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LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO DO CAMPO: DESAFIOS À FORMAÇÃO DE EDUCADORES E À TRANSFORMAÇÃO DA ESCOLA DO CAMPO: REFLEXÕES A PARTIR DAS TURMAS DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA Mônica Castagna Molina Universidade de Brasília RESUMO O artigo apresenta inicialmente o contexto histórico do Movimento da Educação do Campo, a partir da disputa de projetos presentes no território rural brasileiro. Em seguida, são trazidas ao debate as principais características que dão materialidade à concepção de Escola do Campo, construída a partir das práticas dos movimentos sociais camponeses. Trata-se, portanto de uma concepção que emerge das contradições da luta social e das práticas de educação dos trabalhadores do/no campo. O acesso ao conhecimento, a garantia do direito à escolarização para os sujeitos do campo, faz parte desta luta, na qual se insere também as lutas por políticas públicas de formação de educadores, que se orientem por determinado perfil docente forjado neste processo histórico construído pelos camponeses. A partir deste contexto, o artigo apresenta as principais características de uma política de formação de educadores do campo conquistada nestas lutas, que se materializa nas Licenciaturas em Educação do Campo. Na sequência, apresentam-se a partir da experiência empírica da formação de educadores na Licenciatura em Educação do Campo - LEDOC, da Universidade de Brasília, com três turmas já concluídas e quatro em andamento, e das reflexões teóricas sobre este processo formativo, realizadas a partir do Programa de Pós Graduação em Educação desta instituição, no qual já foram defendidas seis dissertações e quatro teses sobre a LEDOC, os principais desafios enfrentados na formação dos educadores do campo e na promoção de ações e práticas pedagógicas que, efetivamente, contribuam na materialização da chamada Escola do Campo. Palavras-chave: Educação do Campo; Formação de Educadores; Escola do Campo Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade EdUECE - Livro 3 02589

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LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO DO CAMPO: DESAFIOS À FORMAÇÃO DE

EDUCADORES E À TRANSFORMAÇÃO DA ESCOLA DO CAMPO: REFLEXÕES A

PARTIR DAS TURMAS DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Mônica Castagna Molina Universidade de Brasília

RESUMO

O artigo apresenta inicialmente o contexto histórico do Movimento da Educação do

Campo, a partir da disputa de projetos presentes no território rural brasileiro. Em seguida,

são trazidas ao debate as principais características que dão materialidade à concepção de

Escola do Campo, construída a partir das práticas dos movimentos sociais camponeses.

Trata-se, portanto de uma concepção que emerge das contradições da luta social e das

práticas de educação dos trabalhadores do/no campo. O acesso ao conhecimento, a

garantia do direito à escolarização para os sujeitos do campo, faz parte desta luta, na qual

se insere também as lutas por políticas públicas de formação de educadores, que se

orientem por determinado perfil docente forjado neste processo histórico construído pelos

camponeses. A partir deste contexto, o artigo apresenta as principais características de

uma política de formação de educadores do campo conquistada nestas lutas, que se

materializa nas Licenciaturas em Educação do Campo. Na sequência, apresentam-se a

partir da experiência empírica da formação de educadores na Licenciatura em Educação

do Campo - LEDOC, da Universidade de Brasília, com três turmas já concluídas e quatro

em andamento, e das reflexões teóricas sobre este processo formativo, realizadas a partir

do Programa de Pós Graduação em Educação desta instituição, no qual já foram

defendidas seis dissertações e quatro teses sobre a LEDOC, os principais desafios

enfrentados na formação dos educadores do campo e na promoção de ações e práticas

pedagógicas que, efetivamente, contribuam na materialização da chamada Escola do

Campo.

Palavras-chave: Educação do Campo; Formação de Educadores; Escola do Campo

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302589

LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO DO CAMPO: DESAFIOS À FORMAÇÃO

DE EDUCADORES E À TRANSFORMAÇÃO DA ESCOLA DO CAMPO:

REFLEXÕES A PARTIR DAS TURMAS DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Mônica Castagna Molina

Universidade de Brasília

INTRODUÇÃO

Nos últimos quinze anos, no Brasil, a Educação do Campo, materializou-

se em diferentes instâncias da sociedade civil e conquistou seu espaço na sociedade

política, devido ao protagonismo dos movimentos sociais e sindicais do campo que a

constroem e ao o acirramento das contradições e da luta de classes neste território. Este

acirramento é resultado da intensificação da lógica de acumulação de capital no meio

rural ocorrido neste mesmo período histórico, em decorrência da consolidação do

agronegócio, que representa uma aliança entre os grandes proprietários de terra, o capital

estrangeiro e o capital financeiro.

