco a totalidade entendida como movi­mento. Isto se explica: a duração aparece como um movimento sin­gular na medida em que não é um movimento que possa ser defini­do pela simultaneidade das suas "partes". A sucessão orgânica da temporalidade torna este movimento, na sua generalidade, tão ine­fável quanto o individual. A singularidade aparece assim como uma propriedade da totalidade, e tal propriedade só pode ser autentica­mente compreendida quando tomamos o objeto da filosofia na uni­dade radical da sua singularidade: a temporalidade. O interstício entre o conceito e a coisa, que configura a "folga" do conhecimento e que aparece como um dos principais obstáculos metodológicos, deve ser fundamentalmente compreendido como a recusa da coincidência, da simpatia em sentido próprio, inerente ao conceito. A lógica do conhecimento de inteligência, que na linguagem se expressa no gê­nero conceitual, é conseqüência da "opção" ontológico-natural que se deu na origem do processo evolutivo: a recusa da intuiçâo. A se­gunda parte deste trabalho tentará indicar a via bergsoniana de reins­tauração do objeto da filosofia, mas o faremos incompletamente, isto é, atendo-nos apenas à etapa crítica da reinstauração deste objeto, que se configura como a avaliação de algumas teorias tradicionais do tempo. Esta via negativa escolhida para a abordagem da questão do Tempo como objeto da filosofia deriva diretamente de uma conse-

7. Acerca deste problema cf. Pariente, J. c.. Le Langageet 1'Individuel, Armand Colin. Paris, 1973, Capítulo I.

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A LINGUAGEM DA FILOSOFIA

qüência metodológica: a incompatibilidade entre discurso e tempo­ralidade, ou a impossibilidade de expressão da temporalidade.

Entendemos no entanto que, para Bergson, tal impossibilidade não faz calar a filosofia. À recusa do gênero conceitual corresponde a tentativa de constituir a linguagem da filosofia sobre o fundamento da sugestão significativa, que metodologicamente se exprime na multiplicidade confluente das metáforas. A linguagem pode sugerir aquilo que não lhe cabe expressar. O fato de que a expressão refere­-se, no discurso filosófico, a algo que, por inteiro, ela não poderia conter significativamente nos levou a procurar na idéia romântica de expressão do infinito no finito elementos que permitissem pensar, no registro bergsoniano, a relação altamente problemática entre o inefável e a sua expressão. Desta maneira repropusemos a questão central de nosso trabalho, a relação entre intuição e discurso filosó­fico em Bergson. Mas é preciso atentar para o fato de que a presença de elementos românticos no pensamento de Bergson, tema da ter­ceira parte de nosso trabalho, apresenta-se como a configuração de uma questão e não como a proposta de uma solução para o proble­ma da relação entre intuição e discurso filosófico. Acreditamos que alguns aspectos teóricos do Romantismo nos auxiliam a encontrar termos em que o problema pode ser proposto de forma mais clara e talvez com um alcance mais amplo; mas não cremos que isto permi­ta resolver a questão. Por guia, senão por consolo, ouçamos as pala­vras de Bergson: "Mas a verdade é que se trata, em filosofia e mesmo alhures, de encontrar o problema e conseqüentemente de apresentá­-lo, mais do que de resolvê-lo" (P.M.-51).

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INTmçAO E METOnO FILOSOFICO

1. FILOSOFIA E MÉTODO (I)

Talvez não haja maior lugar-comum do que dizer que o método se constitui tendo em vista o conhecimento verdadeiro. Mas a gene­ralidade de uma afirmação como esta encerra certos problemas que podem ganhar alguma nitidez se procurarmos aprofundar o aparen­te lugar-comum. A preocupação bergsoniana com o método filosó­fico passa certamente pelo questionamento das relações entre as condições metódicas do conhecimento e as respostas filosóficas aos problemas que historicamente se propõem aos vários autores. Este questionamento não se refere apenas ao percurso da reflexão neces­sário para solucionar o problema. mas envolve também um exame das condições em que um problema é apresentado. Talvez mais im­portante que a elaboração da solução seja a elaboração da própria pergunta. Veremos que grande parte da reflexão bergsoniana no que ela tem de positivo. de tético. está intimamente vinculada ã rejeição de certas formas de posição de problemas e mesmo à rejeição pura e simples de problemas considerados importantes na tradição filosó­fica. Já aqui portanto se insinua uma característica na concepção bergsoniana de método: método é algo que se vincula primordial­mente à elaboração de questões. Diríamos que o peso da originalida­de desta perspectiva é muito pequeno; que a atitude socrática de interrogação. que a dialética platônica. que a depuração psicológica e intelectual de um Descartes ou que a visão das relações entre sen­sibilidade e intelecto em Kant são indubitavelmente procedimentos metódicos de formulação de questões. na medida em que cada uma dessas perspectivas institui a interrogação e lhe desenha o contexto. Poderíamos até dizer que a própria rejeição de problemas aparece como eixo da reflexão ou como resultado principal no caso de Kant. na medida em que a delimitação do conhecimento teórico exclui a problemática metafísica do universo da objetividade. Mas precisa-

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I - INTUIÇÃO E MÉTODO FILOSÓFICO

mente as razões da exclusão, no caso de Kant, mostram que ela se assenta na separação de dois termos, cada um dos quais aceitos na sua sedimentação tradicional- e o que será verdadeiramente rejei­tado será a continuidade característica do conhecimento dos vários graus de ser no saber clássico. É contra esta maneira de entender ciência e filosofia - separação que retira seu próprio sentido da união que ela questiona - que se constrói o método bergsoniano. A rejei­ção de problemas - que é parte integrante do método - não se fundamenta numa separação de .. esferas" de conhecimento. Os pro­blemas dissolvidos na perspectiva metódica bergsoniana não o são por fazerem parte de uma região do saber interditada ao conheci­mento teórico. Não existem problemas que se situariam além de determinada fronteira do saber e que seriam em bloco definidos como inacessíveis à teoria. Os problemas são dissolvidos cada um na posi­ção de sua singularidade exatamente porque não subsistem como insolúveis enquanto plano racional vedado à abordagem teórica. Neste sentido negativo não existiria em Bergson separação entre o objetivo e o não objetivo que respeitasse a configuração dada dos problemas no campo teórico e no campo metafisico, tal como se dá em Kant. O que existe, e o que constitui característica essencial do método, é a consideração de cada questão na sua singularidade sem que ela seja situada e pensada num contexto - instituído a priori -de certa classe de conhecimentos possíveis'.

Ora, sendo assim, é impossível não deixar de notar que - pelo menos em princípio - se dissolve também a distinção entre meta­física e ciência. Se os dois diferentes contextos herdados da tradição não são mais respeitados, talvez se perca também com isto a pos­sibilidade de alojar as questões segundo critérios - de continuidade ou de separação - que assegurem a pertença das questões ao cam­po científico ou ao campo metafísico. Inclusive por nos ser negado

1. É neste sentido que o esforço reflexivo bergsoniano não é solidário de uma con­trapartida em que a positividade estaria ausente. Não existe o plano dos problemas insolúveis que a razão se obstina em propor, como em Kant. O exorcismo dos proble­mas se configura verdadeiramente como dissolução. Não há problema formulado positivamente que não possa ser resolvido por uma adequada abordagem metodoló­gica. Os problemas dos quais a positividade estaria ausente são os que se referem ao não ser- a uma concepção negativa do significado do vir-a-ser. "Este esforço exor· cizará alguns fantasmas de problemas que obcecam o metafísico, isto é, cada um de nós. Falo desses problemas angustiantes e insolúveis que não dizem respeito ao que é, que se referem mais ao que não é" (P.M.-134).

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1. FILOSOFIA E MfTODO (I)

por Bergson, logo de início, o critério cõmodo da experiência como fator de distinção. A experiência, a mostração, é critério de conheci­mento válido, não de demarcação entre ciência e metafísica, pois as duas devem apelar para a experiência e se constituir através dela'. Na verdade, veremos que a própria noção de experiência será repen­sada e alargada para que possa cumprir esta função. Por outro lado, em que pese a dissolução da separação tradicional. outra separação será instituída e é esta que vai definir as características metódicas das duas partes do saber. Será através dela que a intuição será erigida como método de conhecimento na metafísica. A própria separação constitui portanto uma questão a ser resolvida e talvez guarde uma anterioridade lógica em relação às questões particulares no interior dos dois tipos de conhecimento. É difícil solucionar esta questão de maneira separada do problema da precedência da metafísica, do problema tradicional da hierarquia dos graus de conhecimento. São freqüentes e incisivas as afirmações de Bergson acerca do equívoco que existe em atribuir precedência ao saber metafísico no sentido de que este iria "mais além" do que a ciência no conhecimento da mesma realidade. Ele insiste em que cada uma - ciência e metafísica _ atinge igual certeza e objetividade em seus respectivos domínios. O problema da instituição da separação entre metafísica e ciência é paralelo à diferenciação ontológica dos dois domínios'. Ainda assim, respeitada (tanto quanto possa ser - veremos que isto constitui problema) a especificidade de cada um dos campos do saber, a dife­renciação ontológica imporá que se pense ao menos o problema da precedência lógica - ou de direito - da metafísica. Na verdade o caráter incisivo das afirmações concernentes à igualdade de direitos, à certeza e à objetividade visa, polemicamente, de um lado à concep­ção clássica da hierarquização que repousa na continuidade e que dá à metafísica um estatuto teórico mais elevado em grau do que a ciên­cia - e que aparece na questão do fundamento; e de outro lado à concepção kantiana da separação que confere apenas ao conheci-

2. "A verdade é que uma existência só pode ser dada numa experiência. Esta expe­riência se chamará visão ou contato, percepção exterior em geral, se se trata de um objeto material; ela tomará o nome de intuição quando se tratar do espírito" (P.M.-126).

3. "Para resumir, queremos uma diferença de método, não admitimos uma diferen­ça de valor entre metafísica e ciência" (P.M.-122).

"Quer dizer que ciência e metafísica se diferenciarão pelo objeto e pelo método, mas se comunicarão na experiência" (P.M.-123).

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mento científico o estatuto de teoria. Visando estas concepções, Bergson propõe-se criticar na verdade a unidade do método que é correlata da unidade do saber. Da mesma forma que para os clássi­cos existe um único método modelado sobre um único paradigma (a matemática), para Kant a exclusão da metafísica do campo teórico é decorrente da delimitação do alcance do método transcendental. A metafísica não pode possuir um método porque a inversão coperni­cana fundamenta apenas o método que tenha como correlato o uni­verso fenomênico e o conhecimento relativo. De modo que a ausên­cia de método científico na metafísica é o preço da posição do abso­luto como objeto e correlativamente o triunfo do método no conhe­cimento teórico é solidário da relatividade do conhecimento. De qual­quer maneira, o pressuposto é que um único método é possível, já que não pode haver dois tipos diversos de conhecimento objetivo, o que equivaleria à presença de duas verdades no conhecimento. A separação bergsoniana dos domínios de conhecimento com igual direito à certeza rompe, pois, com o paradigma clássico e com o idealismo critico, na medida em que este restringe o alcance do pa­radigma em vez de substituí-lo, através da delimitação do campo teórico4•

Entretanto, podemos falar também de delimitação em Bergson, na medida em que a precisão metódica é efetivamente alcançada pelo dimensionamento rigoroso das condições de conhecimento do objeto a conhecer (P.M.-IOI). Esta delimitação, porém, não é efeti­vada a priori em relação à forma do conhecimento, não tem o cará­ter de elucidação de possibilidades 16gicas de objetividade, mas é a tentativa - aparentemente paradoxal - de singularizar o conceito, através do trabalho de aderência, de fazer aderir o modo de conhecer àquilo que é conhecido. Esta singularização do conceito, que deve servir para o conhecimento em geral, torna-se no limite a indistinção entre sujeito e objeto, na medida em que a intuição no seu pleno sentido é pura coincidência com o que é intuído". A recusa de man-

4. "A metafísica não é superior à ciência positiva; ela não vem, depois da ciência, considerar o mesmo objeto e obter um conhecimento mais alto. Supor entre elas esta relação. como faz a maior parte dos filósofos, é ser infiel a uma e a outra: à ciência condenando-a à relatividade; à metafísica, tornando-a um conhecimento hipotético e vago, já que a ciência terá necessariamente conhecido o objeto, antecipadamente, de maneira precisa e certa" (P.M.-123).

4a. Pariente, J. c., Le Langage et l'Individue!, A. ColiD, Paris, 1973.

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1. FILOSOFIA E MtrODO (I)

ter a prerrogativa tradicional da generalidade da forma de conheci­mento é por sua vez solidária da visão aguda do problema da ade­quação. A concepção da verdade como adequação entre sujeito e objeto é fundada, segundo Heidegger, na identificação platônica entre a verdade e a idéia e se explicita tanto mais fortemente na História da Filosofia quanto mais se concebe a busca e o encontro da verdade como processo do intelecto, que a partir de Aristóteles se toma o lugar dos inteligíveis e, portanto, a região da verdade. Isto atinge o ponto culminante na concepção cartesiana da instituição da adequação a partir da elucidação subjetiva das essências no plano das idéias en­quanto conteúdos do Ego cogito. Na medida em que esta adequação submete-se, na filosofia moderna, ao menos, a um método de desco­berta da verdade que se funda na reflexão entendida como elucidação das essências a partir de condições subjetivas (o fundamento é o Ego Cogito), tais condições de apreensão de conteúdos verdadeiros são inseparáveis das condições gerais de representação, através das quais as coisas adquirem estatuto de objeto e se dispõem para o conheci­mento. Somente assim a diversidade do real, submetida à identidade da res extensa, pode vir a submeter-se à identidade fundante da res cogitans. Daí a unidade de método e a unidade do saber. A adequa­ção é efetuada através da abstração, que em Descartes consiste na geometrização do mundo exterior. Para Bergson esta operação é re­dutora: identifica o diverso em benefício da universalidade e unifor­midade do conceito como símbolo. O resultado é o conhecimento simbólico. Daí a necessidade de reformular a adequação na direção inversa da universalidade e da uniformidade simbólicas para a ob­tenção do conhecimento reaf'.

Na concepção bergsoniana do método supõe-se, pois, que a ver­dade do conhecimento depende da adequação entendida como cer­ta homologia entre condições do conhecimento e objeto a conhecer. Isto faz com que o correlato ontológico do método passe a ser con­siderado de maneira diferente da filosofia tradicional. Adequação não significará mais certa correlação entre a forma do conhecimento (seja

s. A adequação foi tradicionalmente pensada, no caso da metafísica, como o acordo entre intelecto e conceito; excluída por prinCÍpio a experiência da gênese do conceito, este se tomará necessariamente vazio, pois o vazio é a única ligação que se estabelece diretamente entre a idéia e o geral. Daí Bergson qualificar a metafísica tradicional de "extrato fixo, seco, vazio, um sistema de idéias gerais e abstratas", transfiguração indevida das camadas superficiais de uma experiência mal compreendida (P.M.-IOS).

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ela real como em Platão e Aristóteles ou lógica como em Kant) e a estrutura do objeto, não importa se dependente ou não do sujeito. A adequação inscreve-se na perspectiva da precisão, tal como já vi­mos, e se configura pela aderência do conceito ao objeto, na pers­pectiva da singularidade do conceito. É desnecessário refutar qual­quer acusação de nominalismo que pudesse eventualmente ser feita a partir do 10 parágrafo da 1 a Introdução, porque aí Bergson afirma que a explicação científica preenche os requisitos de aderência no que se refere precisamente à explicação de um fato ou de um con­junto de fatos. A explicação científica, pelo menos enquanto ela não se transfigura em doutrina (e aí ela deixa de ser científica e passa a ser a metafísica implícita do cientista), não padece dos vicios da generalidade'. São as teorias filosófícas, as quais, embora concernen­tes aos fatos, não se constituem de forma aderente aos fatos, que possuem este vicio na medida em que a amplitude e a extrapolação são tidas como características da explicação filosófica. Nesse senti­do, a ciência pode ser um modelo para a filosofia na exata medida em que a própria filosofia (com seus vicios tradicionais) já não tiver sido por sua vez tomada como modelo. A adequação não pode ser pensada a partir da perspectiva da generalidade formal ou de síntese esquemática, pois nestes casos o conhecimento fícaria dependente de pressupostos que condicionam inelutavelmente a simbolização.

O método deve constituir, pois, maneiras de apreensão do real por via da adequação entre o conhecimento e o seu objeto sem pas­sar pela generalização e pela universalização formais. Historicamen­te, se procuramos em que apoiar ou de onde derivar esta atitude filosófica, a tarefa pode ser desconcertante. Pois se aparentemente esta perspectiva signifíca maior peso para o lado noemático do co­nhecimento, primado do correlato ontológico e ausência de consci­ência constituinte, o modelo do realismo aristotélico no entanto não satisfaz, uma vez que aí também o conhecimento se constitui a partir da categorização, existências formais que consubstanciam a realida­de empírica, e a partir de dualismos arquetípicos que tipificam o percurso da realidade (potência/ato - matéria/forma). De modo que o conteúdo crítico a partir do qual se vai constituir a perspectiva metódica bergsoniana não põe em xeque apenas a filosofia moder­na, dita da representação, mas também o pensamento antigo, na

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medida em que Bergson nele vê a prerrogativa da forma e a separa­ção entre forma e conteúdo.

Mas é também pela via do primado do objeto que se pode con­siderar a constituição da perspectiva metódica bergsoniana. Corro­boram isto em primeiro lugar a gênese explícita dos temas no desen­volvimento da obra e, em segundo lugar, afirmações do próprio Berg­sono Quanto ao nascimento dos temas, é interessante observar que no lo livro, Essai sur les Données Immédiates de la conscience, a inte­rioridade não é explicitamente tematizada como instância noética, mas como fluxo objetivo e desenrolar temporal que o método da Psicologia não consegue apreender. A elucidação incide sobre a tem­poralidade como essência do psíquico, mas nada é dito sobre o co­nhecimento da interioridade através dela mesma. Em Matiere et Mémoire, a critica do paralelismo psicofísico e do associacionismo leva à redescoberta da autonomia do espírito, mas a intuição não é explicitamente tematizada como faculdade ou possibilidade. Estes dois livros representam a descoberta da duração como estofo da realidade espiritual e material, ou seja, à descoberta de um objeto que até então esteve em contradição com os métodos aplicados para conhecê-lo. Serão as análises do instinto e da inteligência que abri­rão O campo de possibilidade para um tipo de conhecimento distinto do intelectual, e essas análises são realizadas na Evolução Criadora. A Introdução à MetaFzsica desenvolverá explicitamente o tema da intuição e questionará o método vinculado à intuição e ao conheci­mento metafísico. Quanto às afirmações de Bergson, só temos de nos referir ao texto tão freqüentemente citado da carta a Hoffding', no qual Bergson esclarece a precedência do tema da duração sobre o da intuição e no qual é posta como "deformante" uma interpreta­ção de sua filosofia que não leve em conta esta precedência. A dura­ção é considerada" o centro da doutrina", não só no sentido de ori­gem do movimento da reflexão, mas também como lugar de conflu­ência das diversas trajetórias que este movimento realiza: "O ponto de onde parti e para onde constantemente voltei". Ora, a duração é primeiramente o objeto: é o campo noemático que vai provocar a inflexão metódica da reflexão cujo resultado será a instauração da

7. Carta a H. Hõffding - Apêndice do livro de Hõffding sobre Bergson. "No meu entender, qualquer resumo dos meus pontos de vista os deformará no seu conjunto e os exporá, por isto mesmo, a muitas objeções, se não se coloca primeiramente e não volta sempre àquilo que considero como o centro de minha doutrina: a intuição da duração."

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intuição como método filosófico. Justifica-se portanto a explicitação relativamente tardia da intuição e a problematização do método vin­culada a ela. São os impasses decorrentes da inadequação, verdade última da adequação tal como foi tradicionalmente concebida. Como se configura em linhas gerais este impasse? O início da 1 a Introdução P.M. nos revela alguma coisa neste sentido.

1) Imprecisão das teorias filosóficas, quando contrapostas à ex­plicação científica. Vastidão e generalidade que captam um vazio, não um objeto, na medida em que visam ao objeto em geral, a partir de condições de representação e de conceptualização marcadas por pressupostos formais'.

2) Inadequação entre filosofia da evolução e paradigma matemá­tico (o caso Spencer). Tal inadequação deriva precisamente de que a adequação entre conhecimento e objeto em Spencer continua pas­sando pelo paradigma matemático. A abstração aparece como con­seqüência necessária: "Ele ainda procurava um ponto de apoio em generalidades vagas" (P.M.-I01).

3) Causa da inadequação: uma filosofia da evolução tem de pen­sar o tempo. " ... o tempo real, que desempenha papel de destaque em toda filosofia da evolução, escapa às matemáticas" (id.). Conse­qüentemente esta filosofia da evolução, tributária do paradigma matemático, não atinge o substrato do seu objeto. Não se trata ape­nas de considerar o tempo como uma das "idéias últimas da mecâ­nica", o que Spencer poderia ter feito. Ainda assim o tempo real permaneceria fora do horizonte especulativo, pois é exatamente o tempo enquanto idéia última da mecânica que não se compõe com uma filosofia do devir.

4) O "erro" de Spencer não é acidental, é constitutivo do movi­mento da especulação que se guia pelo paradigma da verdade mate­mática, ou seja, constitutivo da metafisica que consubstancia na Idéia o devir real. O erro de Spencer ilustra apenas um movimento que tem sua origem na instauração platônica da metafísica.

5) A instauração platônica da metafísica e principalmente o de­senvolvimento aristotélico da Filosofia das Formas respondem a uma

8. "Os sistemas filosóficos não se ajustam à realidade em qúe vivemos. São demasia­damente vastos ( ... ) um verdadeiro sistema é um conjunto de concepções tão abstra­tas e, conseqüentemente, tão vastas, que nele caberiam todos os possíveis e mesmo o impossível, ao lado do real" (P.M.-lOl).

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1. FILOSOFIA E MÉTODO (I)

necessidade das condições de representação que esquematizam e sim­bolizam o real desde a estrutura dos sentidos até a "estrutura do entendimento". A inteligência tem como função paralisar o devir, e a estrutura da linguagem é, neste sentido, o seu ptoduto mais acaba­do (simbolização). A simbolização da ciência, necessária e até válida, tem atrás de si a simbolização da metafísica, que não deveria e não poderia ser simbólica. Mas isto se explica na medida em que o inte­lecto é o órgão da explicação científica e da especulação metafísica. Encontramos aqui o fundamento naturalista da obsessão da unida­de de método e da unidade do saber (P.M.-103).

O impasse assim definido nos seus elementos desenha o hori­zonte da problemática do método. Percebe-se que a "descoberta" da duração se constitui como motor da reflexão que se ordenará em reflexão sobre o método de conhecimento filosófico. Mas as conse­qüências vão bem mais longe. "Ele (o entendimento) desvia o olhar da transição" (P.M.-103): a conjugação da "estrutura do entendimen­to" com a origem histórica da especulação metafísica propõe ao filó­sofo o problema das relações entre a destinação da inteligência e a liberdade da reflexão. A crítica da percepção e da linguagem, que deveria realizar ou ser a condição de realização da reflexão livre do espírito, acaba tornando-se a vítima da sua presa: pois esta crítica chega a resultados tais que acaba por hipostasiar numa imobilidade perfeita e absoluta a imobilidade relativa ou o início de imobilidade da percepção e da linguagem. A crítica da plurivocidade, da contradição aparente da chamada desordem do devir no nível da percepção não leva ao questionamento da simbolização do devir, mas a um apro­fundamento consciente desta simbolização'. O método nasce sob a égide da prerrogativa do universal. O método irá se constituir na direção do senso comum, não contra ele. " ... se ciência e senso co­mum estão de acordo, ... se a inteligência espontânea ou refletida descarta o tempo real ... " (P.M.-I03). O método irá sistematizar este desvio do olhar em relação à transição. Ela não será objeto de teoria ou, quando muito, fornecerá os materiais que, somente depois de transfigurados em algo que já não é a transição, constituirão objeto de teoria. O pensamento só se relacionará com o movente no nível da aparência. No nível da verdade ou da essência ele se relacionará

9. "Tratam a sucessão como uma coexistência falhada e a duração como uma priva­ção de eternidade- (P.M.-IOS).

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com Formas. Por trás do questionamento filosófico permanece o ftm­do inquestionado: a unicidade e a imobilidade do Ser. Então - e aqui chegamos às conseqüências que vão mais além do que uma simples modificação de postura metodológica - a reinstauração bergsoniana da questão do método inclui o questionamento dos próprios atributos tradicionais do ser e do sentido fundamental a que nos remetemos quando dizemos que uma coisa "é". "A metafí­sica nasceu no dia em que Zenão de Eléia assinalou as contradições inerentes ao movimento e à mudança ( ... ) Ultrapassar, contornar, por um trabalho intelectual mais e mais sutil, essas dificuldades le­vantadas pela representação intelectual do movimento e da mudan­ça, tal foi o principal esforço dos filósofos antigos e modernos" (P.M.-104). Tal foi também o grande pressuposto da constituição do méto­do filosófico. Dada a incompatibilidade entre Ser e Temporalidade, tal perspectiva metódica só podia resultar na representação do tem­po como obstáculo ao pleno conhecimento. "Nenhum (filósofo) buscou, com referência ao tempo, atributos positivos" (P.M.-105). O tempo introduz falha na plenitude do ser. Ora, o trabalho da reflexão bergsoniana pode ser definido como um caminho na direção da iden­tificação entre o ser e o tempo. Nada é, mas tudo devém ou se faz. É neste sentido, talvez bem mais radical do que se poderia supor a princípio, que se deve entender a ênfase no objeto ou a prerrogativa ontológica inclusa na reinstauração do método filosófico.

Mas se o(s) método(s) filosófico(s) tradicional(is) é elaborado em razão de um inquestionado que são os atributos do ser, é o próprio conjunto da problemática filosófica que se vê assim comprometido com este sentido fundamental da especulação. Os problemas antes de serem resolvidos são formulados a partir de um método e de um horizonte de especulação que já supõem este sentido. Por isto - e aqui reencontramos a questão inicial - a reinstauração do método, com tudo O que já vimos que ela implica, traz consigo também a necessidade de reposicionar os problemas, de reformulá-Ios e mes­mo de rejeitar aqueles que só têm significado no interior daquela direção especulativa que se trata de criticar e superar lO

• É a partir

10. Os atributos tradicionais do ser podem ser vistos como um invólucro inerte de uma realidade viva. Neste sentido, pensar o ser "Seria o mesmo que dissertar sobre o invólucro donde sairá a borboleta e pretender que a borboleta. voando, transforman­do-se. vivendo, tenha a sua razão de ser e sua perfeição na imutabilidade daquela película. Afastemos, ao contrário. o invólucro. Ubertemos a crisálida. Restituamos ao movimento sua mobilidade, à mudança sua fluidez. Quem sabe se 'os grandes proble-

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2. FILOSOFIA E MÉTODO (lI)

desta conjuntura teórica que a filosofia de Bergson pode se dar ao direito de considerar problemas filosóficos como falsos problemas e de recusar a insolubilidade e o caráter antinómico pela via da recusa de colocar os problemas (P.M.-I041l05).

O ponto de partida do método aparece como sendo então a cons­tatação do fundamento - a um tempo irreal e necessário - da con­cepção negativa do tempo e da salvação dos fenõmenos pela subtra­ção dos mesmos à temporalidade. Mas o ponto de partida do méto­do é também a constatação de que o correlato ontológico, por ser objetivo, não é estranho ao sujeito. Está no sujeito, ou antes, o sujei­to está nele. O resultado da crítica das teorias psicológicas não é principalmente mostrar a inadequação das teorias e dos métodos, é descobrir a duração, e descobri-Ia primeiramente na interioridade, na esfera do psíquico. Tal descoberta oferece a possibilidade de mostrar o objeto real de um método possível e constitui a primeira exigência da reinstauração do método filosófico, reinstauração a ser feita em razão da elucidação, em nós e fora de nós, do significado verdadeiro do ser: durar, passar, devir (P.M.-102).

2. FILOSOFIA E MÉTODO (lI)

A prerrogativa do objeto que vimos ser característica da perspec­tiva metódica aparentemente choca-se com as afirmações de Berg­son segundo as quais o objeto da metafisica é o espírito, ou princi­palmente o espírito e com a descoberta da duração na interiorida­de". No entanto, e levando em conta o que já dissemos acerca do caráter objetivo da apreensão da temporalidade da consciência, o fato de a interioridade se dispor primeiramente para a abordagem da duração tem um significado metodológico. A interioridade em prin­cípio se põe como uma direção entre outras, e o trabalho da reflexão em Evolução Criadora mostra que a duração pode ser metodicamen­te reencontrada fora do sujeito. O estudo da duração no nível da interioridade aparece então primeiramente como uma "escolha" do

mas' insolúveis não ficarão na película? Eles não diziam respeito nem ao movimento, nem à mudança, nem ao tempo, mas somente ao invólucro conceitual com o qual falsamente os confundíamos ou os tomávamos por equivalente" (P.M.-lOS).

11. "Assinalamos, pois, à metafísica um objeto limitado, principalmente o espírito, e um método especial, antes de tudo, a intuição" (P.M.-1l7),

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filósofol2. o método será primeiramente aplicado ao problema da liberdade e os resultados mostrarão que o próprio problema só existe em função de uma concepção espacializante do "fluxo da vida inte­rior". Trata-se de um exemplo de dissolução de problema de que falávamos mais atrás. É no plano da interioridade que se desenhará, primeiramente, a possibilidade da experiência do imediato. Mas se­rão apenas razões puramente fortuitas de escolha que determinaram que a interioridade fosse o plano em que o método de início se apli­caria? Na verdade existe uma outra razão de cunho mais teórico e que se liga à face polêmica da construção do método. Diante da aceitação praticamente universal, na época, da tese kantiana da re­latividade do conhecimento, Bergson crê encontrar pelo menos um ponto em que a apreensão do objeto escapa à relatividade: "Resulta­va de nossa análise ( ... ) que ao menos uma parte da realidade, nossa pessoa, pode ser atingida em sua pureza natural" (P.M.-Ill). Seria dificil entender tal resultado como completamente inesperado: na verdade, entre os sistemas materiais e o universo mental, uma dis­tinção, estabelecida pelo próprio "senso comum" (E.S. 83-84), já faz entrever, ao menos como questão, a diferença que será metodica­mente tematizada e que resultará na constatação de que a relação que se pode notar entre as duas instãncias é bem diferente de um paralelismo estrito. Diríamos que não é ingênua e fortuita, a partir daí, a escolha da duração interna para campo do primeiro ensaio metodológico. É desnecessário que se diga que isto não significa o primado do sujeito à maneira cartesiana: quando muito se pode di­zer, repetimos, que se trata de um ponto de partida metodológico sem a implicação metafisica que o ponto de partida do sujeito possui em Descartes. Conquanto não seja absolutamente fortuita, a escolha corresponde plenamente à acepção de direção metódica. De resto, esta direção já se encontrava prefigurada no trabalho do romancista que "sob a pressão da necessidade" se vê como que obrigado a res­tituir à vida interior a fluidez que a ciência se recusa a ver. A direção em que vai O romancista aponta para o concreto e o individual: trata­-se de, sem perder de vista esta concretude e a nitidez das diferenças singulares, tentar estabelecer "condições gerais" para que a filosofia,

12. P.M.-llO: "Tal foi a direção que assumimos. Muitas outras se abriram diante de nós, a partir do centro em que nos havíamos instalado para nos apossar da duração pura. Entretanto preferimos aquela, porque havíamos escolhido primeiramente, para experimentar nosso método, o problema da liberdade".

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2. Fn.osoFIA E MÉTODO (11)

a partir deste paradigma, possa apreender teoricamente aquilo que o romancista apreende na intersecção do imaginário com o reaJl'.

Seja como for, e em que pese a diferença fundamental em rela­ção a Descartes, a que aludimos há pouco, a instauração do método, na medida em que se dá também contra a tese geral kantiana da relatividade e do caráter mediato do conhecimento, traz em si, como componente importante, algo que se encontra inserido nos preceitos cartesianos: a depuração do espírito em relação aos hábitos e aos preconceitos. São estes os responsáveis pela formação dos falsos pro­blemas no decorrer da história do pensamento, bem como pelo en­caminhamento tortuoso das soluções dos verdadeiros. Neste sentido o fato de que o ensaio metódico tenha sido primeiramente efetuado sobre a interioridade porque o problema a ser examinado era a ques­tão da liberdade revela entre outras coisas que a descoberta da du­ração psicológica condiciona a reposição da questão do método na filosofia, uma vez que é esta descoberta que mostrará o caráter arti­ficial do "problema da liberdade". Tal problema é exemplo típico da solidariedade que existe entre os hábitos mentais e os pré-juízos his­tóricos e o método filosófico tradicional. O problema só existe por­que determinados pressupostos estabelecem, de maneira prévia à consideração dos fatos, a forma como o objeto psicológico se apre­sentará no contexto metodológico de abordagem. No caso, conside­rar os fatos significa considerar a experiência interna de maneira independente dos pressupostos formais. "Esta observação interna é falseada pelos hábitos que adquirimos" (P.M.-Ill). Impõe-se pois, como tarefa metódica, o despojamento dos hábitos e preconceitos. Isto não significa, como em Descartes, a recusa pura e simples da ciência. Significa antes uma compreensão aprofundada do modo de proceder da ciência e da vinculação deste procedimento à estrutura da inteligência, causa dos "erros" constitutivos de que falamos ante-

13. P.M.-IU: "O romancista e o moralista não tinham avançado, nessa direção, mais longe que o filósofo? Talvez; mas apenas parcialmente, sob a pressão da necessidade, é que haviam transposto o obstáculo; nenhum deles se tinha proposto a ir metodica­mente 'em busca do tempo perdido"'.

Seria o caso de se perguntar se não é possível pensar em Bergson a substituição do paradigma matematizante da fllosofia tradicional pelo paradigma da arte, o que é coisa totalmente diversa da acusação, já feita, de esteticização da filosofia. Ainda isto suporia que o método se constrói sobre algum paradigma, o que é questionável. De qualquer modo, o trabalho que o artista realiza relativamente à flexibilização inven­tiva da linguagem é algo a ser considerado na questão da expressão metafórica da intuição.

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riormente. O método supõe, pois, uma recuperação crítica da "figu­ra" e da "estrutura" do "invólucro" - palavras e conceitos -, que envolvem a realidade estudada", e que representam as "causas da relatividade do nosso conhecimento". É o caso de se aplicar aqui a frase de Berkeley que Bergson cita quando ilustra com este autor a aplicação do método de recuperação da intuição filosófica: "Levan­tamos a poeira e lamentamo-nos depois de não mais enxergar" (P.M.-62). O primeiro resultado do abandono dos preconceitos OCOrre quan­do somos levados a entender que o "fluxo de vida interior" como fato é bem diferente do esquema que dele nos apresentam as teorias psi­cológicas calcadas numa metafisica - explícita ou implícita - que pressupõe a identificação do fluxo da vida da consciência à descon­tinuidade de objetos no espaço. "Nossa pessoa nos aparece tal qual é 'em si' desde que abandonemos os hábitos contraídos para nossa melhor comodidade" (P.M.-IH). Este primeiro resultado reveste-se de uma importância epistemológica que o torna quase paradigmático: "Mas não seria assim em relação a outras realidades, talvez mesmo em relação a todas?" (P.M.-HI). Esta probabilidade fundamenta-se na identificação dos hábitos como adquiridos, levando a ver que a relatividade e a mediatidade características do conhecimento não são essenciais, mas acidentais: não é o objeto que se impõe a nós apenas numa fenomenalidade que esconde seu caráter "em si"; é a estrutura do conhecimento, enquanto dependente de hábitos adqui­ridos (embora fundamentados numa estrutura anterior da inteligên­cia), que determina tal relatividade. Na medida em que conhecer significa organizar dados dispersos segundo uma "estrutura do en­tendimento", tal prerrogativa da subjetividade vai resultar, para Berg­son, numa deformação da realidadels. Neste sentido o retorno às pró­prias coisas confunde-se com o abandono da atitude kantiana -algo mais do que a "superação" da filosofia de Kant. Na verdade o kantismo - como "filosofia geral" - gera atitudes teóricas e especu-

14. P.M.-lll: "É este o invólucro que é preciso recuperar para rasgá-lo. Mas só o recuperaremos considerando primeiramente sua figura e sua estrutura e, também, compreendendo sua destinação". Não é o caso, como em Descartes, de reinaugurar o saber: o que está constituído como ciência precisa, isto sim, ser compreendido a partir de seus fundamentos históricos e naturais.

15. P.M.-1l2: "( ... ) tais hábitos, transportados para o domínio da especulação, nos mostram uma realidade deformada ou reformada, em todo caso 'organizada', mas este arranjo não se impõe inelutavelmente a nós; ele vem de nós; se o fizemos, pode­mos desfazê-lo; e entramos então em contato direto com a realidade".

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2. FIWSOFIA E MfTODQ (lD

lativas que no seu conjunto configuram os preconceitos de que é preciso despojar-se. A "descoberta" da duração interna põe-se assim como origem do questionamento histórico que vai redundar no es­tabelecimento da ligação íntima, da continuidade existente entre as formas históricas da especulação, as figuras de teoria e a estrutural destinação da inteligência humana.

Por isto é que a crítica temática e a crítica histórica estão em continuidade na raiz do método bergsoniano. Esta continuidade baseia-se na analogia efetivamente estabelecida, ainda que não ex­plicitamente tematizada, entre senso comum, ciência e metafísica. Seguindo na mesma direção que a percepção, o conhecimento espe­culativo se torna dependente da mesma estrutura no nível do pensa­mento. Por isso as teorias metafísicas têm como meta a perfectibili­dade do equívoco suposto na analogia que mencionamos. Nem sem­pre, entretanto, manifesta-se o acordo entre o senso comum e a ciên­cia. Por vezes a visão espontânea daquilo que é indicado pela reali­dade aparente é contrariada pela interpretação científica dos fatos, e isto devido à crença no valor maior de uma visão metódica que iria aos fundamentos da aparência. O preconceito de uma perspectiva generalizante que subordina os fatos em vez de ser por eles engen­drada é por vezes a melhor definição das relações que realmente se estabelecem entre filosofia e ciência. O grande exemplo está na maneira como se estabelecem as relações entre filosofia e ciência na formulação e resolução do problema clássico da relação entre a alma e o corpo. O senso comum crê poder afirmar que o EU ultrapassa os limites do corpo no espaço pela percepção e no tempo pela memória e que isto indicaria uma diferença entre as duas instâncias e certa autonomia da consciência. Contra esta aparência, determinadas teo­rias psicológicas afirmam o paralelismo estrito entre o cerebral e o mental, vendo na pretensa autonomia da consciência apenas uma "fosforescência" que acompanharia o desenrolar dos estados cere­brais. Para isto baseia-se na solidariedade observável entre o físico e o psíquico, na dependência observável do mental em relação ao ce­rebral, valendo-se dos fatos constatados na psicopatologia e, por outro lado, na lei de conservação de energia que interdita qualquer acrés­cimo de conteúdo real na passagem da causa ao efeito l '. O que Berg­son vai procurar diferenciar é o paralelismo afirmado como tese e o

16. A Alma e o Corpo, Abril, pp. 84.85.

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paralelismo como resultado da observação dos fatos. No que respeita ao segundo ponto. é inquestionável a existência de uma solidarieda­de entre o físico e o psíquico: "Nossa consciência se esvai se respira­mos clorofórmio; exalta-se se bebemos álcool ou café. Uma ligeira intoxicação pode ocasionar perturbações profundas na inteligência. na sensibilidade e na vontade. Uma intoxicação durável. como as deixadas pelas doenças infecciosas. produzirá a alienação" (A Alma e o Corpo. Abril 84). Existe portanto uma relação; mas o paralelismo estrito não é a única maneira de concebê-la. Podemos também en­tender que a solidariedade observada não é suficiente para sustentar a tese do paralelismo: "Uma vestimenta é solidária do botão que a prende; ela cai se arrancamos os botões; oscila se o botão se move; rasga-se no caso de o botão ser demasiadamente pontudo; disto não se segue que cada detalhe do botão corresponda a um detalhe da roupa. nem que o botão seja o equivalente da roupa" (A Alma e o Corpo. Abril 86). Por que a observação da solidariedade transformou­-se em doutrina do paralelismo? A resposta nos indica um caso típi­co da relação viciosa entre ciência e metafísica.

O que ocorre é simplesmente a ausência de uma teoria filosófica da relação entre matéria e espírito que leve em conta os dados obser­vados pela ciência. Uma vez constatado que os fatos metodicamente observados pela ciência levam a supor uma relação caberia. segundo Bergson. à filosofia formular a teoria desta relação. Incorporando a experiência científica. deveria o filósofo cotejá-la com a experiência interna metodicamente desenvolvida e deste encontro surgiria um "foco de luz" que conduziria o filósofo na interpretação dos fatos. de modo a que a teoria fosse formulada a partir de uma avaliação em que os dados de observação externa e a experiência interna seriam adequadamente balanceados (A Alma e o Corpo. Abril 87). O que significa este dimensionamento equilibrado da observação externa e da experiência interna? Exatamente o equilíbrio que o método filosó­fico deve procurar para proporcionar uma experiência integral da realidade: o equilíbrio entre "dois centros de observação" que pode­ríamos explicitar nas seguintes etapas metódicas:

1) "Exercitando-se na observação interior. o filósofo deveria des­cer até o fundo de si mesmo" ( ... ). A observação interna. livre dos preconceitos do relativismo. pode alcançar o EU na sua pureza na­tural. na medida em que o sujeito coincide consigo mesmo. Neste sentido a volta para si mesmo tem condições de reencontrar a cons­ciência no seu ritmo próprio. reencontrar a duração psicológica ain-

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da que. neste plano. não haja como estabelecer esta duração da ma­neira como a ciência estabelece um fato. pois o sujeito. colado à sua própria fluidez. não tem como assumir a distância necessária para visar-se como objeto e ao mesmo tempo como fluxo absolutamente interno.

2) "( ... ) depois. retornando à superfície. seguir o movimento gra­dual pelo qual a consciência se distende. se estende. prepara-se para evoluir no espaço." Neste trajeto de retorno. o desaparecimento da coincidência inicial corresponderia a uma fixação progressiva do sustentáculo material da atividade consciente. através do qual pode­ríamos estabelecer mais nitidamente os contornos e os limites - o alcance - da relação de solidariedade entre a consciência e a maté­ria. Seria o processo de "materialização progressiva" da consciência visto de alguma forma a partir de sua gênese. A partir disto se teria uma "intuição vaga do que pode ser a inserção do espírito na maté­ria". o que significa que. sob certo aspecto. compatibilizar a expe­riência interna com a observação externa é perder algo da exatidão factual no sentido em que a ciência deve postulá-la. Isto é natural que aconteça. uma vez que a experiência da interioridade busca a coincidência com o "fluxo interior". que é totalmente diferente da articulação descontínua de elementos.

3) Mas por isto mesmo é necessário que a consideração rigorosa dos fatos. "corrigindo e completando o que a experiência interna poderia ter de defeituoso ou de insuficiente". retifique o método de observação interior. Tal retificação é a contrapartida da correção interpretativa que a experiência interna proporciona em relação aos dados da observação exterior. Desse modo se atinge o equilíbrio entre a concretude factual e a experiência que a consciência pode ter de si mesma. A concretude factual. por meio dessa retificação. assegura que a generalidade e a perfectibilidade da teoria metafísica não se alienem necessariamente. como acontece na metafísica tradicional. dos contornos efetivos da realidade. Por isto. assinala Bergson. uma tal teoria metafísica teria o caráter aproximativo. que a filosofia tra­dicionalmente recusou por acreditar que o definitivo e o absoluto deveriam ser suas marcas.

O equilíbrio assim conseguido. se ele se efetua pelo dimensiona­mento recíproco entre os dois "centros de observação". não deixa por isto de possuir um fundamento. algo do qual o conhecimento. fruto deste equilíbrio. tira sua feição própria. "( ... ) do interior teria

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vindo o primeiro impulso, à visão interior teríamos pedido o princi­pal esclarecimento; ( ... )": a experiência interna não deixa de se colo­car como instância fundadora do novo conhecimento. Mas esta fun­damentação não significa que os fatos serão acomodados a uma estrutura geral pré-formada no plano do pensamento puro. O que a experiência interna funda e dirige é a elaboração da visão equilibra­da que integrará o interior e o exterior. Há uma razão para que a instância da interioridade gere o impulso de acontecimento: o pro­blema da relação entre alma e corpo é um problema filosófico. O método de abordá-lo deve ser filosófico, mas a reinstauração bergso­niana do método supõe essencialmente que a filosofia integre na reflexão os resultados da ciência. Esta será uma característica distin­tiva da concepção bergsoniana da intuição como método da filosofia. É ela que permitirá que a teoria filosófica seja "flexível, perfectível, calcada no conjunto de fatos conhecidos" (A Alma e o Corpo, Abril 87).

Pelo próprio fato de ser a questão um problema filosófico, a ciên­cia "tinha o direito de esperar da filosofia" (ibid. 87) uma teoria. Mas a Metafisica, incapaz de considerar metodicamente os fatos na sua realidade efetiva, dispondo apenas de esquemas gerais formulados a priori, não estava evidentemente em condições de fornecer tal teo­ria. Como a ciência e o cientista não podem passar sem filosofia, a consideração metódica dos fatos que mostram a solidariedade entre a alma e o corpo transformou-se na doutrina do paralelismo. A ob­servação exterior, não sendo retificada pela experiência interna, ofe­receu à ciência a totalidade do material teórico. A direção para a qual esta totalidade apontava era a mesma da metafísica cartesiana. Essa coincidência tem, ela mesma, de resto, fundamentos metafísicos: o mecanicismo em Descartes não é apenas o método de conhecimen­to da física, é também uma doutrina, segundo a qual tudo o que pode ser conhecido se submete ao paradigma matemático". O para­lelismo, como teoria metafísica, já estaria em Descartes, embora como problema irresolvido. Em Spinoza e em Leibniz ele aparece clara­mente fundado em razões: identidade da substância ou harmonia preestabelecida. É bem verdade que os clássicos não afirmavam que

17. A Alma eo Corpo. Abril 88: "As descobertas que se seguiram ao Renascimento­principalmente as de Kepler e Galileu - haviam revelado a possibilidade de reduzir os problemas astronômicos e físicos a problemas de mecânica. Daí derivou a idéia geral de se representar a totalidade do universo material, inorganizado e organizado. como uma imensa máquina, submetida às leis matemáticas".

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2. FILOSOFIA E MtTODO (11)

a consciência era um reflexo dos movimentos materiais: a prerroga­tiva do pensamento, constitutiva desses sistemas, levava-os a afir­mar que os movimentos mecânicos é que traduzem o pensamento. Mas de qualquer modo o paralelismo estava estabelecido na sua for­ma, e o progresso científico aliado à ideologia mecanicista de um Helvetius ou de um Lamettrie18 fizeram com que o século XIX, ado­tando a forma do paralelismo, resolvesse o problema alterando -pela via da critica materialista da filosofia clássica operada no século XVIII - a ordem dos elementos da relação, de que resultou a con­cepção da consciência como reflexo dos movimentos materiais. O metafísico no qual o cientista se duplica quando erige a observação de fatos singulares em doutrina geral encontra, pois, no metafísico materialista o seu semelhante, e este encontro concede às conclu­sões da observação externa a força probatória de uma teoria geral, perfeita e acabada como são as da metafísica tradicional.

As considerações sobre o problema das relações entre a alma e o corpo mostram-nos uma característica importante do método, ao mesmo tempo em que indicam uma concepção da metafisica bas­tante distinta da tradicional. As duas coisas são absolutamente soli­dárias, na medida em que seria um contra-senso propor para a metafísica, concebida como ciência totalmente elaborada acima do plano factual, a incorporação crítica dos resultados que a ciência obtém no trabalho de observação dos fatos. As características da concepção bergsoniana de metafisica serão abordadas mais adiante. Baste-nos por enquanto assinalar algo que será desenvolvido poste­riormente: a solidariedade entre o metafisico materialista do século XVIII e o cientista positivo do século XIX é indicativa de uma conjun­ção, historicamente detectável, entre método filosófico e método científico, ambos tributários das exigências formalizantes da inteli­gência. Não deixa de ser interessante assinalar que é esta conjunção, esta quase coincidência de perspectivas gerais, o que verdadeiramente impede uma relação positiva e construtiva entre filosofia e ciência. É por se adequar tão bem a ser o pano de fundo do paralelismo cien-

18. A Alma e o Corpo, Abril 88-89: "De fato, através de todo o século XVIII podemos seguir os traços desta simplificação progressiva da metafísica cartesiana. Na medida em que ela se estreita, mais se infiltra numa fisiologia que, naturalmente, encontra nela uma filosofia muito apropriada para lhe dar a confiança em si própria de que ela necessita. E é assim que filósofos como Lamettrie, Helvetius, Charles Bonnet, Cabanis, cujas ligações com o cartesianismo são bem conhecidas, trouxeram para a ciência do século XIX o que ela poderia melhor utilizar da metafísica do século X\l11".

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tífico que o paralelismo como concepção metafísica não pode fun­dar-se nos fatos. É por seguir os mesmos pressupostos metodológicos que ciência e filosofia se separam e que a filosofia se fecha no domí­nio das idéias abstratas. E é por ter por paradigma geral a atividade altamente simbolizante desta metafísica abstrata que a ciência se vê impedida de fornecer à filosofia os fatos que esta poderia incorporar na sua reflexão. É ainda este talvez um reflexo tardio do preconceito da unidade do saber: pelo fato de estabelecerem a continuidade pe­las extremidades, pelos resultados, é que filosofia e ciência se vêem tão distanciadas no plano do desenvolvimento efetivo do trabalho de reflexão e de observação. Numa palavra, é porque não consideram o verdadeiro elemento que é comum a ambas: a experiência, diferen­temente metodizada em cada uma delas. Somente com o estabeleci­mento nítido da diferença metodológica é que ciência e filosofia po­derão compartilhar o campo da experiência integral da realidade19.

Resta-nos, do ponto de vista da elucidação das relações entre filosofia e método no que concerne à pertinência dos fatos e dos resultados científicos para o método filosófico, considerar uma no­ção que nos permitirá compreender um pouco melhor como Berg­son pensa a efetividade da presença do real enquanto metodicamen­te considerado pela filosofia: trata-se da noção de linhas de fatos. Esta noção é importante dentro do método porque será através dela que o filósofo oferecerá uma alternativa para o vicio fundamental da metafísica e a principal causa de sua imprecisão: a construção sistemática. Seja entendendo esta construção como a elucidação transcendental das possibilidades de conhecimento com vistas à edificação de um sistema formal, seja entendendo-a como o ques­tionamento prévio de problemas que, pela sua generalidade, ante­cedem as questões concretas, o filósofo procurará sempre primeira­mente o nível das generalidades e possibilidades, para em seguida passar, por descenso gradual ou mesmo dedutivamente, para as

19. A crítica da unidade metodológica que tem como correlato ontológico a unidade do real é a base em que se assenta algo que em Bergson podemos denominar crítica da noção de totalidade. Todas as manifestações a respeito do caráter simbólico da linguagem conceitual que escamoteia as diferenças podem convergir para esta crítica. A totalidade seria a suprema simbolização da realidade no sentido do desaparecimen~ to de todas as diferenças qualitativas, tidas como latentes, provisórias, implícitas etc. Do ponto de vista do saber, a construção sistemática em filosofia é a adoção da pers­pectiva simbólica da totalidade. Idéia de totalidade e sistema filosófico estão em es­treita consonância, como aparecerá plenamente nO idealismo alemão.

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realidades". Esta atitude deriva de um preconceito profundamente arraigado no método filosófico tal como tem sido praticado: ques­tões singulares devem sempre ser vistas como derivadas, tanto no sentido de que devem ser tratadas depois, como no sentido de que a solução delas dependeria da solução de questões mais gerais. A con­seqüência disto é que, no limite, haverá dedução geométrica, mas as questões serão tomadas não na sua efetividade, mas como elemen­tos abstratos num contexto ordenado dedutivamente. A isto a filoso­fia muitas vezes chama "rigor". A preocupação com questões prévias é uma inquietação lógica; a real inquietação filosófica manifesta-se no ato de lançar-se diretamente aos problemas para, no decorrer de sua formulação e possível solução, experimentar em ato a força e o alcance do conhecimento. Mas, embora não haja "princípio" do qual se possa deduzir a solução de um problema filosófico, também não há nenhum fato particular cuja compreensão isolada traga em si esta solução. Sendo assim, um balanço da experiência poderá nos mos­trar direções metódicas que encaminhem o questionamento2l• Qual delas escolher? Nenhuma delas permitirá a dedução da solução do problema proposto; em cada uma há grupos de fatos particulares cuja consideração aponta um determinado caminho para a reflexão. Conseqüentemente teremos de utilizar todas elas. Estamos, pois, em presença de variadas linhas de fatos, que constituem precisamente os conteúdos concretos a serem direcionados pela reflexão para uma visão crescente da solução, não mais antecipada em possibilidades formais ou em problemas prévios, mas encontrada na conjugação dos fatos e da reflexão. Com isto talvez se compreenda melhor o que foi dito anteriormente acerca da retificação mútua que operam entre si os "dois centros de observação" externo e interno. A teoria filosó-

20. "Freqüentemente, quando chega diante do problema da origem, da natureza e do destino do homem, ele passa ao largo para se dirigir a questões que julga mais importantes e das quais dependeria a solução daquelas: ele especula sobre a existên­cia em geral, sobre o possível e o real, sobre o tempo e o espaço, sobre a materialidade e a espiritualidade; depois ele descende, de grau em grau, para a consciência e a vida na essência das quais desejaria penetrar" (A Consciência e a Vida, Abril 70).

21. "Apenas, nas diversas regiões da experiência, creio perceber diferentes grupos de fatos dos quais cada um, sem fornecer-nos o conhecimento desejado, mostra-nos uma direção para encontrá-lo (. .. ). Cada uma, tomada separadamente, nos conduzirá a uma conclusão simplesmente provável; mas todas juntas pela sua convergência nos colocarão em presença de uma tal acumulação de pOSSibilidades que nos sentiremos, espero, no caminho da certeza" (lbid. 70).

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fica será o resultado deste trabalho, e a sua feição final não estará prefigurada em nenhuma reflexão prévia.

Por outro lado, a investigação metodicamente conduzida desta maneira não permitirá que fatos venham a ser indiferentemente alo­jados retrospectivamente nos vazios de uma concepção demasiada­mente geral. A teoria filosófica não é aquela que tem a possibilidade de conter fatos ou de explicar fatos por esquema a priori; ela é mol­dada pelos fatos interpretados à luz da reflexão efetuada com a expe­riência interna. O método filosófico não comporta a definição preli­minar de seu objeto, pois o objeto visado na filosofia bergsoniana, a duração, não pode ser contido nos limites do esquema conceitual. A teoria não realiza o objeto no plano do saber: ela tenta apreendê-lo sem pressupor uma identificação entre ser e saber no plano do inte­ligível". Por isto a construção do método filosófico em Bergson con­tém, por um lado, a crítica dos métodos filosóficos concebidos a partir da identificação do objeto (a verdade) com os instrumentos intelec­tuais de conhecimento, ou seja, a concepção da verdade na linha de continuidade em relação à estrutura e à destinação do entendimen­to. Os resultados históricos do método assim concebido vão sempre na direção de uma hipertrofia do conceito.

3. CRÍTICA DO MÉTODO FILOSÓFICO (I)

Já vimos mais atrás que crítica temática e crítica histórica não podem ser separadas em Bergson. É aqui o momento de explicitar e comprovar esta afirmação através de um exame da visão bergsonia­na do fundamento da atividade metafísica tradicional, em que se poderá, esperamos, verificar o encontro dos dois trajetos críticos. Precisemos aliás que este fundamento, tal como vamos encontrá-lo aqui, não tem propriamente o caráter positivo de fundação da verda­de; é antes o motor da atitude filosófica naquilo em que ela procura retificar e completar o conhecimento do senso comum e da ciência. O conhecimento, no que ele tem de mais elevado, é concebido sob

22. Por isto Thibaudet acha "natural" que urna filosofia da duração não comporte definições prévias. "Uma realidade que dura não pode estar realizada antes de ter durado, nem mesmo depois disso; ela realiza-se durando. Uma filosofia da duração não poderia pois fornecer uma idéia, uma imagem. um sentimento da duração a não ser por aproximações (, .. ) e sobretudo por um apelo à consciência, por uma convo­cação para tomar contato com a duração interna (, .. )" rrhibaudet, Le Bergsonisme, edição N. R. F., 1923. p. 19).

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3. CRITICA DO MtrODO FlLOSOFICO (I)

o modelo da percepção, ou seja, supõe-se que uma extensão indefi­nida da percepção nos daria uma apreensão direta do ser em si e veríamos a verdade com os olhos do espírito, tal como vemos os objetos materiais diante de nós. Portanto a diferença entre percep­ção e pensamento provém da impossibilidade de realizar o ideal do conhecimento direto, perceptivo. Esta impossibilidade, que se veri­fica concretamente na insuficiência da percepção tal como é consta­tada pelo pensamento, gera a necessidade de retificar e complemen­tar a percepção através do raciocínio, da generalização, da abstração, enfim leva-nos à necessidade de conceber aquilo que nossos sentidos não nos podem dar satisfatoriamente. A atitude filosófica nasce da constatação da insuficiência das faculdades de percepção (P.M.-145). A generalização e a concepção, que ela inclui, nascem da necessida­de de fundamentar a percepção - e da constatação de que isto não pode ser feito no nível da própria percepção. Daí, no caso dos filó­sofos pré-socráticos a quem denominamos fisicos, a transformação de um dos elementos do mundo percebido em princípio das coisas percebidas. Parmênides, no entanto, veio a infletir decisivamente a direção do pensamento quando mostrou que a própria idéia de trans­formação implicava uma concepção contraditória do ser. A partir daí não se põde mais encontrar na esfera da percepção o fundamento regulador da existência das coisas. Este fundamento passou a ser procurado no domínio das condições absolutas de existência que se tornaram então condições supra-sensíveis ou lógicas de compreensão da ordem cósmica. A partir daí a concepção da ordem e da verdade como condição da existência real criou a hierarquização que subor­dina, no plano do conhecimento, a realidade à verdade'. Daí apare­ceu como necessária a explicação das coisas através das idéias.

Por aí se poderia ver que à medida que a filosofía adquire pro­gressivamente consciência do método ou da necessidade de um mé­todo para conhecer o fundamento das existências, ela vai também progressivamente constituindo um campo transcendente ou formal como esfera própria do conhecimento filosófico. Como aquilo que faz com que as coisas sejam é o efetivamente real, a realidade em si passa a habitar a esfera do supra-sensível, restando para o plano do empírico "as sombras projetadas no tempo e no espaço pelas Idéias imutáveis e eternas" (P.M.-146).

23. "Pode-se então conceber uma ordem, uma harmonia e mais generalizadarnente uma verdade que se toma assim uma realidade" (P.M.-145).

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É assim que o método de conhecimento em Platão não procura­rá os meios de encontrar o princípio do mundo percebido no âmbito da própria realidade percebida, mas procederá a uma crítica da per­cepção". Dada a insuficiência e a contradição dos dados sensoriais apreendidos efetivamente, não é possível identificar conhecimento e percepção. Assim Sócrates critica, no Teeteto, a primeira definição de ciência proposta pelo interlocutor. Esta critica repousa em primeiro lugar na identificação protagórica entre percepção privada e verda­de, o que destrói a distinção entre conhecimento e ilusão; e em se­gundo lugar na apreciação da tese heraclitiana: a fluidez do sensível não permitiria o estabelecimento de padrões de percepção, conse­qüentemente não possibilitaria o discernimento de coisas, o que, de passagem, impede que associemos o conhecimento, mesmo no nível da crença, com a percepção, pois não haveria sequer percepção no sentido de identificação de objeto sensível. No entanto, a percepção, tal como Teeteto parece entendê-la a princípio, significaria certa per­manência de padrões estáveis no nível dos dados sensoriais. Se en­tendermos a doutrina heraclitiana como o enunciado de que as qua­lidades sensíveis resultam da instabilidade, mas não são elas mesmas instáveis completamente, então permanece a possibilidade da crença no valor da percepção, crença baseada na configuração de padrões perceptivos dentro da instabilidade fundamental das coisas. Ora, este heraclitismo menos radical praticamente se confunde com a crença do senso comum na permanência, ao menos relativa, dos objetos e de suas qualidades". Esta estabilidade relativa, no entanto, em nada vai alterar a afirmação socrática de que a sensação não é conhecimen­to precisamente porque a refutação da sensação como conhecimento independe do maior ou menor grau de estabilidade. Sensação e co­nhecimento são termos que se excluem por princípio: é a sensação enquanto tal que não é aceita como conhecimento, o qual terá de ser procurado em outro plano e definido como outra maneira de buscar

24. "A pedra que a um homem parece quente, a outro parece fria. Assim s6 podemos afirmar que ambos os juizos de percepção são verdadeiros se decidirmos que o que cada homem percebe é, para ele, privado; a pedra quente é percepção privada para o primeiro homem, assim como a pedra fria para o outro (. .. ). Mas não podemos ter um número indefinido de pedras fisicas privadas no mesmo lugar e ao mesmo tempo. Conseqüentemente a única maneira de tomar isto plausível é livrar·se da pedra física" (I. M. Crombie, Análisis de las Doctrinas de PIatan, vol. 11- Teoría dei Conocimiento y de la Naturaleza - ed. Alianza, 1979, pp. 13-14).

25. Acerca disto cf. Crombie, ob. cit., pp. 18·19.

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3. CRITICA DO MéTODO FILOSóFICO (I)

o objeto". Este segundo plano onde se busca o conhecimento não se encontrará, ainda, de resto, fora do âmbito da sensação, uma vez que consistirá na interpretação dela. O pensamento aí já está presen­te, e não apenas a consciência da sensação. A presença do pensa­mento significa, por outro lado, mais do que pensar naquilo que percebo: significa relacionar percepções e portanto utilizar, já aqui, algo não percebido para interpretar a percepção. A própria relação da percepção com a existência da coisa já se enquadra numa ativida­de deste tipo, pois é estabelecendo um complexo relacional baseado na interpretação dos dados sensoriais que nos colocamos diante do mundo exterior como diante de algo a que poderíamos chamar uma estrutura, algo que configura propriamente a nossa experiência sen­sível. A experiência sensível é a percepção de dados mais a avaliação de seu significado ou formulação de juízo. É o nível que Platão deno­mina doxa.

A percepção pode justificar a doxa, mas será em outro plano que deveremos buscar a infalibilidade do conhecimento. Do ponto de vista bergsoniano, a constituição da esfera do conhecimento como separada da percepção é talvez o dado mais importante. Pois isto significa que a filosofia não demarca apenas os limites da crença contraposta ao conhecimento verdadeiro, mas delimita também o campo de investigação e o lugar onde se há de procurar a verdade". A maneira como a percepção é considerada faz com que se busque nela algo contrário à sua própria natureza, ou seja, a natureza da verdade do objeto é passível de uma expectativa tal que o objeto verdadeiro já se prefigura como fora do domínio da percepção, ex­terna ou interna. É por isso que no Timeu (51-2) Platão assinala que

26. "Sua razão para recusar (a sensação) é essencialmente esta: o que os sentidos nos fornecem, estritamente, não é mais do que sensação e não conhecemos coisa alguma acerca do mundo apenas pela sensação, mas sim através da interpretação do seu significado" (Crombie, ob. cit., p. 21).

27. Nesse sentido, o argumento que Crombie relata como sendo a objeção que por vezes se faz a Platão (e que de resto, Crombie considera insuficiente) aproxima·se bastante da visão bergsoniana: "Platão assumiu que crer e conhecer seriam exercícios de duas faculdades distintas, cada urna das quais com o seu objeto próprio. Conse· qüentemente, procurou uma faculdade infalível e os objetos em relação aos quais ela plausivelmente se exerceria. U ma vez que nossas crenças acerca de coisas ordinárias podem sempre estar equivocadas, terão de ser inventados objetos especiais que pos­suam particular afinidade com a mente, como objetos do conhecimento" (Crombie, ob. cit., p. 41).

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o conhecimento plenamente racional tem por objeto universais que existem por si e cuja compreensão independe da percepção sensorial, da persuasão e da emoção. Isso precisamente porque o objeto do conhecimento pleno (epistéme) não está sujeito ao devir, e é captado pelo entendimento em termos de intuição intelectual (noesis). O que nos leva a concluir que não pode haver conhecimento, na plena acepção do termo, em relação a coisas fisicas, mas somente uma familiaridade com imagens (eikôn) que, em casos favoráveis, pode provocar uma crença confiável, uma vez que a imagem se baseia no objeto verdadeiro, sem que entretanto venhamos a possuí-lo intelec­tualmente quando destacamos alguns dos aspectos fugidios da ima­gem que fazemos dele. O diagrama da linha (Rep. 509 d ss) por sua vez tende a mostrar que a analogia pela qual somos levados a enten­der a relação entre dianoia e noesis baseia-se na relação - que Crom­bie acredita acessível ao senso comum - entre eikasia e aesthesis (imagens e coisas). Evidentemente a analogia só pode dizer respeito à ordem de grandeza do conhecimento tomada abstratamente, pois não há nenhuma proporção real entre os termos: a relação que a aesthesis mantém com os objetos visíveis não é a mesma que o en­tendimento mantém com o inteligível (noesis-eidos), mas indica que a relação de apreensão do real é o fundamento da analogia. Assim como a sombra é projetada pelo objeto, também o conhecimento hipotético no plano da dianoia é o reflexo matemático da intuição do não-hipotético (anhipotetos). O inteligível matemático é objeto do conhecimento discursivo na modalidade em que este ignora o fun­damento último do seu objeto". A dianoia é o conhecimento que toma por objeto, no plano inteligível, imagens inteligíveis de objetos

28. "Sabes, imagino, que os que se aplicam à geometria, à aritmética Ou às ciências deste gênero supõem o par e o ímpar, as figuras, três espécies de ângulos e outras coisas da mesma família para cada pesquisa diferente; que tendo admitido estas coi~ sas como se as conhecessem não se dignam dar as razões delas a si próprios ou a outrem, julgando que são claras a todos; C,.)." (Rep. 510c. - tfad. de J. Guinsburg. Difel, 1965, p. 100).

"Eu dizia, em conseqüência, que os objetos deste gênero são do domínio do inteli­gível, mas que, para chegar a conhecê-los, a alma é forçada a recorrer a hipóteses; que não procede então rumo a um princípio, porquanto não pode remontar além de suas hipóteses ( ... )." (Rep. 5lla. - trad. de J. Guinsburg, Difel, 1965, pp. 102·103).

"Compreende agora que entendo por segunda divisão do mundo inteligível a que a própria razão atinge pelo poder da dialética, formulando hipóteses que ela não con­sidera princípios, mas realmente hipóteses, isto é, pontos de partida e trampolins para elevar-se até o princípio universal que já não pressupõe condição alguma (".)." (Rep. 511b. - trad. de J. Guinsburg, Difel, 1965, p. 103).

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3. CRITICA DO MÉTODO FILOSÓFICO (I)

de que a noesis proporcionaria a visão intelectual direta. A imagem matemática difere da imagem simplesmente sensível por se dar no espaço abstrato ou no tempo abstrato; por isso as entidades matemá­ticas ocupam o lugar intermediário entre o conhecimento sensível e a noesis. Talvez seja possível dizer que a afirmação bergsoniana de que a especulação filosófica preenche a insuficiência da percepção que de fato é falha, mas que poderia ter uma extensão indefinida, tem algo a ver com a equação que Platão estabelece no diagrama da linha: a doxa é o juízo baseado na percepção do devir; a noesis é a visão da idéia. A noesis está para a doxa assim como a idéia está para o devir. Em princípio, portanto, e transfigurando a significação do termo, noesis não poderia ser a percepção pelo espírito da idéia? O laborioso percurso dialético não tem por finalidade preencher a au­sência de uma relação que deveria ser naturalmente direta, mas que somente logra sê-lo depois de depurar a percepção e a linguagem? Ou seja, de suscitar outra percepção, a visão pura do ser?29 Já que a insuficiência de nossa percepção não permite estendê-la no mesmo sentido da visão, a concepção da idéia como fonte de inteligibilidade e consubstanciação do real fará com que o termo, ainda que ideal do conhecimento, seja a concepção da percepção direta do ser pelo es­pírito. Com isso o conhecimento se desliga da imanência factual na qual o devir é identificado com a contradição, não preenchendo portanto o requisito básico para ser objeto de conhecimento. Com isso se institui a distância entre epistéme e mundo físico, pela relação necessária que se estabelece entre o devir e os limites da doxa. Por outro lado - e isto tem notáveis implicações metódicas, ao menos do ponto de vista da crítica bergsoniana - o caráter intermediário da matemática faz com que aquilo que está mais próximo da realida­de em si sejam noções e não coisas. A matemática tem o caráter propedêutico que Platão lhe empresta precisamente porque a inteli­gibilidade de que goza a coloca mais perto dos atributos positivos do ser, unidade e imutabilidade. Isto faz com que a ciência no seu plano dianoético já se mova nas coordenadas destes atributos e é este o fundamento longínquo a que retornarão os clássicos quando adota­rem o paradigma matemático de conhecimento. Isto fará com que todos os conceitos, inclusive os que servem eventualmente para o

29. "(. .. ) o que a essência é em relação à geração (devir), a inteligência o é em relação à opinião (doxa), a ciência em relação à fé (pistis) e o conhecimento discursivo (dianoiaJ em relação à imaginação (conjectura, eíkasia)" (Rep. 534a. - trad. de J. Guinsburg, Difel, 1965, p. 133).

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conhecimento prático e ação do empírico. derivem de um substrato transcendente. ao menos na sua forma. ainda quando o filósofo crê construí-lo a partir dos fatos.

A visão heideggeriana da instauração da metafísica pode nos for­necer alguns elementos para pensar o encerramento da verdade na Idéia. Do desvelamento à exatidão do olhar metodicamente dirigido à Idéia situada no plano supra-sensível. o trajeto que se cumpre é o da identificação da verdade com a Idéia. fundamento. doravante. do ser do ente. É no conhecimento como processo metódico que a verda­de acontece. na exata medida em que houver homologia do logos. como enunciado do conhecimento. ao Logos fundamento da aparição de todos os entes30• A verdade é aquilo que não pode ser procurado com "os olhos do corpo". e a ascese compreendida nesta necessidade confere ao olhar espiritual uma "excelência especial". Por isto o exercício dia­lético é formador no pleno sentido: a paideia é a noção correspondente à nova concepção de verdade. aquilo que permite ao homem "liberar suas possibilidades" tendo em vista a realização do destino da alma como sujeito da contemplação. Esta posição do homem confere-lhe um lugar central cujo fundamento só pode ser plenamente explicitado e a justificação plenamente dada na realização do destino contemplativo". A idéia é causa e fundamento: neste sentido ela se põe como a realiza­ção da essência da verdade que deixa então de se dar como processo de aparecimento da essência no devir ou como desvelamento e manuten­ção daquilo que é desvelado. A Idéia é aquilo segundo o qual tudo o que é possui o ser e de onde retira o valor". A transferência do fun­damento do ser para a Idéia traz consigo a designação deste funda­mento como a Origem. do ponto de vista teológico: a causa de todas as coisas é to teion, o Divino33

, o ente máximo que irradia o ser.

É interessante notar a confluência que pode ser estabelecida entre esta constatação e o que Bergson denomina. na história da metafísi-

30. "A verdade não é mais, como não-velamento, o traço fundamental do ser em si mesmo; porém, transformada em exatidão através de sua submissão à Idéia, torna-se doravante o traço distintivo do conhecimento do ente" (Heidegger, La Doctrine de Platon sur la Vérité, Questions 11, trad. francesa Gallimard, Paris, 1968, p. 158).

31. Id .• ibid .• pp. 160-161. 32. "O que unicamente importa, o que é decisivo em primeiro lugar, não é saber

quais idéias e quais valores são estabelecidos e aceitos, mas sim que, de maneira geral, o real seja interpretado a partir de idéias, que de uma maneira geral o 'mundo' seja sopesado a partir de 'valores'" (id., ibid., p. 162).

33. Id .. ibid., p. 160

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3. CRITICA DO MÉTODO FILOSÓFICO (I)

ca. a "confusão. natural ao espírito humano. entre uma idéia expli­cativa e um princípio agente" (P.M.-125. Abril). Esta confusão é em grande parte responsável pelo "dogmatismo" da metafísica. princi­palmente entre os modernos. Mas o fundamento se encontra no al­vorecer da história da metafísica. pela restrição da experiência. ine­vitável. segundo Bergson. no estágio em que a ciência se encontrava então. O campo e o caráter formal dos conceitos. assim estabeleci­dos a priori. não fazem mais do que prolongar o convencionalismo da linguagem. fundado em necessidades pragmáticas. A teoria platô­nica das idéias se teria constituído assim em paradigma arquitetôni­co dos sistemas metafísicos e o princípio de explicação. colocado no topo do sistema. "abarcando teoricamente todas as coisas" recebe. por transferência indevida. do deus da religião a característica ativa que este possui. criador e providencial. e assim "alguma coisa da adoração e do respeito que a humanidade dispensa a este deus passa então ao princípio que decoramos com o seu nome. E daí vem. em grande parte. o dogmatismo da filosofia moderna" (P.M.-126a). Mas o que pode ter de agente um princípio que é formulado e concebido a partir da hipóstase da matemática. na medida em que os filósofos modernos. inspirados em Platão. concebem a metafísica como uma "matemática mais vasta"? (P.M.-125). No entanto. esta identificação contribui para dotar o princípio de explicação última de caracterís­ticas que lhe conferem a feição de fundamento em relação a todos os aspectos da realidade. bem além da esfera do saber teórico. Não é inútil lembrar a propósito que a Idéia do Bem desempenha papel fundador em relação ao saber e à organização da vida. individual e coletiva. O racionalismo integral de Leibniz. totalidade formal e ma­terial do saber consubstanciada no entendimento divino. razão infi­nita da qual o Homem participa na escala da sua finitude. é um exem­plo moderno que se inscreve na linhagem dessa elaboração totalizante que caracteriza a metafísica. Teremos ocasião de mencionar a critica que Bergson fará a respeito.

Isto apenas vem em abono da afirmação de que a teoria filosó­fica tem como finalidade última instituir o seu objeto com um cará­ter a tal ponto absoluto e estabelecer tais condições de conhecimen­to deste objeto que a metafísica se duplica ou se desdobra necessa­riamente em teologia. É neste mesmo sentido que devemos conside­rar porque as Idéias em Platão não possuem apenas o valor conceptual. porque a necessidade lógica do anhipotetos recebe ime­diata e necessariamente o estatuto do ser na sua plenitude. Não resta

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dúvida de que a Idéia é, para nós, antes de mais nada a condição do pensar, o fundamento do conhecer, que ela possui e irradia a neces­sidade lógica que faz com que a verdade a ela se identifique. Mas, precisamente, a verdade no seu mais alto grau consiste na contem­plação da Idéia. Esta atividade teórica visa apenas a uma condição lógica ou visa também e primordialmente a uma realidade existente? O conhecimento em Platão ordena-se pelo ser, só tem sentido quan­do realiza a contemplação da realidade que efetivamente é. Por isso a teoria não pode visar apenas a uma condição lógica, ou realizar condições lógicas: ela visa à realidade suprema. A Idéia não é concei­to instrumental; é o ser no mais pleno sentido. Este sentido é o da unidade e imutabilidade. Não é apenas o conhecimento do real, im­possível no nível do devir, que encaminha o entendimento para a Idéia. É a busca da Realidade, do ser, que move o dialético na direção do supra-sensível. A Idéia tem antes de mais nada valor ontológico e por isto é plenamente objeto de teoria, de contemplação. Contem­plando-a, vemos o ser e compreendemos a irradiação do ser. O co­nhecimento é contemplação: na atividade teórica ver e compreender são o mesmo, portanto o estatuto lógico e a realidade ontológica da Idéia não podem ser separados. Nesse sentido é que devemos enten­der a Idéia como existência lógica: o logos se ordena ao ser, se iden­tifica ao ser e o conhecimento tem por finalidade maior o transporte que leva à visão da unidade indissolúvel da ordem necessária no conhecimento e na ação". Condição da contemplação é o despoja­mento do sensível, do factual, para que o olhar da inteligência (naus) possa exercer-se na sua pureza. Não resta outro caminho para a dia­lética senão instituir-se como método de "fuga" do sensível. Com isso realiza-se aquilo que a crítica de Bergson, vimos, aponta: quanto mais a filosofia toma consciência do seu objeto, tanto mais o método é entendido como modo ordenado de afastamento do devir. A subs-

34. "( ... ) a theoria é, antes de tudo, apreensão do Ser verdadeiro. Ela nasce da neces­sidade de saber com certeza. Todos os esforços anteriores do pensamento grego leva­vam Platão a considerar esta propriedade como a principal. Ele devia atribuir-se a tarefa de discernir o Ser que, não -mudando em absoluto, é eminentemente o objeto da ciência. Como, a partir disto, poderia ele pensar em negar-lhe a existência? E como, se ele lhe concede a existência, não seria a theoria, absolutamente, ciência, ou melhor, a única ciência?" (Festugiêre, Contemplation et Vie Contemplative selon Platon, Vrin, Paris, 1950. p. 104).

Festugiêre procura refutar tanto a teoria neokantiana que atribui apenas valor conceptual às Idéias como aquela que faz da Idéia do Bem objeto de contemplação "estética" .

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3. CRITICA DO MÉTODO FlLOSÓFlCO (I)

tituição do olho do corpo pelo olho do espírito é o motivo fundamen­tal do método que leva à contemplação". Para Bergson, as conse­qüências da ordenação da verdade àquilo que não é materialmente perceptível ou mesmo objeto de percepção interna (que embora "in­visível", está ainda subordinada ao devir) são de tal importância que a partir dela se estabelece a linha mestra do método filosófico em geral".

É importante destacar que o método assim concebido, da ma­neira como Bergson o critica em Platão, tem a finalidade de nos afas­tar da realidade "aparente" do devir para proporcionar-nos a visão, tão direta quanto possível, do ser, na sua realidade efetiva que se configura como o repouso na unidade, imutabilidade e eternidade. A faculdade que é procurada para além da percepção, o olhar do en­tendimento, teria então afinidade com os atributos do ser e permiti­ria a contemplação". Tal afinidade, aliás, repousa principalmente sobre o pressuposto da unidade da natureza, unidade que o enten­dimento encontra como um correlato de sua própria unidade. Isto significa que o metafísico reencontrará laboriosamente aquilo que já supunha dado a priori, porque o que sustenta a relação do entendi­mento com o seu objeto, no caso, é a unidade implicitamente con­siderada como necessária para que haja conhecimento verdadeiro. É desta forma que a dialética pode partir das articulações naturais da linguagem, da estrutura pragmática do mundo para encontrar a es­sência: porque a reflexão não é inversão de direção, mas continuida­de de busca da unidade, que terminará por ser hipostasiada na idéia". A análise da linguagem e da estrutura da percepção, se conduzida

35. "Os belos objetos deste mundo são vistos pelos olhos do corpo; da mesma ma­neira, o belo ideal é visível aos olhos da alma" (Festugiêre, op. cit., p. 106, que remete ao Banquete, 202 a 203, e que interpreta num mesmo sentido a alegoria da Caverna).

36. "( ... ) todos, antigos e modernos, concordam em ver na filosofia uma substituição do percept pelo concepl" (Bergson - P.M.-146).

37. "E quem haveria de obter em sua maior pureza este resultado, senão aquele que usasse, no mais alto grau, para aproximar-se de cada um desses seres, unicamente o seu pensamento, sem recorrer no ato de pensar nem à vista, nem ao ouvido, e liber­tando-se do corpo inteiro, que perturba a alma e não deixa apreender a verdade ( ... )" (Fédon. 65e - trad. ). Paleikat e). Cruz Costa. Globo, p. 88).

38. Cf. P. Trotignon, L'Idée de Vie chez Bergson etla Critique de la Métaphysique, PUF. Paris, 1968, p. 405: "Donde o duplo movimento da dialética de Platão: a redução das designações práticas da coisa na linguagem a uma essência ideal, e a divisão das coisas dadas na prática em articulações naturais para o olhar teórico".

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pelo critério da busca da unidade, revelar-se-á certamente no potencial de sua vocação analítica, mas é justamente esta vocação que a filosofia deveria questionar, O movimento intelectual que põe os entes matemá­ticos não deveria ser considerado como a direção da especulação; isto significa deixar-se levar por aquilo que Bergson denomina "matemática natural" da inteligência e da qual a linguagem já é um produto. Assim a linguagem não pode ser considerada matriz do método filosófico, como acontece quando o filósofo prolonga a vocação da linguagem no estabelecimento das idéias gerais. Ela pode ser ponto de partida, mas exatamente para buscarmos o modo de nos colocar em contracorrente em relação a ela, fazendo da reflexão uma inversão da marcha habitual do pensamento".

Há algo na gênese da atitude filosófica que faz com que a filoso­fia acabe sendo vitima daquilo que ela mais ardentemente deseja evitar: a verossimilhança. Pois, para Bergson, a relação entre uma concepção geral, uma idéia abstrata tida como explicativa, e a mul­tiplicidade factual do devir é de verossimilhança. O afastamento metódico da diversidade sensível leva a isto. É neste sentido que se deve entender a critica da explicação filosófica feita no início da la Introdução P.M. A compreensão da gênese da atitude filosófica, do ponto de vista histórico e a partir dos fundamentos naturais (estru­tura da inteligência), deve levar-nos a ver na teoria filosófica tradi­cional uma representação inadequada do real, marcada pela veros­similhança. Uma teoria pode explicar os fatos ou pode representá-los ou exprimi-los. Em qualquer um desses três sentidos, ela pode ser tomada como verdadeira, desde que o que se espera dela não seja da ordem do definitivo e do absoluto. A hipótese transformista, por exemplo, não explica a evolução com a exatidão que poderíamos exigir da explicação científica estrita. Mas ela trabalha os fatos conhe­cidos no sentido de nos dar uma visão aproximada da realidade: ela exprime aproximativamente o que os fatos indicam e assim nos pro­porciona uma compreensão no nível da probabilidade. Ela não é por­tanto verossimilhante, conquanto não seja uma explicação exata (E.C.-24). Em geral, as teorias filosóficas não se contentam com o provável porque o provável é da ordem dos fatos. Renunciando à probabilidade,

Trotignon acha revelador, do ponto de vista da crítica bergsoniana. que no diagrama da linha haja a mesma proporção entre o segmento dos mathérnata e o dos seres "vivos e fabricados n

• Isto mostraria em Platão a ilusão, denunciada por Bergson, de uma adequação "natural" entre conteúdo e forma.

39. Cf. Trotignon, op. cit., p. 406.

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4. CRfTlCA DO MtroDO FILOSÓFICO (lI)

almejam o definitivo que muitas vezes não pode ser alcançado porque não depende apenas da operação do pensamento puro, depende da experiência. Conseqüentemente o que o pensamento puro pode forne­cer neste caso é o sistemático e o acabado, mas é também o verossimilhante: concepção demasiadamente destacada do real.

A compreensão da gênese da atitude filosófica é a pré-condição necessária para entender-se a reflexão como devendo ser uma inver­são. Uma rápida consideração (que prolongaremos mais adiante) do correlato objetivo da atitude filosófica pode nos ajudar a entender isto. A "fuga" do sensível, a negação platônica da sensação como conhecimento provém da verificação do caráter contraditório da mudança. Isto significa que percebemos a mudança e que, no nível da doxa, intelectualizamos a mudança. Tratar-se-ia portanto de dei­xar o universo da percepção que é o universo da mudança. Ora, diz­-nos Bergson, O equívoco fundamental aí é que o que percebemos e entendemos a princípio não é a mudança. Pensemos na estabilidade relativa do devir que permite, através dos padrões de percepção, opinar sobre a mudança. É a esta estabilidade relativa, a essa série de estados que se sucedem que chamamos mudança. Mudança é, pois, um nome pelo qual designamos a série de estados, cada um dos quais relativamente estável. Não consideramos o processo que faz com que um estado se transforme em outro, por isto separamos o tempo da mudança e dizemos que as coisas mudam no tempo, que entendemos como substrato divisível onde se alojam os diversos estados de coisas (P.M.-156-7). Sendo assim, Zenão tem razão: o movimento seria realmente algo contraditório, pois fundamentalmen­te "feito" de imobilidades relativas. Se a contradição é esta, os gregos tiveram razão em supor que tal tipo de realidade não pode ser objeto de ciência. Tiveram razão em procurar fora do devir assim concebido o lugar em que o ser fosse objeto de conhecimento. A tarefa que se impõe a uma filosofia que deseja reformar o método é primeiramen­te mostrar que o movimento é aparência quando consideramos a sucessão de imobilidades relativas; mas que o movimento é a essên­cia quando o tomamos pelo que ele realmente é. Isto supõe a com­preensão desmistificadora da inteligência e do inteligível.

4. CRÍTICA DO MÉTODO FILOSÓFICO (-lI)

A concessão que Aristóteles faz a Platão num trecho do De Ani­ma pode ser tomada como uma provável base para a redução, que,

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em linhas gerais, Bergson opera, do aristotelismo ao platonismo40•

Deixando de lado todos os problemas que esse texto suscita em ter­mos da interpretação da Teoria das Idéias, interessa-nos ressaltar aqui que a semelhança estrita vista por Bergson entre os dois filóso­fos refere-se provavelmente à identificação aristotélica do intelecto como lugar dos inteligíveis e lugar da verdade, o que adquire pleno sentido a partir da separação entre intelecto e sensação: o intelecto tem a ver com a imagem (fantasma), que, embora vinculada à sen­sação, dela se distingue por não sofrer as mesmas determinações de tempo e lugar. É com esta imagem que o conhecimento discursivo se relacionará primeiramente no nível da doxa (juízo sobre a sensação através da imagem) e em seguida no plano da epistéme, que tem por objeto o universal, atingido por indução efetuada sobre as imagens. (Ressalve-se, neste resumo simplificado, a complicada questão da presença do universal na sensação, no sentido de que vejo primeiro um homem, depois identificado como Cálias).

O universal, portanto, é atingido pela via da indução, e partilha os caracteres da discursividade. É o verdadeiro objeto do conheci­mento. No entanto os princípios da ciência possuem também a ca­racterística de universalidade, são conhecimentos dos quais se deri­vam outros e são, na perspectiva de Aristóteles, mais certos do que os derivados. Deve-se, entretanto, notar que não se aplica a eles a mes­ma forma predicativa dos conhecimentos objetivos. Não são pro­priamente resultados de um juízo, no sentido em que podemos dizer que um juízo compõe-se dos elementos ligados na proposição e da ligação como operação intelectual. É neste sentido que, parece, Aris­tóteles estabelece a analogia entre intuição e sensação. O juízo não é efetuado sobre a sensação, mas sobre a imagem obtida a partir dela. Assim também o objeto da intuição não depende da forma predica­tiva, mas é captado diretamente. E assim como a sensação é sempre

40. Segundo Bergson, Aristóteles teria conservado os traços essenciais da Teoria das Idéias e transmitido à posteridade, através de uma elaboração discursiva mais com­pleta, a noção de método como prolongamento retificador da percepção e da lingua­gem. Tal idéia do método filosófico e tal concepção do objeto da filosofia teria sido "levada pelas asas do aristotelismo e do neoplatonismo" (P.M.-124) aos filósofos mo­dernos. Cf. também o capo IV de Evolução Criadora. O trecho do De Anima a que nos referimos é m, 4, 429 a 27-29. "Também devemos aprovar aqueles que sustentaram ser a alma o lugar das idéias, com a ressalva, contudo, de que não se trata da alma inteira, mas sim da alma intelectual, nem das em ato, mas sim das idéias em potência" (Tr.d. Tricot, Vrin, 1959, p. 175).

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4. CRITICA 00 MFrODO FILOSÓFICO (11)

verdadeira porque não há erro quando o sensível próprio é captado pelo órgão respectivo, assim também não pode haver erro quando o pensamento intuitivo capta o seu objeto, entre os quais se situam os princípios. Existem, no ponto mais baixo e no ponto mais alto do conhecimento, duas operações que escapariam à discursividade41.

Em relação a estas duas operações, não se pode falar em verdade e falsidade no sentido de juízo; mas também não se pode ver aí uma indiferença: a apreensão direta é sempre verdadeira. Existiria portan­to verdade antepredicativa, que se confunde no nível da intuição com a apreensão daquilo que não é composto, exatamente porque ajuizar é compor no pensamento segundo a composição na realida­de. Conseqüentemente, um universal indivisível não é resultado de juízo (embora para se chegar a ele há de haver um processo intelec­tual que envolve juízos)". Disto decorre algo a que a crítica bergso­niana deveria ser particularmente atenta: a verdade se dá no juízo pelo acordo entre o pensamento e a realidade, partindo dos dados sensíveis e elevando-se ao universal; para isto a sensação em si mesma deve ser considerada infalível, pois do contrário não haveria base para indução. No entanto, ainda que infalível, a sensação é devir, hic et nunc; a ciência não pode se contentar com verdades estabelecidas unicamente a partir do devir e estreitamente associadas ao fluxo temporal dos fatos particulares. Ela necessita de verdades absoluta­mente necessárias. Estas, Aristóteles não vai buscá-las no mundo das idéias, mas vai fazer com que as operações de conhecimento que têm por objeto o devir dependam de critérios formais de unidade e necessidade, não puramente lógicos, mas que traduzam unidade e imutabilidade reais. Por isto o conhecimento, quando realiza plena­mente a apreensão de essência, já se encontra distanciado da efeti­vidade empírica".

Esta distância do empírico não é apenas o resultado necessário da abstração: ela está inscrita na própria maneira de entender o in-

41. "A intuição intelectual termina, pois, uma elaboração que parte necessariamente dos dados sensíveis; mas por outro lado, a intelecção, a intuição do Universal, possui analogia com a sensação; e, como esta, ela é infalível. O pensamento discursivo, que se exprime em juízos, pode ser verdadeiro ou falso, mas ° intelecto, quando apreende a essência ou qüididade, não pode laborar em erro, não mais que o sentido quando se limita a reconhecer a qualidade que é seu objeto próprio" U. Moreau, Aristote et son École, PUF, 1962, p. 178).

42. Cf. Met. 10, 1051b - 2455. Cf. também De Anima, 1II, 6, 430, 26ss., trad. Tricot, p. 189. 43. J. Moreau, ob. cit., p. 180.

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telecto como lugar da verdade porque lugar dos inteligíveis, das for­mas. "( ... ) assim, o intelecto é forma das formas ( ... )"." A teoria filo­sófica se constitui assim pela cumplicidade necessária entre a ins­tauração de um objeto cuja unidade e indivisibilidade tomam-no alheio ao devir e a consideração de uma faculdade, dentre todas excelente, o intelecto que capta o objeto num processo de verdadeira identificação: no ato de conhecimento, diz Aristóteles, o intelecto é o inteligível que ele conhece. Esta relação de identidade nada mais é do que a realização plena, em ato, da comunidade de gênero que deve existir no conhecimento. Dessa forma, o mais alto objeto de teoria é aquele em que o ato de conhecer se dá plenamente em e por si mesmo: o Primeiro Motor, pensamento de si enquanto totalidade em que virtualidade e realidade se identificam, autocontemplação que leva ao seu máximo limite o pensar-se do pensamento em ato, a percepção de si na plenitude do exercício intelectual. Pensar, por­tanto, o inteligível como seu objeto próprio é algo que aproxima o intelecto humano da divindade, na medida em que a separação exis­tente neste caso entre o intelecto e seu objeto é compensada pela unificação que se dá em termos do caráter inteligível, comum a su­jeito e objeto. É importante frisar aqui que neste caso a intuição é ou tende para a coincidência na medida em que o objeto de conheci­mento, transfigurando-se em inteligível, participa do gênero intelec­tual. Em Platão era por uma ruptura dialética que o conhecimento alcançava o seu objeto, a idéia, na medida em que o devir não pos­suía caráter inteligível próprio. Em Aristóteles, vemos estabelecer-se um processo pelo qual as formas de inteligibilidade imanentes ao devir conduzem o conhecimento à captação da unidade na apreen­são dos indivisíveis. Não há, portanto, ruptura no sentido da busca imediata do transcendente; mas as mediações responsáveis pela consolidação intelectual das essências só adquirem sentido se reme­tidas à finalidade da identificação do intelecto com o inteligível, e a elaborada articulação do devir que opõe o realismo aristotélico ao idealismo objetivo de Platão deve ser considerada em [unção do re­sultado último do conhecimento - que não é apenas, aliás, resulta­do, mas que configura o ser do objeto da ciência na sua efetividade: a universalidade. Na medida em que o princípio do movimento, do devir, consubstancia em si a identidade total do pensamento consigo próprio, podemos entender - independentemente de uma avalia-

44. De Anima. m, 8, 432 a 2. Trad. Tricot, p. 197.

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4. CRiTICA DO MÉTODO FILOSÓFICO (lI)

ção da sua fidelidade histórica - a afirmação bergsoniana de que o Primeiro Motor Imóvel é a condensação do Mundo das Idéias. Quan· do pensamos o intelecto humano sob o prisma do intelecto divino, reconhecemos que a imanência das formas aos objetos de conheci­mento em Aristóteles pode ser considerada como processo de inte­ligibilização do devir, pois assim como os sentidos s6 apreendem seus sensíveis próprios, também o intelecto contém em potência os inteligíveis, isto é, todo o conhecimento, na medida em que a intelectualização plena das imagens sensíveis perfizer a predisposi­ção para que o intelecto conheça, assimile, exatamente aquilo que ele tem em potência: formas".

O processo de conhecimento, metodicamente conduzido, deve guiar-se então pela neutralização formal do corruptível e elevar-se até o princípio das coisas corruptíveis, que é incorruptível. A fuga do devir ocorre, no caso, como a identificação do ser na qüididade que para o intelecto não é apenas noção, mas objeto real. Assim a reali­dade efetiva a que se subordina o nível do quod es é estabelecida no nível do intelecto através da apagoge e, quando isto ocorre, o intelec­to tem diante de si o ser do objeto". A humanidade de Calias é o ser de Calias, mesmo que esta humanidade seja sempre e somente de­tectada como Calias, ou Sócrates etc. A anterioridade lógica da forma é o fundamento da finalidade intelectual do conhecimento, e o inte­lecto como o órgão da captação plena da forma é, verdadeiramente­compreende-se então -, "forma das formas". Tudo isto representa para Bergson, a coberto da imanência que diferencia Aristóteles de Platão, presença implícita do preceito que será a chave do método cartesiano: a imediatidade pura da experiência é o próprio signo da sua incerteza. Certamente, como já vimos, a sensação em Aristóteles traz em si sua própria certeza; mas a verdade da sensação provém da imanência da forma: portanto algo como uma pré-categorização do devir deve estar incluído quando Aristóteles afirma que a sensação, como início do conhecimento, "é ela mesma, nous"". A forma impli­cada na multiplicidade sensível não é, ainda, objeto intelectual, e não o é porque a própria forma, enquanto captada na materialidade

45. Cf. Seth Bernardete, Aristotle. De Anima, I1I, 3-5, in The Review of Metaphysics, june, 1975, vol. XXVIII, No. 4: "Aquilo que é transparente para o noético deve ser ele mesmo noético, pois do contrário interferiria com aquilo que transmite".

46. "(".) o puramente noético não é uma classe, mas um ser ( ... ). ~ (Seth Bernardete, ob. cit., p. 616).

47. Ética Nicomaquéia, VI, 12, 1143 a 35·37.

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do devir não se constitui ainda como - se assim podemos dizer -o inteligível pr6prio do intelecto. Mas, precisamente, esta expressão soa bizarra porque, a rigor, o intelecto não tem inteligível pr6prio, ao menos no sentido em que cada órgão é especializado na captação de uma qualidade sensível. A superioridade do conhecimento intelectual deriva exatamente de que nele o objeto é captado na sua unidade, para além da variação qualitativa que o insere no devir. Por isto o intelecto capta o ser do objeto e não um aspecto qualitativo. A ante­rioridade formal está bem marcada pelo fato de que o intelecto se pensa a si mesmo em cada inteligível pensado. O despojamento do aspecto estético é, pois, essencial à inteligíbilidade do objeto, e isto certamente é o aspecto que permite a Bergson assinalar que o preço da inteligibilidade é a recusa da multiplicidade qualitativa, o que é o mesmo que a recusa do devir como meio em que se exerce o conhe­cimento. Nesta perspectiva, como fica a intuição enquanto entendi­da como faculdade de conhecimento direto? O que é conhecido di­retamente é o inteligível, na medida em que a intuição é intelectual. Esta captação direta, no entanto, é o resultado de um processo dis­cursivo que se inicia no trabalho intelectual sobre a imagem sensível. A intuição só é possível porque o conteúdo da imagem foi de alguma maneira sublimado num conceito que, por definição, não se confun­de com nenhuma imagem, com nenhuma das qualidades através das quais o objeto foi primeiramente captado. Entendemos assim porque o princípio das coisas corruptíveis não pode ser ele próprio corruptível. É certo que, contra Platão, para Aristóteles a ciência é saber acerca do mundo no plano do devir e não no plano da imuta­bilidade. Mas na medida em que o desenrolar dos fenômenos apa­renta a contradição, o fisico deve ser conhecido não enquanto puro processo físico de devir, mas enquanto este processo se subordina a um esquema causal e formal.

Uma vez que o inteligível é a verdade da coisa, o intelecto, identificando-se com o inteligível, identifica-se com as coisas: "A ciên­cia em ato é idêntica ao seu objeto"". Esta identificação, entretanto, é operada pelo intelecto. É o método de conhecimento que permite tal identificação, na medida em que este método existe em função do conhecimento do universal". Isto significa, do ponto de vista bergso-

48. De Anima, 111, 5. 430 a 19-20. 49. "C,.) o nousnão se identifica tanto às coisas quanto as identifica a si. suscitando­

.lhes a explicitação própria." (Jean-Lue Marion, L'Ontologie Crise de Descartes, Vrin,

1975, p. 49).

