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Lezer

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1. Capitalismo e lezer

A organizaçom do tempo é um produto social que varia atra-vés das culturas e da História. Nom todas as sociedades per-cebem e organizam igual o tempo, e a nossa sociedade nompercebeu nem organizou sempre o seu tempo como o faiagora. O capitalismo, fundamentado na exploraçom dumhaforça de trabalho que se realiza através de horas e jornadaslaborais, converteu o controlo, a codificaçom e a organizaçomsocial do tempo numha necessidade e numha característicaestrutural.

O lezer, como oposiçom ao tempo de trabalho, é umha cate-goria própria do capitalismo: a sociedade tradicional galega(como todas as sociedades pré-modernas) nom conhecia adissociaçom entre trabalho e ócio. Para começar, porque aeconomia familiar ou comunitária e de subsistência nom seorganizava em horários laborais tal e como hoje os entende-mos, à saida dos quais começasse o tempo para um/ha pró-prio/a. Quando o trabalho nom era empregado para benefí-cio alheio, simplesmente todo o tempo era próprio. Mas éque, ademais, a jornada de trabalho comprendia múltiplosmomentos de descanso, conversa, esparcimento, distracçome fruiçom que a faziam qualitativamente distinta da jornadalaboral na que o capitalista tem que aproveitar para tirar todoo rendimento possível à força de trabalho obreira. A escravi-dom do trabalho no campo das sociedades pre-modernas foiem grande medida um mito criado polo capitalismo para oseu benefício e desde as suas próprias categorias, com ointiuto de vender como progresso e libertaçom as inumanasjornadas laborais e as imundas condiçons de vida com que seencontrárom os primeiros operários industriais. Ao tópico deque as e os labregos trabalhavam “de sol a sol para a suasubsistência” há que responder que além de o tempo de tra-balho ser administrado polo/a próprio/a trabalhador/a, estenom era contínuo e intenso como o que conhecemos hoje

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(quando, por outra banda, a maioria das e dos assalariadosseguem a trabalhar todo o dia para poderem viver, apessar dodesenvolvimento espantoso que tenhem experimentado asforças produtivas); ante o facto de que nom dispunham detempo de lezer tal e como hoje o entendemos cumpre mati-zar, em palavras de Robert Kurz, que “o ócio nom era umhafracçom da vida isolada do processo de actividade com finslucrativos, mas estava presente até nos poros e nichos daprópria actividade produtiva. Em termos actuais, é por estemotivo que a jornada de trabalho nom era apenas mais curta,como ainda menos concentrada”.

O surgimento do que hoje entendemos comolezer é, pois, produto de necessidades própriasdo sistema capitalista, e na nossa sociedadeadquire todo o seu sentido enquanto que ele-mento funcional a este (e só enquanto que tal).

A primeira funçom do tempo de lezer é areconstituiçom física e psicológica da força detrabalho da ou do assalariado, através do des-canso e do alívio das tensons e frustraçons provocadas polaexploraçom laboral. O capitalismo necessita conceder umtempo para a recuperaçom e a conservaçom da saúde do tra-balhador ou da trabalhadora, com o que o tempo de lezer seapresenta como um complemento imprescindível da jornadalaboral. Mas é importante ressaltarmos que apenas enquantoque necessário para o trabalho é que o capitalismo foi admi-tindo desde as suas origens a concessom dum tempo para oócio das e dos trabalhadores. Se na Antiguidade –e de formaparadigmática nas sociedades grega e romana- o ócio foraobjecto de exaltaçom, privilégio das elites que podiam cons-truir a sua felicidade sobre o desfrute e a beleça enquanto otrabalho (desonroso e degradante) era reservado para servose escravos, o que fai a ética protestante que acolhe e impul-siona o nascimento do capitalismo (M. Weber) é precisamen-

O surgimento do que hoje

entendemos como lezer é,

pois, produto de

necessidades próprias

do sistema capitalista,

e na nossa sociedade

adquire todo o seu sentido

enquanto que elemento

funcional a este

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te umha inversom radical destes valores. Com o protestantis-mo, o trabalho deixa de ser um mero meio de supervivênciapara fazer-se o centro da vida pessoal e colectiva, preceitomoral e fonte de virtude, enquanto a inactividade e a ociosi-dade passam a ser estigmatizadas e castigadas. Nom é poracaso que umha das primeiras medidas que toma a burgue-sia umha vez erigida em classe dirigente seja abolir o obriga-do respeito aos feriados católicos (por volta de 90 ao ano)que inçavam o calendário medieval: “O protestantismo, queera a religiom cristá moldada polas novas necessidadesindustriais e comerciais da burguesia, preocupou-se menoscom o descanso popular: tirou todos os santos do céu paraabolir as suas festas na Terra” (Lafargue)

