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1 Levando os Caiçaras a Sério: O Caso da Invisibilidade das Comunidades Extrativistas do Litoral Paranaense Autoria: Marcia Regina Ferreira, Raquel Rejane Bonato Negrelle, Rafael Augusto Ferreira Zanatta O presente artigo trata da percepção dos atores governamentais na esfera Municipal, Estadual e Federal em relação às comunidades rurais com atividades extrativistas na floresta Atlântica no Paraná, denominadas como caiçaras, a partir da perspectiva socioambiental de desenvolvimento sustentável do Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Para a realização do presente artigo, utilizou-se da metodologia do estudo de caso e os procedimentos metodológicos envolveram pesquisa documental e entrevistas estruturadas com os atores governamentais do Paraná durante o ano 2009. As análises foram consubstanciadas nas abordagens sobre nova ecologia e pelo meio de vida rural sustentável em relação às instituições. Como resultado, identificou-se que os atores, nos diversos âmbitos, estão distantes e desinformados sobre a realidade dessas famílias para a formulação de políticas públicas, prevalecendo a invisibilidade e a manutenção de um processo de exclusão por meio do Estado-regulador. A partir dos dados coletados, formulou-se uma classificação comportamental por parte do Poder Público em quatro classes: determinista indiferente, propositivo, favorável, desfavorável - variando de acordo com a esfera de atuação política dos atores governamentais no âmbito Estadual e Municipal. Tais atores envolvidos em pesquisa, extensão, fiscalização e desenvolvimento de programas de governo, apontam fragilidades e necessidades dos caiçaras paranaenses que vivem na Mata Atlântica, em relação ao seu modo de vida atual e futuro. A questão das políticas públicas voltadas para o litoral paranaense na análise dos próprios autores foi mais danosa que benéfica, quando ocorreram. O principal problema apontado está na falta de entendimento do Estado em relação à lógica do caiçara. A realidade do modo de vida e dos laços sociais que a permeiam, assim como as características específicas que os caiçaras possuem, precisa ser considerada na elaboração das políticas públicas. No entanto, os atores institucionais não conseguem desenvolver esse diálogo necessário. O artigo demonstra que, além da ineficiência (ou inexistência) das políticas públicas, constata-se, na realidade das comunidades tradicionais, a falta de integração, diálogo, associação e conscientização política dos caiçaras, o que agrava o quadro de invisibilidade sobre a realidade dessas famílias e falta de acesso para o desenvolvimento de suas capacidades, algo que precisa ser revertido urgentemente através de políticas públicas de longo prazo pautadas na educação, caso o Paraná deseje, de fato, promover justiça social e desenvolvimento sustentável.

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Levando os Caiçaras a Sério: O Caso da Invisibilidade das Comunidades Extrativistas do Litoral Paranaense

Autoria: Marcia Regina Ferreira, Raquel Rejane Bonato Negrelle, Rafael Augusto Ferreira Zanatta

O presente artigo trata da percepção dos atores governamentais na esfera Municipal, Estadual e Federal em relação às comunidades rurais com atividades extrativistas na floresta Atlântica no Paraná, denominadas como caiçaras, a partir da perspectiva socioambiental de desenvolvimento sustentável do Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Para a realização do presente artigo, utilizou-se da metodologia do estudo de caso e os procedimentos metodológicos envolveram pesquisa documental e entrevistas estruturadas com os atores governamentais do Paraná durante o ano 2009. As análises foram consubstanciadas nas abordagens sobre nova ecologia e pelo meio de vida rural sustentável em relação às instituições. Como resultado, identificou-se que os atores, nos diversos âmbitos, estão distantes e desinformados sobre a realidade dessas famílias para a formulação de políticas públicas, prevalecendo a invisibilidade e a manutenção de um processo de exclusão por meio do Estado-regulador. A partir dos dados coletados, formulou-se uma classificação comportamental por parte do Poder Público em quatro classes: determinista indiferente, propositivo, favorável, desfavorável - variando de acordo com a esfera de atuação política dos atores governamentais no âmbito Estadual e Municipal. Tais atores envolvidos em pesquisa, extensão, fiscalização e desenvolvimento de programas de governo, apontam fragilidades e necessidades dos caiçaras paranaenses que vivem na Mata Atlântica, em relação ao seu modo de vida atual e futuro. A questão das políticas públicas voltadas para o litoral paranaense na análise dos próprios autores foi mais danosa que benéfica, quando ocorreram. O principal problema apontado está na falta de entendimento do Estado em relação à lógica do caiçara. A realidade do modo de vida e dos laços sociais que a permeiam, assim como as características específicas que os caiçaras possuem, precisa ser considerada na elaboração das políticas públicas. No entanto, os atores institucionais não conseguem desenvolver esse diálogo necessário. O artigo demonstra que, além da ineficiência (ou inexistência) das políticas públicas, constata-se, na realidade das comunidades tradicionais, a falta de integração, diálogo, associação e conscientização política dos caiçaras, o que agrava o quadro de invisibilidade sobre a realidade dessas famílias e falta de acesso para o desenvolvimento de suas capacidades, algo que precisa ser revertido urgentemente através de políticas públicas de longo prazo pautadas na educação, caso o Paraná deseje, de fato, promover justiça social e desenvolvimento sustentável.

 

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1. INTRODUÇÃO

A questão da conservação tem tomado a agenda dos atores governamentais nos últimos anos, principalmente pela política mundial contemporânea de fomento à criação de unidades de conservação, no âmbito das diferentes categorias de manejo. O Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), instituído no Brasil pela Lei 9.985, de 18 de julho de 2000, estabelece critérios definidos e normas para a implantação e gestão das unidades de conservação. Os objetivos do SNUC, explicitados em seu art. 4°, praticamente coincidem com aqueles estabelecidos pela União Internacional para Conservação da Natureza (UICN). Neste viés, Santilli (2005) assevera que este sistema de proposta de conservação é pautado em uma perspectiva socioambiental, que privilegia a interface entre biodiversidade e sociobiodiversidade, permeada pelo multiculturalismo e pela plurietnicidade; diferente da orientação preservacionista, que não atenta para as exigências e necessidades humanas concretas, preocupando-se apenas com o valor de espécies e ecossistemas.