A dinâmica alcançada na Educação do Campo, não pode ser compreendida

em separado deste processo, pois é em reação e oposição as fortes conseqüências da

expropriação de suas terras e de seus territórios pelo agronegócio, que a classe

trabalhadora do campo intensifica também suas lutas pela manutenção e conquista de seus

direitos, entre eles, o direito ao conhecimento e à escolarização, como parte destas

estratégias de resistência na terra e da garantia de sua reprodução social a partir do

trabalho no campo.

A partir das próprias lutas dos movimentos sociais, nestes quinze anos foram

conquistadas políticas para garantir o direito à educação aos camponeses, incluindo uma

política específica de formação de educadores, que se materializa no Programa de Apoio

às Licenciaturas em Educação do Campo - PROCAMPO. Os dados da realidade

desnudam a exigência e urgência da especificidade desta política pública: a formação

dos docentes que atuam no campo indica que dos 311.025 profissionais em exercício,

61% não tem formação de nível superior, o que significa um contingente de

aproximadamente 178 mil professores sem a formação adequada atuando nas Escolas do

Campo.

*Pós-Doutora em Educação pela Unicamp. Professora da Licenciatura em Educação do Campo

da UnB. Coordenadora do Observatório da Educação do Campo/CAPES.

O tema deste Endipe, “A didática e a prática de ensino nas relações entre a escola,

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302590

a formação de professores e a sociedade”, abre um amplo espaço para apresentação das

reflexões que vem se fazendo no âmbito destes cursos de Licenciatura em Educação do

Campo – LEDOC.

Esta nova modalidade de graduação, que nasce a partir da luta dos movimentos

sociais do campo para conquistar uma política específica de formação de educadores para

atuar nas escolas do território rural, tem, exatamente, como maior intencionalidade, a

perspectiva de formar um docente capaz de promover um profundo vínculo entre as

tarefas específicas da escola e as demandas da comunidade durante a realização destas

tarefas.

Se, de uma maneira geral, espera-se que a escola seja capaz de promover a

socialização das novas gerações e transmitir os conhecimentos historicamente

acumulados, espera-se também, no Movimento da Educação do Campo, que ela seja

capaz de tornar-se uma aliada dos camponeses em luta para permanecer no seu território,

existindo como tais, enquanto camponeses. É imprescindível formar educadores do

campo capazes de indagar a realidade e buscar os elementos que ampliem sua

compreensão sobre o porquê se fecharam, de acordo com dados do próprio INEP, mais

de 32 mil escolas rurais nos últimos dez anos (de 102 mil, em 2002 para 70 mil em 2013).

Se o movimento da Educação do Campo compreende que a Escola do Campo

deve ser uma aliada dos sujeitos sociais em luta para poderem continuar existindo

enquanto camponeses; para continuar garantindo a reprodução material de suas vidas a

partir do trabalho na terra, é imprescindível que a formação dos educadores que estão

sendo preparados para atuar nestas escolas, considere, antes de tudo, que a existência e

permanência (tanto destas escolas, quanto deste sujeitos) passa, necessariamente, pelos

caminhos que se trilharão a partir dos desdobramentos da luta de classes; do resultado

das forças em disputa na construção dos distintos projetos de campo e de sociedade em

luta na sociedade brasileira.

Mantida a atual configuração da aliança de classes hoje internacional, que

transformou os alimentos em commodities, e que necessita, para seu modelo de produção

agrícola, baseado em vastas extensões de terra; no uso de altíssima tecnologia nos

processos de produção, com mínima utilização de mão de obra; na monocultura e no uso

intensivo de agrotóxico, não haverá Escolas do Campo e, muito menos, sujeitos

camponeses a serem educados neste território, pois, este modelo agrícola funda-se, no

que se costuma chamar na sociologia, de uma ruralidade de espaços vazios, de um campo

sem sujeitos.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302591

A intensa e veloz redução do número de escolas existentes no território rural, não

pode ser vista em separado deste processo. Já existem teses de doutorado que comprovam

a relação entre estes fenômenos, entre as quais destaca-se a que produziu um relevante

estudo cartográfico no qual, a partir da sobreposição de mapas nos quais se registra os

territórios do avanço do agronegócio na região Centro Oeste, se demonstra a fagocitose

das escolas rurais nos mesmos espaços, como o corolário da desterritorialização dos

sujeitos camponeses pelo modelo hegemônico de organizar a agricultura baseado no

agronegócio. (Souza, 2012)