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niano, a tradução da realidade efetiva do devir em unidade imutável de essências logicamente estabelecidas. É a esta unidade assim ob­tida que Bergson denomina "artificial" (P.M.-l13), assinalando a dis­tância em que se encontra o princípio explicativo daquilo que ele deveria explicar. Cabe então questionar o que há de comum entre o objeto do naus e a realidade dada esteticamente. O conhecimento objetivo pode ser visto como o tornar-se forma do composto formal matéria. O conhecimento objetivo é o processo de tornar outro o objeto do devir, para que este outro possa identificar-se com o inte­lecto. A noesis, no caso do homem, envolve a passagem da potência ao ato, daí o caráter discursivamente exaustivo do conhecimento, o que não é o caso da noesis divina. Mas não há dúvida de que a pre­sença do noet6n à noesis, presença intemporal e não elaborada, é o ideal contemplativo, realizado em Deus50• O modelo da intuição in­clui, pois, essencialmente a permanente presença de um objeto que não muda, que não está subordinado ao tempo, e todo o processo de conhecimento tende para a realização deste ideal. É seguramente por isso que Bergson não vê em Aristóteles grande diferença de Platão em termos da concepção do ideal de conhecimento: a variação esta­ria nos elementos utilizados e na visão do trajeto que leva a este ideal. O tornar-se outro do objeto do devir configura a distância que a teoria institui entre a racionalidade discursiva da inteligência e o ser efetivo das coisas inscritas no devir, ilustrando, ainda uma vez, a crítica contida na l' Introdução P.M., referente ã generalidade da explicação distanciada do objeto original. Mas precisamente esta distância deriva de que o objeto inscrito no devir não é entendido como origem do conhecimento, a não ser "para n6s", ou do ponto de vista da cronologia efetiva do processo de conhecimento. A verda­deira origem, na "ordem do ser" é o intelecto, são as formas. A partir desta dualidade a reflexão tem seu caminho traçado: ela deve reen­contrar a ordem do ser e para isto tem de partir da unidade, real ou logicamente. Partir da unidade só pode ser, neste caso, hipostasiar uma unidade artificial que contém em si virtualmente toda a articu­lação formal da experiência (E.C.-197-8). Esta unidade convive com a multiplicidade desde que esta seja organizada segundo critérios de unidade. Para Bergson, é esta a função dos gêneros em Aristóteles. O sentido de cada gênero está na "generalidade dos gêneros", na uni-

50. Acerca disto cf. as indicações de F. E. Peters, Termos Filosóficos Gregos (léxico -histórico), Gulbenkian, 1974, p. 163.

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dade que sustenta metafísica e logicamente o "sistema de gêneros" em que se constitui a realidade". Neste sentido, é claro que tanto as unidades relativas aos gêneros como a Unidade máxima são tidas como objeto de contato do intelecto. Mas, sobretudo em Aristóteles, o processo discursivo que eleva a multiplicidade dos particulares à unidade do geral trairia, para Bergson, a continuidade entre os con­ceitos e o Conceito, entre as formas e a Forma Pura. Portanto a in­tuição se inscreve, na realidade, num processo discursivo e o fato de ela ser o acabamento deste processo não a coloca inteiramente de fora dele. O que se procura na intuição é o princípio, telas do conhe­cimento e gerador da realidade. A razão encontra, portanto, aquilo que o seu próprio método a fez colocar a priori como horizonte da busca da verdade: a unidade do ser que se espelha na unidade do saber, com a ressalva eventual de que a unidade do saber permanece por vezes um fím inalcançável. Mas seja qual for o grau em que o absoluto pode ser atingido e conhecido, isto em nada altera a tarefa da especulação e a constituição da objetividade. As exigências orde­nadoras do Absoluto se refletem no processo de conhecimento des­de que este Absoluto seja posto, ainda que como ideal inatingível, intermitentemente pensado ou como idéia reguladora.

A identificação intuitiva entre intelecto e inteligível consiste, pois, de um lado na posição da unidade geradora de ser e razão do devir experiência e de outro na faculdade intelectiva que, operando ativa­mente, traz a si o objeto e o posiciona como noetón, objeto do inte­lecto e que Bergson compreende na linhagem dos eide platônicos. Tanto em Platão como em Aristóteles, a distância lógica e a depura­ção do mundo sensível caracterizam a dignidade do conhecimento intelectual e sobretudo intuitivo, dignidade incompatível com o mo­vimento e a mudança qualitativa.

Ora, à primeira vista, não é essa distância anulada quando Des­cartes aparentemente transforma a elevação epistemológica do naus em intuitus ou simples visão do que se apresenta a um espírito aten­to como claro e distinto? E, ainda mais, acrescentando que na verda­de há muito mais coisas do que supomos a princípio que são aces-

51. "A realidade tornando-se assim um sistema de gêneros, é à generalidade dos gêneros (isto é, em suma, à generalidade expressiva da ordem vital) que deveria se remeter a generalidade das leis" (Bergson, E.C., p. 229).

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slVels ao intuitus1"2 Em outras palavras, não seria possível ver no objeto do intuitus, tal como Descartes parece defini-lo, algo assim como o dado, ou pelo menos bem mais próximo do dado que em Aristóteles? É o problema da relação entre intuição e dado inteligível que assim se apresenta. Vimos que no caso de Aristóteles a intuição é a contemplação da verdade no seu mais pleno sentido, o que nos autoriza a dizer que o processo metódico que faz o conhecimento elevar-se da sensação à intuição contém nas suas etapas indícios dessa verdade total. Assim a sensação é verdadeira no sentido de que cap­tamos qualidades sensíveis tais como são em si mesmas enquanto qualidades sujeitas à mutação constante; o juízo sobre estas qualida­des enquanto imagens transmitidas pela imaginação ao intelecto também é verdadeiro, na medida em que reúne os aspectos qualita­tivos e os dispõe para a apreensão unitária do intelecto; mas a ver­dade plena é a apreensão intelectual da unidade essencial. O proces­so é, já o dissemos, teleológico e tem um sentido positivo: o resultado não seria possível se não existissem as etapas, o trajeto do ser ao conhecer, a partir da apreensão do dado sensível. Ora, o início da Regra m, aI' parte do Discurso do Método, e aI' Meditação contêm indicações das etapas metódicas que levam ao estabelecimento da intuição como representação clara e distinta e índice de objetivida­de. Só que em Descartes esse processo tem um sentido preponde­rantemente negativo, já que signifíca a eliminação ou o afastamento dos obstáculos que impedem a representação clara e distintaS'. Como

52. "Por intuição entendo não o testemunho instável dos sentidos. nem o juízo en­ganoso da imaginação que opera composições sem valor, mas uma representação que é própria da inteligência pura e atenta, representação tão fácil e tão distinta que não subsiste nenhuma dúvida acerca do que aí se compreende; ou então, o que vem a dar no mesmo, uma representação inacessível à dúvida, fato de uma inteligência pura e atenta, que nasce unicamente da luz da razão, e que, por ser mais simples, é mais certa que a dedução; ( ... )." (Descartes, Régles, 1Il, ed. Alquié, I Garnier, 1963, p. 87).

Descartes enumera exemplos de objetos da intuição e complementa: "E outras coi­sas semelhantes, que são bem mais numerosas do que nota maior parte das pessoas, por não se dignarem a voltar o espírito para coisas tão fáceis" (id. ibid., p. 87).

53. O estabelecimento da dúvida metódica na 1 a Meditação é a atribuição do caráter negativo à sensação e à percepção; a dúvida acerca da matemática completa a etapa lógica de dissolução metódica do início tradicional do processo de conhecimento. Os parágrafos da Regra III constituem a atribuição do caráter negativo à história do saber. A falta de distinção metódica entre o falso e o verdadeiro invalida o apelo à história do saber como critério da busca do verdadeiro. É a etapa histórica da dissolução metódica do fundamento tradicional do filosofar. Não deixa de ser interessante com­parar a 1 a etapa com a ascese platônica tal como é descrita no Fédon. Cf. Ao Marquês de NewCastle, Abril/1648, dI. em Brunschvicg, Le Progrés ... , p. 144.

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agora a representação terá de buscar seu fundamento no ato do sujeito representante, desaparece a confiança na infalibilidade da sen­sação e a constituição do fundamento material do conhecimento passará pela análise das condições subjetivas de representação. Mas aqui a precaução metódica não vai instituir distância entre sensação (dado) e intuição (intelecção de essência) precisamente porque a crítica das condições de representação permite que a intuição clara e distinta, quando ocorre, ocorra imediatamenté". A imediatez aqui provém de que a intuição deve exercer-se sobre as coisas "mais sim­ples e mais fáceis". Mas que coisas são estas? "Ainsi, chacun peut voir par intuition qu'il existe, qu'il pense, que le triangle est delimité par trois lignes seulement, la sphére par une seule surface, e autres choses semblables, qui sont bien plus nombreuses qui ne le remarquent la plupart des gens, parce qu'ils dédaignent de tourner leur esprit vers des choses si faciles" (R. m, Alquié, I, 87). Existência, pensamento, entidades matemáticas: os exemplos de Descartes não devem ser tomados inocentemente; relembremos as condições da representa­ção e o encontro daquela que possui em si o sinal da certeza. Veri­ficaremos que existência e pensamento, ou a existência do pensa­mento é a intuição do princípio da ciência na ordem das razões. E que a inteligibilidade do pensamento em relação a si próprio é a inteligibilidade matemática, caracterizada pela simplicidade e dis­tinção, pelo que só pode ser posta em dúvida artificialmente. Cons­tituem-se então os objetos acerca dos quais não há razão de dúvida: o pensamento e o seu conteúdo mais imediato, a matemática. Que tipo de objetos são esses? Relembremos que a certeza do cogito atin­ge o pensamento como essência, não a variabilidade dos modos que supõe a singularidade da percepção, da imaginação e do sentimento como esferas modais distintas. A intuição do próprio pensamento é condição real de qualquer representação; mas como o cogito é para­digma de certeza, esta condição é também/armaI. Ora, o pensamen­to não é uma coisa; ele é intuído quando subtraído ao devir das imagens que preenchem os diferentes modos de representação. A verdade experimentada no cogito é a da reflexão na sua pureza e na sua anterioridade: o mundo, tornado ausente no processo da dúvida, está agora ainda mais longe como realidade formal". No entanto, a

54. Cf. Jean-Luc Marion, ob. cit., pp. 49-50. 55. "( ... ) a ausência da 'coisa' como objeto facilita tanto mais a certeza, mesmo se

esta permanece puramente formal; pois uma certeza vazia (objeto = forma da expe­riência) vale mais que a experiência incerta de um conteúdo real (objeto = coisa)" Uean-Luc Marion, ob. cit., p. 50).

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4. CRíTICA DO MÉTODO FILOSóFICO (11)

intuição opera sobre aquilo que é imediatamente presente a uma consciência atenta; ou - retificação importante - sobre aquilo que pode ser imediatamente presente a uma consciência metodicamente atenta. A imediatidade do dado em Descartes supõe a depuração me­tódica que a "inspeção do espírito" realiza, e aquilo que é objeto de intuição deve a sua condição de "facilidade" à "simplicidade" com que se apresenta, simplicidade esta que não é nada mais do que o preenchimento dos requisitos de condição de inteligibilidade. Sendo assim, podemos dizer, em termos bergsonianos, que a intuição vista desta maneira em nada se opõe à discursividade da inteligência, antes realiza mais completamente o ideal de conhecimento intelectual na medida em que abarca numa visão as ligações pelas quais o conhe­cimento se compõé". Aliás, a ligação estreita entre intuição e dedu­ção, clara no texto da Regra m, corrobora explicitamente o caráter discursivo da intuição57

Tal caráter fica talvez ainda mais patente quando nos remetemos aos objetos da intuição. Com efeito, não existe uma única espécie de objetos da intuição: além das naturezas simples, como existência e pensamento, as naturezas complexas e as séries também são correlatos do intuitus. Quando digo que o triãngulo é objeto de intuição, no sentido em que compreendo imediatamente, clara e distintamente sua natureza, não quero dizer que ele seja uma natureza absoluta­mente simples. Na intelecção do triãngulo está contida a intelecção da linha, da extensão, do número três; todas as relações de grandeza entre os lados e os ângulos, a relação da área com as linhas que a limitam, etc. Todos estes conhecimentos são de direito anteriores ao conhecimento do triângulo, mas isto não impede que eu saiba ime­diatamente, clara e distintamente o que é um triângulo. O triângulo é, pois, natureza composta, mas é conhecido intuitivamente da mesma maneira que as naturezas simples58. Quanto às séries, o problema é o de encontrar o elemento simples relativamente à série, isto é, a sim­plicidade relativa que decorre da posição que o elemento ocupa na série. Se classifico os individuos em espécie, esta será uma noção sim-

56. Descartes, Régles. III, Alquié, p. 88. 57. Cf. a nota 1 da p. 89 da ed. Alquié onde J. Brunschvicg comenta essa caracterís­

tica como constitutiva da noção cartesiana de intuição. 58. Cf. a este respeito Regra XII, onde Descartes afirma que a complexidade da en­

tidade triângulo não impede o conhecimento imediato, o qual, aliás, é feito sem que precisemos nem sequer nos dar conta dos conhecimentos anteriores aí implicados. Ed. Alquié, pp. 148·149.

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pies; se considero as espécies em relação ao gênero, este será o simples. No caso destas noções é a ordem do conhecimento que determina a simplicidade, diferentemente de noções como existência e pensa­mento, que são como que simples "em si". É claro que o prossegui­mento da análise proporcionaria a intuição dos elementos simples que compõem a natureza composta; mas não é sempre necessário que levemos a análise até as últimas conseqüências para intuir". Este aliás será um dos aspectos que merecerá censura de Leibniz, quando ele opuser as exigências formais de análise ao intuicionismo cartesia­no. Restar-nas-ia apenas lembrar, acerca deste problema, o papel da enumeração como preceito metódico. A enumeração está estritamen­te vinculada à impossibilidade de manter longas séries simplesmen­te sob o domínio da intuição. Uma vez que a demonstração supõe movimento do espírito (passagem de um termo a outro), a intuição aí não pode ser assimilada a uma visão estática, tem de englobar o dinamismo do percurso dedutivo. Mas este percurso tem por critério de sua veracidade a intuição em cada uma das etapas. Quando a série é longa, a memória tem de assegurar a lembrança das certezas intuitivas, e como a memória é falível, a enumeração de tempos a tempos assegura a continuidade da evidência. É portanto porque a intuição das ligações não se sustenta indefinidamente que a enume­ração é necessária. Assim podemos assimilar o processo dedutivo à intuição de uma verdade, já que a enumeração compensa a falta de alcance da intuição (Regra XI, Alquié, pp. 131-2). De resto, Descartes diz que a intuição e a enumeração se auxiliam e se completam mu­tuamente, a ponto de poderem ser consideradas "uma só operação" (ibid.). Eis portanto a intuição indissoluvelmente mesclada ao movi­mento dedutivo, ao "movimento contínuo do pensamento", à articu­lação inteligível da representação.

Há uma razão para tanto, que se refere ao problema dos dados inteligíveis que mencionamos antes. O alcance formal do paradigma

59. Cf. Regra VI, onde as noções absolutamente simples e relativamente simples são vistas na ordem do conhecimento e pelo valor metódico no encadeamento das razões. Por isto algumas coisas podem ser ditas mais absolutas ou mais relativas, dependendo do contexto. Cf. o comentário de J. Brunschvicg (p. 102, n. 1), que acentua o valor puramente epistemológico e não metafísico do caráter absoluto dos termos do conhe­cimento.

Cf. também Émile CalIot, Problemes du Cartésianisme, Gardet Editeur Annecy, 1956, p.50.

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5. CRíTICA DO MÉTODO FILOSÓFICO CIII)

intuitivo, o cogito, faz com que as condições formais da representa­ção forneçam as coordenadas da reflexão. A busca do verdadeiro se fará então dentro dos critérios que demarcam a clareza e a distinção como signos de inteligibilidade imediata. Como já tivemos ocasião de observar, a experiência quando ocorre para além dos limites do unicamente inteligível provoca a incerteza. E assim é a abstração da experiência que fará aparecer o dado enquanto inteligível para o intelecto, único juiz de evidência. A representação intelectual é o campo da intuição. A intuição opera sobre conteúdos abstratos, daí a validade imediata da matemática60

• Nesse sentido, a universalidade do objeto da intuição passa a possuir um caráter quase exclusiva­mente lógico - o que não ocorria em Aristóteles -, e isto a despeito de Descartes procurar sempre intuição de realidades: como a reali­dade é idéia clara e distinta, a intuição se põe como operadora de certeza no âmbito da representação despojada de suas caracteristi­cas experienciais (perceptíveis). Dessa maneira, a intuição de realida­des é também estabelecimento de unidade intelectual no conheci­mento mesmo que as realidades intuídas imediatamente num ato único sejam de direito decomponíveis pela análise.

A inteligibilidade do que é dado ou apreendido na intuição seria então a corroboração do que Bergson afirma acerca da concepção como sucedâneo complementar da percepção. A incerteza própria da esfera de percepção exige mais que a depuração do sensível en­quanto processo de constituição de essência. Exige que o ato de apreensão de essência se realize de imediato no plano da idéia con­cebida clara e distintamente.

5. CRÍTICA DO MÉTODO FILOSÓFICO (Ill)

O mecanicismo cartesiano é, para Bergson, a sistematização e a unificação metafisicas da modalidade relacional de conhecimento, que a fisica de Galileu havia instaurado contra a articulação qualita­tiva da realidade própria da fisica aristotélica. Nesta, os elementos se compunham segundo os gêneros articuladores do real e constituíam assim uma ordem cujos princípios ou cujo Princípio, síntese inteligí-

60. "A indiferença à própria coisa tomar-se-ia o preço da universal validade opera­tória do intuitus ( ... )" (Jean-Luc Marion, ob. cit., p. 52).

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vel dos elementos, oferecia o paradigma do ato de intuição e do objeto da intuição. No universo relacional de Descartes, em que a evidência das ligações repousa na visibilidade delas para o espírito, não é pre­ciso existir um ser que necessariamente condense a realidade, como a Idéia ou o Primeiro Motor; é preciso que exista um ser no qual repouse a evidência das ligações intuitivas: tal é o Deus cartesiano. Ou então um entendimento infinito pelo qual passe a sintaxe lógica dos elementos que compõem o universo, a comunidade da raciona­lidade assegurando a continuidade do saber humano e do saber di­vino: é o Deus de Leibniz. Ou ainda a Razão e a Realidade identifi­cando-se na perfeição unitária da Substância suprema da qual ema­nam produtivamente os atributos e os modos que sao as articulações relativas do real: Deus de Spinoza. Em qualquer dessas três perspec­tivas, ressalvadas as grandes diferenças e a originalidade de cada uma, Bergson vê o saber como constituindo-se a partir de uma visão uni­tária das relações. Sendo assim, a intuição é vista como o conheci­mento mais elevado na medida em que dá o fundamento das relações, tanto do ponto de vista real quanto do ponto de vista lógico. O saber é considerado, no seu nível metafisico, como a intuição simples da Sim­plicidade fundadora da articulação do real. Ora, sendo a inteligência, para Bergson, a faculdade de efetuar relações, o saber concebido desta forma fica suspenso à inteligência, no limite a uma inteligência infinita que possa ver instantaneamente a totalidade das relações (E.C.-356).

Esta modalidade de presença do absoluto na filosofia é que será questionada por Kant, mas de uma maneira que, para Bergson, não atinge a essência do modelo racional. Kant se contentará com um fundamento lógico da relação, e para isto o entendimento humano, no seu sentido transcendental, será suficiente. A função unificadora das relações, uma vez buscada no âmbito do entendimento, relativi­zará o objeto das relações e o resultado da ciência. Esta relativização é solidária da alteridade da matéria do conhecimento, sobre a qual se exerce o poder lógico de relacionar. Ora, se por um lado esta mu­dança faz com que a crítica do dogmatismo seja na verdade uma limitação do dogmatismo", por outro abre a possibilidade de que a "origem extra-intelectual" do conhecimento venha a constituir o fundamento da ligação efetiva entre conhecimento e realidade. Kant

61. "A crítica de Kant, considerada deste ponto de vista, consiste sobretudo em limi­tar o dogmatismo de seus predecessores, aceitando a concepção que tinham da ciên­cia e reduzindo ao mínimo o que ela implicava de metafísica" (Bergson, E.C, p. 357).

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5. CRITICA DO MÉTODO FlLOSÓFJCO (III)

"afirmava, contra seus predecessores imediatos, que o conhecimen­to não é inteiramente redutível aos termos intelectuais" ... (E.C.-357). A recuperação do acordo entre forma e conteúdo poderia ter redun­dado, em Kant, na consideração efetiva da realidade nos seus con­tornos próprios; na possibilidade de adotar o ritmo factual da expe­riência e então perceber a realidade material "por dentro", na coin­cidência entre percepção e percebido. As relações da inteligência se produziriam então a partir desta coincidência: o conhecimento encon­traria suas limitações na luta contra a densidade da matéria, mas o conhecimento seria da própria coisa (E.C.-357). Matéria e espírito deixariam então de ser caracterizados, como nos clássicos, por uma oposição contornada por um paralelismo ou uma harmonia; apare­ceriam na relação de tensão que produz a especificidade da sua co­existência. Mas para isto a filosofia teria de se instalar na matéria do conhecimento "por um esforço superior de intuição", para que a coin­cidência com o ritmo da duração material se traduzisse nas relações objetivas. Tal esforço de intuição suporia, contudo, que se conside­rasse a matéria como não subordinada a esta faculdade de efetuar relações que é o entendimento. Ora, mantendo a hierarquia clássica e a prerrogativa da razão (da inteligência), Kant considerou a matéria como "mais estreita" que a inteligência, ou, no máximo, "co extensiva" a ela. Conseqüentemente não pôde ver na coincidência entre inteli­gência e matéria uma possível gênese do conhecimento intelectual (E.C.-358). O acordo entre forma e conteúdo tornou-se então impo­sição da forma a uma matéria indiferenciada: a forma passou a fazer as vezes do absoluto. Ainda mais: como esta matéria já é, enquanto origem material do conhecimento, submetida às formas da sensibi­lidade, a coincidência com o ritmo das coisas torna-se impossível: tudo que tenho é uma matéria segunda, predisposta para as sínteses do conhecimento. A camada da coisa-em-si sendo inatingível, as relações intelectuais só poderão redundar numa ciência relativa, uma vez que já é na "atmosfera" intelectual ou formal que a matéria se dá para o conhecimento. O dado não é inteligível, como em Descartes, mas sô aparece como dado em relação ao fundamento formal das relações que sobre ele serão operadas. Kant não teria questionado as pretensões cartesianas; tê-Ias-ia adaptado ao fundamento lógico do conhecimento concebido na medida do entendimento humano". A

62. "Quero dizer que (Kant) aceitou sem discussão a idéia de uma ciência una, capaz de abarcar com a mesma força todas as partes do dado e de coordená-las num sistema com igual solidez em todas as suas panes" (Bergson, E.c., p. 358).

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medida do conhecimento, enquanto repousa materialmente no dado extra-intelectual, é dada pela intuição sensível, origem externa do conhecimento. E só pode haver uma experiência, de um único tipo, porque só há intuição sensível, enquanto captação do dado, capta­ção que é, ao mesmo tempo, organização do dado pelas formas de percepção. Uma vez que só há intuição sensível, a inteligência, en­quanto fator de organização racional, se põe como ordenadora da experiência de conhecimento e a extensão do conhecimento é a ex­tensão do poder de relacionar intelectualmente. Não existe pois ma­neira de captar intelectualmente o fundamento ontológico do conhe­cimento no seu ser-em-s~3.

A razão da recusa kantiana da intuição intelectual ilumina o modo de ser da filosofia kantiana (o seu "espírito") e também nos esclarece acerca do racionalismo que Kant, mais aparentemente do que real­mente, combate. A intuição de elementos descontínuos na forma espacial e temporal é o fundamento material das relações intelec­tuais. Na medida em que esta forma impõe ao conhecimento um caráter fenomênico, tais relações nunca poderão ultrapassar o ámbi­to do relativo. Ora, se a matéria do conhecimento é o mesmo que a forma sensível pela qual a percebemos, e se ela é sempre e por de­finição exterior ao sujeito, a recuperação do objeto físico perdido por Descartes se faz ao preço da constituição do objeto em geral sobre as características do objeto físico enquanto dado externo organizado sensivelmente. O sujeito tem de ser exterior ao objeto para que este recupere a autonomia que o ponto de partida intelectual de Descar­tes lhe havia roubado, ainda que esta autonomia seja relativa. Por isto a intuição não é coincidência, simples captação, mas sim orga­nização. E por isto também Kant não pode conceber nem intuição interna enquanto coincidência consigo próprio, nem intuição intelec­tual enquanto captação de objeto para além da articulação intelectu­al. Assim a percepção da exterioridade é início de conhecimento, mas a percepção da interioridade não o é. A intuição não pode ser identificação com o objeto, material ou inteligível. O conhecimento não pode "instalar-se" nem na materialidade nem no inteligível. O conteúdo tem de ser radicalmente estranho. E como a mediação que leva o dado dessa estranheza ao reduto lógico que lhe conferirá fami­liaridade intelectual é a forma, SÓ o fenômeno externo pode ser apre-

63. "Só existe para ele uma experiência, e a inteligência domina toda a sua extensão" (Bergson, E.c., p. 358).

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5. CRITICA DO MtrODO FILOSÓFICO (I1I)

endido. Por isto, para Bergson, em Kant o conhecimento atinge ple­namente o estatuto simbólico, e quase dinamos que é consciente dele. A redução da objetividade à objetividade física é por sua vez solidária da concepção, que Kant partilha com os clássicos, de que a intuição intelectual, se existe, é intemporal. Sendo assim, e consistindo a crí­tica precisamente em mostrar a vacuidade de um conhecimento do qual está ausente a origem empírica, recuperar o objeto no nível da realidade empírica e temporal significa intuir sensivelmente o dado originalmente material do conhecimento sob a forma da temporali­dade perceptiva: elementos dispersos como matéria de esquemati­zação e síntese intelectual. A dualidade do intuir e do pensar assegu­ra, pois, a presença originária do dado infra-intelectual; mas não per­mite, por outro lado, que o objeto possa ser apreendido para além da rede categorial. O estigma da discursividade, que o entendimento assume com a falsa modéstia de quem vê no fardo uma grandeza, restringe a verdade à descoberta daquilo que a própria razão insti­tuiu para ser descoberto. Assim o espírito se reencontra nas coisas, nunca em si mesmo. Para que ele se reencontrasse a si mesmo seria necessário considerar a possibilidade de um prolongamento da in­tuição da realidade física em intuição da realidade espiritual. Esta continuidade, que Bergson considera analogamente àquela que exis­te entre o infravermelho e o ultravioleta, permitiria a superação do conhecimento de cunho meramente intelectual, e este outro gênero de conhecimento iniciar-se-ia com "uma tomada de posse do espí­rito por si mesmo" (E.C.-359).

De modo que a posição de Kant o faz escolher entre a forma da temporalidade fenomênica e o intemporal, e o criticismo consiste em optar pela primeira alternativa sem que haja um questionamento do sentido da alternativa. Por isto o criticismo é falsamente modesto: ele substitui a eternidade metafisica pelo absoluto lógico, que cumpre a mesma função daquela enquanto fundamentação do conhecimen­to. A relatividade não é mais do que a posse completa da certeza" que

64. "E, necessariamente, se toda experiência possível tem assim garantida sua entra­da nos quadros rígidos e já constituídos do nosso entendimento, é porque (a menos que suponhamos uma harmonia preestabelecida) nosso entendimento organiza ele próprio a natureza e nela se reencontra como num espelho. Donde a pOSSibilidade da ciência, que deverá toda a sua eficácia à sua relatividade, e a impossibilidade da metafísica, uma vez que esta só poderá parodiar, sobre fantasmas de coisas, o traba­lho de organização conceitual que a ciência efetua a sério sobre relações" (Bergson, P.M.-37 - Int. à Met. - ed. Abril).

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dantes era remetida ao horizonte indefinido da perfeição divina. Mas entre a eternidade inapreensível por uma intuição concebida como supra-intelectual. porque concebida em continuidade com a certeza intelectual. e a intuição sensível que erige em forma a priori a voca­ção geométrica da inteligência e o caráter sinótico da percepção. há lugar para o conhecimento que se instala no devir e intui no tempo real. Foi esse meio-termo que os pressupostos racionalistas de Kant o impediram de ver. Como o tempo não pode ser considerado ponto de partida para a apreensão de objetos. mas apenas forma de ligação entre objetos vistos sucessivamente. ele tem de ser ou metafisicamen­te dado como eternidade. ou logicamente dado como forma de sín­tese. E assim a neutralização metafisica do devir - intuição intelec­tual enquanto visão do estático pelo estático - é substituída pela neutralização lógico-formal do devir - organização relativa do dado aparente. Em Kant. portanto. mostra-se mais claramente do que nas outras filosofias - mas talvez porque as outras filosofias mostram­-se. sob tal aspecto. mais claramente em Kant - a negação da tem­poralidade implicada na noção tradicional de intuição. O fato de ser a intuição sensível em Kant a base da construção do objeto revela plenamente que o conhecimento é tanto mais perfeito quanto mais o objeto for subtraído ao tempo. E esta característica se toma para Bergson ainda mais patente quando os pós-kantianos. para retomarem à intuição intelectual e construírem o conhecimento a partir dela. vêem-se compelidos a reconstruir o devir e o dinamismo temporal a partir da base lógica da apreensão direta do Absoluto. A reconstituição do devir é a resposta da filosofia transcendental à impossibilidade. decretada por Kant. de remeter o devir à verdade de uma eternidade real e absoluta.

O sentido da crítica da filosofia kantiana. no que se refere ao problema da intuição. é diferente daquele que norteia a crítica berg­soniana dos sistemas pré-críticos. E isto porque a reflexão kantiana tem na sua gênese a tomada de consciência do caráter aporético da metafisica enquanto vinculada à intuição intelectual. disto resultan­do a interdição da metafisica como conhecimento teórico. A crítica bergsoniana de Kant. a partir daí. não tem a função de mostrar os paradoxos a que o pensamento chega devido a uma inadequação metódica à experiência. mas visa antes de tudo restaurar a possibi­lidade da metafísica. No caso dos sistemas anteriores. tratava-se de mostrar que os resultados metafisicos obtidos por via da neutralização do devir supunham uma relação equivocada entre intuição e expe-

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5. CRITICA DO M8-0DO FILOSOFlCO (111)

riência. uma ruptura derivada do pressuposto de que verdade teórica e devir são incompatíveis. Mas no caso de Kant não há resultados metafísicos: há a demonstração de que a metafísica é incompatível com a objetividade. precisamente porque é incompatível com a ex­periência. O objeto da crítica bergsoniana. no caso de Kant. não é nem o fundamento da atitude especulativa. como nos antigos. nem a concepção das relações entre intuição intelectual e realidade. como nos clássicos. mas sim a própria redefinição de saber teórico. pois é nela que se situa a impossibilidade da metafísica. O paradigma car­tesiano exigia. para o conhecimento. que o objeto externo se colo­casse à altura da interioridade. e isto fazia com que o conhecimento ficasse suspenso à idealidade objetiva. Kant exige que todo conheci­mento esteja à altura da exterioridade suspensa à idealidade trans­cendental. Bergson critica ambas as posições em nome de uma con­tinuidade entre interioridade e exterioridade. continuidade esta que não atribui a nenhum dos dois termos valor absolutamente fundante. Ocorre que a exclusão da coisa-em-si como não acessível à intuição em Kant provoca. juntamente com a hegemonia da objetividade física. a impossibilidade da metafísica. Criticar o fundamento transcendental do conhecimento é ao mesmo tempo refutar esta impossibilidade. Apenas isto terá de ser feito levando em conta a justeza da crítica kan­tiana à concepção e ao uso dogmático da intuição intelectual. E aqui é o ponto exato a partir do qual se deve entender o que significa uma filosofia escapar à crítica kantiana: "As doutrinas que possuem um fun­do de intuição escapam à crítica kantiana na exata medida em que são intuitivas; ( ... )" (P.M.-224/a. 38). A frase beira o truísmo. mas isto mes­mo é que é significativo: significa que a crítica kantiana da intuição intelectual não esgotou todas as possibilidades desta intuição; correla­tivamente. a crítica da metafísica como teoria é a crítica daquilo que historicamente foi visto sempre como o fundamento e as coordenadas da teoria nos seus resultados e no seu modo de efetivar-se. Reencontra­mos um motivo fundamental da crítica bergsoniana de Kant: este acei­ta sem questionar que o ideal tradicional de conhecimento metafísico esgota a possibilidade da metafísica; portanto a metafísica futura morre na explicitação dos seus prolegómenos6S

• E por isto também a

65. "C .. ) se o conhecimento metafísico é o que Kant pretendeu que fosse, ele se reduz à igualdade de pOSSibilidades entre duas atitudes opostas do espírito diante de todos os grandes problemas; suas manifestações são outras tantas opções arbitrárias, sempre efêmeras, entre duas soluções formuladas virtualmente desde toda a eternida­de: ela vive e morre de antinomias" (Bergson, P.M.-37 a - Int. à Met. - Abril).

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restauração bergsoniana da possibilidade da metafisica é na verdade uma reinstauração da metafisica. Esta reinstauração parte precisa­mente da crítica da ruptura absoluta entre intuição sensível e intui­ção intelectual.

Isto porque a experiência no seu sentido originário é experiência integral; trata-se de encontrar esta origem para além ou aquém do significado pragmático que é a experiência organizada em função da percepção e da inteligência. Por isto a crítica da experiência em Kant é vista por Bergson como uma elucidação das condições da repre­sentação pragmática, cuja transposição em teoria Kant herda, sem questionar, dos seus predecessores. A relatividade da apreensão in­telectual do mundo é legítima no plano pragmático, e neste sentido Kant tem razão em denunciar no dogmatismo a confusão entre O

relativo e o absoluto. Mas precisamente a relatividade do conheci­mento intelectual deveria ter alertado Kant para o caráter restrito deste tipo de experiência, o que o teria levado a ver na discursividade do entendimento uma modalidade de conhecimento e não a única possível. Assim ele não teria concebido a intuição intelectual como operação instantânea do entendimento, espécie de discursividade condensada, mas tê-Ia-ia considerado como uma outra faculdade de conhecimento. Por isto a crítica da inteligência como órgão especu­lativo inclui a crítica do cri ti cismo como uma de suas mais acabadas figurações históricas. É apenas ilusoriamente que a apreensão da estrutura da consciência transcendental nos fornece, definitivamen­te esgotadas, as possibilidades de apreensão da verdade teórica66

, na medida em que Kant desenvolve "até as últimas conseqüências", porém não questiona, a ilusão natural de que o conhecimento "pos­sível" é articulação discursiva.

A relação que Bergson vê entre os clássicos e Kant é mais de redução das pretensões do entendimento do que de crítica dessas pretensões. É bem verdade que o exame das condições de represen­tação impede Kant de continuar se movendo no âmbito da matemá­tica universal. O conhecimento não está mais suspenso ao realismo das idéias ou à completude real das relações; ele agora está depen­dente de "funções de unidade" lógico-transcendentais que organi-

Cf. M. Barthélemy~Madaule, Bergson Adversaire de Kant, PUF, 1966: "Kant está no limiar de um mundo que perdeu o eterno e que ainda não conquistou o tem­po" (p. 63).

66. Cf. M. Barthélemy-Madaule, ob. cit., p. 85.

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5. CRiTICA DO MÉTODO FILOSÓFICO (III)

zam a representação de forma relativa. O principal resultado do exa­me kantiano das condições de representação foi mostrar a impossi­bilidade da intuição intelectual; este exame tem a sua origem refle­xiva na constatação do caráter antinômico da metafisica dogmática. Mas Kant entende por metafisica precisamente esta modalidade do pensamento que resulta em antinomias. Sendo assim, alijou desta modalidade de pensamento a verdade teórica e manteve as relações efetuadas pelo entendimento no âmbito da garantia lógico-transcen­dental. Ou seja, reduziu as pretensões de Platão àquelas de Galileu e fez das condições gnosiológicas da fisica newtoniana a instância auto­-suficiente do conhecimento, fazendo com que o problema do fun­damento, no nível da teoria, se resolvesse em termos da transcen­dentalidade do entendimento e não da transcendência divina. Mas reduzir desta maneira o horizonte clássico, herdeiro de Platão, é real­mente criticar os fundamentos da pretensão de conhecer, ou é tor­nar esta pretensão compatível com o desmoronamento do sonho da mathesis universalis'r' A resposta a esta pergunta deve ser procurada não apenas na delimitação rígida da teoria na Analítica, mas também no exame dos mecanismos reguladores da ciência e no ideal arqui­tetônico do saber descritos na Dialética. Em todo caso, não seria talvez descrever de forma totalmente inexata o kantismo dizer que, nele, o filósofo platoniza com os pés no chão e o olhar disciplinada­mente posto na horizontalidade da expansão fragmentária do saber teórico, dispensando-se de afirmar teoricamente os pressupostos transcendentes que ele transformou em condições transcendentais. "Modelar toda experiência possível em moldes preexistentes" (P.M.-37): tal é a definição bergsoniana de platonizar. E ela recobre então o inatismo, as disposições e as idealidades, ou seja, configura o eixo da filosofia moderna, cujas diferenças internas não se instituíram nunca como rupturas com este pressuposto básico.

Assim, como se vê, a interdição kantiana da metafisica é estrei­tamente solidária da metafisica que Kant conserva em negativo. A

67. «A matemática universal é o que se toma o mundo das idéias quando supomos que a Idéia consiste numa relação e numa lei, e não mais numa coisa. Kant tomou por realidade este sonho de alguns mósofos modernos; ainda mais, acreditou que todo conhecimento científico seria apenas um fragmento separado, ou melhor, um sinal antecipador da matemática universal. A partir daí a principal tarefa da crítica consistia em fundar esta matemática, isto é, em determinar o que deveria ser a inteligência e o que deveria ser o objeto para que uma matemática ininterrupta pudesse ligá-los um ao outro" (Bergson, P.M.-36-7 - lnt. à Met. - Abril).

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impossibilidade da intuição intelectual é estreitamente solidária da concepção do sujeito que intui e do objeto intuído, e o processo deconstruído nas três seções da Dialética tem o valor de crítica his­tórica mas não da desmistificação da gênese do conhecimento. Por isto a critica da intuição vale para a intuição de índole platonizante: Kant não podia conceber outra, visto que para ele a índole platônica é a essência da metafisica, como de todo conhecimento. Por isto ele acreditou estabelecer fundamentos mais sólidos para a ciência quan­do a tornou consciente do seu platonismo e, assim, relativa, ao mes­mo tempo em que mostrava o caráter artificioso do conhecimento metafísico que se quer não-relativo. A crítica kantiana da metafisica e do seu instrumento, a intuição intelectual, é o prolegômeno mais útil para entender-se a proposta bergsoniana de conhecimento me­tafisico e da intuição como oposta à inteligência. A visão do caráter prévio e negativo dessa crítica nos deixa em condições de assimilar melhor a especificidade e o alcance da deconstrução bergsoniana da História da Filosofia na medida mesma em que tal deconstrução nos mostra o kantismo, no seu subsolo, fiel aos procedimentos cujos resultados critica. E dessa forma pode parecer bem menos gratuita a afirmação de Bergson de que toda filosofia intuitiva escapa da crítica kantiana na exata medida em que é intuitiva. Porque o que está ex­presso nesta frase é que os sistemas históricos criticados por Kant sujeitam-se à crítica na exata medida em que não são verdadeira­mente intuitivos. A crítica kantiana atinge o alvo e destrói a metafi­sica, mas há um secreto acordo que permite o combate: é precisa­mente o inimigo colocar-se em posição favorável para o fogo das baterias da crítica. Uma filosofia que veja na intuição a alternativa para o conhecimento metafísico a partir de uma consideração gené­tica do conhecimento intelectual e de sua inadequação ao objeto metafísico escapa ao confronto porque não se move no terreno co­mum: a discursividade, a índole platônica do conhecimento.

É sintomático que o real na sua efetividade esteja ausente tanto da parte positiva como da parte negativa do kantismo. Na metafisica não há material intuitivo com o qual possamos construir o conheci­mento, aplicando a este material as formas do entendimento, como ocorre na ciência. Isto significa que o conhecimento não é contato com a experiência, mas construção dela: Kant denuncia aqueles que constroem apenas no nível da forma, sem a prévia apreensão do conteúdo. Essa meia-fidelidade ao real, expressa na dupla origem do conhecimento, é que, para Bergson, faz de Kant um platônico que

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5. CRITICA DO MÉTODO FILOSÓFICO (III)

perdeu o Mundo das Idéias na positividade da sua transcendência e que, ainda sob o fascínio do que já não possui, trata de construir um sucedâneo mais compatível com a presença de uma aparência que já não pode mais ser simplesmente superada. A atitude teórica não pode mais se traduzir na visão direta, ainda que intermitente, da verdade no plano supra-sensível, ou na referência a um objeto inteligível in­tuitiva ou analiticamente estabelecido. A atitude teórica é uma cons­trução racional que depende da atividade do entendimento; ela é elaboração, mais que contemplação. Se a filosofia de Kant exprime dessa maneira, no seu pleno sentido, o novo estatuto do sujeito pe­rante a natureza, se o sujeito é agora produtor e transformador e a explicação do mundo uma elaboração construtiva na medida do sujeito, a verdade continua no entanto totalmente dependente da subtração das representações do devir. Diz Bergson que Kant subs­tituiu a condição necessária da verdade entre os clássicos pela condi­ção suficiente de uma verdade concebida como elaboração humana (E.C.-356). Mas se a verdade perdeu o lugar transcendente que ocu­pava em relação ao intelecto humano, a transcendência em relação ao devir permaneceu da mesma maneira: a verdade não é divina porque o homem a constitui, mas a relação do aparato transcenden­tal ao empírico repete a forma da transcendência, o lógico tendo de alguma maneira assumido o lugar do teológico. Podemos por conse­qüência falar de um sentido transcendente da verdade em Kant, se com isso entendermos a desvinculação entre teoria e devir. A conti­nuidade que Bergson vê entre Kant e os seus predecessores fica sem dúvida difícil de aceitar diante da interpretação mais corrente que vê no criticismo a instauração de uma forma de reflexão. Da perspecti­va bergsoniana, no entanto, esta mudança ilude pelo fato de que a crítica da metafisica histórica esconde a metafisica implícita na pró­pria definição de racionalidade, que Kant não questiona. É neste sentido que a crítica aparece como redução: a destruição da metafí­sica deixa subsistir o que de metafísica havia na própria estrutura da relação sujeito-objeto, dimensionada por Kant aos limites da intui­ção sensível (E.C.-357).

A reinstauração da intuição como instrumento da metafisica passa pela crítica genética da estrutura sujeito-objeto, porque é isto que vai nos impedir de continuar vendo na intuição a inteligibilidade perfei­ta, que seria uma síntese orgânica de entendimento e percepção. Mas para que isto seja possível é necessário que não procuremos mais a todo custo captar a substancialidade do real como coisa, ou

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objeto definitivamente estruturado diante do sujeito. É necessário que invertamos a maneira de pensar que vê na temporalidade o obstáculo maior para a objetividade. Trata-se de entender que o tem­po não é condição prévia a ser tematizada pela reflexão transcen­dental como forma de conhecimento: o conhecimento se dá no tem­po e a objetividade (a verdade) tem de ser pensada como compatível com o fluxo imanente do devir. A reflexão sobre o kantismo fornece, pois, ainda que em contrapartida, uma visão do alcance que deverá ter a "inversão da marcha habitual do pensamento" que Bergson proporá como condição para o exercício da intuição.

6. CRÍTICA DA IDÉIA GERAL -O CONTORNO EXTERIOR DA INTUIÇÃO

A questão da organização como procedimento gnosiológico faz com que o problema das idéias gerais se ponha "por ocasião de todo problema filosófico", na medida em que a estrutura do conhecimen­to, para Bergson, é sempre pensada com referência à questão dos gêneros e das leis68• A problemática das idéias gerais se confunde, num certo nível, com a própria questão do fundamento do conheci­mento. Este cruzamento em Bergson constitui um tema critico den­tro do problema do conhecimento: o pressuposto da generalização como procedimento gnosiológico faz com que as idéias gerais adqui­ram caráter fundante, na medida em que se põem como fatores de inteligibilidade do real. A crítica genética se dá então por tarefa a elucidação do próprio fundamento da idéia geral. Este fundamento pode ser visto sob dois aspectos: ontológico e operatório. Do primei­ro ponto de vista, entende-se que, sendo a realidade constituída a partir de um Princípio, o conhecimento retoma a ordem do serquan­do estabelece real e logicamente as generalidades de que deriva o particular, ainda que este seja ponto de partida na ordem do conhe­cer. Do ponto de vista operatório, entende-se que a representação da realidade fundamenta-se na representação de generalidades que per­mite ao conhecimento estabelecer uma ordem tanto no sentido ho­rizontal (agrupamentos de individuos sob uma mesma representa­ção) como vertical (hierarquia das representações a partir do critério

68. ~( ... ) a questão da origem e do valor das idéias gerais se põe por ocasião de todo problema fIlosófico, e reclama em cada caso uma solução particular" (Bergson, P.M.-128, Abril).

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6. CRITICA DA IDÉIA GERAL - O CONTORNO EXTERIOR DA INTUIÇÃO

de generalidade). A critica genética dará conta das duas perspectivas se questionar ao mesmo tempo o modo de operar da inteligência que resulta na generalização e a razão dela, tanto no plano da lógica como no nível da estrutura do real".

A primeira questão é em que instância buscar o fundamento da idéia geral. Se considerarmos a questão a partir unicamente do papel que a idéia geral desempenha no conhecimento, ela aparecerá como o próprio fundamento, ao menos no nível lógico. Mas se estender­mos este questionamento até a razão do estatuto que possui a idéia geral, encontraremos a instância do que poderíamos chamar função noética de generalização. A instância noética não é simplesmente, no caso, a subjetividade que generaliza no sentido do ato mental da generalização. É a "faculdade de conceber ou de perceber generali­dades" entendida como função psicológica que serve à apreensão da realidade tal como a inteligência e a percepção a estruturam. Isto sig­nifica que a representação enquanto apreensão subjetiva do real é guiada por certos critérios cujos fundamentos não se encontram numa instância lógico-objetiva. Todas as faculdades psicológicas são em primeiro lugar faculdades do ser vivo, que servem portanto a um desígnio natural: a manutenção deste ser em estado de interação satisfatória com o seu meio. O plano biológico, e não o lógico, é que fornece a razão da presença em nós da faculdade de generalizar, que portanto tem primeiramente uma função não-te6rica, encontrada tanto no homem como em outros animais. A transposição da facul­dade natural em ato puro do espírito oculta a totalidade orgânica do homem, a naturalização do espírito normalmente absorvido na matéria e exercendo primeiramente apenas funções necessárias à interação entre o ser humano e o mundo que o rodeia. O vicio das teorias do conhecimento foi sempre o de estabelecer diretamente a estrutura dos procedimentos gnosiológicos como se o espírito fosse separado ou separável do contexto material em que se encontra, das necessidades inerentes ao ser vivo (P.M.-128, Abril). O fundamento, portanto, encontra-se no nível pragmático. A subjetividade lógica é transfiguração da estrutura prática de relacionamento com o real. O estabelecimento do fundamento nesta instância dissolve a pretensa autonomia do ato de conhecer no nível da inteligência. Faz-nos ver

69. "mas a questão importante para o filósofo é saber através de sua operação, de­vido a que razão, e sobretudo em virtude de que estrutura do real as coisas podem ser assim agrupadas ( ... )" (Bergson, P.M.- 128, Abril).

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também que não há sentido em atribuir diretamente à generalização enquanto procedimento de ordenação do real algum fundamento ontológico, a que este procedimento estaria ligado por identificação ou adequação. É pela via do encontro do fundamento biológico das formas de ordenação do real que Bergson vem a concordar com Kant acerca da relatividade da representação e da estruturação intelectual do mundo. Se são as "exigências fundamentais da vida" os critérios da generalização como procedimento ordenador, cabe perguntar, em relação ao problema do fundamento ontológico, pelo possível cará­ter artificial da generalização. Cabe perguntar se as necessidades vitais, critérios de articulação, correspondem à articulação da reali­dade em si. A faculdade de generalização, como todas as demais, não existe gratuitamente; não existe apenas em função do luxo tardio do conhecimento puro. É na sua instância originariamente pragmática que devemos defini-la, se queremos traçar a gênese da apreensão do mundo através das generalidades. A critica genética procura captar o seu objeto, metodicamente, numa instância anterior à sua aplicação no conhecimento dito teórico.

A gênese da idéia geral contém pelo menos dois momentos: 1) extração automática de semelhanças; 2) idéia geral consciente. No primeiro momento, constata-se que a generalização é característica de todo ser vivo, mesmo os seres elementares e primitivos como o próprio tecido do ser vivo, porque ela é a atividade que permite que o ser utilize os elementos do meio ambiente para sobreviver. Existe uma classificação e seleção dos materiais disponíveis à volta, e seu critério é a satisfação de necessidades. Para que tal ocorra é neces­sário que haja um reconhecimento de propriedades comuns a várias substâncias, o isolamento destas propriedades de outras no objeto e a assimilação daquelas a partir de um critério geral que as torna semelhantes em função de satisfazerem certas necessidades. Neste caso, a total inerência do processo de generalização ao próprio pro­cesso vital faz com que a generalização seja vivida e não pensada, uma vez que o animal não reflete sobre o próprio ato de abstrair nem procura conscientemente realizá-lo. A representação da semelhança extraída provavelmente não se constitui numa representação inde­pendente: ela se consome nos .elementos agrupados a partir dela. Quando passamos ao homem, não constatamos outro processo de generalização; o que existe é o mesmo processo ao qual se acrescen­tam a reflexão e a intencionalidade. Tanto é assim que, na origem da generalização encontramos, também no caso do homem, a extração

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6. CRfTlCA DA IDÉlA GERAL - o CONTORNO EXTERIOR DA INTUIÇÃO

de semelhanças como representação vivida (P.M.-129, Abril). A refle­xão e a intencionalidade não estão presentes neste plano da genera­lização, já que ele é a instância originariamente produtora da gene­ralidade, e nesse nível tanto o homem como o animal vivenciam idêntico processo. Entre esse nível e a idéia geral consciente existe a camada intermediária das generalizações, fruto do hábito, portanto não praticadas sempre e totalmente de maneira intencional e refle­tida, na medida em que o hábito é um acréscimo do instinto.

Mas o que caracteriza verdadeiramente a generalização no caso do homem é a função da consciência que realiza deliberadamente extrações de semelhança na realidade como parte da articulação geral a que submetemos o que está no universo da percepção. A intencio­nalidade refletida se acrescenta então à base comum da generaliza­ção. É importante notar que esta base comum são as necessidades de sobrevivência que impõem uma relação utilitária com o real: o real em si não fornece fundamento algum para a generalização. Por isso o gênero é sempre artificial e instituído em função da interação necessária entre percepção e ação70• A artificialidade do gênero pos­sibilita a liberdade de generalizar para além dos critérios estritamen­te pragmáticos (P.M.-129, Abril). A finalidade da percepção prefigura a generalização: na verdade toda percepção é generalização nascen­te. A generalização é primeiramente utilitária. A partir daí, da toma­da de consciência do poder de generalizar, esta atividade se estende para muito além das coordenadas da intenção pragmática sujeito­-mundo: ela se torna mecanismo de interação do sujeito com o ob­jeto, torna-se instrumento de conhecimento. Isto acontece ainda a partir da "identidade de reações" a diferentes estímulos que organiza o plano de ação sobre a realidade. Esta identidade de reações é a base sobre a qual se construirá o ideal de unidade do saber que vai nortear a especulação, o que será feito através do procedimento a que Bergson chama introdução de semelhança. Este procedimento, antes de ser um procedimento lógico, é algo que ocorre imediata­mente no nível da base biológica da generalização. O que nos leva a acentuar mais uma vez a autonomia deste processo em relação à realidade mesma e o caráter artificial da articulação assim praticada.

70. "A semelhança entre coisas ou estados que declaramos perceber é, antes de mais nada, a propriedade, comum a estes estados ou a estas coisas, de obter do nosso corpo a mesma relação, de fazê-lo esboçar a mesma atitude ou começar os mesmos movimentos." (Bergson, P.M.-129, Abril).

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No nível do conhecimento dito "desinteressado", o procedimento de generalização passa a constituir a característica talvez mais marcan­te da instância gnosiológica a que chamamos o sujeito. É aqui que aparece o caráter propriamente espiritual da generalização. Enquan­to procedimento espontâneo, ela é atitude material: as reações, na medida em que são movimentos ou esboços de movimentos, intro­duzem no real semelhanças provenientes da identidade de reações, e os hábitos criam quadros materiais em que se coordenam analogia de estímulos e identidade de reações. É claro que a linguagem de­sempenha aí papel importante, na medida em que cristaliza a refe­rência do comportamento ao real. Na linguagem estão os símbolos que condensam a diversidade e que permitem que o real seja referi­do segundo a identidade de reações que provoca. Mas por ser uma referência geral, a palavra logo obscurece nela mesma a pluralidade dos seus significados originários, e passamos a entender a multipli­cidade do que nela é referido quase como se fosse uma coisa, pas­sando a inexistir na prática a diferença entre a unidade do termo e a pluralidade do real. Esta independência da palavra é que a torna o quadro ideal no qual se insere a generalização refletida e deliberada. Quando a generalização se torna ato de reflexão, ela encontra um quadro espiritual pronto para abrigá-la: a palavra, cuja relação origi­nariamente múltipla com as coisas já foi esquecida, e que assim se torna como que o conteúdo inteligível de um ato de pensamento (P.M.-130, Abril). É assim que o resultado da generalização aparece não só como desvinculado do empírico, mas ainda como possuindo força geradora, real ou logicamente, do devir. Todo particular apare­ce como dependendo, implicitamente, de algo geral que o condiciona, que lhe confere realidade ou, ao menos, valor lógico de verdade. Assim, toda teoria do conhecimento que não considera a vinculação entre o vital e o teórico, no plano da inteligência, está fadada a tomar por origem algo que na verdade é produto.

Mas se, na origem, coisas diferentes provocaram reações idênti­cas, é porque foi possível agrupá-las por semelhança e esta possibi­lidade se traduziu no resultado positivo, pragmaticamente falando, do agrupamento assim feito. A introdução de semelhança é procedi­mento válido no plano vital porque a natureza, de certa forma, per­mite tal introdução. Não é por outra razão que a generalização é primeiramente um ato espontâneo. É isto que leva Bergson a afir­mar. contrariando aparentemente o caráter artificial da generaliza­ção anteriormente enunciado. que "entre estas semelhanças. algu-

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mas. sem dúvida. correspondem à essência das coisas" (P.M.-I30. Abril). Haveria. então. semelhanças inerentes às coisas? E seria a ge­neralização. no seu grau artificial, um prolongamento destas? Quan­do vimos a generalização como introdução de semelhanças desde o nível mais primário de relacionamento com o meio até a mais elabo­rada teoria. julgamos ter encontrado o verdadeiro caráter da genera­lização: a artificialidade, o fato de ser ela um ato que organiza o real. É preciso esclarecer em que sentido se pode dizer que a considera­ção de semelhanças. num certo nível. é um procedimento mais de acordo com as próprias coisas. E isto é tanto mais importante quanto Bergson afirma que, de certa forma. as generalizações artificiais de­pendem da constatação dessa espécie de semelhança que certas coisas possuiriam naturalmente (P.M.-130, Abril).

Vimos mais atrás que. num certo sentido, tudo é diferente e. num outro, tudo é semelhante. O que nos permite dizer que as coisas são semelhantes? Com relação aos seres organizados, primeiramente, é a negligência da diferença que possibilita a introdução da semelhan­ça e sua consideração como critério classificatório. E estamos bem à vontade para negligenciar diferenças porque a evolução trabalha len­tamente, ao menos na escala do tempo humano. Esta lentidão per­mite que. com relativa facilidade. agrupemos os seres pela continui­dade e deixemos de lado a transformação que. no entanto. incessan­temente ocorre7l • Como esta se dá de maneira lenta e nunca ao preço de um desaparecimento completo de propriedades, o surgimento do novo se torna de alguma maneira compatível com a manutenção do antigo. de modo que podemos sempre considerar características comuns a seres diferentes. ou seja. considerar o que se mantém e não o que se transforma. É dessa maneira que nossas classificações. num certo sentido, estarão fundadas na "realidade mesma" (P.M.-I3I. Abril) na medida em que escolhermos para critério classificatório a identidade parcial daquilo que, por outro lado. difere. Ora. se no mundo dos seres vivos podemos considerar tais semelhanças. no nível do inorganizado com muito maior razão aparecerá a identidade das

71. "( ... ) a vida trabalha como se ela própria possuísse idéias gerais, de gênero e es­pécie, como se ela seguisse planos de estruturas em número limitado, como se ela hou­vesse instituído propriedades gerais, enfim, como se ela houvesse desejado, pelo duplo efeito da transmissão hereditária (pelo que é inato) e da transformação mais ou menos lenta, dispor os seres vivos em série hierárquica. ao longo de uma escala em que as semelhanças entre indivíduos são tanto mais numerosas quanto mais alto nos elevar­mos na escala" (Bergson, P.M.-130-1, Abril).

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qualidades físicas e dos elementos que entram nas substâncias com­postas, quando não entre os próprios compostos. E isto ocorre na medida em que o que importa aí é mais a relação dos elementos em presença do que as características intrínsecas de cada um. É certa relação entre o hidrogênio e o oxigênio que produz a água; o peso e o calor são forças físicas que abstraímos facilmente da variedade de fenômenos em que aparecem. Mesmo uma qualidade como o ver­melho pode ser considerada idêntica a si mesma nos vários objetos em que aparece. O mesmo pode ocorrer com o som. E a extensão como qualidade geométrica é sempre a mesma nas diversas configu­rações do espaço. De modo que, no plano estritamente físico, ultra­passamos rapidamente as semelhanças na direção da identidade matemática. E na medida em que o ideal do conhecimento da ma­téria é a resolução do químico no físico e deste no matemático, a identidade numérica aparece como sendo o horizonte da generaliza­ção (P.M.-131, Abril).

Mas mesmo no plano dos eventos físicos considerados idênticos, é possível ver que esta identidade provém mais de nós do que das coisas. Na verdade, tornamos possível esta identidade pela captação seletiva, no nível da percepção, de qualidades idênticas em objetos ou eventos diversos. No caso do exemplo da cor, que não é outra coisa senão condensação de freqüência, a identidade se dá porque captamos sempre a mesma freqüência, entre as muitas que ocorrem, nos diversos objetos com os quais se relaciona o fenômeno da cor. A nossa percepção recolhe essas freqüências, correspondentes a deter­minadas cores, porque são elas que permitem precisamente que percebamos a cor; e como perceber esta qualidade é uma forma de identificar objetos, a estrutura perceptiva atua seletivamente no cam­po das freqüências, organizando a visão da forma mais conveniente para o reconhecimento e a ação. Lembremos que perceber é prepa­rar-se para agir. O critério da percepção é a ação sobre o objeto percebido. A forma de perceber, que inclui a identidade de proprie­dades em objetos diversos, responde à necessidade pragmática de relacionamento satisfatório com as coisas". O real não pode dissol­ver-se diante de nós na multiplicidade complexa dos seus eventos

72. "( ... ) é esta ação virtual que extrai da matéria nossas percepções reais, informa­ções de que temos necessidade para nos guiar, condensações, num instante da nossa duração, de milhares, de milhões, de trilhões de eventos, que se realizam na duração, incrivelmente menos tensa, das coisas ( ... )" (Bergson, P.M.-132, Abril).

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elementares: nossa ação seria impossível. Por isto a percepção con­densa e generaliza: segundo Bergson, o progresso do conhecimento da matéria nos seus elementos tende a demonstrar cada vez mais que percebemos em geral, percebemos na escala da nossa duração e não na escala das próprias coisas. A captação de determinada fre­qüência é a "ordem de grandeza" da percepção: por meio dela ocor­re a condensação dos eventos elementares que me fornece os obje­tos na consistência em que os percebo. A materialidade não é outra coisa senão o processo de realização de todas as freqüências possí­veis; a materialidade percebida é a captação da freqüência mais ade­quada para a ação sobre o real. A identidade, no caso, é a captação sempre da mesma freqüência. A estrutura do mundo percebido é a estrutura do mundo em si porque a freqüência captada é uma das freqüências realizadas. Outras poderiam ser percebidas, formando assim outros mundos percebidos. Trata-se de diferentes freqüências numéricas que estão por trás de diferentes percepções qualitativas. Existe uma "matemática imanente às coisas" que é responsável pela estrutura qualitativa específica da nossa percepção (P.M.-133, Abril).

Uma vez elucidadas as generalidades de cunho biológico e físico, ficamos em condições de entender as idéias gerais criadas propria­mente pela especulação. Nestas o essencial é ainda o critério prag­mático: serão criadas idéias gerais que favoreçam a ação e a sociabi­lidade. Elas são gêneros que definem o esquema geral de utensílios e procedimentos elaborados a partir do interesse sociobiológico. Mas a reflexão acaba por nos fornecer algo como a "idéia geral da idéia geral". E com isso elaboramos idéias gerais no âmbito da especula­ção pura ou mesmo "gratuitamente". No entanto, o percurso crítico mostra que a elevação e o desinteresse dessas idéias fundamentam­-se na base biológica que vimos ser o estrato originário da generali­zação. O último tipo de idéias gerais que mencionamos não possui a referência objetiva do ponto de vista biológico e físico, mas benefi­cia-se desta referência, e o caráter desinteressado que aparenta pos­suir lhe dá um valor quase absoluto, valor este que não é mais do que a transfiguração do valor pragmático que a generalização originaria­mente possui.

Para avaliar o papel que a generalização desempenhou ao longo da história das teorias do conhecimento, Bergson nos remete a uma comparação entre Aristóteles e Galileu. Já vimos como para os anti­gos a realidade podia ser compreendida como um sistema de gêne­ros que não é outra coisa senão a expressão da ordem natural. Assim

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a posição dos objetos nesta ordem é função do gênero a que perten­cem". Assim a complexidade genérica é a contrapartida da conside­ração do objeto físico de maneira análoga ao ser vivo: em vez de relação temos famílias de objetos que se definem pelo gênero a que pertencem e cujo comportamento fisico se subordina ao que está definido no gênero. Se os antigos remetiam as leis aos gêneros, os modernos remetem os gêneros às leis, de forma que a ordem natural se torna um complexo de relações entre coisas ou entre fatos. O que subjaz às duas concepções é a idéia de uma ciência una e integral, que organiza o real ou em gêneros ou em leis. Apenas, quando o real é organizado em leis - complexo de relações - e a posição dos objetos na ordem cósmica deixa de ser concebida em função da es­sência que os vincula a um gênero, a ciência torna-se relativa, pois somente considera as posições dos objetos uns em relação aos ou­tros a partir de variáveis que definem a constância das relações. Uma vez esse tipo de conhecimento instaurado como único possível, a generalização efetuada na instância a que antes chamamos vital ou biológica será concebida também como relação de caracteres toma­dos como variáveis, o que introduz um elemento de convenção na esfera da consideração do ser natural. Assim como os antigos iden­tificavam o fisico ao vital, os modernos reduzem o vital ao físico (E.c.-231). O pressuposto de uma única ordem faz com que o conheci­mento obedeça a um único tipo de generalização: complexidade genérica ou complexidade de leis.

Tudo isto significa que, no limite, o conhecimento encontra o objeto feito: disto já se encarregou a instância sociobiológica, que é a origem da generalização. A reinstauração da metafísica supõe que descartemos este pensamento conceitual que parte de uma visão pré­-teórica do objeto. A filosofia, na medida em que não se quer mais um produto da vocação pragmática e discursiva da inteligência, pre­cisa se dar o objeto de uma outra forma, de uma forma que não se subordine, enfim, às necessidades humanas que condicionam a ob-

73. Por isto a física aristotélica está povoada de conceitos qualitativos tais como movimento natural, movimento violento, alto, baixo, lugar natural etc., cada um deles exprimindo uma certa delimitação genérica que nos dá a especificidade do objeto em questão. "( ... ) a lei física em virtude da qual a pedra cai, exprime para ele (Aristóteles) que a pedra retoma o "lugar natural" de todas as pedras, isto é, a terra. A pedra, a seus olhos, não é totalmente pedra enquanto não se encontrar no seu lugar normal; reto­mando este lugar, ela visa se completar, como um ser que amadurece, e realizar assim plenamente a essência do gênero pedra" (Bergson, E.C-229).

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jetividade no nível da inteligência". A escala das necessidades huma­nas é a escala do tempo "lastreado de espacialidade" (E.C.-231) no qual toda a realidade aparece como o complexo relacional da reali­dade física percebida. É, portanto, necessário distinguir as duas or­dens, a física e a vital: não para reduzir a primeira à segunda no afã de estabelecer uma totalidade única ou um objeto em geral, mas para criar condições de, vinculando a estrutura do conhecimento à evolu­ção da vida, coincidir, por um procedimento de engendramento pelo pensamento, com o processo criador pelo qual a realidade se faz enquanto geração de diferenças numa temporalidade heterogênea e fluente. Somos vitimas de uma ambigüidade inevitável quando fala­mos do tempo humano. A temporalidade na qual a inteligência se insere para satisfazer as necessidades humanas é um tempo criado por ela mesma a partir da estruturação do real pela percepção. Mas a descoberta da especificidade da consciência é também o desvela­mento da temporalidade verdadeira, a princípio velada pela percep­ção. De modo que o problema da origem do conhecimento deve ser considerado de duas maneiras. Há uma origem do conhecimento que é a percepção: a partir dela prolongamos a vocação pragmática do "eu superficial" e constituímos a subjetividade epistemológica que opera generalizações com a finalidade de estruturar simbolicamente o real para que possamos implementar esquemas de ações sobre ele. Mas se a reflexão inverte esta projeção externa da subjetividade e capta a duração da consciência no nível do "eu profundo", encontra­mos a coincidência do eu consigo próprio também como uma ori­gem do conhecimento. A partir desta origem podemos considerar a duração psicológica na sua profundidade e especificidade como in­dicação de uma outra forma de considerar o dado. Não mais O dado organizado no âmbito pragmático da percepção e do intelecto, mas o dado imediato. A consciência é forma de acesso à temporalidade originária. É O tempo que gera realidades. Coincidir com esta tempo­ralidade originária é adotar o "pensamento gerador" (P.M.-135) que põe a reflexão no compasso do processo realizador. A primeira con-

74. Esta filosofia ( ... ) desviar-se-á freqüentemente da visão social do objeto ufeito"; ela nos convidará a participar em espírito do ato que o faz. Com efeito, é propriamen­te humano o trabalho de um pensamento individual que aceita, tal qual, sua inserção no pensamento social, e que utiliza idéias preexistentes como outro utensílio forne­cido pela comunidade. Mas já existe qualquer coisa de quase divino no esforço, por mais insignificante que seja, de um espírito que se re-insere "no elã vital, gerador das sociedades que são geradoras de idéias" (Bergson, P.M.-133-4, Abril).

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seqüência desta reflexão invertida é ainda de ordem crítica: consiste em assinalar a presença de ilusões naturais na especulação. A gene­ralização como posição de anterioridades lógicas que condicionam a apreensão da ordem natural é uma dessas ilusões. A generalização crescente termina por condicionar a apreensão do ser àquilo que não é: dessa maneira foi que surgiu a pergunta especulativa pela possibilidade da existência em geral que traz em si a resposta para­doxal de que o ser foi como que extraído do nada (P.M.-134, Abril). Como se a plenitude do ser precisasse de uma razão fora dela mes­ma, e que só pode então ser o nada, que assim ganha uma anterio­ridade de direito em relação ao ser. Mas se abandonamos a busca de conceitos cada vez mais abrangentes e que nos conduzem ao nada como à fonte do ser, se adotamos o pensamento gerador, vemos logo que somente o ser pode gerar o ser, num processo de transfiguração qualitativa que ultrapassa qualquer possibilidade de conceitualizar, na medida em que conceitualizar é conferir ao ser a ordem do enten­dimento e compreendê-lo na escala das prerrogativas pragmáticas da inteligência.

Eis a razão pela qual o verdadeiro, na sua origem, tem de ser percebido intuitivamente. A intuição é a percepção espiritual que se dá depois que o espírito inverteu a "marcha habitual do pensamen­to". Isto não significa alijar a inteligência definitivamente do proces­so de conhecimento. A intuição é contato supra-intelectual; mas a intermitência deste contato tem de ser compensada pelo contato intelectual, por um procedimento analítico que, consciente da ativi­dade simbólica da inteligência, está também consciente da possibi­lidade de superar o simbolismo".

75. "Assim como o mergulhador vai tocar no fundo das águas os destroços que o aviador assinalou no alto, a inteligência, imersa no conceptual, verificará ponto por ponto, por contato, analiticamente, o que já foi objeto de uma visão sintética e supra­-intelectual. Sem uma advertência vinda de fora o pensamento de uma ilusão possível não teria nem mesmo aparecido, já que sua ilusão fazia parte de sua natureza" (Berg­son, P.M.-128, Abril).

A metáfora aqui utilizada não nos deve fazer entender que a intuição seja um sobre­vôo e uma visão distante do objeto. A intuição é forma de contato, mas este contato não é, enquanto intuição, análise do objeto; é visão direta do que o objeto é em si mesmo. Munida desta visão, ou exercendo-se a partir dela, a inteligência pode tomar contato analítico com o objeto, porque o respaldo da intuição impedirá a inteligência de articular o objeto unicamente segundo seus próprios critérios. Ao contrário, ela desarticulará aquilo que a percepção usual nos dá simbolicamente articulado. Isto significa que a inteligência não se opõe irredutivelmente à intuição, como uma coisa se opõe à outra. O que há é uma oposição de direção: por isto a inversão da reflexão

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o problema da simbolização como característica da apreensão inteligente do mundo constitui a base necessária para pensar a rela­ção entre método filosófico e imagem. Sendo o pressuposto do co­nhecimento analítico a divisão calcada no espaço e que possibilita decomposição e recomposição conceituais, a questão do método fi­losófico como possibilidade do conhecimento não simbólico nos envia à procura de procedimentos cognitivos que tendam a eliminar a mediação do conceito e proporcionar um conhecimento direto. A intuição é este conhecimento direto, mas o problema que se põe, precisamente porque a intuição é conhecimento, é o da expressão da intuição. O conteúdo da intuição será expresso na linguagem e, por­tanto, por meio do simbolismo característico dela". A partir daí sur­ge a contradição ou o impasse que provém da inadequação entre as formas de expressão e o conhecimento obtido por meio da intuição. O impasse põe em questão a própria especificidade do conhecimen­to metafísico. Se a metafísica é a ciência que pretende dispensar os símbolos" e ao mesmo tempo a expressão do conhecimento metafí­sico é obrigatoriamente simbólica, a especificidade da metafísica fi­caria talvez reduzida ao inefável. Neste caso não se poderia falar de método. No entanto, para Bergson, a intuição é método filosófico e a superação do simbolismo da linguagem não é simplesmente o mutismo do filósofo fechado na sua própria contemplação. Isto sig­nifica que a expressão do conteúdo da intuição vai depender de uma

reflete-se também numa certa inversão do trabalho da inteligência, o que não deixa de representar um esforço violento e antinatural para ela: "( ... ) desde que percebemos intuitivamente o verdadeiro, nossa inteligência se apruma, se corrige, formula intelectualmente seu erro" (Bergson, P.M.-135). A formulação do erro é o reconheci­mento da ilusão, que dá a possibilidade de superar a articulação simbólica. A partir daí a inteligência pode desempenhar uma função positiva: "Ela recebeu a sugestão; ela fornece o controle". (id., ibid.).

76. "A intuição, aliás, somente será comunicada através da inteligência. Ela é mais que idéia, ela deverá todavia, para lograr transmitir-se, cavalgar algumas idéias." (Berg­son, P.M.-122, Abril).

77. U A principal razão de ser da metafísica é uma ruptura com os símbolos." (P.M.-219 - A. In'. Met. - 35).

Cf. Int. Met. - 15, Abril. "Quando abordamos o mundo espiritual a imagem, se ela não faz mais do que su­

gerir, pode dar-nos a visão direta, enquanto o termo abstrato, que é de origem espa­cial e que pretende exprimir, deixa-nos freqüentemente no domínio da metáfora" (Bergson, P.M.-128, Abril).

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tensão deliberadamente estabelecida no interior da linguagem. É preciso lembrar que o conceito enquanto cristalização da atividade simbólica representa a forma que assume tal atividade quando o interesse pragmático exige a fIxação da mobilidade. A imutabilidade dos conceitos prende-se assim à necessidade de organizar de forma relativamente invariável o real e dispor de representações relativa­mente unívocas para efetuar referências cômodas ao mundo que nos rodeia. Mas a linguagem possui certa flexibilidade que faz com que a cristalização conceitual não esgote o jogo simbólico. Já vimos que a arte do romancista e do poeta consiste em estabelecer dentro das regras fundamentais da linguagem um jogo simbólico em que a cris­talização conceitual cede lugar à fluidez imagética que pretenderia nos fazer, na medida do possível, coincidir com a personagem para compreendermos por dentro a mobilidade dos sentimentos que cons­titui o ser de cada personagem e a trama das subjetividades aí envol­vidas. O artista torce a linguagem, no limite com a fInalidade, diz Bergson, de nos fazer esquecer que ele emprega palavras.

Assim, é a própria capacidade de simbolizar, intrínseca à inteli­gência, que vai permitir de alguma forma a superação da cristaliza­ção simbólica que constitui a precisão abstrata do conhecimento analítico. Voltada para o esforço de traduzir o intraduzível, a inteli­gência se torna de alguma maneira consciente da "franja" intuitiva que a rodeia: procurará então vencer o obstáculo da linguagem com a própria linguagem, construindo com os símbolos um análogo da fluidez que ela não pode exprimir diretamente (P.M.-122, Abril). As­sim, existe um uso negativo e um uso positivo do símbolo. A vocação generalizadora e estabilizadora da inteligência faz ordinariamente do símbolo um instrumento de representação esquemática e redutora do processo movente que constitui a realidade. Isto atinge seu limite nas categorizações defInitivas pelas quais a filosofIa pretende inserir a pluralidade em quadros absolutamente fIxos através dos quais se demarcam exatamente as signifIcações que o ser assume na repre­sentação. Nesse sentido o conhecimento teórico é uma atividade que tende para a imobilização e que só atinge seu pleno sentido quando esta é realizada. E é justamente a fInalidade imobilizadora da ativi­dade simbólica que deve ser proscrita no caso do conhecimento metafísico, para que tal atividade se dê a partir das possibilidades abertas à atividade simbólica quando a inteligência metaforiza a partir do fundo intuitivo que se trata de revelar nas imagens. É preciso não esquecer que o objeto da metafísica é "principalmente O espírito":

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quando a atividade simbólica cristaliza metáforas no sentido de re­presentar espacialmente a realidade espiritual estamos no plano negativo da simbolização (ibid.). Neste plano, a transposição é direta e espontânea: a mobilidade fluente se fIxa nas caracterizações sim­bólicas que escondem o ritmo da duração, e acreditamos "ter anali­sado o espírito". Para que a metáfora sirva como meio de aproxima­ção direta da realidade é preciso que a imagem não cristalize um signifIcado, mas sugira uma visão, que não é interpretação, mas con­tato. Portanto, a imagem não vai figurar a realidade espiritual; ela vai conscientemente sugerir algo que sabemos situar-se para além da imagem. É neste sentido que a metafísica tem algo a ver com a lite­ratura no sentido em que a entende Bergson, isto é, expressão ima­gética da fluidez do universo afetivo: assim como o escritor emprega palavras para que não reparemos nas palavras em sua simples opa­cidade, mas para que atravessemos as imagens na direção da coin­cidência com a personagem e a trama, assim também o metafísico recorrerá às imagens para que o movimento metafórico que ele esta­belece na linguagem provoque o espírito a captar no jogo imagético uma realidade situada mais além'''.

Infletir a linguagem no sentido do movimento, não da cristaliza­ção, tal é a atitude que redunda no uso positivo do símbolo. SignifIca tornar a atividade simbólica consciente de si e a ponto de superar­-se no movimento plural dos seus atos. Devemos provavelmente en­tender o uso positivo da simbolização como uma recuperação da metáfora como atividade de formar imagens: aqui o que conta é menos o resultado enquanto representação fIxa e cristalizada do que a possibilidade, continuamente atualizada, de representar metafori­camente de maneira consciente e utilizando todos os recursos do jogo imagético permitido pela linguagem, a fIm de sugerir no discur­so aquilo que o próprio discurso, enquanto articulação, não compor­ta. Devemos ter em mente que a imagem, mesmo despojada da fIxi­dez do conceito, não é representação adequada da intuição: tal re­presentação é impossível. Talvez a principal vantagem metodológica da recusa da metáfora conceitual seja o abandono defInitivo da pre­tensão a uma adequação exata entre representação e realidade. Quan­do Bergson diz que a imagem por vezes fala com propriedade sobre

77a. "Comparações e metáforas sugerirão aqui o que não poderemos chegar a expri­mir. Não será um desvio, não faremos mais do que ir direto ao objetivo" (Bergson, P.M.-122. Abril).

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o objeto, isto não significa que a imagem torne o objeto presente ao espírito com os contornos nítidos de uma representação exata. A maior propriedade da imagem significa no caso exatamente o aban­dono da ilusão da precisão abstrata pelo poder sugestivo da imagem. A imagem, neste caso, não é verdadeiramente um símbolo, ao con­trário da representação conceitual (P.M.-17, Abril). Por não ser ver­dadeiramente um símbolo, a imagem não se substitui ao objeto. A atividade metafórica é positiva quando nela não está implicitamente presente a concepção de que a linguagem revela o ser. A linguagem é, em si, apenas um instrumento opaco e convencional, cuja gênese e constituição obedecem a critérios estritamente pragmáticos. Não existe fundamento ontológico da significação, não existe nenhum tipo de relação entre as palavras e as coisas que originalmente vá além da mera instrumentalização". E é o caráter apenas instrumen­tal que está presente na utilização positiva da metáfora, posto que qualquer relação mais direta entre palavra e realidade é apenas uma ilusão que oculta a atividade simbólica da inteligência.

Vê-se então que a vocação generalizadora e imobilizadora da inteligência, e da linguagem enquanto sua principal função, é con­trariada pela reflexão quando esta utiliza a metáfora como a lingua­gem em movimento e não a linguagem como reveladora de estados de coisas representados analiticamente nas palavras e nos concei­tos79• Isto não poderia ocorrer se a linguagem não contivesse em si, como que virtualmente, esta outra modalidade de inserção compre­ensiva das palavras na realidade. Assim O jogo metafórico livre da fixação conceitual é possibilidade discursiva de intelecção do real que responde à exigência fundamental da reflexão filosófica: inver­são da marcha habitual do pensamento. Sem dúvida é aqui que re­pousa um dos fundamentos do método filosófico: na possibilidade de utilizar a linguagem contra ela mesma, contra a inteligência, mas isso não deixa de apresentar alguns problemas, o principal dos quais é se devemos considerar aquela possibilidade discursiva como uma riqueza da linguagem em si ou como uma violência que a reflexão faz à linguagem. Afinal, a linguagem traz em si os meios pelos quais

78. "Nada de análogo, em Bergson, ao sonho da Ursprache; a língua é um produto opaco, que devemos compreender através de sua gênese, que não comporta nenhu­ma mensagem destinaI do ser, mas sim a história contingente de uma cultura" (P. Trotignon, L'[Me de vie ... p. 60l).

79. Cf. P. Trotignon, ob. cit., pp. 606-7.

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a superamos. Mas isto é apenas mais uma prova da artificialidade de uma oposição completa entre inteligência e intuição. A possibilidade de superar a linguagem pela linguagem não é nada mais do que o reflexo da franja intuitiva que rodeia a inteligência, e a linguagem, enquanto principal função da inteligência, está afetada pela ambi­güidade que faz com que a inteligência possa penetrar até certo ponto no espírito e este espacializar-se, por sua vez, em vista da inserção do homem como um todo na vida prática. O homem, diz Bergson, traz em si a maneira de superar-se a si mesmo e a filosofia realiza essa superação, transcendendo a condição humana, não pela desar­ticulação da inteligência e da linguagem, mas pela consciência da gênese e da função de ambas. A reflexão se opera a partir desta cons­ciência, o que significa que ela não se pode moldar sobre a esponta­neidade e a natureza da linguagem, pois então se ajustaria ao "sím­bolo dos símbolos" que é o espaço, comprometendo desde então a possibilidade de pensar a duração (P.M.-24, Abril). É importante no­tar que a reflexão filosófica não deve nutrir a ilusão de que se bene­ficiaria com a reforma, o aperfeiçoamento, a purificação, a formali­zação da linguagem. Não existe em Bergson a idéia de que uma "lín­gua" suficientemente despojada das ambigüidades da linguagem natural pudesse promover ou facilitar a reflexão, tal como em Leib­niz. Tampouco existe a idéia de que a dialética conceitual possa nos conduzir a algum Logos originário. Qualquer tentativa de espelhar o ser na linguagem é mistificação por parte da inteligência e oculta­mento da única característica verdadeira da linguagem: ser obstácu­lo à transparência da intuição80

• Entre a palavra e o real, a distância é a do simbolismo irredutível.

Então como é possível dizer que a imagem permite um tipo de acesso direto ao real? Simplesmente entendendo este caráter direto de uma maneira totalmente diversa de uma adequação ou de uma revelação. Já vimos que tornar a atividade metafórica consciente de si é o primeiro passo para relativizar a aparente significação unívoca do conceito que não é mais do que uma cristalização que obedece a critérios pragmáticos. É o trabalho inicial da reflexão que vai questio­nar a base real da significação. A utilização positiva das imagens não remete em si mesma a uma valorização da linguagem como repre-

80. "A linguagem não será reveladora do ser mas o obstáculo que a fenomenologia da percepção encontra ( ... )" (P. Trotignon, ob. cit., p. 601).

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sentação do ser, mas sim a um outro uso das possibilidades metafó­ricas, uso que se prende ao que se poderia chamar pluralidade con­vergente das imagensSl • Suscitar diferentes imagens que deverão in­dicar, não pelo conteúdo significativo de cada uma, mas pela conflu­ência significativa do conteúdo de todas elas, um determinado ponto a partir do qual seria também possível conceber que elas divergem. Isto significa que a perspectiva bergsoniana, ao contrário da tradicio­nal, adere à plurivocidade da linguagem como maneira de escapar da precisão abstrata da cristalização conceitual. A pluralidade de signi­ficações encaminha a filosofia ao concreto. É preciso que esta plura­lidade seja convergente: ela o será na medida em que as diferentes imagens representarem tentativas de exprimir a mesma coisa. O ponto de convergência é também um núcleo a partir do qual as imagens divergem. Isto é necessário porque não há como escapar à índole parcial do signo: este por natureza tende a isolar um aspecto da coisa, para depois generalizar o aspecto abstrafdo. É assim que trabalha a imagem conceitual: " ... o conceito generaliza ao mesmo tempo que abstrai". No trabalho normal da inteligência, o aspecto abstraído torna-se representativo da coisa: é o que se tem de evitar na utiliza­ção da imagem no conhecimento metafisico. E a maneira de evitar é variando as imagens para que, no jogo daquilo que elas retêm e daquilo que elas deixam de reter, se perceba a indicação de um ponto de convergência. O próprio ponto de convergência não é, pois, obje­to de representação "distinta": a indistinção representativa e a im­possibilidade de designação tornam-se aqui indicativos de que nos acercamos de uma realidade por natureza avessa à precisão simbó­lica. Para uma reflexão que inverte a marcha habitual do pensamen­to, a ausência de clareza e distinção torna-se índice de que a inteli­gência encontrou o limite de sua capacidade simbólica e que o pen­samento encontra dificuldade em operar a tradução da mobilidade viva em esquema relaciona!, do organizado em inorganizado, do qualitativo em quantitativo. Neste limite é que a gênese e a história da inteligência tornam-se, para a reflexão, pontos de partida para o exercício da crítica genética, na medida em que possibilitam articu­lar a estrutura e os resultados da linguagem com os seus fundamen­tos (E.C.-161).

81. "Nenhuma imagem substituirá a intuição da duração, mas muitas imagens diversificadas, emprestadas a ordem de coisas muito diferentes, poderão, pela conver­gência de sua ação, dirigir a consciência para o ponto preciso em que há certa intui­ção a ser apreendida" (Bergson, Int. Met.-17, Abril).

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Tal articulação precisa ser estabelecida na medida em que será ela que dará a especificidade da linguagem humana em termos de mobilidade e extensão do significado e permitirá explicar através desta caracteristica a importante função que a linguagem desempenha na especulação. Originalmente, como já vimos, a linguagem possui uma função prática, já que ela é produto da inteligência, faculdade volta­da principalmente para as finalidades práticas. Neste sentido a lin­guagem se inscreve no âmbito da sociabilidade, que é a possibilida­de da ação conjunta ou dominação coletiva da realidade regrada pela inteligência (E.C.-158). A cooperação exige comunicação, e mesmo entre os animais, principalmente entre aqueles cuja sobrevivência depende da ação do grupo, existe uma linguagem. Bergson parece não compactuar com a posição de Locke, por exemplo, que entende que só podemos falar em linguagem quando a articulação dos sons evoca idéia, isto é, sentido instituído convencionalmente, e menos ainda com a posição de Leibniz, que faz derivar o sentido particular do termo de um gênero implícito no ato da constituição do signifi­cado". Uma sociedade de insetos possui linguagem na medida em que as coisas com que a sobrevivência do grupo se relaciona são designadas por signos reconhecidos por todos. Mas a uniformidade, imutabilidade, direcionamento único do relacionamento com o meio no caso dos insetos fazem com que o signo designe de forma única e aderente um objeto ou uma operação bem determinados. A ação a ser realizada está estreitamente ligada aos órgãos dos indivíduos, e a divisão do trabalho é determinada pela natureza. No caso do ho­mem, existe a variação, a flexibilidade na fabricação dos instrumen­tos com os quais se age sobre a natureza, ausência de rigidez na divisão do trabalho e aprendizado, já que o órgão de relacionamento com o meio é a inteligência e não o instinto. A linguagem humana participa, assim, da relativa abertura e indefinição da inteligência, razão pela qual os signos não são aderentes a coisas ou procedimen­tos bem determinados, mas possuem margem de flutuação nos seus significados (E.C.-159). Isto confere aos signos mobilidade e à ativi­dade simbólica certa liberdade de levar o signo de uma coisa a outra. O campo de ação é indefinido, as formas de ação variáveis; a comu­nicação precisa acompanhar essas caracteristicas e a linguagem ex­pressar o caráter ilimitado das possibilidades de referência. Apesar disso, os signos são em número finito; logo, a extrapolação como

82. Cf. Locke, Ensaio .... III, 1 e Leibniz, Novos Ensaios. m, 1,3.

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extensão do significado vai realizar a liberdade da simbolização. Há que designar várias coisas, várias ordens de coisas e há que designar até a própria instância e o próprio processo gerador das designações. A característica principal da linguagem humana é, pois, que o signo se move entre várias coisas, primeiramente pela necessidade de de­signar com uma quantidade relativamente pequena de sinais uma quantidade indefinida de coisas. Esta propriedade móvel do signo é que dá a possibilidade da metáfora, pelas várias extensões e transfi­gurações do significado que ela permite.

Mas o signo não se move apenas de uma coisa para outra. Ele se move também das coisas às idéias. Quando a linguagem deixa de se relacionar no plano prático do interesse do sujeito pelas coisas que o rodeiam e passa a designar meramente o que é pensado de forma mais ou menos independente da ação, ela passa a se ordenar na franja reflexiva da inteligência, passa a canalizar o suplemento de força que não é dispendido no relacionamento estritamente prag­mático com o mundo. A palavra deixa de ser apenas um instrumento de ordenação e identificação do que se dá no âmbito da percepção e passa, de alguma forma, a designar a si mesma. A inteligência, que é o espírito presente a si apenas na justa medida em que isto é ne­cessário para estar presente fora de si, passa a atentar a si mesma e de alguma maneira a voltar-se para dentro. É claro que a autonomia relativa dos significados, o fato de não serem totalmente aderentes a coisas bem determinadas, contribui enormemente para tanto (E.c.-160). Da coisa enquanto percepção â coisa lembrada, da lembrança à imagem indeterminada e desta à representação das possibilidades de representação da coisa: assim o próprio ato de designar, de repre­sentar, de significar se torna também objeto. A inteligência se desco­bre para si mesma no nível interno das suas operações. É aqui que se torna importante para a inteligência a ligação entre linguagem e idéias. É aqui que a exteriorização significativa pela qual o espírito se apropria do mundo através das palavras revela-se para a inteligência como possuindo outra face e toda uma nova extensão de poder: a interiorização significativa (ibid.). A consciência vai então tomar-se a si mesma como objeto, mas como a reflexão aqui é uma interioriza­ção da atividade de significar, a consciência que se toma a si própria como objeto é a inteligência e o objeto é um objeto da inteligência. É um objeto constituído na instância da linguagem, um objeto que só será assimilado no âmbito da racionalidade se já estiver totalmen­te incorporado na significação ou substituído pelo seu signo.

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Eis por que a mobilidade do signo enquanto caráter próprio da linguagem humana, ao mesmo tempo que permite que a linguagem se ponha perante o infinito, encoraja também, através do paradigma significativo tomado pela reflexão, que esta se constitua nos moldes articulatórios em que a inteligência se apropria do mundo pela lin­guagem. E assim, quando a inteligência quer penetrar no espírito, ela penetra em si mesma e toma uma modalidade de exteriorização do espírito pela totalidade e pelo núcleo da consciência. É a transposi­ção do significado que permite que isto Ocorra. Se as palavras desig­nassem com precisão absoluta as coisas na singularidade material de cada uma delas, de maneira estritamente determinada, não poderia haver transposição. Mas a flutuação do significado permite que a linguagem, de função pragmática de nomeação e articulação do universo percebido, se transforme em instância originária das várias modalidades do ser, inclusive do ser da vida e da consciência. A lin­guagem é pois poderoso instrumento para a extrapolação da inteli­gência em órgão especulativo. O movimento do signo por entre as coisas, que faz da atividade metafórica o modo pelo qual a finitude da linguagem abarque o infinito - ou o indefinido -, que faz com que possamos passar sempre do que sabemos para o que ignoramos através da extensão do significado, esse movimento, quando possibi­lita ao signo transpor as ordens de realidade - da matéria para o espírito, do espaço para a duração -, eSSe movimento, riqueza apa­rente da linguagem, determina a falência da especulação, na medida em que reduz o objeto que pretende abarcar ao âmbito designativo da linguagem: coisas, reificando dessa maneira o processo de dura­ção que não pode ser expresso na descontinuidade imobilizadora das palavras e dos conceitos".

A liberdade da atividade simbólica não chega nunca, pois, a in­verter a finalidade original da linguagem. A linguagem designa "coi­sas e somente coisas", de acordo com a vocação estabilizadora da inteligência. Portanto a reflexão que nasce da mobilidade dos signos

83. "Originalmente ela (a inteligência) é adaptada à forma da matéria bruta. A pró­pria linguagem, que lhe permitiu estender seu campo de operações, é feita para de­signar coisas e somente coisas: é SOmente porque a palavra é móvel, porque ela cami­nha de uma coisa a outra, que a inteligência devia cedo ou tarde tomá-la em caminho, enquanto não estava ainda pousada sobre nada, para aplicá-la a um objeto que não é uma coisa, e que, dissimulado até então, esperava o auxílio da palavra para passar da sombra à luz. Mas a palavra, ao recobrir este objeto. converteu-o também numa coisa." (Bergson, E.C.-16l).

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tomará a consciência como coisa e conceberá a duração sob o mo­delo da articulação descontínua das palavras. A extensão das signifi­cações não muda a origem do significado. A palavra tem na sua ori­gem a finalidade pragmática de imobilizar o devir e de identificar diferenças. O movimento do signo está inscrito na economia da lin­guagem como a designação de uma coisa pelo que ela não é: por isso nos permite passar do que conhecemos ao que ignoramos. A metá­fora é, no nível pragmático, procedimento inevitável dado o caráter da inteligência e a peculiaridade da ação humana. Quando a metá­fora identifica significados em duas ordens diferentes de realidade, ela opera de maneira redutora: é o significado espacial - por assim dizer o significado primitivo no nível da inteligência - que prevale­ce. É este significado que permite, como já vimos, que o objeto apa­reça clara e distintamente, isto é, como se fosse coisa.

Como, então, apesar disso, se pode dizer que há um uso positivo do símbolo e que a metáfora pode ser via de aproximação direta da realidade em si? Porque podemos utilizar o movimento do signo não como transposição, mas como variação indefinida dos significados num processo que tende a dissolver a propriedade das palavras para fazer com que a pluralidade dos sentidos, no jogo das suas aproxi­mações e diferenças, indique a direção de um certo plano de ser em que a impossibilidade da clareza e distinção assinale o possível lugar da intuição. Note-se bem que se não houvesse o movimento do sig­no isto não seria possível. Assim este caráter da linguagem nos leva ao encontro da intuição desde que a intuição já seja de alguma ma­neira a origem vaga e indistinta que atrai as linhas de significações convergentes. Existe uma anterioridade da intuição sobre a lingua­gem e, assim, ir ao encontro da intuição através das imagens conver­gentes é expressar aproximadamente uma intuição. Nesse sentido a metáfora tem um lugar no método filosófico porque ela é a única maneira em que a intuição se pode expressar em discurso, mas, re­petimos, desde que a significação de cada imagem se dissolva na multiplicidade das outras.

Mesmo assim, o problema das relações entre intuição e expres­são está longe de ser resolvido. A própria ambigüidade do duplo tra­jeto - ir da imagem à intuição é ir da intuição à imagem - serve para alertar-nos acerca da dificuldade de expressar um conhecimen­to com significações anteriores e exteriores à própria origem da sig­nificação. Mas temos de convir que o termo expressão aqui não pode ser tomado na sua literalidade, ou seja, como o ato de expor: pôr um

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determinado significado fora a partir do ato de abrir ou desvendar o desconhecido. O que se trata de exprimir é algo com o qual o sujeito coincide, e o conhecimento intuitivo é fazer passar à consciência esta coincidência. A intuição é reflexão na medida em que a consciência se encontra - mas não simplesmente a si própria - em contato com o absoluto por comunicação simpática. Somos conscientes da dura­ção quando pensamos na duração, mas não como um sujeito que expressa um objeto significando-o para si mesmo, e sim como cons­ciência da imersão numa totalidade que não pode ser, a rigor, significada porque não pode ser assinalada ou designada por um ato exterior a ela mesma.

Resta no entanto o problema de que fatalmente somos exteriores à duração na exata medida em que somos em larga medida exterio­res a nós mesmos. O espírito se exterioriza, mesmo quando acredita refletir. A intermitente coincidência consigo mesmo na consciência afetiva dos estados psicológicos profundos é apenas mais um índice da defasagem entre a expressão e o. estrato do nosso ser que comu­nica mais intimamente com a totalidade. A questão da expressão como representação filosófica do absoluto passa por uma reavalia­ção - em Bergson - da relação tradicional sujeito-objeto. Até que ponto a constituição das metáforas em que os significados se anulam em prol de uma direção supra-significativa, supra-objetiva não en­volve também a dissolução do sujeito enquanto ato de constituir as metáforas e, assim, os significados que se entreanulam? A partir daqui talvez a expressividade das metáforas assuma outra feição, na medi­da em que elas somente exprimem algo ao anularem-se umas às outras.

8. FILOSOFIA E METÁFORA (lI)

O estabelecimento do caráter pragmático da linguagem afasta a filosofia bergsoniana dos dois caminhos que os séculos XVII e XVIII seguiram para compreender a linguagem e que são vistos por Cassirer como percursos lógicos ou psicológicos. Talvez o confronto Leibnizl Locke seja a melhor maneira de exemplificar esses dois caminhos e de verificar os diferentes procedimentos que o pensamento empirista e a concepção racionalista empregam para elucidar o fenômeno da linguagem. Haveria, no entanto, algo de comum a estas duas pers­pectivas: em ambas a linguagem é considerada, em relação ao conhe-

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cimento, como constituição e/ou expressão do saber teórico. O que se explica: a vinculação entre linguagem e razão é vista como estrei­ta, quer a linguagem seja considerada meio adequado de expressão do conhecimento racional, quer ela seja considerada como invólucro mais ou menos opaco das evidências teóricas. Dependendo da pers­pectiva assumida, a linguagem será considerada, do ponto de vista do valor, com um maior peso positivo ou negativo, justamente por­que o critério é sempre o saber teórico e sua expressão".

Até que ponto Bergson escapa dessa perspectiva? Já vimos que a intuição, se é conhecimento, deve ser expressa na linguagem; vimos também que esta expressão não pretende participar do caráter con­solidado que a expressão do conhecimento teórico tradicionalmente possui, em consonância com a vocação da linguagem. O único saber que se pode chamar propriamente te6rico, a metafísica, deve, para se constituir, rejeitar o estatuto simbólico da linguagem. Vimos que o meio para operar a rejeição é trocar a cristalização simbólica do con­ceito pela expressividade mutável das imagens, que no movimento de flutuação dos seus significados fazem o espírito dirigir a atenção reflexiva para o ponto onde se poderá intuir uma realidade. Há por­tanto uma diferença, senão uma oposição, entre símbolo e imagem. Mas não se pode, por outro lado, negar o caráter simbólico da ima­gem' qualquer que ela seja. Há um problema a ser enfrentado no estabelecimento dessa diferença, e ele põe em questão o próprio ca­ráter expressivo das imagens. Na verdade, o problema surge do fato de que em Bergson a rejeição do símbolo convive com o uso da metáfora como única possibilidade de expressão e de apreensão da intuição. Não é necessário insistir, mais do que já o fizemos, no ca­ráter negativo do símbolo que simplesmente se constitui em obe­diência à vocação estabilizadora da inteligência. Notemos, a propó­sito, que o tratamento diferenciado conferido à imagem não significa de forma alguma a recuperação de algum valor positivo do símbolo. As imagens são obstáculos que podemos contornar na medida em que o ato deliberado de variação dos seus significados faz com que

84. "Que a linguagem seja concebida como a obra imediata da razão e seu órgão indispensável, ou que a palavra apareça como um simples invólucro que nos oculta os conteúdos fundamentais do conhecimento, as autênticas 'percepções originárias' do espírito, o que se considera sempre como o objetivo da linguagem e corno aquilo que deve determinar seu valor positivo ou negativo é o saber teorético e a expressão deste saber" (E. Cassirer, Phil. des Formes Symboliques, capo I, p. 94. Trad. fr. Minuit, 1972).

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cada uma seja vista em oposição a si mesma, negando-se ao mesmo tempo em que se constitui. As imagens são símbolos dos quais o significado não se cristaliza devido a um esforço reflexivo para impe­dir que este significado se transforme numa representação auto-su­ficiente. Mas ainda assim são símbolos.

E é de se notar que as imagens que devem suscitar a intuição são sempre concretas: novelo, elástico, cores ... Dir-se-ia mesmo que quanto mais concreta for a imagem, mais eficientemente ela desem­penhará o seu papel. Como se o filósofo devesse mergulhar na estratificação das coisas para aproximar-se da singularidade do pro­cesso. A razão disso parece ser a impossibilidade da transfiguração da linguagem, de modo a torná-Ia transmissora da fluidez e do caráter movente da realidade. Isso seria uma forma de estabelecer uma re­lação de alguma maneira afirmativa entre a linguagem e o real. Mas parece que para Bergson esta relação é fundamentalmente negativa e é essencial para a superação do simbolismo que a linguagem nun­ca perca a sua característica de obstáculo. Isto pode explicar inclusi­ve a própria concepção bergsoniana do conceito como cristalização simbólica. A supor, evidentemente, que exista outra concepção pos­sível do conceito, tal como a que é aventada por H. Konratf'5. Esta autora critica Bergson, mostrando que ele se mantém na perspectiva lógica tradicional da concepção do conceito, ou seja, a exclusão da representação da individualidade. Se a formação do conceito é num certo momento inseparável da remissão dos traços do objeto a ca­racterísticas comuns que ele compartilha com outros objetos, este procedimento de classificação deve ser distinguido do conceito uma vez formado e da maneira como ele se refere ao objeto que represen­ta. Supondo que o conceito nos forneça os atributos pelos quais re­conhecemos um objeto, estes atributos permitem o reconhecimento "unívoco" (p. 65). isto é, são os elementos pelos quais o objeto se distingue de outro. Trata-se de outra concepção do processo de for­mação e do estatuto da metáfora. A metaforização, ao menos quan-

85. A respeito da formação do conceito, no caso do substantivo, diz H. Konrad: "Se os atributos possuem alguma coisa de comum com os atributos semelhantes de outros objetos, eles possuem ao mesmo tempo uma nuance particular e individual que os caracteriza corno elementos de uma totalidade única: e, ademais, eles estão em uma relação particular e única, ela também, com todos os outros elementos que fazem parte do mesmo objeto" (H. Konrad, Étude sur la métaphore, Vrin, Paris, 1958, p. 65).

