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LfRICA E LUGAR-COMUM

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Flavio Fava de Moraes Myriam Krnsilchik

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LfRICA E LUGAR-COMUM

ALGUNS TEMAS DE HORACIO

E SUA PRESENGA EM PORTUGUES

Francisco Achcar

led:!:

2

GENEALOGIA DO CARPE DIEM IMAGENS DO EFEMERO DE HOMERO A CATULO

LIRICA E EFEMERIDADE

Eu, aqui, agora sao indices basicos do discurso lfrico, segundo J a analise guase unanime dos estudiosos dos generos literarios1

• En­quanto o epos descortina um tempo distante, longo e longamente declamado, a que a impessoalidade quase absoluta do narrador da o tom dos outros ea grande abertura a diversidade, a lfrica concentra-se no estreito limite do presente, na brevidade da can9ao, e tern o tom do sujeito. 0 discurso epico desce da Musa, das alturas; o lirico emerge do eu - o enunciador, fic9ao basica da lfrica, mesmo quando nao se nomeia. A cena do poema lirico e a fic9ao, a instaura9ao, do que Fernando Pessoa definiu como "murmuro momento ": o sujeito de enuncia9ao (murmuro), cuja essencia e estar aqui ("ponto espacial sens{vel / que sou eu, sendo eu por 'star aqui "). Neste espa90, tudo se confina ao presente, mesmo 0 passado, que e memoria presente do sujeito ("outrora agora")2

1. Entre os nove lc6ricos dos gcneros rcscnhados por Genette, seis associam a lirica ao presente (Schelling, k1111 P1111l, I kgd, Vischcr, Erskine, Jakobson), um ao passado (Staiger), um ao fut11ro (Dnllns), 11lrn1 ck 11111 <Jiii' 11110 sc manifesta sobre esse ponto (Humboldt). Genettc, "lntrod11t•llo111\ l '111d1ilntr", 128

2. Torno rssns rxp1r,•a'>n cl"" IKK·11u" cir Fr1111111clo Pessoa "elc-mcsmo" que se iniciam com os vr1,;o' " I lujr 11111 111111111 \ 11, rnl111.1r111·r11 h1111qilllo'" e "Pobre velhn mtisicn"

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~"'1 .,. HJ4

Giuliana
Highlight

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60 T6PJCA DA EFEMERIDADE

Hermann Frankel observou agudamente que, "num certo senti­do, a lirica se p6e°a serviyo do presente, do 'dia', e 6'demera-;;-: . A concep9ao do dia (hemera, mar) coma 0 espa90 da vida - efemero, "que dura um dia" - e, para Frankel, a "nova visao" que informa a lirica:

Em Homero, o dia e a Unica medida cujo ritmo pontua o continuo fluxo de eventos epicos, e e tambem a no~iio de tempo que pode asswnir conteudo positivo e definido (o tempo em que ... ): "Vira o dia em que caira a sagrada flios"; "Se eu fosse jovem e forte como no dia em que ... "; "o dia do des ti no"; "o dia da volta"; "o dia daescravidao"; "odiacruel" (exicnµo11, 116anµo11, oov'Aw11, llTJAEE<; ~µexp) . Assim concebido, "dia" recebe seu carater do evento que nele ocorre, de fato se identifica com o evento que traz. Desta forma, uma expressao epica como "evitar o mau dia" (Od., 10.269) e equivalente a "escaparda destrui~ao". A nova dire~ao que leva a lirica esta Jigada a que OS homens nao mais creem na possibiJidade de evitar 0 dia (isto e, eventos e circunstancias), mas sentem-se controlados por ele em todos os sentidos3

.

Talvez essas duas concep96es do "dia" - coma pura "pontua-9ao" da Serie SUCessiva e diversa dos eventos, na epica, OU coma horizonte determinante da experiencia, na lirica -, nao estejam ligadas a etapas no desenvolvimento da consciencia e da poesia - pelo menos no que diz respeito aos generos poeticos, pois em tempos indo-euro­peus a lirica deve ter sido contemporanea da epica e pode mesmo te-la precedido4

• Que o "dia" _seja nU.cleo_da_exper.ifutcia, e..na_o fron_!tlra, marco de seu fluxo, pode dever-se na~ma evolu9ao_, mas a natu~a

cursiva, durativa, da lirica, em contraste C01ll a pontualidade. da ep_k:a. Dai que, nesta ultima, abstra96es e formulas proverbiais nao sejam freqiientes coma naquela. Nao obstante, segundo Frankel, "a nova concep9ao do 'dia' encontra expressao numa parte mais nova da epica, e onde, na verdade, e menos surpreendente a modernidade do pensa­mento - numa fala da Odisseia". A fala ocorre no canto 18 - Ulisses mendigo se dirige aos pretendentes; os dais versos seguintes resumem a "ideia nova":

row<; "fOtP 1160<; forl11 €1rix6011lc.J11 /x116p6nrw11 ow11 €7r' ~µexp Cx"f1J"i 7rexr~p &11opw11 n BEw11 n 5

pois ta! e o espirito dos homens sobre a terra, qua! o dirige a cada dia o pai dos homens e dos deuses6

.

\]_., Frankel, Early Greek Poetry and Philosophy, 133 es. 4. V .s11pra4less. 5 Od, 18 1367 (> A lo11dt1\"i10 in1\k-.11k l'iankc-l 11•;s111111p1rs«nt11 csscs vnsos : " 1'01 ~ o "'I"• Ito dr rnd1111111 q11c

GENEALOCIA DO C.~RPE DIEM 61

Ep 'emar (literalmente, "sabre o dia ") indica o carater efemero d.1s situa96es humanas e da disposi9ii.o do n6os, o "espirito" do liomem. "O homem e inteiramente 'efemero', isto e, sujeito ao dk e «'Xposto a suas vicissitudes", conclui Frankel, enunciando nao apenas 11111 sentimento basico da lirica, mas tambem um topos presente nela cksde o mais antigo lirico que conhecemos,~rquiloco, do infcio do •1L'culo VII a. C. Depois, Aleman, Alceu, Semonides de Amorgos, Sim6nides de Ceos, Mimnermo, Pindaro, a tragedia, a comed13, a poes1a helenistica ea romana 1 e dai o class1c1smo e o barroco, retOJ!lam o motivo. -A concep9ao historica de Frankel leva-o a enfatizar a novidade dessa visao da vida, que so encontraria sua primeira expressao numa "parte mais jovem da epica". Mas ja na !Uada um tema semelhante comparece, nos versos celebres que iniciam o discurso de Glauco a Diomedes, na cena do canto 6 em que ambos estao prestes a enfrentar­se no "pasta de abutres" do campo troiano. 0 fortissimo chefe aqueu hesita diante do inimigo, que suspeita divino, e pergunta-lhe quern e, qual sua origem. Glauco responde:

oiri 1rEP tPVAAWll "{EllE~, TOLT/ OE Kexl &11opw11 . ¢v"A"Aex TOt µf.11 r' CxllEµo<; xcxµ&oi<; xfo, CxAAO'. OE e· VAT/ TTJAEBowCJet tPVEL, fopo<; o' E'lrL"fL"fllETCtL WPT/. w<; &11opw11 "fEllE~ ~ µ€11 tPVH, ~ o' Cx7rOA~"(H7 •

Tais as gera\'.oes das folhas, quais as dos homens. As folhas, algw11as o vento deita ao chiio, outras a selva florescente produz, e sobrevem o tempo da primavera; assim as gera~oes dos homens, tunas nascem, outras morrem8

.

a Terra produz e sempre/ ta! como o clia que de rrcebe do pai dos deuses e dos mortais' ·. Odorico Mendes e preciso. co11ciso t' musical:

Pois tem ve.rsatil animo os 1rrres1n·s. Segw1do altera fopiler os dias.