O processo de fagocitose das escolas neste contexto está indissociavelmente

relacionado ao destino do campo, e do debate central a ele subjacente: a ausência de

trabalho no campo, em função da intensíssima incorporação de novas tecnologias, e de

cada vez mais trabalho morto. Enfrentar, portanto, o desafio do fechamento das escolas

do campo, implica necessariamente, enfrentar o modelo de desenvolvimento hegemônico

do capital, não havendo saída senão nas lutas por sua superação. (Bogo, 2012)

Apostando na compreensão gramsciniana que entende a escola como um espaço

em disputa, como importante lócus de produção de contra hegemonia aos valores da

sociedade capitalista, o movimento da Educação do Campo trabalha com a perspectiva

de formar educadores camponeses que possam atuar nestas escolas como intelectuais

orgânicos da classe trabalhadora (Gramsci, 1991) contribuindo, por sua vez, com a

formação crítica dos educandos que passem por estas unidades escolares, dando-lhes

condições de compreender entre os modelos de desenvolvimento do campo em disputa,

como parte integrante da totalidade maior da disputa de projetos societários distintos,

entre a classe trabalhadora e a capitalista.

Como formar este educador camponês capaz de tal prática educativa? Que

concepções de educação; de sociedade e de escola devem guiar um processo formativo

para contribuir com uma tarefa de tal magnitude? A concepção de formação construída

pelos movimentos sociais para a Licenciatura em Educação do Campo tem potencial para

este desafio? Que estratégias formativas tem sido propostas pela Licenciatura em

Educação do Campo, que contribuem para formar educadores que possam promover

práticas que, em alguma medida, produzam as transformações nas Escolas do Campo

nesta direção?

O objetivo deste artigo é apresentar, a partir da experiência empírica da oferta de

sete turmas de Licenciatura em Educação do Campo (três já concluídas e quatro em

andamento), na Universidade de Brasília, e das reflexões teóricas sobre estas práticas,

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302592

que vem sendo realizadas na Linha de Pesquisa “Educação do Campo”, do Programa de

Pós Graduação em Educação da mesma instituição, que conta com 6 dissertações e 3

teses defendidas sobre a LEDOC, os principais desafios enfrentados na formação dos

educadores do campo e na promoção de ações e práticas pedagógicas que efetivamente

contribuam na materialização da chamada Escola do Campo (MOLINA e SÁ, 2012).

1. Breve histórico da Licenciatura em Educação do Campo e de seus objetivos

O PROCAMPO é uma política de formação de educadores do campo, conquistada

a partir da pressão e das demandas apresentadas ao Estado pelo Movimento da Educação

do Campo. Pautada desde a primeira Conferência Nacional por Uma Educação Básica do

Campo - CNEC, realizada em 1998, a exigência de uma Política Pública específica para

dar suporte e garantir a formação de educadores do próprio campo vai se consolidar como

uma das prioridades requeridas pelo Movimento, ao término da II Conferência Nacional

por Uma Educação do Campo, realizada em 2004, cujo lema era exatamente “Por Um

Sistema Público de Educação do Campo”.

A partir daí, é instituído um Grupo de Trabalho que fica responsável pela

elaboração da proposta que deveria subsidiar a Secretaria de Alfabetização Continuada,

Diversidade e Inclusão - SECADI, na proposição ao MEC, do que deveria vir a ser uma

proposta de formação de educadores campo. Em função da correlação de forças presentes

naquele período; do acúmulo conquistado pelos movimentos na elaboração e participação

no PRONERA; na concretude advinda do acúmulo de realização de mais de oito anos de

execução dos cursos de Pedagogia da Terra (cuja primeira experiência realiza-se em

1998), os movimentos sociais foram capazes de influir de forma relevante na indicação

dos membros integrantes do referido Grupo de Trabalho. (Santos, 2012a)

Os movimentos demandam e logram neste período a conquista de um processo de

elaboração bastante dialogado e articulado com suas representações. Após os encontros

específicos do Grupo de Trabalho para dar forma ao primeiro desenho da política foram

realizadas também reuniões com as representações dos movimentos sociais e sindicais

do campo, nas quais submeteu-se ao debate a proposta elaborada, para finalmente, chegar-

se a versão que foi apresentada às várias instâncias do MEC responsáveis pela

implementação do Programa, que finalmente, aprovou o desenho das Licenciaturas em

Educação do Campo.

