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claude Lévi-strauss baseia-se no estudoda aíe dos Índiosda costn ÌìrÌr,,r,.r, dos Estados unidos-arte..cuio estudo,ao revelá-la, torna possrv(,r rrrr,r r,. var a cabo aproÍundada reflexáo, reflexáo gue se situa numa porlrprrcrrv,r,,,,., nal, sobre as questoes Íundamentais dá estética e da histôrrrr rr,r ,,,. GÌaÍismo, plástica e cor são aqui reveiados no seu verdadeiro papel, o rl';rr,;,,,, Ìrr a um povo, a uma escola, a um período, distinguir-se dog s€us vrrr,,r,,, closseus rivaisou dos seus predecessores. 1. O Mundode Ulisses, M. t. Fintev 2. A ldeia de História, R. G. Cottinòwood 3. Teorias da Arte, Arnold Hauser- 4. O Renascimènto ltaliano,Jacob BuÍckhaÍdt 5. O Suicídio, Emile Dur*heim 6. A Linguística do Sécuto Xx, Georges Mounin 7. Geogratia Humana, l, Md OerÍuau L GeograÍia Humana ll, Ma OeÍruau 9. Barroco e Classicismo I, Victor Taoié 10. UÍòanismo Contsmoorâneo. Hans Mausbach 11. Barroco e Classicismolt, Victor Tarté 12. Problemas de ìnvestigaçáo em Sciotogia Urbana, Manuel Castalls 13. Conc€itos Íundamentaisda Linguísticâ. An- dré Maninat 14. A Investigação nas Ciâncias Sociais, Joâo FeÍeira de Almêida o José MâdureiÍa pinto 15. Cãpitalismo e Modèma T€oÍia Sociat, An- lhony Giddens 16 E_s_!149ral AgráÍias sm poíiugat (195O- -1970). Eduardo ds FÍeitas, Joáo Fsreira de Almeida s Manuot VilaverdeCabral 17. Teorias do Vator e DistÍibuiçáo dssd€ Adam Smith, Maurice Oobb '18. O Eslado nas Sociedades OeD€ndonEs_ - O caso da Amórica Lalina, EnÍious Go- mariz Moraoa 19. A Divisáo Sôciat do Trabathot. E. OuÍkheim 20. A Divisáo Sociat do Trabâlho il, E. DuÍkheim 21. A Era das Revolueõ€s, E. J. Hobsbilm 22. Oa CÍise do Feudãlismoao NascimeÍìio do Capitalismo, G. Conto 23. A Tsra, Planeta Vivo, Jsan Tricaít 24. Eça, Discípulo de Machado?. Atbeno Machado dâ Rosa 25. Sêmântica Gsrativa, Michet Gatmiche 26. Filosoíia e Filosofia Espontânoados Cien- tislas, L. Althusssí 27. AEta do CaDital,E. J. Hobsbawm 28. Cinc€ Autor€s HistoÍiais, Graça Alneida Rodriou€s 29. Teoriãs e História da Arquitedura. ManÍrado ÍatuÍi 30. Estudos de HistóÍia LitoÍáía, Graça Almsida RodÍioues 31. ïeoriã Económicado Sistoma Foudat. Witold Kula 32. As Filosotiasda NaUÍeza, paoto Câsini 33. Os GranclesSist€mas Jurldicos, Mario G. Losano 34. Inlroduçào à L€itura de Plâtáo, Aloxandro KovÍó 35. O Valor na -Ciôncia Emnúnicn. Clâudto 38. Oialóclica, Lívio SichrrÍkr 39. A RovolucãoCome(rrl (Ir hlnikì r!' 95O-135O. Rob€rl S toÍrt/ 40. 41. 42. 43. 44 45. 46. 47. 48. 49 Antropologia Política. íìrxrrtn'r I lnt,Í' r, Como se ía uma Íosrì. t,rllxilt, | ,. A Filosíia do DesâÍlr,3. lrÍilt'rd'ilr ar.i . Organizaçóos Pollticas lrrkrrur ru,i', ' , OEA e OUA - Antón(t.kr,ó |'i'r','r"Ì' A Pró-Hisiória. DonrÍíì (Jíì: Í xìrrrvltr' , ' O Sigrc. Umberlo Fm História eCiênoiìs 1;íx.riil, |,!ú,;u,/l lr, Renascimento o F|rrrir:,r:lrrrú,,., ,, , Ocidental, Êmin PantÍ,,ky CiôncìaeFilosofia (ì (,iilt,'r,l*,,,,r A Via das Máscaras. (lhru(t., | óvr .,, 36 3l Naoolmni Proudhona Maff. GooÍ069 Gurvllch Ar Rãqíáã do Môt(ío Smtolôgkí', F Duilh6hn ry{',}} ií, Y ', i{' fi ' ; [i ü íï ti t$lfl:' l"'ü.{ EDITORIAL PRESENCA/ MARTINS FONTES

LEVI-STRAUSS, Claude - A organização social dos Kwakiutl

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Page 1: LEVI-STRAUSS, Claude - A organização social dos Kwakiutl

claude Lévi-strauss baseia-se no estudo da aíe dos Índios da costn Ììr Ìr , ,r , .r ,dos Estados unidos-arte..cuio estudo, ao revelá-la, torna possrv(,r rrrr,r r , .var a cabo aproÍundada ref lexáo, ref lexáo gue se situa numa porlrprrcrrv,r, , , , . ,nal, sobre as questoes Íundamentais dá estética e da histôrrrr rr,r ,,,.GÌaÍismo, plást ica e cor são aqui reveiados no seu verdadeiro papel, o r l ' ; rr , ; , , , ,Ìrr a um povo, a uma escola, a um período, dist inguir-se dog s€us vrrr, ,r , , ,clos seus rivais ou dos seus predecessores.

1. O Mundo de Ulisses, M. t. Fintev2. A ldeia de História, R. G. Cottinòwood3. Teorias da Arte, Arnold Hauser-4. O Renascimènto ltaliano, Jacob BuÍckhaÍdt5. O Suicídio, Emile Dur*heim6. A Linguística do Sécuto Xx,

Georges Mounin7. Geogratia Humana, l, Md OerÍuauL GeograÍia Humana ll, Ma OeÍruau9. Barroco e Classicismo I, Victor Taoié

10. UÍòanismo Contsmoorâneo.Hans Mausbach

11. Barroco e Classicismo lt, Victor Tarté12. Problemas de ìnvestigaçáo em Sciotogia

Urbana, Manuel Castalls13. Conc€itos Íundamentais da Linguísticâ. An-

dré Maninat14. A Investigação nas Ciâncias Sociais, Joâo

FeÍeira de Almêida o José MâdureiÍa pinto15. Cãpitalismo e Modèma T€oÍia Sociat, An-

lhony Giddens16 E_s_!149ral AgráÍias sm poíiugat (195O-

-1970). Eduardo ds FÍeitas, Joáo Fsreirade Almeida s Manuot Vilaverde Cabral

17. Teorias do Vator e DistÍibuiçáo dssd€Adam Smith, Maurice Oobb

'18. O Eslado nas Sociedades OeD€ndonEs_- O caso da Amórica Lalina, EnÍious Go-mariz Moraoa

19. A Divisáo Sôciat do Trabatho t.E. OuÍkheim

20. A Divisáo Sociat do Trabâlho il,E. DuÍkheim

21. A Era das Revolueõ€s, E. J. Hobsbilm22. Oa CÍise do Feudãlismo ao NascimeÍìio do

Capitalismo, G. Conto23. A Tsra, Planeta Vivo, Jsan Tricaít24. Eça, Discípulo de Machado?. Atbeno

Machado dâ Rosa25. Sêmântica Gsrativa, Michet Gatmiche26. Filosoíia e Filosofia Espontânoa dos Cien-

tislas, L. Althusssí27. AEta do CaDital, E. J. Hobsbawm28. Cinc€ Autor€s HistoÍiais, Graça Alneida

Rodriou€s29. Teoriãs e História da Arquitedura.

ManÍrado ÍatuÍi30. Estudos de HistóÍia LitoÍáía, Graça Almsida

RodÍioues31. ïeoriã Económica do Sistoma Foudat.

Witold Kula32. As Filosotias da NaUÍeza, paoto Câsini33. Os Grancles Sist€mas Jurldicos,

Mario G. Losano34. Inlroduçào à L€itura de Plâtáo,

Aloxandro KovÍó35. O Valor na

-Ciôncia Emnúnicn. Clâudto

38. Oialóclica, Lívio SichrrÍkr39. A Rovolucão Come(rrl (Ir hlnikì r! '

95O-135O. Rob€rl S toÍrt/40.41.42.43.

4445.46.47.