7. //., 6.146-9. 8. Vale a pena cotejar as versoes tao difercutes clesse tn·cho produzidas pelos dois tradutores

de 1-Iomero mais notaveis de 11ossa lingua (ambos coi11cidenteme111c mara11henses). Carlos Alberto Nunes (1960?), tentanclo imitar o hn;imetro homerico, afro11xou o travamento do verso:

As gern~i>es dos mortais assrmelham-st· :is folhas <las arvores. que, wnas. os vcntos atirnm 110 solo. sem vida; oulras. brotam na prirnavnn , 1k 11ovo. por toda a tlort>sta vii;osa. Dc.sa pnn·cr111 ou nasn·1u l)S lio11H·ns dn 1ncs1na 1nnnl"irn.

Odorico Mt•11dr' (I K72) 11111u·a 11lw11xa o sn1 d«cas,ilabo. Como.,., follo11 ' '"11 111 ~:

Qrn· lllllll'i o vn11n 11\ lr vu r111111< lll'ndn..,, Outrn-.. h101 111H \'l ' lilid \ 1 ~ .1N n 111 u .dvu '1'1tl 1111'..t 1i 111!!1 n1 · !t1'!I t• }f.r 11ti1 l111111i111.1

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lt'I TO PICA DA EFEMERID.-\DE

Como na resposta de Ulisses, essas considera96es sobre a exis­t1 ·11cia sao um introito generalizante (Priamel). Em ambos os casos, o t1 •111a e a instabilidade da vida, sua efemeridade, embora seja correta a observa9ao de Green de que o simile das folhas "tern sentido mais l1111itado do que aquele com que e usualmente citado. Diomedes perguntara a Glauco sobre seu nascimento e sua familia. Glauco responde que nada e mais instavel e mutavel do que o esplendor e a 11obreza das familias" 9

• 0 foco da referenda, de fato, sao as "gera­\·6es" e as familias, genee. Mas o texto grego facilmente se presta ao sentido mais geral da transitoriedade de toda vida humana, com o qual a mesma imagem das folhas reaparece em outro lugar homerico10

,

passando depois a freqiientar a literatura antiga .

DE SiMILE HOMERICO A LUGAR-COMUM

A imagem homerica e as variantes e desenvolvimentos que sugeriu eram, na segunda metade do seculo V a. C., familiares aos expectadores que Aristofanes tinha em mente ao fazer o coreuta das Aves exclamar:

•Aye o~ </>UutJJ a11opec; aµ,avp6{3wi, </>vA.A.w11 -ye11e,;. 7rpou6µ,owi, OAt"(OOpallEec;, 1rA<Xuµ,ara 7rf1AOV, <JKWEWEa <f>vA.' aµ,e111711&, a7rrij11ec; i:¢17µ,€pwi, rnA.aol. {3poroi, &11€pec; eiKeM11eipot11

Vamos, homens de vida por natureza obscura, iguais a gera~iio das folhas, impotentes, figuras de barro, ra~a fragil de sombras, desasados efemeros, mortais desgra~ados, homens semelhantes a sonhos 12

.

0 contexto e bastante dif erente do original, 0 emissor e agora um contemptor, ea enumera9ao da ideia de quanto se ampliou a imagetica da efemeridade. Se entendermos aptenes, "sem asas", como referen­cia a filhotes de passaros, encontraremos um exemplo da mesma

9 . Green, The Similes of Homer's Iliad, 226. 10. II., 21.464. Encontra-se ainda a imagem das folhas, mas com sentido diferente (de grande

mimero, multidiio) em II., 2.468 e Od., 9.51. 11. Aves, 685-687. 12. A tradur,:iio de Antonio Medina Rodrigues sugere o vigor do original :

Eia, android es de sombria natureza, iguais ao genio das folhas, apalermadas flci;oes de limo, inane turba de 1wturnas almas, cipreros efemeros, miseros mortais, homens 011ir6ides

(Medina Rodrigues, Rej7ex6es sobre o C6mico em Ansr6/anes: Um Rswdo de As Aves, trndu~no rrvistn pdo nutor)

GENEALOGIA DO CARPE DIEM 63

imagem em Homero, mas em outra situa9ao, designando outro aspecto da fragilidade humana13

• Eikel6neiroi, "semelhantes a sonho'', fazia parte do paradigma pelo menos desde Esquilo: OJJELPCtTWJJ aAL"(KlOL

µop<f>cx'i<TL 14, "semelhantes a formas de sonhos" - descri9ao dos

homens primitivos, antes da ilumina9ao prometeica. Mas em Pindaro, nos celebres versos da Oitava Pitica, o sentido da imagem e precisa­mente o nosso, e nao se trata mais de "gera96es'', genee, mas de "alguem", nc;:

. . . 'EJJ o oA.[-ylj! {3porw11 TO TEP1rJJOJI <XV~ET<Xt. OVTW 0€ K<XL 1rtrJIH xaµ,ru, Cx1r0Tp01rlj! "(llWµ,q. <JECJH<Jµ,E11011 . • E7r&µ,epot. Tt OE nc;; Tt o' OU nc;; <JKt&c; 011ap Ct.110pw7roc;15

Num instante cresce o prazer dos mortais; e assim cai por terra, abalado por designio extraviante. Efemeros: alguem o que e? o que niio e? sonho de sombra, o homem.

A imagem das .!£!!!as tomou-se moeda corrente e, naturalmente, tambem se encontra na poesia latina. Horacio, fazendo uso dela numa descri9ao metalingiiistica, logo passa a generaliza9ao de teor existencial:

Ut siluaefoliis pronos mutantur in an11os, prima cadunt, ita uerborum uetus interit aetas, et iuuenum rituflorent modo nata uige11tq11e. Debemur morti nos nostraque ... 16

Como as florestas mudam de folhas no declinio dos anos, e as primeiras [que nasceram] caem, assim a velha gera~ao das palavras perece e, a maneira dos jovens, florescem e vi~am as ha pouco nascidas. Nos e as nossas obras nos destinamos a morte ... 17

13. II., 9, 323. 14. Prom., 448. 15. Pyrh., 8.92-96. 16. Ars poerica, 60 e ss. 17. Tradu~iio de Candido Lusitano (1758) :

Assim como a fl oresta pcrde as fo lhas, Quando <k clinn o ano, ass im a idade Das palnvrn ' arn ha oulrns sucedcm, Qur , 1111 s<·1d11s 11pn1as, J" llorrsffm Fut hrln 11u H· hludr, n frn 11a1 11 ftH(;a

No~ r trnlo o q11r I' 1 1tt;~~o 1'1 11 1rn1r t•"i lnrnos Oh1t1>.111 h"

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Giuliana
Highlight

64 T6PIC..\. D..\. EFEMERID..\.DE

Seguem-se versos sobre a perecibilidade das obras humanas e, especialmente, da "beleza e graya vivaz do discurso"(sermonum ... honos et gratia uiuax). Em Virgilio, a imagem das folhas e, mais epicamente, apenas termo de comparayao para a multidao dos espiri­tos que se agrupam as margens do Cocito, na angustiada expectativa de passar para o outro lado18

MET AMORFOSES LiRICAS DO SiMILE

Ena lirica monodica, incluida a elegia, que encontramos as mais significativas alusoes, desenvolvimentos e variayoes desse motivo. Talvez a mais antiga referenda a Ilfada na obra dos liricos seja a citayao do verso 6.146 que encontramos no inicio de uma elegia atribuida a Semonides de Amorgos19

:

ftEJJ OE TO KCtAAL<J'TOIJ Xi.oc; fonv allljp. "oi71 7rEP rf>v/..A.wv -yeve~, rot71 OE Kal &vopwv."