Os cursos de Licenciatura em Educação do Campo têm como objeto a escola

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302593

de Educação Básica do Campo, com ênfase na construção da Organização Escolar e do

Trabalho Pedagógico para os anos finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio. Os

cursos objetivam preparar educadores para, além da docência, atuar na gestão de

processos educativos escolares e comunitários.

A organização curricular desta graduação prevê etapas presenciais (equivalentes

a semestres de cursos regulares), ofertadas em regime de alternância entre Tempo Escola

e Tempo Comunidade, tendo em vista a articulação intrínseca entre educação e a realidade

específica das populações do campo. Esta metodologia de oferta intenciona também

evitar que o ingresso de jovens e adultos na educação superior reforce a alternativa de

deixar de viver no campo, bem como objetiva facilitar o acesso e a permanência no curso

dos professores em exercício nas Escolas do Campo.

Pretende-se formar educadores capazes de promover profunda articulação entre

escola e comunidade. Portanto, um dos princípios cultivados com mais força refere-se à

construção das condições necessárias para que estes futuros educadores possam

internalizar a compreensão das relações da escola com a vida.

Inspirada na experiência de Pistrak (2000), a proposta curricular da Escola do

Campo deve necessariamente vincular-se aos processos sociais vividos, em um sentido

de transformação social, articulando-se criticamente aos modos de produção do

conhecimento e da vida presentes na experiência social. Muito embora a Escola do

Campo mantenha os traços universais que toda educação deve apresentar, esta é uma

condição fundamental para que ela possa contribuir, a partir das especificidades da vida

rural, para a superação da alienação dos sistemas educativos em relação às transformações

sociais, pois conforme afirma Freitas,

(...) se a ligação da escola é com a vida, entendida como atividade humana criativa, é

claro que a vida no campo não é a mesma vida da cidade. Os sujeitos do campo são

diferentes dos sujeitos da cidade. (...) O campo tem sua singularidade, sua vida e a

educação no campo, portanto, não pode ser a mesma da educação urbana, ainda que

os conteúdos escolares venham a ser os mesmos. A questão aqui não é reconhecer que

há uma identidade para os sujeitos do campo, mas reconhecer que há toda uma forma

diferente de viver a qual produz relações sociais, culturais e econômicas diferenciadas.

Se tomamos o trabalho, ou seja, a vida como princípio educativo, então,

necessariamente os processos educativos no campo serão também diferenciados no

sentido de que o conteúdo da vida ao qual se ligará o conteúdo escolar é outro.

(FREITAS, 2010, p.158) Ligar a escola com a realidade na qual o processo educativo acontece não é algo

trivial. A principal dificuldade é colocar a escola na perspectiva da transformação social,

definindo claramente que valores e relações terão um sentido contra-hegemônico às

funções de excluir e subordinar que caracterizam a escola capitalista, feita para reproduzir

desigualdades. Considerando as duas principais funções hegemônicas do sistema escolar,

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302594

exclusão e subordinação, a mudança deve ser buscada a partir do modo de produzir

conhecimento, e aí entra a estratégia maior da formação por área de conhecimento.

A matriz curricular proposta desenvolve uma estratégia multidisciplinar de trabalho

docente, organizando os componentes curriculares em quatro áreas do conhecimento:

Linguagens; Ciências Humanas e Sociais; Ciências da Natureza e Matemática; Ciências

Agrárias.