48.49

Antropologia Polí t ica. í ì rxrr tn 'r I lnt , Í ' r ,Como se ía uma Íosrì . t , r l lx i l t , | , .A Fi losí ia do DesâÍ lr ,3. l r Í i l t ' rd ' i l r ar. i .Organizaçóos Pol l t icas l rrkrrur ru, i ' , ' ,

OEA e OUA - Antón(t .kr ,ó | ' i ' r ' , ' r " Ì 'A Pró-Hisiór ia. DonrÍ í ì (Jí ì : Í xìr rrv l t r ' , 'O Sigrc. Umberlo FmHistór ia eCiênoi ìs 1; íx.r i i l , | , !ú, ;u, / l l r ,Renascimento o F|rrr i r : , r : l r rrú, , . , , , ,Ocidental , Êmin PantÍ , ,kyCiôncìaeFi losof ia t ì ( ì ( , i i l t , ' r , l * , , , , r

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EDITORIAL PRESENCA/ MARTINS FONTES

Page 2: LEVI-STRAUSS, Claude - A organização social dos Kwakiutl

zações propostas parecem, pois, inaceitáveis; mas daí nãodecorre que as genealogias esboçadas sejam falsas: cadauma delas poderá ser uma rami,ficação de uma genealogiamais longa, tronco comum cuja recordação se tenha perdidodevido à sua antiguidade ou tenha sido propositadamenteesquecido por poder dar consistência a direitos de concorren-tes prioritários.

Mesmo considerando prováveis algumas obliterações, o,smecanismos pelos quais certo tipo de máscaras se espalhounum vasto território por herança, casamento, conquista ouadopção continuam visíveis. Podemos assim ver tambémcomo, articulados com estes, outros mecanismos invertema imagem da primeira máscara onde, antes de se interrom-per, a propagação perde força. O exemplo que discutimosresumidamente, para homenagear um sábio que nunca pensouque fossem incornpatíveis a análise estrutural e as investi-gações etno-históricas, mostra pelo menos como nos factosse pode engendrar uma transformação mítica.

II

A ORGANTZAçÃO SOCTAL DOS KWAKTUTL (t)

Na pri,rneira parte deste livro (p. 78) evocámo's rapi-damente a organização social dos Kwakiutl e indicámosque ela levanta problemas muito complexos. Na hora actual,em que as instituições tradicionais se encontram, em grandeparte, desintegradas, os observadores e os analistas já sótêm testemunhos antigos que permitam tentar identificar anatureza dessas instituições. Pelas suas hesitações e pelosseus primeiros esboços, a obra de Franz Boas- a quemdevemos o essencial das informações disponíveis acerca dosKwakiutl - põe bem em evidência as dificuldades.

Estabelecidos na ,parte noroeste da ilha de Vancouvere na costa continental em frente dela, os Kwakiutl estavamdistribuídos por agmpamentos locais a que Boas dá o nomede <<tribos>>. Boas observa, nos seus primeiros trabalhos,que essas tribos se subdividiam em formações mais peque-nas e do mesmo tipo todas elas, compreendendo cada umaurn número variável de unidades sociais a que se chama((gens)) porque, ao contrário dos vizinhos setentrionais, todosmatrilineares - Tsimshian, Haida e Tlingit - , os K'wakiutltêm uma orientação patrilinear e apresentam, a este respeito,certas afinidades com os povos de língua salish que comeles confinam a sul.

C) Republicado com algumas modificações e acrescentos segundoa versão original: <<Nobles Sauvages>>, in: Culture, scíence et, dëveloppe-ment. MéIanges en I'honnewr de Charles Morazê, Toulouse, Privat, 1979.

t42 143

Page 3: LEVI-STRAUSS, Claude - A organização social dos Kwakiutl

Mas as dificuldades logo aparecem, e Boas tem delas

plena consciência. Em primeiro lugar, é impossível aÍirmar

pretende a teoria dos sistemas unilineares - que

as <<gentes>> são exógamas, pois cada indivíduo se'considera,

em farte, membro da <<gensn de seu pai e, em parte, mernbro

da cle sua mãe. Além disso, subsistem aspectos matrilineares'

pois entre os aristocratas (os Kwakiutl formam uma socie-

dade estratificada) o esposo toma o norne e as armas (ern

sentido heráldico) do sogro e entra assim na linhagem dal

esposa. Nome e armas passam 1lara os filhos; as raparigas Iconservam-nos e os ra'pazes perdem-nos ao casar e adoptar Ioutros, os das esposas. Por conseguinte, os emblemas nobi- \liárquicos transmitem-se, praticamente' pela linha feminina Je todo o homem solteiro recebe os de sua mãe' Mas há-

outros factos que militam em sentido oposto: o pai é o chefe

da família, não o irmão da mãe; e, principalmente' a auto-

ridade sobre a ((gens)) transmite-se de pai para filho' No

fim do século xx muitos indivíduos de nascimento nobre

reclamavam títulos herdados nas duas linhas (Boas, 1889)'

Estas incertezas explicam que' numa segunda fase da

sua reflexão, ilustrada por lndianísche Sagen (1895) e pela

grande obra sobre a organização social e as sociedades secre-

tas dos Kwakiutl (1897), Boas tenha rnodificado a sua pers-

pectiva e a terminologia. Até então tinha principalmente

ãproximado os Kwakiutl dos povos matrilineares que se lhes

seguem a norte da costa; daí a sua primeira imp'ressão de

quu, ,ru* fundo de instituições comuns, e portanto matrili-

i,r"ur.r, os Kwakiutl tinham evoluído em sentido patrili'

near. Alguns anos depois, munido de novas observações'

Boas impressiona'se ainda mais com as semelhanças na

organizaçáo s,ocial dos Kwakiutl e dos Salish - a leste e a

sul. Em ambos os casos as unidades básicas da estrutura

social parecem formadas pela suposta descendência de um

antepassado mítico que construiu residência num determi-

nado local - mesmo se, depois disso, essa comunidade de

aldeia teve de deixar o território original e unir-se a outras

comunidades do mesmo tipo, sem por isso perder a memória

dn sua origem. Ora, os Salish são patrilineares e Boas vê-se

144

obrigado a inverter a hipótese inicial. Julga agora que osKwakiutl, originalmente patrilineares como os Salish, evo-luíram parcialmente para um regime matrilinear pelo contactocom os vizinhos setentrionais. Chama, então, às subdivisõesda tribo <<sept>>, conforme o sentido inicial da palavra, Ç[u€,na antiga lrlanda, designava um grupo bilateral de ascen-dentes; e renuncia a ((gens)), que substitui por <<cÌã> para

melhor acentuar a coloração matrilinear actual deste últimotipo de agrupamento. Esses clãs, sublinha Boas, podem ser

designados de três maneiras: uns têm um nome colectivo,forrnado segundo o do fundador; outros chamam-se pelo nome

do local de origem; outros, enfim, adoptam um nome hono-

rífico como (<os ricos>), <<os grandes)), ((os chefes>>, (os que

primeiro recebem>> (nos potlatch), <<aqueles sob cujos passos

a terra treme>>, etc.Precisando as indicações que anteriorrnente dera, Bo'as

explioa que, aquando do casamento, <<a mulher ttaz em dotel

ao rnarido,, a posição e os títulos do pai; mas o marido não Ifica a possuí-los como pro'priedade 'pessoal, antes os detém Iem benefício do'filho. E corno o pai da mulher, por sua vez, ìtinha adquirido esses títulos da mesma maneira (...), fica Iestabelecida uma regra de descendência puramente femi- Inina - embora sempre por intermédio do marido>>. Que esta -

regra híbrida milita pela anterioridade de um regime patri-

linear e não rnatrilinear, corno primeiro pensara, encontra-'oBoas demonstrado por muitos factos: o filho da irmã nãosucede a seu tio', a residência nunca é uxori- o'u matri-locale, ,por fi'm, e principalm,ente, as tradições lendárias vêemna descendência patrilinear do primeiro antepassado mas'culino a origem dos clãs e das tribos - ao contrário dospovos matrilineares do norte, que dão esse papel à descen-dência das irmãs.