ITaiipoi µ.~JJ rv71rwv oiiaai oe~&µevoi arEpvoia' i:-y1<arf.Oe11ro · 7r&pean -yexp eA.7rlc; e1<&arctJ

CtJJOPWJJ, ~ TE 11f.wv arf.Oeatll eµct>verm. 8JJIJTWll o' or/>pct nc; &vOoc; EX!] 'TrOAV~pctTOIJ ~{371c;,

1<oiir/>011 fxWll Ovµ.011 7r6A.A.' ctTEAEarn voei.· oiire -yexp €A7rt0' EXEL 'YIJPC<UEJ.LEIJ oiire Oct11ei.aOm

oiiO', iryi~c; ornv ii, ¢ponw' EXEL Kctµ&rov. Nfrwi, ok TctVT!] KEi.rm 1160<;, ov OE iaaai11,

we; xp6voc; foO' ~{371c; Kett {3wrov OAL'YO 0111Jrow' . ·AA.A.ix ail rniirn µ.aOwv {3wrov 7rorl rf.pµ.a

Y,uxij rwv ix-yarwv rA.ijOi xapi!;6µevoc;20

18. Virg., En., 6.309 es. Vale lembrar o trecho, pelo maravilhoso toque virgiliano de lapsa: quam multa in siluis autumni frigore primo lapsa cadunt folia ...

Odorico Mendes niio perdeu o detalhe: Quantas no outono as despegadas folhas ca em aos primeiros frios ...

19. M. L. West , considera que em Alceu, Fr. 44. 6-8, se encontra a mais antiga referencia dos liricos a Iliada (M. L. West, "The Rise of Greek Epic", 151 es.) . Ede supor que West, consoa.nte a classificai;:iio corrente na Antigiiidade, niio esteja incluindo os elegiacos entre os liricos , pois naqueles as alusoes homericas datam de epoca anterior. Se a atribui9iio a Semonides de A.morgos da elegia citada for correta, e se o Suda ou Cirilo de Alexandria estiio certos ao situa-lo no s6culo VII a. C., entao esse t::xto, contemporaneo de Arquiloco, estaria entre as nmis antigas referencias a Ilomero entre os poetas. Ver, a prop0sito da atribui9iio a Scrnonidt's, 13abut, "Semonidc c Mimnermo" , 80 e ss. Para Wilamowitz, a forma desses vrrsos e md1gnn clo poet a clc ('cos, mas Frankel considera sua lingua '·muito moderna ·' para Srn10111drs. (Cf Fn111kd, OJI cit , 207, 11 14 .)

''0. Sn11(1111d1·,, 211 I l

GENE..\LOGI..\. DO CARPE DIEM 65

0 que de mais belo disse o homem de Quios: "quais as gera~oes das folhas, assim as dos homens". Poucos, porem, entre os mortais, tendo-o captado com os ouvidos, abrigaram-no no cora\:ao; de fato, em cada homem assiste a esperan~a que brota no peito dos jovens. Enquanto um mortal possui a flor adorlivel da juventude, com imimo leviano pensa em muitas coisas irrealizaveis, pois tern a esperan~a de nem envelhecer nem morrer, nem, quando sao, se preocupa com o sofrimento. Insensatos, que tern assim o espirito e nao sabem que o tempo da juventude e da vida e breve para os mortais. Mas tu, sabendo destas coisas relativas ao termo da vida21

, dispoe-te a conceder prazeres a tua alma22

Aqui, a citayao explicita do verso homerico nao nos deve enganar quanto a extensao dos emprestimos atestaveis: quase toda a materia do poema - suas expressoes e seus temas - tern origem em Romero e Hesfodo. (0 uso do metro dactilico, permitindo ao poeta recorrer a seus dois grandes antecessores, e responsavel por estes versos serem

21. Traduzo ~>..>..a oii TO!~Ta µaO:;,v /3t6rnv 1roTi Tipµa levando em conta a observai;:iio de Ba but, segundo a qual · '7ror[ niio pode ter sentido temporal, como em locu96es do ti po 7rpor; TO y~pa<; (cf,. e.g,. Euripides, Med., 592): a exorta9iio a pensar na brevidade da vida e na inseguraiwa da felicidade humana niio teria de fato nenhum sentido, se fosse endere9ada a quemja esta no lirniar da velhlce, estaria em contradi9iio com ores to da poesia; a proposi9iio tern, portanto, o valor de 'em rela9iio a ... ', 'tendo em vista ... · (cf. Herodoto, 1.20, .. . ;;,KW<; iXv . .. 1rPO<; TO 1rO!PfOP /3ov)\fv71rm), e /3i6rov ?rori ripµa liga-se ao que vem em seguida, niio ao que vem antes'" (Babut, 81, n. 23). Mas, levando em conta que o argumento de Babut, baseado na interpretai;:iio do poema, pode facilmente ser contestado (por que nao seria adequada a exorta9iio carpe diem a quern se aproxi..ma da velhlce ou ja ingressou nela? Horacio mais de uma vez incidiu no que Babut julga contraditorio: cf., e.g., 1.4 .16, iam re premet 11oxfab11/aeque Manes), acrescento que me parece nIBis decisivo o fato gramatical de a preposi9iio 7rOT[ estar acompanhada de acusativo, construi;:iio com a qual e usual o sentido postulado por Babut, ao passo que o sentido temporal demandaria construi;:ao com genitivo. Ver Humbert, Syntaxe Grecque, 318 es.

22. Niio obstante seus escassos meritos poeticos, a elegia de Simonides, como qualquer poema, sofre sobremaneira com mna mera tradu~iio literal. A versiio de Aluizio de Faria Coimbra, modestissima em sua qualidade literaria, tem contudo o merito de acomodar em decassilabos o contetido do original (apesar da interpreta~iio moralista do verso final):

0 que mais belo dissc o homem de Quios, ''Os homens passam como as folhas passam··, muito poucos mortais, de quantos o ouvem, o imprimem n 'alma. Agita-os a esperan~a, que dos mo9os no peito sempre vi9a. Ao que oma a flor gentil da juventude, o imimo inconseqiiente muitos sonhos nutre impossiveis. Nern sequer !he ocorre quc ha ck um clia morrcr, tornar-se velho ou fcri lo 11 clorn~·a Loucos, <'Ssesl Nno vi·1·111 quno hn·vl' 11 quadra l' curt a a vida !