O conceito de bens socioambientais está presente e consolidado por todo o SNUC do Brasil, apoiando a tese do jurista José Afonso da Silva (1994) de que a defesa do meio ambiente não se reduz à proteção da fauna, flora e do meio físico, mas inclui também a proteção do próprio ser humano, através de suas atividades culturais e materiais. Ampliando o debate acerca das Unidades de Conservação, Vianna (2008) corrobora Santilli (2005) ao sustentar que a aplicação do SNUC poderá propiciar que as populações rurais tradicionais, que vivem em unidades de conservação, saiam da posição de invisíveis e tornem-se protagonistas. Isso, por meio da valorização da sociodiversidade e o fortalecimento da organização das populações tradicionais, conferindo-lhes visibilidade e inclusão social, gerando também exercício da cidadania e promoção da justiça social. Nesse estudo, entende-se que as unidades de conservação de uso sustentável como as APAs - Área de Proteção Ambiental – podem ter um papel importante na busca por um desenvolvimento socialmente justo e equitativo, o que ainda não ocorre no Paraná, em razão de diversos fatores que serão apontados adiante.

Arruda (1999) argumenta que não é só possível, mas é necessário, o caminho da inclusão das populações rurais no conceito de conservação e o investimento no reconhecimento de sua identidade. Tal inclusão se daria por meio de políticas que valorizem o seu saber e contribuam para a melhoria de suas condições de vida, bem como na garantia de sua participação na construção de uma política de conservação que tenha também como beneficiários as próprias comunidades rurais com atividades extrativistas.

Chau Ming (1997), ao estudar as florestas e sua conservação, reconhece que as comunidades tradicionais conservam, em seu próprio e específico processo de manejo, as mais diferentes espécies úteis. O uso de tecnologias agrícolas menos agressivas por essas comunidades - no caso dos caiçaras, apenas a enxada -, permitiu a conservação das florestas nativas. Algumas regiões de Mata Atlântica no Paraná, as porções mais bem conservadas desse ameaçado bioma, são exemplos dessa interação entre comunidades tradicionais/conservação do ambiente. O conhecimento e a valorização dessas tecnologias são fundamentais para que sejam estabelecidas propostas de políticas públicas visando o desenvolvimento sustentável dessas regiões e suas populações.

No entanto, um grande problema no campo da gestão do território brasileiro (como a floresta atlântica) decorre da crescente internacionalização dos circuitos econômicos, financeiros e tecnológicos do capital mundializado, os quais, de um modo geral, debilitam os centros nacionais de decisão, mais precisamente, dificultam o comando sobre os destinos de qualquer espaço brasileiro. Villa Verde (2004) argumenta que o território está sujeito ao

 

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aparato público e jurídico em que estão estabelecidas relações de domínio distintas. Como é sabido, a divisão política e administrativa do Estado Brasileiro está organizada nos níveis federal, estadual e municipal. Esses níveis, legitimados pela esfera pública, impõem-se como o primeiro recorte territorial. Esse recorte, conforme restará comprovado em nosso estudo, passa por cima das etnias, culturas e acabam por não reconhecer a condição do outro, daquilo que é distinto, genuíno. Junto a isso, soma-se à gestão do território, sua regulação, as quais são cada vez mais, segundo Santos (2000), dominadas pelas instâncias econômicas.

Quando se resgata a história política desse país, verifica-se que os governantes militares da década de setenta não levaram em consideração a grande perda da sociobiodiversidade brasileira provocada pelo interesse por um desenvolvimento econômico meramente industrial. Esse período fora marcado por incentivos fiscais mantidos para que grandes grupos ocupassem áreas nativas – a Mata Atlântica do Paraná é um exemplo – com plantação de pinus. Esses programas brasileiros de incentivos fiscais (Lei 5.106/1966) duraram por quase três décadas e alteraram o espaço vivido das famílias rurais que precisaram mudar sua forma de vidai. A conservação da natureza foi alterada por essa política de incentivo à formação de florestas de pinusii e eucaliptos, ocasionando uma mudança no nível local (território)iii.

Perante esse legado pautado na exploração do território, Villa Verde (2004) contra-argumenta que o território precisa ser visto com a possibilidade de ser o lugar de todos, sem excluir quem quer que seja. Nesse sentido, a responsabilidade pública deve prevalecer para que as desigualdades não sejam agravadas. E, por outro lado, cabe ao Estado o papel de gestor, planejador, regulamentador que defende os interesses da sociedade como um todo, e não de segmentos.

Ao contextualizar a importância do Estado e o papel do ator governamental acerca da conservação na perspectiva socioambiental, o objetivo do presente artigo firma-se em analisar, primeiro, as visões e percepções dos atores governamentais sobre as comunidades rurais extrativistas estabelecidas em unidades de conservação e, segundo, como as instituições governamentais enxergam as políticas públicas do Estado do Paraná. Conhecendo a visão destes atores, sobre a conservação e sobre as comunidades tradicionais caiçaras, visou-se contribuir para a ampliação do diagnóstico sobre o meio de vida sustentável para as famílias extrativistas no contexto do desenvolvimento rural. 2. METODOLOGIA

Este estudo de caso (YIN, 2001) do litoral paranaense teve como base o método da teoria substantiva ou grounded theory (STRAUS e COURBIN, 2008). A parti dele delineou-se estratégias para coleta de dados, com pesquisa documental e entrevistas semiestruturadas com distintos atores da esfera governamental relacionados às questões ambientais e agrárias (Quadro 1).