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do redunda no conceito, seria atividade diferenciadora. Nesse senti­do é necessário, segundo Konrad, operar uma distinção entre subs­tantivo e adjetivo no que se refere à formação da metáfora conceitual. O adjetivo seria genérico na exata medida em que exprime uma qua­lidade presente em vários objetos. O mesmo não acontece, entretan­to, com o substantivo, cujos atributos conceituais retratariam a indi­vidualidade do objeto86• Mas ao mesmo tempo Konrad demonstra entender o conteúdo significativo formado pelos atributos, isto é, a compreensão do conceito, como decorrente de relações específicas que os atributos mantêm entre si, e seria esta relação que forneceria a nuance própria do objeto simbolizado". É precisamente esta rela­ção de propriedades atributivas que se trata de evitar, para Bergson, pois é ela que confere ao conceito o caráter analítico. A totalidade é singular e dada, e não problemática por definição, como parece en­tender Konrad. Dessa forma, e lembrando a diferença que Bergson estabelece entre parte e expressão parcial, a totalidade do objeto não é mais bem compreendida quando a fragmentamos pela análise. E precisamente na concepção da anterioridade do todo e do compro­metimento de sua singularidade quando o igualamos à recomposi­ção das suas partes é que repousa a oposição entre intuição e análise e a critica do conhecimento analítico enquanto simbólico. A pers­pectiva bergsoniana se coloca de fora da consideração da metáfora conceitual como estrutura complexa ligada a processos lógicos, elas­sificatórios ou outros. O que é posto em questão é a atividade meta­fórica enquanto tal, e não a melhor forma de compreender e elucidar este processo, como parece ser o caso de Konrad. O mecanismo de formação da metáfora, seja ele qual for, possui um caráter negativo que advém do fato de a linguagem ser entendida fundamentalmente como obstáculo. Diga-se de passagem que isto torna bastante com­plexa a tentativa de pensar, em Bergson, as relações entre natureza e cultura. Na perspectiva em que vemos esta relação mediada pela inteligência, a consonância existente entre o desenvolvimento da cultura e a sua expressão na linguagem revela o afastamento do ser na exata medida em que a articulação lingüística do conhecimento dito "verdadeiro", enquanto é elaborada no nível metafórico da in-

86. H. Konrad, ob. cit., p. 66. 87. "( ... ) a compreensão de um conceito é formada de atributos que se encontram

numa relação diferente em cada caso, conforme o objeto que o conceito simboliza. Estes atributos não têm um valor geral, mas uma nuance toda particular e individual" (H. Konrad, ob. cit., p. 66).

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teligência, contribui poderosamente para velar a realidade que a fi­losofia deveria apreender. De forma que dizer que a linguagem é o grande obstáculo da metafisica significa também colocar o pensa­mento diante de um impasse: somente a superação da linguagem desvela a realidade; mas tal superação e tal desvelamento, se cons­tituem conhecimento, não podem prescindir da articulação da lin­guagem, não apenas na expressão como também no próprio pensa­mento. E o impasse é tanto mais marcante quanto a intuição, en­quanto saber que se constitui contra a linguagem, deve se estabele­cer como método suscetível de levar a filosofia à verdade definitiva que substituirá a querela verbal dos sistemas. A imagem, que como já vimos é parte integrante do procedimento metódico de aproxima­ção da intuição, deve a partir do caráter concreto e particular do seu conteúdo, na contingência do que ela sugere e na amplitude signifi­cativa desta sugestão, levar o pensamento ao encontro desta outra espécie de universalidade que a filosofia deve encontrar para além do conceito.

Não é possível contentarmo-nos com dizer que a proliferação intencional das imagens concretas produz uma relação dinãmica entre o pensamento e a linguagem de forma a superar a cristalização simbólica. A expressividade da imagem e a sua contribuição para o conhecimento metafísico aparecem a partir do risco envolvido na significação de cada uma delas, na possibilidade sempre presente de tomarmos a imagem como algo mais do que uma indicação, coisa a que somos insistentemente convidados a fazer pelo próprio caráter denso das palavras, que nos leva quase irresistivelmente a crer que o significado é o real que se encerra no significante. Por isso o impasse de que falamos não diminui em nada quando operamos consciente­mente com a metáfora, quando fazemos da construção de todas elas a desconstrução de cada uma. Resta, talvez, apenas pensar até o li­mite possível a convivência conflituosa entre a verdade metafísica e a linguagem que a expressa, na medida mesma em que o símbolo é absolutamente necessário para a constituição do conhecimento metafísico". Podemos dizer que este impasse é constituinte da filo-

88. Como diz A. Grappe, "Bergson acolhe magnificamente o símbolo na sua própria metafisica, ao mesmo tempo em que denuncia nele o inimigo mortal do metafísico" (A. Grappe, Bergson et le Symbole, Actes du 10°. Congres des Societés de Philosophie de Langue Française, BulJetin de la S. F. Ph. A. Colin, 1959, p. 125).

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sofia se entendermos que o conhecimento metafísico se instaura a partir de uma antinomia entre a atividade filosófica e a linguagem. E não só a filosofia de Bergson se constrói sobre esta antinomia, mas, segundo ele, toda a filosofia. Pois o que nos é dito na Intuição Filo­sófica é que todo sistema na complexidade da sua articulação não representa nada mais do que o filósofo na luta pela expressão, driblando a estrutura cristalizada da linguagem para, esgotando-a no próprio ato de sua assimilação, lograr transmitir algo que não pode ser expresso em palavras, como se a totalidade do sistema não fosse mais do que um longo, desesperado, incompleto circunlóquio para suprir a impossibilidade da expressão direta. Todo autêntico filoso­far é, consciente ou inconscientemente, lutar contra a linguagem. J eanne Hersch equaciona claramente esta problemática no seu sig­nificado histórico filosófico. Aqueles que tentaram encontrar o fun­damento do ser e da verdade na substância absoluta foram levados a ver na articulação discursiva um suplemento inútil e desviante do pensamento único que conteria em si a própria eternidade e cuja síntese expressiva não podia necessariamente ser encontrada. Aque­les que, pelo contrário, viram na fluidez e no processo do devir o verdadeiro estofo da realidade, por sua vez, também fracassaram na tentativa de transpor esta fluidez para a articulação descontínua da linguagem, feita de átomos de significação cuja ligação nunca repro­duz o entranhamento das coisas". Toda questão é aquela de saber se e como o pensamento pode habitar uma palavra. Ele certamente não pode, para Bergson, habitar um conceito. A solidez da articulação sistemática se revela vão artificio diante da mera suspeita do que se encontra para além do universo da significação. Sólida é a última coisa que a linguagem filosófica deve ser. A densidade das palavras deve ceder lugar ao ritmo do pensamento que salta de imagem em imagem e mesmo por entre as contradições, destruindo a plasticidade racional com que tradicionalmente se tentou fazer com que a lingua­gem expressasse o pensamento. A palavra não reproduz movimento, mas o estilo pode sugerir a mobilidade. Não são só as imagens de que a expressão se constitui que sugerirão o que se quer exprimir, mas o discurso enquanto tal deve ser uma metáfora do movimento. Para que o estilo do discurso sugira o movimento, ele deve ser cons­tituído de forma a que as palavras percam qualquer solidez e sentido

89. J. Hersch, L'obstacle du Langage.

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de permanência nos seus significados90• Chegamos então àquilo que deve ser o propósito fundamental do discurso filosófico: passar e desaparecer, como condição para que permaneça a atitude filosófica que ele nos sugeriu: a coincidência com o ritmo da duração. Não há por que permanecerem significados fixos, se não há coisas fixas a serem apreendidas e expressas. O significado solidifica a impressão: transforma-a em idéia na qual cremos depositado um fragmento do real. É preciso exatamente que o discurso não solidifique a impres­são: é preciso que ele seja ocasião para que o espírito seja tocado pelo que não é coisa e que não pode portanto tocá-lo como coisa, mas apenas produzir a impressão da passagem e do movimento. É a este propósito que deve estar sujeita a técnica da escolha e constitui­ção das imagens. Podemos dizer então que em larga medida o dis­curso filosófico deve se construir em benefício não daquilo que ele permitirá reter, mas daquilo que ele permitirá que sintamos passar, levando o espírito a coincidir com cada um dos momentos que pas­sam, mas principalmente com a impressão que deixa em nós a pró­pria passagem. De uma maneira mais ou menos análoga ao poeta que quer transmitir não um estado de alma - essência imutável -mas a complexidade fluente da multiplicidade dos sentimentos que transitam pela alma, sem que possamos dizer bem se sucessivamen­te ou simultaneamente.

Seria fácil repetir, a partir daí, que Bergson é "impressionista" e que reproduz na filosofia esta tendência que no seu tempo se desen­volveu na música, literatura e pintura. Isto não nos adiantaria de muito para compreender a questão da reinstauração da metafísica e da proposta metódica bergsoniana. Na verdade o que temos real­mente de explicitar aqui são mais as condições de constituição de uma Simbólica que permitisse ao discurso filosófico cumprir a fun­ção que acabamos de indicar. Pois o pensamento tem de se encarnar para que - a carne do seu signo uma vez desaparecida - ele possa permanecer vivo naquilo que o seu corpo sugeriu. A este respeito só contamos com as poucas indicações de Bergson concernentes à cons­tituição das imagens. No entanto temos um referencial nítido: existe o objeto, existe algo de concreto a conhecer e é inclusive a demasia-

90. "(O estilo) deve ser perfeitamente prosaico, se a prosa perfeita é bem aquela que desaparece totalmente diante da coisa significada, assim que esteja cumprida sua função de signo. A função da linguagem é aqui a de desaparecer" O. Hersch, ob. cit., p.217).

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da proximidade em que estamos dele que nos impede de abarcá-lo corretamente. A possibilidade da intuição repousa na existência de algo a ser intuído, algo à frente do qual não estamos como O sujeito diante do objeto, mas algo no qual simplesmente estamos. O conhe­cimento sub specie durationis significa que a duração é aquilo em que estamos imersos e é a tentativa de reconhecê-la como algo ex­terior e estranho que nos impede de conhecê-la, na exata medida em que conhecê-la seria apenas aceder a ela. O esforço da objetivação é, metodologicamente, o esforço da subjetivação. Ora, a linguagem, enquanto instrumento de objetivação, é precisamente aquilo que nos permite exteriorizar a duração tornando-a um conjunto de significa­dos estranhos ao sujeito, depositados na autonomia dos termos que utilizamos para retratá-la. Mas isso tem a ver com as condições de representação inerentes à condição humana. Não podemos inverter completamente essas condições, daí a necessidade de uma estraté­gia de representação simbólica para que os símbolos representados de uma certa forma indiquem ao espírito a maneira de superar as condições de representação, já que filosofia - no diz Bergson na Introdução à Metafisica - é superar a condição humana. A supera­ção deve ser totalmente entendida como inversão. Por conseqüên­cia, o discurso filosófico deve inverter a função habitual das palavras -que é a permanência do significado - para recuperar aquilo que a linguagem sempre teve por função superar: a impressão imediata, aquém da instância em que o sujeito se torna operante, constituindo por operação simbólica os significados cristalizados. É preciso en­tender bem que a impressão imediata não significa abandonar-se simplesmente à percepção. Esta está longe de nos colocar no plano do imediato: sua estrutura já é espontaneamente simbólica posto que esquemática. Além do mais, a mediação da linguagem impede desde sempre o contato imediato, pois desde sempre o homem é um animal que se comunica para sobreviver. A linguagem é por defini­ção a interposição do terceiro elemento na relação que o homem mantém com as coisas. E é nesta interposição que vai repousar a ver­dade, desde que a representação e a designação é que a constituem.

E nos autorizamos a entender dessa maneira a constituição do conhecimento desde que supomos que a realidade explicita uma estrutura e a natureza é a linguagem pela qual Deus nos fala. Assim a ordem natural se guia pelas mesmas determinações genéricas do nosso pensamento. Esta homologia ou esta projeção da estrutura do pensamento simbólico na realidade foi objeto de profunda reflexão

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8. Fll.DSOF1A E METÁFORA (11)

da parte de Nietzsche. O antropomorfismo seria, segundo ele, o pa­radigma oculto de todo conhecimento. Aí está a razão profunda pela qual chegamos a acreditar que o conceito representa as coisas de uma maneira mais originária do que a representação singular no nível da impressão sensível". A crítica do conhecimento deve passar fundamentalmente pela metaforização como atividade originária, desde o momento em que o intelecto humano passou a entender a verdade como repouso do pensamento: o instinto de verdade não é nada mais do que a necessidade de imobilizar o devir. Assim vemos os seres como portadores de qualidades e cremos apreender o real quando projetamos a estrutura genérica do pensamento conceitual e elaboramos as diversas metáforas pelas quais representamos o mundo. Nesse sentido a metáfora é uma reação vital em face da ins­tabilidade das coisas. Sobre a reação vital construímos um discurso que se quer autônomo do ponto de vista espiritual e reprodutor da ordem natural. A metáfora é fundamentalmente uma escolha vital sobre a qual vão se construir os ideais de racionalidade. A metáfora é metamorfose. Transformamos o real em algo condizente com as condições que temos de apreendê-lo. O conhecimento é, no pleno sentido, assimilação, uma vez que a inteligência apodera-se do mun­do através da atividade de simbolização". A transformação do mundo em idéias é mais do que uma atividade interessada: é um ato de devorar o mundo fazendo com que as coisas se impregnem nas pa­lavras até a completa identificação. "O método dos filósofos final­mente se resume num jogo de rubricas" (Liv. Fil.-165). Desde a es­trutura da percepção, o fenômeno do conhecimento como assimi­lação e metaforização a partir de critérios humanos estabelece a ati­vidade teórica no interesse do homem. A objetividade não é nada mais do que a ilusão de que aquilo que estabelecemos em nós fica estabelecido nas coisas. O conhecimento repousa numa profunda recusa da exterioridade e numa espécie de terror de sair de si". Todo o conhecimento pode ser visto como a realização de significações indicadas pelas tendências da percepção. Este fundamento vital é que se transfigura, no limite, no pathos da veracidade. E a linguagem se põe a serviço deste pathos quando o instinto de verdade é disci­plinado em vista da produção de conceitos. A ciência, que pode ser

91. Nietzsche, Livre du Philosophe, § 150, p. 141. 92. Id .• ibid., § 151. 93. Id., ibid .• § 144.

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vista como a perfeita realização da linguagem, posto que nela as in­tuições desaparecem sob as palavras, sistematiza arquitetonicamen­te a atividade metafórica construindo O que Nietzsche chama o columbário dos conceitos, organizando e preenchendo com o mun­do empírico os diversos estágios da construção conceitual. Sepulcro das intuições".

Mas - e aqui há um profundo encontro do pensamento de Nietzsche com o de Bergson - a assimilação metafórica do real não teria jamais produzido os frutos históricos e civilizatórios que produ­ziu se não acontecesse ao mesmo tempo o esquecimento da metáfo­ra, ou a cristalização simbólica da autonomia do conceito. O antropomorfismo só é eficaz se não for consciente de si95

• É a igno­rância da origem, o esquecimento da atividade metafórica originária que faz da projeção antropomórfica a constituição da exterioridade e da objetividade. Que outra relação podemos conceber entre o ho­mem e as coisas senão a denominação e a representação que incor­pora o real no pensamento e na linguagem? Não é esta relação que motivou a própria definição do homem como animal racional e que elevou a consciência ao nível de pólo gerador de todas as significa­ções que o mundo pode ter? E o sentido com que o ser aparece e é conhecido já não repousa desde sempre sobre o poder de instituir e projetar significações? Por isto, para Nietzsche, a definição do ho­mem como animal metafórico é o primeiro passo para a elucidação da gênese do conhecimento enquanto constituição do lugar que o Homem ocupa perante as coisas. Esta mesma dificuldade em pensar a condição humana fora da atividade de denominação das coisas mostra a intensidade do recalque a partir do qual se constitui a pró­pria racionalidade. De fato, o conceito deve todo seu valor instru­mental e o pretenso caráter de espelho ontológico ao esquecimento de sua gênese metafórica, ao recalque da atividade originária. Reco­nhecer-se na razão como última instância definidora de si mesmo é instituir o próprio fundamento do ser do homem na modalidade da metáfora, visto que a razão é a metáfora do instinto estabilizador do devir.

Não é outro o motivo profundo pelo qual a linguagem foi sempre pensada em relação ao conhecimento e a sua crítica sempre girou

94. Nietzsche, Sobre a verdade e a mentira no sentido extra moral, § 2, p. 193. 95. ld., ibid., p. 181.

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em torno do seu aperfeiçoamento, com vistas a torná-Ia um melhor instrumento de conhecimento. Mas a relação entre linguagem e co­nhecimento é exatamente o que deve ser posto em questão. Pois a linguagem é instrumento de conhecimento apenas se o conhecimento for pensado a partir do pathos da veracidade, que é a constituição do sentido fundamentalmente estável e unitário do ser.

A crítica nietzschiana do conhecimento encontra a crítica gené­tica de Bergson pelo menos em dois pontos: no método crítico e no desvelamento do fundamento da atividade teórica. No método críti­co, em primeiro lugar porque a crítica de Nietzsche é genealógica, isto é, busca a origem das cristalizações simbólicas em que se cons­titui a atividade de conhecimento. Em segundo lugar, desvela o ins­tinto de verdade como desejo de segurança perante a instabilidade do devir, segurança que se realiza na instituição do conceito como significado fundamental do ser e do conhecer. Em Bergson, como vi­mos, a critica é genética: busca os fundamentos dos procedimentos ditos teóricos na esfera pragmática da sobrevivência. E também en­contra tais fundamentos não no simples desejo de conhecer, mas na necessidade de coordenar inteligentemente a ação. Em ambos temos a dissolução dos significados pela remissão à origem dos mesmos, a atividade metafórica que projeta a estrutura da linguagem enquanto produto humano na realidade exterior. No entanto, há uma diferença importante que diz respeito à questão do valor. Em Bergson a critica genética, ao constatar a origem dos procedimentos da inteligência, não vai argüir acerca da inadequação desses procedimentos em geral. A estrutura da inteligência e a estrutura da percepção cumprem uma função natural e, dentro da esfera pragmática, não cabe questionar o valor do procedimento simbólico. Apenas quando tal procedimento é transferido para a apreensão metafísica do real é que ele se torna ina­dequado. Ora, parece que em Nietzsche há um único critério para ava­liar os procedimentos de conhecimento e disso resulta que a inade­quação é vista em geral. O conhecimento, qualquer que seja ele, é produtor de ilusões, muitas vezes necessárias para o individuo e a sociedade, mas como não existe a separação de esferas pragmática e teórica, a atividade simbólica se transforma num fator constitutivo de inadequação entre o homem e as coisas. Assim a crítica de Nietzs­che é dissolvente em relação ao saber em geral e não apenas em relação à metafísica. O niilismo gerado pela paixão mórbida do con­ceito compromete a existência em todas as suas instâncias: conheci­mento, valores morais, arte etc. Dir-se-ia que o Homem não tem

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I - INTUIÇÀO E MtrODO FILOSÓFICO

como superar a sua condição de animal metafórico". Já em Bergson a superação é possível, ao menos através da consciência do impasse entre intuição e expressão, que faz com que a inelutabilidade do dis­curso e o valor de um certo modelo de racionalidade possam, pelo esforço de reflexão, vir a sofrer uma distorção tal que o homem pos­sa, mesmo através deles, vislumbrar a possibilidade de inserir-se re­flexivamente na totalidade dinãmica e aceder à existência autêntica sub specie durationis.

96. Id .. ibid., p. 195.

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I _

ETAPA CRITICA DA REINSTAURAÇAO DO OBJETO DA FILOSOFIA: EXAME DE TEORIAS

TRADICIONAIS DO TEMPO

1. O PROBLEMA DA DURAÇÃO PSICOLÓGICA

A crítica bergsoniana das concepções tradicionais do tempo não focaliza, num primeiro momento, nenhuma filosofia em particular. Está antes voltada para certos resultados gerais, que nem sequer são filosóficos em sentido estrito, mas que aparecem como procedimen­tos padronizados do intelecto ou então como grandes resultados no sentido de linhas mestras do pensamento que derivam desses proce­dimentos. Talvez por isso possa causar certa estranheza - ao menos à primeira leitura - um livro como Les Données Immediates de la Conscience. Em primeiro lugar, por ser um livro de Psicologia que se ocupa de Matemática - da gênese do número, por exemplo -; em segundo lugar, por ser um livro que pretende realizar, de certa for­ma, o projeto kantiano inscrito no título dos Prolegômenos a toda metafísica futura que se queira constituir como ciência. Ou seja, por pretender resolver um problema metafísico através dos dados de uma psicologia mais verdadeira - mais atenta ao seu objeto imediato -do que aquela que se pretende efetivamente como ciência. E até mesmo ao "resolver" o problema pela demonstração de que, no limi­te, ele não existe, a atitude bergsoniana espelha o kantismo. Espelhar deve aqui ser entendido no sentido próprio, na medida em que, como veremos, o trabalho bergsoniano reflete ao contrário a atitude kan­tiana diante da filosofia. Em todo caso, e aprofundando um pouco as razões da aludida estranheza, a crítica bergsoniana apresenta -se nos 0.1. como uma análise de conceitos que aparentemente, apenas, se movem no interior da Psicologia. A análise dos conceitos e dos dados estritamente psicológicos tem como função abrir os horizontes para

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a reproblematização do tempo enquanto categoria metafísica funda­mental. O entrecruzamento entre psicologia e metafísica já foi apon­tado como confusão, no sentido próprio, e é certamente uma inter­pretação como essa que contribui, entre outras, para os qualificati­vos de vita/ista ou de psicologista, que são por vezes atribuídos ao pensamento de Bergson. Entretanto não é preciso muito para mos­trar que a amplitude da análise bergsoniana dos conceitos em 0.1. deriva de causas mais profundas do que uma possível falta de defi­nição de limites entre os campos da psicologia e da metafísica. Antes de mais nada, seria o caso de considerar simplesmente o propósito de 0.1. para verificarmos que a tarefa crítica de análise conceitual não pode ser separada do "problema da liberdade", objeto último da demonstração que se estabelece ao longo de toda a etapa crítica. O objetivo é demonstrar que o problema da liberdade, tal como vem sendo tradicionalmente equacionado, deriva de uma compreensão inadequada da idéia de duração psicológica. Somos expressamente advertidos de que a tarefa critica que corresponde aos dois primeiros capítulos de 0.1. deve ser vista como introdução ao problema da liberdade, objeto do terceiro capítulo (O.I.-VlII). Vê--se que a crítica da Psicologia não é a finalidade última; passa-se por ela na direção do verdadeiro objetivo que é a abertura do pensamento para ques­tionar o tempo - o que ultrapassa em muito o domínio da Psicolo­gia. Mas o leitor que se instalou na possível estranheza inicial de uma primeira leitura poderá ainda perguntar a que vem então a psicologia nisto tudo, e se terá de lhe reconhecer o direito à pergunta uma vez que cerca de dois terços do livro abordam problemas de psicologia até com relativo grau de especificidade técnica. A resposta a tal pergunta, na verdade, demandaria em grande parte o exame do próprio método bergsoniano no que concerne ao reequacionamento de problemas metafísicos a partir de uma restrição dos problemas a formas acessíveis à experiência (evidentemente no sentido integral em que Bergson a entende). Dessa forma, não só a tarefa crítica, como também o trabalho positivo de reelaboração das noções, atra­vessa a psicologia, inclusive numa dimensão bem mais ampla do que a perspectiva adotada em 0.1. e que a leitura de Matiêre et Mémoire nos revelará. De forma semelhante a mesma questão se repetirá a propósito do entrecruzamento entre Biologia e Ontologia em Évolution Créatrice.

Mas é claro também que isso representa apenas um lado da questão. A redução de problemas metafísicos a formas acessíveis na

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1. O PROBLEMA DA DURAÇÃO PSICOLóGICA

experiência, inclusive na experiência científica, não é viável sem um trabalho profundo que consiste em repensar a ciência, e não apenas enquanto conjunto de procedimentos para fazer Teoria, mas enquan­to modo de construção de uma inteligibilidade que, em última aná­lise, deve referir-se às próprias coisas, à própria realidade que é con­ceitualizada. Eis por que o uso dos dados científicos inscrito no mé­todo bergsoniano é sempre crítico: os resultados são reordenados e pensados em função de uma realidade que a ciência traduz necessa­riamente de maneira simbólica. Daí a extrapolação que se sente nos textos em que Bergson tematiza os resultados científicos - o que justificaria, do lado "cientificista", a acusação de que ele vai "além" do que permitiriam esses mesmos resultados, ou então de que ele os toma apenas por um lado, já que os mesmos resultados justificariam igualmente afirmações contrárias'.

Seja como for, Bergson atravessa a ciência e, no caso que nos interessa aqui, a Psicologia, para reabrir a questão do tempo. Acom­panhemos as grandes linhas de seu trabalho de interrogação do tem­po psicológico, que já é em parte a análise critica das concepções tradicionais de tempo. Como já mencionamos, ele não identifica interlocutores em particular. O que temos primeiramente em 0.1. é a colocação de algumas dificuldades relativas à concepção de gran­deza intensiva. "Admite-se ordinariamente" é a frase que introduz a análise crítica (0.1.-1), e o pronome aqui certamente indica a Psico­logia mais aceita no circuito oficial da ciência. Mas não seria inveros­símil dizer que o que importa tanto ou mais que a ciência enquanto tal é a concepção filosófica geral que subjaz aos pressupostos da ciência e que é a esta concepção geral que, podemos acreditar, este­jam dirigidas as formulações de dificuldades tais como a assimilação da noção de grandeza à noção de intensidade na própria expressão "grandeza intensiva", que se desdobra na possível contradição con­tida na idéia de uma quantidade inextensiva mas que se explica fi­nalmente pela identificação entre intensidade e extensão virtual'. Esta explicação, que nos permite entender como se pode em psicologia falar ao mesmo tempo de intensidade e de grandeza, já abre por sua

1. Cf. por exemplo, Fénart, Michel, Les Assertions Bergsoniennes, Vrin, Paris, 1936, capo I.

2. "Na idéia de intensidade, e mesmo na palavra que a traduz, encontraremos a imagem de uma contração presente e conseqüentemente de uma dilatação futura, a imagem de uma extensão virtual e, se assim se pode dizer, de um espaço comprimi­do" (0.1.-3).

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vez a perspectiva crítica fundamental. pois através dela entendemos também que tal assimilação se toma possível devido a uma outra. de cunho mais fundamental e com carga significativa bem mais filosó­fica: a assimilação do tempo ao espaço. que faz com que desapareça praticamente a diferença de natureza entre o extenso e o inextenso. A explicitação deste procedimento se desdobra no exame das dife­rentes hipóteses explicativas que procuram fundamentar a mensura­ção do estado psicológico como quantidade inextensa. Um percurso crítico relativamente longo mostrará o equívoco da comparação dos estados psicológicos em termos de mensuração. A começar pelo que deveria ser o mais óbvio: a dificuldade de medir os estados psicoló­gicos profundos. cuja ligação com movimentos fisicos e musculares concomitantes é mais dificil de estabelecer. É talvez o caso mais fa­vorável à argumentação bergsoniana. Mas este início não significa apenas a comodidade da argumentação. Há um significado intrínse­co na escolha dos estados psicológicos profundos para mostrar a impossibilidade da mensuração ou de toda e qualquer abordagem de cunho fisicalista. O que se pretende mostrar é. também. e talvez principalmente. que o Eu significa antes de tudo esses estados: eles é que são a marca do verdadeiramente humano. pois é por eles que nossa psique se distingue do complexo nervoso das demais criaturas. Portanto. se a Psicologia pretende o conhecimento do psiquismo humano. ela não o obterá através do nivelamento dos estados psico­lógicos profundos com a vida psicológica superficial - e tal nivelamento constitui a melhor maneira de se perder a especificida­de humana. Poderíamos argumentar talvez que a Psicologia não se define propriamente como o estudo do homem - haja vista que a psicologia experimental utiliza de preferência organizações psíqui­cas menos complexas em suas experimentações. a fim de obter jus­tamente o modo básico de funcionamento do psiquismo. a partir do qual poderíamos chegar à compreensão da vida psicológica do ho­mem. pela variação dos graus de complexidade. Mas no próprio momento em que adota essa perspectiva. a Psicologia perde a qua­lidade específica do psiquismo humano (0.1.-5).

É possível que a classificação das representações nos prepare para uma abordagem mais fiel da vida psíquica. Esta parece ser ao menos a esperança quando Bergson empreende uma análise dos sentimen­tos. característica da vida psicológica "profunda". A própria descri­ção que a Psicologia faz costumeiramente do sentimento é equívoca. As características de totalidade e interpenetração definem por tal

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1. O PROBLEMA DA DUAAÇÃO PSICOLÓGICA

forma esses estados que se toma em primeiro lugar inadequado di­zer que eles estão na alma: antes deveríamos dizer que eles são a alma. Tão pequeno reparo de linguagem leva na verdade muito lon­ge: trocamos uma seqüência de unidades bem demarcadas no tem­po ou um estado psicológico que supomos capaz de crescer e dimi­nuir como grandeza por um progresso qualitativo em que as mudan­ças são de natureza e onde não se pode medir a complexidade em graus de grandeza. A heterogeneidade é a característica mais mar­cante da vida psicológica. Portanto não é por composição de ele­mentos ou aumento de grau que passamos de um estado psicológico a outro. O psiquismo inteiro se compromete na intensidade do esta­do psicológico. Mas a linguagem nos engana na medida em que nos leva a confundir o estado psicológico com a sua causa. e a separação nítida que operamos no mundo externo com os elementos que pre­sumivelmente causam as vivências psicológicas. nós a repetimos indevidamente em relação aos estados internos. É claro que a ligação entre sentimento profundo e causa exterior é bem mais remota do que a ligação entre sensação e causa exterior. Por isto Bergson analisa tam­bém esta modalidade de representação para completar o quadro crítico deste momento inicial da investigação da duração psicológica.

Também aqui é possível mostrar que não há estrita correspon­dência entre mensuração física e o que seria a mensuração psicoló­gica. supondo-se que ela fosse possível. Por ex.: a consciência do au­mento do esforço não é causada pela maior força de emissão. mas pela quantidade cada vez maior de músculos que se comprometem na operação. Também aqui há mudança qualitativa e complexidade crescente e não simples aumento de grau de intensidade (0.1.-18). Há como que uma convergência de interesses por parte de toda a vida psíquica e mesmo por parte de todo o organismo. que eviden­temente não é percebida enquanto tal. O que percebemos é o que a consciência nos faz perceber: localização num único ponto. exata­mente naquele em que é útil que se sinta localizado o esforço. a exem­plo do que acontece quando se levanta um peso. O mesmo ocorre com a atenção voluntária. O que se pretende mostrar é que a Psico­logia se equivoca na maneira de considerar a multiplicidade de esta­dos simples que estão presentes num estado psicológico complexo. Não se questiona que haja estados simples; mas a multiplicidade por eles formada não é. como pensa a Psicologia. discreta e suscetível de análise em elementos. mas sim uma multiplicidade de interpenetra­ção que logo mais será chamada de multiplicidade qualitativa.

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11 - ETAPA CRíTICA DA REINSTAURAÇÃO DO OBJETO DA FILOSOFIA

Nos estados psicológicos analisados, existe provavelmente uma multiplicidade de sensações simples. O problema está em se consi­derar que o estado psicológico complexo é uma somatória de sensa­ções ou uma sensação aumentada no seu grau de grandeza. Portanto devemos nos voltar agora para o exame das sensações, divididas em afetivas (prazer ou dor) e representativas (denotam algo), se bem que esta distinção não deva ser tomada em caráter absoluto. O que se verá aqui é que, ao contrário do que se poderia pensar, não há uma ligação tão direta entre a sensação e sua causa exterior, como se a sensação fosse apenas, sempre e puramente o equivalente conscien­te de uma modificação orgânica. Sem dúvida, existe esta ligação, mas ela deve ser vista de forma diferente. Talvez não se tenha perguntado ainda por que existem sensações conscientes; porque não existe em todos os casos simplesmente a passagem do estímulo à reação, como aliás acontece em muitos seres organizados. A sensação consciente tem, digamos, um propósito: ela esboça uma reação futura que não é simplesmente a reação automática que se seguiria a um estímulo. Ela interrompe a reação automática'. Costumamos dizer que a sen­sação é tanto mais intensa quanto maior é na verdade o número de sensações que se vêm ajuntar à primeira. A sensação não aumenta, ela muda: a questão refere-se à qualidade e não à quantidade. É claro que há uma correspondência com causas exteriores: a sensa­ção não aparece nem muda sem causa. Uma vez que as causas são extensas e mensuráveis, associamos as variações da causa com a varia­ção da sensação, ou seja, acreditamos que exista correspondência entre quantidade de causa e quantidade de efeito (sensação). Esque­cemos simplesmente que as sensações são inextensas e que sua varia­ção é qualitativa e ocorre de outra maneira, como Bergson mostra ao analisar os exemplos do som e das notas musicais. Todo esse traba­lho consiste na reinterpretação de alguns experimentos típicos da Psicologia, na reordenação de dados empíricos que se tornam obje­tos de uma nova atenção, o que leva ao estabelecimento de um re­sultado que pode ser expresso como a diferença entre efeito fisico e efeito psicológico, distinção cujo alcance mais adiante se verá.

Há no entanto um postulado que, utilizado na Psicologia, possi­bilita a mensuração: consiste em tomar a sucessão qualitativa dos

3. "A intensidade das sensações afetivas seria pois apenas a consciência de movi­mentos voluntários que se iniciam, que de alguma maneira se esboçam nestes esta­dos, e que teriam seguido seu curso se a natureza tivesse nos feito como autômatos e não como seres conscientes" (D.I.-26).

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2. A SEGMENTAÇÃO DA TEMPORALlDADE. O EXEMPLO ARISTOTÉLICO

estados psicológicos como diferenças de grandeza. No mundo fisico, é a abstração da qualidade que permite a mensuração, a qual é sem­pre uma superposição ideal. Na Psicofísica, o que acontece é uma tradução simbólica da qualidade em quantidade. De nada adianta distinguir entre grandezas extensiva e intensiva. A qualidade pura não é atingida e assim se perde a verdadeira essência da multiplici­dade psicológica. A isso Bergson chama objetivação, pela linguagem, dos estados subjetivos (D.I.-52). E a idéia de grandeza, aplicada aos estados psicológicos, é esta objetivação simbólica. Seria preciso, en­tão, procurar uma alternativa que nos fornecesse a imagem da mul­tiplicidade interna dos estados psicológicos. Mas será buscando as causas da representação quantitativa da vida psicológica que pode­remos melhor nos aproximar dessa imagem (que teria a função de substituir o referencial do conceito), e que não forneceria, diga-se desde já, uma representação nítida e bem delimitada da vida psíqui­ca, mas que poderia, mais do que o faz a representação conceitual, introduzir-nos na verdade da duração psicológica'.

2. A SEGMENTAÇÃO DA TEMPORALIDADE. O EXEMPLO ARISTOTÉLICO

O estudo das multiplicidades tem como objetivo definir o caráter específico da multiplicidade psicológica, o que significa verificar de que modo os estados de consciência se relacionam uns com os ou­tros e qual a visão de totalidade que se pode ter da vida psíquica. Já se viu de que maneira a Psicologia tende a considerar quantitativa­mente tanto os estados psicológicos em si mesmos como as relações que mantêm entre si, e de que maneira tais estados podem, no caso, ser reduzidos a um número que os caracterize em termos de grande­za, os relacione enquanto unidades delimitadas e os torne adequa­dos à medida. Em tal sentido se procede, em D.I., ao estudo do nú­mero: as implicações da teoria do número servirão de mais um ele­mento para constituir o quadro no qual é pensada a multiplicidade

4. "A idéia de intensidade está pois situada no ponto de junção de duas correntes, das quais uma nos traz de fora a idéia de grandeza extensiva e outra vai buscar na profundidade da consciência, para trazê-la à superfície, a imagem de uma multiplici­dade interna. Resta saber em que consiste esta imagem: se ela se confunde com a do número ou se dela difere radicalmente" (D.I.-54).

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psicológica - vale dizer, no qual é pensada a forma de as vivências psíquicas transcorrerem no tempo. A teoria do número nos favorece­rá a entrada no exame de alguns pontos da história da Filosofia, fa­cilitando assim a identificação de leituras bergsonianas de alguns de seus possíveis interlocutores no âmbito do problema do tempo.

O número é definido como uma coleção de unidades idênticas, ou supostas como tal, o que é necessário para que possamos contá­-las (0.1.-57). Considerar determinada quantidade e contar os ele­mentos aí existentes significa considerar - para efeito de contagem - como idênticas todas as unidades, negligenciando as diferenças existentes. O que não quer dizer que a quantidade se reduza a um único elemento: pelo contrário, é a justaposição dos elementos su­cessivamente que está implicada na idéia de contar e é por aí que chego ao número. A operação de contar implica, pois, o espaço en­quanto elemento no qual são justapostas as unidades. Somente as­sim posso ter a representação simultânea dos objetos contados e conseqüentemente chegar ao seu número. A intuição do espaço acompanha sempre a idéia de número, mesmo quando este deixa de representar imediatamente uma coleção de objetos e se torna um símbolo abstrato. Não se pode deixar de referir a Kant o termo e, provavelmente, a idéia de intuição utilizados nesse contexto. A intui­ção do espaço é o elemento no qual representamos o número, é o que nos permite representá-lo, portanto a condição de representa­ção. Na Estética Transcendental, como se sabe, o espaço e o tempo são vistos como intuições puras, condições da representação, a qual pode ser concreta, isto é, de objetos medidos ou contados, ou abstra­ta, referente a objetos puramente matemáticos. Na Geometria, a con­dição transcendental seria o espaço, na Aritmética, o tempo. Em Bergson, sem abordar por enquanto o problema do transcendental, o espaço é claramente colocado como condição das operações arit­méticas. Isto levanta interessantes questões de relação entre a teoria bergsoniana do número e a Estética Transcendental, que serão abor­dadas mais adiante. Limitando-nos por ora aos aspectos mais sim­ples e diretos, o fato de Bergson entender que é o espaço e não o tempo a condição da aritmética já antecipa implicitamente algo da crítica bergsoniana da concepção kantiana de tempo: na verdade, Bergson tentará mostrar que em Kant a condição da aritmética é o tempo espacializado. Aparentemente, diz Bergson, quando contamos, esta operação se dá no tempo, não entrando aí nenhuma represen­tação relacionada com a extensão. Isto, no entanto, é ilusório: quan-

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2. A SEGMENTAÇAO DA TEMPORAUDADE. O EXEMPLO ARISTOTÉUCO

do justapomos unidades para obter determinado número, acredita­mos percorrer momentos da duração; mas na verdade contamos estes momentos como se fossem pontos no espaço (0.1.-58). Kant teria aqui teorizado sobre o senso comum, o qual opera sempre e espon­taneamente a partir da confusão entre duração e espaço na constru­ção do número. A ambigüidade da própria noção de unidade entra em larga medida nesta confusão. Pois podemos considerar a unida­de como indivisível enquanto elemento formador do número; mas mesmo a unidade, quando objetivada, torna-se divisível enquanto multiplicidade, quando mais não seja, ao menos por ter sido ela fru­to de um ato do espírito que consiste em unir: reencontramos ainda aqui a idéia kantiana de síntese. Temos que a indivisibilidade da uni­dade é provisória: não a caracteriza em termos de ser, mesmo por­que o seu ser é de natureza espacial e, portanto, divisível. A simpli­cidade com que os números se apresentam ao espírito é fruto de uma ilusão criada a partir do hábito de manipular os números en­quanto simples, sem considerar a multiplicidade que está sempre implícita neles. Guardemos a idéia de que as unidades são virtual­mente divisíveis: veremos como ela se encontra, segundo Bergson, nos fundamentos do quadro aristotélico da reflexão sobre o tempo, possibilitando a afirmação bergsoniana de que a filosofia ocidental a partir daí se moverá substancialmente nos limites de um equívoco originário.

Pode ser que o ato do espírito que nos faz pensar um número seja algo simples; mas a objetivação imediata do que é pensado como que reifica este número, tornando-o, ainda que unidade, infinita­mente divisível. A objetividade se caracteriza pela decomposição, ao menos virtual. Somente através dela cremos atingir a nitidez que deve caracterizar o plenamente conhecido. Neste sentido o indivisí­vel estaria mais do lado do conhecimento confuso ou subjetivo (0.1.-63). Tudo isto quer dizer que há uma solidariedade entre o senso comum e a ciência no que diz respeito à intuição do espaço como condição de representação do número. Restará ver se a idéia de mul­tiplicidade a que se chega a partir desta teoria do número é compa­tível com a experiência direta do fluxo dos estados de consciência. Não há dúvida de que é uma determinada caracterização do movi­mento dos estados mentais que está em jogo no estudo da especifi­cidade da multiplicidade psicológica. A teoria bergsoniana do núme­ro nos oferece a ocasião para abordar algumas questões fundamen­tais da definição de tempo em Aristóteles e focalizar desta maneira a

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11 - ETAPA CRiTICA DA REINSTAURAÇÀQ DO OBJETO DA FILOSOFIA

análise bergsoniana do quadro fundador da reflexão sobre a tempo­ralidade para a tradição ocidental.

A teoria bergsoniana do número nos remete a Aristóteles porque neste filósofo é bem estreita a ligação entre tempo, número e movi­mento, a partir da definição aristotélica do tempo como o número do movimento (Física, N, 11, 219b). O percurso da argumentação de Aristóteles não deixa de ser ilustrativo inclusive em relação às críticas de Bergson à tradição. Mesmo que não se concorde inteiramente com elas, é possível reconhecer pelo menos a que problemas, na teoria aristotélica, remetem as considerações de Bergson e, reorde­nando a leitura bergsoniana dessa teoria, avaliar a importância de Aristóteles como interlocutor privilegiado no contexto das críticas de Bergson às concepções tradicionais do tempo. Apenas para nos situ­ar perante o problema, podemos dizer que as interpretações sedi­mentadas durante a história da exegese aristotélica alinham-se prin­cipalmente segundo os dois aspectos de que se compõe a teoria aris­totélica e que poderíamos chamar, ainda que um tanto anacronica­mente, de subjetivo e objetivo. O aspecto subjetivo diz respeito ao ato do espírito presente na apropriação da realidade através do modo temporal e o aspecto objetivo é aquele pelo qual o tempo está nas coisas ou no movimento das coisas. É certamente na tensão ou no equilíbrio entre estes dois aspectos que se deve procurar a autenti­cidade do pensamento aristotélico sobre o tempo. É verdade tam­bém que, em grande parte, as divergências de interpretação se ligam às diferentes atitudes filosóficas que os intérpretes tomam diante do texto original e que são conseqüência de suas próprias orientações. Dubois' traça um quadro das possibilidades interpretativas que mais se destacaram recentemente, fazendo notar a relação das interpreta­ções com as correntes filosóficas que influenciaram as respectivas leituras. Teríamos, por exemplo, a interpretação de Hamelin influen­ciada pelo idealismo kantiano; a de Moreau, em grande parte devida a Plotino e Agostinho; a de Carteron, comprometida com a filosofia do próprio Bergson; a de Festugiere, que se move a partir do tomismo.

Apesar da diversidade das interpretações, ou mesmo por causa dela, podemos traçar um percurso sumário da argumentação aristo-

5. Dubois, Jacques Mareei, l.e Temps et l'Instant selon Aristote, Desclée de Brouwer, Paris, 1967. As considerações que fazemos neste item acerca da teoria aristotélica do Tempo são totalmente calcadas neste livro.

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2. A SEGMENTAÇÃO DA TEMPORAUDADE. O EXEMPLO ARISTOTÉLICO

télica, buscando exatamente encontrar um equilíbrio ou a manuten­ção de uma tensão entre os aspectos citados acima. A partir da de­finição aristotélica do tempo como o número do movimento segundo o anterior e o posterior, é possível ver primeiramente quais são os elementos considerados por Aristóteles como fazendo parte da defi­nição, e a reflexão aristotélica se moldará através da maneira de or­ganizar estes diversos elementos. São eles:

a) Movimento: porque é no movimento que identificamos a pas­sagem do tempo. A mudança é uma experiência que revela o tempo.

b) Duração: porque é na experiência psicológica da duração como mudança interna que temos o primeiro acesso à experiência do tempo.

c) Anterior/posterior: porque identificamos na passagem do tem­po as divisões - pelo menos virtuais - que nos permitem separar as dimensões do tempo.

d) Instante: porque apreendemos o tempo como realidade sin­gular no ato de apreensão de sua passagem: o que foi, o que é, e o que será, e tal apreensão se dá na percepção do instante como espé­cie de unidade temporal.

e) Número: porque de certa maneira contamos o tempo através de uma ordenação ou determinação dos instantes, que é uma enu­meração.

f) Medida: porque tal enumeração tem como finalidade saber - com propósito teórico ou prático - o quanto e o como da passa­gem do tempo, a fim de que possamos representar a partir de dada referência o tempo enquanto modo de apreciação da realidade, visto que o tempo é parte de nossa representação cronológica.

Trata-se de organizar esses elementos, o que será feito ao longo dos capítulos em que Aristóteles desenvolve a teoria. Qual é o senti­do do ser do tempo? Ou então: como o tempo se torna uma questão? A questão do ser e da natureza do tempo toma assim a feição comum a vários problemas tratados em Aristóteles: o exame crítico da expe­riência espontânea. Tal exame conduz a dificuldades ou aporias, as quais configuram as linhas que deverão ser seguidas na elaboração da teoria, que é a tentativa de solução das aporias.

a) Como o que é composto por partes que não são (passado e futuro) pode pretender ao ser?

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b) Se uma coisa divisível é, suas partes devem ser. Isto não acon­tece com o tempo.

c) Se o tempo não é composto de instantes (enquanto partes) como a realidade do instante funda a realidade do tempo? Essa ter­ceira aporia parece mostrar-se a mais importante, tendo em vista o desenvolvimento que receberá.

Todavia, antes de examiná-Ia, convém deter-se num problema que diz respeito à própria índole da interrogação aristotélica e que pode ser levantado a partir de uma perspectiva heideggeriana de ques­tionamento. Trata-se da maneira como Aristóteles questiona o ser e a natureza do tempo, e, no desenvolvimento posterior da argumen­tação, parece ocupar-se unicamente com a questão da natureza e mais ainda - com a natureza do tempo na representação que dele temos. Moreau, a partir de uma visão plotiniana, critica em Aristóte­les o abandono do problema propriamente ontológico em beneficio do problema epistemológico - a função do tempo na representação do reaL A resposta, por um lado, pode ser bem mais simples do que deixa entrever a pergunta. Podemos dizer que Aristóteles não tem de se preocupar com o problema ontológico porque ele não o propõe. Sua pergunta pelo ser do tempo significa apenas a tentativa de escla­recer aquilo que a experiência comum identifica como tempo. Tem isso que comumente chamamos de tempo uma existência real, ou seja, podemos definir realmente o tempo? É esse um procedimento metodológico comum em Aristóteles: partir da definição nominal para chegar à definição real (cf. Segundos Analíticos, B, I, 89b, 31-35). Ou ainda: na medida em que o ser se diz em vários sentidos, em qual desses sentidos podemos dizer que o tempo é? O que significa situar inteligivelmente as experiências que manifestam o tempo, justificá­-Ias e dar conta ou razão de suas possíveis contradições ou aporias. Aristóteles não pergunta, pois, por que existe o tempo, no sentido em que Leibniz perguntará por que o ser e não antes o nada. A razão do existir do tempo ultrapassa a possibilidade de questionamento. Não há dúvida de que se pode dizer que Aristóteles se inscreve na aurora da tradição metafisica que significa - segundo Heidegger - a subs­tituição da pergunta pelo ser pela pergunta pelo ente. A própria divi­são categorial visa de certa forma operacionalizar esta substituição que é de índole socrático-platônica. Aristóteles procura uma defini­ção - um conceito que permita explicar o tempo tal qual aparece à experiência e à reflexão sobre esta experiência. Isso não anula o fato

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de que existe um problema ontológico que fica no esquecimento, mesmo que tal problema nem sequer tenha sido posto por Aristóteles.

Examinemos agora a aporia do instante. A importância dessa dificuldade - que se mostra na longa análise que lhe dedica Aristó­teles - está justificada na medida em que, como já vimos, é a relidade do instante que funda a realidade do Tempo. O problema se toma, pois, o de apreender inteligivelmente o instante. Em princípio há duas hipóteses:

a) O instante é sempre o mesmo: no entanto podemos argu­mentar que, sendo o instante entendido também como limite, o tem­po é divisível e podemos considerar segmentos do tempo .- tempos finitos - que comportariam pelo menos dois instantes, o começo e o fim. Dizer que o instante é sempre o mesmo equivaleria, pois, a negar a passagem do tempo (Fís. IV, 218a, ss.).

b) O instante é sempre diferente: mas ainda não podemos dizer quando cada instante desaparece para dar lugar ao seguinte, uma vez que não podem coexistir. Tampouco se pode passar de um ins­tante para outro, visto que o tempo é contínuo e infinitamente divi­sível, como a linha (Fís. IV, 218a, 11, ss.).

A resolução do impasse da estrutura do instante configuraria o quadro da teoria do tempo. O exame das soluções historicamente anteriores, como é costume em Aristóteles, deixa um saldo positivo: a ligação entre tempo e movimento. Por exemplo, no Timeu o tempo é o movimento do universo. Aristóteles retém este dado para criticá­-lo. A identificação entre tempo e movimento é apenas aparente por­que: a) o movimento está em cada coisa que se move e o tempo está em toda parte (Fís. IV, 218b, 10-13); b) movimento e mudança são mais rápidos ou mais lentos, o que não ocorre com o tempo que, pelo contrário, serve para medira lentidão ou a rapidez (Fís. IV, 218b, 13-18).

Assim, por enquanto sabemos apenas que tempo e movimento, embora estreitamente ligados, não se identificam. Aristóteles toma então outro dos elementos já enumerados como eixo de análise para reexaminar o problema: a experiência psicológica da duração, ou a análise do movimento interno. Note-se que a assimilação entre du­ração e movimento (mudança) interno já oferece, do ponto de vista bergsoniano, flanco para a crítica, embora tenhamos de examinar ainda a questão da originalidade do movimento temporaL Há que se atentar também para o problema da escala da medida do movimen-

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to, que é outro movimento (perfeito): movimento uniforme de um universo único - postulado cosmológico. Tal postulado entretanto precisa ser bem entendido: Moreau aponta para o fato de um movi­mento medir outro, pois embora o tempo não seja o movimento das realidades naturais, ele seria movimento perfeito do primeiro céu. Enquanto representação, seria o movimento abstrato ou tempo mate­mático relacionado com a medida. Em contrapartida, Dubois assina­la dois aspectos: a) o tempo aristotélico, mesmo se confundido com o movimento do primeiro céu, não seria abstrato, pois o movimento do primeiro céu é uma realidade cosmológica efetiva; b) a medida extensiva (grandeza) é o aspecto exterior do tempo, pois mesmo o movimento concreto do primeiro céu serve de referência para medir o tempo. A escala de medida na verdade é a duração deste movimen­to privilegiado.

De qualquer forma, o reexame do problema se dá no âmbito da duração interna como trabalho de interpretação da experiência ínti­ma das mudanças subjetivas. Isto faz sentido na medida em que é a consciência da mudança que nos revela o tempo. Dito de outra for­ma, é a diferença dos instantes que causa o fluxo do tempo. Tanto a identidade quanto a diferença dos instantes é função de um ato de espírito, ou seja, de uma determinação decorrente de que sentimos ou sofremos mudança. Perceber o tempo é ter sensação de movi­mento (ao menos interno) e determiná-lo por ato de espírito. Isto não supõe de forma alguma dependência real do tempo em relação à alma, como afirmaria uma interpretação idealista, por exemplo a de Hamelin. Simplesmente, percepção do movimento e percepção do tempo se implicam mutuamente. Guardemos tal implicação e a analogia que encerra, pois sobre este ponto incidirá com muita vee­mência a crítica bergsoniana. Os elementos que vimos até aqui per­mitem que Aristóteles reformule criticamente a teoria do Timeu que identificava tempo e movimento. O tempo não é movimento mas é qualquer coisa do movimento, e resta saber o quê. Aqui se retoma a ordenação dos elementos citados anteriormente. O tempo é, no movimento, aquilo que está determinado pelo instante. O que está determinado pelo instante é a relação anterior/posterior do movi­mento. Determinar o anterior/posterior é, para Aristóteles, numerar o movimento: contar os instantes. O anterior/posterior, quando é função de determinação pelo instante (sucessão) e não pelos pontos da extensão (justaposição), é passagem de tempo. Quando, por ato do espírito, determinamos tal passagem em termos de anterior /pos-

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terior, numeramos o movimento segundo a sucessão, segundo o tem­po. Daí a definição aristotélica: o tempo é o número do movimento segundo o anterior/posterior (Fís. IV, 219 11 b 33-34).

Os esclarecimentos que faz Aristóteles após o percurso que o levou à definição nos darão oportunidade de abordar mais direta­mente alguns aspectos da crítica bergsoniana. Tal crítica relaciona­-se de perto com a teoria bergsoniana do número presente nos Da­dos Imediatos. Acreditamos que é ela que fornece os parâmetros ime­diatos para a avaliação bergsoniana da teoria aristotélica.

A exposição da teoria do número tem como função fornecer um instrumento que deverá ajudar a compreensão da substituição do tempo pelo espaço que se opera na ciência e na filosofia; deve aju­dar-nos a pensar como se chega a esta substituição quando a refle­xão sobre o tempo se desenvolve moldada pela reflexão sobre o es­paço. Não há dúvida de que o problema ontológico está fortemente presente nessa crítica: podemos mesmo dizer que a finalidade últi­ma é a compreensão do ser do tempo por ele mesmo. A etapa do estudo da duração psicológica será a primeira dentre as necessárias para a construção de uma teoria positiva. A teoria do número permi­te em primeiro lugar compreender como e por que a duração é pen­sada em termos de multiplicidade numérica, sendo uma das carac­terísticas principais a divisibilidade que permite a decomposição e a recomposição. É interessante notar que a divisibilidade se conserva virtual enquanto o espírito se fixa sobre os números separadamente; é este um processo indivisível; mas, exatamente, o espírito se fixa sobre cada parte da multiplicidade, isola-a e a conserva para juntá­-la a outras. Tal operação pode ser invertida, decompondo-se as par­tes sintetizadas. Isto, segundo Bergson, só pode ser feito com partes do espaço, e por isto é com o espaço que se constrói o número (D.\.-63). Devemos entender essa operação apenas como uma analogia? Apenas um procedimento que nos auxilia a compreender o tempo? Certamente todos os que teorizaram sobre o tempo desta maneira concordariam que se trata de uma analogia. A crítica de Bergson, porém, não se contentaria com essa confissão. Pois primeiro é pre­ciso discernir as causas que tornam a analogia tão necessária e tão constante; e em seguida se perguntar se a analogia não acaba por suprimir um dos termos que a compõem, justamente o tempo, que assim desaparece no próprio procedimento que deveria esclarecê-lo. Isso nos remeteria sem dúvida às questões relativas à crítica da inte­ligência, que já consideramos. O fato é que a representação simbó-

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lica dos estados de consciência em termos de multiplicidade numé­rica - resultado da analogia - significa ver os estados de consciên­cia através da extensão, atribuindo-lhes propriedades que de fato não possuem. A analogia portanto nos leva demasiado longe e é muito mais do que um procedimento auxiliar. Ela faz com que os estados de consciência apareçam para nós como extensos, o que significa a perda definitiva da essência do psíquico. O distanciamento entre símbolo e simbolizado faz com que o símbolo acabe por aparecer como a única realidade'. Assim, o caminho correto seria tentar isolar a consciência da extensão e tentar perceber o seu movimento inde­pendente da exterioridade.

Como sabemos que Aristóteles desenvolve a reflexão sobre o tempo em analogia com o movimento extenso, vamos identificar na argumentação aristotélica os passos da analogia para confrontar com a crítica de Bergson. Não há dúvida de que, ao menos num primeiro momento, a analogia é afirmada em termos tão fortes que se poderia até mesmo pensar numa redução. Aristóteles dá como característi­cas que ligam tempo e movimento a continuidade e a extensão, re­duzindo em seguida a continuidade do movimento e do tempo à extensão (Fís. IV, 219 a 12-13). Há pois analogia entre grandeza, mo­vimento e tempo. O sentido da analogia em Aristóteles não é o de uma igualdade linear, nem o estabelecimento de relações de compa­ração simples, termo a termo. Para Aristóteles, a analogia significa igualdade de relações entre seres pertencentes a categorias diferen­tes, que são aproximados em razão de uma similitude profunda (Met., N, 1093 b 18). Assim, há analogia entre o tempo e o movimento porque, embora diferentes enquanto categorias, ambos têm relação com o contínuo, cada qual no gênero que lhe corresponde: continui­dade espacial e continuidade temporal. O contínuo é o fundamento da analogia. Para Aristóteles todo contínuo supõe uma ordem, repre­sentada pela estrutura anterior/posterior. O contínuo temporal é caracterizado pelo número, maneira de contar os instantes segundo o anterior/posterior. Esta será a originalidade do contínuo temporal. Mas o modelo de ordenação do contínuo é primeiramente extenso: o lugar é a primeira forma de identificação da ordem anterior/pos­terior (Fís. IV, 219 a 14-16). A extensão, enquanto contínuo em que

6. "Se, para contar os fatos da consciência, devemos representá-los simbolicamente no espaço, não é verossímil supor que esta representação simbólica modificará as condições normais de percepção interna?" (0.1.--67).

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se dá o modo espacial da estrutura anterior/posterior parece pois fornecer o modelo para pensar a mesma estrutura no contínuo tem­poral. Mas o que é anterior/posterior em termos de movimento ex­tenso? É posição. Na sucessão temporal, o anterior/posterior não poderia ser posição porque não há um conjunto de posições anterio­res e posteriores coexistentes no tempo, justamente porque o tempo é movimento de sucessão. Sendo assim, aquilo que permite ao mo­vimento, na sucessão, ser ordenado em termos de anterior/posterior (pelos instantes) é o tempo. Portanto a estrutura anterior/posterior tem­poral seria independente e original em relação ao movimento exten­so. Dubois chega a dizer que este é na verdade o primeiro modelo que permitirá ao próprio movimento ser ordenado em termos de anterior/posterior, apoiando-se em Fís. IV, 219 a 22-25: o tempo é aquilo que, uma vez dado o movimento, permite nele discernir o anterior/posterior. Este ato do espírito de discernir ou de captar, no movimento, o anterior/posterior, é propriamente numerar no senti­do de Aristóteles: ordenar, por meio dos instantes, o antes e o depois. O instante tem pois uma função numerante que faz dele a unidade temporal e, nesse sentido, é sempre o mesmo. A analogia se pode enunciar deste modo: assim como o móvel é idêntico enquanto se movimenta (ou não seria do mesmo movimento que estaríamos fa­lando), também o instante permanece idêntico e assegura a conti­nuidade do tempo. Além da analogia com o móvel há também a analogia com o ponto. Este é fim e começo, une e divide. Isto é válido também para o instante, mas com a diferença de que as partes da linha que o ponto divide existem em ato com ele, enquanto as partes do tempo que o instante divide não existem; somente o instante presente existe em ato. Aristóteles parece fundamentar a diferença na impossibilidade de coexistência real dos instantes. No caso do ponto, é o contínuo espacial que funda a sua realidade. No caso do instante, é ele que funda a realidade temporal. Teria tal diferença um signifi­cado suficientemente amplo e profundo para fundamentar a origi­nalidade do tempo? Aristóteles não deixa de afirmar que o tempo é um contínuo, assim como a linha. É nisso que se funda a analogia. Tempo e espaço são diferentes gêneros de contínuo. A analogia, lem­bremos, se faz entre realidades pertencentes a gêneros diferentes, que entretanto apresentam similitude profunda. Como a analogia está no movimento, isto é, mais no móvel e no instante do que no contínuo como base ou sustentáculo, ou ainda como diria Bergson, enquanto "meio homogêneo", é preciso que se ressalte também que o instante não é pensado como unidade que se adiciona a outra

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unidade para constituir uma totalidade. Nesse sentido, o tempo não deve ser entendido nos termos de quantidade discreta. Devemos pensar que, assim como o móvel é aquilo que permite conhecer o movimento, o instante é aquilo que permite conhecer o tempo; qua­se como se fossem unidades lógicas. Dizer que o instante mede o tempo é algo que não precisa ser entendido em termos rigorosamen­te matemáticos. O instante é medida, no sentido em que sua estru­tura retrata a realidade do tempo e assim ele serve de padrão ou parâmetro para o conhecimento do tempo.

Aqui já podemos comparar os argumentos. Bergson salienta o fato de que a operação de contagem pressupõe a coexistência real ou virtual na medida em que implica simultaneidade, já que não seria possível na pura duração. Real ou simbolicamente, fazemos coexistir os elementos que são objeto de numeração ou contagem. Isto se aplica aos instantes da duração. Há que se supor coexistência virtual ou simbólica para que possamos contá-los como elementos estáveis da inteligibilidade que possuímos do mundo. Caso contrário nem haveria sentido em supor o contínuo temporal. Tal contínuo é o "meio homo­gêneo" em que se conservam - virtual ou simbolicamente - os instan­tes. É claro que no caso do tempo é o espírito que conserva os instantes, e é assim que a analogia se torna identificação intelectual do tempo e espaço. A noção de continuidade, que tem como função funda­mentar a coexistência ou simultaneidade, assegura esta identifica­ção. Esta se traduz por um ato do espírito que se dá a partir da con­cepção de um meio vazio homogêneo, que funda as diversas opera­ções com os instantes, todas a partir da virtual coexistência ou si­multaneidade (D.I.-70). É a partir desta concepção que organizamos a percepção do tempo, e será esta mesma concepção que tomará em Kant a figura da forma a priori da intuição. Este meio vazio homogê­neo é dado e nele, ou sobre ele, ocorrem as sensações e percepções temporais. É o contínuo. Neste sentido, e levando-se em conta que é sobretudo um ato do espírito, não importa se os instantes não coexistem realmente. É algo impossível da perspectiva do ser, mas é também algo que tornamos possível da perspectiva do conhecer, quando fazemos repousar o conhecimento do tempo na relação dos instantes. O ato de relacionar implica o contínuo, a coexistência vir­tual, o "meio homogêneo". Daí deriva toda a maneira peculiar de interpretar o modo temporal da realidade. É certo, por exemplo, que Aristóteles não admite partes do tempo, que seriam os instantes, assim como não admite que os pontos sejam partes da linha. Um contínuo

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2. A SEGMENTAÇÃO DA TEMPORAUDADE. O EXEMPLO ARISTOTÉLICO

é uma totalidade que não tem partes enquanto não for dividido por um ato do espírito que - quase se poderia dizer - cria as partes: então a parte da linha será um segmento da linha e a parte do tempo um segmento do tempo. Isto quer dizer que tanto a linha espacial como o tempo são potencialmente divisíveis em partes, mesmo que não o sejam atualmente. Isto se aplica ao movimento e ao tempo. O movimento é uno; se o dividirmos ele será intermitente (Fís. IV, 263 a 23 sS). É a partir desta distinção entre a divisibilidade potencial e atual que Aristóteles refuta Zenão: o movimento do móvel tem de atravessar a distância infinitamente divisível, só que esta divisibilidade não é atual e, por isso, o móvel supera a infinidade de pontos. O contínuo é divisível potencialmente, não dividido atualmente.

Tal distinção faria com que o tempo concebido como contínuo escapasse da crítica bergsoniana? Lembremos que, segundo Berg­son, é exatamente por supor o tempo uma continuidade divisível que esta concepção se presta a uma utilização teórica e prática. Esta divisibilidade enquanto disposição para ser dividido é que torna o tempo um conceito operacional do ponto de vista científico e manipulável do ponto de vista prático. De forma que a distinção entre divisão real e divisão virtual é simétrica à própria diferenciação entre tempo e espaço. Não os confundimos semanticamente, mas os identificamos inconscientemente'. É preciso considerar também que a identificação entre tempo e espaço carrega consigo uma implica­ção que faz ressaltar muito bem a inadequação desta concepção de tempo à duração psicológica: é a exterioridade recíproca. Se pensa­mos a organização de um conjunto como uma série de elementos justapostos, nada nos impede de conceber maneiras inversas de re­lação. Se concebemos a duração a partir de um modelo espacial, nada nos impede de considerar, por exemplo, que as vivências psi­cológicas se relacionam sucessivamente ou reversivamente, ao me­nos no plano da possibilidade teórica. Isso se deve ao fato de que, no caso, as relações são puramente quantitativas, ou seja, não existe, na organização do conjunto, uma qualidade que se confunda com a própria organização dos elementos, porque não concebemos esta or­ganização como qualidade. Em outras palavras, a sucessão torna-se apenas uma justaposição no tempo. Esta justaposição temporal é

7. "Seria o caso de se perguntar se o tempo, concebido sob a forma de um meio homogêneo, não seria um conceito bastardo, proveniente da intromissão da idéia de espaço no domínio da consciência pura" (D.I.-73).

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ordenada pelo antes/depois (a estrutura aristotélica anterior/posterior): tal ordem supõe, para Bergson, a possibilidade teórica da simulta­neidade virtual entre o antes e o depois. Por isso dizemos que há ordem na sucessão: comparamos os momentos da duração enquan­to série que se projeta num contínuo homogêneo (0.1.-76), o que nos possibilita medir a duração, ou, como diz Bergson, contar os seus momentos sucessivos. Tal operação envolve certamente uma analogia. Mas não consideramos o tempo como análogo ao espaço apenas para contá-lo. Quando contamos os instantes do tempo já supomos uma série de pontos que se desenvolvem - se justapõem - num contínuo, relacionando-se em termos de exterioridade recí­proca. É desta maneira que se estabelece uma relação entre o tempo e o número, na medida em que o escoamento do tempo (dos instan­tes) é pensado em termos de multiplicidade numérica. Não se leva em conta a qualidade que aparece na duração enquanto marca ca­racterística do fluxo temporal, cujo exemplo privilegiado é a melodia, organização qualitativa por excelência'. Na medida em que o tempo aparece como multiplicidade numérica, medir a duração significa contar simultaneidades. Quando aplicamos este conceito de duração à vida psicológica, formamos um conjunto suscetível de decomposi­ção e recomposição de elementos supostos simultâneos. A simulta­neidade é a noção-chave nesta endosmose entre tempo e espaço.

Isto fica bem claro na consideração do movimento, sempre tra­dicionalmente confundido com o espaço percorrido. Ou seja, a ope­ração que consiste propriamente no ato de passar de uma posição a outra não é considerada, mas apenas as posições sucessivas que o móvel vai ocupando no espaço. Posso considerar apenas as posições porque, supondo a trajetória do móvel infinitamente divisível, é cla­ro que ele estará sempre em alguma posição. O movimento se trans­forma portanto numa relação entre posições. Não se considera a mobilidade como ato de mover-se. É como se o objeto estivesse sem­pre parado em alguma posição e o movimento fosse a relação entre

8. "Se, enfim, conservo, junto à imagem da oscilação precedente (do pêndulo de um relógio). a lembrança da OSCilação que a precedeu, acontecerá, de duas coisas, uma: ou justaporei as duas imagens, e recaímos então na nossa primeira hipótese; ou as perceberei uma na outra, penetrando-se e organizando-se entre si como as notas de uma melodia, de maneira a formar o que chamamos uma multiplicidade indistinta ou qualitativa, sem nenhuma semelhança com o número: teria assim uma imagem da duração pura, mas também me teria desvencilhado completamente da idéia de meio homogêneo ou de uma quantidade mensurável" (D.I.-78).

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2. A SEGMENTAÇÃO DA TEMPORALlDADE. O EXEMPLO ARISTOTÉLICO

os diferentes pontos de parada. O argumento de Zenão é apenas a radicalização dessa concepção, e não há como refutá-lo permane­cendo na mesma perspectiva. É a confusão entre os atos de movi­mento e o espaço que subjaz a estes atos, levada a extremo. Dividi­mos o ato de mover-se assim como dividimos o espaço no qual o objeto se move (0.1.-83). O movimento se torna então apenas síntese mental dos pontos de parada no percurso do objeto. Em suma, o movimento é considerado coisa, quando na verdade ele é um ato ou um progresso. Na medida em que é considerado coisa e transforma­do numa seqüência de pontos real ou virtualmente simultâneos, o movimento também se torna uma relação de simultaneidades. Eis a gênese do movimento abstrato com o qual trabalha Zenão e com o qual trabalham a matemática e a ciência: um movimento composto de partes, infinitamente divisível tal como o espaço que separa Aquiles da tartaruga; movimento que pode ser decomposto e recomposto. Notamos portanto que a refutação bergsoniana do argumento eleático é diferente da refutação aristotélica, que consistia em distinguir in­finito em potência e infinito em ato, divisibilidade real e virtual (Fís., 239 b). Bergson não refuta logicamente Zenão, mas mostra que ele não tem a concepção verdadeira do movimento real. E a refutação inclui até mesmo mostrar que, dentro da mesma concepção de mo­vimento, não há refutação possível, como assinala Theau'. Bergson considera que esta concepção do tempo abstrato é substancialmente a mesma que vige na ciência (0.1.-86).

As implicações de tal atitude são profundas. A filosofia recuou diante do esforço necessário para pensar a duração, pois a duração choca naturalmente o espírito. Tanto é verdade que a tendência natural da inteligência é escamotear o tempo real, fixando o devir, estabilizando-o pela linguagem. Pensemos na filosofia grega: além de Zenão, pensemos no platonismo e sobretudo no aristotelismo. O recuo diante do devir está, para Bergson, na origem da Filosofia das Formas, que em Platão toma a figura da Teoria das Idéias. A noção de eidos cumpre a função de estabilizar o real, apropriando-se de sua essência, que é o momento tornado eterno, o instante que retrata a eternidade, escala para avaliar, em termos de degradação de ser, as

9. "(. .. ) o pensamento matemático chega inevitavelmente aos mesmos impasses de Zenão de Eléia se requeremos dele um ensinamento metafísico sobre o movimento e sobre a duração" (Theau, Jean, La Critique Bergsonienne du Concept, PUF, Paris, 1968, p.46).

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formas que desfilam no devir (E.C.-314). A partir daí segue-se o modo de representação do real em que este é descrito e julgado a partir de uma eternidade imóvel. As conclusões a que chegaram os sistemas gregos são quase necessárias a partir do pressuposto de recusa do devir. A "inteligência sistemática" desenvolve espontaneamente ra­ciocínios que tendem a inserir estabilidade, fixidez, separação no devir universal das coisas, a fim de obter pontos de referência numa rea­lidade que é movimento. Nesse sentido pode-se dizer que ainda fi­losofamos à maneira grega: não apenas porque conservamos os mesmos problemas e refletimos no âmbito demarcado pela especu­lação grega, mas também e principalmente porque conservamos a mesma atitude diante do real e porque nossa inteligência é presa do mesmo desejo - que corresponde à sua função - de organizar o devir em elementos descontínuos e estáveis. Isso tem tudo a ver com a linguagem: o pensamento é em larga medida moldado por ela, sua estrutura e suas categorias demarcam o âmbito do pensamento e o esforço de conceitualização apenas prolonga sua tendência natural. Assim, a única maneira de dar conta do devir será considerando-o uma diminuição de ser a partir do paradigma ontológico da imobi­lidade, considerada como dadalO. O movimento no devir está pois desde logo definido como degradação de Formas puras. O mundo material oscila entre o ser e o nada, entre a verdade plena, da qual é aparência remota, e o vazio de ser, distância máxima em relação à imutabilidade. A duração, olhada a partir da eternidade que consti­tui por hipótese o padrão do ser, fica reduzida a uma realidade menor ou a uma aparência, pois o tempo, como diz Platão no Timeu, é a "imagem móvel da eternidade" (E.C.-317). É de se notar que, sendo características do mundo material a duração no tempo e a extensão no espaço, tempo e espaço não só participam da mesma avaliação negativa do ponto de vista ontológico, como também têm a mesma origem, pois acham-se sempre associados à carência que caracteriza o mundo do devir (E.C.-318). Extensão e duração representam aqui­lo que deve ser superado para que nosso espírito aceda à verdade. O movimento, de maneira análoga à temporalidade, é marca de seres imperfeitos e degradados. Daí o esforço a que estamos condenados para tentar atingir, a partir da matéria, as formas ideais que são a verdade do próprio mundo material. Há então que superar todos os

10. "No fundo da filosofia antiga, vigora necessariamente este postulado: há mais no imóvel que no movente, e passamos, por via de diminUição ou de atenuação, da imobilidade para o devir" (E.C.-315).

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3. TEMPORAUDADE FORMAL

ciclos de mudança, a evolução, o progresso, a geração e a morte, todas as figuras do movimento, déficit de ser. Aceder a esta verdade é libertar-se do espaço e do tempo, retroceder aquém das aporias do instante para instalar-se na eternidade, instante único. Se substituí­mos as Idéias por conceitos vemos que esta concepção implica con­siderar o físico como o lógico falhado ou degradado. Daí a necessida­de, tão de índole socrática, de remeter o movimento a um conceito que o explique, de tornar a pluralidade inteligível através de um invariante colocado acima do espaço e do tempo. A ordem do mun­do é a ordem lógica, que a realidade do devir perturba - e por isso deve ser anulada para que voltemos ao plano da identificação entre realidade e conceito. A necessidade de um mundo das Idéias ou de um quadro categorial como fonte de conceitos deriva da necessidade de ser o real explicado pelo lógico, daí a Idéia ser a realidade primei­ra e, para Platão, dotada de plena realidade ontológica. Aristóteles, embora tenha criticado o Mundo das Idéias, não pôde deixar de constituir uma hipóstase talvez mais radical na Idéia das Idéias, o Deus aristotélico - Pensamento do Pensamento, "síntese de todos os conceitos num único conceito" (E.C.-321). É assim que a própria ciência torna-se anterior à inteligência, geradora de coisas, ciência integral que o homem tenta laboriosamente e, no limite, em vão, reconstituir nos avatares da discursividade dialética. Todo saber se resume na visão virtual de Deus. É essa virtualidade que abre a pers­pectiva da salvação pelo saber, da ascensão ao Uno, quando a tota­lidade virtual se realiza vertendo-se cosmologicamente na processão da realidade desde o princípio absoluto até o puro nada. Bergson crê encontrar essas conseqüências melhor expressas nos alexandrinos e em Plotino, e vê esse estilo de pensamento governado na sua decor­rência histórica por um postulado: "A posição de uma realidade im­plica a posição simultânea de todos os graus de realidade intermediá­rios entre ela e o puro nada" (E.C.-323).

3. TEMPORALIDADE FORMAL

O exame bergsoniano da Filosofia das Formas de Platão e de Aristóteles tem uma importância que ultrapassa a de uma mera in­terpretação das concepções de tempo e movimento na filosofia an­tiga, na medida em que Bergson crê poder afirmar que a filosofia moderna, muito embora tenha tido o propósito de mudar radical­mente tal visão, permaneceu presa dos mesmos pressupostos, devi-

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do ao movimento natural da inteligência que coincide com as con­clusões gerais da filosofia grega. Assim, continuou a época moderna filosofando à maneira grega por conservar diante do real a mesma atitude da especulação antiga, que de resto é aquela assumida pela inteligência já no nível da vida prática. Sendo assim, o desenvolvi­mento histórico das linhas mestras do pensamento apresenta para Bergson uma continuidade que não é apenas fruto de uma perene retomada dos temas que obcecam o espírito humano, mas que pro­vém de ter sido sempre a especulação entendida como um prolon­gamento da abordagem do real pela inteligência". É portanto no mesmo âmbito que se movem o pensamento antigo e a ciência moderna, da qual Bergson procura alinhar os aspectos fundamentais a fim de mostrar o substrato "biológico" (inteligência) que nos forne­ce a chave para apreender o sentido profundo dos procedimentos de que se serve a ciência para conhecer o mundo. É, portanto, através de uma visão histórica das teorias do conhecimento, uma continui­dade que provém de algo mais do que a herança dos temas e a per­petuação dos procedimentos que nos é dada. Trata-se de colocar esta visão histórica lado a lado com os aspectos fundamentais do processo de conhecimento discursivo, para que vejamos de maneira nítida a continuidade dos aspectos fundamentais, bem como a causa dessa continuidade que está, ela mesma, fora da história. Dentre esses aspectos, o principal é sem dúvida o que liga estreitamente a ciência à prática, fazendo daquela um tipo de conhecimento profundamen­te "interessado" no que Bergson chama "a nossa influência sobre as coisas". É a nossa ação sobre o mundo que se trata de ordenar; é portanto sobre a estrutura da práxis que se modelará a ciência. Como nossa ação se organiza segundo o modo da descontinuidade, será assim que a ciência ordenará sua própria forma de ver o mundo, transformando a realidade movente num conjunto de símbolos bem estruturados que nos fornece as condições necessárias para a inteli­gibilidade e a ação (E.C.-329). Essa escansão da realidade não faz mais do que aprofundar a herança dos procedimentos da filosofia grega que, como já vimos em Aristóteles, consistia em transformar o movimento numa relação entre posições, ignorando os intervalos en-

11. "Não nos parece contestável que a filosofia moderna tenha tido, muitas vezes, e sobretudo no início, a veleidade de mudar (o ponto de vista da filosofia antiga sobre o tempo). Mas uma atração irresistível conduz a inteligência ao seu movimento natu­ral, e a metafísica dos modernos às conclusões gerais da metafísica grega" (E.C.-328).

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quanto preenchidos pelo próprio ato de mover-se. Isto absolutamente não significa que não haja diferença entre o pensamento grego e a ciência moderna. Existem diferenças profundas, mas que marcam não só a continuidade da mesma atitude básica da inteligência dian­te das coisas, como também servem para aprofundar tal atitude, constituindo-se essas diferenças em maneiras de ordenar a estrutura simbólica representativa do mundo sob novos critérios e numa nova linguagem, mas que permitem manter a integridade da destinação prática da ciência enquanto produto da inteligência.

Tais diferenças exprimem-se primeiramente no fato de que a ciên­cia moderna abandona a consideração dos momentos privilegiados, que retratariam a essência do objeto ou dos estados do mundo, e passa a visar ao objeto em qualquer momento, podendo a descrição do estado de coisa que se quer conhecer recair sobre não importa que momento da duração do objeto. A indiferenciação lembra-nos a distinção que se costuma fazer quando se diz que a física aristotélica é qualitativa e a ciência moderna procede operando relações de quan­tidade. Não é nessa linha, ao menos de forma mais direta, que se encaminha a reflexão bergsoniana. O que se procura mostrar é que a ciência moderna substituiu uma descrição por conceito~ diferencia­dos que procuravam dar conta dos principais aspectos definidores do objeto e do comportamento do objeto por uma abordagem relacional que não considera momentos essenciais na própria medi­da em que considera que todos os momentos se equivalem numa abordagem quantitativa que visa estabelecer relações e não repre­sentar essências". A abordagem relacional que procura mostrar a estrutura do real através da decomposição levada às últimas conse­qüências aprofunda portanto a divisibilidade virtual como procedi­mento do conhecimento que já notáramos em Aristóteles e na índo­le, por assim dizer, eleática da visão que tinham os antigos da maté­ria e do movimento. Unidade e divisão, entretanto, possuíam para o pensamento grego os limites impostos por uma noção não comple­tamente matematizada de medida e também por estar o procedi­mento da ciência ancorado numa linguagem comum e subordinado de alguma forma à estrutura da percepção. É dessa forma que, por

12. "( ... ) a ciência antiga cri conhecer suficientemente seu objeto quando realiza a notação de seus momentos privilegiados, ao passo que a ciência moderna considera o objeto em qualquer de seus momentos'· (E.C.-330).

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exemplo, os gregos não poderiam operar uma decomposição indefi­nida do tempo, uma vez que a divisão nesse caso estava determinada pela percepção natural, pela linguagem natural e por um recorte factual da realidade sob o critério das individualidades sucessivas. Sempre poderíamos prosseguir com a decomposição se pudéssemos estabelecer outras tantas individualidades. É o que Bergson chama de "crises aparentes do real" que determinavam, por exemplo, as articulações naturais do tempo. Tais articulações naturais represen­tariam, de certa maneira, limites para a divisibilidade abstrata. De fato representam talvez os próprios limites da abstração como forma de consideração simbólica do real.

A ciência moderna, por sua vez, não considera essas articulações naturais. O tempo pode ser dividido conforme as necessidades teó­ricas, já que não possui nenhuma articulação objetiva que precise­mos respeitar. Podemos e devemos, por exemplo, localizar um mo­vimento de mudança em qualquer de seus momentos, e isso faz parte do conhecimento que podemos ter sobre ele. Podemos localizar qualquer instante da mudança em primeiro lugar porque podemos localizar todos e, em segundo lugar, porque todos os instantes se equi­valem (E.C.-331). A diferença entre a ciência antiga e a ciência mo­derna, apesar de importante, é de grau e não de natureza. Na verda­de, trata-se de uma maior precisão ou, numa terminologia mais pro­priamente bergsoniana, uma maior exatidão de procedimento articulatório, conseqüência da independência que a ciência adquire diante da percepção e da linguagem natural. O procedimento básico de conhecimento é o mesmo: relação de instantes descontínuos como descrição do objeto ou do movimento do objeto; exterioridade recí­proca de índole espacial como constitutiva do modelo básico de in­teligibilidade. Isso caracteriza, como já vimos, a atitude de recusa do devir. Na ciência moderna, esta atitude vem a se traduzir numa ma­neira mais exata de efetuar as relações entre os elementos descontí­nuos, seja do movimento, seja da duração, e numa descrição destas relações e destes objetos que não mais depende da percepção e da linguagem natural. É portanto o caráter simbólico que se acentua pelas novas possibilidades que se abrem para a constituição de es­truturas conceituais mais "purificadas" do que o permitido no sim­bolismo da linguagem natural. Isto constitui certamente um apro­fundamento de grau no que respeita à articulação simbólica, mas não uma diferença de natureza. O processo de abstração ganha uma nova amplitude pela sua maior separação da atitude natural. Mas

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assim como a inteligência organiza os procedimentos da atitude natural, é ela que organiza também O processo de abstração e de simbolização que são extensões da atitude natural. A descrição por conceitos diferenciados - ou qualitativa - cede definitivamente lugar para o conhecimento matemático puramente relacional. Isto significa que os momentos, ou as divisões do tempo, assumem outro significado. A ausência da consideração das articulações naturais deixa campo livre para o estabelecimento de quaisquer relações entre os elementos, fazendo com que a constituição das articulações pelo sujeito do conhecimento traduza ou represente uma realidade orga­nizada em termos puramente quantitativos. A ciência moderna trata a realidade em termos de grandeza e a medida se faz em termos de experimentação. A associação entre medida e experimentação é que marca a originalidade da ciência moderna, fazendo com que a expe­rimentação assim concebida se distinga da maneira como os antigos trabalhavam os dados empíricos (E.C.-332). As relações de grandeza é que fazem com que a ciência moderna procure chegar a leis mais do que a conceitos, como a ciência antiga. Leis são relações constan­tes entre variações quantitativas. Tais variações tendem a ser vistas como representativas de um maior dinamismo da ciência moderna em relação à antiga, que Bergson considera como estática, isto é, relacionando-se com blocos estáticos do devir, dividido, para tanto, em partes ou períodos representativos da realidade a conhecer. A ciência moderna tende a considerar a variável temporal em todas as relações, sem considerar blocos pré-articulados de fenômenos. A lei da queda dos corpos de Galileu, por exemplo, procura ligar o espaço percorrido por um corpo que cai ao tempo que leva sua queda. Para Kepler, a astronomia consiste, no geral, em, "conhecendo as posi­ções respectivas dos planetas num momento dado, calcular as posições deles em qualquer outro momento" (E.C.-334). Este modelo foi apli­cado a todo sistema material: conhecer a posição dos pontos do sistema é calculá-los em relação a um momento do tempo, qual­quer que seja, a partir do conhecimento das posições destes pontos num momento dado. Ainda que isso, na sua significação completa, seja apenas um ideal (como no exemplo do gênio de Laplace), re­presenta um modelo que constitui o fundo a partir do qual emer­gem todos os problemas a respeito do conhecimento da natureza. Esse mecanismo dinâmico leva em conta, pois, o tempo. Podemos mesmo distinguir a ciência antiga da ciência moderna através do uso que ela faz do tempo. Entre as grandezas que a ciência moderna

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relaciona, o tempo pode ser visto como grandeza privilegiada l'. É

claro que, participando a ciência da atitude natural que consiste em escamotear o devir, o tempo que é tomado como grandeza privilegia­da ou como variável independente em nada nos ajuda a conhecer a realidade do devir, antes tem como função resolver esse movimento numa série de pontos matematicamente relacionados entre si. A descrição básica que Bergson dá do movimento como maneira de identificar o objeto no espaço e no tempo tem a finalidade de cons­tituir um modelo simplificado em que se mostra como a ciência não considera a mobilidade ou o fluxo temporal, ignorando completa­mente a qualidade irredutível do intervalo como duração específica (E.C.-336-7). Uma notável conseqüência desse modo de considerar as coisas é que, como o que interessa é a representação por equações das relações entre os diferentes pontos ou simultaneidades virtuais, não importa a velocidade do fluxo, pois não importam a lentidão ou a rapidez como qualidades próprias que ressaltariam dos intervalos. De tal modo que posso variar este ritmo sem ter de mudar nada nas equações, pois os mesmos pontos e as mesmas relações estariam sendo considerados. Levando essa hipótese ao limite, posso abolir, a bem dizer, o tempo. Posso considerar que, sendo a rapidez do fluxo infinita, todo o devir se dê instantaneamente. Encontraríamos, neste caso, as mesmas relações entre os momentos, que, embora fazendo parte do fluxo do tempo, seriam nesta hipótese totalmente simultâ­neos. Eliminaríamos assim a história que se desenvolve propriamen­te no intervalo de duração considerado como movimento de mudan­ça (E.G.-337). O tempo neste caso seria apenas uma grandeza defini­da e não haveria o fluxo que caracteriza sua essência. Não existiria sucessão. Este exemplo-limite serve para mostrar que a ciência des­preza no tempo exatamente o aspecto de sucessão qualitativa, con­siderando na verdade simultaneidades justapostas. O tempo é pois uma grandeza caracterizada por um número e nada contém em ter­mos do que Bergson chama "intervalos determinados para a consci­ência" (E.C.-ll). Existe um caráter de irredutibilidade na espera que mostra que o intervalo de tempo vivido representa uma realidade qualitativa que chamamos de du~ação e que não pode ser tratada

13. "Concluamos que nossa ciência não se distingue da ciência antiga apenas por buscar leis, nem mesmo por pretender que estas leis enunciam relações entre gran­dezas. b. preciso acrescentar que a grandeza à qual pretendemos poder remeter todas as outras é o tempo, e que a cMncia moderna deve ser definida sobretudo pela sua aspiração a tomar o tempo como variável independente" (E.C.-335).

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como elemento de grandeza ou simples termo de relação na medida em que é vivência específica em termos de duração psicológica. É essa realidade da consciência que nos aponta o tempo real. É claro que a partir dessa posição surgem imediatamente todos os proble­mas relativos ã projeção dessa duração psicológica para a questão do tempo em geral. Sartrel< resssalta a dificuldade, vendo aí uma defici­ência da concepção bergsoniana de tempo. O problema tem a ver com o monismo bergsoniano, nem sempre bem compreendido. Di­zer que Bergson projeta a duração psicológica para a compreensão do tempo em geral implica dizer que haveria outra realidade do tem­po além daquela que é apreendida na duração da consciência: talvez um tempo das coisas materiais, ou um tempo "objetivo". Ora, a maneira como apreendemos intuitivamente a duração psicológica representa a realidade temporal que nos é primeiramente acessível no psíquico por se apresentar aí no seu grau máximo de tensão e portanto com a sua essência mais aparente. O que não quer dizer que, por se apresentar a duração na realidade material de forma a ser mais espontaneamente identificada com o espaço (por estar aí mais distendida), exista outro tempo da matéria. O mesmo tempo é apre­endido como diferenciação de ser, e isto significa graus diversos de tensão da duração e solidariedade entre estados da consciência e estados da matéria.

Ainda quanto à concepção do tempo como grandeza, o que se pode notar na análise bergsoniana é que a maior amplitude da abs­tração da ciência moderna está certamente relacionada, como suge­re o autor, com uma maior independência em relação à percepção e à linguagem natural, o que significa uma melhor constituição da inteligibilidade formal. Tentemos identificar com mais precisão, pre­enchendo de maneira concreta as indicações por vezes sumárias de Bergson, o que, na concepção de tempo da ciência moderna, se apre­senta como elementos constituintes do aspecto de inteligibilidade formal. Isto nos permitirá talvez compreender de forma mais nítida a diferença de grau que marca ao mesmo tempo a continuidade entre o pensamento antigo e a ciência moderna. Reportemo-nos à concep­ção newtoniana de tempo absoluto, pela qual Newton se opõe a Leib­niz e de modo geral à concepção de tempo presente no cartesianismo. No escólio das Definições iniciais dos Principia, Newton critica os

14. Sartre, J, -P., L'2tre et le Néant, Gallimard, Paris, 1982, pp. 17455.

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que permanecem numa concepção de tempo apenas ligada às coisas sensíveis e lança já as bases de uma concepção inteligível do tem­pO". É interessante notar, como faz Koyré, a equivalência em New­ton das expressões absoluto, verdadeiro e matemático, referidas ao tempo. Elas têm como função distinguir a sua concepção da idéia vulgar de tempo, na raiz da qual ele situa Aristóteles e em seguida todos os que consideram o tempo apenas sob o aspecto das "medi­das sensíveis"". Tais medidas nos afastariam, segundo ele, da dura­ção como tempo absoluto, por estarem associadas ao movimento, e todos os movimentos podem ser acelerados ou tornados mais lentos, ao passo que a duração absoluta flui sempre da mesma maneira. A crítica da aproximação entre tempo e movimento parece ter a fun­ção de salvaguardar a concepção do tempo inteligível que se estru­tura na distinção entre tempo absoluto e tempo relativo, distinção solidária de outras, simétricas e feitas em relação ao lugar, espaço e movimento. A independência do tempo diante de "qualquer coisa externa", a partir da qual Newton combate a relação, para ele dema­siado estreita, que Descartes faz entre o tempo e o mundo exterior e material, tende a separar o tempo do movimento e da mudança, o que é compreensível a partir da concepção do tempo inteligível, que Newton relacionará a Deus e que em Spinoza será explicitamente um atributo divino. A distinção entre relativo e absoluto parece servir para purificar a medida enquanto cálculo matemático proporcionan­do maior amplitude de abstração pela maior distãncia do imediata­mente empírico. Daí as críticas de Newton aos que consideram as medidas sensíveis do tempo como o próprio tempo e o esforço para distinguir movimento absoluto de movimento relativo. Tal esforço tende ao estabelecimento do caráter absoluto das entidades cujas medidas sensíveis utilizamos ordinariamente. Esse absoluto é obvia­mente de cunho inteligível: uma grandeza abstrata, se dermos à noção matemática o peso metafísico que ela tem desde Galileu, como lin­guagem ou código de inteligibilidade do mundo". Torna-se assim

15. "'O tempo absoluto, verdadeiro e matemático flui sempre igual por si mesmo e por sua natureza. sem relação com qualquer coisa externa, chamando-se com outro nome 'duração'; o tempo relativo, aparente e vulgar é certa medida sensível e externa de duração por meio do movimento (seja exata, seja desigual), a qual vulgarmente se usa em vez do tempo verdadeiro, como são a hora, o dia, o mês, o ano" (Newton, 1., Princípios Matemáticos, trad. Carlos Lopes de Matos e Pablo R. Mariconda, Abril Cul­tural, Pensadores, São Paulo, 1979, p. 8).

16. Newton, 1., ob. cit., p. 9. 17. Newton, 1., ob. cit., p. 12.

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aparente a vinculação entre movimento e imobilidade, constituída a partir da separação entre movimento absoluto e movimento relati­vo". Por refletir acerca da noção de variável temporal como medida e extrair de sua crítica aos cartesianos uma noção de tempo como absoluto - mas ainda uma grandeza absoluta, autõnoma em rela­ção às realidades medidas -, Newton ilustra de forma privilegiada a marcha progressiva da constituição de tempo como forma de inteli­gibilidade, nele dotada ainda de realidade e mesmo de substanciali­dade, caracterizando assim a interpenetração entre método e meta­física que Bergson considera fundamental no legado cartesiano. A trans­formação de uma variável de mensuração em entidade metafísica, ou a indistinção entre os dois aspectos, ressalta para Bergson a continui­dade entre o pensamento antigo e as bases da ciência moderna.

4.DURAÇÃO, DESCONTINUIDADE E DETERMINAÇÃO

Vimos que o que Bergson considera o modelo kepleriano de conhecimento, que consiste em, dada a localização presente dos planetas, poder estabelecer qual será esta localização num momento futuro, a partir das relações que os corpos celestes e seus movimen­tos guardam entre si, teria sido projetado para o conhecimento de qual­quer sistema material. Uma das conseqüências da fundamentação filosófica desta perspectiva, segundo Bergson, é a concepção parale­lista, que identifica o sistema corporal e a consciência, ou faz do sistema corporal a causa da consciência. A concepção paralelista é estreitamente solidária do determinismo enquanto teoria geral do conhecimento da matéria. Supõe-se que o universo material é com­posto de partículas submetidas a vários tipos de movimento que configuram as diversas organizações da matéria. O sistema material, enquanto organização determinada, seria deste tipo e obedeceria aos mesmos princípios gerais: moléculas e átomos que se atraem e se repelem, originando os diversos estados cerebrais l '. A influência que

18. Newton, 1., ob. cit., p. 11. 19. "O determinismo físico, na sua forma mais recente, está intimamente ligado às

teorias mecânicas, ou antes cinéticas, da matéria. Representa-se o universo como um acúmulo de matéria, que a imaginação resolve em moléculas e em átomos. Estas partículas executariam sem cessar movimentos de toda ordem, por vezes vibratórios, por vezes de translação; e os fenômenos físicos, as ações químicas, as qualidades da matéria que nossos sentidos percebem, calor, som, eletricidade, talvez mesmo até a

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tal sistema receberia de outros que o circundam seria igualmente em termos de choques e movimentos que modificariam os movimentos do sistema cerebral, provocando reações. O inverso também pode suceder, e as reações podem ser provocadas pelos movimentos in­ternos ao sistema cerebral. Como este sistema obedece às mesmas características de outros sistemas materiais, a ele se aplica também o príncípio de conservação de energia, ou seja, cada átomo do siste­ma tem a sua posição determinada pela soma das influências que os outros exercem sobre ele. Isto abre, então, também neste caso, a perspectiva da previsão: conhecendo a posição presente de todos os átomos e as leis de seus movimentos, podem-se calcular as ações passadas e futuras da pessoa, desde que se consiga dar conta de todas as varíáveis capazes de influenciar o comportamento. A mes­ma quantidade de energia se conservando sempre, os diferentes es­tados da matéria estarão em função da distribuição dessa força entre os elementos, o que decorrerá da relação entre as posições que estes elementos ocupam (0.1.-108). Isso significa que as posições relativas dos elementos de um sistema num momento dado são rigorosamen­te determinadas pelas posições relativas no momento precedente. É esta concepção, aplicada ao psiquismo, que redunda na teoria deter­minista da vida psicológica. Mas há um problema de fundamental importância que se inscreve nessa passagem: o da relação entre o sistema cerebral e a vida psicológica. O paralelismo da série física e da série psicológica é a verdadeira questão envolvida na afirmação do determinismo da vida psíquica: consiste em ver na série psicoló­gica a mesma determinação que julgamos encontrar no sistema ce­rebral por via de uma correspondência estrita que se supõe existir entre o cérebro enquanto sistema físico e a vida da consciência. Naturalmente o princípio de conservação de energia entra como pressuposto causador da assunção deste paralelismo, na medida em que seria violá-lo admitir que a série dos estados de consciência poderia conter mais do que aquilo que a determina. E sendo o que a determina uma configuração por sua vez determinada de pontos materiais, o que ocorre na consciência só pode ser função deste sis­tema estritamente determinado. Vemos então que é o desenrolar da

atração, se reduziriam objetivamente a movimentos elementares" (D.I.-107). Disto deriva a possibilidade teórica de se "calcular com uma precisão infalível as ações passadas presentes e futuras" de qualquer organismo concebido segundo tais critérios, assim como se prevê com precisão, através do cálculo, fenômenos astronômicos (Cf. 0.1.-108).

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vida psicológica no tempo que se procura determinar a partir de uma visão determinista do sistema que se supõe seja a sua causa, o sistema cerebral. É este paralelismo que Bergson procura refutar, para caracterizar a independência da vida psicológica e conseqüentemen­te a especificidade do tempo como duração psicológica (0.1.-110).

O que motiva a hipótese paralelista, além da admissão do prin­cípio de conservação de energia como universal, é o tratamento que a ciência moderna dá ao tempo, entendendo-o como variável e como grandeza, o que permite a concepção determinista do transcurso da vida psicológica. A hipótese paralelista surgiu da necessidade de enquadrar o psicológico nas características gerais dos sistemas ma­teriais defínidos de maneira relacional pela ciência. Os procedimen­tos básicos da ciência moderna sofreram uma extensão indefinida em vez de gerarem outros procedimentos complementares ou inver­sos que dessem conta de realidades diversas da do mundo físico. No ponto de imbricação entre o nascimento da ciência e o da filosofia modernas, o que se vê não é a constituição desta última como um tipo de conhecimento que, a partir do reconhecimento das caracte­rísticas da ciência, procurasse constituir uma maneira diferente de abordar o real, maneira esta que tentasse romper a mediação simbó­lica, fruto do caráter discursivo da ciência. O que vemos é, na filoso­fia, o prolongamento dos procedimentos da ciência, colocando-se a filosofia como um conhecimento do mesmo gênero, que tem por objeto realidades mais "elevadas" ou mais "fundamentais" do que aquelas atingidas pela ciência. Tal continuidade faz com que desde logo a filosofia se apresente como um prolongamento da ciência, que por sua vez já era um prolongamento do senso comum. A ad­missão tácita do valor especulativo da percepção, do senso comum e da linguagem natural, as quais, prolongadas e sistematizadas, nos fariam penetrar na essência do real, está por trás da unidade do ser e da ciência, tão característica da filosofia clássica.