Nem Durkheim nem Mauss que, em 1898-1899 e enrI"905-1906, respectivam,ente, discutiram as interpretaçõesde Boas; nem, cinquenta anos depois, Murdock aceitaram ahipótese de um regime matr,ilinear poder substituir directa-rnente um regim,e patrili'near; caberia a Goodenough (1976)realizar esta demonstração. Mas, pelo, menos para os autores

t45

Page 4: LEVI-STRAUSS, Claude - A organização social dos Kwakiutl

franceses, não havia dúvida quanto à natureza fundarnen-

talmente matritinear das instituições kwakiutl; discor-

dando de Boas, sustentavam eles que a basg destas

instituições era u- iitiaçao uterina' Não insistia Boas'

desde 1895-1897, na existência de um regime sucessório nas

famílias nobres? Do pai para o filho mais velho (quer seja

rapaz quer seia 'upu-túuit

mas também' por casamento' do

pai da esposa para o genro e' por intermédio ::1t^t:,::9

os filhos nascituros' orJ' este segundo modo de transmitt:: I

tinha tai innportância aos olhos dos Kwakiutl que um indivi \

duo desejoso de <<entrar numa casa)) onde não houvesse filhas | '

para casar desposava simbolicamente um filho e' não havend" lX

filhos, uma pafte ao to'po - um braço ou uma perna - do I

chefe da casa ou até uma peça da mobília' JUm importante artigo de Boas'publicado em 1920 marca

um novo rumo do seu pensamento' É que' entretanto' ele

tinha formado e posto a trabalhar um informador excepcio-

nalmente dotado: Cuo'ru Hunt' filho de pai escocês e mãe

tlingit mas nascido, educado e casado entre os kwakiutl'

Inquiridor exemplar, Hunt' recolheu ao-longo de anos milhares

de páginas "o*

t"fo'-es sobre a cultura kwakiutl que iam

das receitas cuUnarias da dona de casa até às tradições

dinásticas das linhagãs nobres e das, técnicas artesanais até

aos mitos. ora esseá materiais, organizados e publicados por

Boas (1921), ou'ifu'u*-"o a .reinterpretar os

11]1't^,n""possuía. Deles resu"ltava' em primeiro lugar' que' mals que a

tribo o'u o sept, a unidade fundamental da sociedade kryakiutl

era aquela que Boas designara sucessivamente por (gens))

e <<c1ã>> contot-u -o

u'pt"to patrilinear ou matrilinear que

the parecia oominani"' ttoep-ois de muito hesitan>' Boas

renuncia a estes termos e resigna-se a utilizar o nome indí-

gena numrym, 'porque <<esta unidade social apresenta catac'

terísticas tão especiais que os termos ((gens>' <<c1ã>> ou

mesmo <<sib>> induziriam em erro))'

De facto, Hunt afirma muitas vezes de maneira cate-

górica - e todas as genealogias nobres que ele recolheu o

confirmam - q"; ï'-"o0"'- kwakiutl ((nunca mudam de

l4t i

nome desde a origem, desde que o primeiro ser humanoapareceu na terra; pois os nomes não podem sair da famÍliados principais chefes dos numaym, antes devem ir para ofilho mais velho do chefe principal (...). E esses nomes nãopodem ir para o marido da filha: nenhum nome, a começarpor aquele que a criança recebe aos dez meses e até elatomar o nome do pai - o nome do chefe principal. EssesÍÌornes são charnados <<,nomes do mito>>. Entre a dízia denomes (é melhor entender: títulos) que um nobre kwakiutladquire em toda a sua vida, alguns - os mais importantes -continuam, pois, a ser propriedade da linhagem. Quanto aosoutros: <<os únicos nomes de um chefe principal de numoymque podem ser dados por ocasião de um casamento são osque esse chefe obteve dos sogros juntamente com os privi-légios; pois não pode transmitir ao genro os seus própriosprivilégios. Parece, portanto, que os títulos de nobreza se1agrupavam em duas categorias: os que não podiam sair da \linhagem e eram transmitidos de pai para filho ou filha por Ìdireito de primogenitura e os que o genro recebia do sogro Ipor intermédio da esposa mas para transmissão aos filhos. IEssas duas categorias (que, porém, os Kwakiutl negavam Ique fossem de naturezas diferentes) recordam respectiva-mente - observa Boas - , mutüís mutandís, por um lado,os morgados europeus; e, ,por outro, o modo de transmissãoclas jóias de família, que em teoria são propriedades de umalinhagem mas passam de mãe para filha quando esta casa.

Já se disse que os nomes e privilégios mencionados porHunt constituem, essencialmente, títulos de nobreza; de facto,incluem o direito exclusivo ao uso de emblemas figurados,comparáveis às armarias, e também de divisas, cantos, danças,funções nas sociedades secretas (conforme a terminologia deBoas, discutida por Mauss): confrarias que, entre o início eo fim do inverno - estação ritual - , substituern a sociedadecivil que vigora durante o resto do ano.

Todavia, as riquezas d,o numnym nã,o eram exclusiva-mente de ordem espiritual. Além dos objectos ornament.ais,como máscaras, toucados, pinturas, esculturas, travessas ccri-moniais, etc., incluíam um domínio fundiário constituído por

l'|'7

Page 5: LEVI-STRAUSS, Claude - A organização social dos Kwakiutl

terras de caça e de colheita, cursos de água, locais de pesca

e de barragens lque serviam também para a pesca) ' 'ltt:t

direitos territoriais átu* a"tu*ente defendidos: os legítimos

nr^"*ilttos não hesitavam em matar os intrusos'

Finalmente, ,o -rà,,

artigo de 1920, Boas completa as

suas informaçoes sobre o casámento' A exogamia de :!::1:

era mais frequente, como mostra- o simbolismo guerrerro

dos ritos matrimoúis; mas também são observáveis casos

muito claros de endogamia - por exemplo entre meio-irmão

e meia-irmã de mães ãiferentes ou entre o filho mais velho de

um pai e a sobriritru' nputu impedir - diz Hunt - que os

n.ì"í"*t"t suium au-tá*iìiu' Procedendo deste modo' conser-

vam entre eles os pti"itegio"' Mas também acontecia que' na

ausência de filhos, o gttt"'o' esposo de uma filha única' suce-

desse ao sogÍo na clhefia do numaym deste' Esse homem

mudava, portanto, â" ""*"V*;

se tivesse vários filhos enviava

uns para o seunLlmaym deorigem' para lhe sucederem' e con-

servava consigo o'-ït'oot' u ti* de assegurarem a perpe'

tuação do numaym da mãe' De um modo geral' no caso de

casamento entre cônjuges do mesrno.grau, os filhos podiam

ser repartidos ettã'ií "u*y^

matãrno e parterno e 'atê'

parece, os dos avôs ou bisavôs; mas cada indivíduo mantinha

uma certa liberdaie ã" ut"offt"' de tal modo que a filiação no

numaym, teoricamÀnte regida pelo- direito agnático' se apro-

ximava, de facto, -ã"

"* ãi't"*u de sucessão cognática'

Até à ,"u *oi'u' sobrevind a em 1942' Boas não deixou

de reflectir u""'"u ão' Kwakiutl nem de elaborar os materiais

recolhidos durante doze estadias sucessivas' escalonadas ao

longo de meio sec"i"' Publicados em 1966' os seus inéditos

apresentam u 't'u

Ut'i*a concepçã o do nurnaym (ou' como

the chamou posreriorm enle, numayma): <<Tais como foram

descritos o, nu*oi"*"o qo" precede' p'oderíamos pensar que

são análogo, *oJ'ltibs" 'ltrãs; ou 'gentes' de outras tribos;

mas a s.ru "sp"ciul "o"'titt'içao

não nos permite aplicar-lhes

cstes termo'' futa"Ao rigorosamente' o ni^^y^o não é patri-

lincar, pois - d";;; ã"-""oto' limites - uma criança de um

ou rlo o,rrro ,""o";;" ser atribuída por disposições testa-

ttttrttl.frrias u ou"ìï'i"lt"ãu'-ti"rtut de que descende ou até a

l4H

uma linha com que não tenha parentesco>>' Que vem então

a- ser um numayma? Para bem entender a sua estrutura'

escreve Boas, <<mais vale não ter em conta os indivíduos quo

o co,mpõem e considerat em vez disso que o numayma con-

siste num certo número de posições sociais' A cada uma

dessas posições estão ligados um norne' um (posto))' um

<<lugar a conservar>), isto é: uma categoria e privilégios' As

categorias e os privilégios existem em número limitado e

formam uma hierarquia nobiliárquica ("')' É esse o esque-

leto do numayma; os indivíduos, durante a sua vida' podem

ocupar várias posições e tomam os nomes a elas ligados>>'

De resto, é difícil afastar a impressão de haver neste

último estádio do pensarnento de Boas um regresso em força

dos aspectos matrilineares - apesar da repetida afirmação

de uma predominância patrilinear' Jâ por Hunt se sabia que

os germanos do mesmo pai podem casar entre si e que o

mesmo se não dá com os germanos da mesma mãe' Boas

acrescenta que, à pergunta <<de quem és tu-otr de quem é

ele - filho?>>, sempre se ouve responder com o nome da mãe'

O sogro proclama que, ao casar com a sua filha' o genro

(entra no seu numaymcL>> As testemunhas do casamento

fazem coro: <<Agora o genro entra na casa do sogro para

aumentar a gtandeza do seu nome))' Por conseguinte' na

altura da morte de Boas e numa época em que as institui-

ções tradicionais já tinham desaparecido quase por complcto'

o problema da sua naluteza- patrilinear - continua dc pó;

assim como o da coexistência de ambos os princÍpios' nÍl

hipótese da sua intervenção conjunta (mas' ncsso cilso'

segundo que modalidades?)' Compreende-se portanl"o quo

Boas haja renunciado a incluir o numdymo numo tipologiu

da organização social; rejeitando todas as cittcgorias suus

conhecidas por nenhuma delas ser aplicávcl' llrlus ttÍto podc

dar uma definição do numaymo e resigna-sc it tlcscrcvô-lct

comoumtipodeestruturasemequivalct t tct t t lsetrquivosdaetnologia.