A coleta de dados pela análise documental deu-se por meio de pesquisa em projetos, decretos, leis e outras fontes secundarias de dados, ocorrendo em vários momentos. No primeiro, para identificar possíveis entrevistados e os projetos desenvolvidos no Estado do Paraná, depois para verificar os programas existentes. As entrevistas semiestruturadas foram aplicadas (outubro a novembro de 2009) a atores governamentais (n=19) das distintas esferas (municipal, estadual e federal), previamente identificados na pesquisa documental como representantes de instituições que idealizam, formulam e executam ações aplicadas no litoral do Paraná.

 

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Instituições

Municipal Estadual Federal

Departamento de Agricultura Secretaria da Agricultura e do

Abastecimento Estado do Paraná (SEAB).

DFDA-PR - Delegacia Federal do Paraná do Ministério do Desenvolvimento Agrário

Departamento de Meio Ambiente

Secretaria do Meio Ambiente e recursos hídricos (SEMA) Dep.

Sociobiodiversidade

MPA - Ministério da Pesca e Aquicultura - Superintendência

Federal no Paraná.

Secretaria do Bem Estar Social

Secretaria de Estado do Planejamento e coordenação geral

(SEPL) do Paraná. Paraná Biodiversidade

IBAMA Responsável da Unidade

Secretaria da Educação Instituto Ambiental Paraná (IAP)

– litoral/Regional ICMBIO- Instituto Chico Mendes da biodiversidade

Atores Estaduais com atuação no município.

EMATER - Instituto Paranaense de assistência técnica e extensão

rural. EMATER – Instituto

Paranaense de assistência técnica e extensão rural

IAP- Instituto Ambiental do Paraná/Departamento

socioambiental IAP- atua no Mun. de

Guaratuba-PR. BPflo – Batalhão da Policia

Ambiental -Força Verde

IAPAR – Instituto Agronômico do Paraná

EMBRAPA Floresta

QUADRO 1 - INSTITUIÇÕES E ATORES GOVERNAMENTAIS ENTREVISTADOS Fonte: FERREIRA (2010)

As entrevistas foram precedidas pela apresentação do pesquisador e proposta de trabalho. Os atores governamentais assinaram termo de consentimento livre e esclarecido, garantindo a proteção e sigilo das informações fornecidas, bem como a interrupção de sua participação a qualquer tempo da pesquisa. A entrevista seguiu roteiro semiestruturado, e também contou com comentários registrados por meio de gravação consentida.

Como resultados das transcrições das dezenove entrevistas, obtiveram-se oitenta e cinco laudas. Esse material foi submetido às análises de conteúdo (BARDIN, 1988) e substantiva (STRAUS e COURBIN, 2008), na qual os dados são analisados até a saturação para elucidar as categorias. O tratamento dos dados respeitou o processo de categorização com a identificação da visão dos atores governamentais em relação às atividades extrativistas, políticas públicas e comunidades que vivem na Mata Atlântica, a partir da agricultura de subsistência. Essas análises foram consubstanciadas nas abordagens de Scoones (1998) sobre nova ecologia e Bebbington (2005), pelo meio de vida rural sustentável em relação às instituições.

3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

Há mais de dez anos, Arruda (1999) apontou que as comunidades tradicionais, embora corporificassem um modo de vida tradicionalmente mais harmonioso com o ambiente, eram persistentemente desprezadas e afastadas de qualquer contribuição que poderiam oferecer à elaboração de políticas públicas regionais. Até hoje, de fato, pouca coisa mudou. As comunidades extrativistas ainda permanessem “invisíveis” para o Poder Público, em razão de seu fraco poder econômico e ausência de organização e representatividade política.

 

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Bebbington (2005), discutindo os processos de desenvolvimento rural sustentável, apontou que as instituições e estruturas sociais tanto fortalecem como fragilizam o ambiente destas famílias. Outros autores indicam que a situação de pobreza no meio rural está diretamente aliada à negação de direitos, capacidades e oportunidades (ADAMS, 2002; DRUMMOND, 2002; SCOONES, 1998 e 1999; BEBBINGTON, 1999, 2005). Neste âmbito, o Estado e sua infra-estrutura devem viabilizar, fomentar e reforçar mecanismos de sobrevivência digna in loco, através da possibilidade de alterar regras e relações dominantes estabelecidas para o controle e distribuição dos recursos (DRUMMOND, 1996; BEBBINGTON, 1999 e 2005; PINHEIRO, 2002). Além de se considerar o papel público e jurídico do Estado, é importante analisar as forças da economia de mercado capitalista com relações distintas de domínio público e privado em suas diversas escalas (SCOONES, 1999).

Long e Ploeg (1994) inseriram o conceito de agência e estrutura, com papel central no estudo da origem e manipulação de informações no entendimento do desenvolvimento rural, tendo como princípio o modo que as pessoas categorizam, codificam, processam e imputam significado às suas experiências. Assim, Guivant (1997) pondera sobre a gestão do território e a importância da heterogeneidade de conhecimentos nesses espaços, com a aceitação de que o conhecimento é relativo às situações de interface com os atores. Essa interface com os atores governamentais não é encontrada quando se analisa as comunidades caiçaras (BEGOSSI, 1999), embora se compreenda a importância delas para as análises microssociais a fim de abandonar noções causais simplificadoras do território.

Em relação ao território, especial cuidado deve ser dedicado às complexas áreas de Unidades de Conservação (UC), em razão da riqueza em sociodiversidade e biodiversidade, bem como pelos diversos conflitos ambientais e sociais relativos ao uso da terra (ADAMS, 2000a; SANTILLI, 2005). Com a criação das UCs, percebe-se uma valorização em relação à conservação da biodiversidade e um esquecimento sobre a riqueza cultural das pessoas locais (DUMORA, 2006). Embora Organizações Não Governamentais (ONGs) atuem nessas áreas interagindo com as populações rurais, o quadro de desigualdade não se altera devido à ênfase aos trabalhos de conservação (DIEGUES, 2009; ADAMS; 2000, 2000b, 2002).