Sendo tal admissão tácita a raiz profunda da endosmose entre tempo e espaço, é útil que se procure na fundamentação filosófica dos procedimentos da representação simbólica do mundo os pontos de incidência da crítica bergsoniana, a exemplo do que fizemos com a concepção aristotélica do tempo e com alguns aspectos da idéia newtoniana de tempo absoluto. Isso nos leva a relembrar alguns pon­tos da concepção de tempo em Descartes. O que Bergson procura mostrar, como já vimos, é que, na imbricação entre o nascimento da ciência e o da filosofia modernas pode-se notar o aborto de uma

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possibilidade: a de um outro tipo de conhecimento baseado em ou­tros procedimentos, que não teria o caráter pragmático que a ciência herda do senso comum moldado pelas estruturas da inteligência, e que ofereceria assim uma alternativa para a abordagem simbólico-dis­cursiva do real (E.C.-341-2). É como se o próprio simbolismo discursivo da ciência devesse "sugerir" esse outro conhecimento, complementar no sentido de que estenderia nosso conhecimento sobre uma face da realidade que escapa à ciência - e inverso nos procedimentos que adotaria para abordar esta outra face do real. Inclusive porque o próprio fato de o tempo assumir a importância de variável privilegia­da para a ciência moderna deveria atrair a atenção para os proble­mas oriundos da compatibilidade entre a noção de tempo e a reali­dade temporal. A ciência moderna, mais do que a antiga, deveria pois aprofundar o problema do tempo, ainda que tal aprofundamen­to só viesse a se completar num outro tipo de conhecimento efetiva­mente capaz de captar a realidade da duração20• É claro que para tanto o conhecimento, refletindo sobre si mesmo, teria de reconhe­cer os limites da discursividade, o que significaria de um lado rom­per historicamente a continuidade de categorias fundamentais que muitas vezes são pressupostos não explicitados e, de outro, proble­matizar, senão mesmo fazer explodir, o próprio quadro da unidade do saber, que reflete, por sua vez, o pressuposto da unidade do ser. É principalmente esta unidade que a metafisica se encarrega de fundar e explicitar; portanto, a metafisica não se constituiu como conhecimento de outro tipo que ofereceria a alternativa à abordagem discursiva do real. Assim a metafisica se deu por tarefa prosseguir o conhecimento científico, prolongá-lo e fundamentá-lo a fim de, dirigindo a constitui­ção de seu próprio saber na mesma direção do saber científico, teste­munhar a unidade do saber. Era inevitável, neste caso, que a metafisica moldasse suas noções à semelhança da ciência e da metafísica grega de onde provinha sua herança conceitual, e também do próprio sen­so comum enquanto inteligência. Dessa forma se explica que a me­tafisica não tenha procurado remodelar profundamente a noção de tempo (E.C.-344). Ainda assim a reflexão chegou a hesitar diante do caminho a seguir. Bergson crê que tal hesitação é visível na oscilação de Descartes entre o movimento relativo e o movimento absoluto, a

. 20. "É verdade que, da realidade que flui. limitamo-nos a fixar instantâneos. Mas 1 justamente por essa razão o conhecimento cientifico deveria apelar para um outro J que o completasse" (E.C.-341) Isto todavia não ocorreu pelo fato de a metafísicaja-I mais ter reconhecido a "eficácia" do tempo.

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partir da qual podemos pensar o problema do tempo, dada a solida­riedade entre as duas noções na filosofia de Descartes".

A partir de sua visão Geométrica da física, Descartes define o movimento como totalmente relativo. Quando descrevo o movimen­to de A como se afastando de B tenho de dizer ao mesmo tempo que B se afasta de A. Há portanto reciprocidade no movimento, e nesse sentido a relatividade é total. Ora, é a partir da relatividade do mo­vimento que se pode pensar o tempo, pois, como assinala Bergson, a realidade do tempo e a realidade do movimento em Descartes se superpõem (E.C.-344). Assim como o movimento deve ser pensado no interior da reciprocidade que relaciona os termos independente­mente do movimento efetivamente realizado no ato de mover-se, o tempo também deve ser pensado como relação de termos indepen­dentemente do processo de sucessão efetiva, ou duração. Mas há o outro lado da atitude que Bergson descreve como "hesitação". Existe o tempo como criação contínua, série de atos que sustentam o mun­do em dependência direta da vontade de Deus". Trata-se aqui da causa do movimento e dos princípios de determinação da matéria, que em Descartes se subordinam ao princípio da conservação da mesma quantidade de movimento - o que deriva diretamente da imutabilidade de Deus e faz com que não se possa conceber cresci­mento na realidade: uma lei de compensações faz com que a quan­tidade de movimento total seja sempre a mesma. Deus mantém na natureza a mesma quantidade de movimento que nela colocou no momento da criação, a qual conserva, sendo que o aspecto mais importante desta conservação é a criação contínua. Como os instan­tes não se prolongam naturalmente uns nos outros, como há radical descontinuidade no tempo, é preciso que Deus conserve o mundo recriando-o a cada instante do tempo. Certamente o fato de ser esta criação contínua compatível com a existência de leis deriva da imu­tabilidade de Deus. Existem leis na natureza porque Deus não é in­constante ou caprichoso. A criação contínua não implica, pois, a con­tingência, uma vez que Deus está fora do mundo e do tempo, e é dele que deriva a necessidade da organização da natureza. Portanto

21. Cf. Descartes, R.. Principes de Philosophie, 11, 29, edição Alquié, Gamier, Paris, 1973, p. 173.

22. "Que Deus é a primeira causa do movimento, e que conserva sempre a mesma quantidade de movimento no Universo" (Descartes, R., Príncipes de Philosophie, ob. cit., p. 182).

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esta idéia de criação contínua, uma vez associada a Deus e não ao homem, não retira da natureza a determinação necessária. E isso apesar de Descartes afirmar o indeterminismo das ações humanas, o que para Bergson é outro indício da presença de duas concepções do tempo, já que a liberdade implica uma noção de tempo distinta da de variável em um sistema determinado. Na Quarta Meditação e nos Princípios (I, 37), Descartes insiste na liberdade da vontade, no infi­nito poder do sim e do não, que é o que distingue o homem e per­mite que lhe atribuamos o mérito do julgamento moral. A experiên­cia da liberdade é algo tão intenso e uma realidade tão presente que, assevera Bergson, Descartes continua a afirmá-la mesmo quando en­contra as dificuldades, clássicas em teologia, de conciliar a predeter­minação divina (pré-ordenação) com a liberdade humana, deixando o problema irresolvido". Talvez seja essa a expressão maior da osci­lação, de que fala Bergson, entre a determinação absoluta das coisas físicas e a indeterminação das ações humanas. De qualquer forma, não parece válido associar a liberdade de indiferença à noção de criação contínua, ao menos entendendo a criação no sentido divino, ex nihilo. No que respeita às coisas naturais, é instrutivo comparar Descartes e Aristóteles, na medida em que Descartes define o tempo de maneira muito semelhante a Aristóteles, embora distinguindo-o da duração24

• O tempo, entendido como número do movimento, ser­viria para medir a duração, associada às mudanças sensíveis, mas não exatamente ao movimento, já que Descartes parece acreditar que as coisas que não mudam também estão de alguma maneira sujeitas ao tempo. O tempo não é estritamente função do movimen­to, embora esteja associado a ele. Por exemplo: os movimentos regu­lares nos dão o padrão de medida da duração das coisas, e a este padrão chamamos tempo; mas o tempo tomado assim independente da duração das coisas é, para Descartes, "apenas uma maneira de pensar". Isto significa que o tempo real é o movimento de duração das coisas e o tempo enquanto "maneira de pensar" é um determi­nado padrão regular de duração extraído do sensível e aplicado como medida às coisas em geral. Há portanto distinção entre tempo e duração, e o tempo parece ser reconhecido como medida abstrata, embora extraída (abstraída) da duração sensível. Por isto Newton afir­mará que Descartes concebe o tempo apenas como medida sensÍ'. el.

23. Descartes, R., Principes de Philosophie, I. 39 a 4l. 24. Descartes, R., Principes de Philosophie. I, 57, ed. cit., pp. 125·6.

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4. DURAÇÃO, DESCONTINUIDADE E DETERMINAÇÁO

Bergson afirma que a criação contínua poderia implicar uma visão do universo em constante mutação se tal criação não fosse hiposta­siada em Deus e tivesse sido atribuída às próprias coisas. Podería­mos assim ter mantido uma visão científica e pragmática do univer­so feito, para a qual valeria o determinismo enquanto método de conhecimento; e uma visão do universo se fazendo (se criando), com procedimentos de conhecimento distintos dos da inteligência. Seriam duas concepções diferentes do tempo. Mas o determinismo cartesia­no não foi concebido apenas como método, e sim também como doutrina metafisica. E assim o cartesianismo enveredou definitiva­mente pela concepção unitariamente determinista da realidade, o processo discursivo do entendimento sendo visto como a única for­ma válida de abordar a realidade em qualquer de seus aspectos". Dois motivos principais podem ser alinhados para explicar essa to­mada de direção: um de ordem estrutural e "biologista", qual seja a estrutura da inteligência que orienta o espírito para a procura de formas fixas e que provém do método cinematográfico natural à in­teligência; outro de ordem histórica que diz respeito à influência da filosofia grega: mesmo quando o pensamento se orienta para novos caminhos e questiona o legado da antiguidade, como é o caso em Descartes, o estabelecimento de conceitos fundamentais e o proce­dimento de reflexão permanecem em larga medida na dependência dos padrões gregos, e esta relação é bem mais profunda do que o seria uma simples filiação histórica. De tal forma que Bergson crê poder afirmar que os sistemas cartesianos possuem a mesma "ossa­tura" das filosofias de Platão e Aristóteles, ou melhor, que são quase apenas interpretações de Platão e Aristóteles através do código do mecanicismo. É sob essa perspectiva que podemos olhar os sistemas de Spinoza e de Leibniz, "como sistematização da nova física, sistematiza­Ção construída sobre o modelo da antiga metafísica" (E.C.-347).

O que se pretenderia, em suma, seria a unificação da represen­tação da realidade sob o modelo da nova física. Pode-se dizer que

25. Descartes tinha diante de si duas vias: a primeira afirma o mecanicismo universal e a relatividade do movimento; a segunda, a partir do indeterminado das ações huma­nas e da criação contínua, afirma o movimento Como um absoluto. A primeira, se seguida até as últimas conseqüências, "o teria conduzido à negação do livre-arbítrio no homem e do verdadeiro querer em Deus". A segunda "desembocaria em todas as conseqüências implicadas na verdadeira duração. A criação não apareceria J;11ais ape­nas como continuada mas como contínua". A escolha da primeira alternativa configu­ra a transformação'do método (mecanicismo) em doutrina metafísica (determinismo) (E.C.-345·61.

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isto foi feito em duas etapas que correspondem ao determinismo tomado como regra metodológica e como doutrina metafísica. De posse das características do modelo de sistema material que consti­tuía o padrão de inteligibilidade da ciência, tratava-se naturalmente de expandir este modelo e verificar quanto da realidade ele poderia abarcar. É esse o espírito e o sentido da experimentação. Dentro dessa perspectiva é lícito supor que uma regra merodológica é indefinida­mente aplicável. como se todos os sistemas da realidade preenches­sem os requisitos necessários à aplicação da regra. A única maneira de conhecer os limites de uma regra é supor primeiramente que não há limites para a sua aplicação; quando, de fato, tais limites forem encontrados, então se reformulará a regra em função dos novos da­dos da realidade. Postura inatacável dentro do espírito da ciência experimental. Mas, justamente na imbricação da nova ciência e da nova filosofia, havia a exigência metafísica da unidade do ser, a qual só se pode pôr como exigência filosófica, pois não há sentido em falar-se de totalidade acabada na perspectiva científica. O que se fez então foi, a partir desta exigência metafísica, hipostasiar a regra metodológica, levando ao limite a exigência do método e supondo a física como totalmente acabada e a realidade como totalmente de­terminada pela ciência. É a partir dessa regra metodológica, tornada "lei fundamental das coisas", pressuposto ontológico, que a filosofia vai desenvolver a tarefa de justificar a realidade e a ciência assim concebidas. O modelo do sistema material totalmente determinável a partir das posições relativas de seus elementos é simplesmente projetado para a totalidade do universo. A tarefa da filosofia torna-se a de formular o mecanismo como modo fundamental do ser das coisas e dar a razão de ser deste mecanismo, fundá-lo. Tal justifica­ção filosófica pode ser entendida como a explicitação da unidade do ser e do conhecimento. Ora, esta unidade podia ser pensada a partir da "solidariedade matemática" de todos os pontos do universo entre si, solidariedade apreendida pelo método geométrico presente, por exemplo, nas filosofias de Descartes e de Spinoza. É claro que esta determinação recíproca de todos os elementos do sistema do mundo supõe a totalidade dada, para que possam ser plenamente pensadas as relações entre todos os elementos, não havendo lugar, então, para o fluxo temporal entendido como duração, já que necessito de todos os elementos justapostos para que haja uma determinação total da realidade. É preciso, em suma, a simultaneidade virtual das dimen­sões temporais para que possa haver uma totalidade pensada em termos de determinismo mecãnico. É importante notar que é neces-

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4. DURAÇÁO, DESCONTINUIDADE E DETERMlNAÇÃO

sário que o determinismo mecânico se transforme numa doutrina filosófica para que a realidade possa ser concebida totalmente nestes termos. Uma regra metodológica se prova a cada passo, a cada nova realidade que ela permite abarcar; uma doutrina metafísica institui uma totalidade unificada segundo tais características. É desta forma que o mecanismo se torna de direito indefinidamente extensível. É este o sentido profundo da índole geométrica do método cartesiano26

É evidente também que essa maneira de operar relações, tida como todo O conhecimento da realidade, pela opção quantitativa que lhe serve de princípio, teria de abandonar a descrição da reali­dade por conceitos diferenciados, própria da filosofia antiga. Apli­cando-se à extensão e considerando privilegiam ente os sistemas materiais, havia que, no entanto, dar conta da "outra metade" da realidade em termos cartesianos: o pensamento. E isso mantendo a unidade do saber, ou seja, não instaurando ruptura nem inversão recíproca entre estes dois aspectos, que Bergson interpreta como sen­do quantidade (corpo) e qualidade (alma). Foi para resolver o pro­blema - a respeito do qual Descartes teve ao menos o mérito de deixar pendente - que os sistemas cartesianos de Leibniz e Spinoza desembocaram no "paralelismo" ou na "tradução", como formas de harmonizar extensão e pensamento. Reencontramos assim um dos problemas que parecem estar na origem da análise bergsoniana da justificação filosófica do padrão de inteligibilidade da ciência moder­na. O paralelismo psicofísico que se encontra na psicologia tem suas raízes metafísicas no paralelismo entre extensão e pensamento, atra­vés do qual a filosofia dos cartesianos procurou preservar a unidade do ser e do saber. Seja como traduções de um único Princípio, como em Spinoza, seja como tradução extensa de um original inteligivel, o pensamento em Leibniz, o que se pretende é harmonizar realidades que parecem ir em sentido inverso uma da outra, a fim de preservar a unidade e fazer com que a realidade apareça como um único sis­tema (E.C.-349). O padrão de inteligibilidade matemático nos indica os procedimentos e os conceitos privilegiados para dar conta desta realidade unificada. A apreensão metódica segundo o método geomé­trico indica como e por que se faz a tradução da duração em grandeza ou ao menos como se pode, por via do paralelismo, dizer que estou apreendendo a duração quando explico o tempo como grandeza.

26. Cf. por ex., Principes de Philosophie, N, 203. (Ed. Alquié, p. 519).

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11 - ETAPA CRITICA DA REINSTAURAÇÀO DO OBJETO DA FIlDSOFIA

5. TEMPORALIDADE E CAUSALIDADE

A concepção de uma realidade totalmente determinada em to· dos os seus aspectos, tese metafisica assumida pela filosofia a partir da regra metodológica da ciência moderna, foi, por assim dizer, de­volvida à ciência ou reassumida pelos cientistas, não mais como re· gra metodológica, mas precisamente como tese metafisica. Ora, uma tese metafísica assumida pela ciência e tida como concepção cientí· fica que retrata fatos redunda num dogma. Isto faz com que a ciência admita como fato científico apenas objetos caracterizados como iner· tes e sobre os quais o tempo" desliza sem penetrar", ou seja, todo o real enquanto objeto da ciência fica, na sua dimensão temporal, submetido ao tempo como grandeza. Tal é a condição para que a realidade possa ser vista como plenamente determinada, a partir do cálculo das posições dos elementos, conforme já vimos (E.C.-353). É importante notar que, ao supor O mecanismo geométrico ou dinâmi· co como indefinidamente extensível, a ciência fez uma opção meta­física. Isto nos introduz na problemática, central na epistemologia bergsoniana, da ambigüidade da ciência experimental. Estando o empirismo da ciência penetrado da tese metafisica do determinismo mecânico, há um compromisso fundamental entre ciência e metafi· sica que orienta, como um princípio, toda abordagem científica da realidade. Isso se confunde com o próprio estatuto da ciência e com a noção de experiência que subjaz ao seu empirismo ou ao seu experimentalismo. É preciso levar a análise mais além do que a mera separação, admitida superficialmente, entre ciência e metafisica pode­ria sugerir. Quando o cientista toma fatos da experiência para medir e assim obter determinado conhecimento da realidade, isto supõe uma série de "arriêre-pensées", cuja não explicitação compromete uma crí­tica aprofundada da ciência. Pois a concepção geral que orienta a aná­lise dos fatos, que os conjuga entre si e ao contexto, que permite recortá­-los de uma realidade tida como disponível a esse recorte, e a própria constituição da experiência que engloba este todo a partir dos quadros da inteligência, tudo isto representa uma série de atos inseridos numa atitude diante da realidade, que é a assunção de certa tese metafisica, ou seja, de postulados básicos que orientam uma dada interpretação da realidade e que se traduzirá numa "teoria empírica". Mas qual o verdadeiro estatuto de uma tal teoria?" O que Bergson procura mos-

27. "Certamente, um psicofisiologista que afirma a equivalência exata entre o estado cerebral e o estado psicológico, que se representa a possibilidade, da parte de alguma

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5. TEMPORAUDADE E CAUSALIDADE

trar é que o determinismo geralmente afirmado pela ciência é menos uma teoria sugerida pelos fatos e muito mais um postulado que explicita uma posição filosófica e que não aparece claramente no trabalho experimental. A relação entre ciência e filosofia é, pois, mais um daqueles problemas tradicionais que necessitam ser repensados sem que se tome como pressuposto inquestionado a fidelidade da ciência aos fatos e a distância que a filosofia manteria dos mesmos. Pois O determinismo é exemplo de uma concepção filosófica que, uma vez interiorizada na ciência, estrutura a visão que ela terá dos fatos empíricos. A Psicologia é tomada mais uma vez como caso privile­giado para mostrar as conseqüências da assunção do determinismo como expressão total da realidade.

Voltemos ainda um pouco às relações entre determinação e prin­cípio de conservação de energia. Em termos simples, este princípio apenas nos diz que o que é dado é dado e se operamos sobre um número fixo de elementos o resultado será sempre o mesmo seja qual for a ordem que adotemos para somá-los, visto que aquilo que nos interessa nos elementos permanece e temos no final da opera­ção a mesma quantidade inicial, seja qual for a decomposição que tenhamos operado. É praticamente a lei de não-contradição - o que revela a índole matemática do princípio. Mas precisamente devido a esta índole matemática deveríamos perguntar se este princípio diz respeito à natureza do dado, à natureza daquilo que se conserva e que deveria ser o conteúdo concreto do enunciado do princípio de conservação quando aplicado à realidade. Parece, ao menos de acor­do com os preceitos fundamentais da ciência experimental, que de­veria ser a experiência o critério destes aspectos, principalmente quando se trata de determinar a extensão do princípio, isto é, saber se o encontramos em todos os sistemas possíveis (0.1.-113). Sendo este princípio a base do cálculo determinista e conseqüentemente da previsão, muitos são levados a pensar que, se existirem na reali­dade sistemas não submetidos a este princípio, a ciência estará arrui­nada, o que é um erro na perspectiva de Bergson. A existência de sistemas não submetidos à lei de conservação de energia apenas mos­traria que esse princípio não é universal; nada seria tirado do rigor

inteligência sobre-humana, de ler no cérebro o que se passa na consciência, acredita­-se bem longe dos metafísicos do século XVII, e muito perto da experiência. Entretan­to, a experiência pura e simples não nos diz nada de semelhante. ( ... ) Do fato de que um termo seja solidário de outro não se segue que haja equivalência entre os dois" (E.C.-354).

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da determinação dos sistemas para os quais o princípio continuasse válido. Tais sistemas são na verdade aqueles suscetíveis de reversão de movimento na determinação dos elementos que são concebidos como pontos geométricos. Portanto aqueles que são tidos como não submetidos à duração. Já que a matéria não parece durar, o próprio senso comum tende a admitir, neste domínio, mais ou menos instin­tivamente, algo como o princípio de conservação. Já no domínio do vital não aparece a possibilidade de reversão dos elementos do sis­tema. Muito menos esta possibilidade aparece no que se refere à consciência. Já vimos alguns aspectos relativos à consideração das sensações como grandeza: um aumento de intensidade é na verdade uma mudança, uma outra sensação que traz em si a primeira e está em movimento de mudança para uma outra. A passagem do fluxo temporal se confunde com um aumento de energia. O tempo repre­senta ganho ou perda (0.1.-116). Mas como isto aparentemente não ocorre com os objetos exteriores que supomos serem causas de nos­sos estados conscientes, cremos que se passa o mesmo com a cons­ciência. É apenas a transposição indevida das condições do sistema material para a vida da consciência. Daí deriva a extensão da lei da conservação para a realidade psíquica e o determinismo psicológico, negação da liberdade. Portanto é ainda a concepção do tempo como grandeza que está na raiz do problema. O determinismo psicológico afirma que um estado de consciência é rigorosamente determinado pelo que o precedeu. Haveria uma relação necessária entre os esta­dos psicológicos de tal forma que o antecedente explica em termos de condição aquele que o sucede. Desnecessário dizer que isto sig­nifica considerar os estados psicológicos à maneira dos elementos de um sistema material. E, de fato, é a concepção do Eu como uma associação de estados psíquicos justapostos e nitidamente diferen­ciáveis entre si que se vincula à idéia determinista do psicológico. A ação é explicada pela preponderãncia relativa de um deles. O resul­tado do conflito de motivos torna-se a determinação da conduta. Nesse sentido, o próprio ato livre pode ser "explicado" em termos de motivação". O que não é levado em conta é o aspecto qualitativo da sucessão psicológica, aquilo que, embora expresso da mesma forma que muitas outras coisas, guarda contudo uma propriedade caracte-

28. "O determinismo associacionista representa o Eu como um conjunto de estados psíquicos, dos quais o mais forte exerce influência preponderante e carrega os outros consigo" (D.I.-119).

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5. TEMPORAUDADE E CAUSALIDADE

rística ou, como diz Bergson, uma "coloração espacial". Isto provém de que o determinismo associacionista reconstitui artificialmente os fatos psicológicos, dotando-os de características de justaposição e linearidade necessárias à explicação dos fatos. Confundem-se pois os fatos com a explicação que deles é dada. Há aqui um movimento inverso daquele que seríamos levados naturalmente a supor: como a linguagem exprime os fatos psicológicos necessariamente por pala­vras que, enquanto símbolos, não podem evidentemente expressar todas as nuances da singularidade psicológica, supomos, por um mo­vimento retroativo, que os próprios fatos possuem a mesma simpli­cidade e a mesma exterioridade recíproca que as palavras sugerem. Mais uma vez, a causa é que a concepção de tempo embutida na linguagem nada tem a ver com a duração psicológica pela qual os fenômenos da consciência se interpenetram reciprocamente. Se quisermos ainda considerar os estados psicológicos em termos de multiplicidade, deveríamos pensar numa multiplicidade de fusão ou qualitativa, e não numa multiplicidade homogênea. Numa multipli­cidade de fusão não poderíamos visar aos fenômenos psicológicos em termos de causalidade determinista, como condição e condicio­nado, de maneira a considerar todo o conjunto como um sistema sujeito à determinação. Na verdade, é o esquema causal empregado pela ciência que impôe o determinismo; enquanto tal esquema não for criticado, a discussão dificilmente poderá escapar dos termos deterministas, ou de uma adaptação do determinismo fisico à vida psicológica. Veja-se, por exemplo, a própria maneira pela qual o determinismo é habitualmente refutado: quando os deterministas afirmam que, dado o antecedente, um só ato é possível, os adversá­rios desta doutrina respondem que, dado o antecedente, são possí­veis vários atos, um dos quais será efetivamente realizado, pensan­do-se aí numa escolha entre atos igualmente possíveis. Isso supõe com efeito que, diante de direções possíveis, o Eu hesita e, após de­liberação, escolhe uma delas, o que faz com que nem por isso as outras deixem de existir, de direito. Tanto que definimos por vezes a ação livre dizendo que é aquela cujo contrário era igualmente possí­vel. A representação geométrica de duas ou várias linhas se abrindo a partir de determinado ponto é uma concepção cristalizada do de­senvolvimento da vida psíquica. Pois devemos considerar que a tra­jetória da ação se encaminha para uma das duas (ou mais) alterna­tivas, embora as outras permaneçam em princípio e de direito aber­tas. É uma solidificação da escolha, uma falsa contingência que muito pouco difere do determinismo estrito (0.1.-133). Damo-nos conta

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11 - ETAPA CRITICA DA REINSTAURAÇAO DO OBJETO DA FILOSOFIA

mais facilmente quando refletimos que esta representação da esco­lha só pode ser efetuada depois do ato realizado. É uma representa­ção geométrica da escolha. Vê-se como explicar nesse caso significa remontar às condições de possibilidade: retornar. Isso ocorre porque a duração é representada como uma linha na qual, justamente, po­demos retornar. Na medida em que a sucessão é vista como uma série descontínua de elementos, a explicação se confunde com a re­capitulação dos elementos da série: o passado, como fases fixa­das ao longo de uma série de simultaneidades. Dessa maneira fica sempre por explicar por que se tomou tal partido e não outro; daí derivam todos os problemas ligados a tal concepção de liberdade (0.1.-136). O assim denominado "problema da liberdade" só existe devido à concepção do tempo espacializado.

Para evitar as "soluções" do "problema" da liberdade que se constroem no âmbito do determinismo e que resultam na conserva­ção do problema, é preciso atacar a questão da causalidade, já que é ela que engendra o determinismo. A justificativa mais geral para o determinismo dos estados psicológicos consiste em dizer que eles são fenômenos e, enquanto tais, estão submetidos às leis da nature­za. Nessa justificativa não se considera a especificidade dos fatos de consciência. Isso vai se refletir na discussão do esquema causal. A causalidade determinista na física exige a presença reiterada das mesmas causas. O defensor do determinismo psicológico, na impos­sibilidade da determinação precisa destas causas, ou das condiçôes de produção do efeito, afirmará todavia que o determinismo psico­lógico deriva da existência da própria causalidade, a qual implica condicionamento do conseqüente pelo antecedente. O determinis­mo psicológico é assim "deduzido" sem ser mostrado nos fatos29. É o mesmo que dizer (ou "deduzir") que as mesmas causas se apresen­tam reiteradas vezes na consciência, pois o determinismo necessita desta afirmação. Tal não encontra, porém, apoio nos fatos reais, dada a característica fundamentalmente movente da vida psicológica e sua absoluta heterogeneidade. Decompor estados psicológicos para en­contrar condições idênticas em estados supostamente elementares é ainda deixar de ver a natureza própria da vida psíquica, da qual esses

29. "Essa argumentação consiste, no fundo, em não entrar nos detalhes dos fatos psicológicos concretos, devido ao medo instintivo de encontrar fenômenos que desa­fiam toda representação simbólica, conseqüentemente toda previsão. Deixa-se então na sombra a natureza própria desses fenômenos, mas afirma-se que, na qualidade de fenômenos, permanecem submetidos à lei de causalidade" (D.I.-149-50).

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5. TEMPORALlDADE E CAUSALIDADE

pretensos estados "elementares" participam tanto quanto os estados ditos "complexos". Isso significa que temos de modificar radicalmente a concepção de causalidade quando se trata do psíquico, supondo­-se que ainda se possa falar, neste caso, de causalidade (0.1.-151). O problema verdadeiramente básico é o da causalidade em si, pois é possível pensar um determinismo mais flexível que se "adaptaria" às características da vida psicológica. É possível pensar num esquema de determinação diferente do físico sem que por isto se deixe de afirmar a ligação do fato com seus antecedentes em termos de con­dições. A crítica do determinismo precisa aprofundar-se em radica­Iidade até atingir a própria noção de causa. E no exame desta noção encontramos novamente a mesma ambigüidade entre regra de expe­riência e doutrina metafisica. Os mesmos antecedentes produzem sempre os mesmos fenômenos, sempre que a experiência nos mos­tra que isto ocorre. O que temos é, por assim dizer, uma universali­dade cumulativa que parece ser descrita como regida pelo princípio de indução. À primeira vista, semelhante perspectiva poderia pare­cer a de um empirismo restrito, uma vez que restringe a validade do princípio de causalidade à acumulação das experiências ou consta­tações no passado. Poderíamos argumentar que se trata de uma vi­são até de certa forma pré-humiana da indução causal, pois é sabido que a constatação reiterada da associação entre antecedente e con­seqüente é fundamento para inferir o segundo na presença do pri­meiro, não ficando portanto a afirmação da causalidade necessaria­mente sujeita à constatação dos dois termos da relação. Mas exami­nando o teor da argumentação bergsoniana, vemos que não é preci­so interpretá-la no sentido restritivo. A experiência passada efetiva­mente é fundamento suficiente de uma inferência como a descrita, desde que tal inferência seja feita no ãmbito demarcado pelas expe­riências anteriores, ou seja, em sistemas do mesmo tipo daqueles nos quais a experiência mostrou ser sempre verdadeira a relação antecedente/conseqüente. É nesse âmbito que o princípio tem uma aplicabilidade de extensão indefinida. O que não se pode fazer é trans­ferir o valor probatório da experiência acumulada num domínio de realidade para outro no qual o princípio é assumido como válido sem que haja um acervo de fatos que constituam uma experiência significativa para justificar futuras inferências. É preciso considerar portanto uma diferença básica entre, de um lado, inferências de fa­tos para outros fatos dentro de um mesmo domínio de realidade e, de outro, a inferência global de um domínio para outro. Esta última repousa, para Bergson, num artificio meramente psicológico, em que

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o sucesso que a inteligência obtém no domínio do aparentemente inerte "encoraja" a extensão do mesmo procedimento para a totali­dade do real. Tal artifício é o que está provavelmente na raiz da tese metafísica que afirma esta espécie de "monismo" mal provado, ou seja, que estende em princípio as características do sistema físico para toda a realidade. Não é por outra razão que existe o "problema da liberdade": assume-se por princípio que a liberdade deve ser pen­sada a partir de um universo totalmente determinado e então, como um enclave estranho ao que o rodeia, ou ela é impossível ou apenas aparentemente afirmada.

De resto, como se sabe, o determinismo que rege a inferência causal supõe que o fenômeno conseqüente está contido no antece­dente ou que o efeito está "pré-formado" na causa. Não há nenhuma dificuldade quanto a isto se pensarmos esta pré-formação em ter­mos estritamente matemáticos: traçar uma figura é engendrar virtual­mente todas as propriedades que se podem deduzir dela, e a dedu­ção real apenas realiza o que já estava contido na figura inicial. Mas deveria haver muitas dificuldades para se obter a mesma relação entre fenômenos físicos (0.1.-154). Como, então, podemos obtê-la? Sim­plesmente porque temos uma visão matemática destes fenõmenos, desprezando neles tudo que não se possa reduzir a propriedades quantitativas. Ou melhor, fazendo com que todos os aspectos do ob­jeto se expliquem em termos de extensão e movimento. As qualidades enquanto tais são tidas como aparências que podem ser reduzidas a forma, movimento e posição. A partir daí - e supondo no movimento o seu significado abstrato - toda realidade pode ser vista em termos de relações constantes entre grandezas variáveis. É a complexidade cres­cente dessas relações que engendra todos os aspectos da realidade. Sendo assim, é possível então conceber para a realidade física um de­terminismo análogo ao matemático: o fenõmeno determinante contém o determinado como a figura geométrica contém as suas propriedades.

É este um tipo de pré-formação a que poderíamos chamar geo­métrica. Mas há outro tipo, cujo modelo está na relação entre o es­forço e o ato, entre a vontade e a ação. O engendramento do ato pelo esforço voluntário é sem dúvida um caso de pré-formação que trans­portamos para o mundo físico. Mas uma análise da relação entre esforço e ato mostra a ilegitimidade desta aplicação. Seria difícil manter-se, nesse caso, a categoria de necessidade. Nessa concepção, de ordem psicológica, o esforço presente traz em si de certa forma o ato futuro, mas não necessariamente, na medida em que o tempo que decorre entre a vontade, o esforço e o ato representa exatamente

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6. CRíTICA DO A PRIORI TEMPORAL

a possibilidade de não-realização. O ato é possível, mas não neces­sário (0.1.-158-159). Dessa característica decorrem as dificuldades que a concepção dinâmica encontra para se enquadrar no determi­nismo, já que, à maneira do hilozoísmo, trataríamos aqui com uma concepção vaga de transição entre matéria e consciência. É um de­terminismo que só poderia ser fundado a partir do interior dos ele­mentos em relação, à semelhança da concepção monadológica de Leibniz e da sua hipótese de harmonia preestabelecida. São difícul­dades desta ordem que levaram, por exemplo, Kant a afirmar que tal concepção não pode ser considerada uma verdadeira solução para o problema da necessidade objetiva. A pré-formação parece exigir uma relação de exterioridade recíproca entre os elementos da relação cau­sal, pois o fato de o antecedente "conter" o conseqüente não exclui a descontinuidade do encadeamento, já que se trata de uma necessidade lógica de condicionalidade e não de uma interpenetração real, pela qual os elementos se relacionariam "internamente". Daí deriva a neces­sidade de aprofundar o fundamento lógico das bases da necessidade objetiva, o que será uma das questões da filosofia transcendental.

6. CRÍTICA DO A PRIORI TEMPORAL

No percurso crítico bergsoniano, a passagem pela filosofia kan­tiana é etapa fundamental. Kant representa, para Bergson, a efetiva passagem à modernidade uma vez que, nele, a filosofia das formas característica da antiguidade assume a feição lógica que o pensa­mento científico já antecipara. É natural, portanto, que a crítica do determinismo mecanicista se prolongue na abordagem da filosofia crítica, já que esta não só se encontra na continuidade das concep­ções da natureza enquanto estritamente determinada como também porque, na Analítica kantiana, o determinismo ganha uma feição de necessidade objetiva puramente lógica, independente das garantias transcendentes de evidência próprias do conhecimento clássico. É isto o que Bergson quer dizer quando vê como diferença entre a filosofia crítica e a metafísica clássica o fato de que Kant teria assu­mido, da hipótese metafísica fundamental do determinismo, o míni­mo suficiente para tomar indefínidamente extensível o procedimen­to da física de Galileu30

• Assim, Kant continuaria mantendo, para Berg-

30. "Entre o dogmatismo de um Spinoza ou de um Leibniz e a crítica de Kant há exatamente a mesma distância que separa o 'necessário' do 'suficiente'. Kant faz com

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11 - ETAPA CRfTICA DA RE1NSTAURAçAO DO OBJETO DA FILOSOFIA

son, OS pressupostos fundamentais de origem aristotélica, entre os quais está a crença na unidade da ciência. Mas enquanto Aristóteles e os clássicos hipostasiavam a unidade num princípio único (Deus), Kant, abandonando essa parte da hipótese metafísica, contenta-se com a unidade formal garantida pelo entendimento. E é justamente por isto que uma parte da hipótese metafísica teve de ser abandona­da: o entendimento humano não poderia arcar com a tarefa de fun­dar a unidade real, sendo para tanto necessário um entendimento infinito; mas pode garantir, através de um quadro lógico definitiva­mente fixado, a estrutura formal unitária do saber. Tal concepção está de acordo com um saber tecido de relações, já que relações pressupõem sempre um entendimento que relaciona. A inteligência não necessita mais, em Kant, possuir a amplitude infinita que pos­suía em Leibniz, porque se trata agora de fundamentar um saber que não tem apenas bases intelectuais, mas que se encontra adstrito aos limites da intuição sensível, se bem que o caráter transcendental dessa fundamentação parece colocar a função formal do entendimento de maneira simétrica à garantia real do Deus da metafísica clássica. A tarefa crítica da filosofia kantiana teria sido, pois, a de manter o ideal tradicional de ciência, operando contudo uma redução na hipótese metafísica necessária à manutenção desse ideal.

A redução operou-se por via da introdução da sensibilidade como fundamento do conhecimento ao lado do fundamento intelectual. É este, no entender de Bergson, o aceno que se nota neste momento a uma filosofia que se poderia ter liberado dos quadros intelectuais rígidos que vinham governando o pensamento. A consideração do aspecto extra-intelectual do conhecimento abria caminho para uma superação da "filosofia da inteligência" e para uma consideração da realidade através da experiência direta que se colocaria "do lado de dentro" do real (E.C.-357). Tal não aconteceu porque a matéria ex­tra-intelectual do conhecimento já está comprometida, em Kant, com os quadros intelectuais. Devido à concepção da coisa-em-si como incognoscível, a matéria do conhecimento já é aquela pré-moldada para a representação tanto sensível como intelectual. Isto é decor­rência da maneira como Kant concebe a dualidade forma/matéria. De maneira que quando o kantismo concebe a matéria como ele-

que o dogmatismo se detenha num determinado ponto de uma trajetória que o faria adentrar demasiadamente na metafísica grega; ele reduz ao minimo estrito a hipótese requerida para supor indefinidamente extensível a física de Galileu" (E.C.-356).

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mento extra-intelectual do conhecimento, isto não significa instalar­-se no "ritmo" próprio das coisas, porque a dualidade como tal com­promete a concepção da matéria extra-intelectual (E.C.-358). Assim, não há grande mudança do ponto de vista das formas tradicionais de abordagem do real em que pese a nova concepção de necessidade objetiva baseada na garantia formal do entendimento.

Isto provém de Kant ter considerado apenas uma possibilidade de experiência, precisamente aquela já estruturada pela fundamen­tação metafísica da ciência determinista: a que repousa na unidade do saber, no modo único de se atingir a verdade acerca do real. A própria delimitação crítica deriva da aceitação deste postulado. A crítica kantiana não atinge, para Bergson, os postulados fundamen­tais da ciência: esta afirmação parece estar em consonância com o próprio Kant quando, no início dos Prolegômenos, ele faz distinções entre ciência e metafísica. A validade daquela não é posta em dúvida; pelo contrário, trata-se de verificar que verdades se podem atingir utilizando os procedimentos da ciência, cujas metas tradicionais não são submetidas à crítica3l

• Entendimento e experiência se recobrem inteiramente e o procedimento discursivo é o único dotado de valor teórico. Para Bergson, a concepção da unidade da ciência, mantida por Kant, é restritiva, pois o modelo mecânico da física não é susce­tível de ser indefinidamente estendido a toda e qualquer região da realidade. Tal procedimento compromete a objetividade. Se esta deve resultar do acordo entre as estruturas da inteligência e do objeto, devemos considerar que a extensão de procedimentos teóricos para objetos não abordáveis através das mesmas estruturas mecanicistas implica um conhecimento vago, ou mesmo falso, a menos que nos contentemos com um saber estritamente simbólico. É o que aconte­ce quando passamos do físico ao vital e ao psíquico. Pelo contrário, se consideramos a relação entre inteligência e matéria, não há por que considerar o conhecimento simbólico como problemático, nem que neste caso haja uma imposição de forma ao conteúdo, visto que há uma compatibilidade natural entre a forma da inteligência e a estrutura da matéria, tal como é dada na percepção".

31. "A crítica de nosso conhecimento instituída por Kant consistiu em elucidar a natureza do nosso espírito se as pretensões de nossa ciência são justificadas; mas Kant não criticou estas pretensões em si mesmas" (E.C.-358).

32. "Diminuem as barreiras entre a matéria do conhecimento sensível e a sua forma, como também entre as 'formas puras' da sensibilidade e as categorias do entendi~

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A consideração, por parte de Kant, de apenas uma forma de ex­periência está intimamente associada à concepção de intuição como unicamente sensível. A intuição sensível impõe à matéria a forma espacial e a forma temporal, o tempo se reduzindo a uma grandeza exterior aos fenômenos e que os organiza. Não há portanto em Kant uma intuição que pudesse tentar coincidir com a duração dos fenô­menos como que "de dentro" deles. A destinação da forma temporal, aliás, se explicita no final da Estética Transcendental quando Kant explica a impossibilidade de captar diretamente os estados internos. Só podemos representar a nós mesmos internamente através de outras representações que afetam o sentido interno". Isto provém de ser o tempo apenas um modo de representar e não uma realidade suscetível de nos fazer coincidir com nós mesmos de forma total. Sendo assim, a percepção interna segue o mesmo padrão causal da percepção externa, seja qual for o nível de profundidade do Eu: nem sequer tem sentido falar aqui em profundidade do Eu na medida em que não temos acesso direto à especificidade da consciência. Tudo que sabemos é que esta constitui a unidade transcendental origina­riamente sintética da apercepção, que permite que todas as sínteses sejam remetidas à unidade originária do Eu penso. Fora dessa função formal, a consciência está submetida às mesmas regras do conheci­mento fenomênico, visto que a falta de intuição direta da consciên­cia faz com que tenhamos apenas acesso indireto a ela". Kant insiste em que a percepção do Eu é pensamento e não intuição, pois não há conhecimento direto da interioridade. O conhecimento fenomênico se estende assim à consciência". Em outras palavras, o conhecimen­to do Eu está ligado ao conhecimento das coisas exteriores e se faz através delas. Sendo pois a interioridade um reflexo da exterioridade, compreende-se que não possa haver um reconhecimento direto da

mento. Vemos a matéria e a forma do conhecimento intelectual (restrita ao seu objeto próprio) engendrarem-se uma à outra por adaptação recíproca, a inteligência mode­lando-se pela corporeidade e a corporeidade pela inteligência" (E.C.-360).

33. "( ... ) Mas a forma desta intuição, existindo previamente no espírito, determina na representação do tempo a maneira pela qual o diverso é reunido (beisammen ist) no espírito. Com efeito, este se intui a si mesmo, não como se representaria a si próprio imediata e espontaneamente, mas segundo a maneira como é interiormente afetado, por conseqüência tal como se aparece a si mesmo e não tal qual é" (Kant, E., Critique de la Raison Pure. tradução francesa de A. Tremesaygues e B. Pacaud, PUF, Paris, 6a edição, 1968, p. 73 - doravante citada apenas como CRP).

34. Kant, E., CRP - 131. 35. Kant, E., CRP - 135-6.

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6. CRITICA 00 A PRIORI TEMPORAL

liberdade do Eu. Kant representaria o caso exemplar da transferência dos procedimentos do conhecimento externo para o interno, inclu­sive porque, nele, a transferência mostra claramente a impossibilida­de do conhecimento interno. Conheço apenas que sou, não o que sou. Como se o reconhecimento da conjunção entre temporalidade da consciência e liberdade fosse um resultado quase pressentido e portanto evitado por algo como a índole do sistema. A maneira de evitar foi fazer da liberdade uma categoria metafisica colocada fora do tempo, alternativa preferida a fazer da duração real o processo de liberdade que seria a própria vida da consciência (0.1.-176). Kant é ainda caso exemplar por afirmar que no nível do fenômeno a liber­dade é incompreensível. Tal incompreensibilidade é estendida aos fenômenos internos, perspectiva esta decorrente de se atribuir a eles, ao menos em princípio, a possibilidade da determinação completa, pelo fato de serem pensados, assim como os fenômenos fisicos, em relação a um tempo concebido como meio vazio homogêneo. Perce­be-se o postulado que vincula todo conhecimento à índole matematizante dos procedimentos da ciência. O que tal perspectiva alcança do Eu é apenas a camada mais externa e voltada para a prá­tica imediata. Nesse nível não é dificil pensar um determinismo que regeria a personalidade, pois estamos nos aspectos em que nossa consciência se governa pelas coisas exteriores. É a face simbólica do Eu que alcançamos aqui: a consciência exteriorizada e como que penetrada pela fixidez das coisas exteriores, mais o nível das palavras que exprimem os estados psicológicos do que eles mesmos (0.1.-177-8). É onde são possíveis as decomposições e as recomposições que nos dão as figuras artificiais da vida psicológica. Artificiais por­que se retirou da vida psicológica a sua característica essencial que é a temporalidade específica - duração qualitativa. Nesse quadro nada impede, com efeito, que apliquemos o esquema da determina­ção causal da mesma forma que aos fenômenos fisicos. Esta forma é aquela que recebeu a notável descrição que encontramos na Segun­da Analogia da Experiêncid".

Lembremos alguns aspectos. Segundo Kant, é preciso que a su­cessão subjetiva, ou a percepção da sucessão, seja derivada da suces­são objetiva, única capaz de se pôr como necessária por se dar con­forme uma regra. Desta maneira posso ter certeza de que a apreen-

36. Cf. e enunciado: "Tudo que ocorre (começa a ser) supõe alguma coisa à qual sucede, segundo uma regra" (Kant, E., CRP - 182).

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II - ETAPA CRíTICA DA REINSTAURAÇÃO DO OBJETO DA FILOSOFIA

são objetiva ocorre de acordo com o que realmente se passa no ob­jeto". Isto significa que é preciso que haja uma regra transcendental regulando a sucessão de fenômenos de maneira necessária: o fenô­meno antecedente deve conter em si a condição do fenômeno con­seqüente. Tal condição é necessária para que a ordem dos fenôme­nos não seja aleatória. Não basta que um fenômeno suceda a outro: é preciso que isto ocorra de maneira necessária. ou seja. segundo uma regra. A isto se chama estabelecer uma relação de tempo". A objetividade do fenômeno dado no momento presente provém do reconhecimento da necessidade pela qual ele sucede àquele que o precedeu. Existe uma continuidade no encadeamento temporal que constitui uma lei da representação empírica. O entendimento confe­re à existência dos fenômenos uma determinada ordem temporal necessária que é estabelecida a partir do tempo como forma trans­cendental das relaçôes dos fenômenos entre si. Dessa forma podemos dizer que o fenômeno. no nível do objeto em geral. tem seu lugar no tempo determinado a priori. A ordem do tempo é portanto um plano transcendental de organização da existência dos fenômenos. de modo necessário39• O que aqui é considerado como caráter formal do tem­po se mostra com suficiente clareza quando Kant argumenta que. no caso das causas eficientes que existem ao mesmo tempo que seus efeitos. o que deve ser considerado é a ordem do tempo e não o curso do tempo. ou seja. há que considerar a determinação do efeito pela causa mesmo quando os dois são simultâneos. O que se pretende afinal é impor a determinação lógica do efeito pela causa e não reco­nhecer a realidade do tempo como duração ou passagem entre os dois fenômenos". A anterioridade real não importa na constituição da determinação. A sucessão é sempre o critério empírico da causa­lidade.

Tal causalidade se manifesta como ação no tempo. o que signi­fica força. Mas o movimento contido nesta ação de mudança pelo

37. !Cant. E .• CRP - 185. 38. Kant. E .• CRP - 188. 39. "Ora, ele (o entendimento) atinge este objetivo (tornar possível a representação

de um objeto em geral) pelo próprio fato de que transporta a ordem do tempo para os fenômenos e para a existência destes, assinalando a cada um deles, como conse­qüência, um lugar determinado a priori em relação aos fenômenos precedentes, e sem o qual ele não concordaria com o próprio tempo que determina a priori o lugar de todas as suas partes" (Kant, E., CRP - 189).

40. !Cant. E .• CRP - 190·1.

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6. CRITICA DO A PRIORI TEMPORAL

qual algum objeto passa do estado A para o estado B é concebido matematicamente. A diferença entre os dois momentos pode ser medida em termos de grandeza. A mudança é remetida pois a uma diferença quantitativa entre as realidades A e B: o resultado é idên­tico à mudança". Quanto ao tempo no qual se opera a mudança. ele é concebido como uma somatória de momentos que se determinam uns aos outros enquanto grandezas. Toda mudança é constituída de estados intermediários igualmente submetidos à lei da determina­ção causal; de maneira que a mudança. enquanto resultado. é cons­tituída por todos os momentos enquanto se determinam uns aos outros. É desse modo que a ação causal decorreria no tempo: no tempo concebido como série de momentos (pontos ou simultaneida­des. na linguagem de Bergsonl cujas relações totalizadas formam o movimento de mudança". Tal é o esquema a priori que explicita a regra da causalidade no conhecimento empírico. Trata-se na realida­de da forma da sucessão enquanto determinação estrita dos fenôme­nos que se seguem na realidade. Não é difícil ver como Bergson pode identificar aí um esquema formal de duração dado e a ser preenchi­do com fenômenos que simplesmente se depositariam em lugares previamente demarcados num encadeamento temporal formalmen­te concebido a priori. Desta maneira o tempo enquanto sentido in­terno determina a realidade na forma da sucessão dos estados de coisa. O entendimento determina o lugar das percepções que. orga­nizadas. redundam nos fenômenos objetivamente considerados na seqüência temporal de causa e efeito. de modo determinado". Para o universo fenomênico. vale essa determinação estrita que é condi­ção de conhecimento; não poderíamos ter do mundo físico uma ciên­cia plenamente objetiva se tivéssemos de admitir. ao lado do deter­minismo. ou em vez dele. uma causalidade livre". A liberdade. en­quanto oposta à lei da causalidade. resultaria na impossibilidade do

41. Kant. E .• CRP - 193. 42. Kant. E .. CRP - 193. 43. "Desta forma, assim como o tempo contém a condição sensível a priori da pos­

sibilidade de uma progressão contínua do que existe àquilo que se segue, também o entendimento, graças à unidade da percepção, é a condição a priori da possibilidade de uma determinação contínua de todos os lugares dos fenômenos no tempo, por meio da série das causas e dos efeitos, dos quais as primeiras envolvem necessaria­mente a existência dos segundos e, por via disto, tornam o conhecimento empírico das relações de tempo válido para todo o tempo, isto é, objetivamente válido" (Kant, E .. CRP - 195).

44. !Cant. E .• CRP - 349.

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conhecimento científico. Mas como em Kant este conhecimento diz respeito aos fenômenos, é deixado um lugar para a liberdade no mundo das coisas-em-si, o que a torna inexplicável em termos teó­ricos. Na verdade, tal concepção resulta de se pensar a liberdade a partir do determinismo, do fato de se tentar explicar por conceitos aquilo que por natureza foge à conceitualização. Nessa linha de pen­samento, a metafísica torna-se não somente algo oposto à ciência como também um conjunto de crenças de estatuto inexplicado. Com efeito, tomando por exemplo o estatuto do tempo, vimos como em Kant a sucessão está conjugada com a determinação necessária. Isso faz com que não se possa pensar a liberdade no tempo, já que o tempo é inseparável do determinismo". Conseqüentemente, a dura­ção psicológica não tem estatuto teórico, o que é apenas uma parte do preço a ser pago pela solidez dos fundamentos formais da ciência da natureza. Disso resulta, no próprio Kant, a inacessibilidade teóri­ca da consciência e na psicologia que se inspira numa teoria da ciên­cia kantiana a construção de um Eu superficial e voltado para a ex­terioridade, logo com as mesmas características desta exterioridade, o que o torna então um objeto análogo aos da ciência da natureza: é isto que faz com que também a psicologia possa ser pensada como ciência natural e, assim, possa fazer uso da mesma concepção do tempo (0.1.-178-9).

Grande peso possui nos resultados do kantismo a acepção uni­camente sensível da intuição. A impossibilidade de intuição intelec­tual corta na raiz qualquer pretensão de coincidência, mesmo no modo discursivo, com a interioridade. Tal restrição se compreende no quadto crítico da filosofia kantiana, quando pensamos que ela visava diretamente resgatar a experiência como fundamento sensível do conhecimento em oposição ao dogmatismo da análise puramen­te conceitual. A mesma restrição no entanto deixa de cumprir qual-

45. A relação entre o início relativo e o início absoluto da série de eventos, afirmada por Kant no Comentário da Tese da Terceira Antinomia, é vista por Bergson como um

7. TEMPO E CONCEITO

quer papel positivo quando nos colocamos numa perspectiva de acei­tação dos fatos internos tanto como dos externos. Se aceitamos a possibilidade de acesso à duração como fato interno, a intuição in­telectual deixa de estar obrigatoriamente associada à análise concei­tual e se torna um degrau para atingirmos uma forma de experiência direta. Mas para aceitar tal experiência seria preciso pelo menos conceber a possibilidade de um tempo diferente da sucessão deter­minada, um tempo que não fosse meramente destinado a servir de suporte à lei da causalidade determinista (0.1.-174). É preciso no entanto não confundir a intuição intelectual com uma espécie de conhecimento supratemporal, como fizeram vários filósofos, antes e depois de Kant, e inclusive o próprio Kant. Justamente por ser uma dimensão da experiência, a intuição tem de levar ainda mais em conta o tempo como modo privilegiado de existência, tanto do homem como das coisas. Foi o que não flzeram os sucessores de Kant que, ao restabelecer os direitos da intuição intelectual, pensaram-na na forma de um conhecimento direto de um princípio - arqué ou telos­situado fora do tempo, e que o real, na sua esfera de temporalidade, "realizaria" mesmo que necessariamente. Não deve ser função da intuição construir princípios ou deduzir realidades, ou mesmo orde­nar pelo pensamento a evolução histórica do devir, mas sim entrar em contato direto e experiencial com a duração".

7. TEMPO E CONCEITO

Bergson considera que a ciência determinista fundada pelo kan­tismo é totalmente relativa à capacidade humana de conhecer, en­tendida como possibilidade de relações quantitativas através da im­posição da forma intelectual à matéria sensível do conhecimento. Esgotado este ãmbito, não há mais conhecimento teórico que se possa obter pelo entendimento, e conhecemos a razão: tal domínio é de-

indício de que na própria filosofia kantiana existe, de alguma maneira latente, a pos- 46. A intuição não pode ser ponto de partida da reconstrução do real muito simples-sibilidade de pensar o ato livre como espontaneidade absoluta e como advento de mente porque a intuição é forma de contato experiencial- a experiência aqui enten-uma heterogeneidade radícal no próprio interior da série fenomênica. Por não poder dida corno liberta das condições que a inteligência lhe impõe. A intuição requer "re-admitir a heterogeneidade radical na série causal, Kant teria deslocado o ato livre para nunciar ao método de construção, que foi o dos sucessores de Kant. Seria preciso a esfera do noumeno, mantendo assim a homogeneidade da série causal no plano dos apelar a uma experiência - uma experiência depurada, despojada, onde fosse preci-fenômenos. Mas o que fica assim retirado da esfera da pOSSibilidade de conhecimento so, dos quadros que nossa inteligência constituiu durante o progresso de nossa ação I

teórico é o Eu enquanto objeto de apercepção interna, situação que revela a experiên- sobre as coisas. Uma experiência deste gênero não é urna experiência intemporal~ I ~ ~ , .. - ~ ,....,. - ""'"~. ~ O.,·",. l .~.~. '" I 170

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marcado pela intuição sensível. A relatividade do conhecimento é algo que merecerá os mais sérios reparos de Bergson em vários tex­tos, notadamente na Introdução a La Pensée et le Mouvant. Mas a crítica não parte imediatamente da afirmação da possibilidade do conhecimento absoluto e sim questiona a maneira como a relativi­dade é estabelecida pela filosofia kantiana, que teria incorporado os dogmas metafisicos tradicionais, notadamente o do determinismo, fundamentando-o na instância transcendental. Uma visão puramente metodológica do determinismo daria outro perfil à relatividade do conhecimento, adequando-o a características por assim dizer regio­nais dos campos de objetividade. Mas a assunção da intuição sensí­vel como única possível corta na raiz a possibilidade de uma diferen­ciação e, assim, de um relativismo metodológico. A impossibilidade da intuição intelectual foi, como se sabe, contestada pelos "sucesso­res imediatos" de Kant. É interessante notar como, para Bergson, esta contestação está ligada à crítica da ciência mecanicista. O pen­samento se volta para as possibilidades abertas pelas concepções evolutivas do real, libertando-se deste modo do mecanicismo, ou reduzindo-o ao seu âmbito próprio, ao seu "momento". Apareceu aí a oportunidade para que a crítica do mecanicismo como extensão universalizante dos procedimentos da ciência da natureza abrisse espaço para a consideração da duração real e portanto para uma outra concepção do tempo, mais adequada aos objetos não inertes. Tal não aconteceu porque a intuição sensível que circunscrevia o conhecimento foi substituída por uma intuição intemporal, totalmen­te alheia à duração. Assim, embora a filosofia pós-kantiana tenha criticado o mecanicismo estrito como modo universal de pensamen­to teórico, introduzindo noções como progresso, evolução, devir, elas não correspondem à consideração do tempo real, mas simplesmente a uma nova configuração das formas da realidade que leva em conta o tempo na constituição do real, porém pensando-o como um con­ceito, isto é, como uma multiplicidade quantitativa. Em vez de graus de complicação mecânica, supõe-se agora a realidade constituída em graus de realização da Idéia ou de objetivação de um conceito, como uma escala que o ser percorre. Mas, justamente, é preciso partir da Idéia ou de qualquer outra configuração do ser, para refa­zer a "história" do real. É como se o devir fosse deduzido do ser (E.C.-361).

Não haveria, assim, grande diferença com respeito ao mecanicis­mo. Apenas as articulações são feitas agora ao longo do tempo e as

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7. TEMPO E CONCEITO

articulações supõem o devir: mas como a intuição que desvenda o sentido deste devir é intemporal, permanecemos ainda no interior de uma filosofia do conceito que sobrevoa o tempo e que não adere à temporalidade real. Sem dúvida isto deriva do caráter menor atri­buído a qualquer experiência no tempo. Acreditou-se sempre que algum esquema intelectual deve dominar o tempo para que haja co­nhecimento efetivo. Quis-se retirar o conhecimento do âmbito res­trito da forma da intuição sensível e então foi ele recolocado na es­fera intemporal, onde já o havia posto Platão, como se a alternativa fosse entre uma relatividade sensível e o caráter absoluto de uma inteligência fora do tempo, esquecendo-se que, sendo a duração a verdadeira realidade substancial, somente um conhecimento capaz de, em alguma medida, coincidir com ela, poderá aspirar à efetivida­de. Em vez disso procurou-se, a partir da intuição intemporal de um conceito tido como absoluto, reconstruir o real, incluída nesta re­construção uma rearticulação de elementos num tempo espacializa­do, ou absolutamente espacializado. Desta forma é que Bergson acre­dita ter sido possível um sistema com a abrangência que possui a filosofia de Hegel. O tempo seria o substrato da articulação das for­mas do devir, dos graus de realização da Idéia, objeto da intuição intemporal. Conseqüentemente, permanece ainda a desvinculação entre a verdade e o tempo. No § 258 da Enciclopédia o tempo é de­finido como unidade negativa da exterioridade, abstrato e ideal. A idealidade e a abstração resultam de ser o tempo o "devir intuído" -"o ser que, enquanto é, não é, e enquanto não é, é". A diferenciação da passagem do tempo, ou as passagens enquanto determinações, resulta em diferenças extrínsecas: no tempo ainda estamos no domí­nio do que é exterior a si mesmo. Exterioridade e abstração, sair fora de si, tais são as expressões que designam o tempo. Não há nele, para Hegel, nenhuma diferença real- apenas uma referência abs­trata de si mesmo a si mesmo. Esta continuidade não é a de um receptáculo, mas a da própria realidade enquanto nascer e morrer: o que engendra e devora, como Cronos. Este nascer e morrer é a negatividade que faz parte do real enquanto finito: o real não é a negatividade, mas tem a negatividade, daí a contradição no seu ser. Esta contradição, enquanto exterioridade, é o tempo; o real está do­minado pela contradição, vale dizer, pelo tempo, ao contrário do conceito que, sendo a negatividade total, é também a liberdade total e não está dominado pelo tempo. Por isto, diz Hegel, "somente as coisas naturais estão sujeitas ao tempo, por serem finitas; o verda­deiro, pelo contrário, a Idéia, o Espírito, é eterno".

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A passagem do tempo, configurada pelas dimensões passado, presente e futuro, é o devir da exterioridade, diferenças no ser, pas­sagem do nada ao ser e do ser ao nada. Tais diferenças se anulam na individualidade presente, em relação à qual passado e futuro são meras abstrações. Mas também O presente está destinado a conver­ter-se, de realidade e afirmação, em abstração e negatividade47

• Res­salte-se porém o caráter representativo da duração, pois na natureza não existem propriamente as dimensões, mas apenas o instante. Como o tempo na natureza é apenas o instante, a negação do instan­te é a negação do tempo, que para Hegel é o espaço.

O tempo tem, pois, natureza quantitativa e a forma de uma re­petição serial. Esta repetição, que Hegel caracteriza como uma refe­rência de si a si na pura exterioridade, pode ser vista como uma incessante reprodução da unidade. O nascer e o morrer, que carac­terizam o tempo, não engendram formas novas numa duração qua­litativamente diferenciada, mas simplesmente repetem a mesma contradição. A passagem do tempo é o engendramento do Uno tem­poral, o Agora; em seguida sua anulação; depois um novo engendra­mento de um outro Agora; mas isto não se faz numa diferenciação qualitativa, e sim numa repetição quantitativa, daí poder ser chama­do de serial". Assim, o tempo tem algo a ver com o número. Mas Hegel não admite, como Kant, que a operação de contagem seja feita no tempo ou que o tempo seja o substrato da aritmética. As opera­ções aritméticas e as demonstrações geométricas não são sintéticas, pelo menos não da forma como pensara Kant. Na verdade o proble­ma é anterior, na medida em que Hegel não crê que se possa falar,

47. "O presente finito é o instante, fixado como algo que é distinto do que é negativo, dos momentos abstratos do passado e do futuro, como a uriidade concreta e, por conseguinte, como o que é afirmativo; mas aquele ser do instante presente é também meramente o ser abstrato que se dissolve no nada" (Hegel, WF, Enciclopedia de las Ciencias Filosoficas, tradução espanhola de Ovejero e Maury, Juan Pablos Editor, Mexieo, 1974, § 259, p. 174).

48. "O espaço é este absoluto ser-fora-de-si, aquele que ao mesmo tempo de maneira absoluta e não interrompida é um ser outro e ser-novamente-outro, idêntico consigo mesmo. O tempo é um absoluto sair-fora-de-si, um engendrar-se do uno, do ponto temporal, do agora, que de imediato é seu próprio anular-se, e continuamente de novo o anular-se deste perecer; de modo que este engendrar-se do não-ser é também simples igualdade e identidade consigo" (Hegel, WF, Ciencia de la Logica, tradução espanhola de Augusta e Rodolfo Mondolfo, edição Solar/Hachette, Buenos Aires, 1968, p.167).

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7. TEMPO E CONCEITO

no âmbito da matemática, em conceito; conseqüentemente vê como prejudicada - também por isso - a argumentação que Kant desen­volve para provar o caráter sintético das operações matemáticas. A exterioridade que caracteriza o pensamento matemático não permi­te que se fale em síntese ou em conceito. O ato de numerar é carente de conceito", agrupamento meramente extrínseco. Cremos que é a partir disso que Paulo Arantes pode afirmar: "A repetição do Uno numérico desenrola-se, desse modo, em um meio inassimilável des­de o início àquele em que se reproduz a dialética do Uno tempo­ral"". A exterioridade recíproca que caracteriza a numeração faz com que a multiplicidade daí resultante seja muito diferente do engen­dramento da multiplicidade temporal, razão pela qual Hegel não só se afasta de Kant, mas também de Aristóteles, que define o tempo como número do movimento e afecção do movimento, portanto em constante referência a um móvel que encama a própria substancia­lidade do Agora ou do instante. O número é a realização mais com­pleta da exterioridade do pensamento. Mas, como vimos, o tempo também é definido como exterioridade, constante sair de si. Por que então distinguir multiplicidade numérica e multiplicidade temporal? Esse problema nos interessa na medida em que, com esta diferença, Hegel parece reconhecer a existência de dois tipos de multiplicidade, tal como Bergson no Essaf". Arantes sugere esta comparação ao co­mentar a incompatibilidade vista por Hegel entre o tempo e o núme­ro, bem como as relações entre tempo e espaço. Se por um lado a contigüidade dos dois conceitos está de acordo com a articulação dialética espaço-ponto-tempo, por outro lado há determinações do tempo que só se explicam pela confusão com o espaço". Existe por­tanto uma simetria no engendramento dialético das multiplicidades

49. Cf. Hegel, WF, Ciencia de la Logica, oh. cit., pp. 183-4. 50. Arantes, P., Hegel: A Ordem do Tempo, Polis, São Paulo, 1981, p. 111. 51. "Tudo se passa como se na origem de duas multiplicidades houvesse dois gêne­

ros ou modos de ser da exterioridade, uma, por assim dizer, analítica e constituída pela justaposição de momentos indiferentes, a outra sintética, em que a separação não exclui desde logo a coesão interna. Enquanto a multiplicidade temporal define uma das formas abstratas da exterioridade imediata, a multiplicidade numérica cir­cunscreve o pensamento abstrato da exterioridade. No entanto, ambas se comunicam por dentro, pois, graças à intenrenção de um ato próprio ao entendimento, a multipli­cidade numéricas se produz a partir de uma corrupção dos elementos da multiplici­dade temporal" (Arantes, P., ob. cit., p. 112).

52. Arantes, P., ob. cit., p. 113.

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espaciais e temporais, sem que deixe de haver especificidade do tem­po, pelo menos em relação ao número. Não se pode também deixar de assinalar que Hegel insiste no caráter abstrato do número em relação ao sensível: o número é uma determinação abstrata do sen­sível. Nesse sentido, Kant tem razão quando diz, no Esquematismo, que o número está a meio caminho entre o sensível e o intelectual, mas isso justamente prova que o número serve para determinar o múltiplo da exterioridade. Ele seria uma espécie de "exterioridade interna". Embora não coloque na origem do número a intuição espa­cial, como faz Bergson, Hegel reconhece pelo menos a preponderân­cia da exterioridade na definição do número. Essas aproximações de detalhe poderiam prosseguir e certamente encontraríamos ainda muitos outros pontos para comentar. Mas não devemos esquecer (como nos alerta Paulo Arantes) que Hegel concebe o tempo como pluralidade quantitativa, uma extensão, conseqüentemente como o que Bergson chamaria "meio homogêneo". É bem verdade que po­demos ver em Hegel talvez duas maneiras de "preencher" este meio homogêneo: coexistência ou sucessão, que seriam duas espécies de homogeneidade. Se por um lado isto dá conta de haver em Hegel duas multiplicidades e de ser o tempo uma pluralidade quantitativa, por outro lado isto nos afasta bastante da diferença bergsoniana entre coexistência homogênea espacial e heterogeneidade da duração. Lembremos ainda que Hegel define o tempo, explicitamente, como uma repetição contínua, repetição da mesma contradição. Tal repe­tição indefinida é signo de um pensamento que ainda não chegou à plenitude do conceito, negatividade absolutamente livre. Esta é a razão pela qual o conceito (o espírito) não está no tempo. Apesar de Hegel mencionar a "inquietude" característica da temporalidade e que o espaço - ou o tempo travestido de espaço - "fixaria" mais ou menos artificialmente, não se pode entender tal "inquietude" como a essência movente da realidade. Mesmo os Agora, instantes que se sucedem, não são substanciais como em Aristóteles. O espírito ou a Idéia enquanto destino da história devem ser vistos do ponto de vis­ta da eternidade. E talvez seja essa teleologia que, para além de qual­quer pormenor de aproximação ou de diferença, marque verdadei­ramente o ponto de incidência da crítica bergsoniana. É o fato de o destino estar dado, de não se ter nada mais a fazer senão recons­truir os momentos lógicos e históricos da trajetória: para uma leitu­ra bergsoniana, isto corresponde metafisicamente à reconstrução da evolução com os fragmentos do evoluído. Esta teleologia que dá ao filósofo o privilégio de se situar no ponto terminal da historicida-

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de do ser é o que será intensamente criticado na Evolução Criadora. Tal atitude contraria a noção de experiência integral (o acompanha­mento dos fatos sem pressupostos metafísicos) e opõe-se à noção de intuição que consiste na coincidência com o ritmo do fazer-se na duração.

Essa segunda perspectiva, que na verdade engloba a primeira, deve ser adotada não só do ponto de vista noemático - a conside­ração da realidade em si mesma como um fazer-se, progresso ou processo de duração - mas também do ponto de vista noético -apreensão da realidade em termos de conhecimento. Nesse último sentido é que devem ser entendidas as considerações de Bergson sobre a filosofía como sistema. Na Introdução a La Pensée et le Mouvant, o filósofo insiste em que, adotada uma perspectiva intui­tiva e experiencial, não se pode mais conceber a filosofia como sis­tema fechado e integral que contenha a solução para todos os pro­blemas. Pelo contrário, a filosofia deve imitar a ciência sob o aspecto da continuidade e da acumulação de resultados, como obra coletiva. Não competiria neste sentido ao filósofo construir os "estágios su­perpostos de um magnífico edifício" (E.C.-362) com generalidades cada vez mais altas. Cabe a ele contribuir para o acúmulo de resul­tados que constituem um acervo coletivo, impessoal, de verdades definitivamente conquistadas. A integralidade da filosofia está no seu horizonte de rigor e não na ossatura de sistemas particulares. Não é difícil reconhecer nessa crítica uma alusão à importância que tem em Hegel a arquitetônica sistemática, caracteristica que Bergson atri­bui a todos os pós-kantianos. A crítica é ilustrada pelo exame da noção de Vontade em Schopenhauer e do papel que este conceito desempenha na explicação da realidade (P.M.-49). O afã de atingir o conceito absolutamente geral produz a vacuidade. A generalidade é, para Bergson, o principal signo de imprecisão em filosofia. No en­tanto, podemos apontar certos textos de Hegel que, ao menos à pri­meira vista, parecem antes prefigurar a crítica da idéia geral vazia do que ilustrar positivamente as denúncias bergsonianas. Diz Bergson em La Pensée et le Mouvant que os filósofos pós-kantianos acredita­ram conhecer o absoluto dando-lhe um nome: Eu, Vontade, Idéia. Ora, no Prefácio da Fenomenologia do Espírito, Hegel critica as filo­sofias que crêem atingir o absoluto sem determiná-lo e que assim caem na generalidade mais abstrata. Isto porque o absoluto é posto no começo como um princípio vazio e não no fim como resultado de l "., .... ""=;0""', « q" ~mbém ,,,,,mm = ","dp;«, 7~ j

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desta vez pleno da significação concreta que são as determinações". Tal representação do absoluto pode ser "edificante" e responder aos anseios da consciência infeliz, mas não faz parte da filosofia como ciência. O que seria preciso pensar é a forma do tempo implícita no devir das determinações do espírito. A problemática da temporalida­de em Hegel está ligada ao caráter retrospectivo (volta a si) e pros­pectivo (saída de si) do itinerário do espíritOS'. Em todo caso, Hegel qualifica de deficiente aquilo que é apenas universal. Daí a falha dos sistemas que têm como fundamento ou começo este tipo de univer­sal. Daí também a ausência do que Hegel chama efetividade, a tota­lidade das determinações que permite pensar a identidade na dife­rença, ou a identidade como totalização das diferenças, o que é bem diferente da identidade abstrata, em que as determinações do ser estão em potência.

Tais determinações dizem respeito à interioridade da consciên­cia que reencontra na realidade do conceito a exterioridade desta vez determinada. Por isso diz Hegel que o conhecimento matemático é profundamente distinto do filosófico, na medida em que ele é exte­rior e formal, ou seja, não inclui a oposição e a reconciliação interna dos opostos que caracterizam o conceito. Assim o tempo matemáti­co, que Kant põe como fundamento da aritmética, não representa a realidade do tempo enquanto "pura inquietude de vida" e "absoluta diferenciação"55. No conhecimento matemático, não há diferencia­ção e sim "unidade abstrata e sem vida", "diferença sem conceito" e igualdade. O tempo real confunde-se com a existência do conceito: esta inquietude de vida nada tem a ver com a repetição do Uno, que é a temporalidade fixa da matemática. O conceito é no tempo. O movimento do conceito enquanto temporalidade ou historicidade do ser é que precisa ser cotejado com a crítica bergsoniana da filo­sofia do conceito e do tempo quantitativo. Nessa comparação não se

53. "A verdade é tudo. Mas o todo é apenas a essência explicitando-se a si mesma através de seu desenvolvimento. ( ... ) Se digo 'todos os animais', estas palavras não podem passar pelo equivalente de uma zoologia; com igual evidência, vemos que as palavras divino, absoluto, eterno não enunciam o que está contido nelas e são somen­te tais palavras que exprimem de fato a intuição como o imediato" (Hegel, Préface à la Phénornenologie de I'Esprit, tradução Hyppolite, Aubier/bilíngüe, Paris, 1966. pp. 51·53).

54. Cf. a nota 8 de Hyppolite à sua tradução do Prefácio da Fenomenologia do espí­rito, ob. cit., p. 184.

55. Hegel. WF, Préface ... ob. cit., p. 107.

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pode esquecer a definição hegeliana do tempo como idealidade abs­trata. A análise do tempo segue o padrão de toda análise hegeliana: procura criticar a representação imediata, a fim de verificar como se pode estabelecer a partir daí o trânsito ao conceito. Na Lógica e na Enciclopédia, vemos esse procedimento aplicado tanto ao espaço como ao tempo. Assim como, no caso do espaço, o ponto é o posi­tivo a partir do qual se reconstitui o espaço (que o próprio ponto havia negado), no caso do tempo esse positivo é o presente ou o Agora. O tempo pode ser representado como uma série de Agora ou de presentes, dos quais o passado e o futuro são modificações. Mas é o Agora que aparece como realidade, mesmo que seja uma realida­de evanescente, isto é, a caminho do negativo. Trata-se portanto de uma representação pontual ou de uma "articulação punctiforme" (como designa Paulo Arantes). Daí a possibilidade de definir o tempo como" o ser que, sendo, não é, e não sendo, é"". Mas é apenas uma representação ainda anterior ao conceito a que confere esta realida­de fixa e inabalável ao presente, porque ele também está inserido num processo que tem a negatividade como fator constitutivo. O tempo é uma realidade movente: identificá-lo ao presente ou mesmo privilegiar o presente é esquecer este aspecto dinâmico de processo que para Hegel é inseparável do trabalho do negativo. O presente existe para ser negado, assim como ele próprio é a negação de um passado que foi presente. A este respeito assinala Arantes que a lei de formação do presente é fornecida pelo negativo". O que distingue a dialética do tempo da do espaço é exatamente a aniquilação que as dimensões realizam umas em relação às outras. Tal distinção pode ser vista como uma ruptura entre tempo e espaço, embora o tempo, na sua gênese, esteja ligado à dialética do espaço. No espaço há partes ou momentos que, enquanto ser-fora-de-si, trazem como caracterís­tica a indiferença recíproca, que Bergson chamará de justaposição. E é esta característica que o tempo parece eliminar através de uma atuação mais efetiva do negativo - através da supressão. Os mo­mentos do tempo são suprimidos na passagem de um para o outro, e a diferença se instala a partir dessa supressão. Faz parte portanto da determinação do momento temporal o ser suprimido: "desaparição imediata". A referência de um momento do tempo a outro é insepa­rável da supressão. Estaríamos a partir daí autorizados a qualificar

56. Hegel. WF, Enciclopedia. ed. cit., § 258, p. 173. 57. Arantes, P., oh. cit., p. 43.

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II - ETAPA CRfTIG". DA REINSTAURAÇÃO DO OBJETO DA FILOSOFIA

esta sucessão de momentos que se anulam no seu desenvolver-se como algo análogo à duração bergsoniana? Basta recordar a maneira pontual como esta articulação é pensada para responder negativa­mente. O que aí se representa é o instantâneo como ponto que escande a temporalidade. Lembremo-nos de que o momento nasceu dialeticamente do ponto espacial como negação da linha e que o ponto temporal continua a ser pensado como limite. O tempo é uma série de pontos, tal como já era para Kant e para Aristóteles. Aliás, é isso que justifica o privilégio do instante presente na representação espontânea. Vemos que Hegel critica este privilégio sem no entanto mudar a figura da articulação do tempo. O instante não fornece mais a realidade conceitual do tempo, mas a série de instantes a fornece. O tempo é contínuo - o que justifica ainda uma vez a analogia com a linha, tal como Kant a pensara: o ponto é limite espacial, o instante é limite temporal. A filosofia transcendental, aliás, manteve fidelida­de a esta concepção, como mostra Arantes em relação a Fichte e Schelling58•

Sem dúvida a concepção pontual do presente em Hegel dá con­tinuidade a esta herança. Mas podemos perguntar se é apenas por analogia que o instante é concebido como espécie de unidade do tempo. Arantes chama atenção para o fato de que a conexão entre ponto espacial e ponto temporal não é analógica e sim dialética. O ponto temporal surge da negação do espaço e portanto de uma trans­formação da multiplicidade espacial. É como se a potência negativa do tempo responsável pela supressão dialética do espaço nos impe­disse de ver nesta relação uma derivação do tempo em relação ao espaço, como poderia fazer uma possível leitura bergsoniana. A rea­lidade do tempo como que repousa no fato de se ter posto a partir da supressão do espaço". É ainda de se notar que o ponto temporal tem um caráter sui-generis, que é o poder de suprimir ou excluir os ou­tros membros da série, e é isto que o diferencia do espaço, onde as partes permanecem. Seria de se perguntar se esta característica reti-

58. "Assim, Fichte define a série temporal, obtida por derivação genética, como uma série de pontos. ( ... ) Schelling, enfim, retoma o fio dessas análises: se a primeira síntese do tempo com o espaço, lê-se no System de 1800, só poderia ser expressa pela linha ou, dizendo-se de outro modo, pelo 'ponto expandido', é porque o tempo é 'ponto puro' ou ;limite puro'" (Arantes, P., ob. cit., pp. 45-46).

59. "O passado e o futuro do tempo, enquanto estão na natureza, são o espaço, porque este é o tempo negado, e assim o espaço, superado, é primeiro o ponto e, desenvolvido por si, o tempo" (Hegel, WF, Enciclopedia, ed. cit., § 259, p. 174).

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7. TEMPO E CONCEITO

ra O que Bergson chamaria de caráter homogêneo do tempo. Sabe­mos que espaço e tempo estão na esfera da exterioridade; o espaço é a exterioridade em-si e o tempo é a exterioridade para-si. A relação entre espaço e tempo pode então ser compreendida como a passa­gem dialética do em-si ao para-si, o que não pode (ou não precisa necessariamente) ser interpretado como derivação. Resta o fato de que esta passagem repousa numa necessidade conceitual- que faz com que o ponto temporal represente a verdade do ponto espacial. As bases "sólidas e explícitas" desta passagem é que levariam, numa perspectiva bergsoniana, a pensar num tempo "construído" mais do que num tempo "vivido". Não podemos esquecer que o trajeto do ponto espacial ao ponto temporal é um movimento conceitual. As­sim como o ponto temporal, enquanto "realidade efetiva" do ponto espacial, representa a "contração" do estar-aí na forma do ser-para­-si, poderíamos talvez perguntar se esta contração não faz do espaço a realidade conservada (e suscetível. ao menos idealmente, de se descontrair) do instante temporal. No entanto, não podemos desco­nhecer também as relações que, no pensamento de Hegel, mantêm as categorias do em-si e do para-si. A determinação do em-si não está nele mesmo, mas em outro, ao passo que a determinação do para-si é imanente. É por isso que, quando a multiplicidade espacial contém o Uno, diz Hegel, ela o contém em Outro, isto é, no tempo; e o tempo contém o Uno de forma imanente, nele mesmo. O fato de que a determinação do espaço está no tempo não confere prioridade ontológica ao tempo? O Uno no caso é o ponto; ora, o ponto tempo­ral é a "plena verdade" do ponto. Disto resultaria que o caráter pon­tual ou "punctiforme" do tempo, longe de ser uma transposição es­pacial, é uma característica original do tempo, e a ele inerente en­quanto exterioridade para-si.

Por outro lado, haveria alguma maneira de aproximar o caráter pontual do Agora das simultaneidades de que fala Bergson no Essai? A essência do tempo está no encadeamento de suas três dimensões. Ver a essência do tempo no Agora é ilusão. O presente carrega em si a negatividade constitutiva que o destina ao desaparecimento ou à determinação num outro momento que é o futuro. Saindo da deter­minação imediata, o Agora se cumpre verdadeiramente ao anular-se em benefício do futuro, sua determinação mais rica. O Agora é um limite no sentido de que é a transformação em futuro, através da negação, do não-ser que o presente traz em si e que é uma determi­nação. Nesse sentido, a essência do presente é o futuro e a negação

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se repõe a cada momento, fazendo do presente o não-ser-de-si­-mesmo. Nesse encadeamento está a essência do tempo e se vê tam­bém com mais nitidez o caráter originariamente progressivo da arti­culação pontual. Atente-se para o fato de que o futuro é o que está determinado a ser a partir do presente. O percurso reflexivo não poderia ser lido como uma transposição da reflexão para a realidade, ou da confusão entre articulação lógica e articulação da realidade enquanto duração? Se compararmos os passos descritivos da reflexão sobre o tempo em Hegel e em Bergson, talvez encontremos muitos pontos de afinidade. Certamente, por exemplo, a articulação "punc­tiforme" não cai exatamente sob a crítica das simultaneidades, apro­ximando-se muito mais de um processo original e criador. Mas é o sentido do estabelecimento dessa articulação pela reflexão, o sentido do próprio paralelismo entre a lógica e a articulação da realidade que está em jogo: a própria lógica dialética enquanto resultado do esquematismo da inteligência quando aplicado à evolução, o que Bergson reconheceria seguramente como um passo importante na direção da consideração do real como processo. Na própria crítica que Bergson faz às filosofias pós-kantianas, ele não deixa de reco­nhecer que "as idéias de devir, progresso, evolução parecem aí ocu­par um lugar de destaque" (E.C.-361), mas justamente talvez porque sejam as idéias que aí têm lugar é que a duração não desempenha um "verdadeiro papel", na medida em que a verdade do tempo será sua articulação conceitual. Tanto parece ser assim que o fato de a essência do tempo para Hegel não estar em nenhuma das dimensões tomadas separadamente como ponto privilegiado, mas sim no trãn­sito que se faz por via da negação de uma dimensão para outra, pode ser visto como uma perspectiva que em si mesma supera a fixidez e a consideração do tempo como simultaneidades. Mas este trânsito da negação pode também ser visto como diferenças internas do tem­po que se "comunicam por dentro". Dessa maneira o fato de o con­teúdo real do tempo "circular" pelas três dimensões pode servir tam­bém para mostrar que "o tempo só é como unidade do presente, do futuro e do passado"". Assim, embora não haja uma predominância ontológica do presente, que uma leitura bergsoniana poderia inter­pretar na direção de uma sucessão simultânea; embora o ponto tem­poral - o Agora - marque apenas a diferenciação em si mesma como característica do tempo (a característica "excludente" do pre-

60. Arantes, P., ob. cit .. p. 51.

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7. TEMPO E CONCEITO

sente), resta ainda o fato de que é a relação entre os momentos re­presentados como pontos temporais que define a realidade do tem­po. Esta relação é uma articulação conceitual que parece conservar a continuidade própria de uma pluralidade quantitativa. Epistemo­logicamente o Agora mantém certo privilégio. O problema de uma leitura comparada seria saber até que ponto o não-ser do presente leva a pensar num fluxo análogo à multiplicidade qualitativa. Na Fenomenologia, o problema se apresenta como sendo a dificuldade que tem a consciência sensível para definir concretamente aquilo que se dissipa, aquilo de que ainda não há conceito. "O Agora é a noite" ou "O Agora é o dia". Isto vai desembocar no não-ente, naqui­lo que é porque suas determinações não são: o universal. Esta evanescência do presente pode ser aproximada, como faz Arantes", do presente enquanto fazer-se da ontologia bergsoniana? Ou não seria de se ver aí antes a articulação lógica dos momentos de um absoluto? Em Hegel a evanescência do presente, a fluidez do tempo é algo que impede que se veja no presente a essência do tempo, mas éjustamen­te porque a essência não pode estar associada ao fluxo evanescente. Por isso é preciso que o Agora (presente) negado e suprimido seja afirmado como o Agora (passado) que, enquanto passado, é também negado e suprimido: a negação da negação, término do movimento dialético, restabelece o Agora no seu movimento de posição e negação.

Desde Aristóteles, a tradição equaciona o problema do tempo em termos de ser ou não-ser e toda a dificuldade deriva de que o tempo parece suscetível de receber as duas determinações. Esta al­ternativa ontológica não é aceita como princípio nas análises hegelianas, na medida em que o tempo é e não é na dialética do fluir de suas dimensões. Conforme consideremos o presente em relação ao passado, o passado em relação ao presente ou o presente em relação ao futuro e vice-versa, teremos de jogar com o ser e o não­-ser, de tal forma eles estão inseparáveis na dialética do tempo. Por isso é preciso que a própria especulação seja o movimento que deslinda a "inquietude imediata dos incompatíveis", como está dito na L6gica. Com isto a especulação abre uma perspectiva de reflexão

61. "Não há como não entrar em acordo quanto a esta primeira constatação, a saber, que o momento presente, no qual este do qual se crê falar e no qual se crê falar, ao contrário de ser este ente-aí acabado e imediato, é um não-ente. Assim Bergson, para l :~:.:~ ... ~ ... _._"-~ .. _.,..-'~ .. : J

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ontológica que se diferencia bastante das análises do livro IV da Fí­sica que foram sempre tomadas como referencial básico pela tradi­ção. Ao ler passagens como as do § 259 da Enciclopédia ocorre-nos naturalmente aproximar esta proposta de reflexão como movimento da crítica bergsoniana da preponderãncia das categorias de estabili­dade na História do Pensamento. Não nos esqueçamos, porém, de que o devir é antes uma categoria lógica separada do tempo, que é deduzido na filosofia da natureza. Não podemos, como alerta Arantes.', assimilar o devir lógico ao devir intuído. Com isto falsifica­ríamos tanto a lógica como a natureza. Isso não impede que haja uma aproximação entre as duas instãncias e que, por exemplo, o pensamento de Heráclito ilustre, como afirmação do devir, a primei­ra determinação da idéia lógica. Com a instauração da filosofia da natureza que é ao mesmo tempo a primeira determinação do ser como devir, fica esboçado aquilo que virá mais tarde a apresentar-se claramente como o ser enquanto processo temporal. Este processo se apresenta segundo uma escala que talvez possa ser aproximada das linhas mestras da "história natural" bergsoniana63

• Há que reparar, entretanto, na noção de "forma temporal" como "processo abstrato" ou "abstração do processo", que uma leitura bergsoniana poderia fazer recair no dualismo forma/matéria. Mas estas seriam questões atinentes à ordem lógico-natural do tempo, ou à temporalização do devir em ato nas suas manifestações, e que fogem à tentativa de esboço das possibilidades críticas bergsonianas em relação às carac­terísticas mais gerais do tempo hegeliano.

62. Arantes, P., ob. cit., p. 69. 63. Arantes, P., ob. cit., p. 71.

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JNTUIÇÃO E EXPRESSÃO A QUESTj\.O DA PRESENÇA DE ELEMENTOS

ROMANTICOS NO PENSAMENTO DE BERGSON

1. A CRISE DO "G~NERO" CONCEITUAL

A presença de elementos romànticos na filosofia de Bergson apresenta-se como uma questão e não simplesmente como a afirma­ção de algumas afinidades - que entretanto existem -, porque tais afinidades, para ser estabelecidas, demandam o exame de relações razoavelmente complexas entre o pensamento de Bergson e o con­junto muito diversificado de idéias que simplificadamente chama­mos de pensamento romântico. Sem, por enquanto esmiuçar dife­renças, que no entanto veremos serem essenciais para a compreen­são dessas relações, basta-nos por agora mencionar dois aspectos, um relativo à filosofia de Bergson e outro concernente ao pensamen­to romântico (permita-se-nos esta expressão cuja generalidade será na devida ocasião objeto de precisão e consideração).

A filosofia de Bergson, por recusar o conceito na sua acepção tradicional como linguagem adequada para a filosofia, procurará na expressão imagética a alternativa para uma expressão metafórica mais aderente ao real. Tanto o conceito, no seu significado formal e exato, como a imagem, na fluidez que a caracteriza e lhe confere a vanta­gem da precisão, são metáforas da realidade. Por que a metáfora no sentido de imagem propicia, aos olhos do filósofo, uma compreen­são mais precisa do real? O sentido desta questão liga-se sobretudo ao fato de que é a imagem no contexto de sua utilização literária aquela que pode substituir com vantagem o conceito; portanto é a questão do paradigma literário que está em jogo quando se tenta encontrar para a filosofia uma linguagem mais precisa do que o

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IIl- INTUIÇÃO E EXPRESSA0

conceito. Ora, a questão da precisão é uma questão metodológica. É por exigência metodológica que O conceito é recusado e é, assim, por exigência metodológica de fidelidade da expressão que a imagem, a partir do paradigma literário, será trabalhada como linguagem da filosofia. Mas não se trata, evidentemente, de uma transposição, e é por isso que surgirão todos os problemas concernentes à relação de que falamos antes. Se a filosofia deve adotar a linguagem imagética por exigência metodológica, a maneira como o artista opera com a linguagem só pode ser tomada como paradigma se, na própria no­ção de paradigma, estiver incluído um trabalho de mediação que transforme a metáfora literária num instrumento metodologicamen­te apropriado à expressão filosófica. Portanto, é a distância entre a expressão artística e a expressão filosófica que constitui o espaço de mediação em que deverá ser reinventado o método filosófico. E isso porque a adoção da linguagem imagética tem como objetivo um ganho em precisão sobre a linguagem exata do conceito, metáfora exata unicamente porque cristalizada, mas imprecisa no seu conteú­do e na sua relação com as coisas.

Não se deve, portanto, pensar numa substituição da linguagem filosófica pela linguagem poética. E a razão não é apenas a exigência do caráter metódico da linguagem teórica, mas o próprio fato de que a linguagem filosófica tem de ser reinventada ou mesmo inventada como linguagem que vive a vida das coisas e não a vida de sua lógica interna. Por outro lado, é certo que uma aproximação entre lingua­gem filosófica e linguagem poética é necessária como meio de rein­venção da própria linguagem filosófica, já que a linguagem poética traz em si um potencial expressivo maior do que a linguagem con­vencionalmente conceitual. O que está em questão, portanto, na conjugação problemática entre linguagem, filosofia e método é o lugar da expressão filosófica, seu estatuto e sua articulação simbólica. Di­gamos, para antecipar, que o irremediável simbolismo da linguagem deve ser transformado num meio de exprimir o imediato na sua imediatez. Mas enunciar esta exigência já é dizer também que a lin­guagem, por ser simbólica, exprimirá o imediato mediatamente' . A

1. "Mas no próprio Bergson o imediato é mediatizado. ao menos no sentido de que uma aná1ise de purificação é necessária para distingui~lo. ( ... ) Assim o filósofo não pode impedir~nos de assistir ao seu trabalho de filósofo. Enquanto no poema desapa~ recem os traços do labor que o fez nascer" (Paliard. J" Note sur la Poésie Bergsonienne. in Henri Bergson, Essais et Témoignages, org. Albert Béguin e Pierre Thévenaz, la Bacconiêre, Neuchâtel, 1943, pp. 142-3).

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1. A CRISE DO "GIÔNERO" CONCEITUAL

imagem que substitui o conceito através de um trabalho metódico de constituição da linguagem filosófica não propiciará um contato direto com o objeto. A linguagem poética se constitui situando o objeto no plano da emoção, o que faz com que a expressão seja uma travessia da palavra pelo sentimento e na direção do sentimento. O símbolo reenvia a um conteúdo afetivo cuja posição decorre do fato de estar a própria linguagem construída no plano da afetividade. O objeto tem, pois, algo de comum com o meio de expressão e com O

universo em que se situa. O conteúdo da linguagem poética se cons­titui de forma imanente ao meio de expressão e ao universo expres­sivo. Por isso, no caso do artista, expressão e método (se se pode falar em método) são uma e a mesma coisa. O que não quer dizer que o que a linguagem poética expressa não seja "objetivo" ou "ver­dadeiro" (palavras que demandarão ainda que as precisemos em seus significados), mas sim que a verdade e a objetividade do que é ex­presso na linguagem poética se constituem, por assim dizer, no tra­balho de apropriação "subjetiva" e numa relação com as coisas que é antes de mais nada uma comunhão afetiva. A linguagem artística é um jogo expressivo singular de criação de significações. O grande problema que se põe para a filosofia no plano da reinvenção da lin­guagem filosófica é que o trabalho de criação de significações tem a sua objetividade derivada do método que o filósofo emprega para apreender o mundo e transformá-lo em significados. É um outro jogo expressivo, em que a liberdade de manipulação dos símbolos se su­bordina à representação objetiva da realidade. E representação obje­tiva, no caso de Bergson, deve ser entendida no sentido realista e até empírico. É importante notar que são as exigências do objeto que decidem das exigências da linguagem. A expressão filosófica tem uma profunda vinculação, na própria problemática da sua constituição, com a verdade que a filosofia almeja encontrar e exprimir, uma ver­dade inscrita fora da subjetividade, ao menos no seu sentido afetivo, muito embora só possa ser encontrada e expressa a partir da subje­tividade "afetiva". Devemos assim excluir da linguagem filosófica a constituição do universo afetivo em obra, no sentido da transfigura­ção dos significantes no significado da "verdade" da obra de arte; e devemos excluir também a dimensão do jogo da linguagem regido pela lógica interna do encadeamento dos conceitos da linguagem teórica (filosófica) tradicional, criticada por Bergson. No entremeio, como fica o processo de reconstrução da linguagem filosófica?

A segunda das exclusões que enumeramos acima tem a ver com a relação entre o método e os dados imediatos. Bento Prado observa

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III - I NTUIçP.Q E EXPRESSÃO

a este respeito: "O salto para o imediato não é, ele próprio, imediato. Ele apenas é feito através da longa série de mediações constituída pelo recurso ao testemunho do pensamento positivo"'. Dentre as mediações a que alude Bento Prado Jr., devemos citar pelo menos duas: a crítica da história da Filosofia e o recurso ao pensamento positivo. Ambos os aspectos são, na verdade, recursos metodológicos. A reconstrução da linguagem filosófica exige uma crítica cerrada da linguagem tradicional na exata medida em que esta linguagem espelha procedimentos intelectuais tributários da conceitualização e das suas conseqüências teóricas. Nesse sentido, a leitura da história da Filosofia tem a finalidade de assinalar, principalmente em seus momentos mais representativos, a articulação simbólica subordina­da ao encadeamento conceitual em sua lógica própria. Tal lógica resulta na independência do discurso tilosófico, o que não é senão a desvinculação entre a teoria e o seu objeto. Conseqüentemente, o discurso filosófico redunda na ocultação do seu objeto. O que se torna visível na linguagem são os contornos lógicos da realidade inteligível. que é substancialmente um produto do entendimento. A visibilidade do mundo tem como contrapartida a invisibilidade dos contornos efetivos da realidade, e do seu estofo mais íntimo, que a metafísica tradicional no entanto julga atingir. A continuidade clás­sica entre ciência e metafísica cria a "ideologia" da qual a filosofia torna-se tributária, produzindo uma "metafísica do entendimento"'. Para reencontrar o estilo e a função da linguagem filosófica, é neces­sário proceder a uma crítica que tematize esta linguagem nas suas ocorrências históricas, mas que, ao adotar tal procedimento, já esteja fundada numa doutrina da relação entre o espírito e as coisas, o que implicitamente significa uma profunda reformulação da noção de sujeito envolvida na relação teórica.

Aspecto essencial desta reformulação é uma avaliação do papel da inteligência na constituição da objetividade do conhecimento. As formas naturais de intelecção da realidade determinam os modos de expressão desde a gênese do contato intelectivo com o mundo. Des­ta forma, no decorrer da constituição dos processos históricos de conhecimento presentes na ciência e na metafísica, acaba sendo a linguagem o fator determinante do pensamento, tendo em vista a

2. Prado Jr., B., Presença e Campo Transcendental: Consciência e Negatividilde na Filosoflll de Bergson. EDUSP, São Paulo, 1989, p. 73.

3. Id., ibid., p. 73.

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articulação lógica da realidade. Esta é a causa de a linguagem enco­brir o objeto, no caso da filosofia: quase se poderia dizer que o objeto é produzido pela linguagem, uma vez que serão as exigências de articulação conceitual que determinarão os modos do aparecer do objeto no âmbito da apreensão intelectual. A lógica interna da arti­culação conceitual exclui da apreensão cognitiva as formas de con­tato com a realidade que não se subordinem ao caráter discursivo desta lógica - o que para Bergson se expressa paradigmaticamente na recusa kantiana da intuição intelectual. Mas a eventual aceitação desta intuição como procedimento cognitivo não é sufíciente para quebrar a hegemonia da modalidade analítico-discursiva dos proce­dimentos e da linguagem filosófica. Assim se caracteriza na filosofia a hegemonia do que poderíamos chamar de subjetividade epistêmica, no sentido de um quadro lógico-subjetivo de constituição analítica que fundamenta o processo cognitivo. O teor epistêmico acarretará que a pretensa exatidão conceitual rompa o que em Bergson pode­ríamos chamar de integralidade do sujeito espiritual. O plano da afetividade, que em Bergson é chamado de simpatia, fica assim ex­cluído da dimensão do sujeito teórico e restrito, como tradicional­mente aconteceu, às formas de contato com a realidade alheias ao plano do conhecimento. É comum atribuir-se ao "pensamento ro­mântico" uma reação contra a hegemonia do intelecto através da proposta inversa de uma hegemonia do "sentimento", ou em termos mais imprecisos e gerais, da "subjetividade". Teremos ocasião de avaliar esta visão do romantismo e provavelmente de corrigi-la no que tem de superficial e parcial. Mas o certo é que - e isto desde já podemos afirmar - não existe em Bergson nenhuma idéia relativa a uma hegemonia do sentimento no sentido desta visão do romantis­mo a que aludimos. E isto se deve precisamente à integralidade do sujeito espiritual, que é uno nos seus aspectos afetivos e intelectuais, que vertentes do pensamento separaram devido a uma concepção equivocada e, em certo sentido, pequena, da racionalidade. Um dos problemas para o exame da subjetividade bergsoniana nas suas pos­síveis relações com a subjetividade "romântica" é, admitido porven­tura algum aspecto daquela reação romântica que teria redundado numa hegemonia do "sentimento", avaliar até que ponto Bergson supera a dicotomia entre intelecto e sentimento através da idéia de que o espírito se compromete integralmente em cada um dos seus atos, inclusive os de conhecer. Isto significaria a afirmação de que o intelecto e o sentimento são aspectos do mesmo todo, o espírito. Ainda assim, esta integralidade só seria passível de ser reafirmada na

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filosofia bergsoniana a partir de uma "reabilitação" do sentimento, sem dúvida levada a cabo pelo pensamento romântico, mas que em Bergson não resultaria em substituir uma hegemonia por outra, mas sim numa visão mais larga do espírito enquanto sede e manifestação de racionalidade. O problema se apresenta em toda a sua complexi­dade no entrecruzamento de intelecto e emoção na representação do ato moral. O que antecede o ato livre, como veremos, não é a representação intelectual das alternativas, mas a emoção profunda que impele a alma a agir de forma a que na ação se comprometa toda a personalidade: a liberdade só existe quando é a totalidade do sujeito que realiza a ação. O ato moral não emana nem do sentimen­to, nem do intelecto, mas do espírito'. Este problema, que aparece com nitidez no plano de uma questão em que o intelectualismo e o voluntarismo se fizeram tradicionais adversários, ilustra no entanto uma questão mais geral: a impossibilidade de compartimentação do espírito. Esta questão se reflete na constituiçãO da linguagem filosó­fica precisamente no aspecto conceitual que poderíamos entender, a partir do que foi dito, como uma compartimentação da expressão filosófica da realidade. Nesse sentido tem-se o problema, bastante mais abrangente, de como entender as relações entre arte e filosofia, e que aqui nos interessa do ponto de vista das relações entre as duas linguagens como expressão da realidade, ou de níveis de realidade. Antecipemos por enquanto que tais relações, associadas à concep­ção da integralidade do espírito, testemunham um grande esforço para evitar que a experiência humana seja fragmentada. Mas é pre­ciso considerar também que a experiência, una em sua origem e diversa nas suas manifestações, talvez não encontre no nível da ex­pressão uma linguagem que espelhe a unidade originária, caso em que a diversidade da experiência manifestada se expressaria frag­mentariamente.