Neste contexto, o lezer só pode ser tolarado enquanto quenecessário para o processo produtivo, sempre supeditado aeste e controlado, codificado e pautado em funçom das suasexigências. Umha destas, evidentemente, é a separaçomradical, tanto simbólica quanto material, entre tempo de tra-balho e tempo de lezer, o que supom umha dissociaçom dotempo do trabalhador ou da trabalhadora entre duas facetasda vida que antes nom apareciam divorciadas. Agora, jádesde a própria educaçom escolar, os futuros trabalhadores etrabalhadoras aprendem que há um espaço e um tempo parao trabalho e um espaço e um tempo para o recreio, que baixonengum conceito se devem mesturar e que o segundo estánecessariamente subordinado ao primeiro. Mediante estadissociaçom, o sistema evita interferências entre dous mun-dos de sentido contraposto, aperfeiçoando e maximizandoassim a concentraçom e o rendimento durante a jornadalaboral.

Porém, na sociedade de consumo criada polo capitalismoavançado, o sistema encontrou ainda um novo sentido para otempo de lezer. É sabido que para a economia e a sociedadecapitalista funcionarem, nom só é necessária a produçom

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sempre crescente de mercadorias, como também a suacirculaçom e, sobretodo, o consumo através do qual estasse volvem converter em Capital. Durante o século XX, okeynesianismo económico promulgou a necessidade deaumentar o nível de consumo das massas operárias comosoluçom às crises periódicas de sobre-produçom quepadece o sistema. Desta perspectiva, o tempo de lezeraparece ante os capitalistas como o tempo em que, atra-vés do consumo, as e os trabalhadores podem seguir par-ticipando na geraçom de benefícios para as empresas. Olezer capitalista, novamente em palavras de Kurz, “nom éócio livre, no seu sentido antigo, mas tempo funcionalpara o consumo permanente de mercadorias.Ironicamente, o lezer tornou-se para o con-sumidor a continuaçom do trabalho poroutros meios. Nom apenas quando ‘ganha’dinheiro, mas também quando o gasta, ohomem capitalista é um ‘trabalhador’”. Umtrabalhador, por certo, dumha das indústirasmais lucrativas do capitalismo ocidental:segundo um estudo de 1987, o mercado dolezer movimentava na Inglaterra a soma de28 bilhons de libras. Ainda outro de 1982calculava em 256 bilhons de dólares o gastoque as famílias norte-americanas destinavamao lezer (quantidade consideravelmentesuperior ao orçamento militar dos USA nessemesmo ano). E falamos de estudos de há 20 e25 anos. Desde entom, a terciarizaçom da economia e ocrescimento expoencial dos serviços turísticos e de óciotem corrido paralelo ao aumento dos benefícios globaisproduzidos pola sobre-exploraçom de mao de obra nosnovos países descobertos ou conquistados polo capitalis-mo mundializado, assim como ao reparto e ao consumodesse mesmo benefício entre as classes trabalhadorasocidentais.

Segundo um estudo de 1987,

o mercado do lezer

movimentava na Inglaterra

a soma de 28 bilhons de

libras. Ainda outro de 1982

calculava em 256 bilhons

de dólares o gasto que as

famílias norte-americanas

destinavam ao lezer

(quantidade consideravel-

mente superior ao

orçamento militar dos USA

nesse mesmo ano).

E falamos de estudos de há

20 e 25 anos.

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E é que a apariçom da indústria do ócio fai do lezer, sempreque for consumista e estiver convenientemente dissociado domundo do trabalho, nom tanto um direito do proletariado,quanto umha necessidade da burguesia. Explica-o bem BrunoGawryszewski num estudo sobre os mecanismos capitalistaspara tirar benefício do ócio das e dos operários:

“Um dos factores, senom o principal, para o surgimento daindústria do entretenimento foi o aumento do tempo livre dostrabalhadores, resultado de conquistas trabalhistas organiza-das polos sindicatos, mas também polos interesses económi-cos de se formar novos quadros consumidores. Para quehouvesse a produçom em massa, era preciso garantir essesconsumidores em massa. E, com isso, Henry Ford encontroua saída: os trabalhadores deveriam se constituir em consumi-dores, portanto, os seus salários fôrom substancialmenteaumentados, bem como todos os empresários também otiverom de fazer. Com os salários em alta, esses novos con-sumidores necessitavam de tempo livre para fazer compras.Entom, a jornada de trabalho foi reduzida para atender ointeresse capitalista.”