Mns tu qnr ' "lws "''"' n111s11s, 11 nlma com vn t11d1·' dl•.pn11 p11rn 11 vrl h1n·

(lk Fuko ii,, F11rj.1 <~· .. 11111•1 ,1, tJ.\ 1'11',~i11c11.1 (;,l'RP·'· 21.\ ,)

Giuliana
Highlight

i-1

66 T6PICA DA EFEMERIDADE

menos apagados do que os das suas outras composi96es, iambicas.) Mas e aqui que o tema da efemeridade se associa, pela primeira vez (ate onde sabemos), a exorta9ao hedonista, servindo-lhe de premissa ou justificativa. Em Romero, a constata9ao da brevidade e instabili­dade da vida nao leva a conclusao de que OS homens devam dedicar-se aos prazeres possiveis - para Aquiles, a consciencia de que sua vida sera breve impoe a busca da gloria, da nµ~23 • "O supremo hem para o homem homerico nao e a frui9ao de uma consciencia tranqilila, mas da time, a estima publica", observou Dodds24

• Tambem nao e o summum bonum do universo epico a frui9ao dos hens sensoriais, proposta pela lirica e nela depois associada ao ideal da consciencia tranqiiila, na formula estoico-hedonista caracteristica da poesia hora­ciana. Ainda no mundo da Odissiia, bastante afastado do da Iliada, nao ea solu9ao hedonista que se impoe, apesar de se estar menos longe dela: Ulisses, na seqiiencia da fala antes citada, afirmara que o homem nao deve nunca ser injusto - athem{stios, impio -, mas sim aceitar em silencio os dons que os deuses lhe concedam25

Talvez a exorta9ao que se exprime nos versos de Semonides nao seja propriamente um tra90 original de sua poesia, uma "contribui-9ao" sua ao repertorio de motivos poeticos: pode hem tratar-se de um elemento antigo da lirica, ja constante do repertorio de uma poetica comum indo-europeia, embora nao presente na epica por nao se conformar ao universo que ela representa e a sua natureza pontual, nao generalizante OU abstrata. Mas 0 fato e que na chamada "era lirica" da Grecia esse hedonismo passou a teuealc~ 110 encontii[ as coordenadas socioculturais que lhe eram ade~a~s . A ideia de "fazer de cada dia uma unidade em si mesma", que e como Pierre Grimal interpreta a formula boraciana carpe dien1 26 ,ja parece insinuar-se aqui, e sera muito mais evidente nos poetas posteriores, especialmente Alceu. - Aponta-se tambem como novidade o uso da palavra l/;vx~ (psy­

khe'), no ultimo verso, num sentido que nao e mais o homerico. Bruno Snell estabeleceu que, em Romero, l/;vx~ e o sopro vital, que anima o corpo e o abandona na hora da morte, encaminhando-se para o Hades, e que outra palavra, 8vµ6c; (thym6s), indica a sede da afetivi-

23. IL. . 1.352 e s. 24. Dodds, The Greeks and che /rracio11al, 17 es. 25 . Od., 18.141 -2:

T,~ µ~ .. r{c; TOT! T~µTCt V ~a V!'/P a0 ~,µionoc; } ;T/ , a>..>.. ' o -ye 01-yri 6wp<'< Ocwv <xo1 , orn 616oicv.

2C1 . Clrl11111l, U /,yn.11111• t1 Romr, I IN. 1111111/ Trn1nn , 1'01•11 i fl fllll (1• Nl'olt111111) , ·HI

GENE . .\LOGIA DO CARPE DIF..11 67

dade e o "orgao do movimento", que se extingue com o corpo. Semonides, pois, empregaria l/;vx~ num sentido "modemo", onde seria de esperar que Romero usasse 8vµ6c; 21

• Isso seria mais um signo da distancia que separa Semonides do mundo de Romero.

Ja se quis ver contradi9ao, nesta elegia, entre a reprova9ao da leviandade do espirito juvenil, que nutre projetos irrealizaveis, e o convite ao prazer que resume a moral da composi9ao. Daniel Babut considera que ha ai dois temas de natureza di versa - o tema homerico da lucidez e o tema do hedonismo - e que o poeta, no verso final, exorta a fazer exatamente aquilo que pouco antes reprovara28

• Mas nao ha motivo para considerar os dois temas, e as duas atitudes, antiteticos ou inconciliaveis, a menos que assumamos a etica dos herois homeri­cos. 0 que essa heterogeneidade de motivos revela e que estamos num outro universo de valores. A fusao de exigencia de lucidez e concla­ma9ao ao prazer, alias, e constante na lirica do carpe diem, na qual o hedonismo e sempre apresentado como resultante logica da conscien­cia da ef emeridade; dai que ele deva distinguir-se da inconseqiiencia juvenil, inconsciente dos limites da existencia. E precisamente neste ponto que Semonides, OU 0 autor <lesses versos, inaugura, no ambito dos registros que temos, uma formula poetica carregada de pressagio, para usar a expressao de T. W. Adorno. Essa formula consiste na associa9ao dos dois temas mencionados, associa9ao que Schadewaldt descreveu em palavras exatas:

A tristeza de viver converte-se aqui em sombria doutrina orgulhosa de saber. 0 homem deve saber e assurnir a consciencia da rapidez com que a juventude passa. Antes desse conhecimento, vem o que constitui o valor da juventude: que ela vive do momento presente, nao se importando em nada com o futuro, uma loucura. E contudo este conhecimento nao tern outro remedio contra essa loucura, se nao a fuga no momento presente, sempre novo, do prazer29

27. Snell, La C11L111ra Greco e Le Origini del Pensiero Europeo, 28 e ss.; Snell, (39 es. n. 41) considera que em Xencifanes se encontra o primeiro exemplo de uso de >fvx~ em sentido diverso do homcrico; Ba but (82, n. 27) faz-lhe reparo, argumentando com a maior antigili­dade do fragmrnlo ck Scmonides, quaisquer que sejam as dlividas que envolvem sua datai,:iio precisa.

28. Babu! , 83 l' ss 29. Schackwnlcll , /1•/Jl'mz1·111111tl (;11•1.w•110/1a 1111/riiheri Griechem11m, Die Antike IX, (1933) ,

294, oputl Ilnl111l , 1111, 1·11 , H-1, 11 \.1 I'i rnrloso qur Oabut, insistindo no que chama a ' ' c o11lrncli~·11t1 " dr Sn111)11itlr•, h11~q11r 111x11n 110 1n·d10 de Schndewaldt , que pode justamente ~rt 1t111u11ln 1·1111111 11111.1 r 'I'll • 1 1 ~.111 pnwl11111l r q11r dlo Io1w q1111lq11c:r s11spriln de contmdl~ito.

68 T6PICA DA EFEMERIDADE

Depois de Semonides, ou ja em sua epoca, a imagem ~s folh~, no mesmo contexto tematico, aparece em Mimnermo, mas agora em outro diapasao poetico: --

~µEit; o'. oZ& TE <PvA.A.cx. </J(m 7roA.v&11fhµoc; OPT/ °fopoc;, or' cx.ZY,' cx.u-yija' cx.ii~Ernt ~EA.wv,

roic; iKEAOt 1r~XVWll E7rt XPOllOll a118ECTtll ~{31jc; np7roµE8cx., 7rpoc; 8Ew11 EiOonc; oiin Kcx.Ko11

oiir' /xycx.8011 · KijpEc; oE 7rcx.pEar~Kcx.at µ€A.cx.t11cx.t, ~ µh exovacx. reA.oc; -y~pcx.oc; i:r.p-ycx.A.€ov,

~ o' ETEPT/ 8cx.11&row . µillv118cx. OE 'Yll'Ernt ~{31jc; Kcx.p7roc;, oao11 r' hl -yij11 Kwvcx.rm ~i:A.wc;.

cx.urap E7r~ll o~ TOVTO ri:A.oc; 7r<X.pcx.µEtY,Ernt WPTJc;, cx.urum o~ n811&11cx.t {3€A.rwv ~ {3wroc;.