Questões como unidade/fragmentação, teor de metaforização, substituição de conceitos por imagens, organização do discurso metafórico e outras, mesmo implicitamente contidas no que prece­de, apontam para um problema que nos faz retomar, num outro grau de generalidade, a problemática do método: trata-se da exigên-

4. "O homem que se prepara para agir toma consciência do início de seu ato sob forma emotiva. Longe de ser o sentimento a se fixar sobre si mesmo de maneira in­telectual, é o espírito inteiro que se antecipa no exercício de sua liberdade" (Gilson, B., L'Individualité dans la Philosophie de Bergson, Vrin, Paris, 1972, p. 75).

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cia de complexidade da linguagem filosófica. No contexto bergsonia­no, tal questão não significa retomar alguma coisa banalizada pela reiteração. Pois a linguagem conceitual, no sentido de complexo de encadeamento de conceitos, não é de forma alguma complexa, pelo contrário, espelha o pragmatismo cômodo da inteligência que cunha símbolos de significação convencionalmente unívoca tendo em vista a economia da comunicação. A complexidade da linguagem tem a ver com a ausência de cristalização simbólica, em que a rede de imagens expressivas deriva da criação de significações tanto no caso das imagens cada uma de per si como no caso das relações que se produzem entre elas. É preciso levar em conta que, para Bergson, os conceitos são forjados com a finalidade de facilitar o pensamento e a comunicação e é por isso que a expressão intelectual da realidade obedece ao gênero conceitual. A recusa do conceito - a recusa das regras do gênero conceitual - implica uma dificuldade maior de expressão. E o grau maior de dificuldade, que na verdade deriva tam­bém de uma outra qualidade de expressão, deixa-se resumir numa palavra: criação, idéia-chave do pensamento de Bergson também no que se refere à questão da linguagem filosófica.

Mas se a linguagem filosófica deve participar da concepção da linguagem como criação, o que significa sem dúvida uma aproxima­ção entre a linguagem da filosofia e a linguagem da arte, isto se deve não a uma superposição entre as duas formas de expressão ou a uma "estetização" da filosofia como foi aventado por alguns críticos da filosofia bergsoniana, mas, ainda uma vez, a uma exigência metódica de reforma ou reinvenção da linguagem filosófica. Podemos no en­tanto ver agora esta exigência metodológica inserida num horizonte mais amplo, que chamaríamos de crise da linguagem filosófica, sem dúvida um aspecto ou um produto da crise no nível dos procedi­mentos metódicos da filosofia, crise gerada no próprio interior da concepção de filosofia e que, na época de Bergson, se manifesta concretamente na herança do positivismo comtiano e na alternativa do pós-kantismo francês. Na medida em que a resposta bergsoniana à crise da filosofia envolve uma visão dessa crise como fragmentação e empobrecimento da experiência humana como um todo, a crise da metafisica pode ser vista como refletindo a crise da cultura, um exem­plo da qual seria a tergiversação cientificista de valores éticos e espe­culativos, que dizem diretamente respeito à condição humana. E é no entrecruzamento de três fatores - cultura, especulação filosófica e condição humana - que podemos ver, num primeiro momento,

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aparecerem os aspectos que dizem respeito à questão da presença de elementos românticos no pensamento de Bergson, ou das conflu­ências possíveis entre o "pensamento romântico" e a filosofia de Bergson.

Podemos constituir um fundo sobre o qual pensar de início esses elementos recorrendo àquilo que já foi chamado, por sua vez, de crise da subjetividade no legado kantiano e a partir da qual se vão construir as alternativas sistemáticas do idealismo, de Fichte a Hegel, passando pelo "pensamento romântico" circunscrito a Schlegel, Novalis e outros pensadores que se podem agrupar sob este "clima" do idealismo romântico. Lacoue-Labarthe localiza tal condição teó­rica da crise sob a qual se dará a reflexão romântica na forma da subjetividade teórica kantiana, ou no vazio do sujeito concebido como apercepção transcendental. A dessubstancialização do sujeito, um dos resultados da crítica kantiana do dogmatismo cartesiano, man­tém unicamente a forma temporal como necessidade lógica de uma presença vazia que acompanha todas as representações, e isto pela impossibilidade de uma representação substancial do sujeito, man­tido no entanto como a "forma do sentido interno"'. Resta porém que esta forma irrepresentável é o que constitui a unidade do possí­vel sistema de representações, o que significa que o sistema, tanto na parcela que nos é dada na experiência como na idealidade formal e reguladora do Sistema absoluto, é o correlato de uma subjetividade vazia. A ordem do mundo no plano do conhecimento está de alguma maneira dependente de uma entidade irrepresentável e mesmo, do ponto de vista de sua realidade substancial, inapresentável. Que a unidade originária do conhecimento seja apenas um princípio lógico é tanto mais problemático quanto Kant pretenderá, no plano moral, recuperar a efetividade do sujeito enquanto liberdade e fundamento absoluto no nível da causalidade inteligível. Kant não deixa, inclusi­ve, de explicitar que a função do sujeito no plano moral está vincu­lada àquilo que ele não é enquanto sujeito do conhecimento. Esta definição negativa da consciência como liberdade será por sua vez também raiz de alguns impasses, na medida em que o sujeito pratica

5. uÉ preciso partir disto, desta problemática do sujeito inapresentável a si mesmo e desta erradicação de todo substancialismo, se queremos compreender o que ° ro­mantismo receberá, não como legado, mas como 'sua' questão, a mais difícil e -talvez - a mais inabordável" (Lacoue-Labanhe, P., L 'Absolu Littéraire - Théorie de la Littérature du Romantisrne Allemand, Seuil, Paris, 1978, p. 43).

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uma liberdade que ele não conhece. Na impossibilidade da intuição intelectual, a consciência de si, mesmo definida no plano da liberda­de, não deixa de apresentar um caráter análogo à idéia reguladora. Uma consciência que escolhe, julga e opera sem se conhecer põe o problema da unidade do sujeito, e mesmo do próprio ser-sujeito'. Isto porque a liberdade de que o sujeito moral está dotado não lhe confere nenhuma parcela da substancialidade retirada na Analítica da Razão Pura. Por outro lado, em que pese a dessubstancialização e o vazio da subjetividade formal, o esquematismo irá conferir-lhe um poder de produção imagética essencial à constituição da ordem representativa da realidade e mesmo à experiência enquanto totali­dade e unidade ideais.

Por que se pode entender a concepção kantiana de sujeito como a raiz do que chamamos de crise da subjetividade? Porque o que constitui o problema e a solução desta questão em Kant é o hiato introduzido na própria noção de sujeito como a única maneira de pensá-la nas suas duas funções específicas, a teórica e a moral. Ora, se entendemos o idealismo - mais propriamente aquilo que depois de Kant será o idealismo especulativo - como dependente do estrato subjetivo, no qual inclusive repousaria o sistema, não será talvez difícil compreender a extraordinária dificuldade que poderia representar o fato de o sistema do idealismo transcendental possuir como funda­mento no nível da subjetividade um sujeito dividido e definido mui­to mais por um leque de ausências do que por um conjunto de pro­priedades efetivamente presentes no âmbito da auto-representação. É compreensível que este vazio e esta dilaceração fossem vistos como a impossibilidade da especulação, como a impossibilidade do reco­nhecimento da idéia derivando da impossibilidade do auto-reconhe­cimento do sujeito. Mesmo reconhecendo a coerência do trajeto kantiano que leva ao dilaceramento da subjetividade e mesmo acei­tando a legítimidade da crítica do substancialismo cartesiano, o que se reconhece também é que o próprio estatuto da idéia estará irre­mediavelmente comprometido para a especulação se a própria idéia de consciência não mais puder readquirir alguma densidade, já que ela tem uma primazia natural que a caracteriza. "A primeira Idéia é naturalmente a representação de mim-mesmo como um ser absolu-

6. "Como sujeito moral, em suma, o sujeito nada recupera em termos de substância. Pelo contrário. a questão de sua unidade - e portanto de seu próprio ser-sujeito -vê-se repentinamente elevada à sua mais extrema tensão" (id., ibid., p. 44).

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tamente livre'." Não só esta idéia é a "primeira" como é também a geradora de outras representações: "Com o ser livre, consciente de si, surge ao mesmo tempo um mundo inteiro - do nada -, a única verdadeira e pensável criação a partir do nada"'. É portanto apenas a partir do ser livre consciente de si, isto é, reconhecendo· se na sua própria idéia ou na plena posse intelectual da idéia de si, que se pode pensar o mundo - como criação do sujeito livre e autoconsciente. Isto significa que a liberdade e o autoconhecimento não se situam em universos paralelos, separados e incomunicáveis - o teórico e o prático -, mas estão absolutamente ligados como condição de re­presentação - de criação mesmo - da realidade do mundo.

É portanto com referência a Kant - ao Kant da Crítica da Razão Pura e da Crítica da Razão Prática - que será encaminhada a ques­tão da reposição do Eu como idéia de si em termos de liberdade absoluta e de poder criador. Nesse mesmo movimento de reposição, entretanto, dois aspectos marcam um profundo afastamento do kan­tismo: primeiramente, o mundo é posto como correlato da consciên­cia de si enquanto liberdade, o que significa que, por essa via, o mundo é posto como correlato da consciência moral inclusive no seu sentido de organização natural, que se expressa no texto do Mais Antigo Programa Sistemático do Idealismo Alemão através da propo­sição da "física em grande escala'" que possa satisfazer a um "espí­rito criador". O sujeito enquanto liberdade como fundamento da re­presentação do mundo natural: eis o que subverte o kantismo no seu próprio íntimo. Em segundo lugar, mas ainda em relação com o pri­meiro aspecto, a idéia de que o Sistema é obra, realização humana derivada do ato estéticolO E isto porque o ato estético é o ato supre­mo da Razão, na medida em que engloba a verdade e o bem na idéia de Beleza. A identificação platónica é aqui claramente infletida para que o Belo venha a subsumir a verdade e o bem. Na filosofia de Schelling, isto se traduzirá pela proposição de que a Arte é o órganon da Filosofia. Assim, uma filosofia do espírito é uma filosofia estética porque o espírito da filosofia é a arte, núcleo de compreensão filosó-

7. o Mais Antigo Programa Sistemático do Idealismo Alemão, tradução Lacoue­-Labarthe, ob. cit., p. 53; tradução brasileira de Rubens R. Torres Filho no volume Schelling, Nova Cultural, São Paulo, 1989, p. 42.

8. Id., ibid .. trad. Lacoue-Labarthe, p. 53; trad. Rubens R. Torres Filho, oh. cit., p. 42. 9. Id" ibid" Irad. Lacoue·Labarthe, p. 53; Irad. Rubens R. Torres Filho, p. 42. 10. Id., ibid., trad. Lacoue-Labarthe, p. 54; trad. Rubens Rodrigues Torres Filho, pp.

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fica da realidade em todos os aspectos. Por isso o ato estético - ato de compreensão filosófica - é ato da Razão, subjetividade livre e criadora, e o sistema que há de surgir é uma obra no sentido de uma obra de arte. E é por isto também que "o filósofo tem de possuir tanta força estética quanto o poeta"ll.

Muito embora esta atitude se vincule a uma superação do kan­tismo, a idéia de obra não deixa de sugerir as características orgânica e teleológica da representação correlata da reflexão na Crítica do Juízo. Se por um lado O juízo reflexionante nada acrescenta ao conheci­mento, por outro ele confere à representação as qualificações de to­talidade e finalidade que permitem visar ao mundo como sistema. Isto significa que a subjetividade opera com a sistematicidade a priori, que não é uma forma lógica no sentido teórico, mas que tem em comum com as formas lógicas o caráter de fundamento transcen­dental de certo tipo de representação. A função da subjetividade permite pensar o real em termos de organização e finalidade a partir do Eu como fundamento transcendental do sistema. Ora, na medida em que a sensibilidade é a única fonte de representação externa no que se refere ao conteúdo, a subjetividade, ao interpretar estas re­presentações sob as formas da totalização e da finalidade, pensa primeiramente estas formas, isto é, o sujeito pensa tais formas na instância transcendental, o que significa que o movimento de refle­xão, mesmo quando efetua juízos reflexionantes acerca do mundo externo, consiste em o sujeito pensar-se primeiramente como locus das formas transcendentais reflexionantes. O sujeito pensa-se na sua atividade pensante, ainda que apenas no nível da forma: nisso con­siste o movimento de reflexão, de teor portanto semelhante ao car­tesiano no seu movimento geral, mas bem diferente dele no que concerne ao conteúdo pensado na reflexão, que em Descartes era a substância espiritual e em Kant é a forma transcendental do juízo. Tal é a possibilidade a partir da qual Fichte entenderá a reflexão como a tomada de consciência pelo Eu de seu modo de operar em geral. A consciência das formas de operação da consciência como que torna tais formas conteúdo de um saber, que no entanto não é objetivo no sentido usual, mas sim um saber do saber, ou a forma de consciência do pensamento nas suas formas (forma e forma da for­ma). É este movimento de reflexão que permite ao sujeito absoluto

11. Id., ibid., trad. Lacoue-Labarthe, p. 54; trad. Rubens R. Torres Filho, ob. cit., p. 42.

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conhecer-se imediatamente sem que isto signifique uma relação in­tuitiva entre sujeito e objeto, o que introduziria dificuldades no ca­ráter absolutamente imediato do auto conhecimento. O sujeito abso­luto se conhece como instância metódica de apreensão em geral: não se conhece como a um objeto, nem mesmo intuitivamente. Esta modalidade de conhecimento imediato em que o sujeito se desdobra formalmente sem deixar de coincidir realmente consigo próprio con­fere à consciência de si o estatuto de absoluto. O absoluto está pre­sente na coincidência do pensar consigo próprio, o que isenta o movimento de reflexão da ameaça de regressão ao infinito. A vincu­lação entre absoluto e finitude será repensada pelos românticos, que reafirmarão a conexão entre absoluto e infinito, detectada primeira­mente na reflexão. "Não podemos ter nenhuma intuição de nós mesmos, o Eu nos escapa sempre. Em contrapartida, é verdade que podemos nos pensar. Para nossa grande surpresa, aparecemo-nos então infinitos, nós que, no curso habitual da vida, nos sentimos tão nítida e completamente finitos"." Assim o movimento de reflexão, embora se dê na instância da subjetividade, não resulta, como para Fichte, numa intuição determinada do Eu. Para Schlegel, como vol­taremos a comentar, esta intuição determinada, em que pesem to­das as ressalvas formais de Fichte, pode ser tomada como um resquí­cio de realismo.

Assim o idealismo especulativo tenta recuperar a densidade da subjetividade, sua unidade, seu caráter originário, não apenas como fundamento lógico-metafísico da representação, mas dotando-a tam­bém das características do absoluto. Com isto a reflexão afirma não apenas seu dinamismo operante em termos de autoconhecimento, mas também seu poder absoluto como órganon de posição de rea­lidade. Os traços filosóficos que o pensamento de Fichte transmite à geração de lena interessam-nos apenas no que diz respeito a uma atitude especulativa determinada, característica do idealismo pós­-kantiano: a reintrodução do absoluto como tema da filosofia. E isso não apenas no plano filosófico da recuperação do status da intuição intelectual e da legitimidade do conhecimento imediato, mas tam­bém e talvez sobretudo no que diz reSPeito à confluência temática que se pode estabelecer entre criação e absoluto, entre sujeito e obra

12. Schlegel, F., citado por Benjamin, W., Le Coneept de Critique Esthétique dans le Romantisme AIlemand. tradução francesa Flammarion, Paris, 1986, pp. 64-65.

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1. A CRISE DO "GE:NERO" CONCEITUAl.

ou entre sujeito e representação do mundo em obra. A idéia absoluta de sujeito como atividade infinita, a idéia de sistema como conexão infinita que veremos aparecer em Schlegel e Novalis deixam transparecer o problema de um novo significado dos atos da Razão ou da Razão em ato. E o movimento dos atos da Razão como processo criativo colocará a questão ontológica também na dimensão do proces­so, da produção, da criação contínua ou da auto produção do infinito, para lembrarmos as fontes spinozistas do pensamento romântico.

A compreensão da interioridade como criação, a expansão cria­dora do espírito no plano da natureza, a liberdade como instância absolutamente criadora nos planos ético e natural configuram, em Bergson, as possibilidades de aproximação entre o seu pensamento e a problemática que o primeiro romantismo constitui no momento em que pensa a reconstituição da subjetividade a partir do idealismo especulativo. A problemática de que parte o romantismo, no plano especulativo, de um lado, e o esforço de redimensionar o pensamen­to filosófico em Bergson, de outro, tendem ambos para uma altera­ção profunda da filosofia no seu sentido de expressão cultural. Esta questão envolve obrigatoriamente a relação que a filosofia mantém com as demais formas de expressão cultural, particularmente a arte. Repensar a filosofia como expressão cultural significa repor o proble­ma da linguagem filosófica, não no nível estritamente técnico, mas sim no seu teor expressivo. Os problemas que isto acarreta podem ser de início avaliados quando lembramos que tanto o pensamento romântico como O pensamento de Bergson tiveram seu estatuto filo­sófico posto em questão. Basta lembrar, por ex., os reparos que Ni­colai Hartmann faz ao pensamento romântico, pondo em dúvida, senão negando explicitamente, o caráter filosófíco deste pensamen­to, muito embora reconheça que filósofos como Schleiermacher e Schelling foram "influenciados" pelo romantismo" . Mais do que ava-

13. "Não se pode dissimular que os desígnios filosóficos dos românticos são no final de contas debilitamentos de suas próprias idéias. Em imagens e metáforas ousadas ou em aforismos impressionantes fulgura ocasionalmente algo do verdadeiro conteúdo destas idéias. Mas este fulgor verifica-se sempre na linha de separação entre filosofia e poesia. Nesta linha de separação se movem de preferência os românticos, nem sem­pre vantajosamente para ambos os lados. Assim, deve entender-se que para eles a filosofia e a poesia em geral acabem por ser uma e a mesma coisa, que de fato a filosofia se torne para eles simbolicamente vaga e a poesia transborde intelectualidade metafísica" (Hartmann, N., Filosofia do Idealismo Alemão, traduçâo portuguesa da editora Gulbenkian, Lisboa, 1983, p. 192).

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liar a estrita pertinência dessas considerações, o que poderia nos levar ao exame do problema da demarcação do caráter filosófico do pensamento romântico e da obra de Bergson, o que a nosso ver seria uma discussão inócua, cabe-nos tomar a questão por aquilo que ela nos permite pensar em termos do lugar e do estatuto da filosofia como criação cultural e sua organização enquanto formação discur­siva. Seria portanto pelo lado da inserção da filosofia no universo cultural e seu poder transformador em relação a este universo, muito mais do que nos termos de uma comparação entre formas de expres­são cultural que redundasse numa identificação da filosofia, que procuraremos tratar a questão.

Mas é exatamente no plano da filosofia como formação discur­siva e expressão cultural que encontramos um problema que deverá nos levar a pensar em um aspecto que se situa no núcleo do projeto filosófico bergsoniano e que constitui também um traço profunda­mente distintivo do legado especulativo dos românticos, principal­mente alemães. Trata-se da questão da "Filosofia da Filosofia", tal como é entendida por alguns pós-kantianos e por Schlegel a tarefa crítica na sua mais profunda origem filosófica. A filosofia crítica, entendida como o saber acerca do saber, imporá exigências ao pro­cedimento filosófico que redundarão no aprofundamento exaustivo da reflexão como única instãncia metódica capaz de fornecer o fun­damento e o instrumento da constituição do saber filosófico, na medida em que se põe como a operação pela qual o pensamento se apropria de sua forma e o espírito se torna consciente da extensão e da índole de seu poder de representação. Bergson entenderá a crítica como uma separação entre forma e conteúdo que, pela maneira como é levada a cabo, envolve o risco de hipostasiar as formas intelectuais de apreensão de realidade. No entanto, a própria crítica da filosofia crítica, e sobretudo a crítica do gênero conceitual como linguagem filosófica, pode ser entendida de certa maneira como o plano em que a filosofia reflete sobre si mesma: filosofia da filosofia. Por outro lado, essa questão tem uma importância estratégica no exame de possí­veis confluências entre Bergson e o "pensamento romântico", por­que a idéia de "saber do saber" será incorporada não apenas como ideal de complementação da crítica kantiana (que será vista apenas como o esboço de uma filosofia da filosofia verdadeiramente siste­mática), mas também como a necessidade da posição imanente da reflexão nas modalidades de expressão cultural em geral. Assim, por ex., a obra de arte não implica somente um fazer, mas um saber

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2. A DIMENSÃO DA REFLEXÃO REAL

acerca deste fazer, o que resulta numa conjugação de criação e refle­xão, não num sentido de desdobramento entre criação e análise da criação, mas na direção de uma ligação íntima do processo de cria­ção com a consciência de seu teor e de seu destino: o fazer artístico é inseparável da consciência do caráter da arte como absoluto, e do artista como mediador entre os homens e o absoluto. Daí a impor­tância de uma elucidação da subjetividade como órgão da reflexão, da coincidência entre a subjetividade como atividade e a reflexão como dinâmica intrínseca da subjetividade, o que faz com que a espontaneidade criadora do Eu cumpra um destino que é posto pela sua própria liberdade. A questão da reflexão como fundamento ima­nente dos atos do espírito impõe que se examine primeiramente o que constitui a subjetividade na sua dimensão interna e no plano em que manifesta seus modos de relacionar-se com as coisas.

2. A DIMENSÃO DA REFLEXÃO REAL

A espontaneidade do sujeito, por não se resolver apenas no pla­no lógico dos princípios cognitivos como referência última da subje­tividade, não pode ser estabelecida na dimensão da reflexão formal. Isto significa que a consciência não se define primeiramente como forma de auto-apreensão do Eu, substância e atividade originária fundamentadora da relação sujeito-objeto no nível teórico e no nível prático. De um lado, a subjetividade não pode ser apenas a consci­ência da intersecção causal; de outro, não pode ser também a liber­dade de escolher entre alternativas implicitamente dadas a priori como duas linhas causais possíveis. O movimento de reflexão que põe a subjetividade como liberdade determinante está ainda preso ao esquema causal em cujos termos não é possível pensar a espon­taneidade do sujeito. As alternativas elaboradas no contexto kantiano, seja o Eu como intersecção causal, seja o Eu como causalidade livre enquanto sujeito moral da ação, estão ambas presas, em última aná­lise, à ideologia determinista e diferenciam-se por enfatizar ora o aspecto mecânico, ora o aspecto dinâmico da atividade subjetiva. A permanecermos neste universo de pensamento e discurso analíticos, jamais conseguiremos conhecer o sujeito na dimensão do que se poderia chamar de reflexão real, ou seja, na sua efetiva atividade espontânea. A filosofia bergsoniana assinala, portanto, já desde o início do tratamento da questão da subjetividade, uma dificuldade considerável: a necessidade de recusar o próprio esquema causal,

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uma vez que mesmo a noção de causa livre não seria adequada para pensar a espontaneidade do sujeito.

Do ponto de vista psicológico, a teoria determinista supõe a tese do mecanicismo universal: da mesma maneira que todos os fenôme­nos físicos e as ações químicas, a organização do sistema nervoso é explicada em termos de moléculas e movimentos; " ... as sensações, sentimentos e idéias que se sucedem em nós poderão se definir como resultantes mecânicas, obtidas através da composição de choques vindos do exterior com os movimentos de que os átomos da subs­tãncia nervosa estavam anteriormente animados" (0.1.-108). A de­terminação rigorosa do momento subseqüente pelo momento pre­cedente, em termos de organização e localização de pontos mate­riais, é uma conseqüência da relação mecânica tida como a única concebível na explicação do movimento psíquico. O mecanicismo universal traz consigo a tese da determinação suficiente dos elemen­tos das séries, pois a pré-formação do conseqüente no antecedente é condição de inteligibilidade dos fenômenos presentes na experiên­cia, segundo o modelo explicitado por Kant nas Analogias da Expe­riência. No entanto, quando falamos de fatos psicológicos, mesmo no sentido mais elementar, como, por ex., a sensação, referimo-nos à conjunção de dois fatores: o cerebral e o psicológico ou o fisioló­gico e o psicológico, ou ainda o físico e o psíquico. A separação entre o físiológico e o psicológico só tem sentido se consideramos estas duas realidades como pelo menos parcialmente diferentes entre si. O paralelismo das séries física e psicológica nos mostra que existe em muitos casos uma correspondência entre as duas ordens de fatores. A partir daí temos duas alternativas: ou entendemos que existe uma correspondência rigorosa termo a termo, "que a um estado cerebral dado corresponde rigorosamente um estado psicológico determina­do" (0.1.-110); ou que existe determinação rigorosa no interior de cada uma das séries e isto as definiria como completamente deter­minadas, cada uma no seu plano específico. Da primeira alternativa, segundo Bergson, não há demonstração; quanto à segunda, ela foi afirmada como tese metafísica, por Leibniz e Spinoza, por ex., e cor­responde a uma construção coerente para explicar, a partir dos pres­supostos cartesianos, a relação entre o físico e o psíquico. A psicofísica não pode manter a tese metafísica da correspondência em seu intei­ro rigor, porque isto implicaria aceitar a realidade autônoma da cons­ciência. Por isto a Psicologia adota o determinismo físico e superpõe a ele uma espécie de determinismo indefinido que seria reflexo do

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primeiro, na exata medida em que a consciência é reflexo dos movi­mentos moleculares do cérebro. Disto resultaria uma teoria obscura, em que o determinismo da série psicológica é inferido como episte­mologicamente necessário, mas não é conhecido. Ademais, a partir desta obscura correspondência entre dois determinismos, a Psicolo­gia passa a afirmar também a interferência dos termos da série física sobre os termos da série psíquica, quando a tese metafísica clássica fora elaborada precisamente para que a correspondência pudesse ser afirmada sem que fosse preciso recorrer à interferência. A harmo­nia preestabelecida em Leibniz e o monismo da substância em Spi­noza visavam sobretudo â explicação da correspondência entre duas séries (reais ou imaginadas) incomunicáveis. A co-presença de ele­mentos físicos e psíquicos no plano dos fatos elementares e involuntários leva a Psicologia a ver neste nível superficial da vida psicológica uma prova válida para a vida psicológica como um todo. "Este começo de prova experimental mostra-se amplamente suficien­te para aquele que, por razões de ordem psicológica, já admitiu a determinação necessária de nossos estados de consciência pelas cir­cunstâncias em que eles se produzem" (0.1.-112). O importante é notar que a adoção de uma teoria que se revela tão obscura a um exame um pouco mais acurado deve-se ao fato de que os movimen­tos moleculares do cérebro são vistos como um original imperfeita e indefinidamente traduzido pela fosforescência consciente que a Psi­cologia não pode explicar em si mesma. O materialismo psíquico fornece então a base segura e palpável de onde derivaria aquilo que seria apenas uma pseudo-realidade: o psicológico em si mesmo fica­ria então devendo sua aparente realidade à realidade efetiva dos fe­nômenos cerebrais. Isto permite explicar os movimentos involuntários e voluntários a partir de uma base real material.

Disto decorre que a atividade interna é merO reflexo da atividade externa. Quando a exterioridade aparece como explicação dos fatos externos, dos movimentos, a Psicologia tem uma relação causal con­cebida em termos de homogeneidade. Isto significa que o sujeito se define a partir de uma observação externa a si mesmo. É este movi­mento de exteriorização do Eu que permite a universalização do mecanicismo, do determinismo e do princípio de causalidade. O célebre exemplo cartesiano da impossibilidade de detectar uma even­tual vida interna de um autômato é erigida pela Psicologia em prin­cípio de explicação. Esta explicação repousa ainda sobre um outro postulado científico, cuja refutação se mostrará essencial para a com-

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preensão autêntica da vida psicológica: o princípio de conselVação da energia. Sobre este princípio repousa a possibilidade da previsão, através do cálculo, de todos os estados de um sistema. Assim como, para Descartes, a conselVação da mesma quantidade de ser decorre da imutabilidade e da sabedoria divinas, assim também a preseIVa­ção da mesma quantidade de energia na realidade é garantia da certeza imanente ao cálculo da ciência. Pois o ser não pode provir do nada: como explicar que na passagem de um estado a outro, da cau­sa ao efeito, possa haver acréscimo de realidade? Como explicar o aparecimento de algo já não totalmente pré-formado naquilo que o antecede? Esta é uma exigência da forma da determinação, e a epis­temologia subjacente à Psicologia a estende para todo e qualquer conteúdo pOIVentura presente na experiência. O determinismo en­quanto método é solidário da tese metafísica da predeterminação do conteúdo pela forma, da experiência efetiva por aquilo que é afírma­do como sua condição de possibilidade. A partir daí a ciência se proíbe conceber "que os sistemas conselVativos não são os únicos sistemas possíveis" (0.1.-114). Entre o cálculo de previsão possibilitado pela extensão indefinida do princípio de conselVação de energia e o ideal de dedutibilidade completa dos estados de um sistema, aí incluídos os estados psicológicos, a diferença é apenas de grau. Supondo a mesma quantidade de realidade e a constância das relações entre elementos descontínuos num meio homogêneo, a localização de qualquer estado, passado, presente ou futuro, torna-se mera questão de cálculo. O conhecimento de qualquer realidade é antes de mais nada o conhecimento de suas condições. Por isso a universalização do determinismo é a mesma coisa que a possibilidade de aplicar universalmente o princípio de causalidade.

O conhecimento de um sistema é, para a ciência, o conhecimen­to das regras que regem as relações entre os seus elementos. Mais importante do que conhecer os elementos cada um em si é conhecer as leis que determinam o seu encadeamento. Assim, não há fenóme­no, enquanto tal, que não esteja submetido à lei da causalidade. "Ora, esta lei determina que todo fenõmeno seja determinado pelas suas condições, ou, em outros termos, que as mesmas causas produzam os mesmos efeitos. Será necessário, pois, ou que o ato esteja ligado a seus antecedentes psíquicos, ou que o princípio de causalidade sofra uma incompreensível exceção" (0.1.-150). Quando aplicado à Psicologia, o princípio de causalidade resulta na afirmação da homogeneidade da vida psicológica. Somente na forma da repetição

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das condições é que se pode assegurar a priori a previsão dos mes­mos efeitos. A constância da natureza, que assegura a homogeneidade relacional dos fenômenos, ganha no plano da Psicologia a figura da homogeneidade qualitativa dos estados de consciência. No entanto esta homogeneidade qualitativa não é demonstrada experimental­mente: ela é afirmada como condição do conhecimento das vivências psicológicas enquanto necessariamente submetidas ao princípio de causalidade. Mas a afírmação a priori da homogeneidade qualitativa significa precisamente o entendimento dos fenômenos psicológicos como não qualitativos; pois a predeterminação da mesma qualidade para todos os fenômenos me isenta da obselVação da qualidade de cada um: da consideração da diferença. A predeterminação do con­teúdo pela forma atinge aqui o seu paroxismo: pois a forma do fenô­meno natural, do fenômeno psicológico, no caso, implica a ausência da forma do fenômeno no sentido da determinação de sua individua­lidade, ou mesmo da determinação das características específicas do seu gênero. A forma do fenômeno torna-se apenas a sua posição enquanto determinante e determinado, condição e condicionado. Isto significa que, no sentido mais geral, a forma do conhecimento nos termos de sua determinação pelas categorias analíticas do entendi­mento traz em si o teor dos resultados da experiência; a predetermi­nação do conteúdo pela forma é na verdade a predeterminação do resultado do conhecimento pela sua forma. Ora, a extensão indefini­da do modelo analítico kantiano não pode mais invocar, no próprio processo de sua universalização, as condições transcendentais que legitimavam o estabelecimento da forma da experiência no âmbito da teoria kantiana. É já uma metafísica do conhecimento que funda a concepção da predeterminação do conteúdo pela forma dos prin­cípios que são utilizados para tornar a experiência dos fenômenos acessível ao entendimento. A extensão indefinida do método analí­tico é a teoria da ciência duplicada em metafísica, na medida em que as condições metodológicas são erigidas em teses gerais que funda­mentam a relação sujeito-objeto.

Ocorre que, precisamente no caso da Psicologia, esta metafísica do conhecimento determina o modo de apreensão do sujeito por si mesmo. Aquilo que tradicionalmente fora dado pelo movimento de reflexão torna-se agora objeto externo em função da analogia implí­cita na universalização metafísica do método analítico. O Eu que assim se dá como resultado do processo de objetivação não se configura para Bergson como conhecimento, mas sim como "ilusão da cons-

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ciência". "Aqui ainda a ilusão da consciência deriva de que ela con­sidera o eu não diretamente, mas por uma espécie de refração atra­vés das formas que emprestou à percepção externa ..... (0.1.-163). Mas exatamente esta relação da ilusão da consciência com a percep­ção externa nos indica que esta ilusão possui outras causas além daquelas que podem ser detectadas no interior do processo de co­nhecimento e que se confundem com a sua própria lógica. Podemos dizer que a homogeneização a priori dos estados de consciência nos faz concebê-los muito mais como no Eu do que como do Eu, no sentido de atos da consciência. A dissoluçãO da consciência em seus pretensos estados elementares, a redução destes aos movimentos cerebrais, que não são senão o movimento molecular pelo qual a matéria se nos apresenta como objeto, implicam determinada con­sideração do substrato psíquico. Essas sucessivas reduções servem a um propósito que não é outro senão a maneira pela qual O intelecto visa ao seu objeto: com efeito, a articulação do homogêneo supõe um substrato, ele próprio homogêneo. Este substrato homogêneo, meio no qual as vivências psicológicas se sucedem na sua homoge­neidade qualitativa e na sua diversidade numérica, determinando-se umas às outras e determinando os movimentos que também lhes sucedem, é o espaço. Ele é o mesmo que sustenta a repetição do mesmo; e somente a sucessão na forma da repetição pode ser enten­dida como condição da própria lei da causalidade. O fundamento impensado do determinismo psicológico reside na possibilidade de entender a sucessão no espaço. Pois o espaço enquanto presença dada deveria permitir falar apenas em justaposição. Essa possibilida­de, Bergson a elucida ao desvendar o processo de assimilação do tempo ao espaço. É este processo inerente à lógica do entendimento que me permite identificar justaposição e sucessão, fazendo do tem­po a articulação de presentes dados numa presença total e totaliza­dora. Assim o espaço é na verdade a única condição de "intuição sensível" e o verdadeiro sentido interno do sujeito teórico. Mas O caráter fundamental do espaço como forma de apreensão objetiva e como instância de autoconsciência tem conseqüências graves no plano da apreensão do Eu: a pura espontaneidade torna-se determi­nação externa. Por isso a reposição do objeto da Psicologia nos Données Immédiates não é apenas a correção de procedimentos cien­tíficos ou a crítica do fundamento metodológico dessa ciência, mas é também e sobretudo a posição do problema metafisico implicado na própria constituição do conhecimento psicológico: a liberdade ou a espontaneidade do Eu. Não é por acaso que o determinismo psico-

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lógico ou a concepção teleológica do ato livre, enquanto duas ma­neiras de constituir o conhecimento da realidade psicológica, têm na questão da liberdade uma espécie de fio condutor oculto, na medida em que um nega e o outro explica o ato livre, ou o que entendem como tal. Por que a conclusão dos Données Immédiates aproxima essas duas concepções aparentemente opostas da vida psicológica? Porque explicar, no sentido de reconstituir a gênese do ato livre, é negar a identificação entre liberdade e espontaneidade; é contentar­-se com a representação indireta da espontaneidade da consciência. Esta representação indireta deriva de uma ilusão objetivante: acredi­ta-se que é possível conhecer a consciência fora da instância em que ela se dá a si própria, fora da auto consciência. A objetivação da cons­ciência é o processo de exteriorização do Eu, para que este apareça como objeto diante do sujeito. A constituição da Psicologia como ciência positiva repousa inteiramente nesta atitude, e o espaço apa­rece como a condição da experiência objetiva dos estados psicológi­cos. Mas se são o método, e a linguagem, que lhe é solidária, que constituem assim o objeto, são eles também que constituem os pro­blemas inerentes à elucidação do objeto. É nesse contexto que a li­berdade é um problema para a Psicologia; no entanto, na medida em que o conhecimento psicológico se constitui a partir da tese metafi­sica da determinação formal do objeto, a liberdade é antes um pro­blema filosófico, inclusive porque a representação indireta do ato livre já existe no nível do senso comum, incorporado como ponto de partida da filosofia".

A crítica da Psicologia tem em Bergson um sentido especial por­que nessa ciência a inadequação do método ao objeto atinge o grau extremo, deixando a descoberto os pressupostos metafisicos que governam a constituição da objetividade. O desdobramento objetivo

14. liA liberdade se dá à reflexão filosófica como problema. Que significa haver um 'problema' da liberdade? É que a experiência da liberdade somente se dá no interior de um campo estruturado por um discurso. A uma possível leitura direta da liberdade, a uma familiaridade primitiva com ela, substituiu-se a leitura indireta e uma distância vivida. Entre a consciência e ela mesma introduziu-se o aluvião depositado pelo pen­samento conceitual. Mas, se a tradição filosófica aparece assim como obstáculo, não é por uma perversão inesperada do pensamento filosófico, pela substituição de um discurso truncado e sem sentido à clareza da linguagem cotidiana. Se o discurso filo­sófico reestrutura a experiência da liberdade, refratando-a segundo suas próprias es­truturas, é ele precedido por um trabalho da própria linguagem comum" (Prado Ir .. B., ob. cit., p. 70).

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do sujeito diante de si mesmo, na espacialidade intelectual que é condição da articulação simbólica, é um processo de reificação pelo qual a subjetividade se anula como atividade originária. O oculta­mento deste caráter do Eu deriva da mais infeliz das analogias já produzidas pelo pensamento: a assimilação entre o movimento mecânico pelo qual um móvel se transporta de um ponto a outro e o movimento de mudança enquanto alteração interna. No primeiro caso, o movimento pode ser explicado ou pelo poder próprio que tem o corpo de se mover (como na física aristotélica) ou pela relação externa dos pontos sucessivos nos quais o objeto é visado no seu movimento. Existe portanto ou uma relação externa entre os lugares de onde e para onde o objeto se transporta, ou uma relação externa entre pontos espaciais correlacionados no cálculo do movimento (como na ciência moderna). No segundo caso, o movimento deveria ser explicado por uma relação interna do objeto consigo mesmo, pois ainda que as mudanças dependam de causas exteriores os re­sultados são alterações no objeto em si mesmo, independente de sua relação com outros. Neste segundo caso, estão as mudanças de qua­lidade, que Aristóteles distinguia das mudanças de posição, mas que tendem a uma superposição enquanto movimento em geral na me­dida em que modernamente o movimento passa a ser considerado uma variável. O privilégio que o pensamento cartesiano concedeu ao movimento mecânico como relação de posições na espaço está certa­mente na raiz da concepção que considerará as alterações de qualidade em função de movimentos elementares, tais como os das partículas no cérebro. Essa assimilação se explica: é mais natural para o entendimen­to procurar a causa da mudança num elemento externo ao objeto que muda. Nisso consiste a aplicação típica do princípio de causalidade. A consolidação epistemológica desse procedimento está exemplarmente expressa na necessidade em que se viram cartesianos como Cordemoy e Malebranche de identificar a causa do movimento não apenas em objetos externos uns aos outros mas em algo radicalmente externo ao mundo da mudança: Deus. Em que esta ideologia da causalidade afeta a concepção do Eu como liberdade-espontaneidade? Se algo traz em si a razão de sua própria atividade, o intelecto tende a desdobrá-lo, ainda que formalmente, de modo a poder separar e a articular a causa e o efeito. Isto pode ser feito separando o substrato da atividade e a própria atividade; ou articulando a atividade ou o processo em momentos­-coisas na ordem da sucessão. Por isso a substância pensante de Des­cartes será uma essência subjacente aos seus modos de atividade; e o sujeito kantiano, o substrato lógico de sua atividade sintética.

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2. A DIMENSÃO DA REFLEXÃO REAL

Por isso também o Eu enquanto "problema" da liberdade só poderá ser apreendido nos termos de suas razões de agir, na forma da determinação ou da escolha. A solução bergsoniana da querela entre o determinismo e o livre-arbítrio não será a busca de uma ins­tância "anterior" na qual identificaríamos uma espontaneidade mais "fundamental", pois isto seria ainda a procura de uma causa dos atos no Eu e não a compreensão do Eu como ato. A crítica das concep­ções objetivantes da liberdade não tem como escopo encontrar a instância em que o Eu seja identificado como Absoluto, gerador de atos que dele promanem como efeitos ou emanação. O Eu absoluto não é causa de seus atos, mas está absolutamente em cada um de seus atos: eis a tese fundamental dos Données Immédiates. A liberda­de só se compreende pela imanência absoluta do sujeito à sua ativi­dade. Mais do que compreender o Eu como Absoluto, devemos com­preender esta relação como absoluta. O espírito, por definição inter­no a si, não pode fundar sua própria exterioridade. O erro do espiritualismo abstrato é acreditar que há uma espiritualidade trans­cendente ao espírito em ato ou que há um substrato da subjetividade em ato. Tanto materialistas como espiritualistas explicam a consci­ência através da separação entre o conteúdo e a forma: uns crêem na gênese material dos conteúdos, outros acreditam que a própria for­ma espiritual os produz. Ambos cindem a totalidade para encontrar numa parte a razão de ser da outra. Ou se faz da realidade espiritual a resultante da relação entre a consciência e as coisas, ou se faz do espírito um princípio que mantém consigo mesmo uma relação de identidade. No primeiro caso, o espírito é um produto ou uma supe­restrutura reflexa; no segundo é um princípio absoluto que, à força de ser interior, mantém com os seus atos uma relação de exterioridade.

Para superar o impasse, a critica da Psicologia e da filosofia que a sustenta prepara, ou já é, interiorização no sentido autêntico, pre­sença imediata do Eu a si mesmo!'. Tal presença imediata não é apenas autoposição da consciência como possibilidade de represen­tação, mas acesso ao ser. Mas se a interioridade é o oposto da exte­rioridade, por que ela permite pleno acesso ao ser e não apenas à dimensão interna como contrapartida do plano externo do ser? O fato é que antes se procurava o ser da interioridade através de sua

15. "À subjetividade separada do Ser - para a qual o Ser se dá apenas parcial e exteriormente - deve substituir-se uma subjetividade que participa internamente do Ser, para a qual ele é inteiramente presente" (id. ibid., p. 75).

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exterioridade metódica; agora procuro definir a interioridade no seu próprio âmbito. A critica da Psicologia e, a [ortiori, da metafisica do conhecimento se constituiu como um percurso para situar o sujeito diante de seu objeto: ele mesmo. E O resultado foi que o sujeito não se vê mais diante de si, mas em si: o conhecimento da consciência é autoconsciência e a interioridade só pode visar-se coincidindo con­sigo mesma. Mas o percurso crítico que leva à autoconsciência como experiência da interioridade é ao mesmo tempo o processo que re­vela o caráter ilusório daquilo que antes era considerado como a condição universal da experiência: o espaço como substrato da arti­culação de descontinuidades. O conhecimento agora devolve ao seu domínio próprio as "formas tomadas de empréstimo ao mundo ex­terior" (0.1.-116).

Mas, como já vimos, o encontro do Eu em seu caráter absoluto não é o encontro de uma duplicação metafisica do princípio de iden­tidade. A presença imediata do Eu a si mesmo não é identidade for­mal que possibilita as representações predicativas. A relação entre o sujeito absoluto e o princípio de identidade na filosofia tradicional faz com que o sujeito, enquanto fundamento, seja concebido como anterior a todas as representações temporais. Kant criticou a subs­tancialização e a intemporalidade do sujeito cartesiano nos Paralo­gismos da Razão, mas preservou, no plano lógico, a anterioridade do sujeito formal a todas as representações temporais. O idealismo fich­tiano fará do sujeito a origem da temporalidade objetiva. Bergson fará do sujeito não apenas uma representação temporal, mas a tem­poralidade mesma. A negação do espaço como condição universal da experiência me revela, em contrapartida, que o tempo é condição imanente da presença do sujeito a si, não enquanto forma da expe­riência subjetiva, mas enquanto a própria realidade da subjetividade e a única maneira de apreendê-la em seu caráter absoluto. A subje­tividade em ato é temporalidade, processo de vir-a-ser. As vivências psicológicas não estão no Eu, mas são do Eu na contínua produção temporal de si próprio. A temporalidade é indissociável do fluxo de suas manifestações. Por isso o acesso ao ser coincide com a revela­ção do tempo como o ser do sujeito e a autêntica compreensão do tempo é o único modo de conceber a espontaneidade da subjetivi­dade: a liberdade como total imanência da consciência aos seus atos no fluxo temporal.

Assim a filosofia bergsoniana pretende recuperar a reflexão real ou o movimento efetivo de reflexão que revela o Eu como realidade

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Z. A DIMENSÃO DA REFLEXÃO REAL

e não apenas como existência lógica ou possibilidade lógica das exis­tências. O aspecto de anterioridade lógica visto como intrínseco ao caráter absoluto do Eu fez com que a tradição vinculasse Absoluto e Identidade, o que decorre da consideração do Eu como princípio condicionante das representações. A Existência Absoluta só pode ser idêntica a si mesma: uma vez que o Eu se manifesta em suas repre­sentações, uma das quais é a dele próprio, e uma vez vistas estas representações como conteúdos do Eu, foi preciso estabelecer uma instância anterior à multiplicidade de representações, e portanto anterior a cada uma delas, inclusive a do próprio Eu, para que o sujeito pudesse identificar-se na sua unidade absoluta. Por isso a reflexão, neste caso, se dá como desdobramento lógico mesmo quan­do reconhece a coincidência real do Eu sujeito e do Eu objeto. O desdobramento lógico é necessário para que o Eu possa pôr-se dian­te de si para identificar-se formalmente consigo mesmo ou para intuir-se como realidade. Neste último caso a coincidência real é solidária da anteposição formal do sujeito a si próprio, e o movimen­to de reflexão é concebido no sentido que antes descrevemos como posição, o que faz com que a situação temporal da subjetividade possa ser descrita a partir da miscigenação intelectual entre tempo e espa­ço, ou da espacialização do tempo como condição de articulação de realidades e mesmo de uma realidade consigo própria, Como o con­teúdo do Eu anteposto a um outro conteúdo do Eu motivaria uma regressão infinita em termos de posição de realidades, optou-se pela imanência de uma essência formal ao conteúdo que a preenche, o que permite dizer que no movimento de reflexão a consciência co­incide consigo mesma. Na realidade trata-se apenas de conferir ima­nência à relação entre fundamento e fundado, o que não altera o esquema lógico que transforma a relação temporal entre a anteriori­dade e a posterioridade na relação formal entre o condicionante e o condicionado. Por isto a sucessão pode ser pensada no espaço: não é a passagem dos instantes que importa, mas sim O encadeamento condicional. Mas a inscrição do instante na temporalidade não faz dele uma unidade de tempo. O anterior e o posterior não são seg­mentos de uma linha divisível, a menos que, seguindo o padrão implícito na representação aristotélica do tempo, consideremos os instantes como números do movimento temporal. A descontinuida­de, representação indireta do tempo, funda a representação indireta que a consciência tem de si mesma quando julga dever exteriorizar­-se para se conhecer. É portanto a endosmose entre tempo e espaço que falseia a reflexão, fazendo com que ela atinja necessariamente a

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consciência da forma da consciência, ou a consciência da forma das representações conscientes, como instância absoluta, unidade-identi­dade do Eu. Por isso dissemos antes que se poderia chamar a esse movimento reflexão formal, por oposição à tentativa bergsoniana de fazer do conhecimento de si a realização temporal da consciência de si nos seus atos. Mas a realização temporal opõe-se à forma identi­tária. A identidade da consciência não está numa pretensa relação analítica que ela manteria consigo mesma, mas no processo de pro­dução contínua da vida do espírito que é a multiplicidade diferencia­da do pensamento. Agora já é possível ver de maneira mais clara por que o Eu mantém com as vivências que o expressam uma relação absoluta, conforme vimos antes. Estando em cada uma de forma absoluta, é o Eu enquanto multiplicidade qualitativa que é o absolu­to. A identidade do Eu é a diferença interna do fluxo temporal. O que a filosofia nunca pôde aceitar - que o Absoluto é Diferença - apre­senta-se em Bergson como tese filosófica fundamental, e como a única maneira de apreender o Absoluto enquanto vida do espírito­e não enquanto conceito ou forma pura.

Tudo isto significa que o Absoluto não pode nunca ser pensado como abstração do relativo. Por isto a espontaneidade do Eu não pode ser identificada como fundamento imutável e necessário do vir-a-ser da liberdade. Seria como extrair a liberdade da necessidade. Mas como é procedimento natural do intelecto remeter a multiplici­dade da diferença à unidade elementar idêntica a si mesma e a mudança à permanência, a filosofia tradicional esforçou-se sempre por encontrar no nível do pensamento a "Idéia das idéias" ou o pen­samento do pensamento como possibilidade do pensar (P.M.-48 a 51). A abstração é a liberação do pensamento da multiplicidade re­lativa dos signos imediatamente vinculados ao empírico para que ele chegue à posição de um Signo dos signos que, pela sua própria fun­ção, só pode designar a generalidade. A partir daí se pode dizer que a reflexão formal não é uma experiência, não é a experiência que o Eu tem de si mesmo, pois assim como "uma existência só pode ser dada numa experiência" (P.M.-50), a experiência só se constitui ver­dadeiramente no contato com uma realidade. No entanto, mesmo a reflexão formal representa o esforço especulativo para fazer do co­nhecimento imediato do Eu o modo de acesso ao ser. Como a trama interna da consciência proporcionará o conhecimento da realidade em sua índole própria dependerá da maneira de se conceber a cons­tituição do próprio conhecimento, primeiramente no plano em que

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a atividade do sujeito retoma sobre si. Em todo caso, o conhecimen­to direto suscita a questão da relação entre a coincidência real entre sujeito e sujeito-objeto e a expressão desta coincidência num discur­so definido pela mediação. A redefinição da identidade do sujeito e do tipo de totalidade que ele representa estão, assim, na base da reinvenção da linguagem que expressará a reflexão. Se o sujeito se define pela reflexão, é a modalidade da "presença interna" que determinará a apreensão do sentido do ser. Da constituição de uma filosofia fundada no conhecimento imediato decorrem exigências de constituição da linguagem filosófica vinculada à expressão do ime­diato. Mas como o conhecimento imediato redefine o sujeito como totalidade, será útil, para entendermos melhor os elementos român­ticos presentes no pensamento de Bergson, que recorramos a alguns aspectos especulativos do romantismo, especialmente os referentes à constituição do movimento de reflexão, bem como à modalidade de presença do sujeito a si na atividade de pensamento, em particu­lar naquilo que se pode entender como pensamento criador.

3. PENSAMENTO E REFLEXIVIDADE

A pergunta que está na base da crítica bergsoniana das filosofias do absoluto, mormente no caso do Idealismo Alemão, é a seguinte: a abstração é um processo lógico ou um movimento real? A questão não é desprovida de sentido. No que se refere a Bergson, a crítica da história da filosofia enquanto procedimentos "platonizantes" tende a mostrar que a filosofia sempre se constituiu como "filosofia das formas", e as filosofias pós-kantianas teriam chegado a desenvolver plenamente esta tendência ao instituírem a "Forma das formas", espécie de superconceito que teria sido o resultado da reabilitação da intuição intelectual. Na verdade, a condensação aristotélica do Mundo das Idéias em Forma pura está na raiz do esforço filosófico para "intuir" (do ponto de vista bergsoniano melhor seria dizer: no­mear) a realidade em si, o conceito ou a forma da realidade da qual tudo deriva. O correlato da intuição intelectual se constitui pois no processo de condensação conceitual cujo paradigma especulativo é o spinozismo: e o conceito, generalizado até o máximo de sua vasti­dão significativa, significará apenas a si mesmo. " ... que se dê o nome que se quiser à 'coisa em si', que se faça dela a Substância de Spino­za, o Eu de Fichte, o Absoluto de Schelling, a Idéia de Hegel ou a Vontade de Schopenhauer, a palavra poderá até apresentar-se com

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sua significação bem definida: ela a perderá, ela se esvaziará de toda significação desde que a apliquemos à totalidade das coisas" (P .M.-49). O intelecto realiza, na sua busca do absoluto, por assim dizer, uma abstração de segundo grau, partindo dos conceitos, que já eram abstrações da realidade múltipla, para o Conceito único, abstração dos próprios conceitos e forma do gênero conceitual. Como, para o entendimento, os conceitos expressam coisas, o Conceito expressa­ria a realidade no seu mais elevado sentido de unidade. Na medida em que o movimento especulativo da filosofia das formas perde o significado da distinção entre lógica e realidade, chega-se, do plano dos conceitos como existências lógicas ao plano do fundamento de todas as existências lógicas, a Existência em sentido puro, despida de todo significado determinado, até mesmo da extensão lógica deter­minada. A indeterminação lógica, no caso, é solidária da compreen­são abstrata, a única que pode abarcar a realidade em geral. O paro­xismo da abstração se mostra no fato de que a Forma das formas tem a generalidade como sua matéria.

O que Bergson está denunciando é que a necessidade de encon­trar o fundamento único do sistema da realidade põe em movimento o procedimento de abstração através do qual o sujeito acreditará atingir, ao cabo, um conhecimento direto, imediato e indemonstrá­vel do qual deriva todo o sistema. As características do fundamento, e o próprio fato de ter de haver um fundamento, são exigências da sistematicidade do conhecimento. Isto significa que é a sistematici­dade que determina logicamente a existência do fundamento. Deter­minar logicamente significa predeterminar pela forma. É o sistema enquanto forma que determina a existência do fundamento e as ca­racterísticas que ele deverá ter. Sendo formalmente determinado, o conhecimento imediato, primeiro e originário é posto a priori na sua necessidade: em termos bergsonianos, é nomeado como primeiro princípio. Dentre os vários nomes com que se designa o Absoluto, Bergson cita o Eu de Fichte. Isto significa que Bergson vê no movi­mento de reflexão fichtiano a busca do Conceito dos conceitos, no qual o entendimento repousaria e a partir do qual derivaria toda a realidade enquanto sistema conceitual. Mas é claro que a realidade enquanto sistema, se deriva de algo, só pode derivar de uma Reali­dade, primeira e fundamental. Ao pôr a necessidade lógica de um primeiro princípio para a realidade, o entendimento põe também a derivação, a emanação ou a explicitação da realidade como movi­mento lógico de distensão do devir: o princípio originário tem de ser

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3. PENSAMENTO E REFLEXIV1DADE

ao mesmo tempo lógico e real, já que ele será o fundamento do movimento e das realidades que surgem neste e por este movimen­to. Por isto para Bergson, o Eu de Fichte assim como os outros con­ceitos absolutos seriam "parentes próximos" da Idéia Platônica e Forma pura ou Deus aristotélico: a princípio contida inteiramente nele, a realidade como que se "derrama" dele. Este "derramar-se", entretanto, é a própria construção do discurso especulativo enquan­to gênese simbólica do real, pois a confusão entre lógica e realidade se duplica na confusão "natural ao espírito humano, entre uma idéia explicativa e um princípio agente" (P.M.-48).

Tal confusão se traduz na verdade num princípio que poderia ser assim formulado: se uma diversidade deve ser una, sua unidade só pode dever-se a um princípio que, enquanto único (ou seja, em si dotado de unidade). garanta a unidade da diversidade. Pois a unida­de que age como princípio unificador da multiplicidade é também a idéia (de unidade) que explica a multiplicidade enquanto unidade. A idéia na qual conhecemos a unidade é também a razão de ser da própria unidade, sobretudo se se tratar de unidade da multiplicida­de. Se a multiplicidade da realidade é expressa numa multiplicidade de proposições organizadas em sistema e ligadas pela mesma certe­za, esta certeza será o elo unificador que me fará dizer, por ex., que o conjunto de proposições diferentes constitui uma ciência. Mas para que todas e cada uma das proposições possuam a mesma certeza é preciso que uma delas, a primeira, originária e fundamental, possua a certeza que é comunicada às demais. Portanto, de uma proposição isolada só podemos dizer que é ciência se a ciência for constituída de uma única proposição. Mas em relação a várias proposições singu­lares que fazem parte de uma ciência enquanto sistema, só podemos dizer que são certas se cada uma deriva sua certeza, sua forma e sua posição de uma proposição, em si certa, que as determina em ter­mos de verdade, notadamente no que diz respeito à compatibilidade sistemática de cada uma com as demais. Portanto, embora Fichte possa dizer que "a essência da ciência consistiria (. .. ) na índole de seu conteúdo ( ... ) e a forma sistemática seria meramente contingen­te"!', ele pode afirmar também que "as proposições singulares, em geral, não chegam a ser ciência, mas s6 se tomam ciência no todo,

16. Fichte, G., sobre o Conceito de Doutrina-da-Ciência (1794), tradução Rubens Rodrigues Torres Filho, Abril Cultural, São Paulo, 1980 (coleção Pensadores), p. 11.

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO

por sua colocação no todo e sua relação com o todo"", desde que entendamos que o caráter de certeza científica não nasce da mera vinculação, mas da vinculação de todas as proposições a uma "pura e simplesmente certd'l'. A vinculação da proposição originária às de­mais se dá na forma de comunicação de certeza, certeza que a pri­meira proposição tira de si mesma, pois não está, neste sentido, vin­culada a nenhuma outra, ou seja, não está determinada por nenhu­ma outra no seu caráter de verdade, mas determina a todas as ou­tras. A determinação se dá de duas maneiras: a certeza em geral que o princípio comunica às demais proposições é o conteúdo interior do princípio; o modo como tal certeza é comunicada constitui a forma da ciência. Isso significa que o conteúdo do princípio é a certeza em geral, a mera comunicação de certeza. Como isso se realiza é a forma que a ciência toma na gênese progressiva e dedutiva de suas propo­sições. A certeza como conteúdo provém, pois, da forma da deriva­ção; a forma do sistema provém da própria dedutibilidade sistemá­tica, que inclui os requisitos de compatibilidade proposicionall9

• Já que conteúdo e forma do sistema provêm do princípio, o estabeleci­mento do princípio em seu caráter absoluto é condição do saber, entendido no mais elevado sentido formal, isto é, saber do saber. A condição epistemológica não diz respeito aqui às epistemologias regionais, mas à epistemologia geral, ao caráter absoluto do saber na sua forma absoluta, o que inclui até mesmo as formas lógicas do pensamento.

O princípio como condição incondicionada é, pois, o ponto de partida. Há dois aspectos a considerar em relação ao ponto de par­tida: o pensamento como fato da consciência empírica e aquilo que nele é pensado necessariamente, separado das determinações empí­ricas, ou seja, o que é refletido como pensado no pensamento. As­sim, por exemplo, A é A é uma proposição, aliás idêntica, da qual posso abstrair o ser como predicação, isto é, aquilo que em geral pode ser predicado de A, restando portanto a simples posição: se A é, então A é, não importando O quê seja A, nem mesmo se A efetiva­mente é, ou que haja algum A. Aquilo que Fichte chama de "pura e simplesmente certo", a proposição incondicionada, é a conexão ne­cessária que existe entre se e então, independente de qual seja, im-

17. Id., ibid .• p. 12. 18. Id., ibid., p. 12. 19. Id., ibid .• p. 14.

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3. PENSAMENTO E REFLEXIVIDADE

portando aqui a mera forma da conexão que, por ignorar em termos de conteúdo, chamo de X. Mas a conexão necessária é um juízo: A é A no juízo e pelo juízo; portanto no Eu que julga e pelo Eu que julga. Aqui, o juízo de conexão necessária afirma uma identidade de tal maneira que, pela conexão, afirmam-se os termos que a ela se refe­rem, A e A. Mas assim como o juízo está posto no Eu e pelo Eu, o Eu também está posto e pensa-se necessariamente como ponente na sua própria ação: a posição remete à reflexão. Conseqüentemente a proposição A é A envolve outra: Eu sou Eu. Mas A é, antes de mais nada e independentemente de qualquer outra determinação, porque foi posto no Eu e pelo Eu como termo do juízo de identidade, e só nesta medida é: apenas no, pelo e para o Eu. Como o juízo é de identidade, a posição de A como predicado decorre de ter sido A posto como sujeito. Nesta operação, há algo que o Eu sabe de si: a ação de pôr ou a atividade ponente; "sei necessariamente de meu pôr de que sou sujeito, portanto de mim mesmo, intuo reflexivamen­te a mim mesmo, sou para mim mesmo"". "É portanto fundamento de explicação de todos os fatos da consciência empírica que, antes de todo o pôr no Eu, é posto o próprio Eu'l." Esta posição é uma atividade reflexiva, isto é, o Eu põe-se a si mesmo e é isto que o faz ser; e ele é em virtude de se ter posto. É uma atividade pura: o Eu é "ao mesmo tempo agente e produto da ação; o ativo e aquilo que é produzido pela atividade"; essa coincidência não será encontrada em nenhum outro estado-de--ação. A identidade entre o sujeito for­mal da proposição e o predicado formal da proposição faz com que o Eu se ponha como sujeito absoluto, pois o Eu que põe e o Eu que é posto são um e o mesmo. Chegamos então àquilo que é pura, sim­ples e necessariamente. "O Eu põe originariamente, pura e simples­mente, seu próprio ser"." Isto significa também, o que decorre da identidade entre sujeito e predicado, que há necessariamente identidade entre sujeito e objeto na posição do Eu, o que Fichte exprime dizendo que o Eu é, sem mediação, sujeito-objeto.

Se o caráter absoluto do Eu se expressa na sua atividade, esta só pode ser absoluta. A produtividade absoluta exclui a heterogeneida­de entre idealidade e realidade; portanto, a realidade, ao menos do

20. Fichte, G., A Doutrina-fia-Ciência (l794), tradução Rubens R. Torres Filho, Abril Cultural, São Paulo, 1980 (coleção Pensadores), p. 45 - nota.

2!. Id .• ibid., p. 45. 22. Id .• ibid., p. 47.

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO

ponto de vista categorial, é efeito da produtividade do Eu; da sua atividade deriva a realidade. Isto significa que não há a mediação das condições de aplicabilidade. Assim se pode dizer que a realidade deriva do Eu na medida em que deriva da posição do Eu em, por e para si mesmo. A recusa da heterogeneidade afasta o problema da coisa em si na exata medida em que a produtividade absoluta exclui a concepção de objeto no sentido do realismo dogmático. Por outro lado, a intuição reflexiva de si não pode ser considerada exatamente uma reabilitação da intuição intelectual na medida em que o Eu que se põe a si na reflexão não se objetiva como representação da coisa em si, no sentido substancial ou mesmo lógico-formal. Os elementos que confluem no movimento reflexivo fichtiano são: a apercepção transcendental como presença imanente do Eu nas suas representa­ções; o Eu como intersecção causal e o Eu como liberdade, reunião do teórico e do prático; e o Eu como função de síntese entre o sensível e o inteligível no juízo reflexionante. O Eu como conhecimento da coisa em si não entra como elemento neste movimento de reflexão".

Se, em vez da proposição na qual é posta a identidade, anterior­mente formulada, enunciamos outra em que se põe a oposição (não­-A não é igual a AJ, igualmente indemonstrável, então encontramos, também pela reflexão, a atividade originária de opor, que na sua forma é incondicionada, mas que na sua matéria está condicionada por aquilo a que é contrária, a que se opõe. Matéria aqui deve ser entendida como meramente aquilo que está posto, de que de algu­ma maneira depende aquilo que está oposto. A identidade da cons­ciência deve ser pressuposta para que, à realidade de A (do Eu), se possa opor a negação de A (o não-Eu). O que está em jogo aqui é o contrário em geral num juízo de negação. Fichte fala da oposição entre representante e representado ("Assim que devo representar algo devo opô-lo ao representante""), mas é claro, pelo que precede, que não podemos entender oposição no sentido tradicional de heteroge­neidade entre sujeito e objeto. O que importa aqui é notar que a oposição entre representante e representado é uma regra transcen­dental, pela qual a contrariedade em geral aparece como condição imanente da atividade de opor, instância da qual deriva em particu­lar a negação como categoria e o princípio de oposição. Tal como na

23. A este respeito cf. Victor Delbos, De Kant aux Post-kantiens, Aubier, Paris, 1940, pp.9455.

24. Fichte, G., A Doutrina-da-Ciência (1794), trad. cit., p. 51.

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3. PENSAMENTO E REFLEXIVIDADE

proposição anterior, aqui se faz abstração de qualquer determinação do juízo, restando apenas a anterioridade do opor em sentido puro.

Acontece que a negação suprime a afirmação. Em conseqüência, a posição do não-Eu nega e suprime o Eu. Mas como é só no Eu que essa supressão pode se dar, na medida mesma em que se dá como oposição, o Eu estaria suprimido no interior de si mesmo. "O Eu não está posto no Eu, na medida em que nele está posto o não-Eu2S

." O oposto suprime o que estava posto, mas como a oposição é a posição da negação, é como se ele fosse oposto a si mesmo e se auto-supri­misse. Eu e não-Eu, ao serem postos e opostos, suprimem-se cada um a si mesmo, na medida em que se põem como contrários de si próprios. A identidade da consciência foi pressuposta em ambos os princípios, e a contraposição que agora se estabelece entre eles ameaça suprimir esta identidade. A tarefa que Fichte se propõe no estabelecimento do terceiro princípio é encontrar uma maneira de preservar os dois primeiros como resultados corretos do movimento reflexivo e manter a identidade da consciência. Ora, a consciência una é atividade e o Eu e o não-Eu são produtos de sua ação. São portanto a consciência enquanto autoprodução. Para compatibilizar a identidade da consciência com o Eu e o não-Eu enquanto produtos que tendem a se suprimir, temos de considerar que a supressão é uma limitação recíproca pela qual os produtos se suprimem em parte e se conservam em parte. Para que isso seja possível é preciso con­ceber tanto o Eu como o não-Eu como divisíveis, caso contrário não faria sentido falar-se em partes. Assim percebemos que, quando se pensou na oposição do não- Eu ao Eu, já se pensava implicitamente na limitação, caso contrário a oposição teria sido pura e simples­mente a supressão da consciência. A noção de limitar inclui, como que de direito, as de realidade e de negação. A consciência, conser­vando-se como tal e ao mesmo tempo exercendo a ação de opor, já limitava. Reencontramos assim a terceira categoria, dentre as que haviam sido enunciadas por Kant, a de limitação que, tal como as outras, não foi deduzida através do fio condutor da lógica geral, mas foi geneticamente estabelecida a partir da posição absoluta do Eu. A limitação recíproca do Eu e do não-Eu por meio do conceito de divisibilidade constitui a união das contraposições e assim a consci­ência se preserva na sua unidade. Isto se torna compreensível quan­do entendemos que a oposição pressupõe a identidade e a identida-

25. Id. Ibid., p. 52.

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO

de pressupõe a oposição: A é igual a B naquilo a que ambos se refe­rem enquanto iguais (razão de referência); A é oposto a B naquilo em que ambos se distinguem enquanto opostos (razão de distinção). Mas é claro que este raciocínio só vale para o que é divisível. Parte de A é igual a B porque parte de A e parte de B referem-se a um mesmo índice de igualdade; e parte de A distingue-se de parte de B na me­dida em que ambas estas partes referem-se a um índice de distinção. Por isso duas coisas que se limitam opõem-se parcialmente e parcial­mente mantêm a identidade. Assim posso falar em unidade da cons­ciência e ao mesmo tempo em oposição entre o Eu e o não-Eu, sig­nificando que a igualdade e a diferença fundam-se em razões, mas a unidade absoluta da consciência não é fundada. Temos portanto três princípios: o Eu absoluto, o Eu divisível e o não-Eu divisível, e Fichte pode finalmente formular: "Eu oponho, no Eu, ao Eu divisível, um não-Eu divisível". Aí se condensa tudo que "deve aparecer no siste­ma do espírito humano"".

Passar da representação fática do juízo à representação da fun­ção de ajuizar é pensar o pensamento. O juízo reflexionante pelo qual afirmo O ser da função de pensar (e com isto ponho-me a mim mesmo) é na verdade o único juízo puramente tético. Tudo o mais, como se viu, é juízo de reciprocidade, é composição de igualdade ou de diferença, numa palavra, é síntese, e, enquanto tal, deriva de uma antítese, ainda que implícita. A tese do Eu é o pensamento conscien­te de sua função, é a autoconsciência no seu aspecto verdadeiramen­te originário. Mas a autoconsciência é intuição reflexiva do Eu na sua anterioridade imediatamente absoluta. Quando passo da determina­ção da identidade proposicional à posição da identidade do Eu, dou um passo atrás em relação ao primeiro princípio lógico do pensa­mento e encontro assim o próprio pensamento como auto posição e fonte de toda determinação. Posso dizer que assim encontro o sujei­to? Sim, mas com a condição de não conferir a este sujeito nenhum atributo derivado de qualquer doutrina da objetividade. Se a subje­tividade for a contrapartida da objetividade, ela não será absoluta. Por isso o conhecimento imediato do Eu é formal, mas no sentido de funcional. Nesse aspecto, a busca do absoluto em Fichte não implica o abandono da ortodoxia kantiana. A tese da consciência é a tese da função do juízo, abstraídas todas as determinações, inclusive as ló­gicas. Por isto a afirmação do sujeito absoluto implicará a dissolução

26. Id .. ibid., p. 55.

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3. PENSAMENTO E REFLEXIVIDAOE

do sujeito no interior da objetividade. Não se trata apenas de separar o sujeito do objeto, mas sim de dissolver qualquer sujeito de objeto. É a dissolução dessa reciprocidade que Fichte julga ser a tarefa de uma filosofia crítica radica(27. Mas exatamente por condensar-se no Eu, nas formas explicitadas nos três princípios originários, a reflexão que estabelece o saber do saber exige a ancoragem no sujeito, ainda que não epistemologicamente determinado. Esse ponto constituirá uma das diferenças fundamentais entre Fichte e o romantismo, e ao mesmo tempo um dos pontos de partida da concepção romântica de reflexão.

Pode-se dizer que, para a leitura romântica (exemplificada em SchlegelJ, a conjunção entre a reflexão como atividade e o Eu posto como ponto focal da reflexão constitui uma ambigüidade. A questão do ponto de partida e a necessidade de encontrar uma ancoragem para a reflexividade fazem com que Fichte localize o conhecimento imediato na intuição do Eu absoluto. A reflexão realiza-se primeira, fundamental e originariamente na autoposição do Eu. Apesar de não ser uma existência no sentido positivo, o Eu é visto como positividade da função de pensar. Há uma interpenetração entre conhecimento imediato do Eu e pensamento reflexivo que faz com que o Eu assu­ma a posição formal de fundamento do sistema. Como O saber do saber é um sistema finito, tem de haver um princípio da própria formalidade do sistema, e este princípio é o sujeito formal. Mas este sujeito formal é o sujeito absoluto enquanto atividade. Por que a atividade da reflexão tem de ser também um princípio? A resposta, implícita na filosofia de Fichte, tem a ver com o caráter absoluto da consciência que é a reunião de lógica e realidade. A consciência não pode dissolver-se no processo reflexivo; em algum momento ela tem de ser efetiva. Esta efetividade pode ser entendida como uma limita­ção do Eu, e esta é uma função do não-Eu. A limitação faz com que o Eu se conheça finito na reflexão, caso contrário não haveria consciên­cia efetiva". Por isso o conhecimento imediato de si ou a consciência

27. Rubens Rodrigues Torres Filho, O Espirito e a Letra, Ática, São Paulo, 1975, p. 71. 28. Benjamim, W., "Le Concept de Critique Esthétique dans le Romantisme Allemand,

diz à p. 54: "Resumindo, digamos que a posição se limita e se determina pela repre­sentação, o Não-eu, a oposição. Em razão das oposições determinadas, a atividade de posição, que em si vai até o infinito. é finalmente reconduzida no Eu absoluto; e aí, onde ela se conjuga à reflexão. é capturada e fixada na representação do sujeito que representa" .

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III - INTUlçAO E EXPRESSA0

imediata de si significa: a consciência do pensamento não é anterior ao pensamento, nem acrescentada a ele, mas são indissociáveis. A intuição é a identidade entre pensamento-sujeito e pensamento­objeto. Mas os românticos, em especial Schlegel e Novalis, fixam-se na reflexão como atividade e processo, por assim dizer dissociando a função do princípio funcional. Afinal, para eles, o pensamento enquanto tal tem uma natureza reflexiva. Esta natureza reflexiva en­quanto processo do pensar aponta para a dimensão infinita do espí­rito. E tal dimensão deriva de que a reflexão, ato do espírito, é na verdade um processo infinito.

Para Fichte, a regressão ao infinito é a perda da efetividade da consciência. Para os românticos, o processo infinito não é visto como regressão mas como conexão no sentido de curso inacabável. Isto porque a regressão-progressão temporal não é vazia, mas justamen­te preenchida pela conexão de conteúdos pensados. Como cada con­teúdo implica a reflexão como presença a si do pensamento, todo pensamento é imediato, ao menos como pensamento de si. A imedia­tidade do sujeito é a imediatidade do pensamento". Mas é precisa­mente esta identificação que fará com que os românticos não acei­tem a posição do Eu como determinação ontológica originária. Pen­sar-se a si mesmo (como fenômeno) é ser (si mesmo) pura e simples­mente. O que os românticos procuram é relacionar a reflexão ao simples pensar, não ao Eu. A reflexão não é tese absoluta, interna a si, fundando o conhecimento imediato. Por isto, diferentemente de Fichte, para eles não é apenas o sujeito que pode ser objeto de intui­ção intelectual. Pôr o sujeito como produto da intuição intelectual é de alguma maneira fazer com que a intuição engendre seu objeto, quando o sujeito deve surgir a partir da função da reflexão como pura atividade. Não é por acaso que Walter Benjamim diz que o pensamento na intuição intelectual é "relativamente objetivo"30.

Mencionamos há pouco que o caráter finito da reflexão em Fichte (ao menos no que concerne ao saber teórico) deriva da necessária sistematicidade do saber do saber. Isto não deve nos levar a pensar que a reflexão infinita nos românticos esteja vinculada à ausência de qualquer ideal sistemático. Pelo contrário, a originalidade do roman-

29. ld" ibid., pp. 57·58. 30. "Fichte conhece, pois, apenas um caso de utilização fecunda da reflexão, o da

intuição intelectual. Aquilo que, na intuição intelectual, surge da função da reflexão é o Eu absoluto. uma atividade real" (Benjamim, W., ob. cit., p. 61).

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3. PENSAMENTO E REFLEXrVIDADE

tismo consiste na tentativa de compatibilizar reflexão infinita e siste­ma. Assim, a expressão fragmentária, em Schlegel, não significa au­sência de sistema, mas sistematização infinita. Pode-se mesmo dizer que existe uma identificação entre o caráter infinito - porque refle­xivo - de todo pensamento autêntico e o método fundamentalmen­te entendido como intuição intelectual que engendra sua própria forma. Mas o método e o sistema, se têm um ponto de partida, não possuem propriamente um ponto de chegada, e o sistema nunca se perfaz. Em Schlegel, O primeiro grau da reflexão é o sentido, o pen­sado no pensamento; o segundo grau é o pensar desse pensar, quan­do o pensamento torna-se matéria de si próprio. "O sentido que se vê a si mesmo torna-se espírito"." O pensamento do pensamento do pensamento é o terceiro grau da reflexão, obtido pela dissociação do segundo, a que Fichte havia chegado e que se pode chamar de "for· ma canônica da reflexão". A partir desse terceiro grau - e aí reside sua importância e o peso da originalidade da concepção romântica de reflexão - o movimento reflexivo verdadeiramente se abre para o infinito. Pois a dissociação pode ser repetida indefinidamente, e haverá tantos níveis de reflexão quantas dissociações forem opera­das. A dissociação infinita tem um sentido metódico, porque o que ela manifesta, na verdade, não é a separação mas a conexão dos conteúdos de pensamento num sistema infinito. Mas com isso o sujeito e a forma reflexiva não se dissolvem num processo por defi­nição inacabado? Aqui é preciso observar, como já o fizemos antes, que a regressão do pensamento não se dá numa temporalidade va­zia, mas sim como conexão de conteúdos. Além disso, em cada um dos pensamentos conectados a reflexão mostra a presença imediata do Eu, o que significa que em cada um a consciência é efetiva e o saber do pensamento é imediato. A dissociação também mostra o poder produtor do Eu num alcance sempre maior, de maneira que, ao contrário de uma dissolução, há uma crescente efetividade no sentido da realização absoluta da reflexão, ou da realização da refle­xão absoluta. É claro que toda reflexão se dá primeiramente como ação do Eu. Mas o Eu como origem da atividade reflexiva possui exatamente o mínimo de efetividade necessário para iniciar o pro­cesso: há que perfazer um caminho infinito e não permanecer na origem. Além dessa reflexão originária concebe-se portanto a refle­xão absoluta, que é diferente do Eu absoluto da reflexão no sentido

31. Schlegel, F., Atheneurn, frg. 339 (ed. Lacoue-LabartheJ,

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fichtiano. Esta reflexão absoluta conteria o máximo de realidade efe­tiva. Existe aqui a idéia de que a origem, se contém toda a realidade, só pode contê-Ia de forma condensada e até obscura. É o desenvol­vimento da reflexão absoluta que confere plena efetividade e clareza ao conteúdo de realidade. Embora o Eu seja o operador do conheci­mento, a intuição intelectual do Eu como autoconhecimento ime­diato não fixa o paradigma, muito menos a fonte de todo conheci­mento. Para Schlegel, a posição do Eu por si mesmo, ainda que como realidade funcional, seria em Fichte um resquício de realismo: o idea­lismo "subjetivo" se construiria a partir do realismo (da realidade) da subjetividade".

Não sendo mais a intuição do Eu o ponto privilegiado da refle­xão, e admitida a natureza reflexiva do pensamento, o imediato dei­xa de se vincular apenas à intuição e se relaciona, doravante, com o pensar. A reflexão como pensar imediato dá acesso ao absoluto. O absoluto se realiza e o sistema infinito é auto-reflexivo. O absoluto não é mais o princípio e fundamento do sistema da doutrina da ciên­cia, porque a imagem do mundo já não tem de ser o conjunto de representações do conhecimento positivo. O caráter absoluto do Eu não se afirma na medida em que ele se põe livremente para si. Tam­bém não precisamos entender que o absoluto transcende o Eu e aquilo que está posto diante dele (seja o "objeto", seja o não-Eu). Podemos considerar a subjetividade como absoluta, mas então aqui­lo que a nega, que a limita, tem de estar integrado nela, já que o sujeito é intimamente infinito. Por isto quando nos sentimos finitos é porque somos ainda parcialmente conscientes de nós mesmos. Aquilo que está diante do sujeito não o limita na sua infinitude, sim­plesmente está contraposto ao sujeito, nele e por ele. Neste sentido o objeto seria uma espécie de contra-sujeito numa acepção análoga ao contraponto na música. Assim como a razão de ser da polifonia é a unidade, e a construção da polifonia é a construção da totalidade que a sustenta, assim também a diferença entre o sujeito e o contra­-sujeito (Schlegel fala em contra-Eu) é a realização do absoluto como subjetividade". Observe-se também que é essencial que haja dife­rença; que haja, por ex., Eu e Mundo e que estas idéias se oponham na exata medida em que se entrereferem. Por ser conexão de diferen-

32, Benjamim, W., ob, cit., p, 64, 33. Id., ibid., p. 67. Cf. a explicação da tensão sujeit%bjeto em Fichte através da

análise da própria palavra Gegenstand (Gegen = contra) na nota que Rubens R. Torres Filho adicionou à sua tradução da Doutrina-ela-Ciência, ed. cit., p. 51 - nota 25.

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3. PENSAMENTO E REFLEXlV1DADE

tes conteúdos, a reflexão não é um eterno refletir-se do Eu, pois então somente seriam conectadas imagens de mesmo conteúdo.

A limitação deve ser entendida, parece, como uma modalidade de produção do Eu pela qual se constitui a diversidade a priori. A limitação seria, portanto, uma ação efetiva do Eu que deveria ser distinguida da posição fichtiana do não-Eu por ocorrer no curso da produção, ou seja na efetividade. Novalis não aceita a concepção fichtiana segundo a qual a consciência do prático deriva da produ­ção inconsciente do não-Eu pelo Eu. Schlegel por sua vez recusa-se a aceitar que a limitação seja como que o reflexo do Eu". Ambos só concebem a limitação na efetividade, como realidade da consciên­cia. O não-Eu, ou o contra-Eu como diz Schlegel, poderia então tal­vez ser concebido como uma formação reflexiva que a consciência produz ao longo do trajeto-movimento de reflexão. As intuições de­terminadas seriam interrupções voluntárias deste movimento.

A matéria do movimento de reflexão é a conexão contínua. Esta conexão evidentemente não é uma ligação material, mas ligação dos graus de manifestação da realidade na representação. Entre a ação do Eu representante e a representação existe também um movimen­to de ir e vir, que pode ser entendido como exteriorização e interio­rização, sempre no interior do universo de representação. O retorno a si é uma potencialização do Eu, a exteriorização é uma extração, no sentido em que se extrai de um número outro que o contém em potência. Ambos os termos devem ser entendidos por analogia com a matemática. Por isto a reflexão deve ser entendida, como o faz Novalis, como potencialização da subjetividade. Esta potencializa­ção é qualitativa, e portanto é a qualidade do Eu que confere reali­dade significativa a toda e qualquer idéia. "É preciso considerar a idéia do Eu ( ... ) como a luz interior de todas as idéias. As idéias não são mais do que imagens coloridas e repartidas desta luz interior. Em cada idéia o Eu é a luminosidade oculta, é em cada uma delas que nos encontramos; pensa-se sempre somente a si, ou pensa-se sem­pre o Eu ( ... )35." A consciência desta luz interna é a ação do espírito autopenetrando-se. É a única atividade que está à altura do espírito, a

34. "O Eu originário, que tudo esteja contido no Eu originário, é tudo; fora dele não há nada; não podemos conceber nada além da egoidade. A limitação não é simples­mente um temo reflexo do Eu, mas ao contrário um Eu real; de forma alguma um Não-eu, mas um Contra-eu, um Tu (Toi)" (Schlegel, F., citado por Walter Benjamim, oh. cit., p. 69).

35. SchIegel, F., citado por Walter Benjamim, ob. cit., p. 71.

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO

única que lhe é verdadeiramente própria. Por isso a reflexão infinita expressa a dimensão infinita do espírito.

A conseqüência de ser a reflexão concebida como ação infinita de um espírito tocado pela infinitude será o descentramento do ponto originário da reflexão. Não podendo mais haver uma identificação en­tre a forma do Eu e a forma da reflexão, pela infinitização de ambos enquanto atividade, o romantismo buscará entender a reflexão como a forma da ação infinita. O Eu, embora seja a origem consciente da refle­xão, não é mais o seu centro. A reflexão do Eu se dá no absoluto, pois o Eu como sujeito já não é mais O absoluto, embora o absoluto ainda continue sendo pensado no registro da subjetividade, mas de uma subjetividade amplificada e já quase com o sentido cósmico que assu­mirá em Schelling. De qualquer modo a forma do Eu já não pode ser a forma da síntese infinita. A criação como produção infinita será pensa­da a partir da forma artística e a arte será associada à reflexão, na medida em que é compreendida como mediação da conexão infinita.

Quando o Eu já não é mais visto como O princípio que contém em potência toda a realidade pensada no movimento de posição de suas sínteses originárias, quando a representação do absoluto é um processo de conexão infinita e a postergação necessária da síntese final entre finito e infinito, quando o reconhecimento do absoluto é uma identificação sintética que se faz sem nunca perfazer-se, pode­mos falar ainda em idealismo? Certamente, na medida em que a tra­jetória de identificação sintética entre finito e infinito é idealização, processo operado pela consciência. Mas exatamente por ser a idea­lização o processo pelo qual a consciência reconhece o absoluto, este processo não consiste apenas em exaurir o potencial do Eu, vis­to como condensação da realidade enquanto conteúdo interno. A interiorização é absolutização exatamente porque na interiorização o sujeito acede conscientemente ao absoluto enquanto auto-realiza­ção infinita no qual necessariamente ele já está. Por isto os român­ticos não aceitam a tese da subjetividade absoluta como posição. É nas coordenadas desta questão que tentaremos entender a opção bergso­niana pela interioridade como etapa metodológica de acesso ao ser. Isto nos abrirá a possibilidade de compreender a dimensão absoluta da subjetividade bergsoniana: a temporalidade consciente de si. A consci­ência como temporalidade que se desvela para si mesma já traz implí­cita a reflexão como imersão no Tempo em si, na realidade da tempo­ralidade, naquilo que Bento Prado Jr. chama "realismo da duração"36.

36. Prado Ir., B., ob. cit., p. 112.

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4. EXTERIORJDADE E APOR IA DA REFLEXÀO

4. EXTERIORIDADE E AFORIA DA REFLEXÃO

A descrição do ato livre em Données Immédiates leva também à constatação de que ele é raro. A coincidência do espírito consigo mesmo, a contração da interioridade, é rara porque significa a ativi­dade se produzindo no plano da duração pura. Ora, a gênese crítica da consciência do mundo mostrou que a possibilidade da ação sobre as coisas é a exteriorização do espírito que age num tempo espacia­lizado. Isto significa que a conexão das representações na consciên­cia empírica não se dá no plano da duração pura, mas é dependente de um quadro regido pelo apriorismo natural da inteligência, e que se constitui primeiramente no nível da percepção. Existe portanto um nível a que poderíamos denominar intencionalidade pragmática da consciência, em que o mundo se constitui como série de ocasiões de ações respostas subordinadas ao critério da eficácia. Bergson es­tudará este plano da consciência por meio de uma ficção metodoló­gica que é a exterioridade pura, ou a consciência considerada como idêntica à percepção instantânea, na qual existiria total coincidência entre o presente puro do objeto dado e a presença da consciência nele por inteira, ou seja, fora de si. Isto é uma ficção metodológica, por­que a consciência, por definição, nunca pode estar inteiramente fora de si. Mas esta ficção é necessária porque o que caracteriza a inten­cionalidade pragmática é a exteriorização, a representação como assunção deliberada dos contornos do mundo empírico. A radicali­dade deste realismo metodológico permitirá a elucidação da consci­ência empírica como limitação e discernimento, atividades respon­sáveis pela construção da relação pragmática com o mundo. Sem a elucidação do modo de se pôr da consciência natural não seria pos­sível focalizar adequadamente a atividade da consciência reflexiva no seu modo de pôr-se como presente a si mesma na dimensão da interioridade.

O primeiro capítulo de Matiere et Mémoire procura esclarecer esta modalidade de relação natural da consciência com as coisas que envolve necessariamente - e isto para nós é o mais importante - a relação natural da consciência consigo mesma. O realismo metodo­lógico permite considerar o problema da representação fora dos ter­mos em que ele está colocado por realistas e idealistas. Veremos mais adiante que é a formulação do problema, tanto da parte de realistas como da parte de idealistas, que o torna insolúvel. Para escapar à antinomia tradicional da representação, temos de considerar, ao menos provisoriamente, que a representação se dá a partir do cam-

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po das imagens, sem delas por enquanto buscarmos a gênese expli­cativa. É a partir deste sentido vago de imagem que se constitui pri­meiramente o mundo como multiplicidade presente à consciência. Mas o mundo da consciência empírica é um universo de solicitações: sendo a intencionalidade pragmática, a percepção é ao mesmo tem­po a escolha da ação possível. De forma que a objetividade se define num primeiro momento pela relação ativa entre a consciência e as imagens das coisas. Como o que se encontra nesta etapa é o estudo da percepção como relação, posso elucidar o mecanismo perceptivo, posso principalmente alcançar-lhe o sentido, sem antes ter de solu­cionar definitivamente o problema ontológico. A pressuposição da materialidade como substrato objetivo da atividade pode dar-se nes­te primeiro momento através da definição de matéria como conjun­to de imagens. "Chamo matéria o conjunto de imagens e percepção da matéria estas mesmas imagens relacionadas à ação possível de uma certa imagem determinada, meu corpo" (M.M.-l7). A organiza­ção das imagens supõe uma imagem central, meu corpo (mais pre­cisamente, meu cérebro), centro de ação e transmissor de movimen­to enquanto refletor de estímulos externos a partir dos quais se ope­ra o discernimento de reações que são os movimentos de interferên­cia nas imagens externas. Esta imagem central não possui outro pri­vilégio senão o da posição, solidária da qualidade de discernimento que lhe é própria. A consciência da ação, sendo primeiramente cons­ciência de ação possível, é sempre indeterminada, exceto nos casos em que a reação é automática. Esta indeterminação é elemento ca­racterístico da percepção consciente e não existe naqueles organis­mos nos quais perceber e agir estão imediatamente identificados. Como a imagem de mim mesmo enquanto centro de ação somente se destaca das demais pela posição que ocupa em relação a elas, não podemos fazê-la, enquanto tal, constituinte da representação. Por outro lado a relação ativa que a imagem-centro mantém com as demais que a circundam faz com que estas de alguma maneira afe­tem aquela, o que é condiçãO da possibilidade e da realidade da ação. Portanto temos de conceber dois sistemas, um em que as imagens são puramente imagens; outro em que elas possuem uma caracterís­tica que é a de afetar a consciência (imagem-centro) e provocar res­postas. "Ora, nenhuma doutrina filosófica contesta que as mesmas imagens possam fazer parte ao mesmo tempo de dois sistemas dis­tintos, um que pertence à ciência, e no qual cada imagem, estando relacionada apenas consigo mesma, guarda um valor absoluto, outro que é o mundo da consciência, e no qual todas as imagens se regram

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4. EXTERIORIDADE E APORIA DA REFLEXÃO

pela imagem central, nosso corpo, cujas variações elas seguem" (M.M.-21). Enquanto a filosofia pretender deduzir um sistema do outro, não conseguirá sair do interior da antinomia da representação.

É preciso abandonar o postulado comum ao realismo e ao idea­lismo, que é o interesse especulativo da percepção, ou a intenciona­lidade cognitiva da consciência empírica. Mantendo este postulado, jamais conseguiremos explicar por que o sistema independente de imagens, que "guarda valor absoluto", torna-se necessariamente objeto de uma determinada imagem, ou de uma imagem-sistema que se diferencia das outras apenas pela posição. Seria preciso atri­buir a esta posição um valor lógico que implicaria conferir à ima­gem-centro uma função constituinte. Se, por outro lado, insertamos a objetividade cognitiva no sistema da consciência teremos de nos haver com o problema da correspondência entre consciência e ciên­cia, no sentido dos dois sistemas de que falamos há pouco. Mas se consideramos que a consciência natural mantém com o mundo das imagens uma relação de atividade pragmática e não cognitiva, então reinserimos a relação no contexto natural da escolha consciente, isto é, hesitante e a princípio indeterminada, de respostas a estímulos externos em vista da melhor adaptação possível do organismo ao mundo circundante. "Em outros termos, o cérebro nos parece ser um instrumento de análise em relação ao movimento recebido e um instrumento de seleção relativamente ao movimento executado" (M.M.-26). Isto significa que não se pode dizer que o sistema nervo­so produza representação ou mesmo que esteja essencialmente liga­do a ela. O Essai já nos havia mostrado que movimentos moleculares não explicam as vivências psicológicas enquanto multiplicidade cons­ciente. O que nos está sendo mostrado agora é que a consciência representativa não deriva unicamente do movimento perceptivo entendido como o trajeto da imagem à imagem percebida e depois à imagem objeto de ação. Se considerarmos portanto a percepção em sentido estrito, não existe continuidade entre ela e a consciência em sentido próprio, pois a exterioridade não pode produzir a interio­ridade. As expressões consciência natural e consciência empírica, até aqui utilizadas, referiam-se exclusivamente à descrição da relação ativa entre organismo e meio. Como explicar portanto a representa­ção propriamente dita?

Dissemos, no início, que a percepção pura seria a coincidência instantânea e completa entre ser e ser percebido, o que daria a ima­gem na sua pura e simples presença, mas também na totalidade da

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sua presença instantânea, que na verdade nunca significa uma ima­gem, mas o complexo do sistema no qual a imagem está inserida. A determinaçâo perceptiva da imagem em si de direito seria a totalida­de da presença. Mas isto significaria a imagem determinando-se em si. A representação se distingue da presença por introduzir um outro nível ou uma outra modalidade de determinaçâo, aquela que pro­priamente pode ser entendida como negação. Entre a presença e a representação se introduz a atividade da consciência do mundo exte­rior que é o discernimento ou a seleção das imagens guiado pelo critério do interesse. Interessar-se pelo mundo exterior significa as­sumi-lo conscientemente nos seus aspectos interessantes e não na sua totalidade; significa negar todos os aspectos desprovidos de in­teresse, o que equivale a diminuir a percepção, que de direito seria do todo, mas que efetivamente é sempre parcial. Representar signi­fica limitar a presença. Não há portanto uma diferença de natureza entre representação e percepção, mas uma diferença de grau, ou se se quiser, de extensão do âmbito de relação entre o Eu e O Mundo. "Perceber todas as influências de todos os pontos de todos os corpos seria descer ao estado de objeto material. Perceber conscientemente consiste antes de tudo no discernimento prático" (M.M.-48). Mas dizer que a representação é a percepção diminuída não é o mesmo que dizer que a representação nasce da percepção, e que portanto a consciência nasce dos movimentos centrípeta e centrifugo pelos quais o cérebro registra o estímulo e aciona o mecanismo de ação sobre as coisas? É aqui que se mostra o valor da ficção metodológica da percep­ção pura, ou da pura consciência exterior. O mecanismo da percepção pura nos indica como seria a relação estímulo- resposta num instante intemporal. Mas este presente absolutamente fixo não existe e a presença é, na verdade, desenvolvimento temporal. Não existindo ima­gem absolutamente no presente e consciência absolutamente no pre­sente, a própria relação representativa se dá na temporalidade. E a atividade de discernimento, encontro dinãmico entre representante e representado, nega O presente ao recortar originariamente no mundo pré-consciente ou pré-representado o mundo da representa­ção no qual e pelo qual a consciência se faz consciência das coisas. Ao selecionar as imagens para constituir o mundo para-si a cons­ciência guarda implicitamente a dimensão reflexiva de sua atividade enquanto aporte subjetivo essencial à presença da exterioridade. Imagem entre imagens, ela em princípio só é consciência do objeto. Como esta intencionalidade é pragmática, ou seja, constitui a rela-

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4. EXTERIORIDADE E APORIA DA REFLEMO

ção externa, ela contém um aspecto de alienação". No entanto, a atividade de discernir já aponta para a espontaneidade, da qual só seremos inteiramente conscientes quando superarmos a nossa fini­tude instrumental. Assim, se é verdade que entre percepção e cons­ciência representativa a diferença é apenas de grau, é certo também que a atividade espontãnea abre para a consciência a possibilidade de mudar de direção e infletir a intencionalidade pragmática a tal ponto que esta atividade, na plena posse de si, dissolva-se enquanto visar à exterioridade, transformando-se em atividade reflexiva que encontrará na temporalidade subjetiva a realidade da duração. Mas para isto será preciso que a memória, enquanto aporte efetivo da subjetividade à constituição do mundo percebido, venha a aparecer, por assim dizer, como a dimensão objetiva da reflexão.

Por que dizemos que a memória, enquanto aporte subjetivo à percepção, seria a dimensão objetiva da reflexão? No plano da per­cepção pura, a memória cumpria um papel exterior: ela era o fio que ligava as diversas instantaneidades, o contínuo presentificar-se da consciência empírica nas coisas ou nas imagens exteriores à ima­gem-centro. A caracteristica de imagem, comum ao Eu e às coisas, permitiu equacionar o problema da representação sem que tivésse­mos de optar entre realismo e idealismo, na exata medida em que a percepção pura foi vista como a coincidência de direito entre o em si e o para si no plano das imagens. Vimos também que a represen­tação é a percepção diminuída ou as imagens "selecionadas". Esta seleção, este recorte que constitui efetivamente o mundo para a consciência, não é a negação pura e simplesmente quantitativa da totalidade do campo original das imagens. A negação é determina­ção porque é escolha e como tal envolve uma contribuição subjetiva da consciência que atua como critério para selecionar as ocasiões perceptivas nas quais esta contribuição se vai exercer. "É preciso levar em conta que a percepção acaba sendo apenas a ocasião de lem-

37. "É verdade que toda consciência se 'acha' empenhada no mundo, que ela se descobre em sua oposição a um mundo e que ela se faz contra a sua adversidade; enquanto consciência-no-mundo, ela é essencialmente a seleção e a estruturação da exterioridade, transformação da totalidade do ser-em-si em sistema instrumental, em mundo. Mas, este sair fora de si mesmo, que é o nascimento do mundo, implica uma alienação da consciência, que jamais abandona o projeto de uma reinteriorização total da exterioridade - a morte do mundo - onde a consciência, soberana, seria pura referência a si mesma, sem a mediação da referência ao objeto" (Prado Junior, 8.. ob. cit.. pp. 114·5).