Muitas das batalhas sindicais polo aumento dos salários e areduçom das jornadas laborais perdem grande parte do seusentido anti-capitalista se nom forem acompanhadas dumhaluita consciente contra o nosso papel de consumidoras e con-sumidores compulsivos, que é exactamente o que o capitalis-mo necessita que joguemos dentro da ordem mundial.

2. Consumir para viver: consumir até morrer

O consumismo é a ideologia que move as massas compulsi-va e irracionalmente cara o consumo de mercadorias, conse-guindo canalizar os desejos, as aspiraçons, os ideais e os

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sentimentos da populaçom através do mercado e garantindo,assim, a própria supervivência económica do capitalismo. Opadrom consumista de vida fundamenta-se na máxima deque o necessário nom é suficiente, fazendo de cada indivíduoum saco sem fundo ansioso por depredar todo aquelo que omercado lhe apresenta como desejável. Nesta sociedade quemudou os portais abertos das casas por escaparates comer-ciais e as lareiras por televisores, cumpre consumir paradivertir-se, para relacionar-se socialmente, para triunfarsexualmente, para ser alguém na vida, para sentir-se pode-roso, para nom caer na marginalidade... O consumismo, prin-cipal característica da sociedade do capitalismoavançado (a carom de outras que lhe somnecessariamente correlativas, como o individua-lismo ou a concorrência), é hoje também o prin-cipal motor ideológico da economia de mercadoe da sociedade que todo o mercantiliza. E é que,parelho ao fenómeno expansivo da globaliza-çom capitalista, existe um fenómeno de pene-traçom intensiva do mercado em todos e cadaum dos nichos da vida social e individual, comoresultado do qual para os indivíduos se tornaindispensável consumir muito para viver bem.

Equiparando nível de consumo a qualidade vida, o consumis-mo invisibiliza tanto os efeitos nocivos quanto as alternativasà depredaçom capitalista, constituindo um modelo de indiví-duo egoísta, instintivo, tam voraz como amoral, que fai damaioria da populaçom ocidental (incluido o proletariado) nomjá vítima, mas co-responsável do sistema. Como resposta àexploraçom, em vez de em revolucionário, “o homem trans-formou-se em ‘homo consumens’. É um indivíduo voraz epassivo, e trata de compensar o seu vazio interior medianteum consumo permanente e cada dia maior (conhecem-senumerosos exemplos clínicos deste mecanismo, representa-dos por casos de ingestom excessiva de alimentos, compras

Nesta sociedade que

mudou os portais abertos

das casas por escaparates

comerciais e as lareiras

por televisores, cumpre

consumir para divertir-se,

para relacionar-se

socialmente, para triunfar

sexualmente, para ser

alguém na vida, para

sentir-se poderoso,

para nom caer na

marginalidade...

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desorbitadas, consumo excessivo de bebidas, como reacçomfrente a depressom e a ansiedade); o homem consome ciga-rros, licores, sexo, filmes, viagens, assim como educaçom,livros, conferências e arte. ‘Semelha’ activo, ‘emocionado’, eporém no seu ser mais profundo é umha pessoa ansiosa,solitária, deprimida e fastiada (poderia-se definir o fastiocomo esse tipo de depressom crónica que pode ser compen-sado eficazmente polo consumo). O idustrialismo do séculoXX criou este novo tipo psicológico, o ‘homo consumens’, efixo-o especialmente por razons económicas --quer dizer,pola necessidade de promover o consumo maciço, estimula-do e manipulado pola publicidade--. Mas umha vez criado,este tipo de carácter exerce também influência sobre a eco-nomia, e determina que os princípios da satisfacçom emconstante crescimento pareçam racionais e realistas” (E.Fromm). Mas nom o som. Sabemos que o nível de consumoque suporta ocidente nom só é impossível de geralizar para oconjunto do planeta, senom que ademais é social e ambien-talmente insustentável. Para que cada temporada tenhamosroupa nova é necessária a exploraçom, para que podamosfazer turismo é necessário o colonialismo, para que o nossomodelo de transporte seja possível som necessárias a guerrae a destruiçom, para que a nossa felicidade seja realizável,enfim, é necessário que nom nos preocupe em absoluto a dasoutras pesoas. Ainda, Santiago Alba explica-o assim: “Nomhá que esquecer que ‘consumir’ quer dizer originalmente‘destruir’. Neste sentido, umha ‘sociedade de consumo’,organizaçom sem precedentes na História, só poderia serumha sociedade regida desde embaixo pola ‘fame’ e a ‘gue-rra’ na que as cousas, consideradas estritamente ‘condiçons’de um processo, resistiriam tam pouco como as maçás. Pois,com efeito, o específico do ‘consumo’ é a necessidade deumha destruçom sem medida e umha renovaçom sem repou-so; a fame nom remata nunca, tem que começar sempre denovo, está submetido às penas da infinitude, que é exacta-mente o contrário da eternidade.”