t49

Page 6: LEVI-STRAUSS, Claude - A organização social dos Kwakiutl

Ora, esse equivalente existe fora da América' especial-

mente na Polinésia e na Indonésia' na Melanésia e até

em África, embora, em todos os seus estudos dedicados de

há vinte e cinco anos a esta parte aos sistemas ditos não-

-unilineares (que melhor seria chamar indiferenciados' a fim

cle os distinguir d";;;";as bilaterais' que são unilineares

mas em duplicado) t'l ' "t etnólogos não o tenham reconhe-

cido naquilo que '"àíá*u

ete ã' Podemos encontrar duas

razões Para isso' 'de

Em primeiro lugar' este tip-o de instituição não corncl

com nenhum dos #t-;tn* de ãescendência- unilinear' bili-

near, indiferenciada- ' QUê são tendencialmente tratados

como se fossem "I"go'iu'

separadas mas que nas institui-

iá., ao tipo do numayma se entrelaçam'

Para ter a certezadisto, basta considerar mais de pe.rto

a ârea geogtâflca onde se estabeleceram os Kwakiutl' Os

seus vizinho, *uir"iï;;";; os Nootka e os Bella coola'

têm as mesmas instituições'-u' qtlÏ' como entre os Kwa-

kiutl, se fazemu*putt'u' de um sistema de parentesco do

tipo dito havaiano (em que germanos e primos são designados

pela mesma patavrà) e de uma regra de descendência indife-

renciada. De facto' nada ot' quase nada distingue o minmints

bella coola dt ';'*y*"

tal como foi descrito no caso dos

i(wakiutl.

C) Num sistema bilateral ou ambilateral' elementos sempre bem

determinados do estatuto rcs19af tU: :1i":*tttdos'

uns na linha paterna

eoutrosnal inha*ui"" ' ì 'Umsistemaindiferenciado'pelocontrár io 'é um sistem" u- nt" - consoante os c,asos ê' Pof vezes' conforme

a opção de cada i"i**"uAo ou dos seus ascendentes - qualquer ele-

menio do """t*"o

ïiã" J"ïtrunsmittl^:* qualquer das duas linhas'

Nos Kwakiutl, 'u JJãu"tentos do estatuto respectivamente transmr-

ticlos na lintra agná-icu u no' cadamento Íossem de natureza diferente'

o sistema 'u'i"

uluïtiir'-t'-"u'o contrário' seria indiferenciado' o actual

trr't.tt<Itl da u""u^""iulu" disponível não permite decidir esta questão'

Se, porém, nos deslocarmos um pouco tnais lrlnp"tt ltttt 'tt

norte, tudo parecerá modificar-se' Os Tsimshian t'Ôttt tltrt sttt-

tema de parentesco ;;;ú i;úYês; o dos Haida c dos 'l'lirtp'll

aproxima-se do tipo crow; e todas estas três tribos s{lo I't'ttn-

camente matrilineares' No entanto' em nenhum 1":|t'.:..1i'l-

casos se encontra' "ï'

t'"iauaes de base da estrutura socittl'

aquela composição homogénea que seria de esperar nunt

regime de descendc*iu "ãifi"ear'

Entre os T'simshian' rtrui$

que de unidades, trata-se de agregados constituídos por untu

linhagem dominantl ã ã" ""tÃt

ãue the estão' subordinados

sem que corn ela tenham, seÍnpre, raços de parentesco. Entre

os Haida e os ftingit '--i'"u'ait'"t híbrido do regime da pro-

priedade resulta dã vários factores: abandono de antigos

dornínios e aquisição de outros' por ocupação e uso; conces-

são de domínios "

ì-ú*"t"s; iransferência de títulos para

compensação de u"u"i"io' ou de outros danos; anexação

por vizinhos Ae Oireitos ou títulos na ausência dos herdeiros

naturais, etc"Corno aplicar de maneira tão pouco rígida umas regras

de descendência e ã" 'uces'ão

formuladas em lslrnss tão

estritos? o problema não se põe em relação aos Kwakiutl, aos

Nootka e uos neiu óootu, que exploram a fundo (e mesmo

mais, se pensarmos nos pseudo-casamentos dos Kwakiutl) a

elasticidade oo set 'i'**u

cognático e podem' desse modo'

revestir toda a "'pã"i"

de manobras sociopo;líticas com os

ouropéis ao p"'""i"'co' Mas' pelo contrário' as regras dos

Tsirnshian, d"' ;;i;; s aos Tlingit parecem' à primeira

impressão, demasiado rígidas para que se deslize de um

plano para o outro; e também o papel do parentesco propria-

mente dito se r"ririú",'*tivo pãlo qual as combinações ins-

piradas por outros *On"l' aparecem mais às claras' Em

ambos os casos'a vida local mistura inextricavelmente os

laços que resuttaà da t'istotia política ou económica ou que

por ela sao criados "o-

ot laços que reclamam basear-se em

genealogias reais ou supostas'

Os Yurok, pequena população -costeira

do norte da Cali-

fórnia, ot",""""'-"o' o"ito exemplo-. da.manelll^:o'tttn, uto

regra de descendència unilinear se dissolve' por assim dïzcr'

l l - r l

I ttO

Page 7: LEVI-STRAUSS, Claude - A organização social dos Kwakiutl

a-o contacto com instituições do tipo que temos vindo a con-siderar. De facto, os Yurok, ao contrário dos Tsimshian, dosHaida e dos Tlingit, são patrilineares. Mas Kroeber, que osestudou assiduamente (os Yurok têm, na sua obra, um lugarquase comparável ao dos Kwakiutl na obra de Boas), acen-

tua que <<todavia, um grupo de aparentados nunca está cir-

cunscrito, corno o estariam um clã, urna comunidade de aldeia

ou uma tribo. Esbate-se gradualmente em inúmeras direcções

e funde-se com outros também em inúmeras direcções>>. Por-

tanto, entre os Yurok, <<o parentesco funciona de modo bila-

teral e, portanto, difuso, pelo menos em certa medida; de

maneira que não existia qualquer unidade social formada por

indivíduos aparentados uns com os outros, actuando em con-junto e capazes de acção colectiva otganizada>>.

É notável que, em tal situação, Kroeber não queira reter

senão os aspectos negativos. Os Yurok - escreve - <<não

têm sociedade, enquanto tal, nem organizaçã,o social (...). Na

a-usência de governo, não conhecem autoridade (...). Os

homens (chamados chefes) são indivíduos que, pela sua for-

tuna e pelo seu talento pata a conservar e tltilizar, reuniram

ern volta das suas pessoas um agregado de parentes, clien-

tes e semi-dependentes a quem prestam assistência e protec-

ção (...). Termos tão familiares como 'tribo', 'comunidade

de aldeia', 'chefe', 'governo', 'clã' não podem ser utilizados

a respeito dos Yurok a não ser com extrema prudência ('..).

Tomados no seu sentido habitual, são-lhes totalmente inapli-

cáveis>>.É difícil conceber que uma colectividade humana que se

distingue das outras pela língua e pela cultura possa ser tão

invertebrada. Na realidade, as instituições que estruturam

a sociedade yurok existem: são, em prirneiro lugar, as cin-

quenta e quatro <<cidades>> pelas quais se distribui a popula-

ção; e, principalmente, no interior de cada uma delas, as((casas)). Eis a palavra: a mesma, de resto, que os Yurok

usam, na sua língua, para designar esses estabelecimentos,em princípio perpétuos, com um nome descritivo inspiradopcla localização, a topografia local, a ornamentação da

l5: Ì

fachada, a função cerim,onial, nonl(ì osrjo do rlttitl <Icriva ocio ou dos seus proprietários.

Assim, por exemplo, o senhor da c: l ts lr lur ' r i1r,ot tor, r tacidade de On'len-hipur, chama-se F{a'ii1;otìttt 'r; olrin; c o tLtcasa meitser, na cidade de Ko'otep, Ke-nlci tsot ' . ( )r ; t t 'ss; tscasas, ern qrìe Kroeber só considera a técnicit <It' cottst.t'ttt;lìoe a função utilitária i(só fala delas no capítulo cftr llrrtrllrool,tcf the Indians of Californio dedicado à ctlltura trral.crirtl dosYurok; e omite a sua existência quando passa ao tritl lttttcltltrda organização social), constituem, de facto, pessoas Ittotrtis.