7roA.A.a -yap h Bvµ~ Kcx.Kec -yt11Ernt · &A.A.on oiKoc; rpvxoiirm, 7rEllt1jc; o' ep-y' OOVllTJPCt 7rfAEL.

aA.A.oc; o' ex.ii 1r<X.tOWll E7rtOEVErnt, WP TE µ&A.tarn iµEi,pow11 Kcx.r& -yijc; epxErnt itc; • AioTJ 11 ·

fx.A.A.oc; 11oiiao11 EXEL 8vµo<P86po11 · ouoE rte; i:an11 &118pw7rw11 ~ ZEvc; µ~ Kcx.Kec 7roA.A.& otooi3().

Enos, quais as folhas que produz o tempo da primavera florida, quando depressa vi~am aos raios do sol, assim por um breve momento gozamos das flores da juventude, nada sabendo do ma! e do bem dos deuses31 . Mas as negras Queres ja estiio pr6ximas, uma com o termo da penosa velhice, a outra com o da morte: breve e o fruto da juventude, tanto quanto o espraiar-se do sol sobre a terra. Mas assim que se transpoe o termo desse tempo, estar morto e melhor que a vida, pois males inillneros nascem no cora~ao: algumas vezes consome-se a casa, e vem os tristes gravames da pobreza; um sofre a falta de filhos, e desejando-os muito parte para o Hades sob a terra; outro tern doen~a dessorante; nem existe homem a quern Zeus nao de inillneros males32

.

30. Minm., fr. 2. 31. "J"poi; Of(., JI f;Mui; ovu KCtKOP ovT' ~ya06v: "inscientes do male do bemma:ndados pelos

deuses / por obra dos deuses / dia:nte dos deuses ... Os comentadores e tradutores divergem na i:nterpreta9iio deste passo. Cf. Babut, 33; Degani & Burzacchini, Lirici Greci, 101.

32. P. E. da Silva Ramos traduziu os dez primeiros versos desse poema (Silva Ramos, op. cit., 32), mas a tradu9iio de Aluizio de Faria Coimbra, sobre ser completa, ~ consideravelmente menos injusta com a qualidade poetica de Minmenno, embora ainda muito distante dela:

Como as folhas da fl<irea primavera, quando aos raios do sol uma hora vi~run, nwn s<i fugaz momento a juventude gozrunos, sem que o bem e o mal saibrunos dos deuses. Logo, ao nosso lado, as negras Queres nos trazcm, esta a atroz vdhicl" e aquela, a mortc. Tanto tempo dura da mociclade o pomo quanto ii vista cln 1<·m1 hrollm o sol Fincla rstn q1111dra, 11111110 11111is q11r o v1vrr v11ir o rstar 1110110 M11irs Sl'lll ('(111111 II v11l11 1tfl1gc-111, 1x·1cl1· SI'

GENE.\LOGL\ DO CARPE D/£\1 69

Aqui, como em outros de seus admiraveis fragmentos, Mimner­mo se limita a lastimar a efemeridade ea precariedade da existencia, insistindo sempre no horror da velhice com um pathos nada homerico, de angustia e nao de resigna9ao. Hermann Frankel supoe que "uma conclama9ao positiva a frui9ao prazenteira deve certamente ter-se seguido a cad a um'' <lesses fragmentos, a exemplo da que encontramos no fragmento 7: a~v avrov </>p€va TEp7rE, "da prazer ao teu cora-9ao"33. Os mesmos temas aparecem no fr. 1, que se inicia com os versos de musicalidade e pungencia extraordinarias:

rte; oE {3foc;, r[ oE np7r11011 anp xpvai:TJc; 'A<Ppoolr1Jc;; n811cx.[1J11, on µot µfJKETL rniirn µi:A.ot,

Kpv7rrnoiTJ <Pt'NirTJc; Kcx.l µEiA.LKcx. owpcx. Kcx.l Eu~

[Que vida, que prazer sem a aurea Afrodite? Que eu morra, quando nao mais me interessar o amor furtivo, e os doces presentes, e o leito34.)

A antitese juventude-velhice e desenvolvida em ambos os frag­mentos, mas - como observou Bruno Gentili - no fr. 2 isto se da "numa estrutura mais complexa no dado descritivo, com varia9oes tfmbricas que acentuam a evoca9ao nostalgica da id a de do amor ", em que "o jogo das rimas e das assonancias de fim de verso e obtido com a repeti9ao altemante das mesmas palavras" "tempo"(= esta9ao, do ano ou da vida), "sol" e "juventude": nos versos 1-3, wp11-~EXiov­~{311<; (hore-heeliou-hebes); nos versos 7-9, ~{311<;-~€Xto<;-wp11<; (he­bes-heelios-h0res)35. A imagem ~{311<; Ketp7r6<;(hebes karp6s, "fruto da juventude"), nao registrada nos antecessores de Mimnermo, e, ainda assim, do paradigma homerico: ~{311<; &vOo<; (hebes anthos

deste a riqueza, vem-lhe ardua miseria; outro lamenta o niio lhe virem fill1os e ao Hades desce lastimando a falta; dura molestia aquele 0 vigor furta. A todos duras penas Zeus assina.

(De Falco & Faria C:iimbra, 239.) I.I. Frankel, op. cit., 218. Babut, op. cit., 91, concorda fundamentalmente comFrii:nkel, afirrna:n­

do que em Mimnermo se encontra • 'uma concep91io original da vida, que pode ser definida como uma etica hedonista ".

1·1 Trad11~1\o de P1'ricles Eugenio da Silva Ramos: Scm a Afrodllc de ouro, Cjlll~ vida cxislc, 011 q1w d0911ra'/ Mdhor 111orrcr q11a11do r.11 11110 111ais liver os 11111or1's St·crdos l' os pll·.s<·111cs ell' p11ro 111rl <' o kilo

(Sil vu lfo111os, op. rir , 'JI.) I~ Clrnllli, "M111111r111u>'', l.~i .

(I

" 'bl

~

70 T6PICA DA EFEMERJDADE

"flor da juventude"), imagem equivalente que encontramos no fr. 1, aparece na /Uada36

• Todavia, observa o mesmo Gentili, em Romero ~/371<; &vOo<; "e uma simples nota9iio que serve para qualificar a agressividade e a excelencia fisica de Eneias", ao passo que aqui evoca a "desejavel esta9ao do amor". Portanto, e de toda uma men­talidade diferente que se trata:

Ao ideal her6ico da epica se opoe um ideal mais humano, o </nA.~liovo<; (3fo<;, o prazer do amor: uma concep~ao nao propriamente hedonistica, como se disse, mas pessimista, nao mais aristocratica, mas burguesa, expressao daquela incipiente crise dos valores her6icos que coincidiu, na segunda metade do seculo VII, com o surgi­mento e a afirma~ao, na Jonia, da burguesia mercantil e com o colapso das cidades gregas da Asia Menor sob a hegemonia dos lidios. Os valores de riqueza, for~a, excelencia, sucesso, gradualmente declinam para dar lugar a uma ideia da vida mais coerente com a caduca natureza do homem. 0 prazer do amor, embora evanescente e efemero, e contudo um prazer, portanto um valor, ainda que de breve dura~ao, o supremo valor na idade mais feliz da vida, a juventude37

.