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Mas o consumismo é também um mecanismoprivilegiado de dominaçom e inserçom dos indi-víduos no sistema. Assim como a democracia sedemostrou o mais eficaz mecanismo para gerarconsensos em torno ao poder, o mercado reve-lou-se como o mais eficaz criador de cúmplicesem torno à exploraçom económica. Seria ingé-nuo seguir a pensar que o capitalismo sustentaa sua hegemonia em ocidente através da impo-siçom ou da violência sobre a maioria da popu-laçom: hoje a zenoura funciona melhor que olátego, e os pacotes turísticos demonstrarom-semais eficazes que a repressom. A grande forta-leza do capitalismo na nossa sociedade radicano feito de ele ter conseguido, através do con-sumo, ligar a sim as espectativas, os desejos e afelicidade de todas as classes sociais. Neste sen-tido, o combate frontal ao consumismo atravésda desconexom, paulatina mas decidida, dasdinámicas de consumo dominantes é, antes do que umhaproposta revolucionária para o conjunto da sociedade, umhaexigência militante para quem nos declaramos em luita polasua transformaçom. A este respeito, som extraordinariamen-te significativas as seguintes palavras de J. Miguel Beñaran"Argala", fundador de ETA, quem já em 1977 (apenas um anoantes de ser assasinado polos paramilitares espanhóis) afir-mava a respeito do projecto revolucionário da esquerdaabertzale: “Nom devemos chamar-nos a engano: o triunfo danossa opçom é difícil. E os seus principais obstáculos --comser importantes-- nom vam ser unicamente os partidos bur-gueses --estes só podem alongar a luita-- nem a existênciade um elevado número de trabalhadores sem consciêncianacional; o ressurgir e extender-se da consciência nacionalbasca, assim como a sua assimilaçom polos imigrantes, é umprocesso longo, mas já hoje o suficientemente profundocomo para considerá-lo dificilmente reversível. Hoje se calhar

Assim como a democracia se

demostrou o mais eficaz

mecanismo para gerar

consensos em torno

ao poder, o mercado

revelou-se como o mais

eficaz criador de cúmplices

em torno à exploraçom

económica. Seria ingénuo

seguir a pensar que o

capitalismo sustenta a

sua hegemonia em ocidente

através da imposiçom ou da

violência sobre a maioria

da populaçom: hoje a

zenoura funciona

melhor que o látego, e os

pacotes turísticos

demonstrarom-se mais

eficazes que a repressom.

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o maior obstáculo consiste no alto nível de consumo existen-te na Euskadi peninsular --motor do processo revolucionáriobasco--, que pode fazer-nos esquecer que o objectivo dostrabalhadores bascos nom é consumir o necessário e osupérfluo até o nível do ridículo –e à vez dramático--, mastransformar as nossas relaçons sociais de produçom, fazen-do-as fraternais e solidárias, e as nossas relaçons com osmeios de produçom apropriando-os e colocando-os ao nossoserviço”.

3. O ócio juvenil na sociedade capitalista

Como já vimos, o tempo de lezer tem genericamente a fun-çom de restabelecer a saúde física da ou do trabalhador atra-vés do descanso, assim como a saúde psicológica através dadiversom, do exercício, do relacionamento social e da sexua-lidade. Ao mesmo tempo, este lezer tem de servir para movi-mentar o mercado através do consumo. Entre a juventude,ademais, o modelo de ócio potenciado polo Poder tem tam-bém umha funçom pedagógica fundamental: acoutar, codifi-car e controlar os espaços e os momentos de liberdade erebeliom, precissamente com o fim de desactivar as poten-cialidades rebeldes e libertárias que som próprias da mocida-de (enquanto que sector ainda nom plenamente socializado).Explicaremos isto, e valeremo-nos para ilustrar a nossaexplicaçom da análise que o antropólogo Marcial Gondar faisobre a funçom do entruido na sociedade tradicional galega.