Exemplo desta dinâmica intrincada é encontrado na Área de Proteção Ambiental de Guaratuba no Paraná, com 92% da área deste município estabelecida desde 1992 como APA. Uma região com rica biodiversidade, com número significativo de famílias e heterogeneidade agrícola, onde coexistem a agricultura tradicional e comercial, em meio a complexidades sociais agravadas pela pobreza das populações caiçaras (IAP, 2006). Na agricultura tradicional ocorre o cultivo de milho e mandioca para o consumo próprio, em áreas de um hectare, vindo o extrativismo complementar a renda da unidade doméstica, existindo diferenças entre os que dependem do extrativismo dos PFNMs para sobrevivência e aqueles que o utilizam para reforçar o ganho mensal familiar (SONDA, 2002; BALZON, 2006; NOGUEIRA et al, 2006, FERREIRA, 2010).

Dentre os estudos disponíveis sobre o extrativismo dos PFNMs na APA de Guaratuba, destacam-se os que enfatizam a cadeia produtiva (BALZON, 2006; NOGUEIRA et al, 2006), o enfoque etnobotânico (NEGRELLI e FORNAZZI, 2007, VALENTE, 2009) e ecológico de regeneração dos recursos utilizados (VALENTE, 2009). Porém, pouco, ou quase nada, foi estudado sobre o impacto sócio-cultural-econômico e sua real sustentabilidade em relação às famílias caiçaras. No entanto, esta informação não é nova. Adams (2000b), ao realizar um levantamento sobre os estudos acadêmicos, também identificou que os trabalhos publicados sobre conservação, poucos tratavam o tema relativo às comunidades caiçaras.

No litoral do Paraná, em especial na APA de Guaratuba, constata-se, ainda, que em relação à escala de interações das comunidades caiçaras em relação ao âmbito municipal e

 

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estadual, encontra-se uma verdadeira afronta aos princípios de participação e informação, que são o arcabouço valorativo e jurídico que sustentam as formas de participação da sociedade nos processos de tomada de decisão coletiva (FERREIRA, 2010). Ademais, o próprio Poder Público, em suas diversas esferas, reconhece sua dificuldade em lidar com os problemas das comunidades tradicionais e fomentar a participação de tais comunidades na formulação de políticas públicas.

Em razão de tal realidade, a pesquisa identificou a percepção dos atores governamentais acerca das comunidades tradicionais extrativistas na Área de Proteção Ambiental no Paraná e constatou um quadro grave com relação ao desenvolvimento de políticas públicas que sejam efetivas na garantia dos direitos constitucionais.

Nesse estudo, as visões foram distribuídas em quatro classes – determinista indiferente, propositivo, favorável, desfavorável - variando de acordo com a esfera de atuação política dos atores governamentais no âmbito Estadual e Municipal, conforme FIGURA 1.

FIGURA 1 - DISTRIBUIÇÃO PERCENTUAL DO POSICIONAMENTO DOS ATORES GOVERNAMENTAIS EM RELAÇÃO ÀS COMUNIDADES RURAIS EXTRATIVISTAS. Fonte: FERREIRA (2010)

Para a melhor compreensão do posicionamento apresentado graficamente, deve-se analisar pontualmente o que cada uma dessas classes comportamentais, ou percepções acerca da realidade das comunidades extrativistas, por parte dos atores governamentais representa em sua dimensão político-social.

Determinista indiferente: reconhece as limitações do Estado e estagnação das comunidades rurais extrativistas. Alguns manifestam apatia sobre a situação de comunidades empobrecidas, quanto à dificuldade de operacionalização e desenvolvimento de ações no Estado. Eles reconhecem uma abordagem de planejamentos desenvolvida com alternativas elaboradas por técnicos, cabendo a atores estaduais e federais do Estado fazer cumprir essas determinações. Muitas decisões sobre conservação da Mata Atlântica são ideais, principalmente pela visão dos que são externos aos trabalhos no Paraná. A experiência demonstra o pouco interesse por caminhos, frente à realidade encontrada pelos atores governamentais que decidam diariamente sobre comunidades rurais tradicionais e conservação da natureza. Os funcionários afirmaram que não são consultados quando do planejamento de ações políticas e inclusão social.

Propositivo: favorável à manutenção das famílias no campo, reconhece as limitações do Estado, apresenta propostas para mudança pela perspectiva socioambientalista e revela

 

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constrangimento durante os diálogos e reflexões. O conhecimento, mesmo que histórico, sobre a realidade das comunidades caiçaras empobrecidas e o entendimento sobre o funcionalismo do Estado nos planejamentos de políticas territoriais geram desconforto profissional. Eles concordam e reconhecem que existem diversas dimensões: ambiental, cultural, espacial, demográfica e econômica, e mesmo assim o Estado acaba sendo regulado pela dimensão econômica. Essas informações não são estáticas e rígidas. Uma ação diferenciada poderá mudar o cenário de indiferença presenciado e manifestado.

Favorável: considera importante a existência das comunidades na floresta para sua manutenção e do território com perspectiva socioambientalista. Destacam que as políticas públicas poderiam ser desenvolvidas na retomada da presença do Estado, evitando que o poder paralelo constituído e atuante das ONGs e igrejas continuem a crescer nesses espaços empobrecidos. No entanto, não apresentam propostas nos diálogos ocorridos.

Desfavorável: é contra a permanência de comunidades na floresta. Possui visão preservacionista e conservacionista, com atenção maior à preservação da floresta sem interação humana. O mito da Floresta como intocada.