Todos os textos indígenas, recoihidos pelo próprio Krot:lrt't '

ou pelo seu colaborador indígena Robert Spott, o estabclr'-

cem de modo indiscutível. Assim, a propÓsito da dissolt"t<.:lìtr

de um casamento: <<Uma jovem de Sa'a tinha contraído urn

casamento pleno (isto é: pelo quai fora pago um preço elc-

vado) na casa wôgrvu de Weitspus>>. O marido morreu e,passado algum tempo, ela resolveu regressar à cidade natal

com a filha ainda pequena. <<Os parentes entregaram, por-

tanto, o pagamento matrimonial à casa wôgwu de Weitspusporque queriam ficar com a criança' Mas a casa wÔgwu só

quis aceitar metade para que a ctiança não passasse a ser

ilegítima (..). De iguai rnodo, se a mulher tivesse sido

morta, ou se tivesse morto ou ferido outra pessoa, a corn-pensação pecuniária deveria ser repartida pelas duas casas>>.

Neste caso, como em todos os demais que fervilham nos

textos, não são os indivíduos nem as famílias quem actua:

são as casas, únicos sujeitos de direitos- _ellev_91es' Quando,junto ao leito de morte de K'e-(t)se'kwetl, da casa tsekwetl

de Weitspus, a mulher e a sobrinha disputaram a herança do

nroribundo, este decidiu a favor da sobrinha antes de expirarporque, disse, <<a fortuna não lhe pertencia pessoalmente mas

sim à casa tsekwetl>>.Mesmo que se tenha escrúpulos em exprimir dúvidas, ti

lícito perguntar se Kroeber não terá procedido mal ao des-crever a otganização social dos Yurok exclusivamente ctrtfunção dos aspectos que lhe faltam. Mas, se houve faltit,csta é menos do grande professor que da etnologia sua cotì-

l l t : Ì

Page 8: LEVI-STRAUSS, Claude - A organização social dos Kwakiutl

temporânea, que não dispunha, no seu arsenal institucional,do conceito de casa mas apenas dos de tribo, aldeia, clãe linhagem.

Ora - e é esta a segunda das razões que anuncifsl6s -,para reconhecer a casa, teria sido necessário que os etnólo-gos olhassem para a história: pata a da idade Média euro-

peia, certamente, mas também pata a do .Iapão dos períodos

Ileian e seguintes, para a da Grécia antiga e para muitas

outras ainda. Para ficarmos pela nossa Idade Média, é muito

reveladora a comparação da definição dada por Boas para

c numaymqkwakiutl (vide p. 149) com a que nos vem da pena

de um medievalista europeu ao procurar estabelecer com

ev.actidão o que é uma casa. Depois de sublinhar que a

linhagem nobre (Adelsgeschlecht) não coincide com a linha-

gem agnática e é mesmo, muitas vezes' desprovida de base

biológica, renuncia a ver nela mais que uma <<herança espiri-

tual e material, que compreende a dignidade, as origens, o

parentesco, os nornes e os símbolos, a posição, o poderio e a

riqueza, e é assumida (...) em atenção à antiguidade e à dis-

tinção das outras linhagens nobres>>. Como se vê, as lingua-

gens do etnólogo e do historiador são praticamente idênticas.

Estamos pois, sem dúvida, em presença de uma única e

mesrna instituição: pessoa moral detentora de um domíniíì

composto simultaneamente por bens materiais e imateriais Ic que se perpetua pela transmissão do nome, da fortuna

" | Ìdos títulos em linha real ou fictícia, tida como legítima sob / 'a condição única de esta continuidade poder exPrimir-se na /linguagem do parentesco ou da aliança e, as mais das vezes, Iem arnbas ao mesmo temPo. l

Na memória a que acabamos de fazet menção, Schmid

observa que a origem das casas medievais se mantém obscuraporque até ao século xt, cada indivíduo era conhecido por

um só nome. Na verdade, os nomes simples e não recorrentesrrada ou muito pouco nos podem dizer; mas os nomes antigoscompõem-se, por vezes, a partir de nomes de ascendentes.Ora, não é de excluir que existam relações entre as váriasrn<rdalidades observáveis desse procedimento e certas varia-

t5,1

ções da estrutura social: belo tema cm l)orsl)octiva para acolaboração enrfe linguistas, etnólogos c hist.oriadorcs.

Na Idade Média, o processo mais antigo Í'oi t.irlvt-.2 umacombinatória fechada ou em campo fechado: puis <:lrarrradosEberhart e Adalhilt chamam a seus dois filhos luìÌ ritpiìz cuma rapaúga, Adalhart e Eberhilt, respectivarnonl.c. Hárnenos de quarenta anos observei o mesmo proccsso nu Arrra-z6nia, mas estendido a três gerações. Os nomes mcrovÍngiose carolíngios ilustram uma combinação mais livrc, l)or scraberta na escolha e utilização dos morfemas. Os príncipcsmerovíngios chamam-se Théodebert, Charibert, Childcbcrt,Sigebert, Dagobert; mas também Théodoric, Théodebald...Na família de Carlos Magno vamos encontrar Hiltrudc,Himiltrude, Rotrude, Gertrude, Adeltrude, etc.; mas o mor-fema inicial Rot- produz ainda: Rothaïde Rothilde; o mor-fema inicial Ger-: Gervinde, Gerberge; e o morfema inicialAdel-: Adelinde, Adelchis, Adelaide, etc. Por outras pala-vras, o mesmo radical admite vários sufixos, o mesmo sufixovários radicais e o sistema antroponímico é capaz de engen-drar formas novas por enxameação - digamos - em direc-

ções opostas. Fechada num caso e aberta no outro, é sempreuma combinatória. Uma terceira fórmula, que vigora sempreem determinadas famílias ou regiões, caracteriza-se pelasrepetições periódicas: o nome do neto reproduz o do avôpaterno ou o nome do filho da irmã o do tio uterino.

Assim, a alternância dos Pepinos e dos Carlos nos pri-meiros Carolíngios: re5ra geral, do avô paterno para o ncto,mas o segundo Pepino, sucessor do seu tio uterino, era I'ilhoda filha do Pepino origem da linhagem. As três fórmulas queindicámos não formam uma série evolutiva: cocxistctrt, lturvezes, no tempo. E todas elas se encontram tambónr cnt.ro osíndios a que fomos buscar os nossos exemplos. Os Kwakiutlutilizam ambos os tipos de combinatória, a I'ccltitclrt t' aaberta, e dizem <<cortar o nome em dois>> llara clcsigtìnr urnaforma mista. Quanto à fórmula periódica, podc scr obscr:-vada nos Tsimshian, que acreditavam na rcirrcarnaçÍio tlo avôna pessoa do neto.

155

Page 9: LEVI-STRAUSS, Claude - A organização social dos Kwakiutl

É verdade que os sistemas de parentesco europeus nao

são do tipo havaia; ;; ; dos K-wakiutl nem do tipo

iroquês como o d";';ti*;;ian nem do tipo crow como os

aos ttaida e dos Tlingit' Os :i't"*-u-:,:"'of"t" são habitual-

mente relacionado' "ã* o tipo esquimó' que se caractetlza

ffi " +ì; "*':-,* ^ï'f;:**"gt#ï": ïï::ï.4 ilÏï::e irmãs e os prlmos' tJustrrYe'!v'

:^;^ ^^-; ' rnr{e nâ mesma

esta distinçao, o u'iiigo 'i"u*u

fralcês confunde na mesr

designação os primos e os parentes mais afastados' Para

primeiro significado"ão-t"t'o'primo" Littré ainda sugere:

<<Diz-se de todos ";n;";;t

o"ìr1ta3t que não aqueles que

têm um nome t*ã"*;- assimilaÇão cornparávet :'i""

fazem os sistemas havaianos entre germanos e pnmos'

salvo pelo desfasamento de um grau' As-sim' dá aproximada-

mente a mesma riO"tã"a" de disfarce das manobras sociais

""-p"ft i""s sob a capà do parentesco'

***

Ora, as casas medievais europeias apresentam todos os

traços tantas """"'-fu'udoxais-q":'

em relação aos Kwa-

kiutl, causavam o J*futuço de Boas e' relativamente à

outros povos, "o"titïïï- "ti"t

dificuldades aos etnÓlogos'

Vejamoi esses traços um por uT ,---, ,.