Como é sabido, o entruido é por definiçom o tempo da inver-som, da ruptura das normas e do desenfreio. Umha interpre-taçom superficial poderia concluir facilmente que, ao contrá-rio do resto das que configuram o calendário tradicional, oentruido é umha festa que atenta contra todos e cada um dosprincípios da ética cristá: fomenta o excesso, exacerba asexualidade, invirte a autoridade, ensalça a irresponsabilida-

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de, promociona a diversom, venera o carnal e adora o terre-nal. Porém, cumpre suspeitar do carácter subversivo de qul-quer rebeliom com as datas de início e de remate pre-fixa-das. Com efeito, a análise antropológica revela que, atravésdessa inversom de valores, o carnaval é na realidade um ele-mento plenamente funcional para o catolicismo, num sentidocatárquico e pedagógico a um tempo: oferece um espaço eum tempo para a libertaçom controlada das tensons provoca-das pola disciplina cristá, define nitidamente quais som osopostos que caracterizam este período de excepcionalidade(contribuindo para fixar, indirectamente, os valores polos quedeverá regir-se a normalidade), e exacerba-os até tal pontoque, por ‘reduçom ao absurdo’, demonstra a necessidade daordem e da mesura promulgada pola Igreja (quanto maior é oexcesso, mais claro é o reconhecimento da impossibilidadedum entruido de 365 dias ao ano...). Assim o explica Gondar:

“A igreja, como toda comunidade, tem também na inversomum instrumento privilegiado para constituir-fortalecer a suaprópria identidade. O cristianismo tem um deus, a oposiçomao qual é o demo, uns santos que tenhem como oposto asbrujas, uns fieis caminhando pola via estreita e dura da pri-vaçom cara a espiritualidade, que encontram o seu negativono homem ‘que tem pode deus o seu bandulho’, que contraa ‘ascese’ pom o ‘excesso’ por regra da sua vida. Constitui-se assim em oposiçom ao ‘povo de Deus’ ou cidade celeste,um povo de Satám ou cidade terrea que conte mesmo comdous espaços distintos, a igreja e a praça, com duas atmós-feras também opostas: o recolhimento intimista e a publici-dade.

Esta exaltaçom do próprio mediante a degradaçom do alheiopode-se levar a cabo, como já temos dito, de múltiplesmaneiras. Umha delas, que condensa nom apenas a palavramas também a força da imagem e da acçom, é a representa-çom teatral. Mas o teatro tem um limite: a separaçom entre o

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público e os actores, que fai que o espectáculo se convirta emcontemplaçom, isto é, em algo externo. Existe, contodo, ummodo de superar esta diferença: quando fazemos coincidirespectadores e actores. Nesse momento a intensidade davivência do representado alcança a sua quota mais alta. Ocarnaval é um teatro em que nom há espectadores, de ai essareacçom de incomprensom e desgosto que se nota em qual-quer vila quando um visitante quer simplesmente contemplare nom ser objecto da brincadeira que está a ter lugar”

Através do entruido “o Poder disfarça, emascarae mistifica os seus interesses. Com a apariênciada rebeliom contra os dispositivos do Poder, oCarnaval é umha escola em que se aprende a sermais submissos”. Por umha parte, estabelecen-do um tempo para a ruptura das normas, contri-bui para marcar e reforçar também o (resto do)tempo no que essas mesmas normas devem serrespeitadas. Por outra, forçando ao conjunto dasociedade a experimentar as conseqüênciasdumha rebeliom exagerada, a linguagem doentruido estabelece de forma indirecta a neces-sidade e o sentido da ordem.

Até aqui a análise antropológica da funçom quecumpre o entruido na sociedade tradicional. Poisbem, da mesma forma que acontece no carnaval, tampouco aliberdade e a rebeliom que experimenta a mocidade no tempode lezer passam de ser umha liberdade e umha rebeliom son-hadas. De facto, mudando os valores da ética cristá polosvalores capitalistas, e fazendo certas adaptaçons simples,comprovamos facilmente que o funcionamento do que hojeentendemos por “sair de marcha” é muito semelhante ao doentruido tradicional. O lezer juvenil tem também um tempo eum lugar próprios (a noite, o fim-de-semana, a discoteque)claramente dissociados do tempo e do lugar de estudo ou de

da mesma forma que

acontece no carnaval,

tampouco a liberdade e a

rebeliom que experimenta

a mocidade no tempo de

lezer passam de ser umha

liberdade e umha rebeliom

sonhadas. De facto,

mudando os valores da

ética cristá polos

valores capitalistas,

comprovamos facilmente

que o funcionamento

do que hoje entendemos

por “sair de marcha” é

muito semelhante ao do

entruido tradicional.