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brar" (M.M.-68). Isto significa que a lembrança se mistura constan­temente com a percepção, podendo mesm'o haver uma substituição total da percepção pela lembrança. Por isto a percepção é represen­tação: nunca vemos o mundo pela primeira vez, sempre reconhece­mos as coisas e isto é condição do agir, na medida em que estabiliza a situação do sujeito que percebe. Mas exatamente por ser a percep­ção pura caracterizada pela atualidade e a lembrança pela inatuali­dade, existe uma diferença de natureza entre as duas. A lembrança é a representação do objeto ausente e esta ausência é feita da multipli­cidade das presenças pontuais do objeto na percepção. A lembrança não se relaciona com uma percepção mas com uma espécie de sín­tese a posteriori de diversas percepções. Dessa forma, a lembrança não é uma percepção mais fraca, ou uma impressão depositada nas circunvoluções cerebrais à espera de um estímulo que a reavive. A diferença entre lembrança e percepção pode também ser vista pelo lado da função: a lembrança (o passado) "é por essência aquilo que já não age", enquanto a percepção (presente) é "agente" (M.M.-71). Tal diferença de natureza é essencial para compreender a compati­bilidade sintética entre estes dois elementos na percepção real. A objetividade pura seria a eliminação da consciência como memória para que, na imagem instantânea, percepção e percebido coincidis­sem inteiramente. É a memória, aporte subjetivo à percepção, que permite visar ao objeto como tal, o sujeito destacando-se pela con­tração temporal que a consciência opera na conjunção percepção/ lembrança. A possibilidade da consciência do que não é presente revela a identidade mais íntima do Eu. Mas a consciência do que não é presente é consciência do passado, do que já foi presente. A pos­sibilidade da conjunção percepção/lembrança repousa justamente na continuidade entre passado e presente. Não é possível traçar uma linha nítida entre o passado e o presente, pois mesmo aquilo a que denominamos presente já envolve sempre seqüência temporal - a instantaneidade pura sendo apenas uma ficção. "( ... ) nossa vida in­terior é alguma coisa como uma frase única, começada no primeiro despertar da consciência, frase semeada de virgulas mas nunca cor­tada por pontos. E por conseqüência creio também que nosso pas­sado está totalmente aí, subconsciente - isto é, presente a nós de tal maneira que nossa consciência, para que ele se lhe revele, não tem necessidade de sair de si, nem de acrescentar a si mesma algo estra­nho: para aperceber-se distintamente de tudo o que ela contém, ou melhor, de tudo o que ela é, ela só tem de afastar um obstáculo, de levantar um véu" (E.S.-57). A consciência definida como memória,

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4. EXTERIORIDADE E APORIA DA REFLEXÃO

principalmente, e sua relação com a percepção revelam também a função da memória na percepção, mostrando a razão de ser da con­junção e o modo de operação da compatibilidade sintética de que falamos há pouco. A contribuição qualitativa da memória à percep­ção consiste na conscientização das lembranças que complementam a percepção, mas que o fazem de tal maneira que a ação esboçada na relação perceptiva se insira adequadamente no real. Assim como é sob o critério da eficácia que se dá a seleção das imagens, assim também a seleção das lembranças ocorre sob o signo da eficácia prática. O reconhecimento do mundo que a memória permite faz com que a conjunção percepção/lembrança se constitua como in­serção do Eu no mundo circundante, mantendo a atenção à vida e relegando as lembranças não "utilizáveis" ao inconsciente. O cére­bro tem portanto a função de "ocultar" a maior parte das lembranças e de deixar que venham à consciência aquelas que se relacionam praticamente com a inserção perceptiva no presente. O cérebro não "armazena" lembranças; ele apenas as libera funcionalmente, per­mitindo o ajustamento às situações exteriores.

Mas se abordamos a memória não pela sua função, mas por aquilo que ela é, em si mesma, podemos dizer que ela é a consciência na sua própria vida interna. É claro que a memória somente se veicula na atualidade de uma percepção. Mas a diferença de natureza que existe entre percepção e lembrança pode nos autorizar a pensar a memória no seu teor puro, tal como pensamos antes a ficção da percepção pura como exterioridade completa. A memória seria neste caso a interioridade em si, ou seja, a consciência propriamente dita. Se o que define a consciência na sua independência do mundo das imagens externas é a autonomia da interioridade, acedemos a esta dimensão autônoma da consciência através da memória. Em Berg­son a elucidação da memória é a prova experimental da autonomia do espírito. Assim se completa o trabalho iniciado no Essai sur les Données Immédiates: neste livro, a teoria das multiplicidades nos havia levado a conceber a multiplicidade qualitativa da consciência como o desenrolar temporal e criativo das vivências, o que culmina­va na constatação da indeterminação constitutiva do ato livre; em Matiere et Mémoire vemos a consciência na experiência espiritual de uma de suas funções essenciais, a memória, pela qual o espírito tem experiência de si. E é bem uma experiência, na medida em que já a atividade de discernimento no campo empírico das imagens anun­cia, enquanto atividade, a dimensão espontânea do espírito. A partir

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daí. quando chegamos a ver que a memória é condição ativa desse discernimento. constatamos a sua face interna e atingimos a pos­sibilidade interna de exteriorização de si no plano da atenção à vida. Isso significa que compreender a autonomia do espírito. recusar a concepção da consciência como fosforescência dos movimentos ce­rebrais. é ao mesmo tempo compreender o ponto e a modalidade de inserção do Eu na exterioridade. Assim se supera a antinomia da representação. na medida em que a lembrança não é percepção enfraquecida nem a percepção é a lembrança reavivada. Dado o campo de imagens. a consciência está em contato com ele através da estrutura mista. percepção/lembrança. cujos termos só de direito podem ser separados. "Mas o cérebro. justamente porque extrai da vida do espírito tudo o que ela tem de praticável em movimento e de materializável. justamente porque constitui assim o ponto de inser­ção do espírito na matéria. assegura a cada instante a adaptação do espírito às circunstâncias. mantém sem cessar o espírito em contato com as realidades" (E.S.-47).

Mas. se a vida consciente ultrapassa a vida cerebral. a vida cons­ciente ultrapassa também de alguma maneira a si própria. Focalize­mos um pouco o que poderia ser chamado de aporia da reflexão no pensamento de Bergson. Em que consiste propriamente a dimensão interna da consciência? Primeiramente. sem dúvida. nos conteúdos. pensamentos e sentimentos que constituem as vivências do Eu. ar­ticuladas entre si. Tomemos por exemplo as idéias que estão no es­pírito: elas se articulam entre si na exata medida em que a consci­ência se fixa em cada uma delas enquanto termos de uma articula­ção. Nesse sentido o pensamento é um discurso interior e. enquanto tal. escande o movimento do pensamento no seu contínuo vir-a-ser. "(".) as idéias correspondentes a cada uma das palavras (desse dis­curso interior) são simplesmente representações que surgiriam no espírito a cada instante do movimento do pensamento se o movi­mento se detivesse" (E.S.-45). A ação de escandir é algo que se aplica ao pensamento tendo em vista a necessidade de pontualizar idéias como formas mentais que possibilitam a articulação. Mas o movi­mento enquanto tal é anterior à articulação. é uma direção e não uma sucessão de pontos fixos. A idéia. tomada em si mesma e inde­pendente do seu conteúdo representativo. já é sempre metáfora do pensamento. na exata medida em que o discurso interior é metáfora do pensamento enquanto movimento. A consciência como que re­corta. a partir de sua dimensão mais profunda. segmentos de seu

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4. EXTERIORIDADE E APORIA DA REFLEXÃO

próprio movimento e os toma como partes fixas pelas quais a cons­ciência superficial (discursiva) organiza o pensamento como articu­lação. Isso já é um início de exteriorização. que se cumprirá plena­mente na relação ativa da consciência empírica com o mundo que a rodeia e que solicita ações. A alienação da consciência perceptiva nas imagens que a rodeiam tem sua condição de possibilidade no movimento de exteriorização da consciência em relação a si mesma. que se dá na passagem do Eu profundo ao Eu superficial. Portanto quando a consciência "reflete" sobre seus conteúdos ela não se en­contra verdadeiramente a si mesma. mas apenas a sua face que está voltada para as coisas ou para as imagens exteriores. Por isso disse­mos no início que a consciência natural relaciona-se consigo mesma enquanto natural. na medida em que a interioridade é condição de exterioridade. Mas ela é. se assim se pode dizer. uma pseudo-interio­ridade e não é. de nenhuma forma. a dimensão da reflexão profunda. Como o pensamento no seu estrato mais autêntico é movimento. direção. força. criação. o Eu. "essa coisa que transborda o corpo por todos os lados e que cria atos criando-se sempre de novo a si mes­ma" pode "tirar de si mesma mais do que contém. devolver mais do que recebe. dar mais do que tem" (E.S.-31). A razão daquilo que chamamos aporia da reflexão é a impossibilidade de o espírito cap­tar-se num momento. num primeiro momento. em qualquer de seus momentos. na medida em que qualquer "instante" já seria uma in­terrupção artificial no fluxo do pensamento. Mais do que isso. não há como pôr uma realidade que seja ao mesmo tempo atividade: mes­mo a identificação entre a atividade e o princípio de atividade já significaria congelar em algum momento uma continuidade que é em si e por si. Vimos que em Fichte existe uma posição absoluta do Eu absoluto e que nesse movimento a reflexão encontra seu próprio foco originário. na medida em que encontra a forma da reflexão. Mas a atividade. como bem notaram os românticos. é um princípio: o que significa. para Schlegel. algo como um realismo formal da subjetivi­dade. Em Bergson. no que concerne ao pensamento. qualquer fixa­ção de realidade é abstração do movimento. A reflexão só pode dar­-se. em conseqüência. nos termos do movimento do pensamento: coincidência da atividade consigo própria. Tal atividade difere do discernimento. que se dá no plano da consciência empírica. mas ao mesmo tempo a possibilita. pois é a memória. inscrita no movimen­to interior do espírito. que subsidia as escolhas de imagens presentes na conjunção percepção/lembrança. ou na percepção objetiva. Mas podemos conferir um significado preciso à expressão: coincidência

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da atividade consigo própria? Não podemos esquecer que esta ativi­dade é criadora; o espírito tira de si mais do que contém, o desenro­lar temporal é o advento do novo. É um movimento que está, portan­to, sempre adiante de si mesmo. A imprevisibilidade constituinte do desenrolar temporal faz com que não haja um cenário do pensamen­to. Como a criação é engendramento da forma pelo conteúdo, é como se a consciência se fizesse de novo a cada momento. Isto nos leva a um paradoxo intrínseco à aporia da reflexão: o contato da consciên­cia se fazendo consigo própria é o contato com algo que ainda não é. Na medida em que qualquer conteúdo é por princípio uma interrup­ção do movimento, como se pode falar mesmo de contato intuitivo na ausência de qualquer formação objetiva? Como posso falar de subjetividade se o sujeito profundo é sempre aquilo que está para ser? A analogia com a noção de projeto não nos parece caber nesse caso, na medida em que esta noção implica um movimento de lan­çar-se da subjetividade para o futuro a partir de uma situação que deve ser definida em parte pelo modo futuro do ser do sujeito. Ora, o movimento do pensamento enquanto ser (vir-a-ser) da consciên­cia não pode ser visto em Bergson a partir de uma situação, que só poderia ser uma fixação retrospectiva do sujeito em algum momento.

Esta dificuldade de pensar a subjetividade como movimento puro parece levar o movimento de dessubstancialização até a anulação de qualquer referência subjetiva, o que em princípio ameaçaria a pró­pria identidade do sujeito. Como a reflexão é a apreensão da identi­dade profunda da consciência consigo mesma, a ausência de auto­. referência poderia ser entendida como a dissolução da consciência. Não seria uma dissolução lógica, como no caso da regressão ao in­finito, mas uma dissolução ontológica: a perda da referência real. Vimos que em Schlegel, o movimento infinito de reflexão está de alguma forma articulado pela conexão infinita de conteúdos de pen­samento, com a consciência efetivamente presente em cada um deles. Numa linguagem bergsoniana, diríamos que o movimento de cone­xão é segundo relativamente aos conteúdos conectados. Para que o movimento fosse primeiramente dado, a conexão em si teria de pre­ceder como movimento real (e não como forma) os conteúdos conec­tados. Se entendermos tais conteúdos como determinações intuiti­vas da reflexão no seu movimento, teríamos de dizer que em Bergson existe uma relação problemática entre reflexão e indeterminação. Já vimos como a consciência, mesmo no seu nível empírico, é indeter­minação relativamente às ações-respostas ao estímulo das imagens

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4. EXTERIORIDADE E APORIA DA REFLEXÃO

circundantes. A consciência como pura interioridade seria a indeter­minação na sua máxima indeterminabilidade, se nos é permitida a expressão. Mas não podemos dizer que, no plano da indeterminabi­lidade máxima, a consciência, coincidindo consigo mesma, coincidi­ria com um absoluto. Se por um lado podemos afirmar que o método para atingir o espírito em sua autonomia foi a progressiva indetermi­nação da consciência, trajeto que nos fez regredir da finitude instru­mental da consciência-do-mundo para a dimensão da interioridade pura, por outro lado o que atingimos assim não foi um Eu-objeto, mas direção e movimento em sentido puro. O método portanto abre a dimensão da consciência, mas não apreende a subjetividade. Por isso é que se pode dizer que refletir é indeterminar. A indetermina­ção provém da abertura infinita da subjetividade. Em Schlegel a ques­tão aparece como a contradição inevitavelmente presente na relação entre consciência e infinito, que não é contradição entre sujeito e ob­jeto na medida em que na própria consciência existe o movimento de conexão infinita. "Aquele que tem o sentido do infinito e sabe onde quer chegar ( ... ) quando se exprime ( ... ) formula puras contradições38

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Em Bergson, a relação entre reflexão e indeterminação é que nos faz dizer, por ex., que a consciência é o que ela ainda não é. A determinação da subjetividade enquanto interioridade pura somente seria possível se pudéssemos unir intuição e conceito, como no projeto especulativo de Schlegel39 • Mas já vimos que mesmo como objeto de pura intui­ção a subjetividade não é apreensível.

Na verdade se poderia dizer que o assim chamado idealismo subjetivo parte de um realismo da subjetividade na medida em que considera o Eu ou como princípio de realidades ou como princípio de conhecimento de realidades. A exigência do ponto de partida absoluto conduz inevitavelmente ou à subjetividade absoluta ou à objetividade absoluta. É essa alternativa que Schlegel deseja evitar: a escolha entre Fichte e Spinoza. Esta escolha só pode ser evitada se, de alguma maneira, separamos o princípio da origem. O princípio pode ser entendido como o início da filosofia enquanto condição do saber: por isso o princípio tem de ser incondicionado. Mas a origem

38. SchlegeI. F., Atheneum, frg. 412 (ed. Lacoue~Labarthe). Claudio Ciando, Friedrich Schlegel, Crisi della Filosofia e Rivelazione, Mursia, Milão, 1984, assim comenta esta questão: "A contradição suprema. que gera todas as outras, é a contradição entre absoluto e finito ou, mais precisamente, entre a necessidade de pensar a unidade do absoluto e finito e a impossibilidade de detenniná-la numa fórmula adequada" (p. 95).

39. Ciancio, C., ob. cit., pp. 85-86.

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é, no limite, o ponto indiferenciado da reflexão que se constitui no seu próprio movimento. Schlegel fala em "ponto de indiferença" entre a consciência e o infinito. Assim concebida, a origem não é condição, e o problema do in condicionamento não se põe mais no início da filosofia. "Como início encontra-se não o incondicionado, mas o ori­ginário; ( ... ) não se trata de um ponto absoluto, um ovo do universo. A consciência do infinito é a raiz de todo saber. A consciência somen­te se pode pensar como infinita e o infinito somente como consciên­cia"." É o caráter infinito do saber filosófico que impede que ele se condense numa intuição intelectual imediata e totalizante; por isso o absoluto não é apreensível no sentido de ser objeto de uma intui­ção intelectual. Isto não nos impede de conceber a totalidade, desde que a concebamos como conexão infinita, como realização e não como o realizado. No texto citado acima, vimos que a consciência e o infinito se condicionam reciprocamente, mas o índice de tal reci­procidade é a infinitização como processo. Assim a filosofia começa sempre "no meio" porque a reflexão desde sempre já se move na totalidade cuja síntese é preciso elevar à consciência, embora mes­mo esta síntese já esteja implícita na totalidade concebida como re­ciprocidade entre consciência do infinito e infinito da consciência. A impossibilidade de determinar a forma infinita da filosofia é também a impossibilidade de determinar a forma da consciência do infinito. Em nenhuma das intuições reflexivas correspondentes aos diversos conteúdos conectados essa forma aparecerá, pois isso significaria identificar a forma absoluta do movimento reflexivo com um dado momento deste próprio movimento. A questão que se proporia aqui seria a da conciliação da in completude do sistema infinito com o caráter imediato da verdade (pensamento=intuição). O problema não tem solução porque ele constitui na verdade o conteúdo interno da relação entre a consciência e o infinito. Mas ele nos indica, por outro lado, que existe em Schlegel uma relação problemática entre o cará­ter dado da verdade e sua forma de realização. Esta realização é in­finita, mas a interminabilidade define a verdade. A dificil compatibi­lidade entre o dado e o processo, que aqui é exigida, deita raízes na dilaceração da consciência finita que é ao mesmo tempo revelação do absoluto, e é assim que o infinito está sempre adiante do movimento reflexivo que tenta compreendê-lo. Assim a consciência que supera

40. "( ... ) a dualidade de fato aspira a uma síntese, mais ainda, move-se já numa síntese, mas o terceiro termo não é dado ( ... )" (Ciancio, C., ob. cit., p. 86).

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4. EXTERIORIDADE E APORIA DA REFLEXÃO

o idealismo e o realismo, na medida em que se encontra no absoluto, vê-se aí sempre como dilacerada e, o acesso à verdade será sempre marcado pela insuficiência, pelo fato de que nunca haverá inteira consciência da síntese infinita. Mas isto também indica que o movi­mento reflexivo operado pela subjetividade tem caráter ontológico enquanto de direito é o movimento da auto-reflexividade do ser, do absoluto enquanto tal. A consciência está no absoluto e confunde-se com ele, mas nunca poderá ter dessa coincidência a plena posse intelectual, a "consciência". É próprio de uma cultura dilacerada re­presentar a totalidade sob a forma da particularidade, e a filosofia como expressão cultural não escapa dessa característica'l.

A indeterminabilidade do conteúdo da reflexão em Bergson tam­bém deriva da impossibilidade de captar o movimento como conteú­do; por isso o pensamento estará sempre adiante da consciência do pensamento. E, tal como em Schlegel, isto nos leva a considerar o problema da inserção ontológica da subjetividade. A impossibilidade de captar pela reflexão o movimento como conteúdo é a impossibi­lidade de captar o tempo como princípio no sentido de posição ab­soluta. O caráter absoluto do tempo só será autenticamente compre­endido se reunirmos as noções de absoluto e vir-a-ser. Mas o intelec­to só concebe o devir como absoluto identificando o devir com a totalidade do vir-a-ser, dada a princípio e de direito como completude ideal. O que a filosofia ganha ao isolar a subjetividade como interio­ridade pura é a libertação das injunções intelectuais do devir natu­ral, em que a natureza se apresenta como articulação e o pensamen­to da natureza como sistema articulado de representações conceituais. A autonomia da consciência dá a possibilidade de superar a finitude instrumental traduzida na lógica naturalista do saber pragmático. Tendo acesso direto a si mesma, a consciência tem acesso ao ser como temporalidade, constatado na experiência que a consciência tem de si enquanto memória e enquanto continuidade entre presen­te, passado e futuro. Mas identificar a consciência com a temporali­dade não significa isolá-la da natureza entendida como espaço ou justaposição. O isolamento da consciência é idealismo metodológico e a inserção ontológica da subjetividade corresponde à realização do movimento de acesso ao ser que se iniciou na dimensão interna da consciência. Indício dessa necessidade de realização é a impossibi­lidade de captar plenamente pela reflexão a região da subjetividade

41. Id .• ibid., pp. 98-99.

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO

enquanto instância específica e delimitada. Não pode haver idéia. nem mesmo (assim o cremos) intuição determinada da subjetivida­de porque o Eu realmente insere-se no todo. do qual a reflexão tenta separá-lo. mas num movimento inevitavelmente incompleto. A aporia da reflexão deriva de que o sentido do Eu é sua comunhão íntima com a totalidade enquanto tempo. mais precisamente enquanto duração. Justamente porque a realidade da consciência consiste em durar. ela não pode ser isolada da duração. É assim que a questão ontológica. no sentido de estrutura e gênese da realidade. se impõe na seqüência do tratamento da questão da subjetividade. sobretudo após o problema que denominamos aporia da reflexão. Como em Bergson a ontologia é teoria da vida. as relações entre as partes do todo ("consciência" e "natureza". se se mantiver esta separação) se constituirão a partir da compreensão da gênese da totalidade nas suas partes.

5. CONSCI~NCIA E MOVIMENTO DA INTERIORIDADE

Vimos que o movimento da reflexão no interior da subjetividade se revela necessariamente incompleto porque o próprio movimento do pensamento faz com que a consciência esteja sempre adiante de si mesma. Isto significa. de um lado. que sua realidade é o seu fluir; mas significa também que este fluir é um movimento em direção a um futuro aberto. cuja construção é. fundamentalmente. criação. Esta direção do movimento consciente seria a exterioridade? Estaria a rea­lização criadora da consciência fora de sua própria interioridade? Ora. já vimos que a exterioridade enquanto objeto de intencionalidade pragmática é o universo da ação. Este universo constituído pela ati­vidade de coordenação vital da percepção e da inteligência é um mundo em que a imagem externa e a interioridade da memória encontram-se como negatividades que produzem negatividades. a representação consciente sendo o recorte oriundo da subtração do presente e da subtração do passado. Não será. pois. no âmbito desta presença empobrecida que a consciência desenvolverá seu poder criador. Pelo contrário. o mundo prático se caracteriza pelo oculta­mento da totalidade. pela interrupção do fluxo do tempo. Mas no âmbito da subjetividade. por outro lado. embora possamos nele cons­tatar o movimento puro da temporalidade subjetiva. não encontra­mos um absoluto na plenitude de seu movimento realizador. pois o encontramos sempre como que aquém de si próprio. Que movimento

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5. CONSCIt:.NCIA E MOVIMENTO DA INTERJORIDADE

necessita. pois. a consciência realizar para. adiantando-se a si própria. encontrar não o mundo constituído. mas a realidade constitutiva do mundo e de si própria. algo que. para além da interioridade subjetiva e da exterioridade objetiva. se dê como O movimento total ou tempo­ralidade absoluta? Vê-se bem que aqui a noção tradicional de funda­mento em nada nos auxilia. Pois não se trata de abstrair a partir da presença subjetiva ou da presença objetiva para encontrar a origem de uma continuidade que ligasse o exterior e o interior - o que seria a construção intelectual de um presente contínuo -. mas de coincidir com um movimento verdadeiramente originário. que não se define pelas realidades que interliga. mas pelo seu próprio caráter movente. O tem­po não pode ser um movimento abstraído a partir das dimensões tem­poraís. mas estas são realidades contingentes que se desdobram no seu fluir. Portanto. se o absoluto é movimento. o movimento da consciên­cia apenas nos indica a sua índole. não nos revela a plenitude de sua realidade. É preciso então procurar no estofo constitutivo deste mo­vimento considerado na sua mais profunda generalidade originária aquilo que nos vai revelar o mais íntimo do seu teor qualitativo: a dimensão em que ser e razão de ser coincidem inteiramente.

Continuaremos aí no plano da reflexão. pois tal realidade. se puder ser conhecida. só o será imediatamente. Mas um conhecimen­to deste tipo somente terá um valor diferente do conhecimento dos princípios abstratos da filosofia tradicional se apresentar-se a nós rodeado de positividade. se possível dotado de positividade. Por isso o conhecimento do princípio não pode ser o princípio do conheci­mento. Dele nos aproximaremos. num movimento de concretização. de realização. em vez de partirmos dele como de uma idéia inflada de objetividade. Seguindo o método que prescreve a mediatidade do conhecimento imediato. é necessário primeiramente interrogar cri­ticamente o recorte da realidade que nos é dado pelo senso comum e pela ciência e. a partir daí. problematizar dados e resultados para que eles nos encaminhem ao princípio. Tal interrogação envolve antes de mais nada um questionamento do recorte da materialidade cien­tífica no nível da constituição da sua objetividade que repousa na identificação metodológica entre fisico-químico. biológico e psicoló­gico. A crítica dessa identificação metodológica nos permitirá sepa­rar os elementos que a compõem através da utilização do critério da temporalidade ou duração. A partir dessa dissociação entre o inerte e o vivo. que nesse estágio é uma dissociação também metodológica. criamos as condições para a reconstituição teórica do movimento

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interno da realidade na produção das formas de vida, que não seria apenas a remontagem externa da sucessão das formas, mas a com­preensão do movimento de formação, que não é outra coisa senão o trajeto da vida. O entendimento deste processo deverá nos encami­nhar para a compreensão do seu princípio como realidade geradora de realidades, fundamento dinâmico e imanente do devir, ou do ser como processo.

O que até aqui foi dito é suficiente para nos indicar que existe uma continuidade metodológica entre Données Immédiates, Matiere et Mémoiree Évolution Créatrice. No primeiro se mostrou que a mul­tiplicidade qualitativa da consciência deve ser entendida como inte­rioridade recíproca, interpenetração das dimensões temporais numa continuidade heterogênea, da qual o determinismo está excluído no nível da consciência profunda; no segundo a indeterminação ativa da consciência foi positivamente constatada através do estudo da memória que revelou os planos interligados da intensidade da cons­ciência, configurando a autonomia da interioridade e a efetividade da reflexão real, modo de acesso ao ser pela autoconsciência; a Evo­lução Criadora mostrará que o acesso ao ser pela interioridade é reflexão incompleta porque se, por um lado, a subjetividade é cons­ciência, por outro lado, ela é o modo subjetivo da "consciência em geral" (E.C.-187l que, do ponto de vista objetivo, é a chave para a compreensão da evolução como criação. Se a compreensão da pos­sibilidade da reflexão ou o entendimento da interioridade passam de certa forma pela "exterioridade", pela explicação do modo subjetivo de consciência como produto da história natural, isso ocorre porque a interioridade enquanto consciência humana é um modo de reali­zaçâo criadora do princípio interno do desenvolvimento formador da vida. Assim, a passagem de Matiere et Mémoire à Evolution Créatrice não é a expansão explicativa do princípio psicológico: é simplesmen­te a posição do âmbito da interioridade no círculo mais vasto do processo vital entendido como realização do espírito.

Retornemos ao questionamento do recorte material da objetivi­dade científica, que é a primeira etapa da compreensão dessa reali­zação. Procuramos esgotar o conhecimento dos sistemas materiais através da análise. Ou consideramos que o sistema e os elementos do sistema permanecem imutáveis, ou entendemos que, se há mu­dança, esta se dá por influência de força externa que provoca deslo­camento das partes, que em si mesmas permanecem imutáveis. Se as partes "aparentemente" mudam, buscamos nelas mesmas elemen-

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5. CONSClf.NClA E MOVIMENTO DA INTERIOR!DADE

tos ou partículas que se deslocariam explicando assim a mudança das aglutinações. Levamos a análise tão longe quanto for necessário para explicar a mudança através do que não muda. "Descemos as­sim até as moléculas de que são feitos os fragmentos, até os átomos constitutivos das moléculas, até os corpúsculos geradores dos áto­mos, até o 'imponderável' no qual o corpúsculo se formaria por sim­ples turbulência. Conduziremos enfim a divisão ou a análise tão lon­ge quanto necessário. Mas só nos deteremos diante do imutável" (E.C.-8). Queremos indicar que a imutabilidade e a sistematicidade por aglutinação são solidárias da reversibilidade do movimento. Pois se este consiste apenas no intercâmbio das partes, nada impede que as mesmas retornem - ainda que apenas teoricamente - às suas posições originais. Dessa maneira movimento e mudança tornam-se totalmente explicáveis pelo cálculo de posições, qualquer que seja o sentido que se dê ao movimento num sistema. Assim como o retorno a configurações anteriores é sempre possível, a previsão pelo cálculo de futuras configurações a partir das atuais é igualmente possível. Ora, o que caracteriza a passagem do tempo é a irreversibilidade; portanto o tempo está ausente da explicação dos sistemas materiais que a ciência isola no procedimento de objetivação. Ou, se se faz presente, é na forma de tempo abstrato, simples variável que me serve para referir, no cálculo, as posições relativas dos elementos entre si. As diversas configurações estariam vinculadas entre si pelas "simultaneidades" ou "correspondências" dos elementos submeti­dos à variável temporal. Podemos, além do mais, dividir o movimen­to temporal tanto quanto quisermos, intercalando "instantes" que seriam imutabilidades constitutivas da mudança, números abstratos num sistema de relações. O "curso do tempo" é considerado como uma linha que pode ser infinitamente divisível, o que resultaria num movimento feito de imobilidades como na aporia de Zenão.

Certamente continuamos a falar de sucessão mesmo em relação a sistemas materiais. Mas desta sucessão está ausente o movimento de passagem de um instante a outro, que é o tempo no seu teor específico, e consideramos apenas os pontos imóveis que são as re­ferências do movimento. Entretanto, mesmo o movimento no mun­do material é vivido, sob certo aspecto, como duração. Enquanto espero que o açúcar se dissolva na água (E.C.-9-10l, vivo o tempo da minha impaciência, o tempo da minha consciência "esperando", que não posso alongar ou encurtar, cujas "partes" não posso "relacionar" nem compor e decompor segundo a minha vontade: isto deveria me

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO

alertar para a identificação que existe entre o processo físico e a vi­vência do tempo, para a coincidência entre minha duração e a dura­ção das coisas que estaria como que apontando para o fato de que só artificialmente posso separar o açúcar, a água e a própria dissolução, já que tudo comunga na mesma temporalidade que seria a duração universal. Claro, as imagens externas que minha percepção recorta estão marcadas pela exterioridade recíproca e, do ponto de vista prag­mático, há um fundamento real para considerá-las isoladas ou isolá­veis. Mas, mesmo na esfera da materialidade externa, o isolamento nunca é completo: a própria ciência considera que todos os objetos estão submetidos a influências, que posso considerar ou negligenciar segundo a comodidade do recorte objetivo. Essas influências formam de direito uma rede de dependência recíproca que se estende à to­talidade do que posso abarcar. Se desconsiderarmos o recorte da percepção e a articulação da inteligência, o plano da intencionalida­de pragmática e o nível da objetividade exterior, teremos de admitir, ao menos como provável, uma "interação universal" em que a indi­vidualidade dos objetos seria como que reabsorvida (E.C.-H). Na verdade, a isolabilidade é uma "tendência" material que a ciência prolonga até as últimas conseqüências para que os objetos e os sis­temas de objetos possam ser tratados através dos procedimentos de articulação. Nos casos dos reinos vegetal e animal. o simples fenô­meno da reprodução, enquanto reconstituição de um novo organis­mo a partir de uma parte separada do outro, já nos indica que não existe individualidade total, mas que individuação e integração são duas tendências que convivem indissoluvelmente. Os fenômenos de regeneração, a dissociação dos organismos unicelulares são outros tantos exemplos de integração entre unidade e diversidade. Os cor­pos organizados são testemunhos constantes desta integração, da possibilidade natural do que é um tornar-se vários. Mas esse é ape­nas o caso-limite e, por assim dizer, quantitativo, da inseparabilidade entre individualidade e pluralidade. Se considerarmos cada organis­mo em si, veremos que a mudança, o envelhecimento, por ex., é sua caracteristica mais marcante, presente em todas as escalas da evolu­ção. Seja nas fases bem marcadas da vida dos animais superiores, seja no processo de esgotamento vital dos organismos inferiores, o que vemos é que tudo que vive é marcado pelo tempo: assim o são, na própria origem dos organismos, as células que os compõem. "Onde quer que alguma coisa viva, há, aberto em alguma parte, um registro em que o tempo se inscreve" (E.C.-16).

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5. CONSCI~NClA E MOVIMENTO DA INTERIORIDADE

A interrogação crítica do recorte cientifico nos mostra, portanto, que o mecanicismo inerente ao tratamento da realidade como con­junto de sistemas isolados e matematicamente rei acionáveis consti­tui uma forma de conhecimento que é ao mesmo tempo um oculta­mento do objeto, uma vez que despreza o fluxo temporal como a qualidade mais específica do ser vivo. Isto nos indica também que a vida é movimento que tem uma direção definida na sua generalida­de: crescimento, amadurecimento, envelhecimento, cuja direção aponta para uma duração que é uma síntese entre aquisição e con­servação, inexplicável em termos puramente mecânicos. "A evolução do ser vivo, como a do embrião, implica um registro contínuo da duração, uma persistência do passado no presente, e conseqüente­mente ao menos uma aparência de memória orgânica" (E.C.-19). O conhecimento do ser vivo requer algo mais do que a articulação sis­temática de elementos sobre os quais o tempo não incidiria; requer o conhecimento "do próprio intervalo da duração", da passagem do tempo, de uma atividade dependente da "memória orgânica". Mas isso não significa que a vida em geral possui atributos que dantes viramos como pertencentes à consciência?

A memória orgânica num organismo individual é o que assegura e possibilita a identidade "orgânica" através das mudanças que con­tinuamente se operam. A conservação do passado é condição da existência, da adaptação "criativa" ao presente, numa continuidade que a própria heterogeneidade das mudanças só faz afirmar. Se a mesma relação entre continuidade e heterogeneidade, cujo índice comum é a criação, puder ser constatada na evolução das espécies, então existirá uma base real para que a vida seja considerada como um movimento cujas formas de vida seriam as referências do proces­so, resultados sempre provisórios, instantes cristalizados de um flu­xo que se confunde com o próprio tempo da história natural. Se, mais do que isso, o movimento revelar na continuidade heterogênea de suas formas um princípio interno que é uma direção, então esta­remos também diante de algo como um movimento puro, de uma formação que não se esgota nas suas formas, de uma produção que se define pelo seu próprio processo, como uma finalidade sem terminalidade. A interrogação crítica dos fatos cientificos encontra na teoria lamarckiana do transformismo o terreno favorável para uma interpretação adequada dos dados. Na verdade o transformismo é uma espécie de idéia geradora implicitamente presente em toda clas­sificação natural. A organização dos seres vivos em grupos e subgru-

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO

pos sob o critério das semelhanças traz inevitavelmente o problema da origem das variações. Para uma filosofia da vida que pretende reconstituir. tanto quanto possível. o movimento de evolução e não apenas contentar-se com uma rearticulação das formas evoluídas. a variação significa sobretudo o movimento vital se transmitindo atra­vés das formas de vida. não no sentido de fixar-se total ou mesmo parcialmente em cada uma delas. mas utilizando-as como instru­mento de um processo inacabável. do qual são visíveis exatamente os aspectos menos importantes do ponto de vista da compreensão do princípio. que são os pontos de interrupção que nosso conheci­mento recorta na trajetória indivisível. "( .. .) a vida aparece como uma corrente que vai de gérmen a gérmen por intermédio de um organis­mo desenvolvido" (E.C-27). A transformação é a continuidade de uma evolução criadora cujo princípio é uma corrente de vida que atraves­sa a matéria ao mesmo tempo que a organiza em formas sempre novas e cada vez mais diferenciadas. cada vez mais mediatamente vinculadas com o meio. cada vez mais indeterminadas no que con­cerne ao espectro de possibilidades de ação vital". A interpretação das linhas de fatos biológicos nos encaminhou portanto para um princípio concreto. inferível a partir da experiência e da documenta­ção paleontológica. genética. embriológica e anatómica. Percebemos então que no domínio da evolução não é possível a reversibilidade dos elementos de um sistema. ou seja. que o tempo incide realmen­te. e não apenas como variável abstrata. na constituição progressiva das formas de vida que surgiram ao longo da evolução. Podemos agora identificar duas expressões: "consciência em gera\" e "vida em geral". pois a incomensurabilidade entre o antecedente e o que ele engendra revela a síntese criativa entre passado e presente que vi­mos caracterizar o fluxo consciente. Sempre podemos explicar uma nova forma de vida remontando às causas que a antecederam; nun­ca podemos. porém. prever que forma surgirá a partir do exame daquilo que a antecede. Isto significa que o presente traz o lastro do passado e ambos modalizam a inserção no futuro.

Assim uma teoria da evolução que seja analítica. como a de Spencer. só pode ser um conhecimento subsidiário da lógica da re­trospecção. A identificação do organismo e da filiação histórico-o r-

42. "Mas então não se poderá mais falar da vida em geral como de uma abstração, ou como de uma simples rubrica sob a qual inscrevemos todos os seres vivos" (E.c.-26).

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5. CONSCI~NCIA E MOVIMENTO DA INTERIORIDADE

gânica com os sistemas puramente materiais oculta o movimento e o princípio do movimento. Isto significa que o princípio de organi­zação ontológica do mundo da vida é de ordem interna como o psi­col6gico. A análise. que parte do todo para reconstituir as suas partes e a própria interação. atingirá apenas relações solidificadas e nunca a relação como movimento em ato. As formas que surgem ao longo do movimento da vida são vistas como causadas pelos seus antece­dentes apenas na retrospecção analítica; na verdade. constatado o movimento e a índole de seu princípio. vemos que a causa é sempre o próprio movimento. do qual as formas se derramam no trajeto. Tocamos aqui um dos pontos mais sutis da ontologia bergsoniana. As realidades criadas são menos que o movimento criador na medida em que nunca o esgotam. Assim como vimos que. no plano da cons­ciência. qualquer fixação de realidade seria abstração do movimen­to. também no que concerne ao movimento da vida - organização ontológica - os organismos são como que cristalizações residuais da realidade fundamental que é o movimento orgânico. Assim como o pensado é cristalização do pensamento. o organizado é cristaliza­ção do movimento organizador. A diferença entre a ciência e a filo­sofia é que a primeira toma o organizado como sistema de resulta­dos e abstrai o processo a partir deste resultado; a segunda vê na articulação dos organismos ao longo da história natural o símbolo ou o índice do movimento que traz em si o seu próprio princípio na medida em que a travessia da materíalidade é a realização do prin­cípio entendido como corrente de vida. As realidades visíveis têm valor de índice de uma realidade invisível na exata medida em que as cristalizações temporais são sedimentações que o tempo deixa na sua passagem. Que tipo de relação existe aqui entre a particularidade e a totalidade? "(. .. ) a 'vitalidade' é tangente em qualquer ponto às forças físicas e químicas; mas estes pontos não são mais, em suma, do que aspectos que o espírito se imagina em termos de interrup­ções em tais e tais momentos do movimento gerador da curva. Na realidade. a vida é feita de elementos físico-químicos tanto quanto uma curva é composta de linhas retas" (E.C.-311. Se considerarmos que a evolução se explica pelos organismos resultantes nos vários momentos da história natural (por ex., pelos organismos "adapta­dos" ao meio que aparecem nas várias fases da evolução). estaremos considerando a evolução como a justaposição sucessiva dos seus resultados parciais que. "somados". permitiriam uma visão da traje­tória da vida. Esta soma de particularidades não é ilusória: é precisa­mente a soma das realidades derivadas do movimento real. Mas as-

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III - INTUlÇAQ E EXPRESSA0

sim não apreendemos a totalidade, que se oculta na articulação re­trospectiva. Tampouco apreendemos a qualidade interna da totali­dade: por que há sucessão de organismos adaptados? Por que a vida não se deu por realizada com a adaptação de um organismo primi­tivo ao seu meio, e prosseguiu realizando outros tipos de "adapta­ção"? Estas duas questões nos indicam que a totalidade, de alguma maneira, transcende seus ensaios de realização. Transcendernão deve ser aqui entendido no sentido de separação absoluta entre movi­mento e resultados do movimento, mas de uma direção produtora que, enquanto tal, atravessa suas próprias produções como se rumasse para algo além de qualquer resultado. O movimento, embora inter­no, isto é, produtor efetivo de realidades (pois as engendra), como que se serve do que faz para fazer. Vê-se bem que a finalidade extrínseca não seria aqui uma categoria adequada, pois apenas subs­tituiria a lógica da retrospecção pela da prospecção. Na verdade não há uma lógica desta produção, pois não há previsibilidade na filiação orgânica. Em conseqüência, não há totalidade dada, mas movimento totalizador como processo aberto. A relação entre particularidade e totalidade se dá como relação entre movimento produtor e produ­tos. Nunca um produto, ou a soma de todos os produtos conhecidos, equivalerá à realidade do movimento produtor. Por isso também a "vida em geral" identifica-se com "consciência em geral": assim como o pensamento enquanto movimento está sempre adiante da "cons­ciência do pensamento" (identificação do pensado) assim também o movimento criador de formas está sempre adiante da forma jd cria­da (o ensaio da vida que identificamos com o "adaptado"). Não há assim como recuperar pelo pensamento a totalidade realizada, na medida mesmo em que ela se define como realização. Mas aqui de­sentranhamos a totalidade de sua imbricação na materialidade orgã­nica, como antes haviamos dissociado o próprio orgânico da distensão material ou inerte na qual a ciência o considera. Isto significa que encontramos, através de um caminho concreto, o princípio dinâmi­co da realidade, e seu caráter dinâmico corresponde àquilo que an­tes previramos como a coincidência entre ser e razão de ser: o ser, como princípio, é aquilo que faz com que a realidade seja, ou me­lhor, venha a ser. O ser, o princípio ou a razâo de ser .são iguais ao absoluto como movimento ou ao movimento como absoluto. Seria possível coincidir ainda mais concretamente com esta descoberta?

"Visivelmente, uma força trabalha diante de nós, que busca libe­rar-se de seus entraves e também superar-se a si mesma, a dar primei-

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5. CONSCI~NCIA E MOVIMENTO DA INTERIORIDADE

ramente tudo o que tem e em seguida mais do que tem: como definir de outra maneira o espírito?" (E.S.-2l). Em Matiere et Mémoire, Berg­son havia considerado que" deduzir a consciência seria um empre­endimento bem ousado" (M.M.-31), felizmente nâo necessário uma vez que o campo de imagens já me dá a consciência como imagem­-centro. No plano da ontogênese, nâo se trata tampouco de concluir, a partir do sistema natural como um todo, um possível espírito que o habitasse. Na verdade é ainda a interpretação critica dos fatos bio­lógicos que revela a vida como consciência em ato. Uma parte dos darwinianos entende que as causas da variação estão no individuo desde o seu nascimento e não são adquiridas no curso de sua vida. Como e por que tais causas já fazem parte do próprio germe? A Bio­logia atribui a fatores acidentais as diferenças que se transformarão em variações. "Não podemos impedir-nos de crer que elas são o desenvolvimento de um impulso que passa de germe a germe atra­vés dos individuas, que não são conseqüentemente puros acidentes" (E.C.-86). Não sendo a variação apenas acidental, existe uma deter­minação, que não precisa ser entendida no sentido de uma pré-for­mação de todas as características de um organismo em todas as características do organismo que o antecede. Já vimos que as causas das transformações das formas de vida não são fundamentalmente os elementos físico-químicos presentes nos diferentes momentos da evolução, mas o próprio movimento de transformação. Assim, a determinação significaria aqui a presença de uma causa eficiente, mas não no nível da materialidade orgânica e sim no nível do "im­pulso" que é o motor da transformação. Este impulso pode também ser visto como o esforço no sentido de que a formação seja sempre uma transformação. Bergson louva nos neolamarckianos a intenção de procurar no processo de transformação uma causa de ordem psicológica, embora restrita ao individuo. Entretanto o esforço, atri­buído ao organismo individual, não tem o alcance explicativo neces­sário para dar conta do processo natural de variação como um todo. Devemos pensar num "esforço muito mais profundo do que o esfor­ço individual, muito mais independente das circunstâncias, comum à maior parte dos representantes de uma mesma espécie, inerente muito mais aos germes que trazem em si do que à sua própria subs­tância e que tenha assim assegurada a sua transmissão aos descen­dentes" (E.C.-88). O impulso interno ao movimento de constituição dos seres faz com que a ontologia não seja um quadro de simultanei­dades desdobrado diante de nosso olhar teórico, mas a dinâmica viva da formação natural, movimento que é também totalidade ab-

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III - I NTU1<;Aa E EXPRESSÃO

soluta. A origem é também a presença originariamente constante: por isto o princípio é visível no esforço intrínseco de transformação que é a índole profunda da realidade viva. O esforço significa que o movimento formador está sempre adiante de todas as formas que encerram a vida, pois é esta na sua efetividade que cria as formas nas quais se apresenta. Na criação a forma não preexiste: é o impulso de ser que cria as formas de ser, em atos indivisíveis. Esta visão que os dados da biologia filosoficamente interpretados proporciona é a vi­são do espírito em ato: o princípio é o espírito, nomeado como esfor­ço, impulso ou élan vital. Mas exatamente por termos acedido a ele concretamente, por termos transposto as mediações positivas que nos separavam do imediato, vemos também que o espírito é o agir da temporalidade, ação do tempo, ação de durar, duração. Com isso se esclarece a natureza psicológica da causa que é o agente ontoló­gico fundamental. A imutabilidade é a raiz de todas as ilusões meta­físicas porque é a hipóstase do Nada. O que nada faz nada é. Se há um absoluto, ele só pode ser agente. A totalidade portanto é ação. Diferentemente da ação da consciência empírica que age por nega­ção' o absoluto age positivamente, por criação. A ação absoluta é criação. Quando nos vimos diante da incompletude da reflexão da consciência subjetiva, e no entanto já com acesso ao ser, isto ocorria porque a subjetividade como interioridade truncava o ser ao refletir­-se subjetivamente. Dessa forma, a intuição de si só aparece subje­tivamente como anseio de plenitude. Como a consciência é mais ampla do que a subjetividade, a reflexão somente se realiza plena­mente quando o movimento reflexivo atinge a consciência em geral através da experiência da temporalidade subjetiva. Mas essa expe­riência deve amplificar-se como consciência da temporalidade abso­luta, intuição como coincidência com o absoluto, reabsorção da parte no Todo. Por isso a reflexão se realiza na intuição e Bergson pode dizer que toda intuição é reflexão.

Assim se vê que o conhecimento filosófico tem um objeto, que este objeto é a temporalidade absoluta, que não há diferença essen­cial entre temporalidade subjetiva e temporalidade objetiva, uma vez que a filosofia da vida repôs a consciência no movimento da consci­ência em geral, a interioridade ou a espiritualidade" no impulso de criação que é o espírito, e finalmente que o sujeito somente coincide verdadeiramente consigo mesmo quando coincide com o absoluto, não porque a subjetividade seja o absoluto, mas porque o sentido da consciência subjetiva encontra-se em sua inserção na consciência

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6. A CISÃO DA TOTALIDADE: DIFERENÇA E VJRTUALlDADE

em geral. Isso significa que a separação entre interioridade e exterio­ridade é de alguma maneira superada: ela sempre foi, de resto, ape­nas metodológica. Mas a reverberação ontológica da subjetividade revela agora plenamente que conhecimento e autoconhecimento são contato, intuição definida como simpatia. Para que intuição e abso­luto venham então a se revelar plenamente na reciprocidade interna que os caracteriza, é preciso que, a partir da estreita conjugação entre teoria do conhecimento e teoria da vida (ontologia), seja reposta a questão da intuição como possibilidade de conhecimento imediato, pois a visão da possibilidade do conhecimento intuitivo é solidária de um movimento de retorno do sujeito sobre si: e o caráter meta­físico desse reencontro de um procedimento cognitivo está em que, assim fazendo, ou seja, retornando a si ou sobre si, o homem dá as costas à sua finitude instrumental.

6. A CISÃO DA TOTALIDADE: DIFERENÇA E VIRTUALIDADE

É, entretanto, a circularidade entre teoria do conhecimento e teoria da vida que impede que a questão da intuição seja posta dire­tamente, sobretudo no sentido em que teriamos de fazê-lo aqui, ou seja, conjugada com a reflexão. A historiai idade da ontologia enquanto história natural exige que os problemas de conhecimento sejam tra­tados, tais como todos os outros, a partir de uma perspectiva gené­tica. Assim como a compreensão da vida é inseparável da compreen­são do processo vital, os procedimentos cognitivos também só po­dem ser plenamente esclarecidos na dimensão de sua constituição. Eis por que uma crítica estrutural do conhecimento, tal como a kan­tiana, padece de um vicio fundamental: está condenada a circular entre o dado e o resultado, já que se dá uma totalidade estruturada a priori para explicar. Se a intuição é procedimento cognitivo através do qual pretendemos ter acesso à dimensão da reflexão real, será preciso que a intuição seja abordada na sua gênese histórico-natural. É exatamente aí, no entanto, que se situa o problema que nos impe­de de abordá-la diretamente. Pois o conhecimento humano cujo modo nos é primeiramente acessível não é a intuição e sim a inteli­gência, uma vez que ela é a realização intelectual da intencionalida­de pragmática da consciência. No nível da realidade aparente, o conhecimento intelectual aparece como único dotado de positividade, realização perfeita do acordo entre a intenção pragmática do sujeito

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO

e as virtualidades de ação do objeto. A inteligência aparece para uma filosofia da vida que adota a perspectiva evolucionista como um re­sultado para o qual tendeu o processo interativo entre consciência e materialidade. A inteligência é modo de consciência: para apreendê­-lo na sua especificidade constitutiva é preciso retomar o trajeto da consciência em geral e segui-lo até o ponto de constituição da rela­ção inteligente com o mundo como função. Mas esta retomada é inseparável da consideração de outra vertente de constituição de relação com o mundo, pois as relações de reciprocidade entre as duas tendências e a consideração das relações entre os dois proces­sos é o que nos fornecerá a visão total do processo evolutivo no as­pecto da constituição de conhecimento e a possível imbricação ori­ginária que o élan vital nos mostrou ter existido no movimento ini­cial de constituição da vida em suas diferentes formas. O exame da evolução da vida mostra que, dentre as múltiplas direções em que se repartiu o movimento inicial, duas representam para nós aquelas em que a vida teria atingido, em maior grau, suas "finalidades": instinto e inteligência. Retomar a gênese destas duas vertentes evolutivas, comparando-as no decorrer de suas trajetórias e no resultado "final" que cada uma apresenta, deverá nos encaminhar para dois objetivos: primeiro, a diferenciação destes dois movimentos e a constatação das respectivas caracteristicas específicas; segundo, como os dois mo­vimentos são já resultado de uma possível cisão do movimento único que deu início à trajetória da vida, compará-los naquilo que guar­dam de comum, considerando o aporte relativo de cada um deles à relação com o mundo - o tipo de conhecimento que cada um propor­ciona - considerando também as relações que mantêm com a ori­gem comum. O que se impõe é um estudo da gênese do processo adaptativo das formas de vida caracterizadas, de um lado, pelo aper­feiçoamento progressivo do instinto, e de outro, pela constituição gradual da inteligência como modo de inserção na realidade. So­mente a partir da consideração genética poderemos visualizar corre­tamente a estrutura da relação com a totalidade presente no instinto e na inteligência - bem como as razões, na ordem do processo ontológico, que determinam o perfil das duas estruturas43•

43. "É a consciência da gênese que, ainda uma vez, permite a consciência da estru­tura. A estrutura da consciência só é compreensível à luz da gênese da consciência. A crítica da filosofia tradicional consiste justamente em deslocar a perspectiva crítica de sua faSCinação pela estrutura, de fazê-la voltar-se para a gênese, iluminando retros­pectivamente a própria estrutura" (Prado Júnior, 8., ob. cit., p. 173).

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6. A CISÃO DA TOTALIDADE: DIFERENÇA E VIRTUALlDADE

O capítulo II de Évolution Créatrice gira em torno de relações de complementaridade, oposição e de correspondência, cujo esclareci­mento nos indica" as direções da evolução". Depois de verificar como as relações se estruturam entre os reinos vegetal e animal, Bergson examinará os mesmos tipos de relação no reino animal, dividido entre os processos de consolidação do instinto e do despertar progressivo da inteligência. O exame de tais relações se dá a partir de um resul­tado obtido na primeira parte do texto: mostrou-se que vida vegetal, vida instintiva e vida inteligente não estão entre si numa relação li­near de sucessão ou progresso, mas como três linhas de evolução divergentes que se constituíram paralelamente como ramificações de um movimento inicial". A origem comum nos alerta para a im­propriedade de uma pesquisa que visasse à diferença absoluta ou ao encontro do instinto e da inteligência em estado puro. Cada um deles guarda algo do outro na forma de virtualidades presentes na origem comum e depois ocultadas pelo próprio desenvolvimento dos pro­cessos separados. O próprio caráter de processo da evolução nos obriga a considerá-los muito mais como tendências, antes interpenetradas, depois separadas, do que como coisas. Tais tendências representam o desenvolvimento bipartido da consciência em geral: já vimos que a ontologia é o desvelamento do princípio de ordem psicológica que comanda o processo vital, e é exatamente no plano dessa consciên­cia considerada na sua escala cósmica que pretendemos encontrar elementos para a solução da aporia da reflexão. Isso nos leva a dizer que a filosofia bergsoniana é, na sua totalidade, uma filosofia da cons­ciência, embora não seja uma filosofia da subjetividade. A identidade entre consciência e vida nos mostrou que o princípio explicativo e o princípio agente no plano ontológico é a consciência ou espírito. Isso nos permitiu compreender, por assim dizer, a forma da ontologia; tra­ta-se agora de compreender a gênese dos modos de consciência, que são também as formas de autototalização do espírito". É claro que a

44. "O erro capital, aquele que, transmitido desde Aristóteles, viciou a maior parte das filosofias da natureza, consiste em ver na vida vegetativa, na vida instintiva e na racional três graus sucessivos de uma mesma tendência que se desenvolve, quando são três direções divergentes de uma atividade que se cindiu ao se expandir. A dife­rença entre elas não é de intensidade nem, de maneira mais geral, de grau, mas sim de natureza" (E.C.-136).

45. "(. .. ) tanto em razão de seu percurso quanto por causa de suas teses fundamen­tais, a filosofia bergsoniana é plenamente uma filosofia da consciência ( ... )" (Theau, J., ob. cit., p. 397). Esta "filosofia da consciência" aborda, antes de mais nada, na lógica da sua constituição, a Consciência em geral e não a consciência subjetiva.

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III - INTUlçAQ E EXPRESSÀO

gênese da inteligência será estabelecida primeiramente no plano da interação entre intenção pragmática e materialidade, de alguma ma­neira através das obras da inteligência, que é fundamentalmente fabricadora; se isto significa abordar a inteligência pelo exterior, não é menos verdade que é neste plano que nos será permitido considerá­-la plenamente em sua função, elemento diferenciador por excelên­cia. Com efeito, na função fabricadora da inteligência, e na flexibili­dade e na instrumentalidade indefinida que caracterizam esta fun­ção é que encontraremos a propriedade que distingue inteligência de instinto. O instinto se caracteriza também pela instrumentalida­de, mas não pela fabricação de instrumentos. A relação instrumen­tal, no plano instintivo, se dá a partir de instrumentos que a natureza fixou de forma permanente no próprio corpo do animal e que so­mente variam com a variação da espécie. O animal tem uma relação interna com sua instrumentalidade. No caso do homem, a inteligên­cia permite a fabricação de instrumentos na escala de uma variação indefinida, o que caracteriza uma relação externa com a instrumen­talidade, bem como a separação entre a forma e a matéria do instru­mento. É o sentido em que a atividade de fabricação define a inteli­gência: "Definitivamente, a inteligência, considerada naquilo que pa­rece ser seu procedimento original, é a faculdade de fabricar objetos artificiais, em particular instrumentos para fazer instrumentos, e va­riar indefinidamente essa fabricação " (E.C.-140). Quando falamos de relação interna do animal com a instrumentalidade, no plano instin­tivo, queríamos dizer relação orgãnica: o instinto é prolongamento natural do organismo e aí está a causa de sua relação natural com o meio. No caso do instinto, não é preciso que haja descontinuidade entre representação e ação, pois a consciência se prolonga natural­mente na ação. No caso da atividade inteligente, a representação da forma do instrumento precede a sua fabricação, o que aparece na escolha variada da matéria sobre a qual se aplicará a forma. Há por­tanto uma descontinuidade entre representação e ação, que se torna tanto mais aparente quanto maior a latitude de escolha dos procedi­mentos instrumentais. A separação entre forma e matéria, que des­caracteriza a relação orgânica, e a indefinição original da forma con­creta do instrumento tornam a instrumentalidade inteligente abstra­ta, abstração que provém de sua generalidade: a extrema variação possível dos meios faz com que a inteligência seja faculdade de fabri­car em geral, o que possibilita não só a diversificação como também o aperfeiçoamento. O instinto, por manter com a ação uma relação orgânica, caracteriza-se pela função definida, especializada e in variá-

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6. A C1SAo DA TOTALIDADE: DIFERENÇA E VIRTUALlDADE

vel, da qual está ausente a possibilidade de aperfeiçoamento. A ins­trumentalidade instintiva, por ser fixa, é também perfeita em seu gênero, o que significa totalmente determinada (determinação recí­proca entre meio e finalidade). Um instrumento serve a uma ação, e serve perfeitamente. Podemos dizer então que o que caracteriza a relação instrumental no plano da inteligência é a indeterminação. Indeterminação, já vimos, significa escolha e hesitação: a instrumen­talidade inteligente não é pois perfeita em seu gênero e é por isso que pode ser indefinidamente aperfeiçoada. A indefinição da maté­ria com respeito à forma faz com que o único aspecto determinado na interação instrumental entre inteligência e ação seja precisamen­te a relação. Por isto diz Bergson que o inatismo do instinto relacio­na-se com o conhecimento de coisas e o inatismo da inteligência (seu a priori natural) diz respeito a relações. "( ... ) se consideramos no instinto e na inteligência aquilo que encerram de conhecimento inato, vemos que este conhecimento inato no primeiro caso diz res­peito a coisas e no segundo a relações" (E.C.-149). O instinto está para as coisas e a matéria assim como a inteligência está para as relações e as formas.

Aí está a razão pela qual a filosofia tradicional sempre conside­rou o entendimento (a inteligência) a faculdade de unificação. Uni­ficar significa estabelecer relações e a primeira das relações é a iden­tidade, unificação do objeto consigo próprio. Sendo o estabelecimento de relações formais o procedimento padrão da inteligência, compre­ende-se, em primeiro lugar, que a instrumentalidade seja abstrata e, em segundo lugar, que as coisas sejam consideradas em função das relações abstratas. Eis a razão pela qual a inteligência manifesta uma compatibilidade tão natural com o conhecimento de relações entre partes inertes num espaço abstrato. O espaço enquanto sustentáculo abstrato de relações "não é jamais percebido; é sempre concebido" (E.C.-157). O que faltou às teorias do conhecimento tradicionais foi constatar que a capacidade unificadora do entendimento, no nível lógico, pressupõe o procedimento natural e implícito de divisão: o entendimento unifica porque divide, porque exterioriza reciproca­mente as partes que concebe ao introduzir a descontinuidade no real. Essa exterioridade objetiva deriva da relação de exterioridade que a inteligência mantém com as coisas. Já tivemos ocasião de mencionar a relação que existe entre a divisibilidade esquemática do espaço e a vocação articuladora (decomposição e composição) da inteligência. Do ponto de vista que nos interessa aqui, devemos nos

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III - INTUlçAO E EXPRESSÃO

ater a um outro aspecto da atividade articuladora: aquele que diz respeito à comunicação e à apropriação simbólica da instrumentali­dade através dos signos da linguagem. A relação instintiva com a instrumentalidade, por ser orgânica, não implica aprendizagem. Neste caso a atividade simplesmente prolonga a inserção natural do orga­nismo no seu meio. Se existe comunicação entre os animais, esta é, tal como o instinto, invariável e limitada, isto é, restrita a condutas definidas e delimitadas. Diz Bergson que, neste caso, "O signo é aderente à coisa significada" (E.C.-159). Pelo contrário, o que carac­teriza a linguagem humana é a mobilidade do signo: um conjunto finito aplica-se a um número indefinido de coisas porque o signo tem a propriedade de se transportar de uma a outra. Mas por isso mesmo o signo é exterior e convencional. O sujeito deve aprender a chamar as coisas e a aplicar os signos a uma pluralidade aberta. Por mover-se entre as coisas, o signo não tarda a movimentar-se na di­reção das idéias, ou seja, na direção daquilo que não está diretamen­te vinculado à ação. Mesmo entre as idéias, existem aquelas que se vinculam mais ou menos mediatamente à ação. O signo irá recobrir todas elas, pois a linguagem se caracteriza por uma superabundân­cia virtual. Além do nível pragmático da nomeação e da articulação, há a face reflexiva da inteligência na medida em que ela é um modo de consciência. A vocação para a exterioridade não implica um obs­tinado colar-se ao lado externo do real. Um mínimo de interioridade é necessário para impulsionar a atividade de exteriorização. A inte­ligência está voltada para si mesma, e o caráter abstrato e indefinido da atividade de significar é a ancoragem interna da articulação sig­nificativa. "A palavra, feita para ir de uma coisa a outra é, com efeito, essencialmente móvel e livre. Poderá pois estender-se não apenas de uma coisa percebida a outra coisa percebida, mas ainda da coisa percebida à sua lembrança, da lembrança precisa a uma imagem mais fugidia, embora ainda representada, desta à representação do ato pelo qual nós a representamos, isto é, à idéia. Assim se abrirá aos olhos da inteligência, antes voltados para fora, todo um mundo in­terior, o espetáculo de suas próprias operações"." Da consciência

46. E.C.-I60. Cf. Theau, J., ob. cit., p. 452: "Primeira em relação. à ciência ou à filo­sofia, e de fonna alguma derivada da consciência sensível. a consciência reflexa é entretanto o produto de uma evolução psicológica, que começa com a consciência dos objetos, e onde a consciência de si só aparece plenamente com a ajuda da lingua­gem e da memória. A não ser de maneira virtual, a consciência reflexa não é, no homem, aos olhos do filósofo, um dado verdadeiramente primitivo ou constitutivo, como no caso de Descartes e sem dúvida no de Kant".

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6. A CISÃO DA TOTALIDADE: DIFERENÇA E VIRTUAUDADE

dos objetos às palavras que os designam, destas à memória, da me­mória efetiva à representação do ato de lembrar e daí à consciência das operações da consciência enquanto inteligência: este trajeto nos mostra que a reflexão é derivada. Quase se poderia dizer que a gêne­se da reflexão é a percepção do objeto empírico. Isso seria coerente com uma perspectiva naturalista. Assim como a gênese da consciên­cia é a virtualidade objetiva da ação sobre as coisas, assim também a consciência da consciência só pode ser efeito da interação efetiva da subjetividade pragmática com o mundo. As palavras são a vida externa das idéias, é o pensamento tornado descontínuo pela sua transposição na exterioridade recíproca dos signos. Inversamente, os conceitos designados pelas palavras organizam-se no espírito como objetos na exterioridade, razão pela qual a reflexão que nasce da linguagem é uma reflexão de inteligência, isto é, nela captamos o lado interno da exterioridade. É certo que a linguagem liberta a inte­ligência da total aderência à exterioridade, do "sonambulismo" e do automatismo que estão presentes, por ex., na consciência dos hábi­tos. Mas a dimensão reflexiva da inteligência somente nos dá a estru­tura apriorística do pensamento espacializado47

• A interioridade a que acedemos é a do élan na sua função adaptativa, no movimento inter­no de constituição do mundo objetivo - reciprocidade entre a fun­ção categorial do intelecto e as ações virtualmente solicitadas pelo mundo externo. É natural que a inteligência, voltando-se para si, encontre as pressuposições do conhecimento do inerte, tome cons­ciência das condições de articulação do mundo prático. Nesse caso, o significado é fixação de sentido. O sentido como direção e mo­vimento, de que nos fala La Pensée et le Mouvant (P.M.-133J, é apri­sionado no invólucro de uma referência material, que será tanto mais abstrata quanto mais determinada for a sua materialidade.

Isso significa que o autoconhecimento da consciência através da inteligência será abstrato no sentido de parcial. Não apenas não atin­gimos aí a consciência subjetiva em todas as suas virtualidades, como nos situamos longe da coincidência com a originalidade da consci­ência em geral, da qual a inteligência é um modo engendrado no

47. "Os liames entre a linguagem e o espírito são duplos. De um lado, as palavras acentuam a materialidade das idéias e lhes conferem um caráter exterior, descontínuo. Os conceitos designados pelas palavras tendem a se excluir mutuamente no espírito como os objetos no espaço. De outro, urna espécie de espiritualidade anima o ato da palavra. O homem que fala realiza um ato simples e espiritual corno a consciência de um gesto" (Gilson, B., ob. cit., pp. 47-48).

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decorrer da trajetória evolutiva. Mais do que parcial: se entendemos que a consciência se define como temporalidade, a geometrização da duração operada pela inteligência em relação às coisas e a fortiori, em relação a si mesma, falseia inteiramente o autoconhecimento. Na verdade, a inteligência tende para a universalização do tipo de co­nhecimento que lhe é próprio. Para isso contribui a mobilidade do signo que, no seu caráter abstrato, aplica-se em princípio a tudo, se bem que realmente só seja adequado a uma parcela do real, assim mesmo artificialmente sistematizado. A dimensão reflexiva da inteli­gência cria a ilusão de que ela se pode libertar da matéria, embora a interação com esta seja seu elemento definidor. O esforço de liberta­ção é o esforço de universalização, inscrito na própria indetermina­ção constitutiva da vertente evolutiva que resultou na inteligência. Mas esse esforço está destinado ao fracasso, pois a inserção na mate­rialidade define a inteligência e a indeterminação é apenas a flexibi­lidade intrínseca que distingue a instrumentalidade da inteligência da instrumentalidade do instinto. Embora indeterminação signifique liberdade, e o crescimento da inteligência se confunda com o adven­to progressivo da liberdade no mundo natural, liberdade instrumen­tal não significa libertação ou superação da forma específica do co­nhecimento de inteligência. Assim, se a marcha da inteligência sig­nifica liberação no seio do movimento da história natural, tal libera­ção jamais anulará a oposição que marca a relação da inteligência com o instinto. A função da inteligência é solidária de seu movimen­to interno: eis a razão pela qual sua fascinação pela inércia material nunca será superada".

Mas a oposição é o outro lado da correspondência. Originalmen­te indiscerníveis, instinto e inteligência separaram-se conservando uma relação de complementaridade no nível virtual. É claro que as duas funções, no estágio avançado de realização de suas potenciali­dades, revelam enormes diferenças, e a oposição predomina. No entanto, as virtualidades que se mantiveram sob o processo evoluti­vo, e que a gênese explicativa do princípio vital nos mostrou, nos encaminham para o estabelecimento de uma relação de velamento recíproco, constitutiva do próprio desenvolvimento paralelo dos dois processos: "Há coisas que somente a inteligência é capaz de procurar, mas que, por si mesma, não encontrará jamais. Estas coisas, somente o instinto as encontraria; mas ele não as procurará jamais" (E.C.-

48. Cf. Theau, / .• oh. cit.. pp. 454-5.

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6. A CISÃO DA TOTALIDADE: DIFERENÇA E VIRTUALlDADE

152). Já vimos que o instinto é conhecimento delimitado, determina­do e especializado. É portanto um conhecimento que se confunde com o desempenho vital. A indiscernibilidade entre ação e represen­tação, oriunda do caráter direto da instrumentalidade, anula o ponto de nascimento da reflexão, o recuo mínimo exigido para que a cons­ciência se torne consciência de si. Este recuo é a mediação necessá­ria para que o conhecimento se torne imediato. A consciência de si do instinto seria o conhecimento imediato da relação imediata que Bergson caracteriza como simpatia. Para que houvesse reflexão no plano do instinto seria preciso que a consciência refletisse imediata­mente sobre o pathos envolvido na relação de simpatia. "O instinto é simpatia. Se esta simpatia pudesse alargar seu objeto e também refletir sobre si mesma, ela nos daria a chave das operações vitais -da mesma maneira que a inteligência, desenvolvida e retificada, nos introduz na matéria" (E.C.-I77). Não será talvez despropositado in­troduzir aqui, à semelhança da relação entre interesse prático e interes­se teórico existente na filosofia de Kant, o jogo das relações entre interesse vital (instinto) e interesse material (inteligência) para expli­carmos as duas direções de conhecimento presentes em Bergson. O interesse vital da consciência no seu modo instintivo expressa-se na relação orgânica e direta, isto é, na inteira absorção da consciência nas funções determinadas pela constituição natural do organismo. Tal absorção significa, como já vimos, que não há descontinuidade entre a função e a representação da função. A plena organicidade é conseguida aqui ao preço da determinação completa. O interesse material expressa-se no delineamento da atenção que a inteligência presta à matéria, na superposição entre condições lógicas e articula­ção mecânica. Como a atenção à matéria é solidária da articulação formal enquanto decomposição e composição de partes abstrata­mente sustentadas pela concepção a priori do espaço, a relação en­tre inteligência e matéria assume o caráter de aplicação da forma ao conteúdo, o que implica descontinuidade e representação a priori das condições de diferenciação e individuação. Tal descontinuidade não é senão a conseqüência de outra, mais fundamental, que incide sobre a relação entre inteligência e materialidade, ou sobre forma e conteúdo do conhecimento. Podemos dizer que o interesse fabricador da inteligência repousa na possibilidade de figuração simbólica do real, de que o plano da linguagem é a um tempo causa e conseqüên­cia. Se quisermos supor a possibilidade de um encontro ideal entre instinto e inteligência, teremos de retirar do instinto o interesse vital e da inteligência o interesse material, para que o dinamismo da vida

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III - INTUIÇÀO E EXPRESSÃO

se combine com a inércia da matéria. Neste caso teríamos uma es­pécie de intuição intelectual que talvez escapasse às críticas que Bergson faz ao gênero de conhecimento a que a filosofia tradicional deu esse nome. Mas isso também significaria ignorar que instinto e inteligência são ambos movimentos internos da consciência em ge­ral, e que os dois movimentos tomaram, ao longo da trajetória evo­lutiva, direções qualitativamente opostas embora historicamente paralelas. A intuição, portanto, nunca poderá ser intelectual. O que a consideração genética das duas tendências permite é um esforço de reencontrar a comunidade originária através da virtualidade instin­tiva que a inteligência conserva, e buscar neste ponto de miscigena­ção nebulosa aquilo que seria, para o ser inteligente, o nascimento da intuição.

Como poderia ser hipoteticamente definida a intuição? "( ... ) é ao próprio interior da vida que nos conduziria a intuição, isto é, o ins­tinto tornado desinteressado, consciente de si, capaz de refletir so­bre o seu objeto e de alargá-lo indefinidamente" (E.C.-178). Para caracterizar, ainda que imprecisamente, o esforço de conhecimento interno, possuímos em nós uma indicação que é o que Bergson cha­ma de "faculdade estética". As características de imprevisibilidade e criação que configuram a corrente da vida constituem direção e movimento, com os quais o artista procura coincidir internamente. Trata-se de readquirir a simplicidade do movimento direto de cria­ção, a significação da intenção da vida. Entre o artista e esta intenção levanta-se a barreira da complicação formal da inteligência - e a função da arte é transpor este obstáculo. Para isto é preciso reencon­trar a unidade simples do movimento intencional do élan, através de "uma espécie de simpatia" (E.C.-178). Do ponto de vista negativo, isto implica inverter a direção da percepção e da inteligência. Na verdade, o que se atinge com este esforço de negação é o outro lado da percepção externa e a interioridade da inteligência onde estão as virtualidades intuitivas. Não é muita coisa, e é sobretudo da ordem do negativo, porque é através da inteligência que se opera esse esfor­ço. A inteligência é, para nós, o órgão do "conhecimento propria­mente dito": utilizando-a contra si mesma podemos apenas chegar à sugestão, nascida da insuficiência de seus quadros, de uma outra direção de conhecimento. Não seria mais do que um "sentimento vago" (E.C.-179). Mas como poderia ser de outra maneira se o reen­contro da virtualidade simpática com a totalidade só se pode dar através do avesso dos quadros da inteligência? O resultado histórico-

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6. A CISÃO DA TOTALIDADE: DIFERENÇA E VIRTUALIDAOE

-natural da evolução de nossa espécie foi o ocultamento do absoluto e, portanto, sua plena positividade se transformou para nós em indistinção de virtualidades afetivas. Por isto é muito difícil encon­trar, na filosofia de Bergson, a possibilidade de um conhecimento do instinto que se oponha efetivamente ao conhecimento da inteligên­cia. Nesse sentido, não existe em Bergson aquela espécie de mergu­lho cognitivo no instinto como fonte de verdade, que certa interpre­tação vulgar atribui ao romantismo". Se por um lado a gênese do instinto mostrou que ele não é uma faculdade "misteriosa", por ou­tro lado a gênese da inteligência mostrou também que a opção pela exterioridade impede definitivamente de reconstituirmos uma combinatória feliz entre instinto e inteligência, que nos posicione diretamente no próprio movimento do absoluto.

No entanto, de alguma maneira a "faculdade estética" nos repõe na direção do absoluto e na continuidade do élan originário. É bem verdade que esta faculdade individualiza seus resultados; e embora a arte seja contato com o absoluto, a obra de arte no sentido indivi­dual continua sendo metáfora do absoluto, ou, no máximo, imagem do movimento absoluto. Ainda assim, somente a torção da inteligên­cia nos encaminha para a totalidade, muito embora a expressão da claridade absoluta só se faça através de seu obscurecimento relativo. A arte nos mostra uma direção que é o próprio sentido interno do trajeto ontológico: ela é portanto, em princípio, órgão de conhecimento onto­lógico. Se for possível um prolongamento metódico da direção do conhecimento artístico, talvez se possa obter algum tipo de reinserção cognitiva no sentido geral do movimento ontológico e uma comu­nhão da consciência subjetiva com a consciência em geral. Para tan­to teríamos de nos situar, por um esforço de desnaturalização da inteligência, numa região anterior à constituição da objetividade pela subjetividade do entendimento. Se quisermos utilizar aqui uma lin­guagem mais contemporânea, diremos que o retorno à dimensão do "pré-reflexivo" é condição de acesso ao plano da reflexão real, enten­dido como coincidência com o processo de auto-totalização do ser. Uma coisa, ao menos, parece certa: é que intuição e objetividade não podem conviver. "Se a objetividade supõe a exterioridade recíproca entre sujeito e objeto - a intuição é o fim da objetividade: nela o co­nhecido é conhecido no ato em que ele se autoconstitui ( ... )50."

49. Cf. a respeito as observações de Theau, J., ob. cit., pp. 419, 420 e 427. 50. Prado Junior, B., ob. cit., p. 181.

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Mas é evidente que "o fim da objetividade" é também o fim da subjetividade na medida em que é a própria contraposição que cons­titui a autonomia relativa dos dois termos. O processo vital consti­tuiu a autonomia da consciência subjetiva ao destacar progressiva­mente o Eu como espécie de auto mediação entre si mesmo e o mundo. O mundo enquanto objeto é fundamentalmente virtualida­de de ação, mundo prático. A objetividade tem um sentido naturalis­ta na medida em que só se constitui na reciprocidade com a inteli­gência. Assim, a intuição é dissolução desta reciprocidade na exata medida em que é dissolução do interesse da inteligência. Portanto a "morte do mundo" não é o único requisito da intuição; a consciência subjetiva recolhida à sua interioridade alcança apenas o plano indicativo da relação simpática com a totalidade. É preciso ainda um recuo que é o movimento de dissolução do plano subjetivo da cons­ciência na coincidência com o movimento do élan; é preciso que a consciência subjetiva reinsira-se especulativamente na originariedade da sua gênese. Mas para isto não basta a constatação objetiva da gênese da consciência através da recuperação teórica da Consciên­cia como princípio do movimento real. Não se trata de uma relação teórica, mas de uma coincidência real. Nenhum movimento análogo à redução fenomenológica nos remeterá ao plano dessa coincidên­cia: atingir o núcleo noético do conhecimento enquanto campo da consciência é praticar abstração na indivisibilidade concreta do abso­luto. Mas com isso não teremos sido levados à dificil elucidação do problema de um conhecimento sem sujeito? Do ponto de vista da lógica do entendimento esse seria provavelmente um problema in­solúvel; visto da perspectiva da gênese dos modos da consciência, o impasse é apenas aparente. Se a mediação entre inteligência e ação, expressa na representação, é que institui a dissociação entre sujeito e objeto, o conhecimento instintivo, como já vimos, não se caracte­riza pela mediação, na medida em que representação e ação são in­dissociáveis, coincidindo na função. A "objetividade" da ação instin­tiva é um simples prolongamento da vida natural do organismo, o qual não pode, pela mesma razão, ser caracterizado como "subjeti­vidade". Ora, como a intuição nasce da virtualidade instintiva pre­sente na inteligência, a possibilidade de seu prolongamento cognitivo dependerá, entre outras coisas, do desaparecimento da polaridade sujeit%bjeto. O análogo natural da intuição é a relação orgânica, a imediatez. É portanto a própria qualidade do conhecimento intuitivo que o preserva da polaridade constitutiva do conhecimento inteli­gente. E é essa qualidade que nos assegura também que ele alcança

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o absoluto, sem ser conhecimento absoluto. Atingimos aqui um re­sultado metodológico da mais alta importância: a recuperação teóri­ca do sentido da evolução nos mostrou que a polaridade sujeito/ objeto é um produto da trajetória da vida: a gênese da relatividade do conhecimento intelectual alcança uma radicalidade muito maior do que a atingida pela crítica estrutural de tipo kantiano. A face positiva desse resultado é a abertura do horizonte de um pensar liberado da oposição sujeit%bjeto, um pensamento do absoluto.

Mas a dissolução desta polaridade significa também a liberação em relação a uma dicotomia histórica, a necessidade de optar entre realismo e idealismo. Já vimos como a gênese da consciência, mes­mo no plano da percepção e da intencionalidade pragmática, visa superar a dicotomia. Agora, trata-se de efetuar a mesma superação para além do nível da representação. Bergson provavelmente não concordaria com a crítica de Fichte a Spinoza. Fichte pretendia que Spinoza tentou encontrar o incondicionado do lado do objeto quan­do fez da consciência uma simples modificação da substância eter­na. Com isso ele teria posicionado o Eu no objeto, o que não estaria longe de uma reificação da subjetividade. Ao identificar a substância spinozista com a Coisa-em-si, com a coisa-absoluto, Fichte inverte a trajetória de Spinoza e toma a produção de realidade pela substância absoluta como produção de representação e atualização de possí­veis. Assim a Substância pode ser traduzida em linguagem fichtiana como o não-Eu, que supõe o Eu, verdadeiro absoluto a que Spinoza não teria chegado. Spinoza teria sido vitima da ilusão dogmática de que a busca do absoluto pode ultrapassar a unidade da consciência, que no entanto é a unidade dada na reflexão imediata. Esta unidade, descoberta implícita do criticismo kantiano, será aquela depois to­talmente desvelada no idealismo crítico5l

• Mas não poderíamos su­por que o que subjaz à interpretação de Fichte seria a concepção que Schelling classifica como kantismo banalizado, que consiste em sim­plesmente aceitar, pelo lado prático da razão, aquilo que a razão pura não pode justificar? A reunião do Eu teórico e de sua produti­vidade prática não equivaleria à manutenção latente da separação e, portanto, do conflito entre sujeito e objeto, mesmo entendendo este último como a projeção objetivante do sujeito? Se entendermos o spinozismo como a geração de sujeito e objeto em suas respectivas

51. Sobre estas questões cf. Delbos, V., ob. cit., pp. 98 a 103.

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efetividades - modalizações da substância absoluta - não teremos encontrado a índole da produção absoluta e a conjugação orgânica de ser e conhecer, artificialmente imposta no paralelismo leibniziano? É provável que uma interpretação deste tipo esteja presente como inspiração do projeto bergsoniano de relativização genética da obje­tividade. Mas se este projeto puder ser visto de alguma maneira como a concretização naturalista do geometrismo ontológico que para Bergson caracterizaria a filosofia spinozana, então o empreendimen­to bergsoniano oferece aspectos de afinidade com o pensamento de SChelling, ao menos enquanto este tem, no seu ponto de partida, algo como uma combinatória entre a crítica do idealismo fichtiano e uma reinterpretação do spinozismo.

Para Schelling, o kantismo bem compreendido significa a possi­bilidade de dois sistemas opostos, o que não é outra coisa senão a supressão do conflito entre sujeito e objeto que está na base da alter­nativa idealismo/realismo. Mas a supressão do conflito é ao mesmo tempo a construção de um sistema a partir do sujeito, o que seria no entanto um idealismo absoluto e não empírico. A supressão da dualidade entre sujeito e objeto é na verdade a afirmaçâo da identi­dade fundamental entre os dois termos. A isso tendem idealismo e realismo, mas sempre na forma de um desequilíbrio que dificulta o reconhecimento do sujeito no objeto e vice-versa. Se considerarmos que o objeto não é apenas uma projeção representativa do sujeito ("aparência"), mas ao contrário uma produção efetiva, em que o produto, por inteira adequação ao produtor, reveste-se de autono­mia na medida em que a adequação completa anula a dependência, então poderemos ver, no próprio seio do idealismo absoluto, a ver­dade ideal do realismo". A natureza é um sistema autônomo e não uma realidade subordinada, como no idealismo de Fichte. Este sis­tema autônomo é autonomamente produzido: a virtude criadora do espírito seria empobrecida se entendêssemos sua produção como subordinada e instrumental. A realidade infinita do espírito exige que ele produza infinitas realidades. O idealismo crítico só será inteira­mente compreendido e realizado se entendermos que a causalidade

52. "A evolução do pensamento de Schelling o leva ao contrário a pensar, cada vez mais, não apenas que o real é mais do que uma simples aparência, que ele é uma produção efetiva do espírito, mas ainda que esta produção do real é em si mesma adequada ao seu princípio e, conseqüentemente, autônoma, que há, correlativamente ao saber, um sistema da natureza que se basta a si mesmo e que se explica a partir de si mesmo" (Delbos, V., ob. cit., p. 103).

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6. A CISÃO DA TOTALIDADE: DIFERENÇA E VIRTUALlDADE

livre se exprime fisicamente: a separação que Kant havia efetuado entre a determinação da causalidade física, a indeterminação da causalidade prática e a reflexão da causalidade orgânica é signo de um idealismo crítico incompleto. A unidade do espírito se projeta na unidade de suas criações, e assim a natureza, enquanto tal, é orgâni­ca. A precedência do todo e a finalidade não são apenas modos de visar reflexivamente o mundo empírico. O juízo de reflexão produz conhecimento. Isso porque não se trata apenas de aglutinar dados fenomênicos: trata-se de compreender a produção, e espírito e natu­reza comungam na atividade produtora. "Não se trata de dizer ape­nas que o espírito é sujeito e a natureza objeto: a Natureza, como o Espírito, é ao mesmo tempo sujeito e objeto, atividade produtora ideal (natura naturans) e sistema de produtos reais (natura naturataf"." O entendimento tende a ver no caráter naturante da natureza a ati­vidade formal que organiza a matéria, naturalizando-a, dando--lhe forma de natureza. Mas isto significaria que a matéria se opõe à ati­vidade, quando na verdade matéria e formação da matéria são uma e a mesma coisa. O espírito tira de si a forma e a formação: ele é atividade absoluta. A matéria da atividade absoluta só pode estar no absoluto, portanto a objetivação em geral é atividade, não de uma subjetividade que seria pura consciência, mas de uma Identidade que toma forma, que se explicita em produtos finitos nos quais se reconhece a forma em geral da atividade infinita. A identidade sujei­t%bjeto é a identidade forma/matéria. O absoluto produz o real a partir de si mesmo, como "agir eterno". "Pense-se em primeiro lu­gar, o Absoluto (. .. ) puramente como matéria, identidade pura, pura absolutez; mas como sua essência é um produzir e ele só pode tirar a forma de si mesmo, e ele mesmo é pura identidade, então também a forma deve ser essa identidade, e, portanto, essência e forma são nele um e o mesmo, ou seja, a mesma absolutez pura"." A produção envolve essencialmente um processo de transformação e de dissolu­ção ou redissolução entre o infinito e o finito. A subjetividade gerada infinitamente na objetividade finita e esta se redissolvendo na forma. É como se a subjetividade se transformasse em objetividade e esta de novo se transformasse em subjetividade e este movimento fosse uma

53. Delbos, V., ob. cit., p. 109. Cf. SChelling, Exposição da Idéia Universal da Filosofia em Geral e da Filosofza-da-Natureza como Parte Integrante da Primeira, tradução Rubens Rodrigues Torres Filho, Nova Cultural, São Paulo, 1989 (coleção Pensadores), p.52.

54. Schelling, ob. cit., p. 50.

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO

produção absoluta sempre idêntica a si mesma enquanto atividade, embora diferenciada quantitativamente na natureza. A oposição, se oposição há, é derivada da atividade produtora (lembremos a atribu­tividade e a modalização spinozistas) e os termos "opostos" tendem a se reencontrar para perfazer a realidade de cada um e a realidade absoluta. Toda objetivação finita é figuração do infinito: mas como o movimento de objetivação é o movimento infinito da identidade pro­dutora, a figuração traz o infinito no modo de figurar, qualquer que ele seja. Por isso o particular é apenas, para Schelling, inessencial e quan­titativo; a essência é única por ser qualidade absoluta. "A natureza que aparece ( ... ) é a figuração da essência na forma aparecendo como tal ou na particularidade, portanto a natureza é eterna na medida em que se corporifica e assim se expõe por si mesma como forma particular"." Do ponto de vista físico ou cosmológico, a estrutura do universo e o meca­nismo universal são figurações, isto é, são relações internas da natureza que exprimem no nível objetivo a produtividade infinita. Mas existe uma "unifiguração", que é o organismo, pressuposto nas duas primei­ras e que seria, para Schelling, "o perfeito correlato do Absoluto na natureza e para a natureza"S6. A identidade entre extensão e pensamen­to, que Spinoza concebera "objetivamente" deve na verdade ser conce­bida ideorealisticamente, se assim se pode dizer: somente desta forma escaparemos do realismo relativo e do idealismo relativo (Fichte) para aceder a algo como a realidade ideal do Espírito e de seu poder pro­dutor. O absoluto não é compatível nem com o resíduo consciente nem com a materialidade informe, e assim a filosofia da natureza exige "um novo órgão de intuição e de concepção"57 para compreen­der a coincidência entre o "absolutamente real" e o "absolutamente ideal". A compreensão do absoluto como Identidade.

Se a reflexão deve atingir um movimento originário, este não é o movimento como atividade do Eu produtor de representações, mas o movimento pelo qual a Identidade originária se diferencia na fenomenalidade quantitativa do mundo. Tal processo é visado pela consciência subjetiva através de uma contração do sentido interno que provoca a intensificação da consciência. Diante da consciência intensiva, os corpos aparecem como extensão constituída, isto é, posta diante do sujeito no seu desenrolar. É nessa oposição que a consci-

55. Id., ibid., p. 52. 56. Id., ibid., p. 53. 57. Id., ibid., p. 54.

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ência se constitui como temporalidade, ou seja, se vê como atividade temporal". Mas isso nos revela que a consciência como temporalida­de visa à realidade numa dimensão: o tempo. Ora, o tempo é o visar da produção absoluta na escala de seu desenvolvimento sucessivo. Diferentemente de Bergson, Schelling entende que a Identidade to­talizadora situa-se aquém dessa dimensão. Para situar a maneira como Bergson entende a relação entre reflexão e absoluto, será ne­cessário que esclareçamos melhor o modo como Schelling e o idea­lismo romântico - tal como se apresenta, por exemplo, em Schlegel­tratam o mesmo problema.

7. A VIDA COMO PRODUÇÃO ABSOLUTAMENTE CRIADORA

Se o movimento de reflexão quer alcançar a dimensão absoluta da consciência, e não apenas o plano do sujeito enquanto consciên­cia empírica, é preciso efetuar o recuo para aquém da objetividade e da subjetividade. Schelling entende este recuo como a realização do movimento transcendental em direção ao princípio do saber. Confe­rir primazia ao objetivo ou ao subjetivo é manter aberto o problema do acordo entre a representação e o objeto. Por outro lado, se admi­timos simplesmente que a filosofia transcendental parte do subjetivo e a filosofia da natureza parte do objetivo, estabeleceremos uma dualidade que nos impedirá de atingir o princípio do saber, a verda­de enquanto idêntica a si própria. "Esse princípio só pode ser único. Toda verdade permanece com efeito igual a si mesma. Podem existir graus de verossimilhança ou graus de probabilidade, mas não graus de verdade"." É bem verdade que filosofia da natureza e filosofia transcendental são duas direções opostas, e poderíamos ver aí dois princípios. Mas a oposição entre inteligência e natureza deve ser entendida muito mais como reciprocidade, ou como tendência que encaminha a natureza para a inteligência como forma de "introduzir a teoria nos fenômenos da natureza"". A própria ciência da natureza deve tender para a "espiritualização de todas as leis naturais" e mes­mo a uma redução da natureza à inteligência. Nada impede em prin-

58. Schelling citado por Gilson, 8., ob. cit., p. 34 - nota 1. 59. Schelling, Systeme de l'Idealisme Transcendental (excertos), tradução francesa de

S. Jankélévitch, Essais, Aubier, Paris, 1946, p. 136. 60. Id., ibid., p. 124.

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cípio que, começando pelo "objetivo", cheguemos a deduzir o sub­jetivo: seria o trajeto da filosofia natural. Mas, por isso mesmo, a filosofia transcendental deve tomar, ou só pode tomar, a direção oposta, e explicar o objetivo a partir do subjetivo. Isso significa situ­ar-se no plano do saber. Mas não basta situar-se no nível subjetivo enquanto consciência representante, pois aí o princípio estará sendo buscado no plano da unilateralidade. Outro nível de consciência é aquele em que, aquém do "pensamento ordinário" como "mecanis­mo em que dominam os conceitos" embora ainda não reconhecidos como tais, atingimos a consciência do conceito como ato, ou o "con­ceito do conceito". Aqui a consciência, ao agir, percebe-se a si mesma como agente.

Mas ainda aqui a consciência se vê como imanente aos atos de representação, ainda que separemos o ato da representação deter­minada. É necessário recuar ainda mais na direção de uma coinci­dência total entre o representante e o representado. O que interessa nesta coincidência é a incondicionalidade da representação. O con­dicionado remete sempre à sua condição, o que significa que o sis­tema do saber remete por si mesmo ao incondicionado. É certamen­te no plano do incondicionado que encontraremos a identidade do princípio com ele mesmo: resta buscar então o saber acerca desse incondicionado. Mesmo quando enuncio uma proposição idêntica (A = A), se ela supõe um saber e não apenas uma representação para mim, tenho, além da forma proposicional idêntica, a síntese dos ele­mentos, pois, se posso dizer que pensando A não penso outra coisa senão A, posso sempre perguntar também como cheguei a pensar A. Fora da identidade do pensamento consigo mesmo só há sínteses: ou seja, sempre que penso algo de objetivo, o pensamento é sintéti­co. Importa então procurar o incondicionado no plano das proposi­ções sintéticas, o que em princípio é contraditório, pois significaria buscar a identidade do pensamento com ele mesmo no plano em que o pensamento se relaciona com outro pensamento. No entanto, o princípio que estamos procurando só pode ser encontrado no pla­no da certeza incondicional sintética. "Essa contradição poderia ser resolvida se fosse possível encontrar um ponto em que o idêntico e o sintético fossem uma e a mesma coisa, ou uma proposição que fosse sintética sendo ao mesmo tempo idêntica e fosse idêntica sendo ao mesmo tempo sintética"." Numa proposição como esta o subjetivo e

61. ld .. ibid., p. 129.

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7. A VIDA COMO PRODUÇÃO ABSOWTAMENTE CRIADORA

o objetivo coincidiriam, pois o predicado, sendo outro em relação ao sujeito, seria ao mesmo tempo idêntico a ele. A representação teria ao mesmo tempo valor objetivo e forma idêntica: realizaria o ideal de uma verdade idêntica a si mesma (absolutamente idêntica a si mes­ma), e ao mesmo tempo conteria uma realidade objetiva, pois seria uma síntese. A determinação não adviria unicamente do pensamen­to como nas proposições puramente idênticas, pois haveria algo de real pensado na proposição. A completa ausência de mediação entre sujeito e objeto, a identidade perfeita entre o ser e a representação, e ainda assim a síntese: eis a forma do princípio que deve ser encon­trado como origem do saber. "Essa identidade não mediatizada do sujeito e do objeto só pode existir onde o que é representado é ao mesmo tempo o que representa, onde o objeto de intuição é ao mesmo tempo seu sujeito. Ora, essa identidade do representado e do repre­sentante só existe na consciência de si; é aí que se encontra o ponto que procurávamos" (p. 145). A reflexão atinge assim a identidade do pensado com o pensamento, o ponto em que sujeito e objeto são um só. A forma da identidade me garante um pensamento que se torna diretamente objeto para si mesmo. Que é este objeto? É o ato de pensamento: antes do ato ele não existia: surgiu, pois, no ato e pelo ato de pensamento. Não era um objeto inerte esperando ser conhe­cido por um sujeito. Foi o próprio ato de pensar que o engendrou e por isso sujeito e objeto coincidem completamente. Esse ato é, ao mesmo tempo que ato, conceito do Eu. Ato de conhecimento e con­ceito coincidem, na medida em que o Eu só pode ser representado como ato. Atingimos assim um nível anterior à identidade do Eu penso que acompanha todas as minhas representações. Pois aqui não tenho apenas a forma que liga todas as representações de um sujeito: tenho uma realidade que é, enquanto atividade pura, identi­dade originária entre representante e representado. Por isto diz Schelling que o "Eu penso cede lugar ao Eu sou, que é incontestavel­mente de ordem superior" (p. 147). A virtualidade predicativa do Eu sou faz dele uma proposição infinita, na medida em que a ausência de predicado real implica a possibilidade de predicação infinita. De um lado tenho pois a subjetividade originária como princípio cognoscendi, na medida em que é princípio de conhecimento: de outro tenho a virtualidade da predicação infinita como princípio essendi, ou princípio de realidade. Originariamente tenho a coinci­dência absoluta entre ser e conhecer. O Eu absoluto é princípio an­terior à subjetividade e à objetividade.

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III - INTUIÇ4.0 E EXPRESSÃO

Na medida em que o Eu não é primitivamente objeto, mas torna­-se objeto para si, a intuição pela qual é conhecido .cria o seu próprio objeto. O que distingue a intuição intelectual da sensível é que a primeira é criadora. "Dado que o Eu (enquanto objeto) nada mais é do que o conhecimento que tem de si mesmo, o Eu só nasce e existe porque se conhece; este próprio Eu é pois um conhecimento criador deste Eu (enquanto objeto)" (p. 149). O ato de conhecimento cria o conhecido, unindo a objetividade da síntese com a identidade abso­luta. Mas não se trata apenas de uma intuição que permaneceria como resíduo fundamental da sistematização do conhecimento. A intuição intelectual do Eu é permanente enquanto autocriação, na medida em que é o substrato de todas as construções transcenden­tais. Por isto diz Schelling, numa frase que Bergson certamente cri­ticaria, que a "intuição intelectual é (para a filosofia) o que o espaço é para a geometria" (p. 151).

A intuição intelectual pode ser entendida como um conhecimento no sentido de uma determinação do Eu? Para que houvesse determi­nação, no sentido habitual, seria preciso que houvesse a conjumina­ção de forma e matéria. Ora, o conhecimento do Eu é intuição cria­dora; é a produtividade criadora que toma consciência de si. Ao intuir o Eu, intuo precisamente aquilo que é o não-objetivo em si, de ma­neira alguma uma coisa, mas uma atividade pura. Como poderia o fundamento de toda determinação determinar-se a si mesmo? O Eu portanto não é determinado: é o processo criador consciente de si através de intuição permanente ou de autocriação contínua. Nesse sentido é liberdade ou atividade em si. É por isso também que se situa num estágio anterior à divisão da filosofia em teórica e prática e, tal como para Fichte, incognoscível (no sentido objetivo) no plano teórico, se revelará como produção prática. Tem, assim, o sentido de postulado: é uma exigência teórica, algo sem o qual nada de real teria sentido; mas ele mesmo não pode ser demonstrado, pois se situa no plano da identidade entre criador e criado. Apreendemos o que ele é no próprio processo de criação, que se fundamenta na subjetivobjetivação primitiva.

Como fica, a partir daí, o conhecimento que habitualmente cha­mamos "objetivo"? Vimos antes que a filosofia da natureza consti­tuía uma direção oposta à da filosofia transcendental. Ora, acabamos de ver, na realidade, o nascimento do objeto. E foi no plano mais radical da reflexão que ele ocorreu, na própria indiscernibilidade entre subjetivo e objetivo. Mas vimos também que o objeto nasceu da iden-

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7. A VIDA COMO PRODUÇÃO ABSOLUTAMENTE CRIADORA

tidade da síntese. E isso era necessário porque todo conhecifil',nto sintético é, de alguma maneira, coincidência entre sujeito e objeto. A dualidade que idealismo e realismo sempre procuraram no regime da exterioridade é na verdade inerente à identidade do Eu. O Eu, sendo o primeiro objeto de si mesmo, realiza a unidade sintética como coincidência absoluta e, a partir daí, "assegura a unidade e a coesão de todo conhecimento sintético" (p. 152). A anterioridade fundamentadora das sínteses implica a generalidade do Eu, da qual deriva toda individualidade, toda determinação temporal. "A consci­ência pura é um ato fora do tempo; é este ato que dá nascimento ao tempo, enquanto a consciência empírica evolui no tempo e se com­põe de representações sucessivas" (p. 155). Dessa maneira, nem se­quer podemos dizer do Eu absoluto que ele é, no sentido em que as coisas são. Antes deveríamos dizer dele que é o Ser enquanto ato eterno. Mas o ato eterno, enquanto tal, é ao mesmo tempo eterno devir e eterna criação. Por isso a eternidade é compatível com a ati­vidade, assim como em Spinoza a substância eterna é eterna produ­ção. Assim, tudo que é, de alguma maneira é supressão da liberdade absoluta do Ser. Aqui retornamos ao tema da natureza como inteli­gência. A liberdade se manifesta no mundo natural através de sua supressão. A liberdade se suprime ao produzir, ao atuar como força absoluta. "Toda ação livre é produtiva, mas produtiva conscientemen­te. Se em princípio admite-se que estas duas atividades (subjetivida­de e mundo objetivo) são uma só, a mesma atividade que, na ação livre produz conscientemente, se exerce no mundo exterior de manei­ra inconsciente ( ... ). A natureza, considerada na sua totalidade e nas suas partes, aparecerá então como uma obra conscientemente cria­da, mas ao mesmo tempo como o produto do mecanismo mais cego" (p. 156). Esta união entre mecanismo e finalidade é fruto da união originária entre atividade consciente e inconsciente. A natureza é inconsciente no seu processo criador - e mesmo nos seus produtos particulares -, mas obedece a uma finalidade se este processo é remetido à origem onde consciência e inconsciência são uma coisa só. A coexistência entre liberdade e necessidade não é senão a liber­dade produtora se determinando temporalmente nos seus produtos. Assim a natureza é espiritual na sua legalidade e a teoria da natureza consiste em determinar a espiritualidade dos fenômenos, a interio­ridade das leis que os regem, como preconizava a "tisica em grande escala" do "Mais Antigo Programa Sistemático". Sobretudo os seres organizados manifestam a co-presença da liberdade e da necessida­de, que não é outra coisa senão a interpenetração da objetividade e

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da finalidade na intuição da materialidade. Por isso se pode falar em "finalidade cega e mecânica" da natureza sem supor, como Leibniz fazia, o paralelismo exterior entre consciência e extensão. Quando falo em teleologia na natureza não posso supor uma intencionalida­de intrínseca ao processo natural: isso seria permanecer na contra­dição entre mecanismo e finalidade. Mas posso falar de uma harmo­nia entre produto e produtor, que nada mais é do que a relação entre liberdade e necessidade, e a vinculação interna destes dois termos corresponde à identidade originária da qual o organismo é o correlato objetivo. "Toda organização é um monograma desta identidade pri­mitiva" (p. 132).