DO SIMILE A CENA - CONSTITUI<;AO DO GENERO

A fala de Glauco na /Uada nao teve, portanto, posteridade menos gloriosa do que aquela de Ulisses na Odisseia. Ela niio so inaugura um dos t6poi mais freqiientados ao longo dos seculos, mas tambem fomece varios elementos de um the6rema predileto da lirica simpo­sial: situa9iio dialogica, imagens da efemeridade e sentido deliberativo (pertinencia ao genos symbouleutik6n), ou seja, injun9ao ou sugestiio de determinado curso de ayiio ou atitude existencial. 0 modelo de um genera parece estabelecido, e niio e fenomeno desconhecido a trans­forma9iio de topos emgenos38

• Podemos dar-lhe o name de carpe diem porque o tear deliberativo, tambem sugerido nos fragmentos de Mun­nermo (especialmente no fr. 1), deslocou-se para a exorta9ao, nao epica, a aderir ao "dia". 0 quadro basico desse genera, ja presente nos versos de Semonides, reaparece no seguinte fragmento de Alceu:

36. IL., 13.484. Indicai;:ao de Gentili, op. cir., 155. 37. Gentili, op. cit., 154. 38. Francis Cairns avcnta a possibilidade de que, para os escritores antigos, os ropoi pudessem

transformar-sc cm gencros indcpendentcs, c estuda o fen6meno em alguns exemplos que parecem confirmar sua hip6tese (Cairns, Generic Co111posirio11 in Greek and Ro1110:1 Poerry, 85 91). 0 caso da passagcrn do ropos do rarpe rltem a gfnero seria mnis 111n drnwnto a se ncrt"scr11111r 11 rssn ('As11istk11

GENEALOG!A DO CARPE DIF.M

11'WllWµEll. 'TL Ta f..vxv' oµµ€voµEv; o&K'TVAO<; exµEpa. Kao li'aEppE KvA.ixvm<; µey&A.m<;, Ot.'irn, 7rOU(LAm<;· oivov "{ap I;Eµef..a<; Kat ill.a<; vio<; A.a6U(&lirn &v6pw7rounv i'.liwK'. hXH Kipvm<; ha Kal livo 7rAfot<; KaK wp&A.a<;, <ix> o' &ripa Tall Cx'TEpav KVAL~ w6~TW39 •

71

Uebamos; por que esperamos as lampadas? [sobra] um dedo de dia [ou: o dia e breve como um dedo]; apanha, meu caro, as grandes ta~as decoradas. 0 filho de Semele e Zeus [Dioniso] deu aos homens o vinho como olvido dos tormentos. Misturando uma parte [de agua] a duas [de vinho], enche as ta~as ate a borda, e que uma se siga a outra40

0 que Cairns chama os "elementos primarios" de um genera siio, aqui, todos congeniais a lfrica simpotica: o sujeito dialogante (I. o enunciador), seu interlocutor (II. o enunciatario), a exorta9ao (III. o enunciado de orienta9ao conativa)41

• Areferencia ao simposio ja abre o poema: bebamos. 0 genera desenvolve, nessa situa9iio, a tematica da efemeridade e do hedonismo. Certamente este era o inicio de um poema do tipo:

11'WVWµEll, ro "{ap Ot.urpov 1rEPL'TEAAETat42•

bebamos: o astro esta completando a sua volta.

39. Ale., Frag. 346 LP. 40. Muitos entendem quc se trata de uma mistura mais fraca e habitual: duas mcdidas de agua

para uma de vinho. Mas, dado que era comum mencionar primeiro a propon;;ao de agua c depois a de vinho, e considerando que a exorta~ao 6 a um simposio sem Iimites ("que uma ta~a se siga a outra"), parece estranho que o poeta detenninasse uma propor~ao comedida para a mistura. A tradu~ao de P. E. da Silva Ramos tamb6m neste ponto apequena o texto:

Bebamos. Esperar as lampadas, por que? E breve o dia. Traze-nos, amor, as grandes ta~as multicores. Quando o filho de Zeus e Semele nos deu o vinho, fe-lo para esquecermos nossas penas. P6e duas partes de agua, uma de vinho: encham-se as ta~as at6 a beira, e sem demora siga-se uma tai;:a a outra.

(Silva Ramos, op cit , 58.) 41. Lembrc sr q11r o Ir I ck Mimncrmo encerra uma esp6cie de amargurado carpe diem -rpo<;

o<avr6v; d111 "'' ' vc-ooss11111l nclmitida a conjectura de Frankel antes mencionada - que o fr 2 11v1·ssc· o llll'M1111 lc·w, c·111111111do, portnnto, corno interlocutor, com wn double do proprio r111111c·indo1

<17 Air, I~) l I'

./.!

Giuliana
Highlight

72 T6PICA DA EFEMERIDADE

Nesses fragmentos, a imagem, embora pertenya ao mundo natu­ral, a ordem dos fenomenos cfclicos, niio e (OU nao e mais) 0 simile homerico, nem e um simile. Nao funciona como segundo termo de comparayiio, mas e cenario da situayiio dialogica, sugerindo e justifi­cando a orientayiio conativa do discurso. Integrando-se ao quadro presente, ela acrescenta a exortayiio a premencia do imediato. 0 elemento do mundo natural niio tern 0 carater de introduyiio figurada a uma verdade abstrata, mas, como elemento da situayiio concreta, ele ganha extraordinaria densidade lirica, pois participa do micleo de uma enunciayiio que indicia o presente.

Varios outros textos do corpus aleaico pertenciam, claramente alguns, provavelmente outros, a composiyoes desse genero43

• Apesar da drastica mutilayiio sofrida, e visivel o conjunto de t6poi do seguinte fragmento:

IICm[ .. ..... ] Me;>..&vi11"7r' &µ,' €µ,oi . n[ .. ].[ tornµ,€[ .. . ] oivv&ePT't • Axepovrn µ,e'Y[av

t'&.Bm[r; a]EALW KoBapov </>&or; [&iftepov oifteaB', &;>..;>..' Cx'YL µ,~ J.tE'Y&AWJI h[t/3&}..}..eo

Kat 'YCtP Eiav<t>or; Aw;>..wmr; /3aai}..evr; [ &vopwv 'lrAEwra voria&µEVor; [

aAACt Kat 'lrOAVtOptr; EWJI V'lrCt KCtpL [olr; qivv&evr' • AxepoPT' e7repmae, µ,[

a]iirw<i> µ6xBov EX1JV Kpovwmr; /3~[atAevr; K&rw J!.EAatvar; x86vor; . a;>..A' Cx'YL µ,~ r&[o' f'lrEA'lrEO . [-] B&r;] r'&/3&.aoµev ai 7rorn KCxAAorn v[iiv 7rpeni ¢ep]1)1' OTTLl'a TWIJOE 1r&81]1J r&[xa oc\i (}for;. [-] .. .. .. &11e]µ,or; /3opimr; f'lrt. [44

Bebe .. . Melanipo, junto comigo. Que .. . depois de teres atravessado o grande rio Aqueronte, veras de novo a pura luz do sol? Vamos, nao mires a grandes coisas .. . pois ate Sisifo , o rei filho de Eolo ... o mais sabio dos homens .. . mas mesmo sendo astute , por obra do destine atravessou duas vezes o Aqueronte voraginoso ... o rei filho de Crones ... a ele sofrer suplicio sob a terra negra. Mas, vamos, nao aspires a estas coisas; agora, enquanto formos jovens, e o memento em que convem suportar o que disto o deus nos fa~a passar ... o vento Boreas .. .