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trabalho, o que contribui para delimitar temporal, espacial e sim-bolicamente o território da excepcionalidade que se opom à nor-malidade, e no que é lícito invertir os valores desta. O consumode alcool e outras drogas como elemento central e imprescindí-vel da movida, além de introduzir plenamente o lezer na esfera domercado e facilitar a desinibiçom e o relacionamento social depessoas educadas no individualismo mais selvagem, tambémcontribui de forma evidente --através da alteraçom da percepçome da modificaçom dos estados de consciência-- para criar essaatmósfera de anormalidade, de excepcionalidade, mesmo de irre-alidade (quantas vezes na manhám seguinte a ou o jovem nom selembra do que fixo durante a noite, convertendo-se assim a suaruptura com a normalidade nom apenas num paréntese, masquase literalmente num sonho?). No limite das suas conotaçonscarnavalescas, a gente até se disfarça para sair de noite, peitean-do-se, pintando a cara (as mulheres) e vestindo-se dumhamaneira diferente a como o fai durante o dia.

Como o entruido, o modelo de lezer promovido polo Poder tem afunçom catárquica de favorecer e mesmo potenciar a libertaçomdas tensons produzidas pola exploraçom e a disciplina da vidaordinária, mas sempre num espaço temporal, físico e simbólicoclaramente dissociado daquele no que se desenvolve a normali-dade, contribuindo assim, também, para definir e fortalecer poroposiçom os limites, os valores e a necessidade da ordem querege esta. Como a de aquele, a estrutura funcional da movidajuvenil tem ademais a funçom pedagógica de ensinar onde,quando e como é lícito invertir as normas, e onde, quando e comoestas devem ser respeitadas.

4. Alguns apontamentos sobre a polémica do “botellón”

O denominado “botellón” é, em esência, umha variaçom sobreo mesmo modelo de lezer consumista e carnavalesco quepromove o Poder e que vimos de explicar. Porém, há certos

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aspectos desta dinámica que o fam relativamente disfuncio-nal para a ordem social, e que explicam em grande medida apolémica que suscita.

Umha primeira característica do “botellón” é queé um fenómeno mais ou menos espontáneo eauto-organizado pola própria mocidade.Vivemos numha sociedade na que a regra é quecada quem se responsabilice cada vez de menosfacetas da sua vida, a ser possível só de erguer-se a tempo para entrar a trabalhar. Quantasmenos áreas de autonomia, mais espaços paraque o mercado se introduza e nos ofereça osseus serviços: o objectivo é que seja a indústriaquem organize as nossas férias, planifique anossa dieta, decida o nosso vestuário e estrutu-re o conjunto do nosso lezer diário. É por issoque cada vez som mais raras as actividades deócio que nom tenhem trás de sim umha empre-sa ou (no seu defeito) umha instituiçom. Porém,o “botellón” choca frontalmente contra esta rea-lidade, apresentando-se como umha iniciativaauto-organizada polas e polos próprios jovens,e provocando assim pánico e urticária no sub-consciente dumha sociedade para a que épotencialmente perigosa qualquer cousa quenom tiver regras e responsáveis. A obsessom que estamos aperceber nalgumhas cidades por identificar a quem fai “bote-llón”, mesmo se estes/as nom estiverem a quebrantar nen-gumha lei ou ordenança municipal, ampara-se neste medosocial e institucional ao incontrolado. Ao próprio tempo,como é evidente, a auto-organizaçom do lezer juvenil (aindaque só for dumha parte deste) à margem das empresas des-tinadas para isto, enfrenta de forma evidente a dinámica e onegócio capitalista de potencializar a indústria do lezer.

Vivemos numha sociedade na

que a regra é que cada quem

se responsabilice cada vez

de menos facetas da sua

vida, a ser possível só de

erguer-se a tempo para

entrar a trabalhar. Quantas

menos áreas de autonomia,

mais espaços para que o

mercado se introduza e nos

ofereça os seus serviços:

o objectivo é que seja a

indústria quem organize as

nossas férias, planifique a

nossa dieta, decida o nosso

vestuário e estruture o

conjunto do nosso lezer

diário. É por isso que cada

vez som mais raras as

actividades de ócio que nom

tenhem trás de sim umha

empresa ou (no seu defeito)

umha instituiçom.