O que Fichte havia descrito como atividade irrefletida do Eu tor­na-se para Schelling produção inconsciente: há nisso uma ampliação da solução fichtiana, pois ao mesmo tempo em que se compreende como a consciência ingênua pode ver como obstáculo e negação aquilo que na verdade é um limite interno, abre-se também a possi­bilidade de se atingir, pela reflexão, o estrato inconsciente da subje­tividade e reconhecer aí também a atividade produtora que caracte­riza a consciência em geral. O realismo se dissolve quando entendo que o que afeta a consciência é produzido por ela. Mas a modalidade dessa produção mostra também a necessidade da "aparência real" ou da exterioridade do fenômeno. Tal necessidade só é compreendi­da quando a reflexão recua até o plano do nascimento da objetivida­de. O idealismo se faz conseqüente quando incorpora a ilusão da objetividade como constitutiva do campo da consciência. Assim ve­mos que a direção transcendental, que em princípio era apenas a direção oposta à filosofia da natureza, revela uma dimensão mais ampla na medida em que a gênese da consciência é também a gêne­se subjetiva da objetividade. Há uma relação de complementaridade e não de oposição entre a filosofia da natureza e a filosofia transcen­dental, e esta complementaridade nos encaminha para o seu funda­mento, que é a identidade. A filosofia, como teoria, recupera a pro­dutividade da consciência na medida em que compreende genetica· mente a formação da representação. "A filosofia é a reprodução congenial da produção original, a imitação filosófica do ato formativo da representação, a reconquista do original por meio de uma nova consciência ( ... )" (p. 162). A intuição intelectual, ao coincidir com a identidade fundamental, revela algo de que o idealismo crítico ne­cessitava para completar-se: a idealidade do limite. A afecção não é índice da exterioridade irredutível, ela é consciência da representa-

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ção, mas esta é, ela mesma, fruto de ato produtor. Por isso a intuição só se dá na reflexão: é preciso que a consciência se reflita num mo­vimento que a leve para aquém da representação enquanto afecção, para o plano em que a representação revela-se como ato. Mas a ati­vidade, ao mesmo tempo em que é reconhecida na sua identidade originária, é vista também como dividida entre produção consciente e produção inconsciente. O que a teoria recupera é como que uma identidade dual. A teoria não atinge, pois, o estrato originário (cons­ciente/inconsciente) da atividade no seu princípio, algo como a sín­tese a priori entre liberdade e necessidade. Para isto seria necessário recuperar a índole do processo criativo na escala em que ele é simul­taneamente consciente e inconsciente, no ponto em que o produto criado, enquanto finito, contivesse o infinito. Veremos que somente a arte pode realizar esta simultaneidade.

No plano da teoria, a dificuldade de compreender a independên­cia da produção inconsciente e ao mesmo tempo o seu estatuto de condição da consciência é praticamente insuperável. O curso da produção natural e de seus produtos não tem na consciência a sua condição imanente. Mas como pode o processo produtor, que é ver­dadeiramente o elemento característico da consciência, dar-se como estranho à própria consciência? Como pode, no curso da produção natural, a consciência surgir de um processo que é afinal gerado por ela mesma? Toda a dificuldade vem de que Schelling mantém um significado realista no próprio fundamento do processo natural. Por­tanto não é suficiente reconhecer o caráter finalmente subjetivo da produção inconsciente; é preciso reconhecer também a sua autono­mia. A profunda inscrição do realismo no seio do idealismo é no entanto necessária para que se atinja o pensamento da identidade absoluta. O subjetivo é a dimensão consciente de uma totalidade que é, no entanto, consciência. Isto nunca aparecerá claramente para a consciência teórica. O absoluto não é claro, talvez porque a clareza seja uma característica da relação cognitiva, portanto da polaridade derivada sujeit%bjeto. É a partir dessa constatação que Hegel po­derá dizer, referindo-se a Schelling, que na noite do absoluto todos os gatos são pardos. Teremos ainda ocasião de comentar o caráter noturno da concepção romântica do absoluto. Contentemo-nos por enquanto em entender que o idealismo absoluto consiste em "atri­buir ao Eu um elemento que, ao mesmo tempo, esteja implícito em todo o Não-Eu e postular uma identidade para além de ambos, que não possa mostrar-se totalmente em nenhum deles, mas que, não

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obstante, apareça nos dois"62. Com isso poderíamos dizer que tanto a filosofia da natureza como a filosofia transcendental são exposi­ções incompletas da filosofia da identidade. Cada um deles explica­ria uma face da produção absoluta e, nesse sentido, eles explicariam o absoluto, sem no entanto compreendê-lo como totalidade. A dife­rença que atravessa a racionalidade separa sujeito e objeto, mas por outro lado essa dualidade inclui tudo, e portanto a razão unifica os dois termos. Assim o idealismo absoluto pode ser também entendido como um racionalismo absoluto. Vê-se por aí que o abandono do terreno em que sujeito e objeto se opõem, e a tentativa de alcançar uma unidade identitária, não significa a renúncia ao conhecimento racional. É porque nada existe fora da razão que a própria razão é anterior ao subjetivo e ao objetivo: ela os compreende e lhes dá sen­tido, ao mesmo tempo que os supera ao englobá-los. Tal superação, entende-se, não deriva de oposição dos dois termos; ao contrário, eles é que derivam da identidade fundamental da razão absoluta. A oposição é a forma geral da finitude, mas a infinitude não pode ser "produzida" pela união dos opostos, ela não é uma síntese superior.

A consciência absoluta é razão. Ora, razão significa conhecimen­to. A razão na verdade só pode conhecer-se a si mesma já que nada existe fora dela. Mas o movimento de conhecimento é ao mesmo tempo a gênese de sujeito e objeto, cisão necessária para a realização do autoconhecimento da razão. Em si, sujeito e objeto não diferem, pois ambos são razão. A razão "estabelece-se infinitamente como sujeito e objeto", mas essa divisão é quantitativa exatamente porque, no plano da qualidade, sujeito e objeto se identificam. A diferencia­ção quantitativa, gradual e seriada, entre sujeito e objeto, constitui o que chamamos de multiplicidade: conforme o membro desta série, nele preponderará o objetivo ou o subjetivo. Nada existe, pois, que seja somente objetivo ou somente subjetivo: apenas a diferença quan­titativa determina que consideremos um ou outro aspecto unilate­ralmente. Isto significa que a multiplicidade é real. A passagem da identidade à diferenciação não é a passagem de ser ao não-ser. Mas como a identidade se preserva na diferenciação, porque ela é o em­-si, todo particular é, de certa maneira, aparência: é aparência pelo lado parcial em que o consideramos, já que não o vemos como partícipe da unidade absoluta. Neste sentido é que ele é inessencial: quando o consideramos pelo lado da quantidade é como se enten-

62. Hartmann, N., oh. cit., p. 157.

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7. A VIDA COMO PRODUÇÃO ABSOLUTAMENTE CRIADORA

dêssemos que a essência está na limitação, como se a particularida­de fosse a essência do particular. Mas qualidade ou essência não se diferencia: "A diferença não afeta a essência das coisas, mas apenas a 'grandeza do ser' delas"". Podemos portanto dizer que essencial­mente todo finito é infinito, pois a infinitude, do ponto de vista abso­luto, é qualidade. A multiplicidade é modalização quantitativa do infinito que não afeta a essência dos modos. Por isto o infinito está sempre em ato: a razão não é fundamento absoluto, mas realidade absoluta, isto é, a totalidade das "coisas" não repousa na razão abso­luta, mas esta totalidade é razão absoluta.

A produção modalizada é manifestação. Como o absoluto é inse­parável de sua manifestação, a série natural é revelação do absoluto, presença imanente a todos os produtos finitos. A consciência finita é um produto, no qual aparece a consciência de si e, portanto, a possibilidade da regressão reflexiva. Como o infinito está presente nos produtos finitos, a consciência é de direito consciência do infi­nito, embora este apareça para ela na forma de abertura da série temporal. A manifestação temporal do infinito na série da particula­ridade finita é, para nossa consciência, condição da realidade efetiva do infinito. Por estarmos assim situados entre a objetividade, que é a forma exterior da liberdade, e a reflexão, abstração do objeto e consciência interna da atividade livre, a intuição da liberdade seria ao mesmo tempo a constatação de sua difusão extensiva e a concen­tração reflexiva da atividade livre como força ativa na consciência. Na medida em que subjetivo e objetivo perderam o caráter irredutí­vel da oposição, entrar em si e sair de si tornam-se movimentos re­lativos. Uma vez que o objetivo é disseminação da liberdade infinita, o absoluto como que se desdobra fora do sujeito; em contrapartida, a subjetividade encontra na consciência a atividade livre em estado de tensão. Assim não se pode dizer que o "objeto" da reflexão seja da ordem da subjetividade64• Na verdade, dificilmente se pode falar em objeto da reflexão, Isto porque forma e conteúdo deste "objeto" teriam de coincidir pura e simplesmente no ato de sua posição. Seria um objeto em que a forma da posição coincidiria com a sua realidade. Ou seja, a matéria teria de ser também pura e simplesmente posição.

63. Id .. ibid., p. 159. 64. Marquet, Jean-François, Liberté et Existence, Étude sur la Formation de la

Philosophie de Schelling, Gallimard, Paris, 1973, pp. 37-38 (a propósito de um frag­mento de Novalis).

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Nesse caso, assim como a forma não seria anterior à posição, tam­bém o conteúdo se confundiria com o engendramento da forma. A total imbricação entre ser e ser pensado como que dissolve o objeto da reflexão na pura imediatidade do em-si da atividade produtora.

Entretanto, é possível dizer também que o objeto da reflexão não existe enquanto objeto encontrado. Não é possível descrever intuiti­vamente a consciência e assim chegar a uma dimensão em que a atividade de posição coincidisse com a passividade da força difundi­da. O que caracteriza o ato intuitivo é que ele é o seu próprio objeto. Não basta dizer que a intuição cria o objeto: a própria intuição é autocriar-se, sem que seja possível separar criador e criatura. Por isso a reflexão é abissal: a atividade vertiginosa é um mergulho infi­nito, e a reflexão como que atravessa sua própria infinitude. Seria contraditório encontrar neste movimento o ponto em que ele se detém.

A infinitude e a pureza da razão absoluta criam o paradoxo de que a razão humana não pode atingir a razão absoluta. Mas este paradoxo se desfaz quando compreendemos que a racionalidade humana se reduziu sempre à busca de uma objetividade adequada a um sujeito. O racionalismo absoluto de Schelling reúne a Vontade enquanto razão prática e a objetividade enquanto razão teórica. Es­sas duas dimensões, separadas em Kant, haviam criado o problema, insolúvel em termos kantianos, do conhecimento do supra-sensível e da própria razão enquanto vontade incondicionada. Ao reunir as duas dimensões num princípio que é ao mesmo tempo querer en­quanto princípio e conhecer enquanto princípio, Schelling não pre­tende, no entanto, recuperar a possibilidade do conhecimento obje­tivo do incondicionado. O princípio é incognoscível teoricamente não apenas enquanto vontade, mas enquanto princípio absoluto, do querer e do conhecer. Isso porque Schelling não via na aspiração supra-sensível da razão prática fundamento suficiente para postular o absoluto. É a própria razão, aquém de seu caráter prático e teórico, que é o absoluto e, como tal, incognoscível teoricamente. O fato de não podermos atingir o incondicionado racionalmente não significa que o mesmo esteja fora da razão, mas simplesmente que a polari­dade subjetividade/objetividade, forma pela qual se estrutura no homem a razão, não alcança a dimensão pré-objetiva e pré-subjetiva na qual se situa a Razão como princípio absoluto. A dimensão volun­tarista do sujeito absoluto está inscrita no nível da produção originá­ria, aquém da separação entre teórico e prático. Esse plano é incog-

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7. A VIDA COMO PRODUÇÃO ABSOWTAMENTE CRIADORA

noscível para o sujeito relativo, aquele constituído no interior da polaridade sujeit%bjeto". A diferença entre sujeito absoluto e su­jeito relativo cria um problema que afeta diretamente o percurso que estamos tentando fazer. O sujeito relativo, ao operar o movimento de reflexão, não atinge a dimensão do princípio absoluto porque, enquanto movimento relativo, essa reflexão não vai além da consci­ência já produzida pela relação sujeito/ objeto. É neste sentido que Schelling diz que "a reflexão pura e simples" barra o caminho para o sujeito absoluto, considerando-a mesmo uma "doença do espírito humano ( ... ) que destrói no germe sua existência superior e aniquila em sua raiz sua vida espiritual que tem por condição exclusiva a identidade"66. O esforço de Schelling vai no sentido de não permane­cer no que ele denomina idealismo relativo ou unilateral, que consis­te em inferir o Eu absoluto a partir de sua imanência ao Eu finito, como considera que ocorre no modelo fichtiano. Não se trata de explicar apenas a dimensão transcendental do Eu diante do não-Eu, mas de explicar também a existência do universo. A relação sujeito/ objeto supõe sempre um condicionamento recíproco, qualquer que seja o termo privilegiado. O sentido da consciência é dado pela nature­za no plano de sua manifestação objetiva. Sem elucidar a natureza, a consciência perde o significado de sua manifestação. É esse o senti­do do "retorno à física", interpretado como O retorno ao dogmatismo na filosofia de Schelling. No entanto, há duas maneiras precisas em que se deve entender o retorno à física. Em primeiro lugar, um sen­tido de correção e complementação do projeto de Fichte, que fazia da natureza uma produção inconsciente do Eu, no plano da imagi­nação produtora. Já vimos que a ampliação da noção de produção irrefletida para produção inconsciente remetida ao sujeito absoluto retira da natureza o estatuto de mero produto da subjetividade e situa em outro nível o problema do estatuto da representação. Em segundo lugar, a física na qual pensa Schelling não é a ciência new­toniana, mas a "física em grande escala" de que falava o Mais Antigo Programa do Idealismo Alemão, e cujo esboço está no projeto de física organicista de Goethe. A natureza como um todo deve ser

65. "O sujeito absoluto, sendo vontade pura. põe ° mundo; o sujeito relativo, maculado pela razão, se opõe ao mundo" (Bornheim, G., Aspectos Filos6ficos do Ro­mantismo, Instituto Estadual do Uvro, Porto Alegre, 1959, p. 74. Texto reeditado na coletânea Romantismo, org. J. Guinsburg, Perspectiva, São Paulo.

66. SChelling, Idées Pour une Philosophie de la Nature, tradução francesa, S. Jankélévitch, Essais, cit., p. 47.

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entendida como um grande organismo para a compreensão do qual o mecanicismo é insuficiente. Nesse sentido, o inerte é apenas um resíduo ou um projeto falhado no itinerário do espírito enquanto manifestação da Vida. A natureza é na verdade o devir do espírito e o mecânico é apenas o avesso do processo.

A solução de Schelling para a problemática do absoluto procura reunir a transcendentalidade do Eu e a objetividade da natureza, encontrando um princípio incondicionado a partir do qual se possa compreender a geração das duas formas fundamentais da filosofia, a subjetividade e a objetividade. O instrumento para a busca desse princípio é a intuição, que se inicia no movimento subjetivo de refle­xão mas que não se esgota nele. Há de se constatar, porém, que muito embora a identidade absoluta se situe aquém do sujeito e do objeto, a busca do incondicionado passa, ílinda que metodicamente, por um trajeto regressivo da subjetividade;- pois é no plano da consciência subjetiva que o movimento produtor toma consciência de si. Somen­te no plano da consciência se dá a possibilidade de recuperar o movimento da produção inconsciente. Embora a permanência no plano subjetivo da reflexão equivalha à recusa de pensar a identida­de, é somente através deste plano que o sujeito pode ter acesso à revelação de si mesmo como negação da identidade e, portanto, in­diretamente, à revelação da identidade. No trajeto regressivo da re­flexão, o Eu é o último objeto de si próprio, porque é, geneticamente, o primeiro. Se isso for considerado o término do trajeto filosófico, permaneceremos na esfera da síntese objetiva, ainda que no seu nascedouro. Mas como regredir subjetivamente para aquém da coin­cidência do Eu consigo mesmo? Aqui a consciência teórica encontra o seu limite e, assim, a identidade absoluta só pode ser pensada abstratamente. Para que a identidade deixe de aparecer como abs­trata, é preciso suprimir a condicionalidade subjetiva do objetivo. É preciso uma fusão da produtividade consciente e do movimento in­consciente. É preciso atingir conscientemente a presença, velada para si, da consciência na natureza. Desta forma a subjetividade se insere numa força pré-consciente e, levada por esta corrente, tenta a sínte­se entre a livre criação e a necessidade inconsciente." A produção artística rompe a separação entre o "em nós" e o "fora de nós", na

67. tl.A produção artística é uma tentativa de síntese do conflito entre a livre criação espiritual do artista e a necessidade inconsciente" (Bornheim, G., ob. cit., p. 85).

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8. INTUIÇÃO, REFLEXÃO E INTERIORJDADE

medida em que nela a unidade entre natureza e espírito se torna concreta.

8. INTUIÇÃO, REFLEXÃO E INTERIORIDADE

Ainda que o caminho para a intuição do absoluto passe necessa­riamente pela reflexão, na medida em que o incondicionado não pode ser buscado do lado do objeto, permanece em Schelling a separação entre reflexão e intuição, pois a reflexão de alguma forma subordina a infinitude do absoluto à finitude da consciência. Talvez seja neces­sário que a infinitude seja pensada primeiramente como subordina­da à finitude, já que provavelmente não há outra maneira de aceder à consciência do infinito a não ser por meio desta contradição. Por isto no diálogo Bruno, ou Do Princípio Divino e Natural das Coisas, é feito um longo caminho para se chegar à intuição temporalmente determinada, contraposta ao pensar como saber infinito. Mas o ape­Io à intuição mostrou também que a oposição entre determinação e infinitude era na verdade um entrelaçamento, e pensar este entrela­çamento já significava compreender "que e como tudo está contido em tudo e mesmo no singular está depositada a plenitude do todo". Portanto, se a intuição é diferença e o pensar indiferença, o pensar esta própria oposição significa situar-se num plano em que a dife­rença e a indiferença são uma e a mesma coisa. Donde se conclui que a "mera oposição" entre a determinação real e a indiferença ideal é índice de uma unidade entre o real e o ideal, ou a "absoluta unidade da unidade e da oposição". Na verdade, somente a intuição temporal está oposta ao pensar. Mas a intuição temporal é intuição aparente e confusa, ou seja, própria da consciência subjetiva. "Portanto, aban­donarás este estreito em que te havias mantido anteriormente, ao restringires a unidade suprema à consciência, e ganharás comigo o livre oceano do Absoluto, onde não só nos moveremos mais viva­mente, mas conheceremos a infinita profundeza e altura da razão"." A intuição do infinito deriva da referência do conhecer finito ao co­nhecer infinito, ou a possibilidade indefinida do conhecimento, que ainda é infinito de entendimento. O conceito, por exemplo, é uma possibilidade infinita de conhecimento infinitamente posta pela pró-

68. Schelling, Bruno ou Do Princípio Divino e Natural das Coisas, tradução Rubens R. Torres Filho. Nova Cultural, São Paulo, 1989 (coleção Pensadores), p. 129.

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pria diferença entre a generalidade conceitual e a particularidade das coisas determinadas. É o plano lógico do infinito. No entanto a possibilidade deste plano está dada pela referência do conhecer finito ao infinito; as determinações cognitivas derivam dessa referência, ou melhor, do absoluto que na relação é referido. A oposição entre real e ideal pode ser vista como uma relação reflexa, cujos termos são valorizados unilateralmente, se não a entendo como a relação entre ser infinito e conhecer infinito, resolvida na eternidade. Por isto ati­vidade não se opõe a ser. Se os produtos da atividade produtora são no plano da finitude depositada historialmente, temporalmente, a atividade enquanto evolução material da naturalidade finita só é corretamente compreendida quando a remeto à sua qualidade infi­nita, onde atividade se confunde com eternidade. Assim, pode-se manter com a atividade infinita uma relação contemplativa, posto que sua essência infinita não se traduz como processo indefinido, e sim como eternidade. O caráter igualmente absoluto do ser e do conhecer corresponde à identidade entre ser, intuir e pensar. "Pois no absoluto tudo é absoluto e se, portanto, a perfeição de sua essên­cia aparece no real como ser infinito, no Absoluto o ser como o co­nhecer são absolutos e, na medida em que cada um é absoluto, tam­bém nenhum deles tem uma oposiÇão fora de si no outro, mas o conhecer absoluto é a essência absoluta, a essência absoluta o co­nhecer absoluto"."

Compreende-se que a reflexão subjetiva não se possa elevar até a dimensão do infinito de razão, a eternidade. Talvez a expressão mais adequada do que significa o conhecer infinito, na sua identida­de com o ser infinito, se encontre em Novalis, quando estende a reflexão à indiferenciação do pensável-pensante como totalidade: efetividade e pensamento são sinônimos, tudo o que é, pensa. O absoluto é pensante, mais do que pensado. Por isso a teoria fichtiana do Eu aparece como demasiado estreita para Schlegel e Novalis: o Eu é uma perspectiva particular do pensamento; cabem ainda outras, como a natureza e a arte. Mas o essencial é a afirmação da totalidade pensante que caracteriza o absoluto. Assim a reflexão reaparece na forma da mais profunda e radical totalização. Tudo o que é, é no absoluto, como absoluto; o absoluto é efetividade plena; tudo o que é efetivo, pensa. Com isto compreendemos melhor por que em

69. Id .• ibid .• p. 136.

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Schelling a atividade e o ser não aparecem como produtor e produto, mas como idênticos. Compreendemos também que, da mesma ma­neira que a reflexão subjetiva é mera particularidade, a reflexão total aparece necessariamente como a face identitária do pensamento. Walter Benjamim assinala de modo claro esta relação única e neces­sária do pensamento consigo próprio. Já que tudo que é efetivo pen­sa, "este pensar, sendo o da reflexão, só pode pensar a si mesmo ou, mais exatamente, seu próprio pensar; e como este próprio pensar é um pensar substancial e pleno, ele se conhece no tempo em que se pensa"70. Dir-se-á, portanto, que há uma reflexão do objeto? A ex­pressão se mostraria adequada apenas para reforçar a disseminação da potência reflexiva, mas esta disseminação envolve necessariamente a desaparição das noções de sujeito e objeto. No entanto a identifi­cação que faz Novalis entre pensar e conhecer na modalidade da reflexão suscita inevitavelmente a questão da relação entre conhecer e ser conhecido, problema aliás que já aparecia na menção schellin­giana do conhecer infinito. Em Schelling, como vimos, a presença da inteligência na natureza era a forma de esta tornar-se si mesma, ou de reconhecer-se como espírito. Mas sem que aqui precisemos ape­lar para aspectos específicos da filosofia da identidade, podemos notar que a inseparabilidade entre conhecer e ser conhecido significa a inserção da reflexão no modo de ser e pensar-se da totalidade. Para Novalis, "a ipseidade é o fundamento de todo conhecimento"", e o ser-conhecido de um objeto pressupõe o conhecimento que ele tem de si mesmo. O conhecimento é como a germinação da reflexão no ser pensante, isto é, em todos os seres. Todo conhecimento é, pois, um procedimento de autoconhecimento. Enunciada de forma tão radical, a concepção de Novalis mostra o problema do conhecimen­to a que habitualmente chamamos de "objetivo". Pois, segundo ela, cada ser conheceria apenas a si mesmo. Não podemos, rigorosamen­te, falar em conhecimento "objetivo", mas apenas em conhecimento de outro ser, o que se dá através de algo como uma expansão do autoconhecimento. O universo não é um agregado de mônadas in­comunicáveis, mas, se há comunicação, ela não se dá sob a forma da "objetivação". O que existe são relações de inclusão de outros seres no conhecimento que um ser tem de si mesmo, através da potencia­lização da reflexão. Não nos esqueçamos de que Novalis chama a

70. Benjamim, W., ob. cit., pp. 92-93. 71. Novalis citado por W. Benjamim, ob. cit., p. 93.

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esta potencialização de "romantização", um procedimento de acrés­cimo de si mesmo, ou de incorporação de outro a si, como ocorre na potenciação em sentido matemático, A potencialização representa um sair de si que é ao mesmo tempo um permanecer em si, pois um ser multiplicado por si mesmo permanece tal e qual ainda que mo­dificado ou expandido pela multiplicação. A reflexão é o único pro­cedimento de conhecimento. Mas não apenas o homem pode fazer uso dele. Também os objetos "naturais" são dotados de reflexão, são centros de reflexão. O conhecimento de outro é irradiação do auto­conhecimento. As recíprocas irradiações de autoconhecimento cons­tituem uma espécie de comunhão reflexiva que deve ser entendida como uma comunicação cognitiva. "Tudo o que, por conseqüência, aparece ao homem como o conhecimento que tem de um ser é o reflexo, nele, do autoconhecimento do pensar neste mesmo ser"." Mas a comunidade reflexiva não é outra coisa senão a ausência de limitação de cada ser na sua auto-reflexão. A intensificação ou a potencialização da reflexão mostram que não há barreiras entre co­nhecer e ser-conhecido, ou simplesmente que não há barreiras entre os seres, pela razão de que o plural aqui empregado reflete tão-so­mente a participação de todos os indivíduos no absoluto. Walter Benjamim afirma que a reflexão é o "medium" no qual se dá a exis­tência e o conhecimento.

É a interpretação que ocorre nesse "medium" que nos propor­ciona a um tempo a indivíduação e a remissão dos indivíduos ao absoluto. Isso significa que a relação de conhecimento, longe de se dar sob a égide da separação entre sujeito e objeto, traduz por si mesma a supressão dessa dualidade. A relati\idade dos indivíduos na comunhão reflexiva remete à interpenetração fundamental. "Todo conhecimento é uma conexão imanente no absoluto ou, se se quiser, no sujeito. O termo 'objeto' não designa uma relação no conheci­mento mas uma ausência de relação"." Uma complexa rede reflexiva governa, assim, as relações de conhecimento. O ser que conhece, conhece antes de mais nada a si mesmo: conhece e é conhecido; o ser que é conhecido ("objeto") o é enquanto se autoconhece e en­quanto conhece aquele que o conhece, o qual por sua vez é conhe­cido enquanto se autoconhece ... Esta rede reflexiva representa a or-

72. Benjamim, W., ob. cit., p. 95. 73. Id., ibid., p. 96.

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8. INTUIÇÃO, REFLEXÃO E [NTERIORIDADE

ganicidade do absoluto. O que decorre dessa teoria do conhecimen­to é que o conhecimento se define evídentemente pela imediatez, já que é fundamentalmente autoconhecimento. Não há diferença, quan­to à imediatidade, entre autoconhecimento e interpenetração refle­xiva pela qual se dá o conhecimento de outro ser. A concepção de Novalis tem estreita relação com a imanência a si do Eu fichtiano. Com efeito, o Eu conhece porque se conhece, assim como o olho vê porque se vê. Na verdade, correto seria dizer que o olho só vê porque se vê, a imaginação só imagina porque se imagina etc. Em suma o pensamento só reconhece o pensamento, e tudo é conhecido na medida em que se pensa. Fichte vía como traço original em sua filo­sofia o fato de que o filósofo evocava ou provocava a ativídade do Eu para observá-la e para poder concebê-la em sua unidade. O filósofo se punha na posição de espectador da ativídade do Eu, o que é muito diferente de simplesmente pensar o Eu num sentido objetivo. Novalis amplia o alcance desta evocação para todo e qualquer objeto, o que redunda numa interessante relação entre, por assim dizer, consciên­cias de si. Pois conhecer significa evocar a consciência de si daquilo que é conhecido, já que a relação de conhecimento é a relação de autoconhecimento. Conhecer significa portanto provocar aquilo que cada ser possui de mais íntimo: a relação consigo mesmo. A relação do homem, assim relacionado consigo mesmo, com outros seres por sua vez relacionados a si mesmos é o que Novalis denomina idealis­mo mágico. A comunicação vísa identificar-se com o devír daquilo que é conhecido, e essa identificação exige do cognoscente que re­nuncie à posição de sujeito. Assim o "objeto" não é conhecido pelo sujeito, mas por si mesmo. Novalis concorda com Goethe: conhecer a natureza não significa propor questões ao mundo natural. A obser­vação e a experimentação significam deixar acontecer o autoconhe­cimento: a atitude de espectador é a que melhor convém ao proce­dimento de identificação.

É preciso notar também que o medium da reflexão é a ancora­gem da relação absoluta que se dá entre todos os elementos relativos que compõem a nossa vísão necessariamente descontínua do abso­luto. A relativídade desses elementos é o avesso da unidade reflexiva do ser. Apesar de que em Novalis exista ainda uma forte influência fichtiana que o impede de afirmar explicitamente a identidade abso­luta, a potencialização reflexiva indica que a incorporação recíproca dos elementos relativos resulta numa totalidade orgânica, não so­mente em termos de conhecimento, mas também em termos de ser,

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na medida em que a reflexividade de cada elemento assegura a iden­tidade entre ser e ser-conhecido. A identificação entre real e pensan­te faz com que O ser identifique-se com o pensar-se, não no sentido em que cada coisa seria objeto de si própria, mas no sentido em que O pensar reflexivo é, para tudo O que existe, índice de si mesmo.

Esta espécie de inter-reflexividade na forma da conexão imanen­te faz com que a conexão infinita das representações (Schlegei) não seja necessariamente ordenada pela consciência finita do homem, mas se dê como disseminação em que a exponenciação reflexiva assegura a expansão orgânica da consciência de si do absoluto. No plano da consciência humana, a potencialização ou a intensificação da reflexão, além de ser fator de autoconhecimento, é também órgão de transformação e criação. A partir da idéia fichtiana de produção da consciência através da imaginação, Novalis concebe o poder ab­soluto de produção, com uma legalidade imanente que deriva total­mente da consciência produtora e criadora. Para ele, a liberdade do espírito não é compatível com leis anteriores ao potencial criador da imaginação. O espírito não é apenas soberano no aspecto operatório de sua produção: ele é soberanamente livre porque se governa a si próprio e à sensibilidade, "plasma o mundo a seu prazer"". Nesse sentido O movimento de reflexão não determina objetivamente o espírito; pelo contrário, a reflexão, na sua radicalidade, alcança a in­determinação do espírito e é o que permite ao homem superar-se na criação e autocriação. "Não devemos ser meramente homens, deve­mos ser também mais do que homens. Homem, em geral, equivale a universo. Não é nada determinado, pode e deve ser ao mesmo tempo qualquer coisa de determinado e de indeterminado75

." A in­tensificação da consciência, ao mesmo tempo em que realiza o po­tencial reflexivo, revela o poder criador e transformador inscrito na relação de interioridade recíproca que a consciência mantém com tudo que a rodeia. A indeterminação significa que é o potencial cria­dor que vai definir, a cada momento, o ser do homem em relação aos outros seres. É claro que essa possibilidade aparece primeiramente, tal como nos outros pensadores da vertente prático-voluntarista, com um sentido moral. Mas em Novalis, este sentido expande-se para o plano ontológico por via do idealismo mágico, por meio do qual se

74. Hartmann, N., ob. cit., p. 230. 75. Novalis citado por Hartmann, ob. cit., p. 231.

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8. INTUIÇÃO, REFLEXÃO E INTERIORIDADE

abre a possibilidade da própria transformação material a partir da vontade. Assim a consciência reflexiva revela-se como veículo de auto­-revelação do absoluto. A perfeita compreensão da filosofia significa entender esta auto-revelação. A originalidade do idealismo mágico consiste em admitir que esta auto-revelação se dá na intuição inte­rior com a qual a criação está em continuidade. No caso da moral isso se expressa na imanência dos valores à ação. Mas essa criação em continuidade com a intuição interior afirma-se mais precisamen­te na arte, na medida em que o artista cria realmente a partir do mundo que iiltui interiormente. No artista, a reflexão é imanente à atividade criadora. A arte do pintor é a arte de ver, a arte do músico é a arte de ouvir: neles O que nos outros homens é passivo transfor­ma-se imediatamente em atividade. O enigma da criação consiste propriamente nesta inserção absoluta em que a passividade é ativi­dade e em que a contemplação é produção. A produção da forma através dos órgãos espirituais do ver e do ouvir constitui a genialidade, que se define como a imanência das regras à produção. O gênio possui portanto o poder absoluto de dar forma segundo leis intrínsecas à própria genialidade. Só a criação inteiramente livre é compatível com a soberania do espírito. No artista a solicitação da ação, da vontade, coincide com o núcleo interior da vida, e deste se irradia a produção da forma como pura criaçãO. A comunicação entre o núcleo interior e o que está fora dele não se configura como exterioridade recíproca. Justamente a magia do idealismo criador consiste em que este nú­cleo interno é o mundo na sua verdade absoluta. Por isso a arte é órganon de manifestação da verdade e poesia e filosofia se confun­dem enquanto meios de revelação do devir interno das coisas, ou da poíesis, produção interna do real que a fantasia e a imaginação cap­tam diretamente. A coincidência entre o núcleo intuitivo interno e o que chamamos de "mundo real" faz com que a fantasia seja o mais autêntico acesso à verdade. "A poesia é o real autêntico e absoluto. Este é o cerne da minha filosofia. Quanto mais poético tanto mais verdadeiro76." Se a filosofia mostra-se como órgão de conhecimento da verdade da mesma maneira que a poesia, a reflexão enquanto produção fIlosófica não pode assumir o caráter determinante que contrariaria a indeterminação da consciência profunda enquanto núcleo intuitivo. A filosofia deve ser caracterizada pela indetermina­ção e o único sistema filosófico possível é o sistema da liberdade ou

76. Novalis citado por Hartmann, ob. cit., p. 233.

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO

"a assistemática levada até o sistema"n de maneira semelhante à concepção de sistema que já vimos ser a de Schlegel. Reflexão infi­nita supõe sistema infinito. Se a única determinação é criação, a de­terminabilidade filosófica será sempre oscilante entre a determina­ção e a indeterminação. A criação é produto indeterminado. Dessa forma, a filosofia é, para Novalis, arte absoluta, pois seu produto não é exatamente uma obra, mas a forma absoluta, ou a essência abso­luta do mundo, que se autoconhece na medida em que é poietica­mente revelado na reflexão filosófica. A filosofia realiza mais perfei­tamente a atividade poiética na medida em que é poesia sem poema, atividade sem produto, poetizar absoluto. O filosófico é portanto a atividade poetizante no seu sentido inacabado e infinito. Assim o infinito e o absoluto transparecem na filosofia: na medida em que o mundo interior e o mundo exterior ligam-se por transparência, e a produção desta transparência é a atividade simbólica a partir da re­flexão. A liberdade mais perfeita é o situar-se nesta transparência plasmadora, "entre dois mundos, num estado intimamente vivo" que se traduz num sentimento de poder.

Se assim se pode dizer, a reflexão como conexão infinita, que vimos em Schlegel, ganha aqui algo como uma translação cognitiva que confere dinamismo e organicidade à apreensão do absoluto. Repitamos que esta apreensão é sempre auto-apreensão, sem que a consciência humana perca com isso sua personalidade. Pois o abso­luto é dotado de auto-reflexividade porque cada modo de consciên­cia que nele se dá opera por reflexão. Por isso na interioridade se encontra um mundo, o mundo, e a imaginação quanto mais se volta sobre si e exerce seu poder de produzir fantasia tanto mais apreende o real no que este tem de mais autêntico. Goethe se perguntava: "Não está o mais profundo da natureza no coração do homem?"" Não se trata de uma coincidência da interioridade com a exteriorida­de, mas de uma identificação de duas interioridades, ou de dois cen­tros de reflexão. Mas o que pode ser esta identificação senão o reco­nhecimento da interioridade fundamental, o situar-se no núcleo ín­timo do ser de onde irradia a criação que não é outra coisa que a expansão reflexiva do ser como totalidade, na qual atividade e con­templação se confundem porque justamente a criação não é produ-

77. Novalis citado por Hartmann, ob. cit., p. 234. 78. Citado in Frank, Simon, L'Intuition Fondamentale de Bergson, in Henri Bergson,

Essais et Témoignages, ob. cit., p. 190.

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8. INTUIÇÃO, REFLEXÃO E INTERIORIDADE

ção externa ou plasmação da alteridade, mas tessitura poética inter­na como modo de revelação da realidade na sua mais efetiva pleni­tude? Ê claro que se pode falar aqui de planos de realidade. O gênio permanece adormecido na caricatura de criação que é a instrumen­talidade cotidiana, ou na relação mundana regulada pelo bom senso

. em termos de interioridade/exterioridade. Mas não há por que falar de uma sucessão linear de planos de realidade ou de consciência, uma vez que os centros de reflexão projetam-se transversalmente. No plano dessa translação ou dessa transversalidade, o fóssil e a es­trela são centros de reflexão, assim como o é a consciência humana. N a relação de conhecimento que é simultaneamente conhecer e autoconhecer, a estrela encontra o olho tanto quanto o olho encon­tra a estrela, e o fóssil nos observa quando o observamos. Isso nos serve de ocasião para dizer que, em Bergson, o elementar pode estar mais próximo do princípio do que um órgão instrumental cuja per­feição custou exatamente o afastamento das origens. Assim é que o instinto está mais próximo do élan original do que a inteligência. A "enteléquia biológica"" que não possui O discernimento da consciên­cia instrumental está no entanto mais próxima da força criadora, sem que possa disto tomar consciência.

Esta rápida passagem pela concepção da reflexão disseminada em Novalis serviu para nos mostrar que, para os românticos, a rela­ção entre reflexão e conhecimento inclui uma afirmação da reflexão no plano pré-subjetivo e pré-objetivo que é solidária da auto-reflexi­vidade do ser. Assim compreendemos por que Schelling podia afir­mar a pobreza da reflexão subjetiva quando se trata de alcançar a dimensão cósmica do espírito e o seu desdobramento na desconti­nuidade finita.

No meio reflexivo, a imanência da consciência à totalidade, a imanência de cada ser à totalidade do Ser: assim se configura a pos­sibilidade da intuição e da criação, na medida em que o infinito toma forma através da atividade criadora, seja nos produtos finitos da arte, carregados da presença do infinito, seja na atividade poiética filosó­fica da realização das formas ou essências (real-idealização). Mas como explicar a criação, se o absoluto está dado, na sua atividade I

79. "C .. ) a idéia profunda de uma afinidade paradoxal segundo a qual o inferior e o elementar podem estar freqüentemente mais intimamente vinculados ao princípio superior do que os graus intermediários aos quais estamos mais atentos na vida co­tidiana" (Simon, F., ob. cit., p. 193).

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO

passividade infinita, unidade eterna da qual o particular é apenas figuração? Se é a intuição do absoluto que possibilita a figuração, a criação figurada do infinito no finito, esta criação não será sempre derivada, cópia incompleta da totalidade inexprimível por já ser in­dissociadamente realidade e expressão? Nesse caso, mesmo que cri­ar significasse participar do absoluto, tal participação não seria se­quer seguir um paradigma, pois não é o modelo que está dado, é o próprio Real na sua completa efetividade. Mas se o Ser é Liberdade, a imanência não é apenas participação na Liberdade, é ser livre na plena identificação com a Liberdade. A partir da Liberdade como interioridade em si, o que deve ser explicado é a necessidade exter­na, o aparecimento daquilo que não foi inventado: o resíduo a posteriori da criação. Criação irrefletida ou produtividade inconsci­ente, o mundo "real" da natureza adverte-nos, na sua densidade, que a atividade criadora considerada nela mesma supera o homem, e que o criador não é apenas homem. Por isso mesmo, a criação humana tem um sentido predominantemente moral. Criação huma­na talvez seja aqui um termo inadequado. Melhor seria dizer criação a partir do homem. A imanência do princípio à ação e a do valor ao ato figuram a imanência da consciência à totalidade. Afinal, é a ampliação da noção kantiana de mundo prático que aparece aqui como a chave para a compreensão da atividade criadora. O produto artístico é sensível, mas seu significado é infinito; apenas este signi­ficado não transcende o produto, mas está nele como imanência pro­dutora. A ação é sensível, mas o corpo é instrumento do espírito enquanto órgão infinito. O valor é criação que não transcende a ação, mas lhe confere a forma pela qual ela ultrapassa a finitude.

Aqui retomamos o fio condutor estabelecido a partir do que chamamos em Bergson a aporia da reflexão. A instrumentalidade natural da consciência fabrica; a intuição cria quando o espírito volta as costas à instrumentalidade finita. Isto significa que a consciência criadora é consciência da liberdade, o que é o mesmo que dizer: consciência imanente à duração. Tal imanência dilui a relação subjeti­va que a consciência tem com o mundo natural e integra a subjetivida­de na temporalidade pré-objetiva, depois que a intuição provocou a morte da objetividade. Assim o advento da intuição é a descoberta "da imediatidade criadora do élan original"80. Esta imediatidade é

80. Brétonneau, G., Création et Valeurs Bthiques chez Bergson, SEDES, Paris, 1975, p. 10.

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8. INTUIÇÃO, REFl..EXAO E INTERIORIDAOE

descoberta num percurso que à primeira vista parece ser duplo: a gênese objetiva do instinto e da inteligência a partir do princípio vital ou élan original, de um lado, e a reflexão que, ultrapassando a objetividade da inteligência, recupera, sem poder estabelecê-la com exatidão, a dimensão pré-objetiva e pré-subjetiva em que a cons­ciência coincide com a temporalidade em si. Na verdade são como que duas faces da mesma moeda, pois a gênese objetiva da cons­ciência subjetiva leva à constatação das virtualidades instintivas da inteligência, o que permite recuperar pela reflexão o estrato de coin­cidência entre consciência subjetiva e consciência em geral. Há nes­se percurso um movimento ambivalente: a gênese objetiva da cons­ciência me mostrou sua imanência à duração; no entanto, para com­pletar o movimento da reflexão e alcançar o plano em que consciên­cia de si e consciência em geral se identificam, tenho de transcender a temporalidade subjetiva. Mas se a temporalidade subjetiva é a face consciente do Tempo, como posso transcendê-la sem romper a ima­nência da consciência à duração? Transcendendo a temporalidade da consciência, que é a face subjetiva do Tempo, não estaria aban­donando a via "temporalista", única maneira de aceder à intuição do absoluto? Podemos encaminhar essa questão no sentido de uma com­preensão mais específica do que significa no pensamento bergsonia­no a noção de transcendência. Se transcendente for sinônimo de algo que, situado num plano mais elevado, subordina a si e compreende de alguma forma sob si outras realidades que dele dependem onto­logicamente, numa ordem de ser, então, no contexto do pensa­mento bergsoniano não podemos falar em transcendência, pois ne­nhuma realidade transcende o Tempo. A temporalidade subjetiva e a temporalidade objetiva são denominações extrínsecas de uma mes­ma realidade. Para passar da temporalidade subjetiva, ou da tempo­ralidade objetiva, à temporalidade como tal, a consciência deve ul­trapassar o plano da polaridade sujeit%bjeto, o que significa que ela deve ir adiante da instrumentalidade finita ou do plano da inten­cionalidade pragmática, de um lado, e recuar para aquém da cons­ciência subjetiva, para o plano em que à supressão da objetividade corresponde a supressão da subjetividade, de outro. Ir adiante da consciência instrumental significa alcançar a presença; recuar para aquém da consciência subjetiva significa recuperar de alguma ma­neira o nível intuitivo de coincidência com a consciência em geral, espírito ou duração. Qualquer destas duas direções implica o aban­dono da perspectiva teórica da discursividade. Portanto quando fa­lamos em transcendência, falamos em superação do recorte objetivo

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da representação e do recorte subjetivo do modo de consciência humano. Tal como em Novalis, a intuição, por implicar uma relação interna com a totalidade, é algo que ultrapassa o homem, se bem que se dê a partir dele. O homem traz em si como se superar, já que traz em si a marca da origem e do original. A temporalidade originá­ria identificada com o absoluto nos isenta de apresentar a Bergson o problema que mencionamos acima com referência a Schelling e Novalis. A produtividade originária não se reveste da característica ambivalente atividade/passividade, necessária para que a presença possa ser pensada no plano da eternidade e não apenas no plano da abertura temporal. Em Bergson, o absoluto é efetivamente dinâmico porque é temporalidade no sentido do contínuo fazer-se. Assim como o tempo está na mobilidade mais do que nas dimensões temporais, o absoluto, que é Tempo, deve ser entendido como movimento e, do ponto de vista dos seus produtos, como um contínuo superar-se.

Como o absoluto é movimento que atravessa seus produtos ao produzi-los, a interioridade é sua marca característica. Eis a razão pela qual a intuição pode simpatizar com o absoluto: assim como este não fabrica produtos, mas os cria a partir da interioridade rela­tiva de cada um, assim também a intuição comunica-se com o inte­rior das realidades intuídas. Assim se compreende que a intuição seja reflexão: é na interioridade da consciência que buscamos as "raí­zes do nosso ser" ou as raízes do ser em geral, já que no plano da interioridade mais profunda o externo e o interno remetem-se igual­mente ao princípio originário. "( ... ) se por uma primeira intensifica­ção, ela (a intuição) nos fez alcançar a continuidade de nossa vida interior, se a maior parte de nós não poderia ir mais longe, uma intensificação superior a levaria talvez até as raízes de nosso ser e, assim, até o princípio da vida em geral" (0.S.-265). Tal como em Novalis, a intensificação da reflexão alarga o alcance da intuição fa­zendo-a penetrar mais profundamente na interioridade da consciên­cia e finalmente fazendo-nos alcançar o próprio ser como interiori­dade. Diríamos que a verticalidade do esforço de intuição interior transforma-se, a partir de certo momento, numa horizontalidade que abrange a interioridade e a exterioridade num mesmo horizonte de conhecimento originário. Mas talvez não caiba conservar aqui a oposi­ção entre exterioridade e interioridade, pois o objetivo da intuição é o movimento originário e absoluto como interioridade em si, como uni­dade múltipla que internamente se cria. Quando dizemos que a carac­terística da intuição é o conhecimento interno, dizemos simplesmente

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que o objeto da filosofia é a interíoridade, o que é o mesmo que dizer: o ser como temporalidade. É portanto a potencialização da reflexão que implode a interioridade subjetiva e nos põe no plano da interioridade pura, que é o movimento produtor do ser no seu sen­tido originário.

Para que este movimento se complete, não basta coincidir con­templativamente com a continuidade interior, pela qual nos senti­mos parte da totalidade, ou melhor, modo da totalidade. É preciso coincidir dinamicamente com a atividade originária: somente então a intuição se dá como criação. Já que o que nadafaznada é, a intuição como procedimento cognitivo somente se efetivará quando coincidir com o ser como fazer-se, ou COmo criação. Bergson não recupera ape­nas a identificação entre ser e intuir como identificação absoluta. Ele concebe esta identificação a partir do dinamismo absoluto do princípio produtor. Assim a coincidência é com o devir absoluto enquanto liber­dade criadora. É esta liberdade criadora que se manifesta no artista e no criador de valores morais. É nessas duas dimensões que a intui­ção se pode exercer com maior efetividade, já que é neste plano que aparece de maneira mais vigorosa a oposição entre a consciência profunda e a instrumentalidade finita. No universo da ação moral, ou no mundo ético-religioso é que veremos, portanto, a intuição es­capar à aporia da reflexão, sem deixar de dar-se como reflexão. Para tanto necessitamos examinar o estatuto da intuição em Deux Sources deja Morale et de la Religion.

9. A INTERIORIDADE EM SI

Para Bergson, o plano moral da instrumentalidade finita é circu­lar: do individual ao social e do social ao individual, a incorporação de valores éticos tem por finalidade a preservação do grupo e, de uma maneira mais geral, a coesão e a sobrevivência de sociedades fechadas. Sob este ponto de vista, a universalidade da obrigação re­presenta apenas a impessoalidade das regras que governam a convi­vência. Muito embora a inteligência seja fator de individuação, a virtualidade instintiva adormecida no fundo do intelecto é suficiente para compatibilizar o egoísmo natural de um ser inteligente com as outras individualidades que constituem o grupo. O horizonte da obrí­gação moral é, pois, estreito: não vai além da soma consentida dos egoísmos individuais. É este o domínio da moral fechada, aquela em

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que as regras derivam do equilíbrio dos interesses e não de valores efetivamente universais. Estes seriam aqueles cultivados pela moral aberta, na qual, para além do grupo, o que se visa é a humanidade como fundamento de valor. Não se trata apenas de uma expansão de conteúdo: é a qualidade da moral que neste caso se altera, são valo­res radicalmente diferentes que estariam na base das atitudes mo­rais. É, portanto, uma nova forma ética, que ultrapassa o plano da justificativa intelectual para a moderação dos interesses individuais. Interessa-nos verificar aquilo que, para além da lógica intelectual da sobrevivência em grupo, fundamentaria essa outra escolha de valo­res; o que, para além do nível da inteligência propriamente dita, explicaria a relação ética do individuo com a totalidade da espécie e, mesmo, com algo que a ultrapasse. A diferença de natureza entre as duas valorações se mostra na ausência de um objeto, estritamente falando, no segundo caso. Pois a humanidade não pode ser conside­rada um objeto do mesmo teor que os objetos situados no plano da instrumentalidade, ou da finalidade moral no seu sentido utilitarista. Mais do que isso, nem mesmo se pode dizer que a humanidade aí esteja como um objeto, qualquer que seja o sentido que venhamos a dar a esta noção. Aquele que visa à humanidade no plano da rela­ção ética "lança-se para mais longe; só atinge a humanidade na con­dição de atravessá-la". Trata-se de um movimento que se traduz numa atitude "que se basta a si mesma" (0.5.-35). Este movimento, que supera os hábitos e a pressão socia\' ou seja, supera a inteligência e a virtualidade instintiva que harmoniza a individualidade com o gru­po, supõe uma ação da sensibilidade. Esta ação pode assemelhar-se exteriormente a uma obrigação, e esta é a razão pela qual se pode legitimamente falar da inelutabilidade da paixão. Seria uma obriga­ção sem constrangimento, uma obrigação livremente consentida, mas que guardaria a característica da inevitabilidade, própria da obriga­ção impessoal. Em ambas há a exigência de cumprimento de algo como um dever, em todo caso de uma ação. Na verdade, nem mes­mo a impessoalidade poderia ser nitidamente vista como uma carac­terística distintiva, pois a força da sensibilidade universaliza a emo­ção, fazendo com que mais nos sintamos nela do que ela em nós. Mas a força da emoção, e o circuito que ela estabelece entre os indi­viduas, no plano da humanidade inteira, deriva do caráter novo da emoção em relação ao sentimento de obrigação da moral fechada. A universalidade da emoção ética sugere analogias com a emoção es­tética, na medida em que o transporte característico desta última

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também nos faz sentir como inevitável a emoção em que nos in­troduzimos quando da contemplação de uma obra de arte. É a rever­beração de sentimentos dantes insuspeitados, acordados no fundo de cada um, que nos transporta em comunhão universal numa emo­ção original. Quando traduzimos esta emoção em palavras, necessariamente fazemos com que seu caráter único se perca na uni­formidade do signo. "( ... ) alegria, tristeza, piedade, simpatia são palavras que exprimem generalidades às quais temos de nos remeter para traduzir o que a música nos faz experimentar, mas (a) cada música nova aderem novos sentimentos, criados nesta e por esta música, definidos e delimitados pelo próprio desenho, único em seu gênero, da melodia ou da sinfonia" (0.5.-37). Assim, não é daquilo que já possuímos que são extraídos esses sentimentos; nós é que os traduzimos obrigatoriamente nas palavras que já conhecemos, e que nos parecem exprimi-los mais aproximadamente. Aqui já não esta­mos no plano da finitude instrumental, em que os sentimentos ser­vem à manutenção da coesão do grupo e são ditados pelas necessi­dades de preservarmos a sociedade constituída. São emoções novas, inventadas, correspondentes à criação e à invenção da obra que as causa. Fora do domínio da instrumentalidade, existe uma relação estreita entre emoção e criação; não é preciso que uma obra de arte esteja sempre na origem desta relação. O amor da natureza, o amor romanesco, as emoções sugeridas por determinadas paragens são, primeiramente, sentimentos "vizinhos da sensação" em quem os experimenta. Mas quando esse sentimento, que apenas prolonga a sensação, é transfigurado em uma emoção nova, a criação se incor­pora ao patrimônio sensível da humanidade. Nesse caso, é a própria emoção que seria a obra a servir doravante de referência para os sentimentos que o objeto desperta.

A emoção, sendo criação, é também um impulso para que a cria­ção se efetive. Por isso a criação da obra de arte se dá a partir de uma emoção que é, ela mesma, criação do artista. "Há emoções que são geradoras de pensamento"; há emoções "que são prenhes de repre­sentações, das quais nenhuma está propriamente formada, mas que ela tira ou poderia tirar de sua substância por meio de um desenvol­vimento orgânico" (0.5.-40). Esta agitação profunda da alma antece­de no tempo às representações que a traduzem, de resto imperfeita­mente; mais correto seria dizer que ela engendra representações que seriam transposições dos movimentos afetivos em idéias. O que ca­racteriza esse movimento profundo da sensibilidade é, em primeiro

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lugar, o seu caráter inexprimível. Mas o emergir para os níveis mais superficiais do Eu é já uma procura de expressão. A marca da intui­ção profunda, no caso da obra de arte, é a coincidência entre o autor e seu objeto. Esta coincidência não é outra coisa senão a originalida­de da emoção que está na gênese da obra. Não se trata de combinar idéias já feitas para exprimir uma nova articulação. É o próprio ma­terial que deve ser refundido: são os próprios signos que sofrem uma transformação prévia, para que, como novos elementos, possam exprimir uma articulação original. É como se os signos retomassem a um estágio pré-significativo, no qual perderiam algo da solidez que a cristalização significativa lhes conferira. Ao reaparecer como signi­ficando a emoção original, essa nova formação significativa nada deve às significações cristalizadas anteriormente. Se os signos não pre­existissem de qualquer maneira a toda forma de expressão, podería­mos dizer que se trata de uma nova forma engendrada por um novo conteúdo. Isso não se dá no estrato da materialidade dos signos, mas ocorre no âmbito das significações. A gênese intuitiva da obra como que engendra a forma pela qual ela se tomará sensível: o espírito informa a partir de si mesmo, ou seja, a partir da profundidade da emoção na qual a obra se encontra em caráter inexprimível. A ex­pressão é sempre luta com o significado cristalizado. O esforço para modelar o signo segundo a emoção é propriamente o trabalho cria­dor. A virtualidade representativa da emoção criadora se encontra a priori diante de uma multiplicidade indefinida de possibilidades, no jogo das quais se dará a expressão como passagem da intuição do interior para o exterior, para a materialidade dos signos. Mas esta materialidade servirá de ocasião para que, através de um outro jogo de significações, o significado seja apreendido por uma outra interio­ridade, sob o signo da universalidade do sentimento. Apreender um significado criador é introduzir-nos num sentimento, mais do que introduzir o sentimento em nós. A obra de arte é única e original porque seu referente é único, a originalidade da emoção do artista.

No plano moral, as mesmas considerações se aplicam à compre­ensão da criação de valores. Uma intuição de valor moral passa ao plano da representação quando encontra meios de se transformar em doutrina, ou ao menos em um conjunto de idéias morais. Nesse caso, a especulação que sistematiza a moral é segunda relativamente à intuição criadora. O valor moral transita pelo circuito voluntarista da emoção. Ele pode se cristalizar em noções e em doutrina, mas se na origem não houver uma emoção, este valor não moverá a vonta-

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de, não estimulará ações morais. Não pode existir, portanto, um imperativo de ordem puramente intelectual na base da ação moral. O formalismo e a universalidade lógicas podem fazer com que o intelecto reconheça a superioridade teórica de uma doutrina, mas a vontade não a adotará como norma de conduta se os valores não foram interiorizados através da emoção. Da mesma maneira, uma moral que se assente apenas no cálculo utilitarista do jogo de inte­resses egoístas poderá explicar teoricamente o equilíbrio social no plano ético, mas não fornecerá o móvel para a prática da ação. O intelectualismo em moral, na sua forma lógica ou na sua forma uti­litária, tem um valor explicativo a posteriori; mas por meio dele não compreendemos a gênese da ação moral. O que nos inclina para as explicações intelectualistas é o fato de que não existe, na prática, obrigação pura no sentido de coerção social, de um lado, nem uma moral que se assente diretamente na emoção criadora de valores. Ordinariamente, obrigação e emoção se imiscuem num plano inter­mediário em que a primeira confere à segunda o caráter impessoal e coercitivo ao mesmo tempo em que a emoção criadora passa para a moral social algo da significação ético-universal de que se reveste. "Essas duas formas de moral justapostas parecem perfazer uma, a primeira emprestando à segunda um pouco do que ela possui de imperativo e recebendo desta, por sua vez, uma significação menos estreitamente social, mais largamente humana" (D.S.-47). Isso signi­fica que uma só forma de moral acaba aparecendo no universo da ação. É quando fazemos abstração dessa forma comum que perce­bemos que existe uma moral que deriva da pressão social e outra que, pelo contrário, deriva da aspiração a valores que ultrapassam o nível da instrumentalidade ético-social.

A moral relativa à pressão social é aquela consolidada biológica e socialmente no plano da instrumentalidade finita. Serve aos desíg­nios naturais da sobrevivência da espécie, nos diversos grupos cons­tituídos. Constitui-se no entremeio da relação entre o individuo e o grupo, diferindo da sociabilidade instintiva dos insetos apenas por­que a inteligência reflete sobre ela e encontra motivos racionais que se sobrepõem ao determinismo vital. A vida em geral tende para a organização: neste sentido a organização social de uma colméia ou de um formigueiro corresponde à organização das sociedades hu­manas no plano da sobrevivência. A inteligência reflete e racionaliza a relação parte/todo, mas fundamentalmente a mesma estrutura se mantém. É o plano do círculo entre o individuo e a espécie ou o

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grupo. Esse círculo deve ser entendido como uma interrupção da marcha do élan. Mas o círculo pode ser rompido pela própria mar­cha do élan, quando indivíduos se elevam acima da consolidação ético-social da espécie. O rompimento da consolidação redunda na criação que nada mais é do que o prosseguimento do élan, tendo como veículo individualidades que alcançam novos valores e assim inventam novas formas de vida moral. Do ponto de vista da origem, não há diferença entre o élan enquanto motor das sociedades fecha­das e o élan enquanto impulso de criação nos individuos que se lan­çam para além da espécie. Na verdade é a espécie que, neles, pros­segue a marcha do élan. Aqui reencontramos a oposição entre estag­nação e progresso que aparecera na Evolução Criadora. No caso do progresso moral, trata-se de uma ação indireta do élan, que faz com que a humanidade se supere enquanto espécie "constituída"8l. Sen­do o élan movimento, a aspiração que caracteriza a moral aberta não é tendência para uma outra "constituição" ou qualquer outro "obje­to". É apenas o movimento criador transcendendo a estagnação re­lativa da espécie na sua atual formação. Por outro lado, essa trans­cendência, ao mesmo tempo em que se realiza por meio de indivi­duos, é também o reencontro da espécie na sua totalidade. A "cons­tituição" da espécie redundou na individuação e no agrupamento de individuos, com o horizonte restrito à sobrevivência grupal e mesmo com interesses contrários aos de outros grupos. O individuo trans­cende a espécie quando se eleva acima da individuação e da confi­guração grupal, abraçando na sua aspiração a espécie inteira, como totalidade. É nesse sentido que o individuo se repõe na trajetória do élan: reabsorvendo em si a espécie e saltando para a frente no mo­vimento qualitativo do élan. Ele "simpatiza" com a espécie e mesmo com toda a natureza; ele se recoloca na totalidade que é movimento. "Que uma alma assim mobilizada esteja mais inclinada a simpatizar com as outras almas e mesmo com a natureza inteira seria causa de espanto se a imobilidade relativa da alma, girando em círculo numa sociedade fechada não derivasse precisamente de que a natureza repartiu a espécie humana em individualidades distintas pelo pró­prio ato que constituiu a espécie humana" (D.S.-50). A intuição cria-

81. "É verdade que se chegássemos até a raiz da própria natureza, perceberíamos talvez que é a mesma força a que, girando sobre si mesma, manifesta-se diretamente na espécie humana uma vez constituída e, agindo indiretamente por intermédio de individualidades privilegiadas, impulsiona a humanidade para a frente" (D.S.-48).

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dora de valor, ou a emoção, é a retomada do movimento, que não é senão a reinserção no absoluto. A virtualidade intuitiva que existe em todos os homens explica que esta criação encontre eco num gru­po social, e mesmo na humanidade inteira, e que o individuo criador de valor moral irradie, pela sua ação, um apelo que é correspondido pela renovação dos valores éticos de todos os homens, ou de uma grande parcela da espécie humana. Se de um lado a retomada do movimento absoluto é a continuidade do élan criador, de outro esta reinserção no absoluto através da aspiração moral não deixa de ser um movimento contra a natureza. A flexibilidade que a inteligência introduz na conduta fabricadora ou instrumental do homem não de­veria voltar-se contra a estrutura fundamental que assegura a conso­lidação da organização da espécie constituída. A dilatação indefinida da inteligência, acordando a virtualidade intuitiva que a rodeia e possibilitando a intuição criadora enquanto consciência do movi­mento absoluto do élan faz com que o homem se eleve primeira­mente à altura da espécie como um todo e que, em seguida, ultra­passe a espécie numa direção que coincide com o que Bergson cha­ma, retomando a expressão spinozista, natureza naturante. Assim, se por um lado a moral aberta rompe com a natureza, no sentido do círculo no interior do qual se constitui a sociabilidade natural, por outro lado isto significa reencontrar a mobilidade do élan e, portan­to, o princípio da vida. É essa caracteristica de movimento que faz com que a moral aberta não encontre facilmente seus meios de ex­pressão: exemplo são os paradoxos, os circunlóquios, as metáforas e as alegorias do Evangelho, que para Bergson é paradigma de moral aberta; mas já na antiguidade clássica vemos que o inspirador de todas as modificações éticas fundamentais, aquele que está na raiz das grandes concepções morais, Sócrates, foi precisamente o filósofo que não deixou uma doutrina constituída. Aqui também a linguagem não se adapta à expressão do movimento, de uma moral que seria muito mais o puro transcender do que o estabelecimento objetivo de regras de conduta. A linguagem, própria do domínio fechado, é a notação do aberto. Entre as duas existe a mesma diferença que entre a música e a notação. O poder englobante da palavra, a expansão da significação escondem as mudanças qualitativas dos conceitos que exprimem valores morais. Entre a justiça entendida como equilíbrio da troca e a justiça concebida como valor absoluto no nível abstrato dos direitos, há uma distância que nenhuma gradação poderia trans­por. No entanto, pela lógica retrospectiva, somos levados a unir as duas noções, vendo nas transformações sucessivas da justiça aproxi-

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mações gradativas da noção em seu caráter absoluto. Esta seriação é própria da lógica do entendimento, que recusa o salto e a criação.

De forma geral, entre a moral fechada e a moral aberta há dife­rença de qualidade que nenhuma expansão de significação poderia recobrir. Os indivíduos que se lançam para além da moral da cidade não se elevam apenas quantitativamente acima dos semelhantes. Entre o grupal e o universal, a diferença não é de grau, mas sim da qualidade do valor. "A aparição de cada uma delas (almas individuais criadoras) seria como a criação de uma nova espécie composta de um único indivíduo, o impulso vítal conseguindo, intermitentemen­te, num homem determinado, um resultado que não põde ser obtido de uma só vez para o conjunto da humanidade" (0.5.-97). Mas de onde vem, em cada caso, o impulso para um novo valor? Certamente da emoção criadora, que não encontra expressão na moral constitu­ída. Trata-se de uma direção que se sente dever ser seguida, mais do que uma regra determinada a ser estabelecida. Trata-se de uma in­tenção que transborda a intencionalidade pragmática da consciên­cia no seu vísar à adequação entre a ação indivídual e a moral con­solidada. Este dinamismo criador que supera os limites da humani­dade atualizada numa sociabilidade determinada, sendo direção, é de certa forma guiado por algo cuja intuição ultrapassa largamente a capacidade de entendimento daquele mesmo que intui. São ocasi­ões em que, no homem, algo de maior do que ele mesmo age, como que por ele: uma coincidência que não pode ser expressa, já que é a identificação entre o indivíduo e algo que o ultrapassa infinitamente e que no entanto ele encontra no mais profundo de si mesmo, no cerne de sua própria interioridade. Uma mensagem que não saberia expressar, e que por isso tenta víver. Uma vísão que não pode trans­mitir, e que por isso tenta dar a ver. Essa união espiritual é, no en­tanto, a definição possível do misticismo: na intuição mística deve­mos, portanto, procurar os indícios da identificação entre o homem e o absoluto.

O desinteresse que a reflexão da inteligência introduz num ser que não se encontra totalmente absorvído pelas solicitações da ati­vídade real ou vírtual do mundo que o circunda encontra sua expres­são e ao mesmo tempo sua contrapartida na função fabuladora, de onde nascem as relações que, em termos de religião estática, o ho­mem mantém com o divíno, no necessário afã de serenar sua inquie­tude. É ainda a inteligência a disciplinar a margem de desinteresse pela vída, assim como dirige, de forma muito mais direta, o interesse

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que se manifesta na atenção que o ser vívo deve prestar ao mundo da consciência empírica. Mas se a relação com o transcendente en­contra na função fabuladora a ordem objetiva daquilo que o supera, a vírtualidade intuitiva não poderia preencher essa distância com uma relação direta, que fosse coincidência e não fabulação? Nesse caso a atenção à vída se desligaria da própria vída, não para encon­trar num mecanismo de compensação a diminuição do risco que envolve esta desatenção, mas para dirigi-la ao próprio princípio na forma de uma comunicação direta com aquilo que transcende a própria forma intelectual do absoluto. "Mas sabemos que em torno da inteligência permaneceu uma franja de intuição, vaga e evanes­cente. Não poderiamos intensificá-la, fixá-la, e sobretudo completá­-la em ação, já que ela tornou-se pura vísão através do enfraqueci­mento de seu princípio e, se podemos nos exprimir assim, por meio de uma abstração praticada sobre si mesma?" (0.5.-224). A inteli­gência, enquanto núcleo da relação instrumental com o mundo, re­flete sobre sua própria situação e questiona, de certa forma, a inser­ção do indivíduo no grupo e na natureza. A função reflexiva da inte­ligência, contrapartida da sua flexibilidade, introduz a inquietude, a representação oscilante do futuro e de si mesmo, a incerteza ima­nente aos projetos, a ansiedade e o medo: tudo isso o homem é, provavelmente, o único ser vívo a experimentar. Tal desvío em rela­ção aos desígnios naturais é compensado pela religião estática, fruto da função fabuladora, que tem por objetivo a harmonia afetiva entre o homem e aquilo que o supera. Como já dissemos, a inteligência tem aí função preponderante, ainda que não exclusiva. Mas a franja intuitiva que cerca a inteligência, memória ontológica da origem, pode romper o círculo da intelectualidade afetiva e ganhar o espaço da relação sensível com o absoluto. Tal como no caso da moral aberta, aqui é também por meio da emoção criadora que se estabelece uma relação original e originária com o transcendente. E, de forma seme­lhante ao plano ético, transcender-se significa retomar o movímento criador do princípio espiritual, coincidir com uma ativídade. Por isso a intuição mística é uma relação que se dá ao mesmo tempo como vísão e como impulso para a ação. Quando o misticismo se dá ape­nas como vísão ou contemplação, ele está ainda imbuído de intelec­tualidade e longe de perfazer o caminho que conduz à coincidência ativa com uma totalidade que é movímento criador. No pensamento grego, a convívência entre a especulação e o culto dos mistérios, a interferência freqüente do segundo no primeiro, como em Platão e no pitagorismo, revelam a trajetória paralela da ativídade de con-

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templação intelectual com outra atividade de cunho supra-intelectual ou extra-intelectual, visível nas origens (orfismo, eleusianismo) e no final da época helênica (alexandrinos, Platina). Mas o intelectualis­mo grego impediu que o misticismo avançasse para além do estágio contemplativo e chegasse à ação, na qual os gregos viam um empo­brecimento da relação com o absoluto. Assim também no misticis­mo oriental. Apenas no cristianismo a contemplação se traduz em ação, tomando ativa a relação universal entre o individuo e a huma­nidade, derivada de sua relação com o absoluto, efetivamente senti­do como atividade criadora e que faz desta própria relação um im­pulso criador (D.S.-230 a 245).

A este impulso criador se opõe a instrumentalidade finita, como os limites de um círculo se opõem à força que deseja rompê-lo. A individualidade que se repõe no sentido do élan se separa das outras individualidades e dos grupos fechados em que elas se organizam para reencontrar, num outro plano, a totalidade, a humanidade como espécie e ainda mais do que ela. A fraternidade universal e o amor da humanidade não podem ser vistos apenas como expansão da ligação entre o individuo e o grupo, ou como a universalização de algum instinto de solidariedade dos individuos entre si. O universal não é a soma ou a expansão do particular, mas o reencontro de algo que, como absoluta gênese e criação, precede o particular. Assim, a emo­ção criadora que dinamicamente transcende a individualidade tem muito mais um sentido metafísico do que moral". A transformação ético-religiosa que ocorre a partir da irradiação mística é apenas conseqüência de que, no movimento do élan, cujo veículo é um in­dividuo, a espécie avança para além do plano estático da consolida­ção dos valores que regulam a relação com o transcendente. Assim a transcendência mística se dá na forma da intuição do absoluto como coincidência. A atividade transformadora que se segue à intui­ção mística é a expressão da continuidade do élan, que progride qualitativamente numa direção indeterminada, mas que provavel­mente é o sentido do divino - a própria marcha do élan podendo ser assimilada a um processo de divinização, já que o esforço criador "é de Deus, se não é o próprio Deus" (D.S.-223). Este esforço penetra

82. "Coincidindo com o amor de Deus por sua obra, amor que tudo fez, ele (o élan) confiaria a quem soubesse interrogá-lo o segredo da criação. (O amor que se traduz no impulso criador) é de essência metafisica mais do que moral" (0.5.-248).

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na instrumentalidade finita, na densidade das consciências materia­lizadas, a partir de um impulso inicial de uma "visão em Deus", e se prolonga até certo ponto, contido pelo obstáculo da materialidade finita da sociabilidade fechada e da religião estática, em suma, pela estabilidade intelectual que se opõe ao dinamismo criador. Assim se esboçam os limites efetivos da intuição: uma humanidade que se absolutiza num individuo e que, opondo-se a ele, opõe-se à sua pró­pria inserção no absoluto. A relação de estranhamento entre a hu­manidade e o individuo que se repôs no sentido do absoluto deriva da vida exterior do espírito na cotidianidade da relação com o mun­do. O estranhamento é real da perspectiva da consciência pragmáti­ca, já que o individuo, neste caso, visa à humanidade não nela mes­ma, mas através do absoluto. Não é apenas uma "visão em Deus", mas um "amor em Deus". Por isso a intuição mística não tem objeto, e Bergson pode dizer que a emoção criadora é um sentimento "que se basta a si mesmo". A ausência de objeto provém da identificação entre a emoção criadora e o processo criador no seu sentido absoluto.

Embora a intuição mística seja um caso privilegiado de simpatia com a totalidade e de comunicação com o absoluto, o contexto re­ligioso em que ela se dá autoriza o filósofo a estudá-la como exemplo de intuição e não a identificar a intuição com a experiência mística. O "valor filosófico do misticismo"" não consiste em trazer uma cer­teza definitiva acerca do alcance cognitivo da intuição, mas em for­necer de alguma maneira uma experiência "objetiva" em que este alcance possa ser avaliado. Trata-se de um resultado a ser compara­do com outros. "O encontro, entre os místicos, desta experiência, tal qual esperada, permitiria acrescentar algo aos resultados adquiridos, enquanto estes resultados revestiriam a experiência mística com algo de sua própria objetividade" (D.S.-263). Não podemos esquecer que a intuição é uma experiência, embora de tipo peculiar, já que sua expressão a distorce, por vezes irremediavelmente. Nesse sentido, diz Bergson que a "notação" do fato não o representa na sua auten­ticidade, mas precisamente o simboliza. A própria visão mística, en­quanto concretização do êxtase, é já uma tradução de uma comuni­cação íntima em si intraduzível. Há no entanto uma referência, inde­terminada porque absoluta, da atitude mística enquanto tal, e dela encontramos os indícios na variedade da experiência mística e na

83. Título do item tratado nas pp. 261 a 266 de D.S.

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própria história dos misticismos que se sucederam e que. se não realizaram plenamente o "ideal" da mística. ao menos marcaram a direção de um desenvolvimento que se completou com a mística cristã. O acordo profundo que assim se constata "é signo de uma identidade de intuição" que se explicaria pela "existência real do Ser" com o qual todas estas atitudes místicas estiveram em comunicação (0.S.-262). A "identidade de intuição" presente na mística se agrega a outros dados obtidos em linhas de fatos bem diferentes da expe­riência religiosa. como por exemplo. o estudo da evolução. que levou à concepção do élan vital e da unidade do princípio. bem como da interpenetração originária entre inteligência e intuição. Como con­seqüência desta origem comum. constata-se a virtualidade intuitiva presente na inteligência. ou a franja de possibilidade de conheci­mento simpático que rodeia o intelecto. O instinto como imobiliza­ção da intuição e a inteligência como intencionalidade pragmática que fez adormecer a virtualidade intuitiva formam assim o jogo de possibilidades. reais e virtuais. da dupla direção cognitiva. a interes­sada ou atenta à vida. e a desinteressada. ou atenta ao Todo. susce­tível de ser atingida por um tournant da reflexão. Este tournant. como já vimos. situa-se no plano de uma intensificação da intuição que. de uma reflexão da inteligência. pode se transformar numa inflexão bem mais radical da direção "habitual" do pensamento. Da continuidade da vida interior à continuidade da interioridade do movimento total e absoluto do élan: tal é a trajetória da intensificação da intuição ou da potencialização da reflexão. A experiência mística é exemplo de tal intensificação e nos apresenta. assim. a realidade da possibilidade de comunicação com o absoluto. O valor filosófico da experiência mística aparece quando despojamos a intuição do místico das "vi­sões. das alegorias. das fórmulas teológicas pelas quais ele se expri­me" tentando de alguma maneira recuperar a experiência mística como que em "estado puro" (0.S.-266). A direção objetiva que levou à constatação do élan como princípio através do exame dos dados biológicos e a direção. por assim dizer. transobjetiva da experiência mística. tomada como atitude de comunicação direta com o princí­pio criador. confluem. indicando a via do conhecimento simpático. intuitivo. como superação do ponto de vista humano. como a reali­zação verdadeira da metafísica numa dimensão diferente do simbo­lismo conceitual. na imanência da consciência à totalidade da tem­poralidade criadora.

É preciso ressaltar que a superação do ponto de vista humano se dá através da interioridade. O mundo que a consciência visa através

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da intencionalidade pragmática é o objeto do Eu superficial tal como este havia sido constatado nos Dados Imediatos. A superação da subjetividade empírica não se dá por meio de uma saída de si em direção à objetividade. Já vimos que o nascimento da intuição é a morte da objetividade e da subjetividade que lhe é correlata. A supe­ração da subjetividade "epistêmica" é um retorno à interioridade. Na verdade. a interioridade bergsoniana. à semelhança do que vimos em Novalis e em Schlegel. transcende a subjetividade e a objetivida­de. na medida em que o contato direto na modalidade intuitiva só se pode dar entre duas interioridades. A unidade do élan com a qual a intuição comunica não é uma unidade quantitativa e exterior. mas a qualidade interna do movimento ou a essência íntima do tempo. É da índole do absoluto que ele só possa ser apreendido intimamente. e para tanto o sujeito deve transitar pelo núcleo intuitivo de sua pró­pria interioridade cuja continuidade. aquém da subjetividade "obje­tivante". é índice da intimidade do real enquanto temporalidade absoluta. Nesse sentido. quase se poderia dizer que a interioridade autêntica seria um ponto de indiferenciação. a um tempo mais e menos que o Eu. a um tempo interna e externa ao Eu. transcendência interna e externa. inseparavelmente. Na tentativa de compreender tão complexa relação entre interioridade e intuição. Marie Cariou fala de "transcendência de interioridade"". pela qual situar-se na interioridade do Eu equivale a situar-se no absoluto como interiori­dade pura. Por essa razão também é que a experiência mística. ou mesmo de maneira mais geral a comunicação religiosa com a trans­cendência. serve de exemplo privilegiado para ilustrar o percurso da interioridade na direção do absoluto. Santo Agostinho afirma a via da interioridade como único caminho para o absoluto. contrapon­do-a à errãncia da busca do absoluto na exterioridade: "( ... ) tu esta­vas dentro de mim e eu fora. e fora te buscava; disforme. lançava-me sobre essas coisas belas que tu criaste. Estavas comigo. mas eu não estava contigo. Retinham-me longe de ti aquelas coisas que. se não fossem em ti. não seriam"". O Eu fora de si busca na objetividade natural o fundamento da ligação de si com aquilo que o supera. Mas

84. Cariou, M., Bergson et le Fait Mystique, Aubier Montaigne, Paris, 1976, p. 96. Cf. também: "( .. ,) l'intuition métaphysique atteint un au-delá de la conscience qui, sans sortir du moi, se révéle comme un moins ou un pIus moi; plus exactement peut-être comme une transcendance interne" (p. 92).

85. Santo Agostinho. Confissões, L. X, capo 27, § 38, BAC, Matiti, 1968, p. 424. Tradu­ção brasileira Nova Cultural, São Paulo, 1987 (coleção Pensadores), p. 190.

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a ligação entre o Eu e o absoluto é interna e, na verdade, tão íntima quanto possa ser a relação de identificação. Por isso a consciência de que o absoluto é solidário da opção pela interioridade aparece quan­do o Eu se dá conta de que a exterioridade é obra de um movimento que é, em si, interioridade. Assim o retorno à interioridade é também consciência da conexão imanente, não apenas da consciência à tota­lidade mas também de todas as coisas, inclusive aquelas que minha consciência desenha na exterioridade, ao devir absoluto do princípio criador. A compatibilidade entre a forma do Eu superficial e a forma da exterioridade sendo apenas de índole instrumental, a busca da qualidade interna do princípio na exterioridade seria uma deforma­ção do Eu profundo, seria como refletir fora de si. A conformidade entre o Eu e o princípio criador se manifesta pela interconexão identificadora de duas interioridades, ou pela reabsorção do Eu pro­fundo, do núcleo intuitivo da consciência, na interioridade em si.

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o que vimos até aqui já nos dá condições de afirmar que o que chamamos em Bergson opção pela interioridade não diz respeito apenas à intuição da duração interna, ou temporalidade da consci­ência, mas se estende à totalidade do real visto a partir de sua essên­cia, tendo portanto uma significação ontológica. Eis por que a defi­nição de intuição como conhecimento interno não se opõe a uma outra possibilidade de conhecimento, que na Introdução à Metafísi­ca é descrito como "ponto de vista", relativo e simbólico. Não se trata de duas "perspectivas" de conhecimento: o "ponto de vista" se res­tringe ao saber pragmático a partir dos quadros da inteligência, cujas representações se definem pelo valor utilitário, pelo interesse ligado à percepção e ao intelecto. Apesar de certas ambigüidades do texto bergsoniano, principalmente no caso da Segunda Introdução ao Pen­samento e o Movente, e à nota acrescentada ao início de Introdução à Metafísica, o real não está dividido em duas partes, uma das quais seria objeto de ciência ou da inteligência e a outra objeto da meta­física ou da intuição. O que se torna mais claro na Segunda Introdu­ção é a legitimidade do conhecimento de inteligência no seu gênero, ou seja, no âmbito em que a inteligência pode desempenhar plena­mente a sua função de articular o físico-inerte. A relatividade, por­tanto, é apenas uma especifícação do gênero de conhecimento ca­racterizado pela objetividade da inteligência; não significa um cam-

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10. INTUlÇAO E EXPREssA0: A TENsAo DO SIGNIFICADO

po de objetividade próprio em oposição a um outro do qual a intui­ção obteria um conhecimento "absoluto". A preservação da legitimi­dade do conhecimento científico ou de inteligência é o reconheci­mento do factum da finitude; mas em Bergson este factum não se confunde com o destino do homem enquanto sujeito cognoscente. Ele pode ser superado, e a metafísica estará fundada quando se en­contrar o método de superação. Devido a isso, o criticismo kantiano é, tipicamente, uma filosofia do "ponto de vista": a exterioridade sim­bólica do conhecimento teórico e a vanidade intrínseca da metafísi­ca são aí afirmados a partir da aceitação tácita do referencial empí­rico e finito da consciência instrumental como a delimitação absolu­ta da certeza objetiva. "A gênese da inteligência faz com que a critica seja transformada em filosofia do homo faber, em filosofia da espé­cie"." A gênese da inteligência é a demonstração objetiva da possi­bilidade de superação da intelectualidade. Ao mesmo tempo, é a afir­mação da especificidade da intuição como conhecimento autentica­mente extra-intelectual. É a partir dessa gênese que a crítica bergso­niana pode denunciar como pseudo-intuições os procedimentos li­gados à superintelectualidade propugnados pela filosofia alemã pós­-kantiana e que para Bergson nada mais são do que hipóstases do conceito. É assim que o que nestas filosofias é chamado de conheci­mento absoluto apresenta-se para Bergson como o caso-limite da relatividade. Pois esta não se define pelo alcance do conceito, mas pela utilização do conceito como instrumento de conhecimento filo­sófico. O conhecimento relativo é aquele que se põe "fora do próprio objeto" (P.M.-178). Ora, a pretensa significação absoluta do conceito é o conhecimento mais exterior que neste sentido se pode conceber, pois a abrangência do conceito o torna abstrato, condição de seu próprio alcance simbólico.

Na verdade, o que caracteriza o conhecimento relativo é a sua exterioridade simbólica, expressão aliás redundante, uma vez que o conhecimento externo é por definição simbólico, ou seja, utiliza algo estranho ao objeto para conhecê-lo. No entanto não se poderia dizer que a vinculação significativa entre a coisa e o seu símbolo cria uma familiariedade que os uniria intimamente no processo de expressão? Essa hipótese poderia até ser tida como plausível se não existisse entre o real e os meios de expressão uma heterogeneidade radical, a

86. Prado Júnior, 8., ob. cit., p. 201.

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mesma que se pode notar entre o móvel e o imóvel. Esta heteroge­neidade é que separa completamente o conhecimento exterior do conhecimento interior, fazendo do símbolo uma aproximação do objeto a partir de um ponto de vista simbólico. O falseamento onto­lógico do ponto de vista simbólico consiste em que ele relativiza o objeto, identificando-o à sua representação simbólica. É o que ocor­re, por exemplo, quando representamos o movimento através da sucessão de pontos de imobilidade, reais ou virtuais. Por isso o co­nhecimento não simbólico só pode ser interno: a coincidência com a intimidade do objeto exclui a mediação da representação objetiva, ou seja, a filtragem do contato com O real pelas categorias da inteli­gência. "Quando falo de um movimento absoluto, é que atribuo ao móvel um interior e como que estados de alma, é também que sim­patizo com os estados e neles me insiro por um esforço de imagina­ção" (P.M.-178). A ausência da mediação da representação simbólica nesse caso se mostra no fato de que o movimento é conhecido a partir do objeto e não de mim mesmo, isto é, da representação sub­jetiva desse movimento. Isto significa que a exterioridade em relação ao sujeito é a interioridade em relação ao objeto. Pode-se dizer então que a objetividade intuitiva - seja-nos permitido, por enquanto, a expressão - depende da anulação da representação subjetiva na medida em que esta é governada pelos quadros da inteligência. Isso não significa a anulação do sujeito de conhecimento: a concordância é substituída pela identificação, o que também não significa que o conhecimento pode prescindir da representação. Ainda que o sujeito esteja no objeto, ele possui consciência do objeto Ej é isto que define a relação cognitiva. Há no entanto duas maneiras de se ter consciên­cia do objeto. A primeira consiste em visar ao objeto a partir de pontos de vista exteriores, e representá-lo relativamente a estes pontos de vista. A segunda consiste ainda em representar o objeto na consciên­cia, mas a partir da interioridade do objeto, coincidindo com um cerne de realidade que é gerador de representações. Essa é a consciên­cia verdadeiramente compreensiva do objeto, na medida em que to­das as representações estariam imediatamente vinculadas ao núcleo indivisível que é o próprio objeto na sua interioridade. Por isso é que as várias representações podem decorrer da coincidência com o objeto, mas a variedade de representações não pode engendrar o conhecimento interno do objeto. Quando o romancista descreve ex­terna e internamente a personagem, através de suas ações e de suas palavras, ele me fornece uma série de pistas para compreender a personagem. Mas a compreensão somente seria completa se o leitor

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10. INTUIÇÃO E EXPRESSÃO: A TENSÃO DO SIGNIFICADO

pudesse coincidir por um instante com a própria personagem. "En­tão, como de sua fonte, me pareceriam verter naturalmente as ações, os gestos e as palavras." "( ... ) A personagem me seria dada de uma vez na sua integralidade" (P.M.-179) em vez de manifestar-se através dos incidentes do enredo. Em lugar de ser a minha compreensão da personagem progressivamente "enriquecida" pelos incidentes, estes decorreriam de sua essência, destacando-se com naturalidade de um núcleo sem deixar de pertencer a ele, ou seja, sem "empobrecê-lo".

Isso significa que não é a somatória indutiva de caracteres mani­festados que me proporcionaria uma autêntica compreensão da es­sência do objeto. Pelo contrário, tais caracteres devem fluir de um núcleo essencial, cujo conhecimento só pode ser obtido intuitiva­mente. Bergson não reconhece portanto a inelutabilidade daquilo que tradicionalmente foi denominado a "ordem do conhecer". A intuição me coloca de imediato na própria "ordem do ser", dimen­são em que posso prescindir da articulação simbólica. Mas a coinci­dência entre ser e conhecer, pela qual o objeto me é dado na sua "perfeição", ou seja, na totalidade indivisível do que ele é, só se po­deria manter como tal se houvesse um trânsito possível da intuição à expressão. Como tal não ocorre, a coincidência para nós se dá como equilíbrio, necessariamente instável, entre intuir e expressar. "Deno­minamos aqui intuição a simpatia pela qual nos transportamos para o interior de um objeto, a fim de coincidir com o que ele tem de único e, por conseqüência, de inexprimível" (P.M.-18l). Na medida em que o conhecimento se expressa num discurso, a pura coinci­dência é ao mesmo tempo ideal de conhecimento e ausência dele. Não podemos dizer que o que faltaria a um tal conhecimento seria a comunicação intersubjetiva que se dá necessariamente através da articulação discursiva. É o próprio sujeito que não possui, para si, o conhecimento enquanto não o expressa, para si mesmo, na articula­ção do pensamento, que é um discurso silencioso, na medida em que, como já vimos, as idéias por si já são cristalizações do pensa­mento enquanto movimento. A consciência do objeto enquanto tal pressupõe uma demarcação do fluxo absoluto do pensamento, e portanto uma desidentificação da relação absoluta entre pensamen­to e pensado. Esta desidentificação é sempre o estabelecimento de uma relação complexa entre sujeito e objeto que necessariamente se afasta da simplicidade da visão absoluta, ou absolutamente interna. Somente no plano da interioridade "um absoluto é coisa simples"; visto de fora, "em relação aos signos que o exprimem", ele se remete

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à inesgotabilidade intrínseca da análise (P.M.-180). A expressão é sempre primeiramente para o próprio sujeito da intuição, pois a relação entre intuição e idéia já é expressão no interior da consciên­cia. O núcleo íntimo do objeto que lhe dá o seu caráter único é inex­primível. De alguma maneira, pensá-lo já é significá-lo por uma idéia, mesmo que obtenhamos dela o máximo de fluidez. Significa isto que não há como evitar o rompimento do equilíbrio para o lado da ex­pressão? De certa maneira sim, na medida em que toda expressão é tradução. Mas a expressão da intuição é a manutenção da instabili­dade do equilíbrio, o que se dá através do engendramento infinito das imagens. Este engendramento infinito de imagens é uma inflexão do "mal infinito" da inteligência analítica. Esta, no seu inesgotável afã de traduzir, por meio de pontos de vista diversos, a simplicidade e a indivisibilidade originais do objeto, multiplica as aproximações externas como que tentando abarcar a qualidade por meio da quan­tidade simbólica. A aproximação relativa é infinita na própria medi­da em que a expressão é heterogênea em relação ao conteúdo ex­pressado. Há um fundo de inquietude nesse infinito quantitativo, pois a inteligência se põe como o único conhecimento possível. É um "tournant" da inteligência que permite que a infinitude dos pon­tos de vista conceituais se transforme na multiplicidade das ima­gens. Quando o "olhar interior de minha consciência" busca expres­sar-se traduzindo a multiplicidade qualitativa da duração interna, as imagens se sucedem, corrigindo-se sem nunca se completarem. É, primeiramente, "a crosta solidificada" das percepções materiais; "a superfície de uma esfera que tende a se alargar e perder-se no mun­do exterior"; o enrolar e desenrolar de um fio, continuidade e cres­cimento; o "espectro de mil nuances, com degradações insensíveis, que faz com que passemos de uma a outra"; "um elástico infinita­mente pequeno" esticado progressivamente; entre todas essas ima­gens não se poderia escolher aquela que melhor traduziria a conti­nuidade do fluxo interno (P.M.-182-4). Cada uma representa um aspecto, nenhuma me permite captar a totalidade múltipla e indivi­sível da interioridade. As afinidades parciais entre as imagens funcio­nam todavia como índices ao menos da insuficiência do conceito. É como se a confluência das insuficiências expressivas das várias ima­gens apontasse para uma direção, a expressão da coincidência inex­primível. "O único objetivo do filósofo deve ser aqui o de provocar um certo trabalho que tende a entravar, na maior parte dos homens, os hábitos do espírito mais úteis à vida" (P.M.-18S). Visto dessa for­ma, é sobretudo um procedimento negativo. A suspensão da voca-

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ção do espírito para a exterioridade cria algo como o vazio da inten­cionalidade pragmática. Aí se acumularão as imagens, numa multi­plicação confluente, dando nascimento a uma tendência intuitiva, substituta da tendência "habitual" formada pelos hábitos de um pensamento voltado para a exterioridade. Não deixa de haver aqui algo semelhante à evocação romântica, no sentido em que, por exem­plo, num Novalis, os centros de reflexão evocam-se mutuamente. Com efeito, diz Bergson que a imagem nunca pode "usurpar o lugar da intuição que ela deve evocar", uma vez que isto já não seria uma expressão aproximada, mas uma tradução definitiva, cujo caráter de­finitivo faria perder o sentimento de imprecisão que deve acompa­nhar todas as imagens. O sentido evocador das imagens está em consonância com o "esforço de imaginação" pelo qual devo me in­serir no interior do objeto (P.M.-178). A evocação não é tanto de cada imagem, quanto da confluência significativa entre várias e dife­rentes imagens.

A possibilidade do conhecimento metafísico repousa inteiramente na intuição. Ao contrário da ciência, a metafisica pode e deve dis­pensar os símbolos. Mas esta oposição à ciência é de caráter meto­dológico, ou seja, existe na medida em que a análise se opõe à intui­ção. Pois a metafísica também é ciência, e precisamente constituída a partir da intuição. "A metaflSica é pois a ciência que pretende pres­cindir dos símbolos" (P.M.-182). Há aqui algo que poderíamos cha­mar de antinomia metodológica, na medida em que ao mesmo tem­po em que a metafísica é conhecimento não-simbólico, ela não pode dispensar as outras ciências que trabalham com os símbolos, o que toma os símbolos, ainda que indiretamente, "indispensáveis" à me­tafísica. "Certamente, os conceitos lhe são indispensáveis, pois todas as outras ciências trabalham com conceitos, e a metafísica não po­deria dispensar as outras ciências" (P.M.-188). A relação entre a me­tafísica e as outras ciências passa pela mediação da interpretação dos símbolos utilizados nessas ciências e, mais do que isso, pela inter­pretação genética da função simbólica do conhecimento de inteli­gência. A metafísica não trabalha a partir dos resultados científicos, mas com a interpretação dos mesmos, que freqüentemente consiste numa reavaliação, exatamente porque a critica inerente à constitui­ção da verdadeira metafísica desvela a função simbólica do conheci­mento de inteligência, repondo a objetividade científica no seu au­têntico estrato, o ponto de vista pragmático da consciência. É bem verdade que os resultados da metafísica só podem ser expressos em

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símbolos, e mesmo em conceitos: ao menos o trabalho da metafísica redunda num remanejamento dos conceitos. A metafísica "só é pro­priamente ela mesma quando supera o conceito, ou ao menos quan­do se libera dos conceitos cristalizados e totalmente prontos para criar conceitos bem diferentes daqueles que manejamos habitual­mente, isto é, representações flexíveis, móveis, quase fluidas, sempre prontas a se moldarem pelas formas fugitivas da intuição" (P.M.-188). Isto significa que no seu estrato expressivo a metafísica flexíbiliza as formas conceituais na tentativa de lhes conferir a "souplesse" necessária para se amoldarem, tanto quanto possível, à intuição. Existe portanto um movimento que vai da intuição ao discurso, e neste movimento a expressão procura constituir-se através da atri­buição de mobilidade às representações. O caráter móvel da repre­sentação é o único que pode produzir uma relação de identificação parcial entre o conhecer e o ser. Essa amoldagem da estrutura con­ceitual ao objeto ontológico se faz através do remanejamento concei­tual que a metafísica opera na estrutura simbólica da inteligência. Vê-se em que consiste este remanejamento: na recusa do símbolo reificado, do qual o conceito é o paradigma evidente; na recusa da cristalização da forma significativa e da lógica intelectual enquanto objetividade virtual e a priori constituída, como uma rede cujo dese­nho da malha antecipa os conhecimentos que ali virão se alojar. A essa fixídez se opõe o significado enquanto movimento de significa­ção que se realiza na mobilidade da representação, na direção signi­ficante que gera o conceito, o qual aparece assim como novo, em correspondência com a originalidade do que deve ser expresso. Não se pode exigir das palavras a originalidade absoluta; mas a originali­dade relativa pode ser buscada na mobilidade significativa dos sím­bolos, que é a condição de possibilidade da invenção do significado. A pluralidade significativa do símbolo se fixa de ordinário na unida­de simbólica do conceito. A metafísica deveria retornar à dimensão dessa pluralidade e reconstruir o significado no entremeio de todas as possibilidades de significação. Desta forma o espírito "pode insta­lar-se na realidade móvel, adotar sua direção incessantemente mutável, enfim captá-la intuitivamente. É preciso para isto que ele se violente, que ele inverta o sentido da operação através da qual pensa habitualmente, que reverta, ou antes, que refunda sem cessar suas categorias" (P.M.-213). Não é possível encontrar ou constituir no nível da expressão a mesma heterogeneidade que, a partir da intuição, captamos entre a mobilidade e a imobilidade. Esta heterogeneidade radical é aqui substituída pela mudança de direção, pela inversão da

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marcha habitual do pensamento, pela refundição das categorias da linguagem etc. É a inteligência que se volta contra si mesma, a partir da reflexão que atinge a virtualidade intuitiva presente no intelecto. Já que não se pode transpor a distância, marcada pela heterogenei­dade radical, que no homem existe entre intuição e inteligência no que se refere à expressão, esta se dá como um contraponto que o conhecimento intelectual produz em relação a si mesmo. Este con­traponto supõe uma harmonia que pode ser vista sob um duplo as­pecto. Primeiro, a harmonia entre o conceito "remanejado", fluido, móvel, ágil, flexível - mas ainda conceito - e a inteligência como estrutura conceitual. Esta harmonia assegura a continuidade entre a inteligência e o modo de expressão, já que o simbolismo da lingua­gem é produto da inteligência. Segundo, a harmonia representada pela interpenetração originária entre intuição e inteligência, gênese da possibilidade de que a inteligência busque algo que não está em perfeito acordo consigo mesma. A reflexão representa como que o traço de união entre estes dois aspectos, já que a gênese da expres­são metafísica é a procura pela inteligência do ponto onde ela pode instalar uma desarmonia consigo mesma, no que se refere à vocação para a exterioridade que caracteriza o espírito enquanto inteligência, ou consciência pragmática. Por isso Bergson classifica tal esforço de "violento", na medida em que por ele a inteligência recusa a unilate­ralidade de sua vocação externa, permitindo que o espírito recupere a sua interioridade e que esta seja expressa por uma torção da ma­terialidade dos signos. É uma recusa da materialidade da significa­ção que está na raiz da possibilidade de retorno à pluralidade movente dos significados num estrato em que estes ainda não se fixaram na exterioridade de uma significação totalmente cristalizada, "já dada" como estratificação da realidade da duração. Esse retorno à interio­ridade como matriz de significação supera as dicotomias analíticas em que se debateu o pensamento filosófico e que se traduzem no dilema entre o realismo e o idealismo. Ou existe a multiplicidade dada das imagens imediatamente presentes no campo da represen­tação, ou existe um estrato unitário, não presente na exterioridade imediata, que fundamenta a realidade relativa desses estados múlti­plos. Na verdade, o dilema se resume na escolha entre a relatividade das "coisas" na sua particularidade indefinida e alguma "coisa" pre­sente na representação interna como absoluto. No fundo é um deba­te acerca da abrangência conceitual, como se tivéssemos de optar entre conceitos e Conceito. A "indefinível combinação do múltiplo e do um" (P.M.-208) se dissolve enquanto problema filosófico a partir

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do momento em que" a intuição nos introduziria na consciência em geral" (P.M.-28). Isto significa que a interioridade como matriz de significação metafísica não condena o filósofo à autocontemplação. Pois à consciência "alargada" corresponde a duração universal. a substancialidade absoluta do tempo. da qual a temporalidade subje­tiva é apenas o modelo e o ponto de partida na ordem do conhecer. Quando a intuição atinge a "mudança pura" ela já não está mais restrita à temporalidade subjetiva, mas alcança uma espiritualidade cósmica em que a consciência subjetiva e a duração universal se identificam na consciência em geral. Buscar "nas coisas, mesmo materiais, a participação na espiritualidade" (P.M.-29) significa dis­solver a separação tradicional entre real e ideal na compreensão da duração como interioridade em si. Por isso a reflexão que busca no estrato anterior à cristalização significativa o movimento expressivo que indica essa realidade absoluta se põe como o único meio de superar a conceitualização múltipla e a conceitualização absoluta, escapando assim à lógica do entendimento e abrindo a possibilidade de pensar o eterno no registro do tempo.

Equivocou-se a filosofia quando pensou que o absoluto poderia ser expresso por um conceito absoluto. Esse nível de expressão ape­nas prolonga a ilusão inerente à aproximação externa do objeto. Não é seguindo a vocação unitarista da linguagem que a metafísica pode­rá dar conta de seu objeto. A metafísica necessita da ciência porque é necessário "subsidiar" o ato de pensamento que visa ao ser na sua profundidade, no seu caráter único e indivisível. A familiaridade com os aspectos superficiais da realidade é condição para a penetração na sua estrutura profunda. Mas a pluralidade quantitativa de dados e de resultados de nada serve enquanto o espírito não se instala, por assim dizer, no centro qualitativo que reúne todos esses aspectos, ou melhor, de onde todos eles derivam, como perfis de um único rosto. O trabalho de situar-se no centro vivo da realidade é análogo ao trabalho preparatório do escritor, que junta notas e documentos, estuda o assunto de todos os ângulos, antes de abordar a própria composição da obra. Enquanto não encontrar o "impulso" originário que me colocaria no próprio coração da totalidade, tudo o que tenho são "partes" ou elementos exteriores entre si, ligados apenas por uma rubrica. Mas desde que me situo na posição do impulso que deriva da intuição do todo, as partes transformam-se em "expressões par­ciais" e assumem a significação que devem possuir no interior de uma totalidade indivisível.