As visões e percepções demonstradas pelos atores governamentais do Paraná sobre as comunidades rurais extrativistas estabelecidas em unidades de conservação apresentaram um posicionamento (FIGURA 01) que, embora, num primeiro momento, pareça favorável em relação às comunidades caiçaras, pessimista, tendente à concepção de aniquilamento das comunidades tradicionais em razão da organização e estrutura do Estado. Isto pois, no litoral do Paraná existem diversas instituições e estruturas sociais que fragilizam e impactam as comunidades caiçaras, tais como as ONGs; o Estado pela sua falta de atenção a essas populações; o sistema capitalista, por meio dos interesses de terra e preocupação ambiental; e a cultura, por sua história de subordinação e ênfase na abordagem preservacionista que prega a dicotomia conflitante entre homem e natureza.

Os atores governamentais envolvidos em pesquisa, extensão, fiscalização e desenvolvimento de programas de governo, apontam fragilidades e necessidades dos caiçaras paranaenses que vivem na Mata Atlântica, em relação ao seu modo de vida atual e futuro. Os elementos apontados emergem de uma posição dos atores governamentais, tanto do âmbito municipal, estadual quanto no federal (TABELA 1).

Entre os atores governamentais, o Município mostrou-se favorável aos investimentos em relação à valorização da cultura caiçara e sua permanência na Mata Atlântica. O Município foi, ao mesmo tempo, quem pontuou o quanto é difícil para o local desenvolver políticas de apoio e acesso a essas comunidades, pois o poder municipal atua atendendo demandas mais urgentes, e estas estão alocadas em grupos urbanos da cidade e grupos organizados do rural. Dentro desse cenário, os atores municipais, embora cientes da importância dessas comunidades, não conseguem ver alternativas para uma ação a partir do local.

TABELA 1 - PERCEPÇÕES DOS ATORES NOS ÂMBITOS LOCAL, ESTADUAL E FEDERAL SOBRE O PRESENTE E O FUTURO DAS POPULAÇÕES CAIÇARA. Instituições Fragilidades das comunidades caiçaras do litoral paranaense Federal

“Não há interesse do Estado em dispensar atenção a essas populações caiçaras. Pois, existem instrumentos, na sociedade civil e internacional que protegem direitos humanos e deveriam ser aplicados na biodiversidade”.

 

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ONG “A falta do Estado cria um Estado paralelo e surgem outros princípios em nome do meio ambiente. As populações caiçaras tradicionais em áreas transformadas em APA podem ser expulsas para a criação de RPPN.”

Município

“Não tem recursos para isso, nem estrutura, não tem pessoal técnico capacitado para operacionalizar essas ações. A gestão municipal é mais voltada para o urbano e o espaço rural organizado”.

Política

Ação preservacionista “A fragilidade deles está na ênfase na questão ambiental aliada à infra-estrutura precária unificada a omissão do Estado, o qual não tem investimento e nem fundo cultural para essas comunidades. Os caiçaras rurais encontram-se em uma situação preocupante, porque o olham para eles como separados da natureza”.

Capitalismo “O capitalismo faz com que elas percam a identidade, e os meios de trabalho”.

Fonte: FERREIRA (2010)

Além disso, os atores apresentaram que as políticas desenvolvidas nos últimos dez

anos foram de intensificação da fiscalização e cuidado do meio ambiente por meio de leis ambientais, as quais não favoreceram a agricultura familiar ou campesina dos caiçaras em regiões transformadas em área de proteção ambiental. Destacam ainda que essas leis, por meio da intensificação da fiscalização, acabaram por excluir as comunidades tradicionais. As ações são de controle e coerção; e não de inclusão ou em educação para o desenvolvimento comunitário.

Os atores responsáveis pela fiscalização que atuam no âmbito do Município de Guaratuba acreditam que a criação da APA amplia a visibilidade dessas famílias e promove uma melhoria na sua condição de vida, embora exija também maior fiscalização. No entanto, identificou-se um desconhecimento dos próprios atores municipais em relação à APA, pois uma Secretaria indicou que a criação da APA melhorou muito a vida das famílias rurais extrativistas, o que demonstra uma falta de conhecimento da realidade.

Ocorreu um forte investimento na APA em relação ao aparato do equipamento público para a fiscalização da área protegida (instalações novas, carros, equipamentos e uniformes). Alguns entrevistados revelaram que, em nome do meio ambiente, o modo de vida dessas comunidades tem sido destruído, pois não há investimento na melhoria da qualidade de vida, apenas na fiscalização para a conservação da natureza, voltada para a repreensão dessas comunidades. Afirmam que deveriam existir investimentos privados e públicos a fim de melhorar as condições de vida das comunidades residentes na APA.

Os investimentos que ocorreram no Paraná no período de 1997 a 2007, por meio de um programa chamado Pró-Atlântica, financiado pelo banco alemão KFW, tiveram como objetivo a preservação e conservação da Floresta Atlântica. Foi escolhido o litoral do Paraná justamente por ser um dos locais maiores e mais bem conservados da Floresta Atlântica no Brasil, e por ser uma das unidades de conservação com rica biodiversidade. Foi um investimento de mais de cinqüenta milhões de euros, em dez anos. A política estabelecida por meio desse investimento privado teve como finalidade o controle e regulação sobre as famílias caiçaras, principalmente em relação ao seu modo de vida.

A melhoria no modo de vida das famílias caiçaras, no entanto, somente será possível se as instituições públicas desenvolverem uma visão socioambiental em relação aos territórios ocupados por elas (SANTILLI, 2005). As relações estabelecidas atualmente ocorrem por meio de um distanciamento das realidades dessas comunidades, sendo que o Estado apenas aparece

 

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como instituição de regulação (como por exemplo, por meio do IAP) ou de controle e multa (por meio da Polícia Ambiental Força Verde). Essas ações culminam também em limite para ação extrativista sustentável pela falta de diálogo, entre as comunidades e Estado, para o estabelecimento de regras claras, e também pela necessidade que as famílias possuem de acessos a outros recursos, além dos naturais disponíveis na Mata Atlântica. Esse cenário oportuniza para que as famílias tornem-se ainda mais marginalizadas e exploradas pelos intermediários, permanecendo em um ciclo perverso de pobreza (BELCHER, 2005, BALZON, 2007, VALENTE, 2009, FERREIRA, 2010).