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O “botellón” é umha opçom de lezer claramente inserida nasdinámicas sociais de consumo, mas que, ainda dum ponto devista reformista (reivindica-se poder ‘consumir melhor’),questiona directamente certas estratégias do capitalismoavançado. Em primeiro lugar, chama a atençom sobre a pre-cariedade laboral como umha barreira para a inserçom nor-mal de amplas capas da juventude na ordem social. À moci-dade das mais diferentes classes sociais (ainda com matizesde importáncia entre elas) é-lhe impossível manter o nível ea forma de consumo que se lhe exige, e é por isso que optapor realizar este consumo à margem dos circuitos institucio-nalizados, passando a engordar, consequentemente, o espa-ço simbólico de certa marginalidade social. Ao própriotempo, o “botellón” pom em evidência o supérfluo e o absur-do da economia e o consumo de serviços perfeitamente pres-cindíveis: a mocidade quer consumir alcool e está disposta apagar por ele (principalmente por que o percebe como neces-sário para se relacionar socialmente e por que nom tem outraforma de adquiri-lo se nom for o mercado), mas nom estádisposta a destinar os seus recursos limitados a pagar paraque um camareiro lho sirva se pode fazê-lo ela própria, paraapoiar-se num balcom se pode fazê-lo no banco dum par-que, para escuitar a música que outros lhe ponhem se podeescuitar e mesmo tocar a que ela preferir, para estar numlocal onde nom pode falar nem relacionar-se como na rua, emenos ainda para enriquecer um empresário da hotelaria. Emúltimo termo, o “botellón” é um alegato sui generis em favordo público e contra o privado. Ademais, o “botellón”, em certamedida, volve transformar os objectos da indústria do lezerem sujeitos do seu próprio lezer, fomenta a actividade frentea passividade e a interacçom frente a recepçom, oferecendomuitas mais possibilidades de comunicaçom, improvisaçom erelacionamento social do que as discoteques, os bares ou ospubs, rechaçando assim o individualismo e o mercantilismoexacerbado dum sistema que só admite e favorece a relaçomentre consumidor e empresa (as relaçons inter-pessoais nos

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locais de ócio nocturno nom deixam de fazer parte destemodelo enquanto que som oferecidas como um mais dos ser-viços da empresa. É paradigmático o caso daquelas discote-ques com entrada livre só para as moças, que apartir de aipassam a ser mais um reclamo e um serviço do local quedepois é cobrado na sua entrada aos moços).

Porém, umha das razons mais importantes polasquais a prática do “botellón” é objecto de recha-ço social é o facto de que ela violenta a barreiraentre o espaço do lezer e o espaço da vida ordi-nária, debilitando o princípio de dissociaçom e asua funçom pedagógica. “A rua nom é lugar parabeber”, é a frase na que se plasma um rechaçoestético que é resposta a umha transgressomsimbólica. Resulta tam obsceno ver um grupo dejovens bebendo no parque no que jogam ascrianças ou acarom do portal que atravessamoscada manhám para ir trabalhar, como ver umhapessoa dormindo num banco, ou preparando ojantar em plena rua. Na nossa sociedade cadacousa tem o seu tempo e o seu lugar, e esta regra nom sepode enfrentar sem violentar a sensibilidade e as conviçonsda maioria social. Mas o “botellón” confunde o espaço da vidapública com o do lezer, invadindo com irresponsabilidade ediversom o espaço e o tempo (já que os efeitos da diversomnocturna vêm-se de manhám) reservados para o trabalho e aordem social. É certo que esta invassom deixa ao seu passoefeitos materiais em forma de ruidos, sujidade e desperfeitos,mas também que as festas patronais, ou as zonas de movidadas cidades apresentam exactamente os mesmos resultados(por nom falar do tránsito ou as obras...), sem gerar a mesmaresposta. A diferença é que estes últimos tenhem um sentidodo que carecem os efeitos do “botellóm”, já que o próprio“botellón” desafia os padrons de compreensom em base aosquais o lezer tem sentido na nossa sociedade. À margem dos

Na nossa sociedade cada

cousa tem o seu tempo e

o seu lugar, e esta regra

nom se pode enfrentar sem

violentar a sensibilidade e

as conviçons da maioria

social. Mas o “botellón”

confunde o espaço da

vida pública com o

do lezer, invadindo com

irresponsabilidade e

diversom o espaço e o

tempo reservados para o

trabalho e a ordem social.

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danos concretos, no rechaço à juventude que vai de “botellón”lateja o rechaço a umha juventude que “nom sabe quando eonde há que divertir-se”, que “nom respeita as normas”, eque, umha vez rota umha barreira, ameaça com destruir anormalidade a base de festa e irresponsabilidade.