43 . Incluindo os ja citados, regislrem-se, sempre na nwnera~iio Lobel-Page: 38a, 50, J32, 333, 335, 338, 342, 346, 347, 352,362,366,367,368, 369, 401.

44 Ale., 38n LP.

CE!\E.\LOGI.\ DO C.1RPl' D/£\1 73

Aqui, o tema da morte recebe a ilustrayiio do mito e da lugar a advertencia sobre esperanyas descabidas, que ja vimos em Semonides e que reencontraremos repetidamente em Horacio. Tambem a concla­mayiio a suportar o que ocorra reaparecera traduzida nas formulas do estoicismo horaciano. No fr. 38b, que alguns editores creem conter residuos do mesmo poema, podemos ler, alem de "Boreas" ({3opiaic;, o vento norte), alguns restos de palavras: "cidade" (7r6A.tv), "lira" (KL0apiao[), "sob o teto" (]7rwpocptwvL[), "partilhar" (]w7ri:oi:x[). Essas ruinas sugerem imagens de outros motivos que encontraremos depois: o abrigo aconchegante em dias de inverno, a musica, a com­panhia amiga.

Um quadro sumario dos t6poi ou "elementos secundarios" do genera ja pode ser esboyado a partir dos poemas transcritos, aos quais acrescentaremos, para reforyo da exemplificayiio, Simonides 520 e 521 P45

, e Teognis 1007-1012:

J. consideray6es sobre a instabilidade, a incerteza e a fugacidade da existencia, geralmente com similes do mundo natural (com ou sem ilustrayiio mitica) e antiteses como invemo-primavera, juventude­velhice, dia-noite, perenidade-finitude (Sem. 29.2, 10-12; Mimn. 2 1-5; Ale. 346.1; 352; Sim. 520. l; 521.2-4; Teog. 1009-1011);

2. advertencia sobre a inutilidade das preocupay6es com o futuro (Sim. 520.2, 521.1-2);

3. advertencia sobre esperanyas descabidas (Sem. 29.4-7; Ale. 38a.l-2, 4, 10);

4. memento mori, com ou sem exempla e imagens enfatizadoras (Sem. 29.10-12; Mimn. 2. 5-8; Ale. 38a.l-4; Sim. 521.4; Teog. 1010-1011);

5. advertencias ameayadoras sobre a velhice (Mimn. 2.6; Teog. 1010-1011);

6. conselho de resignar-se ao que os deuses nos reservam (Ale. 38a.ll-12);

7. exortayiio ao gozo do presente, convite ao vinho, a festa, ao amor (Sem. 29.12-13; Ale. 38a.l; 352; 346. l; Teog. 1007-1009).

45 . 0 11101ivo q11r Jll'lll irn" 1111 l11 si11 1 do' lrn1(llU' lll OS de Simiinidcs e 0 mesmo que levou Frankel 11 c o11s idn 111 q11r '" I'"'.""'" 'It- M1111111· 1111111k vr 11111· 1 co111iclo n cxo 11 n~ao heclonistn . Cf. supra p. (>'Ir 11 U

74 T6PICA DA EFEMERIDADE

0 CARPE DIEM EM ROMA: CATULO

Depois de seu estagio helenistico, a poesia do carpe diem encon­trou em Roma um ambiente especialmente propicio. Do ponto de vista literario, as galas gregas e alexandrinas do genero o recomendavam a imitatio e aemulatio dos autores latinos; de um ponto de vista mais amplo, sem duvida teve importancia nessa aceita9ao o pragmatismo caracterfstico da sociedade romana, inclufdo af seu estoicismo, sua considera9ao desidealizada da existencia e, provavelmente, o influxo dos pensadores cinicos, nem sempre lembrado neste contexto46. Deve­se levar em conta ainda o enriquecimento cultural e hist6rico que permitiu uma vida privada muito nitidamente oposta a vida publica.

0 cultivo do genero deve ter-se iniciado na gera9ao de Catulo, no grupo dos ne6teroi ou modemistas helenizantes. E do pr6prio Catulo o extraordinario exemplo que nos sobrou desse momento da poesia latina:

Viuamus, mea Lesbia, atque amemus rumoresque senum seueriorum omnes unius aestimemus assis. Soles occidere et redire possunt, nobis, cum semel occidit breuis Lux, nox est perpetua una dormienda. Da mi basia mille, deinde centum, dein mille altera, dein secunda centum, deinde usque altera mille, deinde centum. Dein, cum milia multafecerimus, conturbabimus illa, ne sciamus, aut ne quis malus inuidere possit, cum tantum sciat esse basiorum.

Vivamos, minha Leshia, e amemos, e atribuamos aos rumores dos velhos mais severos, todos, o valor de um vintem. Os sois podem p6r-se e retornar, mas nos, uma vez que se poe a nossa breve luz, devemos dormir uma so e perpetua noite. Da-me mil beijos, depois cem, depois outros mil, depois mais cem, depois, sem cessar, outros mil, depois cem. Depois, quando ja tivermos acumulado muitos mil, embaralhemos a conta, para que niio saibamos, e para que algum malevolo niio nos possa invejar [= p6r mau olhado], quando saiba que tantos foram os beijos.

Os versos de Catulo, que exercem ha dois mil anos o fascinio que sempre se atribuiu a for9a da emotividade espontanea do poeta,

46. Sabre a influcncia dos cinicos, vcr Festug1i·rt". /,n Vie spirit11elle en Greer ri / 'epoq11e ill'lltlt11stiq11e, 152 c ss

GENL\LOGIA DO CARPE DIEM 75

sao uma demonstra9ao de sofisticada simplicidade num genero de gloriosa tradi9ao. 0 material t6pico e distribufdo segundo um procedi­mento que ja encontramos no poema 9, examinado no capitulo ante­rior47, e que recorre em Catulo: a composi9ao circular, em anel (Ringkomposition), se inicia e encerra com um mesmo elemento, aqui o mesmo topos. A seqiiencia, no poema, dos t6poi do elenco acima e: 6, 1, 4, 6, ou seja, ab ca. A formula exortativa (topos 6), como a que aparece em dois fragmentos de Alceu (346 e 352 LP: 7rWVWJJ-€V

"bebamos") e que e 0 incipit de diversos poemas do genero, e aqui expressa numa hendiadis: uiuamus atque amemus. Esse tema hedo­nista, com seu motivo amoroso, e associado a um rasgo de alexandri­nismo aristocratico, a Calimaco, - um tra90 forte em Catulo: a recusa de oi 7rOAAo[ (hoi polloi), "os muitos", sempre antagonistas. Os dois motivos sao enla9ados tambem no piano sonoro, com a alitera9ao do s, do me do u soante ea assonancia do u vogal. 0 topos seguinte e um memento mori onde a imagem nao poderia ser mais simplesmente 6bvia do que nox, "a noite", desde Romero associada a morte48. Mas a intensidade obtida com essa imagem ainda surpreende poetas e criticos como T. S. Eliot, que a coloca acima da impressionante representa9ao horaciana da morte que bate as portas com o pe49

• Nessa admira9ao nao deve ter deixado de contar um movimento de sintaxe e metrica apontado por comentadores: a fusao senora e antitese imagetica resultante da contigiiidade, em posi9oes fortes de fim e inicio de verso, das palavras Lux e nox, especialmente porque e rara a ocorrencia de um monossilabo isolado no fecho do verso50

• E, depois da brevidade sugerida por esse entrechoque de monossilabos, o tetrassilabo dormienda, "deve ser dormida ", encerra o verso 6, e a primeira parte do poema, com lentidao e gravidade.