No tocante à forma que estão estruturados os acessos para os diálogos das comunidades com as instituições governamentais e como eles enxergam as políticas públicas do Estado do Paraná, observa-se que os atores governamentais consideram que essas políticas impactaram mais negativamente que positivamente nessas comunidades.

A questão das políticas públicas voltadas para o litoral paranaense na análise dos próprios autores foi mais danosa que benéfica, quando ocorreram. O principal problema apontado está na falta de entendimento do Estado em relação à lógica do caiçara. A realidade do modo de vida e dos laços sociais que a permeiam, assim como as características específicas que os caiçaras possuem, precisa ser considerada na elaboração das políticas públicas. No entanto, os atores institucionais não conseguem desenvolver esse diálogo necessário. Evidenciou-se que apenas dois programas do governo estadual apresentaram impactos positivos (Quadro 2).

Ações Frases das entrevistas Impacto

Interferência do Estado

Projeto Universidade Sem Fronteiras

Este projeto trabalha na área social e produtiva na ideia do Mutirão, estudar como funciona e propor para eles a partir da prática e não da lógica de mercado. Promove o diálogo e reforça nas pessoas do meio rural a capacidade de acessar recursos.

Positivo

Falta de Integração

Paraná 12 meses. Política de cima para baixo, sem integração. Seria necessário analisar a realidade para entrar com projetos com aceitação da comunidade. Porém é muito difícil de trabalhar desse modo, não temos funcionários.

Negativo

Ausência do Estado O Estado está ausente e despreparado para atuar nas comunidades tradicionais. E quando intervém como política pública geralmente ele é mais danoso do que benéfico.

Negativo

Diálogo por meio de associação

Falta gente para dialogar com esse pessoal mais distante, é preciso uma correlação de formas de organização para formar conselhos e associações. E o que é ruim, é que quanto maior a condição de pobreza menor é o potencial de reivindicação.

Negativo

Fiscalização

Falta de diálogo

As restrições para o atendimento de demanda ambiental e privado sem diálogo com as comunidades tradicionais acarretam punição aos caiçaras a fim de prevenções infundadas para a proteção do meio ambiente.

Negativo

Tarefa de repressão

A cada 40 profissionais na fiscalização (federais e estaduais), temos no Estado 3 profissionais (entre agrônomo do Município e técnico da EMATER) para práticas agrícolas. Muitos para fiscalizar e poucos para fomento. É preciso mudar isso.

Negativo

 

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A tarefa tem sido de repressão do que integração, menos de conscientização sobre a preservação de uso sustentável.

Negativo

Política social

Políticas organizadas Ação do Estado positiva em Serro Azul (PR). Existe um conjunto de agricultores organizados que se beneficiam das políticas específicas. Quando se organiza, consegue acessar o Estado.

Positivo

Precariedade no atendimento ás comunidades do campo

Há precariedades no acesso às estradas; comunicação, saúde, escolas e assistência técnica não chegam a essas comunidades, mas a fiscalização se faz presente.

Negativo

Unidade de conservação e Legislação ambiental

Facilitador do acesso as políticas

Os acessos às políticas promovem desenvolvimento nas comunidades, mas ficam apenas limitadas ao que já tem. Porém, essas políticas não têm a abrangência necessária.

Negativo

Dicotomia homem e natureza dificultam a sustentabilidade cultural e ambiental

O método de subsistência tradicional serve para alimentar a família. No entanto, isso é visto como forma de degradação ambiental pela legislação. É preciso que o Estado mude o jeito de conceber o rural.

Negativo

Sociedade civil e perfil da comunidade caiçara

Projetos incoerentes com a realidade e falta de informação

O técnico costuma aplicar projetos que não se adequam à lógica de sobrevivência caiçara.

Negativo

Representatividade

Clientelismo e personalismo nas ações políticas. As pessoas empobrecidas têm dificuldades na escolha de seus representantes; o voto virou moeda de troca. Outra forte influência é a igreja, gerando movimento de organização.

Negativo

QUADRO 2 - EVIDÊNCIAS DO PAPEL DAS POLÍTICAS E SEUS IMPACTOS NAS COMUNIDADES Fonte: FERREIRA (2010)

Os impactos negativos foram relacionados à falta de integração, diálogo, falta de

associação e conscientização política das comunidades caiçaras, ou seja, uma invisibilidade sobre a realidade dessas famílias e também por uma falta de acesso para o desenvolvimento de suas capacidades (BEBBINGTON, 1999).

No entanto, para esses atores municipais, o Município é pequeno demais para o planejamento e a organização do desenvolvimento rural, porém o Estado também não tem condições de conhecer todas as necessidades e as heterogeneidades existentes no litoral do Paraná. Dessa forma, salienta-se a falta de diálogo entre esses atores, o que leva a desenvolver políticas públicas de gabinetes por planejadores que desconhecem as especificidades locais.

Quanto a esse cenário, os atores municipais expressaram que os problemas relacionados à eficiência das políticas públicas encontram-se principalmente em relação ao acesso e conhecimento das famílias no litoral (FIGURA 2) e à falta de funcionários para estabelecer esses processos, tanto de comunicação com as famílias, como com os órgãos do Estado.