Que algo seja disfuncional para o sistema em alguns aspeitosnom significa que seja revolucionário nesses aspeitos, emuito menos que no seu conjunto represente umha alterna-tiva desejável. O “botellón” nom rompe com o modelo delezer consumista e certamente promove a ingestom desme-surada de alcool, ainda que a faga compatível com a conver-sa, o ar livre e outras iniciativas completamente irrealizáveisnum pub. Ademais, a sujidade ou a violência gratuita contrao mobiliário público nom som em absoluto justificáveis dequalquer ponto de vista revolucionário. Mas isso nom devesilenciar a denuncia clara do discurso hipócrita do Poder, nemparalisar o enfrentamento contra a repressom que nele sesubstenta. Por exemplo, cumpre dizer claramente que é falsoque o Estado esteja contra o consumo exagerado de alcoolpor parte da mocidade: alguns actos promovidos e mesmosubvencionados por diferentes administraçons (do Festival deOrtigueira aos Sanfermins) registam um nível relativo decomas etílicos muito supeiores aos dos “botellóns” habituais;as bebedeiras som um elemento consubstancial a um mode-lo de lezer ante o que o Estado nom oferece alternativas, sim-plesmente por que nom tem interesse em substituir: se épossível, aspira apenas a que os borrachos volvam ficar dei-tados, como faziam tradicionalmente, nos balcons ou noschaos dos bares, e que deixem de incordiar polas ruas e osportais. O próprio consumo obsessivo de alcool como ele-mento necessário do lezer juvenil é conseqüência directadum modelo de sociedade que potencia o individualismo, arepressom sexual, a insegurança e os complexos dos seusmembros, ao tempo que limita ao máximo os espaços e ostempos de sociabilidade, deixando no consumo de substán-

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cias psico-activas a única via fácil e rápida de relacionamen-to social e sexual.

5. Por um lezer verdadeiramente alternativo.

Estamos pola desapariçom do trabalho assalariado e do lezerenquanto que categorias necessariamente capitalistas.Luitamos por umha sociedade na que o tempo de lezer nomseja necessário, simplesmente porque a diversom, o esparci-mento, o relacionamento social e a actividade física e intelec-tual autónoma sejam todos eles elementos da vida ordinária.No entanto, apostamos por um modelo de lezer desligadodos circuitos e dos interesses do capitalismo, e orientadopara a formaçom de homens e mulheres capazes de dar osalto cara a sua superaçom.

É hora de que os movimentos revolucionários, e especialmen-te os juvenis, prestem ao lezer a mesma atençom que duran-te mais dum século tem recebido unicamente o mundo dotrabalho, desenvolvendo umha acçom de denuncia directacontra o ócio capitalista e as suas estruturas (e de forma sig-nificativa macro-discoteques, parques temáticos, centroscomerciais...), ao tempo que impulsionando e fazendo possí-veis novas formas de lezer. É especialmente importante queesses mesmos movimentos (e especialmente os que, como onosso, tenhem responsabilidades na planificaçom de lezer,através da celebraçom de concertos ou a gestom de CentrosSociais) se dêm conta de que revestir o consumismo de pátriaou de revoluçom nom o fai realmente alternativo.

Existem múltiples formas de divertir-se e relacionar-se sema necessidade de consumir de forma compulsiva. A recupera-çom do jogo (divertir-se com a própria imaginaçom e o pró-prio corpo, com as e os amigos e na rua, é na nossa socieda-de um dos primeiros costumes que cumpre sacrificar em

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favor do consumo segundo se avança no processo de socia-lizaçom --que é o que significa fazer-se adulto), o desportoou o desenvolvimento da criatividade e da sensibilidade artís-ticas devessem ser pontos obrigados dumha verdadeira alter-nativa. Algumhas iniciativas como a recuperaçom de jogospopulares ou a realizaçom de roteiros e a organizaçom degrupos de montanha estám a vincar nos últimos temposnesta direcçom, inserindo ademais as alternativas de lezer narecuperaçom e construçom dumha identidade nacional ligadaà história e à terra (o espaço de referência do lezer juvenil dosnossos dias já nom é o monte, nem se quer a rua, senom ocentro comercial). A espiral trabalho-consumo-trabalhodevesse ser o principal objectivo a bater para quem queremoslibertar as nossas vidas (e a do resto da sociedade) das diná-micas de exploraçom e enriquecimento capitalistas. Assimmesmo, rechaçar o carácter subsidiário ou secundário daactividade nom produtiva, recuperando para a centralidade davida individual e social as facetas lúdicas, formativas e comu-nitárias, questionando de forma directa a dissociaçom deaspectos fundamentais da nossa subjectividade (que temreflexos e se realiza através de mecanismos tam concretoscomo a planificaçom de horários ou a ordenaçom urbana)converte-se numha necessidade irrenunciável para a forma-çom de pessoas íntegras e autónomas.