Europeia ou ináia' u "u'u

possui um domínio' que con-

siste em riquezas iãáeriais e riquezas materiais' O chefe

da casa é rico, àt;;;;t mesmo imensamente rico' corno

sublinha Montesquieu ao analisar o testamento de Carlos

Magno; de qualque'-áoao' é suficientemente rico para que a

sua fortuna constitua um instrumento político e um meio

de governo. tuf como '"

Ai' em Gérard de Roussillon: (<Dar'

eis as suas torres'ã"u*uiutt'' As riquezas da casa incluem

também os nomes' títulos e prerrogativas hereditárias -

aquilo a que se "f'u*ot'u

<<honrarias>> - ' 4 que se deve acres-

centar, tal como #;; i-Jio'':tb:1t de origem sobrenatu-

ral: a capa de S' Martirúo' a Sagrada Ampola' a bandeira

l6B

de S. Dinis, a coroa de espinhos' etc' Fora da França: a

lança sagrada de Constantino' a coroa de Santo Estêvão ou'

na falta dos obÍecio'' u "u

recordação: assim' temos o

graal e a lança aas i""aus arturianas' a quc a abadia de

Glastonbury lançou sortilégio para aumento do prcstÍg'io dos

"""ï:,ï;:ï asota o parentesco fictício; a antiga l'rança

também não se coibiu de recorrer a ele' Alguns cronistas'

Drovavelmente a isso obrigados' pretendera m fazet descender

ãs Capetos Ao" Cu'-oringiãt p"iu taz!7 extremamente l'rnta-

sista de a av6*ut"'ltï ãã trË"'iq"e I ter sido casada em pri-

meiras núpcias "o*-l-t"t

V' o úiti'mo Carolíngio' morto sem

deixar herdeiro' N; ;é*1" xr' o dtlque da Borgonha' Eudes-

-ÏIenri, quis que ;;* genro Otto'Guilherme perpetuasse

a sua linhagemr N; ;;"1ï lx' Luis da Provença pretendeu

ter ascendência caro;tíngia-menos. por a mãe seri:-tt"

linhagem n," noo-'i"t-ïiilt" adoptivì de carlos-o-Gordo'

E conhece-r" o nunJi n* iï"r- dúrante a guerra dos cem

Anos, a adopção â" g'áou'ao V ool- Carlos VI e Isabel da

Baviera u* autri*ïlro ão p.oprio fitho, o futuro carlos vII'

A existênci" ;;;; át i<*urti"tl de uma linha sucessória

que vai do avô "";;;;";

por intermédio da filha e do marido

desta ainda "ao

a"i** dL alimentar discussões no seio dos

etnólogos. O'", t"ã-tipo de sucessão parece ter sido muito

frequente ,'u uitã -Ë*opu'

onle- oor várias ocasiões se

pôs a questão o" -íuUuo

se ìs mulherãs podiam <<Ïazet ponte

e passagemu, ot.r 'u:ãt

se' tendo um filho' lhe podiam trâns-

mitir direito, qo" ãias proprias não podiam exercer (fora

o caso de atguns-fu"oo, específicos que podiam ser herda'

dos por mulheres)' Ainda hâ.rcu1 iecordámos a adopção

de Eduar o v; u.áu adopção baseou-se, entre outras coisas,

no facto Ae o Uisavo' Eduãrdo II' genro de Filipe-o'Belo' ter

podido subir ao trono de França em caso de sucessão per

ux.orem.No secuú xvl' Montaigne troça da importância que

os seus "orrr.*porárreos

dao à figura das armas, pelo facto

de <<um genro '"i' u t'u"tportá-la para outra família>>'

Com efeito, foram inúmeros os contratos de casamento

que davam uo g;;; o direito' mas também impunham a

157

Page 10: LEVI-STRAUSS, Claude - A organização social dos Kwakiutl

obrigação, de tomar as arÏnas do sogro que não tivesse her'

deiros do sexo masculino, para as transrnitir aos filhos' Já

no século xI tomava vulto ã lenda segundo a qual o último

Carolíngio, Luís V, morto em 987' legara' juntamente com- o

leino, a mulher ou a filha ao primeiro rei Capeto' Na Escócja'

na Bretanha, no Maine e em Anjou' a filha herdava os títulos

r" "a"

houvesse filho; o genro - incomíng husband' como

se diz em inglês - tomava- os iure uxoris ao ((entrar na

casa)) - que é a mesma expressão dos Kwakiutl' Por von-

tade de Henrique I, a coroa de França passaria para- :eu

cunhado Baldúno da Flandres se o legítimo herdeiro'

Filipe I, morresse na juventude; nesse caso' o conde da

niunat"t, geffo de Roberto-o-Pio' tornou-se herdeiro per

uxorem.Boas surpreendera-se porque' a despeito da sua orienta-

ção patrilinear, os Kwakiutl davam semlpre o nome da,mãe

quando se lhes perguntava de quem eram filhos (vide p' 149)'

Num interessante ãrtigo, D' Herlihy observa e comenta o

lugar não despiciendo ãue e dado ao matrónimo' em vez do

patrónimo, petos textos juridicos da Idade Média euro'peia'

Considerando a generalidade do fenómeno' as causas histó'

ricas e locais avançadas por Herlihy não parecem absoluta'

mente convincentes. Tal como os nobres lnvakiutl que se

vangioriavam de possuir títulos herdados em ambas as linhas'

os Capetos aplicaram-se à aquisição de uma ascendência

carolíngia tanto na linha paterna corno na linha materna'

mas só o conseguiraln em três fases: primeiro' graças ao

parentesco fictício (p' 157); depois' apenas na linha-mat€rna''p"to

"uru*ento de Luís VII com uma descendente dos Caro-

iingios que foi mãe de Filipe Augusto; e este' ao casar' por

sua vez, "orn

o*u Carolíniia, pôãe finalmente legar a dupla

ascendência ao filho Luís VIII'

Tal como strcede entre os Kwakiutl' os Nootka e os

Bella coola, durante muito tempo punha-se em lugar princi-

pal aquela das duas linhas que mais prestígio proporcionava'

Schmid cita o caso de um senhor feudal chamado Gerold que

era, teoricaÍnente, origem da casa e teve um filho Ulrich

e uma filha Hildegardl ora, os documentos nunca citam os

1õ8

Geroldingern; foi Ulrich, e não o pai, quem fundou uma

casa, a dìs Udalrichingern, sem dúvida por causa da glória

proporcionada pelo casamento da irmã com Carlos Magno'

A casa nasceu, assim, da sua aliança com os CarolÍngios;

mas quem lhe deu o nome foi o irrnão e não a irm6'

Vindo ao de cima, o princípio patrilinear abafou as

antigas tendências de ponderação das vantagens de uma

e outra linha e de manutenção de um equilíbrio entre elas.

MasháusospopulaÏesqueconservamvestígiosdessasten.dências. Na região do Languedoque-Provença' e talvez tam-

bém noutros locais, ainda hoje se observa um esforço de pre-

servação da simetria entre as duas linhas' Em Bouzigues' na

comuna de Hérault, dá-se o nome do pai do pai ao filho mais

velho e o do pai da mãe ao mais novo; e, simetricamente'

o nome da mãe da mãe à filha mais velha e o da mãe

do pai à mais nova. O efeito de espelho é ainda mais visível

se considerarmos o parentesco espiritual: o pai do pai e

a mãe da mãe são padrinho e madrinha do filho e da filha

mais velhos; o pai da mãe e a mãe do pai são-no dos

mais novos. Por outro lado, acrescenta-se por vezes ao

nome um sobrenome' mas só têm direito a fazë-lo os habi-

tantes da aldeia. Quer isto dizer que, além da dualidade

paternos/maternos, se tem de dar lugar à dualidade entre

os <<naturais>> e os de fora.

Esta segunda forma de dualismo aparece já nas leis

bárbaras, em que persiste uma competição sucessorial - em

graus, de resto, variáveis - entre as linhas directa e cola-

íeral, por um lado, e os vicini, por outro; este termo denota

um esiatuto jurídico cujas regras precisam o modo de aqui-

sição (Lei sálica,' títuto XLV). O dualismo da filiação e da

residência ressalta também da existência simultânea daquilo

que, mesmo no caso dos nwmaymo kwakiutl, se pode chamar'

óo-o ,tu antiga Europa, ((nomes de raça)) e ((nomes de

terra>>.Parece que, na Idade Média, os descendentes cogná'

ticos ou agnáticos de um antepassado ilustre tomavam nomes

derivados do dele: Leitname em alemão. Juntava-se-lhe depois

o nome de terra; e o nome antigo desempenhava a função de

159

Page 11: LEVI-STRAUSS, Claude - A organização social dos Kwakiutl

nome próprio colectivo' Por altura dos séculos XII e XIII teria

corneçado o uso' pelos membros da mesma família' de nomes

cterivados das suas propriedades fundiárias e dos seus palá-

cios; tomava-se o 1.,o*. uo receber a herança, que tanto

podia ser materna como paterna' Os nomes de terra desem-

penharam então o papetr de nomes verdadeiros' e ao mesmo

tempo afirmava-se o carácter da residência como centro de

u"çáo política. A habitação de um nobre passou a ser uma

(casa nobre>), na medida em que representava o ponto cen-

tral de ctistalização do poderio, que dali dimanava'