 

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FIGURA 2 - FATORES QUE CONTRIBUEM PARA A INEFICIÊNCIA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NAS COMUNIDADES RURAIS LITORÂNEAS E POSICIONAMENTO DOS ATORES GOVERNAMENTAIS. Fonte: FERREIRA (2010)

Como resultado, observa-se no Município falta de estrutura e capacitação técnica dos atores governamentais locais e atenção a essas comunidades desassistidas. No Estado do Paraná, a falta de funcionários técnicos para estabelecer essas alianças, assim como as mudanças de governo, inibe a continuidade de programas em escala regional e nacional. No governo Federal, as elaborações de políticas púbicas padronizadas não consideram a heterogeneidade das comunidades litorâneas do Paraná.

Na perspectiva socioambiental para a formulação de políticas públicas mais próximas da realidade caiçara é necessário o reconhecimento da floresta cultural. Este conceito parte do pressuposto que as famílias caiçaras secularmente vivem na floresta com diversas práticas sociais, as quais merecem ser reconhecidas e valorizadas pelos poderes públicos ao planejar políticas para o território. Dentro deste conceito de floresta cultural, Furlan (2006) apresenta que as florestas culturais ou sociais, são aquelas manejadas pelas populações locais, compreendem-se como espaço onde essas populações vivem a sua territorialidade e usam seus recursos por meio de práticas passadas entre gerações. No entanto, observa-se que ainda nos dias de hoje, essa territorialidade não é reconhecida nos instrumentos legais de proteção e conservação de florestas, embora, saiba-se que as florestas nunca foram espaços vazios. O reconhecimento da floresta cultural e a identidade das comunidades caiçaras direcionam-se para a construção de uma gestão da floresta como um todo e implica reconhecer também a importância da multifuncionalidade no ecossistema florestal.

É preciso que os agentes envolvidos nessas políticas consigam enxergar a multifuncionalidade também das famílias na Mata Atlântica, pois seu reconhecimento envolve dimensões que contribuem para o futuro do território como a dimensão econômica, sociocultural, institucional e ambiental. Não focando apenas o econômico, mas sobre tudo que representa aquele modo de vida.

Para a ação extrativista de forma sustentável pelas comunidades rurais, torna-se necessário que ela ocorra como complementaridade no orçamento da Unidade familiar desenvolvida dentro de diversas outras atividades. Por isso, o conceito de pluriatividade torna-se tão importante, assim como de multifuncionalidade das famílias no meio rural, como cuidadores da floresta e portadores de uma herança cultural de um modo de vida, pois os interesses dos atores governamentais hoje apenas se voltam para agricultores organizados dentro de uma perspectiva de produção agrícola empresarial, com pouca manifestação no

 

 

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local de diálogo para se conhecer e estudar as possibilidades de melhoria de vida dessas famílias extrativistas.

Embora exista a questão ambiental e agrícola nessas regiões consideradas como Unidades de Conservação de uso sustentável, as atenções e as políticas estão centradas no quesito conservação da natureza e exclui o ser humano, já que a UCs como APA têm sua atenção na biodiversidade e não na sociodiversidade.

Nesse sentido, considera-se que a conservação da natureza foi também alterada por essa política de incentivo à formação de florestas de Pinus e eucaliptos, ocasionando uma mudança no território (em sua biodiversidade e sociodiversidade) das famílias caiçaras. Essa ênfase dada às empresas de reflorestamento, com o enfoque no crescimento econômico do país na década de setenta, desconsiderou as comunidades rurais que ocupavam tradicionalmente essas áreas. Tais políticas tiraram das famílias o acesso ao recurso natural – as terras - para o cultivo de diversas culturas. Isso também gerou instabilidades nas famílias em relação ao significado de seu trabalho e sua vida (FERREIRA, 2010).

Existe distância entre o ideal e o real, manifestada sobre as políticas públicas necessárias e possíveis às comunidades rurais com atividades extrativistas, na percepção dos atores governamentais a fim de que as mesmas possam permanecer na Mata Atlântica (Figura 03), as quais mostram que o caminho para uma possível visibilidade das comunidades caiçaras depende em grande parte de uma nova postura do Estado.

FIGURA 3 - SUGESTÕES DOS ATORES GOVERNAMENTAIS SOBRE POLÍTICAS PÚBLICAS NECESSÁRIAS ÀS COMUNIDADES COM ATIVIDADES EXTRATIVISTAS Fonte: FERREIRA (2010)

Os atores governamentais acreditam que, em primeiro lugar, é preciso realizar uma

mudança na postura do Estado em relação às comunidades rurais extrativistas, como: revisões na legislação ambiental, regularização fundiária, divulgação do conhecimento tradicional, políticas públicas que incentivem e financiem pesquisas voltadas para a conciliação da permanência de agricultores familiares com as UCs, trabalhos de parceria entre Universidade e Estado e decisão em relação à erradicação da pobreza no meio rural.

Com relação às sugestões dos atores governamentais sobre políticas públicas necessárias às comunidades com atividades extrativistas, constata-se uma postura acomodada por parte dos agentes estatais, eis que, em última instância, eles são o Estado e “sabem muito bem o que fazem”, conforme expressão de Zizek (1992).

 

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No tocante à abordagem proposta por Bebbington (2005) sobre os programas, leis e políticas de desenvolvimento criados pelos dirigentes das instituições estaduais - e como elas afetam o meio de vida dessas comunidades rurais -, observou-se que, no caso em análise do Paraná, o Governo Federal gerou impacto nas famílias caiçaras por conta de ações estabelecidas na década de setenta. Nesse período foram criadas políticas de desenvolvimento via programas de incentivos fiscais (Lei 5.106/1966), voltadas para a valorização de florestas plantadas como a de pinusiv. Essas políticas fomentaram mudanças de paisagem na Mata Atlântica em relação ao uso da terra pelas famílias caiçaras, que hoje estão encurraladas pelas empresas de reflorestamento na APA de Guaratuba.