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10. INTUIÇÃO E EXPRESsA0: A TENsAo 00 SIGNIFICADO

O sentido da totalidade é o movimento que a constitui. Talvez por isso a melhor metáfora da duração seja a música. Ao longo da obra bergsoniana, os apelos ao exemplo musical são freqüentes, sen­do que os mais sugestivos encontram-se nos Données lmmédiates". A continuidade melódica enquanto progresso qualitativo da totali­dade parece funcionar como o melhor "esquema dinâmico" para que possamos chegar a expressar a multiplicidade qualitativa da dura­ção. Certamente a multiplicidade tonal e o movimento pelo qual a mudança apresenta-se como contínua e ao mesmo tempo como incessante invenção de qualidade significativa sugere de modo privilegiado a espécie de continuidade descontínua do fluxo tempo­ral. Ainda mais, o circuito emocional que se instala entre obra e es­pectador, no caso, representa o envolvimento da afetividade do su­jeito naquilo que se lhe apresenta - o que é talvez o exemplo mais próximo de identificação no plano da contemplação estética. É o caso em que a flexibilidade do signo, o caráter tênue de sua materia­lidade e a indissociabilidade entre unidades simbólicas e movimen­to, ilustra da forma mais adequada a "souplesse" da representação necessária à expressão da relação intuitiva. O envolvimento do sujei­to numa afetividade que o transcende sugere o transporte do espírito para um sentido que se situa, por assim dizer, no registro de uma emoção transubjetiva. O caráter interno da progressão melódica su­gere algo como a envolvência de um absoluto no qual nos inserimos pelo simples assentimento à cadência da constituição da música. O sentido musical é talvez o que mais se aproxima do significado dado pela própria temporalidade, como se aqui a matéria da obra de arte fosse o tempo.

Ainda assim a música não pode ser entendida como a expressão completamente adequada da intuição da duração. Pois uma peça musical é uma construção simbólica e, nesse sentido, um discurso, embora de um gênero em que o movimento significativo importa mais do que a articulação das partes, ou a posição fixa de cada uma. É bem verdade que a construção simbólica na música remete de maneira mais direta ao plano não-discursivo, uma vez que a matéria da música relaciona-se de modo mais imediato com a consciência emotiva. Isso porque a imagem musical transita de maneira mais livre pelo circuito emotivo da contemplação, de forma a permitir que

87. Cf. por exemplo, D.I. pp. 76 a 79.

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO

nos situemos mais facilmente na direção do sentido. Se admitimos nuances entre as formas expressivas - todas elas obviamente insu­ficientes e indiretas -, não poderemos concordar com a afirmação de S. Langer de que "a música não apresenta a realidade de modo mais direto do que o discurso filosófico", embora a apresente por meio de imagens não-discursivas". Acreditamos que Bergson esta­belece uma relação suficientemente estreita entre símbolo e discurso para que se possa afirmar que existiria alguma construção simbólica que escape inteiramente à estrutura discursiva. O que a música tem de singular enquanto expressão da realidade fundamental é que ela nos introduz numa metáfora da temporalidade contínua, fazendo com que tenhamos acesso a algo diferente do tempo espacializado, com o qual nos relacionamos habitualmente, e nOS apresentando a concretude afetiva da postura de identificação com o absoluto, a intuição. É claro que, do ponto de vista da elaboração e da contem­plação, a singularidade da expressão musical deriva da vivência do tempo absoluto, mas por intermédio de signos que, na música, são extraídos mais diretamente do tempo, já que, neste caso, O próprio tempo é signo. Foi provavelmente esta característica que levou Selincourt a dizer: "A música é uma das formas de duração; ela sus­pende o tempo comum e oferece-nos como um equivalente e ideal substituto"". Não se pode falar em Bergson de "formas de duração": existem, isto sim;diferentes graus de tensão de duração, ou de con­centração da temporalidade. A música certamente é uma expressão tensa da temporalidade, pois nela o signo está carregado de duração e a composição simbólica utiliza o próprio tempo como fundo ex­pressivo.

Mencionamos a música com a finalidade de mostrar que, mes­mo na forma de expressão menos indireta e naquela em que encon­tramos a possibilidade de maior mobilidade da representação, a in­tuição da duração não é representada de forma completamente ade­quada. A expressão metafísica é sempre aproximação do inexprimí­vel. A inversão da marcha habitual do pensamento tem esse sentido: trocar a aproximação do objeto pela aproximação do absoluto. Mas ambas são simbólicas, e .a diferença está em que a inteligência se compraz na fixidez da forma e a expressão intuitiva é movida pela

88. Langer, S., Sentimento e Forma, tradução brasileira da editora Perspectiva, São Paulo, 1980, p. 125.

89. Selincour, B., citado por S.langer, ob. cit., p. 117.

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11. EMOÇÃO E VERDADE: A INOETERMINAÇAo SIGNIFICATIVA

inquietude de superar a cristalização. A expressão formal da duração é basicamente uma contradição, a mesma que os românticos pensa­ram ao fazer da arte a forma finita de expressão do infinito. Em Berg­son esta contradição deriva do fato de que a expressão da intuição só se toma possível quando instalo a própria contradição no interior da inteligência, pois só este procedimento me permite atingir a mobili­dade do significado, que é como que o símbolo geral da interiorida­de, ou da mobilidade interior. Esta contradição aponta para a supe­ração da humanidade no homem. "( ... ) a filosofia deveria ser um esforço para superar a condição humana" (P.M.-218). Ignoraremos sempre se e até que ponto esta superação se dá na interioridade individual. Mas podemos tentar compreender o esforço de ultrapas­sar-se sempre que ele se expressa na transfiguração simbólica, razão pela qual, no pensamento de Bergson, as exigências de expressão da metafísica são mais bem cumpridas pela Arte.

11. EMOÇÃO E VERDADE: A INDETERMINAÇÃO SIGNIFICATIVA

No primeiro capítulo dos Données Immédiates, Bergson, depois de analisar o sentimento do belo como um caso característico de atividade do Eu profundo, e de concluir que "a arte visa muito mais imprimir sentimentos em nós do que exprimi-los", extrai de suas considerações uma conseqüência de grande importância para a com­preensão do papel das imagens na expressão da intuição: "Resulta dessa análise que o sentimento do belo não é um sentimento espe­cial, mas que todo sentimento exprimentado por nós aparecerá com um caráter estético se tiver sido sugerido, e não causado" (D.I.-12). A origem sugestiva do sentimento estético está na coincidência com um certo ritmo inscrito no relacionamento emotivo com a obra. Esta coincidência faz com que aquilo que em nós é despertado pela obra não passe pela determinação estritamente racional da forma sensível ou da sensação. Há um certo compromisso entre o espírito e a obra pelo qual se constrói uma relação que atravessa a sensação, estabe­lecendo uma comunicação com a interioridade do objeto, uma his­tória condensada ou uma emoção ali depositada pelo artista, pela qual o objeto nos sugere, em diferentes graus de intensidade, a emoção inscrita no circuito da contemplação. O caráter peculiar da emoção estética, como já vimos, é que mais nos introduzimos nela do que ela em nós. A condensação da coincidência entre subjetivida-

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1II - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO

de e absoluto, que está na origem da concepção e da elaboração da obra de arte, e que inclui uma história da complexidade interior do artista, não poderia ser entendida "racionalmente". Por isso a inten­ção do artista é "fazer-nos experimentar aquilo que não poderia nos fazer compreender" (0.1.-13). A emoção não é pois a refração de duas exterioridades, a materialidade sensível da obra e a apreensão sensível ou intelectual de quem a contempla. A expressão aqui deve ser entendida como participação em dois sentidos. Em primeiro lu­gar, a expressão da subjetividade do artista é participação na emoção criadora, pela qual o sujeito se coloca no sentido mesmo do élan. Em segundo lugar, a contemplação é a participação na expressividade emotiva da obra, mais do que uma leitura externa de significações. Isto faz com que as imagens enquanto meio expressivo não possam ser vistas apenas sob o aspecto de uma tradução da intuição, na modalidade de uma relação significante/significado.

Se a imagem não tem seu teor expressivo mediado pela relação intelectual, ela deverá no entanto apresentar uma estrutura de lin­guagem que permita a compreensão através da sugestão, ou da sim­patia. Seria então o caso de distinguir entre duas linguagens, distin­ção que, por si só, entretanto, configura uma questão, como enuncia Ernesto Grassi: "Qual o caráter daquela linguagem que é o próprio depoimento dos motivos originais? Certamente ela não apresentará caráter racional, pois para isso precisaria tirar definições através de seu fundamento. Deverá então ser posta à parte da linguagem 'racio­nal' e 'demonstrativa'; será uma linguagem 'a-racional', puramente indicativa, semântica, cuja estrutura fosse diferente da linguagem demonstrativa e racional?"" A oposição entre ratio e pathos seria tão profunda a ponto de fazer da linguagem um ato segundo e do silên­cio algo mais originário do que a linguagem? Outra oposição deve aqui reter nossa atenção para que possamos pensar de uma maneira mais ampla a relação entre linguagem e imagem: a oposição entre eidos e pathos. Se nos remetemos ao significado de eidos (aspecto, imagem) vemos que a essência, tal como aparece na filosofia de Platão, é a imagem contemplada intelectualmente, ou seja, dotada do privilégio de aparecer como imagem para o intelecto na disponi­bilidade pura da contemplação, isto é, como alma. Esta contempla­ção se enfraquece quando traduzida em linguagem, o que significa

90. Grassi, E., Poder da Imagem Impotência da Palavra Racional. tradução brasileira da Editora Duas Cidades, São Paulo. 1978. p. 16.

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11. EMOÇÃO E VERDADE: A INDETERMINAÇÃO SIGNIFICATIVA

que a Theoría. entendida como visão, é um ato mais originário do que a linguagem. Não há portanto uma continuidade entre Theoría e discursividade mesmo quando a visão direta é concebida como intuição intelectual. Existe portanto um patético que transporta a alma sem que esta seja movida pela sensibilidade. Mas se o discurso racio­nal deriva da contemplação patética, então o que os separa? Ou o que separa a linguagem racional da linguagem governada pelo pathos? A retórica. como discurso persuasivo. sempre foi posta ao lado da linguagem que apela para a sensibilidade, para as paixões. Há um desvio que pode ser talvez detectado no início da tradição ocidental. quando o discurso "retórico", no sentido de patético, foi distinguido do discurso racional, da utilização da argumentação lógica, e consi­derado como o discurso que leva à ilusão. Nizolius. como mais tarde Nietzsche, localiza em Sócrates e Platão esta separação entre o dis­curso do saber e o discurso que visa "apenas à persuasão". "( ... ) antes de Sócrates e Platão, a ciência do bom comportamento e do belo falar (recte faciendi et ornate dicendi scientia) - isto é, a filosofia e a retórica - não eram distintas, mas sim uma única ( ... ) Mas - não sei por qual destino adverso ao gênero humano (adverso humano generi fato) - então nasceu Sócrates que, juntamente com Platão, destruiu aquela bela união de filósofo e orador"." A conjunção da desvalorização da retórica e da insuficiência da palavra "racional" coloca o filósofo diante de um dilema: o falar racional que permane­ce distante da compreensão originária. ou o falar "retórico" que su­gere a comunicação patética, mas que não se submete às normas do discurso "verdadeiro". Bastaria, para solucionar essa aporia, lembrar que o discurso "verdadeiro" provém da visão originária? Nesse caso a fidelidade à visão estaria muito mais ligada à metáfora. enquanto imagem construída, do que à articulação lógica e conceitual. A me­táfora enquanto meio de articulação alternativo sugere a anteriori­dade da imagem em relação à própria linguagem, o que faria com que a imagem detivesse o caráter originário e, por assim dizer, sub­metesse a si a linguagem no seu teor expressivo.

Isso significa propor algo como a autonomia da imagem, que derivaria de seu poder de "compreensibilidade", que aqui seria en­tendido como a sugestão do acesso direto ao que Grassi chama de "motivos originários". Mas como se pode pensar a autonomia da imagem se os símbolos tendem para a fixidez necessária à comuni-

91. Nizolius, M., citado por E. Grassi, ob. cit., p. 17.

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO

cação instrumental, e se a linguagem pertence ao estrato pragmático da cultura? A resposta à questão liga-se àquilo que mencionamos antes acerca do fundo de inquietude que, mesmo na atividade inte­ligente, acompanha a tarefa infinita de completar as aproximações simbólico-conceituais do objeto. Quando a reflexão aprofunda esta inquietude e atinge a dimensão do pathos, esta deveria ser a origem do processo de recriação dos símbolos. Tal recriação, por sua vez, deveria restituir ao símbolo uma função patética que o tornasse ex­pressão da originariedade. Mas é importante que se note que, em Bergson, o símbolo não tem uma função patética original. Conse­qüentemente, não é o caso de se buscar um estrato originário em que o símbolo aparecesse como expressão primordial. Toda expres­são é tradução". Já que o símbolo enquanto tal não pertence à di­mensão originária, voltamos ao problema do caráter inexprimível do pathos. No entanto existe uma efetividade emocional na figuração simbólica da arte. Ela deriva da indefinição primitiva do mundo humano, dessa abertura que permite a configuração instrumental da intencionalidade pragmática. Esta indefinição, na qual se insinua a inquietude que na esfera religiosa resulta na fabulação, abre também a possibilidade de uma figuração simbólica a partir de uma subver­são dos significados, que na arte atinge o próprio nível da forma simbólica. Assim a arte não é apenas um rearranjo de símbolos, mas uma criação que se manifesta a partir de uma recriação simbólica, entendida principalmente como transformação da função do símbo­lo. O homem é o único ser vivo que pode fazer de sua situação na­tural uma contradição. Isso significa que a cultura não está biologi­camente condicionada; é possível transformar a formação natural, fruto da evolução, e assim aceder a aspectos que a natureza, por assim dizer, desejou manter obscuros.

A recriação simbólica é, pois, a decisão acerca de uma nova di­reção interpretativa. Quando Bergson fala de uma "refundição" dos símbolos, evidentemente não poderíamos entender por isso uma reelaboração completa, uma vez que a linguagem está dada como produto cultural e que a materialidade dos signos nas artes que não são da palavra é igualmente insuperável. A questão central passa a

92. Não podemos portanto referir a Bergson a afirmação de Grassi: "A obra de. arte evoca uma situação fundamental na qual símbolos esclerosados e tornados inofensi~ vos pela existência cotidiana revelam o seu significado originário, provocam estados de espírito que fazem com que o homem experimente suas paixões fundamentais" (ob. cit .• p. 35).

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11. EMOÇAO E VERDADE: A INDETERMINAÇAo SIGNIFICATIVA

ser, portanto, a interpretação entendida como figuração simbólica do originário. A interpretação é a marca da finitude e ao mesmo tempo aquilo que permite superá-Ia através da liberdade simbólica. Esta liberdade se dá quando transfiro para a imaginação a tarefa de configurar simbolicamente a realidade. Desnecessário dizer que a instrumentalidade é uma interpretação guiada por parâmetros natu­rais ou regida pelo telos da utilidade. A construção do mundo per­ceptivo e sua assimilação através das formas intelectuais são sem dúvida procedimentos interpretativos que se regulam pela exteriori­dade do espírito, a direção habitual do pensamento. A interioridade e, mais do que isto, o sentido da interioridade recíproca entre "sujei­to" e "objeto" representam a adoção de uma outra direção interpre­tativa que se dá como expressão da comunicação originária. O origi­nário é a visão (theorein) e a expressão é o lagos, tanto na sua acep­ção de palavra como na de reunir e recolher. Entre a visão e o logos, no homem encontra-se a mediação dos sinais, que deveriam remeter à visão, mas que a articulação simbólica distancia das origens. Por isso não se pode confundir o logos do entendimento com o logos originário. Assim, para os antigos, ouvir o logos originário dependia da anulação do logos "racional". Daí o caráter enigmático dos oráculos e a caracteristica da "possessão" daquele que fala a partir do logos ori­ginário. Possessão significa que aquele que fala não domina o logos, mas é habitado por ele. Neste caso, os sinais e os símbolos já não obedecem à ordem lógica, mas se conformam a uma ordem originá­ria que necessita ser interpretada. Mas a própria fala já é uma media­ção entre a origem e a interpretação "racional". No entanto a origem da comunicação oracular, da fala da sibila, dos videntes e dos profe­tas é a visão pura, theoria na acepção absoluta. A linguagem faz com que o dizer do logos entre no universo humano, torne-se história. A palavra é formadora do mundo humano porque o que por meio dela é dito torna-se cultura no sentido de forma do mundo humano: a historicização da palavra dá início à vida cultural no sentido de his­tória humana. "O discurso faz com que nos esforcemos por atingir os primeiros princípios que nos levam a definir os fenômenos, a colocar ordem no caos das impressões e a fundar o nosso mundo. Portanto, a fala é fundadora do mundo. Negá-lo equivale a renunciar à histó­ria, à comunidade e à mundanidade93." A história equivale então à tarefa de interpretar o destino a partir da palavra que transmite o

93. Grassi, E" ob. cit., p. 75.

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logos original, o motivo originário, a Vlsao nunca inteiramente traduzida. Só o silêncio corresponderia à visão. É porque o absoluto atravessa o destino humano que a palavra deve fazer-se história, e que o evento deve manifestar algo que lhe é anterior. Mas o discurso que visa atingir os primeiros princípios é aquele que se distancia da cotidianidade, da instrumentalidade restrita dos "signos esclerosados" para elaborar uma figuração simbólica que desvele pela linguagem aquilo de que ela depende. A linguagem depende da visão, portanto do silêncio. É nessa dimensão que se encontram os archai que então devem governá-la enquanto linguagem que fala da origem. É a lin­guagem em que o símbolo remete a algo anterior à linguagem: symbállein significa originalmente ligação com base em algo comum94

Essa comunidade originária entre o homem e o logos originário deve aparecer na estrutura segunda da linguagem articulada, manifestan­do o parentesco do símbolo verbal com a origem que ele deveria exprimir. Por isso o discurso filosófico e a linguagem da arte são arcaicos, isto é, os símbolos são aí articulados no registro de uma comunicação patética com o originário. Assim, a fala é mais fiel às origens quando quem fala está "possuído", sendo apenas veículo do logos divino, caso em que a própria articulação do discurso deixa de ser puramente racional, já que o estrato da articulação é o pathos, mediação não "lógica" da expressão.

A metáfora, no sentido mais geral, é a transferência da camada originária da expressão no sujeito. Não se trata apenas de transfigu­rar o significado e assim transferir a figura do sentido de uma signi­ficação para outra. É a própria origem da expressividade que se trans­fere do entendimento para a esfera do pathos. É portanto algo mais do que aquilo que já vimos como a mobilidade do signo, caracterís­tica pela qual ele, movendo-se entre os significantes, aplica-se a vá­rias coisas. Aqui é a camada originária da expressão que se situa num outro âmbito, diferente do entendimento, embora dele dependente no que se refere ao trânsito exteriorizante da expressão. Quando os românticos afirmam que a obra de arte é a figuração finita do infini­to, podemos perguntar: qual a origem desta figuração? Poderia a subjetividade finita figurar o infinito a partir de seu próprio poder de simbolização? Ou devemos entender que tal figuração se dá quando a subjetividade está "possuída" pelo próprio infinito que ela deve figurar, mas que só pode fazê-lo nas formas finitas que é capaz de

94. Cf. Grassi, E., ob. cit., p. 76.

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11. EMOÇÃO E VERDADE: A INDETERMINAÇÃO SIGNIFICATIVA

criar? No entanto tais formas precisamente figuram o infinito porque de alguma maneira derivam dele, ou desta relação absoluta que se configura na possessão do finito por algo que o ultrapassa. É preciso portanto que a força interpretativa seja buscada naquilo mesmo que se pretende interpretar. Nisso também se situa a transferência inscri­ta na acepção de metáfora. A fonte produtora do sentido deixa de ser a cotidianidade, o mundo da consciência instrumental, para ser a camada originária da realidade ou a coincidência com o logos pri­mordial. Esta coincidência retira da linguagem o caráter de processo entendido como seqüência lógico-temporal de articulação do signi­ficado. Por isso a visão direta é transmitida pela metáfora, que não articula, mas torna possível a relação imediata entre as palavras que remetem à origem do significado. O significado não é atingido por dedução, mas por uma associação introspectiva de similaridades, que tem como premissa o poder absoluto do logos originário, ao qual se submete o poder articulador da linguagem". O que foi dito autoriza a seguinte conclusão: "A linguagem racional, demonstrativa, explica­tiva não é originária: ela tem suas raízes na linguagem semântica e referente, que é extraída diretamente da fonte dos 'sinais' arcaicos"". Assim como a interpretação do oráculo ou da fala da sibila se dá a partir da compreensão da organização interna das imagens que com­põem o discurso, assim também é a organização de imagens, numa ordem diferente da articulação conceitual que permite elaborar o discurso que visa à aproximação interna da visão como conteúdo intuitivo. Há um aspecto pictórico cuja consideração é essencial para que se compreenda a possibilidade de uma linguagem originária. A visão é completa em si: as imagens do visto descomprometem a vi­são com o seu objeto. Por isto a expressão do visto só pode ser ima­gética, pois trata-se de traduzir a visão pela sugestão da visão, que é dada na imagem. A visão é tão heterogênea à expressão que não poderia causar nenhum conteúdo expressivo. A construção de ima­gens no jogo da imaginação (ou no jogo entre imaginação e enten­dimento) visa de alguma maneira contornar esta heterogeneidade, evocando a visão através de visões: de imagens. Dar a ver o que não pode ser compreendido é a função da imagem enquanto sugestão; eis por que a imagem não causa representação, mas representa dire-

95. Cf. Grassi, E., ob. cit., p. 88. Cf. também a análise da linguagem da sibila em Agamenon, de Ésquilo, que Grassi desenvolve nas pp. 89 a 104, assim como a análise do episódio da sibila de Cumae (Eneida).

96. Grassi, E., ob. cit., p. 83.

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tamente a visão indireta que podemos ter do conteúdo intuitivo. A organização interna das imagens, solidária da indeterminação de cada uma em particular, resulta assim num conteúdo expressivo mais rico do que a uniformidade semântica do conceito. Essencial para que as imagens cumpram esta função é a manutenção de sua indetermina­ção significativa, já que somente assim o significado pode manter-se no plano da sugestão. Esta indeterminação também faz parte do jogo significativo das imagens, que se dá entre a evidência e o ocultamen­to. O eterno vir-a-ser da verdade da origem, em si irrepresentável, é o próprio processo de figuração que, por ter o absoluto como origi­nal, é infinito. O conteúdo intuitivo é experiência, no sentido mais integral em que se pode concebê-la. Assim, a palavra remete a uma experiência, ou seja, se constitui no âmbito de uma revelação. Reve­lar é reconduzir à experiência originária, permitindo que o sujeito se reconheça em ato, isto é, na atividade originária do pathos. Por isso a constituição da linguagem da arte e da linguagem da metafisica é uma tarefa que tem por finalidade penetrar na estrutura da realidade em sentido próprio: da vivência que antecede o discurso vivido da história e do mundo humano. O que faz a palavra oracular, através das imagens, é tornar visível o âmbito originário da revelação da palavra. Os archai são experiências: neles figura e palavra não se distinguem, e a produção do sentido não é a articulação do signifi­cado, mas produção poiética como identificação expressiva entre o homem e a totalidade do ser. É nesse sentido que a articulação racio­nal é derivada e a filosofia e a arte são questionamentos emotivos originários. A problematização especulativa do mundo parte da in­quietude que nos atinge quando a reflexão transborda o entendi­mento e o homem se torna consciente de sua solidão entre os seres naturais, na medida em que é o único capaz de questionar a sua própria natureza. Esse poder de se transcender tem algo de "aflitivo" perante a impassibilidade necessária do mundo natural. "Esse poder aflitivo - que exige fé - traz consigo o aspecto apaixonado do ele­mento arcaico, que já aqui deixa claro ser a esfera do originário de­terminada por um elemento emotivo, enquanto o mundo racional­não-originário, mas puramente derivado - permanece impassível e não-emotivo97."

Impossível não relacionar esse elemento emotivo com o que Platão assinalou como estando na origem da filosofia: o espanto,

97. Id., ibid., p. 120.

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1 L EMOÇÃO E VERDADE: A INDETERMINAÇÃO SIGNIFICATIVA

entendido como estranhamento perante o cotidiano, quando para além dele vislumbramos a visão e abrimos para nós a possibilidade de que esta visão venha a ser a do originário, Sendo a função do espanto transportar-nos para além do aparente, seu âmbito é o pri­mordial e o arcaico - o anterior à dimensão racional do discurso, A experiência de estranhamento em relação ao cotidiano é comoção: emoção compartilhada com o próprio absoluto. Não está esta como­ção na própria raiz do esclarecimento racional dos fenômenos? Não existe portanto um paralelismo entre pathos e entendimento, como duas "faculdades" que abarcam campos distintos. O caráter originá­rio do pathos nos faz reconhecê-lo como o signo da primazia da imagem sobre o discurso puramente racional, na medida em que este é uma fixação derivada das metáforas que mais servem à esta­bilidade do nosso contato com o mundo. Aquém deste contato, o mundo é visto como que pela primeira vez, na imediatidade de sua qualidade de criado que remete de modo absoluto à atividade cria­dora, com a qual procuramos tomar contato intensificando a nossa relação com as coisas até torná-la originária. O limite desta relação originária está na recriação simbólica, pela qual transformamos a instrumentalidade natural dos signos em tarefa de criação de for­mas. O homem é o único ser que pode transportar a inquietude para o mundo da natureza, fazendo com que physis e ethos identifiquem­-se como cenário da criação.

O caráter originário do pathos pode ser também compreendido a partir da diferença entre forma instrumental e forma artística. O que significa o desenho do mundo empírico para a consciência prag­mática senão a determinação de uma correspondência entre a virtua· lidade instrumental do mundo prático e a estruturação utilitária da consciência enquanto inteligência e percepção? Esta determinação realiza as virtualidades de ação presentes no mundo prático, deter­minando a forma da percepção e a forma da apreensão intelectual. Esta determinação exclui todas as demais virtualidades da presença. Um utensílio, uma vez construído, está determinado na sua forma e na sua finalidade; essa própria conjunção, na medida em que realiza perfeitamente a intencionalidade fabricadora e utilitária da consci­ência empírica, exclui todas as outras formas e todas as outras fina­lidades. A determinação se dá pela compatibilidade definida entre forma e finalidade. A obra de arte, derivando da emoção ou da co­moção, não está determinada pela inteligência no estrato de sua gênese criadora. Essa ausência de determinação remete àquilo que

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seria a determinação intuitiva, que no entanto teria de ser entendida como determinação a partir da coincidência presente na comunica­ção simpática com O originário e o absoluto. Mas uma determinação absoluta entendida como ausência de mediação entre determinante e determinado é, por referência à inteligência, indeterminação. Esta indeterminação é que faz com que a obra de arte não seja fruto de uma atividade fabricadora. Significa que, não havendo determina­ção, não há exclusão de possibilidades, não há compatibilidade de­finida entre forma e finalidade. Assim a obra de arte, ainda que sen­sivelmente fixada numa forma, remete a infinitas possibilidades de ser. Como a forma não corresponde a uma finalidade precisa, o ob­jeto traz em si a significação difusa da imagem, a indeterminação de conteúdo que só pode ser apreendida no plano da emoção. A irradia­ção do significado a partir do núcleo intuitivo da obra exclui a con­vergência objetiva que determinaria a significação; por isso, como vimos, só a coincidência com essa irradiação, com esse percurso múltiplo do centro para a periferia, permitiria que apreendêssemos, na efetividade de sua realização, o significado emocional da obra. Por isso diz Bergson, nos Données Immédiates, que a obra de arte cuja apreensão do significado se dá apenas no âmbito da sensação representa uma "arte menor". A forma sensível deve remeter àquilo que ela não é: nisso consiste a indeterminação que a distingue da forma do utensílio, que é aquilo que com ele eu posso fazer. "O ob­jeto real é uma exclusão daquilo que ele não é, ou seja daquilo que é inútil ou à sua ação ou a uma ação sobre ele. A obra de arte é ao contrário a sugestão daquilo que ela não é, sugestão que, no caso das obras de arte superiores, atinge quase o infinito"." A atualidade for­mal da obra de arte não a particulariza: no caso a forma é apenas um veículo da universalidade. Se no plano da inteligência a visão se trans­forma em ação, e esse é o caráter determinante e conclusivo da ati­vidade intelectual, a obra de arte representaria a inconclusão da vi­são, a identificação entre atividade e possibilidade, a escolha da Vir­tualidade, e não a opção entre virtualidades. Da visão à ação, o per­curso natural é como que bloqueado pela contemplação, que inter­rompe o circuito natural e desvia o pensamento de sua vocação "mundana". É nessa interrupção que se abre a possibilidade da in­tencionalidade não pragmática da consciência, de um outro dese­nho do mundo, de uma organização imagética que, através do "es-

98. Thibaudet. A., Le Bergsonisme. ob. cit .. p. 62 - voI. 11.

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11. EMOÇÃO E VERDADE: A INDETERMINAÇÃO SIGNIFICATIVA

forço de imaginação", visa ao núcleo da realidade numa visão que permanece enquanto tal; é a partir da permanência que se operam as configurações de imagens que estabelecem entre o sujeito e a reali­dade a relação de desinteresse que caracteriza a atitude estética. As­sim como a percepção "real" mede o interesse da ação virtual, a percepção artística instaura o desinteresse como mediação entre a forma (atividade) e o produto sem finalidade. A obra de arte reflete essa ausência de finalidade assim como o utensílio reflete a sua fina­lidade. Mas a obra só reflete algo na medida em que o poder de refletir está na gênese de sua elaboração, em que a criação imprimiu à obra a organização não finalista ou a unidade não determinada, geradas por um sentimento da realidade que não encontraria ex­pressão nas possibilidades determinantes dos quadros intelectuais. Nesse sentido, o artista é aquele em que o poder de refletir se con­trapõe à absorção requerida pelas virtualidades de ação com as quais nossa percepção se relaciona no mundo prático. Toda escolha se dá a partir de uma base reflexiva. Assim, a reflexão de inteligência, mi­nimamente instalada entre a consciência empírica e o mundo práti­co, fundamenta o visar seletivo da intencionalidade pragmática, e dessa maneira o mundo aparece enquanto esquemas de ações. Mas se a reflexão atinge, através da virtualidade intuitiva da inteligência, a visão aquém do esquema prático, então o poder de refletir se ma­nifesta em si, desligado das virtualidades de ação, e abrindo-se para as virtualidades do ser como presença: reflexão livre e ilimitada, e, assim, coincidente com o ato criador. Assim a obra de arte reflete o mundo e ao mesmo tempo cria um mundo. Essa relação entre refle­xão e criação é reveladora da índole da criação artística. Esta índole aparece em Bergson de maneira mais clara quando o filósofo com­para a intuição como instrumento da arte e como instrumento da filosofia. "( ... ) a arte relaciona-se apenas ao ser vivo e utiliza apenas a intuição, ao passo que a filosofia ocupa-se necessariamente da matéria ao mesmo tempo em que aprofunda o espírito, e conse­qüentemente apela para a inteligência tanto quanto para a intuição (embora a intuição seja seu instrumento específico (. .. )"." Que sig­nifica esse relacionamento da arte "apenas" com o ser vivo? Certa­mente não podemos opor arte e filosofia afirmando que a arte tem a ver com o movimento e a filosofia com a matéria inerte. O que de-

99. Bergson. H.. Carta a Hoffding. citada in Chahine. c.. La Durée chez Bergson. Structures Nouvelles. Paris. 1970. p. 89.

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vemos entender é que a arte relaciona-se diretamente com o núcleo vivo e movente da realidade, uma vez que a gênese criadora da obra situa-se numa dimensão mais profunda do que os quadros da inte­ligência. A filosofia relaciona-se com a matéria porque ela necessita superar metodicamente a aparência de imobilidade pela qual o real se apresenta na percepção e é assimilado através da lógica do enten­dimento. Por isso a filosofia apela para a inteligência: porque o co­nhecimento filosófico necessita familiarizar-se com as manifestações superficiais da realidade, aquelas mesmas que são acessíveis à inte­ligência, para ultrapassar criticamente, através dos fatos, a visão in­telectual da realidade e predispor-se assim para a relação cognitiva através da intuição. Num certo sentido o conhecimento filosófico é mais completo: ele vai à gênese da constituição dos modos de co­nhecimento, relacionando-os com a trajetória do élan. A arte não faz o percurso genético porque parte da virtualidade intuitiva e se co­munica emocionalmente com o núcleo da realidade, utilizando as imagens tanto para construir esta comunicação como para expressá­-la. Diríamos então que a arte não revela o porquê da intuição (sua gênese na relação conheciment%ntologia); ela se põe diretamente no sentido do élan, e vai da profundidade interior do sujeito à inte­rioridade do movimento absoluto. A filosofia parte também da interi­oridade do sujeito, atingida pela reflexão, e penetra na interioridade do objeto (movimento absoluto), construindo de alguma maneira indiretamente a sua relação direta com a totalidade, o que é outra maneira de mencionar a mediatidade do conhecimento imediato, a que já nos referimos. Esta é a razão pela qual a metafísica tenta apre­ender o que Grassi chama de "regência interna" das imagens: o movimento da sua pluralidade, enquanto a arte se serve diretamente das imagens para recriar simbolicamente (construir um mundo) a inserção da consciência no absoluto. Diferentemente do plano do porquê, o artista estaria situado no plano do como da atividade cria­dora: desconhece a gênese, mas coincide diretamente com o fazer-se da realidade. É por isso que o "mundo" do artista reflete o mundo real, embora seja uma criação: pois a essência do mundo real é cria­ção, e a arte, no que tem de atividade (produção), é recriação do movimento criador. A verdade da arte provém de que a recriação simbólica deriva da intuição (simpatia) da atividade criadora no pla­no do absoluto. É assim que a interioridade do artista (o núcleo in­tuitivo de sua relação com o real) faz com que ele se situe acima de si mesmo: uma continuidade transcendente, se assim se pode dizer, liga-o com o absoluto enquanto interioridade em si.

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12. SER E SIGNIFICAR: A INTIMIDADE CRIADORA

A imagem pode refletir o absoluto. A recriação de Significação através da construção de metáforas pela subjetividade criadora se dá por meio da transcendência das interioridades; daí o poder evocado r da imagem: despertar a virtualidade indeterminada pela qual o abso­luto se faz presente, ou presença. A realização dessa virtualidade in­determinada - precisamente porque ela é indeterminada - é cria­ção. Assim a originalidade de um mundo reflete a originariedade do mundo: a liberdade da imaginação reencontra a Liberdade criadora.

12. SER E SIGNIFICAR: A INTIMIDADE CRIADORA

Mesmo quando se referem aos estágios de elaboração subjetiva da obra, as considerações de Bergson sobre o estatuto da obra de arte e do artista não podem ser entendidas como uma psicologia do ato criador. O que está em causa é menos a análise da genialidade individual do que o fazer artístico como instância de revelação, ou de expressão da intuição. E isto mesmo quando, aparentemente, são os aspectos relativos à composição da obra focalizados de maneira pri­vilegiada. "O que há de mais construído, de mais sabiamente engen­drado do que uma sinfonia de Beethoven? Mas ao longo de todo o seu trabalho de arranjo, de rearranjo e de escolha, que se desenvol­via no plano intelectual, o músico regressava a um ponto situado fora deste plano para aí buscar a aceitação ou a recusa, a direção, a inspiração: neste ponto alojava-se uma indivisível emoção que a inteligência auxiliava, sem dúvida, a explicitar em música, mas que era mais do que música e mais do que inteligência" (D.S.-268). Tex­tos como este não nos apresentam uma psicologia da produção ar­tística. O que aí está é a relação entre a intuição e a composição, ou seja, o trabalho de expressar com os símbolos próprios de determi­nada arte algo que em si é completo, na unidade e indivisibilidade da emoção na qual a obra se confunde com a intuição que a engendra enquanto forma expressiva. O ato criador não é suscetível de análise, muito embora sua própria expressão tenha algo a ver com a análise, na medida em que a forma é uma discursividade simbólica. Se o artista é mais do que ele mesmo quando cria, é menos que ele mesmo quando expressa sua criação. Se, enquanto criador, identifica-se com o absoluto, no plano da expressão, retoma ao universo humano da fabulação e dos símbolos. Por isso o ponto nuclear da obra enquanto criação está fora do discurso e fora do artista enquanto homem, se

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III - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO

bem que para encontrá-lo tenhamos de ir ao fundo da subjetividade. O que mais interessa à concepção bergsoniana da arte não é a ges­tação individual da obra. mas o processo de identificação com a to­talidade da qual a obra se faz o veículo de revelação. Nesse sentido todo artista. no plano da expressão. já é um intérprete de si mesmo. da mesma forma que o filósofo. quando expressa sua intuição funda­mental em sistema. já é um discípulo de si mesmo. O "esforço de imaginação" não diz respeito ao ato criador. mas à construção da mediação imagética que tentará transpor a visão condensada no ponto nuclear fora do discurso para uma estrutura formal acabada. configuração simbólica cujo único sentido é remeter àquele ponto nuclear. Este. referência emotiva para a construção simbólica. atua como diretriz e inspiração que guia a síntese entre a impressão intui­tiva e a expressão discursiva. O sentido da obra de arte. entretanto. não se encerra na construção da forma; esta apenas remete à totali­dade absoluta. na qual a subjetividade se dissolveria. não fora o descenso necessário para o nível da recriação simbólica. Como todos os objetos da arte são figurações da duração absoluta. não há sentido em falar de imitação. a menos que se entenda por isso a repetição do movimento criador. movimento que não se enraíza na subjetividade. mas na força do élan. Jamais uma psicologia poderá ultrapassar o nível da composição pelo qual o artista torna-se veículo da criação universal. O sentido da interioridade está na identificação. não na separação: quando a individualidade se projeta além da espécie. já não o faz como individuo da espécie. mas como outra espécie. ainda que constituída de um único individuo. A obra de arte. o artista são manifestações da continuidade do Ato Criador. Por isso as indica­ções de uma concepção de obra de arte em Bergson apontam para o plano ontológico. e não psicológico.

Há portanto uma grande diferença entre tais indicações e a dou­trina do gênio presente no pré-romantismo inglês. por ex .• em Young. Opondo-se à concepção do trabalho artístico enquanto sábio agenciamento de partes segundo regras precisas. o que fazia da visi­bilidade arquitetõnica - dos aspectos explícitos da composição - o essencial da obra. Young preconiza uma visão "orgânica" da relação entre autor e obra. enfatizando a ação criativa e a vitalidade original da produção artística. O enraizamento da obra na profundidade do Eu. inclusive em aspectos inconscientes. seu crescimento orgânico e. sobretudo. a ênfase no processo de criação. mais do que no produto acabado. fazem com que a concepção da relação entre autor e obra

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12. SER E SIGNIFICAR: A INTIMIOADE CRIADORA

vincule-se bem mais à face obscura e misteriosa da criação do que ao "mecanicismo" das regras de composição vigente no neoclassicis­mo. "Pode-se dizer que um original é de natureza vegetal; brota es­pontaneamente da raiz vital do gênio; cresce. não é feito. As imita­ções são freqüentemente uma espécie de manufatura elaborada pela arte e pelo trabalho mecânico a partir de materiais preexistentes que não são própriosloo." Note-se que a visão orgânica. aspecto que seria em princípio favorável a um paralelismo com a concepção de Berg­sono diz respeito à criação entendida como elaboração da obra por uma subjetividade genial. O mistério e a divindade presentes na cria­ção são remetidos muito mais à personalidade do artista (que ele mesmo desconhece em grande parte) do que a uma participação em algo que o ultrapassa. A explicitação do paralelo entre criação divina e criação artística. comparação que remonta a épocas bem anterio­res a Young. sublinha com extraordinária força o aspecto espontâneo do ato criador. mas vinculando-o exclusivamente à subjetividade. como se o artista tivesse dentro de sium outro - um estrato inescru­tável de sua subjetividade - com o qual ele entra em contato no momento da criação. Abrams faz notar quão estranho devia aparecer tal psicologia do artista numa cultura impregnada da psicologia lockiana. na qual não havia lugar para o pensamento inconsciente. Na Alemanha. tais idéias se combinarão bem mais facilmente com uma psicologia impregnada de metafisica. por ex .• com a concepção leibniziana de inatismo virtual. com a idéia de que a percepção "real" se compõe de um número indefinido de pequenas percepções in­conscientes etc. Mas o que mais nos interessa nesta questão é a posição do artista. Tornou-se lugar-comum dizer-se que o romantis­mo opõe a liberdade criadora da personalidade individual à univer­salidade abstrata da regra. Disso já há claros indícios em Young. que privilegia as profundezas insondáveis da consciência. Essa separação entre o individual e o universal não se manterá da mesma maneira ao longo do desenvolvimento das concepções românticas de criação. sobretudo na Alemanha. Em Young. o que vemos é uma ênfase na espontaneidade da "natureza humana" quando o gênio a representa. Uma espécie de dupla subjetividade faz com que o artista encontre em seu interior a gênese das formas. numa dimensão não totalmente acessível ao domínio da consciência. Trazendo em si de que se sur­preender. se não de que se ultrapassar. colhe no desconhecido de si

100. Young, citado por Abrams, M. H., El Espejo Y la Lámpara (fhe Mirror and the Lamp), tradução espanhola Editorial Nova, Buenos Aires, p. 290.

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aquilo com que expressa sua diferença. A espontaneidade orgânica, quase sempre comparada ao crescimento vegetal, aparece como modelo de regulação interna da criação. O gênio é aquele que é para si a sua própria regra. O exemplo incessantemente citado, tanto pe­los ingleses como pelos alemães, é Shakespeare, síntese de saber e espontaneidade exatamente por organizar a obra a partir de si, não como um transbordamento selvagem, como por vezes se apregoou, exageradamente, na opinião de Coleridge e A. Schlegel, mas como um desenvolvimento orgânico e auto-suficiente"l. Essa relação entre inconsciente e individualidade, que parece ser bastante enfatizada entre os teóricos ingleses, no idealismo alemão assume um caráter mais ligado à ontologia, sobretudo em Schelling, com o conceito de produção inconsciente da natureza, de que já falamos antes.

Isso se explica, no caso de Schelling, pela recusa da dicotomia subjetividade/objetividade e pela concepção da identidade como "auto-afirmação absoluta''''. É algo que tem a ver com a relação entre o particular e o universal, tanto no que se refere à obra como no que concerne ao artista. O Belo, dizia Schelling, é o infinito apresentado de forma finita; August Schlegel complementa: "O belo é uma apre­sentação simbólica do infinito"l03. A recriação simbólica se dá na subjetividade do artista, ou por ela, mas a partir do infinito, do qual o símbolo não é O significado, mas a apresentação. Assim o absoluto se faz presença na obra de arte: a subjetividade do artista é singular precisamente porque aí o particular e o finito são ocasiões de mani­festação do infinito. A mediação estabelece a continuidade entre o finito e o infinito. O artista, enquanto mediador, é outro em relação aos homens, mas não é outro em relação ao absoluto. A mediação só se dá porque o mediador comunga com aquilo que através dele é mediado. O mesmo se aplica ao produto artístico. O absoluto não é outra coisa em relação àquilo que o simboliza. O valor do símbolo está exatamente em que a mediação se faz presença, ou a presença se dá na mediação. Entre o símbolo e o simbolizado não há relação de alteridade, mas de figurabilidade. Não é propriamente uma rela­ção de significação, tal como habitualmente entendemos. Quando

101. Cf. Abrams, M. H., ob. cit., p. 310. 102. Torres Filho, R. R., O Simb6lico em Schelling, in Ensaios de Filosofia Ilustrada,

Brasiliense, São Paulo, 1987, p. 155. 103. SchlegeI, August, Leçons sur ['Art et la Littérature, tradução Lacoue-Labarthe in

L'Absolu littéraire, ob. cit., p. 343.

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12. SER E SIGNIFICAR; A INTIMIDADE CRIADORA

dizemos que o finito figura o infinito, queremos dizer que o infinito está no finito, que o universal é o particular e que o particular é o universal. Pôr o sentido do símbolo nele mesmo e não em outra coisa não é optar pela unilateralidade da expressão ou pela auto-remissão do discurso; é levar até a radicalidade a noção kantiana de exhibitio e anular a distância entre ser e significar. "Ao dizer que no simbólico o universal não significa o particular, nem o particular significa o universal, mas cada um deles é o outro, Schelling está atento, sobre­tudo, à pregnância desse é, afirmado cum emphasi. Ao longo de toda a sua reflexão, ele nunca perdeu de vista a transitividade desse é, que foi, desde o começo, aquilo que propriamente o fascinou no 'eu é eu' de Fichte - que apanhava em ato a identidade da consciência ( ... )104."

A mediação como presença da identidade remete a algo como o ar­tista e o seu Duplo. Mas essa duplicidade não deve ser pensada como consciência e inconsciência no plano da personalidade. A subjetivi­dade é mediadora porque traz em si mais do que ela mesma, não como a parte desconhecida, obscura, de si, mas como a parte do Todo da qual a subjetividade não é consciente, mas com a qual se identifica, pois na unidade misteriosa da criação, a parte é o Todo, a subjetividade finita se faz infinito pela figuração, coincidindo com o processo "afirmante" da afirmação absoluta, noção que nos român­ticos faz eco à natura naturans de Spinoza. O mistério da criação artística está em que, nela, a mediação se faz identificação imediata. Por isso a mediação simbólica não pode ser inteiramente pensada no interior da subjetividade representante, pois essa mediação não se explica apenas como ação da subjetividade ou como produto do gênio. No limite, não é possível uma explicação psicológica do gênio, pois isto seria reduzir a Identidade ontológica à identidade dividida do Eu na relação entre consciência e inconsciência Nessa perspectiva se inscreve a relação entre genialidade e fatalidade e o aspecto sacrificai inerente à figura do mediador. O estranhamento, face apenas indicativa do aspecto sacrifical, configura a singularidade do destino do artista, levado a renunciar ao modo alegórico de figuração do infioito, próprio da criatura, para aceder à identificação através da mediação simbólica, possível apenas a partir da coincidência, vedada ao comum dos ho­mens, entre o sofrer e o agir, coincidência que, no plano da finitude, é a própria essência da criação. Assim se entende como a atividade criadora só se desvela a partir do pathos.

104. Torres Filho, R. R., o Simbólico em Schelling, ob. cit., p. 157.

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A mediação simbólica é uma recriação porque o símbolo não está naturalmente aberto para a figuração do infinito. Uma diferença que se pode assinalar neste ponto entre Bergson e os românticos é que, para o primeiro, a transfiguração simbólica é primeiramente uma transformação da função dos símbolos. Naturalmente voltados para a instrumentalidade, eles só se prestam à figuração do infinito através de uma torção violenta da direção de figurabilidade. É bem verdade que o interstício que se abre entre os símbolos e as coisas guarda uma virtualidade que trai a função natural da simbolização. Para que o significado possa se transformar em presença intrínseca, interna, intuitiva, é preciso que a expressão se contraia e, por assim dizer, revolva-se por dentro; é preciso que a expressão venha a se tornar o que August Schlegel entende por ex-impressão, isto é, algo que, ao exprimir, imprime. A aderência que supomos quando pensa­mos que o ser habita a linguagem fundamenta-se na transfiguração recíproca entre o real e o ideal'os. Somente assim a interioridade pode expressar a Interioridade: quando, como em Novalis, o sair de si é o entrar em si, e a identidade transcende a polaridade inerente à sig­nificação. Em Bergson, a união entre ser e significar ocorre quando o símbolo deixa de remeter à sua utilidade, ao seu caráter de uten­sílio, para aparecer por si mesmo, arrancado ao universo prático e vivendo da virtualidade reveladora que traz em si. Dessa forma "ele realizará assim a mais alta ambição da arte, que é a de nos revelar a natureza" (Le Rire-1l9). Quando o símbolo se despoja de seu utilitarismo, a obra ganha a transparência derivada da apresentação imediata do real na sua essência. Para a inteligência e para a vida prática, as formas valem pelo que servem; para a arte, as formas valem pelo que são, e pelo que deixam ser, no sentido de dar a ver aquilo que o entendimento recalca na estruturação intelectual da realidade. O artista "se ligará às cores e às formas, e como ele ama a cor pela cor, a forma pela forma, como ele as percebe por elas mes­mas e não por ele, é a vida interior das coisas que ele verá transparecer através das formas e cores" (Le Rire-1l9). A face mística da atividade artística apresenta-se como uma Aliança, no sentido bíblico, entre o artista e o absoluto. A contrapartida mundana desta Aliança é o es-

105. Expressão e impressão são inseparáveis. Cf. Schlegel, August, Leçons ... , na tra­dução já citada de Lacoue-Labarthe, L'Absolu Littéraire, p. 344. Cf. também a nota de Lacoue-Labarthe explicando o jogo semântico que August Schlegel faz a partir da palavra Ausdruck (expressão).

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12. SER E SIGNIFICAR: A INTIMIDADE CRIADORA

tranhamento, a solidão daquele que recebe a revelação, a primeira visão, e que assim refaz noutro plano o contato com o real, vendo­-o pela primeira vez. A revelação supõe a virgindade da alma: razão pela qual a arte e a contemplação mística se dão, ambas, como atra­ção do absoluto, compenetração íntima da subjetividade e da Tota­lidade, partilha do ritmo inefável da duração na sua multiplicidade identitária. "( ... ) o ritmo é uma imagem sonora que nos faz sentir, de uma maneira análoga à da metáfora, essas relações misteriosas, mas verdadeiras e reconhecidas como tais pelo auditor ou o espectador, que unem as coisas entre si e que unem entre si as coisas e os esta­dos de alma. Cada vez mais altas, cada vez mais centrais, essas cor­respondências remontam até o ritmo inicial, integram-nos na ordem divina e na harmonia universaP06."

Mas esta ordem divina e esta harmonia universal só podem ser entendidas como" eternidade de vida", nunca como o correlato pas­sivo da contemplação, que Bergson assimila a uma "eternidade de morte". É a esse ritmo enquanto progresso e fazer-se que o artista se integra, pois criar é atividade e, mais do que isso, criar é tornar-se atividade, já que a coincidência com o ritmo da duração é coincidên­cia com o espírito enquanto criação. O tournant que desvia o espírito da ação prática não o encaminha para a passividade. Antes, seria mais correto dizer-se que passividade é o estado da consciência ab­sorvida na práxis, visando ao mundo como construto simbólico-in­telectual. Aí a consciência se compraz na sua naturalidade, no re­pouso das formas que representam a interrupção do élan. A fabrica­ção e a utensilidade não devem ser entendidas como atividade no sentido original, mas apenas como transformações ordenadas do mundo prático para acomodar o percurso da vida regrada pela inte­ligência. N o plano da atividade autêntica, a forma não encerra a vida, mas a simboliza no seu constante e essencial fluir. É o plano em que a vida não se contrapõe ao espírito, na medida mesma em que a trajetória do espírito é vital. Na Evolução Criadora vimos que a vida é uma corrente espiritual que atravessa a matéria: como pode o por­tador ser contrário àquilo que traz em si? A forma artística realiza simbolicamente aquilo que a vida realizou ontologicamente ao se­mear as formas: a natureza ao expressar-se imprime o absoluto nas

106. Christoflour, R., Bergson et la Conception Mystique de l'Art. in Bergson, Essais et Témoignages, ob. cit., p. 165.

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formas criadas; por isso cada uma delas traz a densidade da criação absoluta, simples e irreproduzível. A vida só é contrária ao espírito quando as formas por ela criadas são tomadas como produtos exter­nos ao ato de criação'07• A forma, como veículo de vida, traz em si a pulsão infinita do ato que a criou.

Mas a visão da relação externa entre criador e criado é encoraja­da por uma concepção de interioridade que domina a vertente, por assim dizer, triUnfante do pensamento moderno. É a concepção em que o construto interno do espírito mantém com ele uma relação de alteridade, com a qual se busca salvaguardar, de um lado, a realidade do correlato das representações, de outro, a autonomia da consciên­cia representante. Para que a consciência não se perca no oceano da exterioridade, para que não seja apenas uma somatória de represen­tações, ela deve representar-se como diante das coisas, guardando, mesmo na relação interna com os seus conteúdos, uma realidade (formal ou substancial) separada. Por outro lado, para que a densi­dade das coisas não se dissolva no fluxo da consciência que as repre­senta, é preciso que elas sejam pensadas nos termos de um padrão externo, e que o pensamento seja impressão ou reconstituição essen­cial, mesmo que esse padrão tenha a sua validade lógica no âmbito da representação. Isso significa que uma filosofia da subjetividade pode construir-se a partir de uma divisão da própria interioridade, separando nela a subjetividade e a objetividade. Assim dizemos que a reflexão é o fundamento da representação: porque existe um estra­to da consciência que projeta os conteúdos de si para si, para que os próprios conteúdos internos conservem o referente externo. Esse procedimento faz com que a consciência represente a sua interiori­dade numa direção contrária à da sua intimidade. Dessa forma é que a produção interna pode relacionar-se com produtos a um tempo exteriores e internos, o que Bergson aponta quando assinala que as próprias idéias já podem ser símbolos de pensamentos. A autocons­ciência da produção íntima prescinde dessa desvinculação e de uma reflexão concebida, por assim dizer, como espacialmente articulada (a anterioridade do pensamento sobre o próprio pensamento). Na

107. Não podemos concordar com a afirmação de Hans Urs von Balthasar: "Bergson. também, foi tentado a dissociar o Espírito e a Vida. a relegar a inteligência aos confins da intuição, a ver na fonna e na geometria apenas o residuo da vida desagregada" (La Philosophie de la VIe chez Bergson .t chez les Allemands Modernes. in Bergson. Essais et Témoignages. ob. dt .• p. 268).

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12. SER E SIGNIFICAR: A INTIMIDADE CRIADORA

reflexão bergsoniana. um pensamento não está conectado a outro através de um sustentáculo que seria o fio da consciência, mas um pensamento engendra outro sem articulação descontínua. Mais do que de interioridade, a relação entre os pensamentos e destes com a consciência é de intimidade. Esta intimidade absorve a polaridade da referência numa continuidade que é a única verdadeira interiori­dade, a do Tempo, já que aí a interioridade é a Totalidade, sem o interstício representativo. É nesse sentido que Bergson pode dizer que a intuição é reflexão, pois não existe duplicação do pensamento nem separação entre afecção interna e pensamento. Intuir, contato direto, pode ser ao mesmo tempo refletir porque a flexão do pensa­mento modaliza o conteúdo sem articulá-lo descontinuamente. A continuidade que caracteriza a vida do espírito é. entretanto, con­densação da duração ontológica, razão pela qual o contato com as coisas é. de certa maneira, o contato do espírito consigo mesmo. interioridade recíproca. Daí a ligação tão estreita que vimos existir entre criação artística e intuição mística: assim como nesta o místico comunica diretamente com a interioridade absoluta do universo, e se sente como criação interna de Deus, o que é a explicação mesma desta comunicação, o artista, ao criar a forma, cria interioridade. cria sentido através do construto simbólico. É a diferença. que já assina­lamos, entre criar e fabricar. É claro que, a partir daí. a natureza assume outra significação: ela não é disponibilidade utensilar. mas repertório de sentidos. O pensamento industrioso tem de desconhe­cer a presença do sentido intrínseco, sinais do absoluto, mas essa é uma característica da conjunção entre pensamento e domínio práti­co do mundo. Bréhier assinala a relatividade histórica desta atitude: "Ela era, entenda-se, ignorada pela antiguidade clássica, para a qual rejeitar os deuses fora do mundo. considerá-los como independen­tes das grandes forças que animam a natureza, era pura e simples­mente negá-los"IO'. Para Bergson, mais do que histórica, essa postura é a atitude natural da inteligência, que necessita que uma realidade relativa corresponda à sua finitude. É esse "ponto de vista", escolha natural do entendimento, que recalca a interioridade do real ou a recolhe na dicotomia da objetividade subjetiva. Por isso considera ainda Bréhier que a filosofia de Bergson está próxima" (d)esta filoso­fia da natureza e (d)esta filosofia do espírito que, de Bruno e J. Boheme

108. Bréhier. E .. Prefácio a Adolphe. L. La Philosophie Réligieuse de Bergson, PUF, Paris, 1946, p. VIII.

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lU - INTUIÇÃO E EXPRESSÃO

a Schelling e Baader, constituem esta 'filosofia não oficial' que se recusa a permanecer no ponto de vista exterior do operari e da fabri­cação, mas não recusa a apreender a natureza na sua intimidade"lO'.

A separação entre interioridade fabricadora e intimidade criado­ra configura a crise que, de diferentes maneiras, os românticos e Bergson tentaram superar. Existe, em ambas as direções de pensa­mento, um esforço dramático para ressituar a reflexão. Esta não pode mais marcar a distância entre o pensamento e a consciência, o pen­samento e as coisas, o pensamento e o absoluto. A separação, emi­nentemente crítica, entre o pensamento e a realidade, tende a ser nos dois casos substituída por uma consubstanciação genética entre produção e produto, nos termos de uma dinâmica que procura resgatar o real no processo de sua formação, na qual a apresentação da realidade é concomitante à intuição e à reflexão, indissociavel­mente ligadas na apreensão de um movimento absoluto. A dualidade sujeit%bjeto é vista como restrita ao plano lógico; no nível da on­tologia, consciência e coisas participam da mesma essência. Assim a potenciação romântica da reflexão reinsere o pensamento no infini­to, e a intensificação da virtualidade intuitiva do entendimento per­mite, em Bergson, que o pensamento simpatize com a Totalidade. Em ambos os casos, também, a via para a expressão desses procedi­mentos, nos seus resultados, é simbólica: retomo à poíesis primitiva da linguagem num caso, inflexão da figurabilidade no outro. Os dois movimentos tendem para a anulação da distância entre ser e signi­ficar, e o motor do movimento expressivo é o ideal da coincidência completa, o que é o mesmo que dizer que a expressão se governa pelo inexprimível. A contradição presente nesse propósito figura a oscilação entre a razão e o pathos, diferença que traz continuamente à presença do pensamento a essencial inquietude do homem, da consciência que é o Tempo degradado em história. E não nos deve espantar que uma filosofia da duração, para a qual a única realidade substancial é o Tempo, relegue a história como forma secundária da consciência de si e do mundo. Pois quando o homem se volta para a sua história não adquire consciência mais intensa do vir-a-ser; a história é antes a fixação de blocos segmentados na continuidade da existência: nessa articulação se reconhecem as sociedades no decur­so do progresso do entendimento instrumental. A sucessão histórica

109. Bréhier, E., ob. cit., p. VIII.

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12. SER E SIGNIFICAR: A INTIMIDADE CRIAOORA

é a inteligência compreendendo-se a si mesma e, para tanto, desco­nhecendo o espírito enquanto virtual idade intuitiva. A inteligibilida­de histórica é essencialmente solidária da lógica da retrospecção. Quanto à história como vivência da duração vital e participação na continuidade progressiva do Todo, o seu valor de conhecimento é inerente à vivência concreta da temporalidade, pois o único sentido não retrospectivo da história é a imprevisibilidade, e a raiz do ho­mem como ser histórico está na sua comunhão com a duração es­sencial. Nesse plano, que é inacessível à inteligência, não há distin­ção entre ser e historicidade. Vemos então que a causa da recusa da história é a aceitação da historicidade como identificação entre cons­ciência e temporalidade. Devido à incapacidade congênita da inteli­gência para apreender a temporalidade essencial, todas as formas de psicologia positiva são insuficientes para apreender a presença real do Eu, e a história positiva é igualmente incapaz de apreender a his­toricidade do homem. Entenda-se que a mesma crítica atinge os pressupostos antropológicos das metafísicas da subjetividade. Exis­te, em Bergson, o mesmo desequilíbrio fundamental quanto ao co­nhecimento do homem que detectamos no romantismo de Schlegel, na medida em que este oscila entre o predomínio da Poesia, da His­tória e da Filosofia como eixos principais do conhecimento'lO. Por escapar à metafísica substancial da psique e à lógica retrospectiva de seu situar-se histórico, o Eu só pode ser apreendido no plano anterior à cisão pela qual ele objetiva a totalidade: ele só pode ser apreendido na e pela totalidade. O Eu toma-se um objeto da Ontologia quando esta supera a interpretação etimológica que lhe conferiu a modernidade: quando deixa de visar às coisas e passa a visar ao Tempo que as produz. Assim o símbolo arrancado da cotidianidade instrumental tem a força de trazer e manter a Presença, escapando da intencionalidade da cons­ciência empírica e traduzindo em obra a história absoluta do ser.

110. Cf. a respeito Ciancio, C., Friedrich Schlegel: Crisi della Filosofia e Rivelazione, ob. cit., pp. 116-122.

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CONCLUSÃO

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Numa passagem de L'Évolution Créatrice, Bergson, como que respondendo por antecipação àqueles que mais tarde o rotulariam de eminente representante do "espiritualismo" francês, critica a ten­dência idealista na sua forma geral, que ele nomeia como "doutrinas espiritualistas", argumentando que estas, embora corretas quanto ao que procuram, procedem erradamente quanto ao lugar em que pro­curam e, mais do que isso, onde pretendem que esteja aquilo que buscam encontrar. Com efeito, para afirmar a autonomia do espírito, tais doutrinas julgam necessário afastar a vida espiritual do contexto de solicitações materiais que de certa forma a pressionam. A explica­ção desse equívoco não deixa de ser curiosa, partindo de uma filoso­fia antiintelectualista como a de Bergson. Pois o que motiva tal pro­cedimento, no entender do filósofo, é que as doutrinas idealistas parecem desconhecer a função da inteligência na realidade efetiva em que se apresenta. A presença incontornável da inteligência sus­cita questões que deveriam ser enfrentadas e não somente contorna­das. Veja-se por exemplo a questão da liberdade: a consciência a afirma no seu agir espontâneo, mas a inteligência a nega ao afirmar a inexorável determinação do efeito pela causa; ou então tomemos a tese da independência do espírito em relação à matéria, que o idea­lismo afirma com razão; mas a isso se contrapõe ainda a inteligência, mostrando a associação entre vida consciente e atividade cerebral. Veja-se também a questão da singularidade do lugar que o homem ocupa na natureza: a inteligência nos demonstra, em contrapartida, que há uma gênese de todas as espécies por transformação gradual e que assim o homem deve ser integrado nesta história natural. Isso para não tocar em questões mais complexas, como a independência da alma e sua sobrevivência em relação ao corpo, por exemplo. Ao

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pretender dissolver a insuperável realidade dos fatos materiais num isolamento da realidade do espírito. o idealismo acaba por transfor­mar tal realidade num "efeito de miragem" (E.C.-268).

No entanto. o idealismo está certo ao afirmar assim a unidade e a autonomia da vida mental. O que ele desconhece é a gênese e o alcance dessas caracteristicas. Pois aquilo que para nós distingue o homem entre todas as espécies não é algo que lhe pertença de forma exclusiva. mas sim uma virtualidade que nele se realiza plenamente. O movimento da Vida enquanto impulso criador é a origem e a razão de ser de todas as formas semeadas ao longo da evolução. Este movimento é suscetível de duas representações: em relação a cada espécie. ele aparece como a realização de uma forma definitiva; em relação a si mesmo. assume a figura de um élan que atravessa todas as formas criadas na direção de um telos indeterminado. Esta é a razão pela qual é possível ver cada espécie como resultado de um projeto determinado e ao mesmo tempo como um vestígio da passa­gem do movimento criador. Do ponto de vista da inteligência. cada forma é o efeito determinado de uma causa; se superarmos a causa­lidade do entendimento. poderemos ver estas mesmas formas como realizações até certo ponto contingentes de algo que se lança. atra­vés delas. para além delas. e para o qual elas são obstáculos trans­postos. soluções encontradas nas sucessivas etapas de adaptação do movimento vital à materialidade que o concretiza na diversidade das formas de vida. O que o idealismo ignora é precisamente isto: cau­salidade. determinação. matéria são a contrapartida necessária de um movimento espiritual que cria formas. Se considerarmos a maté­ria como simples oposição ao espírito. nossa visão da realidade será abstrata. já que não poderemos explicar justamente a materialidade das formas. que entretanto é um dado inquestionável. A partir disso não é espantoso que Bergson possa afirmar que "uma filosofia da intuição será a negação da ciência. cedo ou tarde ela será desmentida pela ciência. se ela não se decide a ver a vida do corpo onde esta está realmente. no caminho que leva à vida do espírito" (E.C.-269). Signi­fica que o percurso do élan é criador e que o fisico e o vital são matéria de criação. ou aquilo de que se serve a atividade criadora para triunfar sobre a determinação. Mas assim não estariamos su­pondo que o espírito depende da matéria? Tal seria. sem dúvida. a interpretação idealista. O equívoco é pensar que o espírito se afirma evitando a materialidade. quando na verdade ele se afirma sobre a materialidade e através dela. A progressiva sofisticação do sistema

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nervoso. que observamos no decorrer da evolução. redunda na pos­sibilidade crescente de indeterminação das ações. Num certo senti­do pode-se dizer que é a complexidade do cérebro humano que per­mite ao homem o exercício da liberdade. Mas seria um erro grosseiro definir a liberdade Como sendo a amplitude maior do espectro de reações possíveis. A liberdade não significa a oscilação das determi­nações. mas a ação nascida de um impulso de natureza diferente da causalidade. A singularidade do homem entre as demais espécies provém do fato de que. se por um lado ele está em continuidade com as outras formas de vida surgidas ao longo da evolução. todas elas fruto do mesmo impulso originário. por outro lado o homem é o ser em que precisamente este impulso triunfou sobre os obstáculos que o determinavam - e assim ele se fez indeterminação. "( ... ) em um só ponto o obstáculo foi forçado. o impulso passou livremente. É essa liberdade que a força humana registra. Por toda parte a nature­za se viu diante de um impasse; apenas com o homem ela prosse­guiu seu caminho" (E.C.-266). É este o "caminho que leva à vida do espírito". No homem a espiritualidade do élan se revela e dá a co­nhecer o seu estatuto criador. pois a liberdade é o requisito da cria­ção. A realidade é fruto de dois movimentos: um. ascendente na di­reção da liberdade. cujo termo ideal seria a atividade criadora exer­cendo-se de forma absoluta; outro. descendente. na direção da deter­minação total. cujo termo. também ideal. seria a matéria bruta isenta de qualquer atividade vital. Tais termos são. evidentemente. apenas a exponenciação lógica de ambos os movimentos. pois seria ontolo­gicamente contraditório supor uma atividade criadora sem produtos criados. portanto. do ponto de vista bergsoniano. sem matéria de criação. do mesmo modo que seria igualmente inconcebível matéria sem transformação.

Assim vemos como. em Bergson. o estrato biológico do seu pensamento confere consistência real à metafísica da temporalida­de. enquanto o tempo. visado como substrato da realidade. propicia o fundamento do dado biológico e confere significado ontológico à teoria da evolução. São aspectos inseparáveis. e esta é a razão pela qual Bergson não pode alinhar-se entre os "espiritualistas" que fa­zem do isolamento do espírito a condição de sua autonomia. Esta autonomia. na verdade. é a marca original do élan criador. na medi­da em que liberdade e criação são indissociáveis. O homem é livre significa: a liberdade estd no homem. enquanto o momento da evo­lução no qual a vida encontrou "passagem livre" para o impulso cria-

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dor. O que nos mostra que a singularidade humana é a outra face da profunda vinculação que o homem mantém com tudo o que é vivo e mesmo com tudo que existe. O homem, como todas as formas surgidas no decorrer da evolução, é veículo do impulso criador. "Tudo se passa como se um ser indeciso e indistinto que poderíamos chamar, como quiséssemos, de homem ou de super-homem, tivesse procurado se realizar, e s6 tivesse conseguido isto abandonando pelo caminho uma parte de si mesmo" (E.C.-266). Tudo se passa como se a finali­dade da Vida fosse a criação. Embora não se possa falar em causa inicial e causa final no sentido categorial, a "finalidade" do impulso criador está desde sempre presente em todas as suas manifestações, inclusive na imprevisibilidade e contingência que caracterizam as etapas da evolução. O homem traz em si, portanto, algo que o liga à totalidade dos existentes e à origem de todos eles. Algo que ao mes­mo tempo o vincula à materialidade, às determinações que herda das etapas anteriores da história da vida e com as quais convive, que o atrai para a materialidade e que também o impulsiona na direção do espírito.

"O élan de vida de que falamos consiste, em suma, em uma exi­gência de criação. Não pode criar absolutamente porque encontra diante de si a matéria, isto é, o movimento inverso do seu. Mas ele se aproveita desta matéria, que é a própria necessidade, e tende a nela introduzir a maior soma possível de indeterminação e de liber­dade" (E.C.-258). No homem, no estágio atual da evolução, encon­tra-se a maior indeterminação possível na matéria. Isso se deve a três fatores: 1) a complexidade do cérebro que permite a construção de um número ilimitado de mecanismos, portanto de possibilidades de ação, ensejando assim uma variabilidade que supera em larga escala a uniformidade dos hábitos nas demais espécies: 2) a linguagem, ou mais precisamente a imaterialidade dos significados, que lhe permi­te abarcar de forma indefinida o mundo que o rodeia, e mesmo ir além dele: 3) a vida social, que racionaliza e conjuga o esforço pro­dutor da práxis. Mas essas são condições de que se serve o impulso criador, e o significado da liberdade humana não se esgota nesses requisitos, pois os mesmos se encontram, de alguma maneira, pre­sentes em muitas outras espécies. Tais condições, entretanto, propi­ciaram o "salto" pelo qual se configura a diferença de natureza que se consubstancia na possibilidade de criação. Esta possibilidade re­pousa na parte mais obscura de nossa consciência, que é a intuição. O exercício pleno da intuição, a vivência imediata de si e das coisas

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o COMENTÃRIO DA CRIAçAO

é parte daquilo que a Consciência teve de abandonar no caminho que leva à consciência humana. Para que pudesse triunfar sobre a matéria foi necessário amoldar-se primeiramente a ela, às suas de­terminações: mas uma vez feito isso, não foi mais possível recuperar a plenitude intuitiva do contato com o mundo, e a intuição ficou reduzida a uma virtualidade da consciência, tornada principalmente inteligência. É entretanto no caráter vago e descontínuo da intuição que o homem guarda aquilo que principalmente o vincula às ori­gens. Com efeito, a inteligência é produto avançado da evolução, aquilo que permitiu a consolidação da espécie humana no que ca­racteriza a sua relação com as coisas, a variabilidade instrumental. Do ponto de vista da organização natural, a intuição é uma virtuali­dade vazia, análoga a um órgão sem função. Mas, ativada pela refle­xão, ela se mostra como a única possibilidade de recuperação do estatuto próprio do élan, a criatividade. Pois por mais flexível e variá­vel que seja a inteligência, ela nos encerra nos limites de nossa na­turalidade: apenas a intuição nos encaminha para a transcendência. Como já pudemos observar, a reflexão instala no homem a contradi­ção, que aqui pode ser vista sob um outro aspecto: aquilo que em nós se apresenta como "uma luz vacilante e fraca" é a única possibi­lidade de abandonarmos "a obscuridade da noite em que nos man­tém a inteligência" (E.C.-268).

A ênfase na relação entre intuição e criação nos permite apreciar um aspecto pelo qual a filosofia de Bergson apresenta-se como um rompimento profundo com a tradição grega. Para Aristóteles, o co­nhecimento do ente em seu ser e em sua gênese significa o conhe­cimento das diversas espécies de causas responsáveis pela existência das coisas. Dizer que algo veio a existir é o mesmo que dizer que determinada causa engendrou determinado efeito. O domínio gnosiológico da rede causal nos encaminha para os mais elevados níveis de conhecimento. O estabelecimento da gênese inclui tam­bém o conhecimento da relação de dependência de um ente em relação ao outro, e este é um aspecto importante da relação causal. Quando a filosofia medieval apropriou-se deste esquema, deparou com o problema, inexistente para os gregos, da explicação da relação causal em termos de criação do mundo por Deus. Foi necessário então separar a causalidade no sentido de doação de existência e a causalidade no sentido de dependência na escala do ser. O primeiro sentido, aquele no qual a causalidade se apresenta como criação, não é suscetível de uma integral explicação racional, posto que a

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criação é ato derivado da vontade absolutamente livre de Deus. Já no segundo sentido, a razão pode estabelecer por seus próprios meios uma relação lógica e ontológica através da qual se pode compreen­der a escala dos entes como sucessão de causas e feitos, chegando assim à compreensão da necessidade da Primeira Causa, no que se refere à relação de dependência. Sendo a primeira causa necessaria­mente incausada, podia-se introduzir aqui a noção de causa absolu­tamente livre e criadora, muito embora isso significasse um compro­misso entre racionalidade e revelação bíblica. Este compromisso mantém o aspecto não-racional da noção de criação, ou seja, não há uma perfeita identificação entre causalidade e criação. Na filosofia de Descartes, a causalidade é assimilada à criação, no caso de Deus, posto que a criação é como que reduzida à relação primeira entre causa e feito. A tal procedimento Gouhier se refere como racionali­zação da criação. "Ora, esta racionalização tem evidentemente como condição a eliminação do que há de irracional na noção de criação, a saber, o fato de conferir o ser àquilo que não existia. Esta elimina­ção é obtida quando a criação é confundida com a causalidade e depende do princípio: nada há no efeito que já não esteja contido na causal." É a partir dessa perspectiva que Descartes pode acreditar que sua demonstração da existência de Deus é perfeitamente racio­nal, e pode ser aceita mesmo pelos infiéis. Este compromisso entre a concepção grega de causalidade e o criacionismo judeu-cristão re­presenta um esforço para colocar no horizonte da racionalidade a noção de criação ex nihilo. Posto que a relação causal mais primitiva a que se pode remontar coincide com a criação ex nihilo, exclusiva da divindade, a conseqüência natural é tomar este tipo de causalida­de como protótipo de toda relação causal, ou até mesmo como a única possível. Nesse sentido Malebranche é profundamente conse­qüente, não apenas com o que está implícito no cartesianismo, como também com toda a tradição que buscou, no limite, a identificação entre criação e causalidade.

A filosofia de Bergson representa, desde os Données Immédiates de la Conscience, um esforço no sentido de separar causalidade e criação. A noção de causalidade psicológica, que no primeiro livro se opõe à causalidade física, cumpre já essa função. Mas a noção de criação adquirirá estatuto teórico pleno apenas em Évolution Créa-

1. Gouhier, H., Bergson dans l'Histoire de la pensée Occidentale, Vrin, Paris, 1989, p. 55.

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trice. Não se pode dizer, no entanto, que, ao separar as duas noções, Bergson opte pela idéia judeu-cristã de criação ex nihilo. Uma das partes mais expressivas da filosofia bergsoniana é, com efeito, a crí­tica da idéia de Nada, desenvolvida no Ensaio Le Possible et le Réel e no último capítulo de Évolution Créatrice. A singularidade da posi­ção filosófica bergsoniana deriva do fato de recusar ao mesmo tem­po a noção de criação ex nihilo, uma vez que a idéia do Nada é uma ilusão, e a racionalização cartesiana da criação, identificada à causa­lidade. Assim como denuncia o caráter ilusório da idéia de Nada, Bergson critica também o princípio cartesiano segundo o qual nada há no efeito que já não estivesse contido na causa. A razão disso é que a filosofia bergsoniana perfaz um itinerário diferente para atin­gir a idéia de criação. Essa idéia aparece no bergsonismo não como algo posto a priori e que deve ser filosoficamente justificado, mas sim como o resultado da crítica da noção de tempo fisico, tanto em si mesmo como aplicado no evolucionismo de Spencer. Foi a cons­tatação de que o tempo físico é algo de que a duração está ausente que motivou a crítica da Psicologia contida nos Données Immédiates. Foi esse percurso crítico da ciência que levou à recusa do caráter universal da noção de causalidade, estreitamente solidária da noção fisicalista de tempo. Essa crítica pode ser tida como a origem episte­mológica da ontologia bergsoniana apresentada em Évolution Créa­trice. A Teoria da Vida veio ampliar os horizontes da noção de cau­salidade psicológica, sem mudar a sua natureza. O resultado dessa reflexão mais abrangente é a concepção de interioridade, no largo alcance que constatamos que ela possui no exame efetuado na ter­ceira parte deste trabalho.

A constatação de que a noção de criação está presente desde o primeiro momento permite-nos verificar quão profundamente estão unidos, na filosofia de Bergson, os aspectos crítico, metodológico e metafísico. A crítica da causalidade fisica nos Données Immédiates é principalmente a crítica da representação conceitual do tempo psi­cológico - e isto significa a crítica do método da Psicologia. Tal crí­tica extrai seu sentido e seu alcance da proposta, que no primeiro livro ainda se encontra no nível implícito, da intuição como única alternativa gnosiológica compatível com a recusa da universalidade do princípio de causalidade no seu enunciado cartesiano. Essa revi­ravolta epistemológica só atinge o seu pleno significado se a obser, vamos de alguma maneira sob a égide da metafísica da temporalida­de, que no entanto só será inteiramente enunciada em Évolution

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Créatrice. Ora, conceber o tempo como substrato da realidade, defi­nida portanto como duração, é o mesmo que instituir a noção de criação como horizonte de compreensão metafísica da realidade. É dessa forma que teoria do conhecimento e ontologia coincidem no movimento absoluto que faz da intuição O modo de identificação com a criação contínua que caracteriza o fazer-se da realidade em sua essência temporal. Poderíamos dizer que a coincidência entre teoria do conhecimento e ontologia figura a recusa do dualismo aristotélico e a afirmação, na nova fIlosofia, do caráter unicamente absoluto do ato. Pois o que distingue a intuição das formas tradicio­nais do conhecimento é que ela se põe como um ato (de conheci­mento) que busca identificar-se com o ato (de produção ontológica: criação); a recusa da modalização representativa enquanto interstício entre sujeito e objeto é que vai ocasionar as dificuldades que encon­tramos para estabelecer a relação entre intuição e expressão, ou seja, para fazer do discurso uma instância de apresentação da criação.

O que distingue a intuição da explicitação sistemática, numa doutrina fIlosófica, é o trabalho da expressão, necessário para corpo­rificar num discurso o núcleo vivo e em si inexprimível de uma fIlo­sofia. Se pudéssemos atingir o plano da intuição fIlosófica, veríamos provavelmente desvanecerem-se as diferenças que, no nível de siste­mas, nos parecem tão profundas e irreconciliáveis. Mas o fundo de intuição de onde emana o impulso doutrinal não é acessível nem mesmo ao fIlósofo, pois esta provável identidade do que é intuído não repousa na subjetividade - no gênio fIlosófico -, mas se fun­damenta na profundidade do "mesmo oceano" em que todas as fIlo­sofias lançam as suas "sondas", muito embora façam aflorar à super­fície "materiais muito diversos" (P.M.-225). Tal diversidade é doutri­nariamente trabalhada pelos filósofos, pelos discípulos e pelos comentadores das filosofias. Ora, se o próprio fIlósofo realiza a maior parte de seu trabalho de formulação discursiva nesse plano superfi­cial em que ele como que se explica a si mesmo e aos outros acerca de algo que jamais logrará transmitir inteiramente, a conclusão é que o discurso filosófico é uma explicitação inacabável. A fIlosofia é um diálogo infinito entre o discurso e a intuição, no qual aquela tenta traduzir nas formas correntes da cultura algo que com elas é incomensurável. Trata-se de algo "simples, infinitamente simples, tão extraordinariamente simples que o fIlósofo jamais logrará exprimi­-lo" (P.M.-1l9). A heterogeneidade entre complexidade simbólica e intuição provém da diferença radical que existe entre a determina-

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çãO da articulação discursiva e a liberdade criadora da intuição. É interessante notar que a liberdade criadora, no caso, associa-se à identidade intuitiva que subjaz aos sistemas e a diversidade da ex­pressão situa-se no plano das determinações da linguagem. Isto quer dizer que a criação não significa fundamentalmente diversidade, embora seja livre; é a variabilidade da expressão que impede a liber­dade criadora de se manifestar, pois esta variabilidade está irremedia­velmente presa ao determinismo intelectual da linguagem. A identi­dade intuitiva situa-se no plano do único objeto da fIlosofia: o Tem­po. São as características deste objeto que fazem com que na intui­ção se compatibilizem liberdade e identidade, unicidade e criação, pois a imprevisibilidade e a fluência indeterminável do Tempo fazem do absoluto um processo absoluto: duração.

Por isso a intuição fIlosófica é figura privilegiada da intuição como processo cognitivo. Mas ao mesmo tempo nos deixa ver com nitidez a inelutabilidade da falência da expressão. Sendo a inteligência vol­tada para a materialidade, a linguagem, seu produto, é processo de materialização. É assim que a expressão fixa a intuição na matéria simbólica que são as palavras. A imaterialidade dos significados não escapa ao alcance da materialidade dos signos. Não é outro O pro­cesso que ocorre na obra de arte. "A idéia geradora de um poema se desenvolve em milhares de imaginações, as quais se materializam em frases que se escandem em palavras. E, quanto mais vamos des­cendo da idéia imóvel, envolta em si mesma, para as palavras que a explicitam, tanto maior o âmbito que deixamos à contingência e à escolha: outras metáforas, expressas em outras palavras, poderiam surgir, imagem que apela para outra imagem, palavra que solicita outra palavra. Todas essas palavras correm agora umas atrás das outras, buscando em vão, por si mesmas, traduzir a simplicidade da idéia geradora" (E.C.-319-20). A imobilidade da idéia geradora não tem aqui um significado espacial; representa o ponto nuclear que ao mesmo tempo é o impulso da expressão e a sua impossibilidade dada desde sempre, devido à incomensurabilidade entre intuição e expli­citação discursiva. O poema é de alguma forma a análise da idéia que o gerou, assim como o discurso fIlosófico é a análise da intuição fundamental. A diferença que existe entre as duas formas de expres­são é que a análise filósofica é ordinariamente explicitação conceitual, enquanto o poema desenvolve a intuição como figuração simbólica. Ao transformar a mobilidade significativa em transfiguração imagé­tica, o poema amplia o alcance da figuração simbólica, fazendo-a

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escapar da uniformidade do significado. Para que a filosofia faça o mesmo, aumentando sua possibilidade expressiva, cumpre que abano done o gênero conceitual, realização plena da uniformidade do sigo nificado. Em suma, a explicitação poética reflete a criação; nela, a expressão é a busca da anulação da heterogeneidade existente entre intuição e linguagem. O poema não procura analisar a intuição, mas comentá-la.

Seja-nos permitido aqui recorrer à diferença que faz Benjamin entre crítica e comentário para introduzir nossa hipótese de distin­ção entre análise e comentário no contexto bergsoniano. "Numa obra de arte, a crítica se interessa pelo que ela contém de verdade; o co­mentário se atém sobretudo à matéria'." A realidade material da obra não se opõe à sua significação, antes os dois aspectos mantêm entre si relações que tendem a se tomar "menos aparentes e mais inter­nas" à medida que transcorre a vida histórica da obra. A "lei funda­mental" que preside a esta vinculação induz também à dissociação entre matéria e verdade, ocasionando a relevância maior da primeira e o progressivo ocultamento da segunda. Assim, é a materialidade que se impõe antes à abordagem crítica, mas ela deve ser tomada como uma escrita sobreposta a outra escrita, e a leitura da primeira só se faz com o objetivo de decifrar a segunda. Essa passagem pelo texto que encobre o texto é chamada por Benjamin de comentário'. Trata-se, portanto, de um procedimento preliminar: após ele virá a crítica, o "julgamento". É como se a sedimentação inerente à vida histórica da obra constituísse uma camada que o comentário atra­vessa, detendo-se no limiar da vida eterna da obra, aquela que a crítica deve abordar e julgar. A função preparatória do comentário, embora importante para situar a obra no plano das realidades con­cretas e no seu perfil filológico, é evidentemente vista por Benjamin como subsidiária, seu sentido provindo de sua vinculação à etapa crítica. A distinção benjaminiana objetiva exatamente separar o exa­me crítico da obra de Goethe do "interesse filológico" que até então teria prevalecido. Interessa-nos reter, desta página complexa, a idéia

2. Benjamim, W., Les "Alfinités Électives" de Goethe, in Oeuvres Choisis, tradução francesa de Maurice de Gandillac, edição René Julliard, Paris, 1959, p. 75.

3. "Imaginemos um paleógrafo em presença de um pergaminho cujo texto primiti­vo, parcialmente apagado, se aclara através do escrito mais recente e mais legível que os copistas a ele superpuseram; seria necessário que o paleógrafo começasse seu tra­balho pela leitura do segundo texto; da mesma maneira o crítico deve começar pelO comentário" (Benjamim, W., ob. cit., p. 76).

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de que a crítica se distingue do comentário porque emite um julga­mento, avalia os aspectos da obra que "decidem da sua imortalida­de", a saber, o modo como se estrutura a relação entre conteúdo e verdade.

Ora, a verdade estaria do lado da significação e não da matéria. O que a obra tem de realidade material só perdura porque o conteú­do de verdade nela se incorporou profundamente, e isto ocorre mesmo quando é a materialidade que se dá primeiro ao conheci­mento. O crítico sabe que a significação é feita de materialidade, mas sabe também avaliar o meio em função do fim. De resto, a anterio­ridade do "objeto" do comentário tem uma função definida no plano da duração da obra: "( ... ) a história das obras prepara o caminho para a crítica"4.

Cr{tico é o exame que disceme, separa, desdobra e configura por limitação um territorium. São esses os aspectos do procedimento que permite avaliar, ou seja, detectar o valor de imortalidade presen­te na obra. A crítica, na medida em que separa e limita, repousa sempre de alguma maneira naquilo que opta por desconhecer. Há um jogo entre o conhecimento e o desconhecimento que é inerente ao exercício da crítica e que lhe permite inclusive ser consciente da multiplicidade funcional da linguagem e da sua ambigüidade. Nesse sentido - e aqui já buscamos nos colocar no contexto bergsoniano - o intelecto é uma faculdade espontaneamente "crítica", pois con­solida o saber que lhe é próprio sempre em contraposição àquilo que exclui do universo do saber. A isso se opõe completamente o sentido bergsoniano de intuição, logo o sentido do saber filosófico. Pois a intuição não articula (separa e limita, definindo partes), mas compre-

4. Benjamim, W., ob. cit., p. 76. Num outro texto, Essais sur Bertolt Brecht, Maspero, Paris, 1969, tradução de Paul Laveau, Benjamim diferencia o comentário de um "compte rendu", mencionando que o comentário aborda o texto como se fora "clás­sico", isto é, um texto carregado de idéias, com dificuldades acumuladas e já bastante posto à prova. O comentário não é um ajuste de contas com o significado estético do texto, mas busca uma leitura precisa e até mesmo levando tal precisão ao nível de um preconceito: o de que o texto veicula verdade, ainda que em segredo. "Onde Sua preciSão (do comentário) poderia parecer quase indecente, o segredo pode futura­mente reencontrar suas prerrogativas." (p. 58). Lembramos também que um dos sig­nificados latinos da palavra comentário é ata, registro do evento no momento em que ele se dá. Esta simultaneidade entre evento e o seu registro, a assunção do significado primeiro, confere ao comentário o caráter arcaico, numa acepção provavelmente so­lidária daquela mencionada por Benjamim nos Essais Sur Bertolt Brecht, p. 57.

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ende o real no vir-a-ser como expansão interna. Pode-se dizer que o conceito é um instrumento crítico de apreensão da realidade, uma vez que engendra a significação através da articulação do real visto como produto. Mas se a realidade é criação, o produto da criaçãO tomado em si mesmo apresenta apenas o aspecto finalmente fixado de um processo - e o conhecimento inclui o processo assim como a contemplação da obra de arte inclui o dinamismo da emoção que a criou. Desse modo, a materialidade entendida como história da obra, movimento de materialização que enquanto corporificação di­nâmica do conteúdo se opõe à significação fixada (o eterno como finalidade da transição), é que seria, do ponto de vista bergsoniano, captado pela intuição. E, coerentemente com o que vimos, só pode­ria expressar-se no comentário, nunca na crítica e na análise, pois não se trataria de avaliar o produto como origem de significação, mas acompanhar o movimento interno pelo qual e no qual ele veio a ser. Por contraposição, a crítica seria a visão analítica e a análise a visão crítica. Se nos é permitido transpor desta maneira a sugestão benjaminiana para o contexto de uma possível teoria bergsoniana da interpretação, vemos que o comentário, enquanto leitura repensante do processo criador é, apesar da passividade heurística que parece envolver, a única forma de manter, tanto quanto possível, fidelidade à intuição que a um tempo gera e impede a expressão. Foi o que pretendemos dizer ao assinalar que a explicitação poética, diferente­mente da análise conceitual, comenta a intuição.

É bem verdade que tal comentário é um descenso, e o símbolo vai se distanciando do simbolizado na trajetória processiva que consti­tui a elaboração metafórica. Mas, nos vários graus descendentes da processão, a linguagem metafórica guarda uma relação complexa com o que a gerou, um contato feito de participação e repulsa, de forma semelhante à matéria que, no universo plotiniano, mantém com o Uno de que é a derradeira emanação uma relação de participação que já é quase a oposição do nada ao ser. Assim, enquanto a postura analítica situa-se diante do real para articulá-lo a partir de uma visão definitiva (produto), o comentário representa a degradação da intui­ção em expressão, processo complexo de simbolização infinita, de aproximações consecutivas que nunca anulam a qualidade da dis­tância, mas nunca há um voltar-se para o enfrentarnento de um outro, nunca o núcleo intuitivo será objeto de um ato cognitivo que o in­corpore simbolicamente na sua totalidade ou no conjunto indefini­do de suas virtualidades. É dessa forma que a expressão que se dá

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como um comentário - reelaboração metafórica que se esforça por glosar o "ponto" nuclear da intuição - procura escapar à heteroge­neidade existente entre linguagem e intuição. Desnecessário reafir­mar que isso nunca é conseguido de forma completa. Mas a perma­nência da linguagem no plano metafórico, em que a virtualidade intuitiva é tomada como direções de significação, além de represen­tar um esforço para redizer o que nunca foi dito, busca também evitar que se consuma a dissociação entre conteúdo e verdade, entre ser e significar.

Da posição da linguagem como meio expressivo, tal como vimos até aqui, decorre uma conseqüência importante para a questão da relação entre linguagem e intuição, que se desdobra no problema da vinculação entre linguagem e ontologia, ou, de forma mais ampla, no problema da fundação ontológica da expressão. Temos de pensá­-lo, na perspectiva bergsoniana, a partir de duas constatações: 1) a linguagem enraiza-se na subjetividade; 2) além disso, é produto de uma faculdade instrumental, o intelecto, que tem como funçãO ope­rar uma restrição na presença do real à consciência. A conclusão que primeiramente se impõe a partir daí é que a realidade, no sentido ontológico da Presença, não se manifesta na linguagem. Como já vimos, esta não pode ser tomada como adequado veículo do saber filosófico. Já que não existe, portanto, um pacto original entre a lin­guagem e a essência do real, a significação encarnada na palavra não é mediação entre a consciência e o Fundamento, de si ou das coisas. A linguagem naturalmente reenvia a arquétipos intelectuais, não à imagem da origem. Mas a contradição que a reflexão de inteligência instala na consciência instrumental pode ser prolongada na consti­tuição da linguagem imagética que, do ponto de vista intelectual, é uma contralinguagem, pois, em vez de descrever e prescrever, disse­mina o significado na multiplicidade de metáforas confluentes. E é exatamente o ponto imaginário da confluência, enquanto situado aquém do enraizamento subjetivo da linguagem e da restrição do significado conceitual, que nos permite pensar o correlato ontológi­co da subjetividade intuitiva, aporética e desnaturalizada e, assim, a fundação ontológica da expressão. As metáforas, no aspecto constru­tivo, confluem para o ponto nuclear da intuição; no aspecto descons­trutivo, procedem dele. Pois a expressão só se atualiza afastando-se da origem intuitiva e só se realiza ao dela se aproximar. A metáfora, enquanto elaboração lingüística, rodeia à distância a intuição; en­quanto intençâo significativa, visa-a imediatamente. Há aqui um jogo

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CONCLUSÃO

de mediação e imediação profundamente estranho à unilinearidade do entendimento. Cada metáfora, na sua insuficiência explicitativa, é também sempre e em cada caso a significação mais direta da intui­ção no registro das imagens. Como vimos (primeira e terceira partes deste trabalho). não há imagem melhor do que outra, mas apenas imagens diferentes, e é a multiplicidade de diferenças que tende para a desmultiplicação dos significados: a aproximação infinita do ponto único e simples. Esta aproximação feita de procedência e retorno configura, na simultaneidade das duas trajetórias que perfazem um único discurso, a correlação problemática entre intuição e expres­são. Na intuição a realidade é duração presente; na expressão é du­ração representada na disseminação significativa das imagens. Por­tanto, a linguagem metafórica reporta-se, como contralinguagem, ao que a funda como expressão: o correlato ontológico presente na in­tuição. Somente desta forma o comentário da origem insinua-se nos interstícios dos símbolos da linguagem, quando cada imagem vale também pelo que ela não é, pela ausência que é virtual solicitação de outra imagem.

É esse um modo de superar de alguma maneira o enraizamento subjetivo da linguagem - sua produtividade intelectual - e vinculá­-la à produtividade criadora do élan, o que significa tentar fazer da expressão sempre um ato de registro cosmogõnico, que nos dê pelas palavras, mas apesar delas, algo que elas não podem nomear. E o que funda esta possibilidade, por mais remota e longínqua que seja, é que a intuição é experiência. Trata-se de uma experiência integral da origem e do sentido temporal da totalidade. Este é o significado do empirismo radical que Bergson acredita caracterizar a sua filoso­fia. A experiência da percepção e da associação lógica dos conteúdos intelectuais é simbólica e inteiramente limitada pela cristalização dos significados. A crítica genética e o método indicam-nos a possibili­dade de uma experiência originária, aquela espontaneamente figura­da na atitude mística e na atividade do artista Se o conhecimento é coincidência com a origem criadora, se tudo que existe é, em última instância, criado mais do que causado, a indissociabilidade entre Teoria do Conhecimento e Teoria da Vida solicita que a superação do homem natural, própria da atitude filosófica, inclua essa profun­da inflexão da linguagem natural, q\le situa o discurso filosófico ao lado da palavra poética, o verbo que acede à criação. Mas essa pro­ximidade é, na filosofia bergsoniana, um projeto e não uma retoma­da de algo que já ocorreu. Muito embora, como vimos na Introdu-

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o COMENTÁRIO DA CRIAçAO

ção, a crítica da linguagem filosófica vise especialmente a Platão e à tradição que se lhe seguiu, não podemos supor que a filosofia tenha alguma vez participado do logos inspirado da Poesia e do Mito. Por esta razão não se aplicam à concepção bergsoniana da linguagem filosófica as palavras de Dufrenne sobre a "filosofia nascente"'. Em contrapartida, o reencontro entre as duas linguagens, à maneira de projeto e mesmo de método, está explicitado pelo mesmo Dufrenne em termos que julgamos coerentes com a concepção bergsoniana, quanto ao caráter originário da palavra poética e da expressão filosó­fica: "Dir-nOS-ão aqui que a filosofia, reencontrando a linguagem das cosmogonias, se abandona à poesia. Mas talvez a poesia exprima uma experiência autêntica e significante. E talvez a metafísica não tenha outro recurso senão seguir tais inspirações, as únicas intuiçôes de que seus conceitos podem nutrir-se, os únicos recursos de um pensamento pré-crítico. Tais intuições vão ter com a filosofia nas origens da experiência humana, no surgimento de toda reflexão"'.

É para fazer com que a palavra traga em si ainda um pouco da origem e da originalidade que caracterizam a criação que o discurso filosófico deve se dar como comentário e não como análise. O co­mentário é a palavra que procura se fazer presente no ato da criação. Não rearticula e explica aquilo que já se revelou, mas busca compre­ender a partir da revelação: da onticidade que a experiência integral da intuição proporciona. Assim como o discurso poético se elabora no interior do sentido inesgotável da intuição criadora, assim tam­bém o discurso filosófico deve aceder à intuição, carregar-se do las­tro ontológico da Consciência criadora e respeitar o inexprimível como critério de expressão.

O paradoxo que consiste em ver no inexprimível a força geradora da expressão situa no horizonte da filosofia a relação entre lingua­gem e criação, que incide de maneira intensa no significado da fini­tude tal como este aparece na filosofia de Bergson. A intencionalida_ de pragmática da consciência, redução da Presença à representação

5. "Estas palavras são ao menos originárias; e a repetição é ao mesmo tempo um remontar ao fundamento. Hoje o filósofo reanima e explora a linguagem que foi certa vez a da ftIosofia nascente, de uma filosofia que ainda não havia especializado e fixado sua linguagem; e esta estava ainda muito próxima da poesia que nomeava os deuses e as potências, e que veiculava os mitos" (Duffrenne, M., O Poético, tradução brasileira de Luiz A Nunes e ReasyMa K. de Souza, Globo, Porto Alegre, 1969, pp. 47-48).

6. Duffrenne, M., ob. cit., p. 192.

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CONCWsAO

é, certamente, a marca mais cabal da finitude. Mas, exatamente por aparecer no âmbito dessa intencionalidade, ela assume um teor di­ferente da inelutabilidade metafisica que a caracteriza nas analíticas da finitude. Disto resulta o otimismo ambivalente que ressalta da concepção bergsoniana das relações entre condição humana e refle­xão filosófica. Pois se de um lado a filosofia representa a superação da naturalidade da condição humana, de outro lado esta superação só ocorre na situação de intuição, que se caracteriza pela aporia da reflexão. Se a filosofia, para não reduzir-se ao silêncio, deve necessa­riamente incluir a expressão da intuição em discurso, a linguagem da filosofia deve inscrever-se no registro da criação. Ora, a linguagem é, naturalmente, articulação discursiva da finitude, produto (do inte­lecto) apto a constituir outros produtos (intelectuais). O discurso fi­losófico sugere o limite da finitude, apontando para além dela, quan­do, ao inscrever-se de alguma forma no ritmo da criação, dá origem à obra e não ao produto. A obra se opõe ao produto enquanto violen­ta a ambiência natural que constitui a obviedade do mundo da inte­ligência. Por isso a obra de arte, enquanto instauração da absoluta novidade e recusa da ambiência natural, é o efetivo paradigma do discurso filosófico, pois a novidade traz o sinal da origem'. A lingua­gem da obra e em obra é ao mesmo tempo marca de finitude, posto que ainda simbólica, e horizonte de infinitude, posto que abertura metafórica do significado: criação de sentido. O discurso que se abre para a criação de sentido acolhe o sentido da criação, pois atinge a raiz da verdade, a identificação entre ser e criar. A partir daí a filoso­fia só pode ser o comentário da criação.

7. "É neste sentido que a novidade da obra de arte pode ser chamada de originariedade. O discurso estético que deseja levar a sério a novidade da obra, a sua indedutibilidade do mundo tal como ele é, e que se mantenha até o fim fiel a este assunto não pode deixar de chegar, ao cabo, a descobrir que a esteticidade, entendida como aquilo pelo qual a arte é arte, se reduz totalmente à originariedade. Em outras palavras, e mais radicalmente: a obra de arte é verdadeiramente obra de arte, isto é, é bela e esteticamente válida, apenas na medida em que é uma origem, abertura de um mundo. Não existe outra noção de beleza a não ser aquela que resolve a beleza na força originante e fundante da obra" (Vattimo, G., Poesia e Ontologia, Mursia, Milano, 1967, p. 83).

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