Não podemos ir no passado dos Kwakiutl suficiente-

mente longe para descobrirn'los se' entre eles' se deu a

mesma evolução. Mas, na época ern que Boas os conheceu'

as numvyma designavam-se a eles próprios ou com nomes

de raça, termos colectivos derivados do nome do fundador

naítico, ou com nomes de terra, que remetiam para o local

de origem real ou suposto; um terceiro tipo de designação'

por teimos honoríficos, tendia a suplantar esses dois: uma

àvoltrção comparável, taïvez, àquela que, na Europa, atenuou

gradualmente a conotação geográfica dos nomes das casas

] Bourbon, orléans, Valois, Sabóia' orange' Hanover' etc'

- e thes associou principalmente valores de poderio e de

prestígio.Trata-seounãodeumaconvergência,nemporrsso

deixa de haver nisto uma dialéctica da filiação e da resi-

dência como traço comuln' e sem dúvida fundamental' das

sociedades <<de casasr>. Tanto nas Filipinas como noutras

regiões da Indonésia, e tarnbém em muitas partes da Mela-

nésia e da Polinésia' os observadores iá' hâ muito assinala-

ram os conflitos de obrigações resultantes da dupla pertença

a um grupo de descendência bilateral e a uma unidade resi-

denciai: aldeia, lugarejo ou aquilo que, na nossa terrninologia

administrativa, designaríamos por <<bairro) ou (quarteirão>>'

Quando as unidades de base da estrutura social estão

cstritamente hierarquizadas e quando esta hierarquia distin-

guc também os mernbros individuais de cada unidade con-

soante a sua ordem de nascimento e a proximidade em

lr,lar,rir<l ao antepassado comum, é evidente que as alianças

l ( i ( l

matrimoniais, contraídas no interior ou no clxtcri<lr, só podem

realizar-se entre cônjuges de estatutos dil 'crctlttrs ('). Nessas

sociedades o casamento é, portanto, incvitavt:ltttcntt-', aniso-

gâmico. Não podendo escotrher senão entrc a lripol,,rtt.ttia c a

hipergamia, tambérn neste aspecto essas socicdadtrs t'Ôm dc

combinar dois princípios. Utna memória redigi<Ia, 1lt'ovavcl-mente, entre 1484 e 1491 e intitulada tres Honneurs <le lrt <:our

- verdadeiro tesouro de observações etnográficas publicadrr

no século XVIII por La Curne de Sainte-Palaye - pircr bom

às claras este aspecto. A sua autora é Aliénor de Poitit:rs,

viscondessa de Furnes, filha de uma dama-de-honor dtr

Isabel de Fortugal que acompanhou a atna quando esta loi

casar com Filipe-o-Bom' Ora, esta minuciosa descrição dos

usos vigentes na corte da Borgonha sugere qì're a terrninolo-

gia francesa do parentesco por afinidade tal como a conhe-

cemos hoje em dia, terâ resultado de uma espécie de deslize

semântico. No século XV os epítetos <<beau> e <<belle>>, apos-

tos ao termo de parentesco, eram usados por uma pessoa

de estatuto superior quando se dirigia a outra situada rnais

abaixo numa rede de parentesco directo ou colateral ou

ainda por aliança: quando, em 1456, o delfirn, futuro Luís XI,

revoltado contra o pai, se foi refugiar na corte da Bor-

gonha, chamou <<be1-oncie>r a Filipe-o-tsorn ajoelhado diante

dele. <<MadaÍne ma soeur)) e <<Belle-soeun eram os termos

com que se falava a parentes prÓximos mas que tinham

feito casamentos desiguais.É, pois, apenas devido ao carácter hipergâmico ou hipo-

gâmico do casamento que estes termos ocorriam principal-

mente nas conversas entre parentes por aliança' O dtlque

da Borgonha, João-sem-Medo, ajoelhava diante da nora'

Michèle de França, e chamava-lhe <<Madame>>; esta respon-

dia tratando-o, por <<Beau-père>>. Igualmente, Filipe-o-IJrttlt tl

(t) <<L'Astrëe é um romance da nobreza ("')' A prìtrtcirrt pr't'

gunta que um nobre punha a outro nobre quando sc olì(lolìllÍlvrtltl

era sernpre, e continua a ser, a seguinte: <<A que casa, a tlttr' l:rtrlllitt

pertence?>>. E a esse nobre é dado um determinado lutÌrtr t t i t l r i t ' t r tr-

quia consoante a resposta.>> N. El ias, Ld socíété d<t cttu|( l) i t ' f f Í i / i : t t ' l t t t

Gesellschaft, 1969), Paris, Gallirnard, 1974, p. 291.

l ( ; l

Page 12: LEVI-STRAUSS, Claude - A organização social dos Kwakiutl

a mulher, Isabel, chamavam <<Madame>> a sua nora Catarina'

filha do rei Carlos VII, e ela chamava-lhes <<Beau-père>> e

<<Belle-rnère>>. No entanto - nota a autora -' esta maneira

pãf" q*f dois interlocutores assinalavam os respectivos esta-

tutos so era permitida, e mesmo prescrita' nos graus supe-

riores da nobreza: reis e rainhas' príncipes e princesas'

duques e duquesas; era proibida às casas de graus inferiores

(sy comme de Comtesses, Vice-Comtesses' Baronnesses' dont

if; -

grand nombre par plusieurs Royaumes et Paystl e)'

Nestas casas, <<ne leur ãppartient aussy d'appeler leurs

pu""tr, Beau'cousín oa Belle-cortsifle' sinon autrement que

mon cousin et ma cousine, et quiconque en use autrement

ãrr"-ai", est, il doibt estre notoii à chacun que cela se fait

par gloire et présomption et doibt estre réputé pour nul'

à cause que ce ,oti "ho'"'

volontaires' déréglées et hors do

raisoru> (').Assim se explica que o uso de <<beau>> e <tbelle>>' reser-

vado às casas de sangue real ou próximas do trono' tomasse

uma conotaçao puramente honorífica aos olhos da burguesia'

Ainda no século xvIII, a Enciclopédia de Diderot e d'Alem-

bert observa, no artigo <<Bru>l (<<nora>>) ' que <<belle-fille é de

uso mais fino>>. a cãnotaçao de um estatuto relativamente

inferior, perceptível apenas aos primeiros utiliza9-ol:::, o"

passou despercebida aos outros ou foi rapidamente esquecida'

Nas sociedades <<de casas))' e ao contrário do que os

etnólogos observam noutros casos, os princípios da exoga-

mia e da endogamia já não são mutuamente exclusivos'

Como vimos a respeito dos Kwakiutl' o casamento exÓgariãl

serve para captai novos títulos e o casamento endÓ8amo I

;; ";itt quì, depois de adquiridos' eles saiann da casl

(t) <<Tais como as de Condessas' Viscondessas e Baronesas' de

que há um grande número em rnuitos Reinos e Países>r (N' T')'

(') <Não lhes àabe também chamar aos seus parentes Beou-

-cousín ou Belle-cousine, mas unicamente meu Primo ou minha Prima'

c a quem Orr", n* nooceda de modo diferente do que fica dito'

deve ser-lhe teito t'oiar que isso se faz por glória e presunção e

rklvc ser considerado sem nenhum efeito' por serem coisas caprichosas'

l'ora das regras e sem razão)) (N' T')'

I ( ; i Ì

i

I

É então de boa estratégia utilizar conjunli.rrrrcnlc rrntlr()s os

princípios, consoante o ternpo e a oportrruidirtkr, pirnr tttitxi-

mizar os ganhos e minimizar as perdas.

Do mesmo modo, as casas europeias senì l l l ' t ' l t r ;sot ' i l t t ' l t t t t

as duas práticas: o casamento a distância e o cltslttttt 'ttltr

muito próximo. As genealogias apresentam muitos cxt:tttl l los

de casamentos próximos qìle reproduzem todas as fot'ttuts

clássicas conhecidas dos etnólogos: com a prima cruzada,patrilateral ou matrilateral, ou até, poderíamos quase dizt'i',

<<à australiana)), como foram os casos de Filipe-o-Bom e dc

Francisco I, que casaram, um e outro' com a filha do filho

do irrnão do pai do pai... Também podernos encontrar exem-

plos de troca generalizada, corno se verifica entre a inicial

casa capetiana, a casa da Borgonha e a casa de Autun'

O casamento de Carlos VIItr com Ana da Bretanha, pelo

contrário, foi- diplomaticamente falando - muito afastado,pois tinha por finalidade preparar a reunião da Bretanha