A segunda parte se inicia com uma retomada do convite hedo­nista, que reaparece em amplifica9ao extensa e intensa. Mas agora ja nao ha nem a discreta hendiadis de sua primeira versao; a hiperbole monocorde dos beijos e o desenvolvimento macrol6gico repetitivo do topos inicial, de novo associado ao topos da rejei9ao do vulgo, o vulgo maligno, que tambem Horacio nao perde ocasiao de desprezar5 1

• A

47. Cf. supra 28. 48. Ver, e.g., Od., 11.19. Um exemplo helenistico muito proximo da Crase de Catulo se encontra

em Asclepiadcs A11th Pal., 12.50.8: r~P µa.KpaP PVKr' ~Pa.Ta.vo6µe8a., "dormiremos a grnnde 11011<1"

49 llor , Cm 111 , I 4, U · I i1 , V I ·:hot, "Andrew Marvell", Selected Essays (trad. fr.: Essais rltoi.\1.\, 2'1'1 r ' ·l

50. V <l11hr11111tl•, r hudyn:, 111/ /111

~I 11111 , C '111111 , .' I Ii ,1'.I .Ill 11111/1 ,1:1111111 ·'1"'1111'11• 1111/g11.\', ''dc·~p1-r;11r o v11lgo 111111ig110''

Poema 5

Giuliana
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Giuliana
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Giuliana
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76 TO PICA DA EFEMERIDA!JE

insistencia desvairada, "romantica", nos "beijos mil", assim coma introduziu o motivo do invejoso (v. 9: cum milia multa fecerimus), retoma, enquadrando-o e fechando o poema de forma retumbante, de nova com a reitera9ao do u (outro dado da composi9ao circular), acrescida de alitera96es de /m/ e /t/, coincidindo o grupo /um/ com os dais primeiros ictos do verso e ocorrendo o /t/ no segundo e no terceiro (as maiusculas indicam os ictos):

c VM tanTVM sciaT Esse basiOrum.

A hiperbole com que e tratado o motivo dos beijos - tambem de ascendencia helenistica - repete-se nos poemas 7 e, especialmente, 48; ela foi tomada coma uma extravagancia de Catulo, e nao apenas pelo uso, que tern seu primeiro registro nestes versos, da palavra basium em vez da corrente sauium52

• Esse frenesi de beijos provocou rea9ao entre os contemporaneos, que, tendo criticado o "despudor" e "pouca masculinidade" do rasgo amoroso, receberam violenta res­posta, em versos em que a obscenidade se mistura com a formula9ao de uma breve poetica "objetivista ", de desidentifica9ao de obra e poeta: OS basia sao gra9as do genera, movem 0 leitor; Catulo e outra coisa53

A divisi:io do poema em duas partes atende a seqiiencia dos t6poi ea distribui9ao dos periodos. A primeira parte (vv. 1-6), que podemos musicalmente chamar "exposi9ao", cons ta de do is periodos: o pri­meiro (vv. 1-3) e ocupado pelos t6poi para os quais as expressoes horacianas sao carpe diem e spernere uolgus; o segundo (vv. 3-6), pelo topos da morte. A segunda parte (vv. 7-13), que tambem con~ta de dais periodos, e uma reexposi9ao, com varia96es, dos dais primeiros t6poi: no primeiro periodo (vv. 7-9), o carpe diem reaparece na varia9ao dos beijos; no segundo periodo (vv. 10-13), o motivo do invejoso corres­ponde a uma varia9ao do spernere uolgus, que e circundado pela presen9a insistente dos beijos (vv. 10 e 13). Portanto, entre a exposi9ao e a reexposi9ao dos dais t6poi iniciais, o terceiro, da morte, ocupa posi9i:io central e nao se repete.

52. As nuances sernanticas de basium siio comentadas em Vasconcellos, Realidade Biografica e Verdade Poerica no ''Romance Amoroso'' de Catulo, 201-4. Bayet afirma que o tema dos "beijos inumeraveis", "totalmente literario", aparece em Mosco, 2.108 es. (Bayet, "Ca­tulle, la Grece et Rome'', 101, n. 4.) Masnesses versos de Mosconiio ha nenhuma referencia ao tema e, quando ele aparece, em outros trechos do poeta, nunca recebe tratamento hipcrb6lico semelhante ao de Cat11lo.

51 Cut, 16. V . Sll/Jrll 45 c 11 68

GENEALOGIA DO CARPE DI&\f 77

Se dividirmos os motivos do poema em principais (prazer e 11111rte : A e C) e secundario (b: recusa do vulgo), sua disposi9ao i111t'trica pode ser representada no seguinte esquema: Ab C Ab, sendo

1 11ltima instancia deb composta de AbA54•

CATULO EM PORTUGUES

a. Almeida Garrett

Em nossa lingua, embora Catulo tenha sido hem menos traduzido q11e Horacio, podemos tra9ar uma sugestiva historia, a partir do seculo XIX, das versoes deste poema. Em nossos seculos classicos, a lirica de Horacio desperta mais aten9i:io que a de Catulo e as modula96es horacianas do tema hedonista encontraram numerosos interpretes e t•mulos, embora Tomas Antonio Gonzaga, em que pese a todo o seu horacianismo e recolhimento pundonoroso, apresente algum timbre catuliano em suas varia96es do carpe diem, timbre devido especial­mente a melodia e ao impulso enamorado de seus versos55

Mase normal que entre OS pre-romanticos e romanticos brilhasse mais a estrela de Catulo. De fato, o primeiro tradutor catuliano de nota e Almeida Garrett, que, em apontamento de 1832, informa ter tradu­zido poemas do veronense quando do ultimo ano de seu curso em Coimbra, entre 1820 e 1821. Acrescenta Garrett que "a maior parte do trabalho, e o melhor, que ainda estava por copiar" perdeu-se em naufragio, e so restaram os primeiros ensaios. Entre eles, a tradu9ao do poema 5:

Vivamos, minha Leshia, amemos sempre, E os rumores dos velhos rabugentos Saibamos desprezar, te-los em nada. 0 sol pode morrer, tornar de novo; Nos, se urna vez a breve luz nos morre, Uma e perpetua noite dormiremos.

54. Outros dados da organi1ai;ao do poema de Catulo siio estudados na recente disserta9iio de mcstrado <k Paulo Srrg10 Vasconcellos, que leva em conta boa parte da melhor critica que se tem oc11pndo dr\s<· 1<·x10 Cf Vasconcdlos, op. cir., 96-98, 114, 121-22, 159-161, 201-204.

55. Cf Clo11111ga, M1111/t11 t!1• /li1rr11 , I I) "Minim be la Marilia, tudo passa ". Uma aprecia9iio drslr po1·111a 110 •·111111111111 d<' 1111\1111·; dos l\nlll<ks [>O\'nias mundiais do convite amoroso (que ('011s11111i <1111 ,111>1~•'11•!111 d111 ·1111•1• di1·111) ,.,,,·0111rn s•· <'Ill Cancl1clo, "As Rosasco Tempo". ~ \ r' V 111/111 t 'np •L