Corona (2006), ao estudar a vida comunitária rural da região metropolitana de Curitiba-PR, encontrou transformações semelhantes no território ocasionadas pela interferência de grupos econômicos com investimento em derrubada de mata nativa para o reflorestamento (Comfloresta – Grupo Brascam do Brasil), somado à presença opressora da fiscalização nas áreas protegidas. Independente da região, as ações das instituições sempre impactam na vida das famílias no meio rural, seja positiva ou negativamente.

No litoral paranaense, segundo Gruntowski (2005), a parceria financeira entre o Governo da Alemanha, por meio de seu agente financiador – o Banco KFW – e o do Paraná até o ano de 2004, gerou um investimento no valor de R$ 40 milhões para o programa de preservação, conservação e recuperação da Floresta Atlântica paranaense. A área de abrangência do Programa correspondeu a uma área de 12 mil quilômetros quadrados, incluindo no programa quinze Municípios do Paraná. Todos na perspectiva de fiscalização e controle, pois o programa não previa investimentos para processos sócio-educativos com as comunidades em uma perspectiva de troca de saberes acerca da floresta e sua conservação.

Segundo Santos (1997), um Estado-regulador precário na organização e conhecimento da administração pública no estabelecimento de suas ações desenvolve uma assimetria em relação aos serviços prestados e à informação para o uso do dessas ações. Os recursos provenientes da criação da APA, como o repasse do ICMS-Ecológico, não são acessados ou utilizados pelas comunidades cuidadoras da floresta, embora o exercício efetivo da cidadania exija o fomento da capacidade de publicizar as instituições governamentais e estabelecer práticas democráticas cotidianas (LOUREIRO et al, 2004). A falta de um programa específico e transparência no uso dos repasses financeiros para as UCs possibilitam que tais recursos sejam utilizados nas despesas gerais do Município. A ênfase dos recursos está na fiscalização, diminuindo os investimentos em infraestrutura ou processos de organização das comunidades. Os investimentos públicos, nesse setor, são direcionados à fiscalização, à formação de conselhos e a discussões sobre os planos de conservação. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O propósito central deste artigo foi o de analisar as percepções e visões dos atores governamentais do âmbito local, Estadual e Federal sobre as comunidades rurais com atividades extrativistas, estabelecidas em Unidades de Conservação, assim como o seu entendimento sobre as políticas públicas existentes e seus impactos nessas famílias caiçaras.

Ao privilegiar o prisma destes agentes pouco investigados pela literatura, o presente estudo procurou inverter o enfoque tradicionalmente utilizado para a investigação acerca do meio de vida rural sustentável. Com esta inversão investigativa foi possível problematizar diversos aspectos ressaltados pela literatura em relação ao comportamento governamental diante da questão ambiental e das comunidades tradicionais caiçaras. Neste sentido, o

 

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primeiro aspecto apresentado neste estudo de campo, pautado pela abordagem da Teoria Fundamentada, foi a constatação que a aplicação do SNUC como instrumento poderá propiciar às populações rurais tradicionais, que vivem em unidades de conservação, uma possível noção de protagonismo, ou seja, que saiam da situação de invisíveis que hoje se encontram. No entanto, a pesquisa apresenta que este é um longo caminho, já que esses grupos pertencentes a comunidades rurais com atividades extrativistas, não conseguem participar da formação da Agenda, ou seja, ainda não possuem mobilização política necessária para manifestar suas demandas.

Com efeito, foi possível identificar que a valorização da sociodiversidade e o fortalecimento da organização das populações tradicionais, conferindo-lhes visibilidade, inclusão social, exercício da cidadania e a promoção da justiça social, ainda não estão contemplados por meio de programas do Estado do Paraná ou por meio de políticas locais de valorização a cultura caiçara. Essa situação reflete o paradigma da modernidade abordado por Santos (1997) onde o Estado manifesta uma tensão dialética entre a regulação social e a emancipação social dividindo-se ora como Estado-regulador, ora Estado-providência.

Embora as unidades de conservação de uso sustentável tenham sido consideradas como importantes no território para interação homem-ambiente, como apresentado nas narrativas dos atores governamentais, a busca de seu fortalecimento e a construção de espaços que desenvolvam processos que envolvam as comunidades, a fim de se alcançar um meio de vida socialmente justo e equitativo, ainda não foram contemplados. Por fim, constatou-se que o Estado, para dar atenção a essas comunidades rurais, precisa ser acionado e, para tanto, as comunidades necessitam urgentemente iniciar processos de organização comunitária, pois, o Estado acaba por despender maior atenção e cuidados com a floresta em uma ação mais preservacionista pautado na perspectiva de Estado-regulador, devido aos incentivos de ONGs e organismos internacionais que atuam nesse território. Isto promove um descompasso entre visões preservacionista/conservacionista e visões socioambientalistas, ressaltando-se o primeiro com maior influência na arena política pautado em uma racionalidade instrumental da ciência e da técnica, a qual fomenta ainda mais o Estado Regulador. Acaba-se desenvolvendo um discurso socioambientalista e uma prática descolada desse mesmo discurso. Nesse sentido, urge a elaboração de políticas públicas de longo prazo pautadas na educação e participação política dessas comunidades caiçaras, caso o Paraná deseje, de fato, promover justiça social. Esta pode ser pautada no envolvimento sustentável apresentado por Viana (1999) no qual aponta a importancia do dialogo legitimo para a conservação das florestas pelo reconhecimento e valorização das comunidades caiçaras. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ADAMS, C. As populações caiçaras e o mito do bom selvagem: a necessidade de uma nova abordagem interdisciplinar. Revista de Antropologia, n.43, v.1, 2000. ADAMS, C. As roças e o manejo da Mata Atlântica pelos caiçaras: uma revisão. Interciencia, n. 25, p. 143-150. 2000a. ADAMS, C. Caiçaras na Mata Atlântica: pesquisa cientifica versus planejamento e gestão ambiental. São Paulo: Annablume: FAPESP, 2000b.

 

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