à coroa de França; mas o contrato restabelecia logo o equi-

líbrio ao estipular que, em caso de morte do marido, a

viúva casaria em segundas núpcias com o ocupante seguintedo trono: foi, de facto, o q-ue se passou, quando o duque

de Orléans sucedeu ao prirno segundo com o nome de

Luís XII. Na geração seguinte, inverteu-se o ritmo: ao pri-

meiro casamento de Fratrcisco I em grau próximo seguiu-se

ír sua união, afastada, com Eleonora de Habsburgo, irmã

cle Carlos V.Entre os povos sen'l escrita, tal como na Europa, tam-

bém o cálculo político inspira e cornanda este movimento

a.lternado de expansão e de retracção das alianças matrirno-niais. Em vários locais e em diversas épocas, causas igual-

mente políticas levaram à conciliação de dois outros prin-

cípios também antagónicos: o direito hereditário e o direito

conferido pelo voto. Foi para ultrapassar essa oposição que

rrs primeiros Capetos fizetam coroar os filhos, sistematica-nlente, em vida. Tinham, com efeito, de assegurar o con-scntimento - tácito que fosse - dos dignitários do reino

llara reforçar os direitos ainda incertos do sangue e dit

lrrimogenitura: jurata fidelítate ab omnibus regni principilttts,

| ( i : Ì

Page 13: LEVI-STRAUSS, Claude - A organização social dos Kwakiutl

T

como se escreveu, de forma reveladora - embora em cir-

cunstâncias diferentes - a propósito da sucessão de.' Henri-

que I. Os Kwakiutl e alguns dos seus vizinhos possuíam um

regime sucessório análogo e não menos ambíguo' Era de uso

o pai transmitir publicamente ao filho de dez ou doze anos

todos os seus títulos durante um potlatch que proporcionava

a ocasião, mas além disso traduzia a necessidade de obter

o consentimento colectivo e de neuttalizat publicamente

eventuais pretendentes' Diferida no primeiro caso (já que

o herdeiro não,reinará senão depois de morto o pai) e ime-

diata no outro (em que o'pai não desfruta já de qualquer dos

títulos depois de os transmitir), a fórmula que consiste em

um pai fazer herdar o filho ainda em vida fornece, aqui corno

ali, um meio (talvez o tsnico possível) de vencer a antinornia

entre o direito da raça e o direito'da eleição.

Em todos os planos da realidade social, da família ao

Estado, a casa é, portanto' uma criação institucional que

permite conciliar forças que, onde quer que seja, parecem

não poder aplicar-se senão com exclusão uma da outra,

devido às suas orientações contraditórias. Descendência patri-

Iinear e descendência matrilinear, filiação e residência, hiper-

gamia e hipogamia, casamento próximo e casamento' afas-

iado, raça e eleição: todas estas noções, que habitualmente

servemaosetnÓlogosparadist inguirunsdoso'utrososváriostipos conhecido's de sociedade, reúnem-se na casa' como se

o espírito (no sentido do século xvltr) desta instituição tra-

duzisse, em última análise, urn esforço para superar' em

todos os domínios da vida colectiva, princípios teoricamente

inconciliáveis' Ao meter - por assim dizer - <<dois coehof

no mesmo saco)' a casa realiza urna espécie de viragem Itopológica do interior para o exterior e substitui uma duali-

|dade interna por umra unidade externa' O que se aplica tam- J

bém às mulheres, ponto sensível de todo o sistema, que este

temdedef in i rcombinandodoisparâmetros:oseuestatutosocialeosseusatract ivosfís icos-podendosempreumdelesservir para contrabalançar o outro' No Japão dos séculos x

e xI, o ctã Fujiwara assegurou de modo duradouro o seu

podernosassuntospúbl icosfazendocasar,sistematicamente,

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as suas irmãs e filhas com os herdeiros do trono inrpuliirl.Em sistemas desses, de facto, as rnulheres, habilmentc rrrani-puladas, desempenham o papel de operadores do poder. Aossucessivos casamentos de Leonor da Aquitânia (e de tantaspessoas da sua condição e do seu sexo) corresponde o cos-tume kwakiutl de obrigar as raparigas da alta nobreza aquatro casamentos sucessivos, cada um dos quais lhes con-feria um grau de honorabilidade suplementar.

Como explicar estas propriedades tão especiais, masrecorrentes em diverso's pontos do mundo, das sociedades<<de casas>>? Para as compreender temos de voltar rapida-rnente aos povos índios pelos quais corneçámos este estudo.Entre os Tsimshian e os Tlingit, o neto podia suceder direc-tamente ao avô paterno em nomes e títulos apesar do regimede descendência matrilinear vigente. É que ambas essassociedades estavam divididas em metades exógamas: real-m'ente, para os Tlingit, e praticarnente para os Tsimshian,cujas quatro fratrias, de prestígio desigual, tendiam a rea-lizar casamentos duas a duas. Em sistemas como esses, emque alternam as gerações agnáticas, é normal, ou pelomenos frequente, que avô e neto reproduzam as respectivasmetades.

Mas não há qualquer simetria entre estes sistemas e odos Kwakiutl e das sociedades da Europa medieval, sistemaque, concorrentemente com um regirne sucessório de direitopaterno, fazia do neto herdeiro directo ou indirecto - con-forme os casos - do avô materno. Nem a herança do filhoda filha, nem a do genro per uxorem, seriam cornpatíveiscom uma regra de descendência unilinear. Na linha materno,como na linha paterna, tal regra impediria que qualqucr clc-mento do estatuto pessoal pudesse pertencer ao mosnìotempo a um filho de filha e a um pai de mãe.

Para interpretar o sistema é portanto preciso rocorrorà hipótese de um conflito latente entre os ocupnntt's dttcertas posições na estrutura social. As mais antigus dt:scrl-

ções de Boas são tão precisas gue não parece duvitltttttt t1ttn,nas casas nobres de que provinham os scus inlirrnrttcfttrtrg,essa tensão entre linhagens - que constitui o prtnl.o fulcrul

| f i5

Page 14: LEVI-STRAUSS, Claude - A organização social dos Kwakiutl

do sistema - dava preponderância relativa à casa materna'

Nos Bella Coo'la - cuja otganizaçáo social também rloutros

aspectos parece ter siáo muito prÓxinaa da dos Kwakiutl - 'os observadores viram as coisas do mesmo modo: <<O irmão

de uma mulher casada no exterior também dá nomes aos

filhos desta irmã' como marca suplementar da sua incorpo-

ração na família ancestral>>' Esta preponderância relativa do

laão materno confirma o nosso comentário a certos naitos

kwakiutl (vide P. 77).

Porém, esta preponderância nunca é francamente aceite

pela outra parte: o pai, que tomou mulher' vê no filho um

Lembro privilegiado da sua linhagem tal como o avô

materno, que cedeu essa mesma mulher' vê no neto um mem-

bro de purt" ittt*i.a da sua. É na intersecção destas perspec-

tivas antitéticas que se situa, e talvez se constitui' a casa'

E na sequência disso, comio num jogo de espelhos' a oposi-

ção inicial reflecte-se em to'dos os planos da realidade social;

ãa tambem conta da equivalência estrutural que se pensa

qo" o, regimes de descendência não puramente indiferen-

ciada (porque de orientação unilinear) estabelecem entre o

filho da filha e ou o filho ou o sobrinho uterino'

Estes conflitos corno que encaixados uns nos otrtros e

as so,luções sempre de duplo sentido que as sociedades <<de

casas)) thes dão resultam, em última análise, do mesmo

estado de facto: estado esse em que os interesses políticos

e eco,nórnicos' que tendem a invadir o campo social' não

tomaram ainda a dianteira aos <<velhos laços de sanguer> -

como diziam Marx e Engels' Para se exprimirem e se repro-

duzirem, esses inter"r,u, tê*, inevitavelmente' de ir buscar

a linguagem do parentesco' apesar de ela thes ser hetero-

gen"ã; Jom efeito, não há outra disponível' E' inevitavel-

mente também, só para a subverter a adoptam' Todo o fun-

cionamento das casas nobres, europeias ou exóticas' implica

uma confusão de categorias noutras paragens tidas como

correlativas e opostas' e que daí ern diante serão'tratadas

como se fossem intermutáveis: a filiação vale a aliança' a

uli"rrçu vale a filiação' Desde então a troca deixa de ser

o lugãr original de ulna fenda cujos bordos sÓ a cultura pode

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reaproximar. Também ela encontra o seu princípltl numa

continuidade que é de ordem natural e nada impedo Jó quc'

quando houver necessidade, a aliança venha substitulr <l

parentesco pelo sangue.Com as sociedades <<de casas>> vemos' pois, formur-ro

uma rede de direitos e de obrigações cujas linhas entrccru-

zadas cortam as malhas da rede que ela vem substituir: o

que anteriormente estava unido separa-se agota e o quo

anteriormente estava separado une-se. verifica-se como quc

uma contradança entre os laços que a cultura deve tecer

e aqueles em que antes se reconhecia a obra da natureza -

mesmo que, como na maior parte dos casos' isso fosse uma

ilusão. Promovida assim a segunda natuteza, a cultura ofe-

rece à história um palco à sua medida; fazendo aderir uns

aos outros os interesses reais e os pedígrees míticos, pro-

porciona fundamento absoluto aos empreendimentos dos

grandes.

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