A habilitação de docentes por área de conhecimento tem como um dos seus

objetivos ampliar as possibilidades de oferta da Educação Básica no campo,

especialmente no que diz respeito ao Ensino Médio, mas sua intencionalidade maior é a

de contribuir com a construção de processos capazes de desencadear mudanças na lógica

de utilização e de produção de conhecimento no campo. (Caldart, 2010)

Trata-se da organização de novos espaços curriculares que articulam componentes

tradicionalmente disciplinares, por meio de uma abordagem ampliada de conhecimentos

científicos que dialogam entre si a partir de recortes da realidade complementares. Busca-

se, desse modo, superar a fragmentação tradicional que dá centralidade à forma

disciplinar, e mudar o modo de produção do conhecimento na universidade e na Escola

do Campo, tendo em vista a compreensão da totalidade e da complexidade dos processos

encontrados na realidade.

A partir das reflexões teóricas herdeiras da pedagogia socialista, com ênfase nos

trabalhos de Pistrak; das discussões propostas por Freitas na clássica obra “Crítica à

Organização do Trabalho Pedagógico e da Didática”; dos trabalhos sistematizados por

Caldart, a partir das experiências concretas vivencias pelas escolas públicas dos

assentamentos, nas quais o MST consegue fazer avançar seu Projeto Político Pedagógico,

vimos, portanto, trabalhando na Licenciatura em Educação do Campo com estas duas

dimensões centrais nas quais devem-se buscar transformações: nos modos de produção

do conhecimento e nas relações sociais que ocorrem na escola. Dentro destas duas

dimensões, diferentes ações pedagógicas devem ser intencionalizadas se , o que se busca,

é o compromisso da Escola do Campo com as condições da produção material da vida

dos sujeitos camponeses.

2. Desafios às transformações no âmbito da produção do conhecimento na Escola

do Campo

No âmbito da produção do conhecimento, as principais transformações a serem

buscadas referem-se à construção de práticas pedagógicas que sejam capazes de trazer a

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302595

atualidade (Pistrak, 2000), a materialidade concreta das condições de produção material

da vida, para dentro da sala de aula e da Escola do Campo, pois, como destaca Freitas, as

contradições da realidade para quais precisam se buscar caminhos de superação, estão na

realidade, e é a partir dela que devemos trabalhar.

O desafio é saber construir estratégias curriculares que garantam aos educandos

em formação os conhecimentos historicamente acumulados, articulando a

disponibilização destes conhecimentos com o aprofundamento da compreensão dos

problemas da atualidade. O trabalho com o Sistema de Complexos, de Pistrak, a partir da

utilização dos diferentes Inventários do meio tem sido uma estratégia pedagógica e

metodológica relevante para a realização desta ponte e tem, em grande medida,

oportunizado aos educadores em formação, o despertar para a possibilidade e a

necessidade concreta desta vinculação. Nas teses e dissertações que analisaram as ações

dos educandos da LEDOC, há importantes registros sobre os aprendizados advindos desta

estratégia, inclusive com fartas descrições das atividades realizadas nas Escolas do

Campo onde se inserem os estudantes para os Estágios e práticas docentes, realizadas a

partir destes aprendizados, nas quais detalham-se as experiências feitas nas escolas a

partir dos Diagnósticos do Meio que produziram e da seleção dos conteúdos curriculares

a serem trabalhados a partir deles. (Barbosa, 2012; Machado; 2014)

Ainda como parte dos desafios de promover a transformação dos modos de

produção de conhecimento na Escola do Campo encontra-se o de ser capaz de promover

trabalhos interdisciplinares, articulados a partir dos problemas da própria realidade

selecionados como objeto de estudo e aprofundamento com os educandos. E neste ponto

reside, um dos grandes desafios a serem materializados que refere-se à própria concepção

de interdisciplinariedade a ser materializada na ação didática. O que se busca alcançar é

a ação interdisciplinar na qual a articulação entre os conhecimentos científicos se dê a

partir realidade, do próprio objeto, de sua concretude e materialidade e não a partir da

abstração dos campos do conhecimento cientifico desprovidos das contradições da

realidade (Frigotto, 2008) Intenciona-se promover ações interdisciplinares que

contribuam com os educandos do campo para que sejam capazes de localizar, na realidade

de suas ações, os diferentes campos do conhecimento científico que podem contribuir

para ampliar sua compreensão de determinados fenômenos com os quais se deparam. E,

ainda como parte dos desafios da promoção de práticas educativas interdisciplinares,

encontra-se o de promover também, como corolários delas, ações educativas que sejam

capazes de promover processos de ensino aprendizagem que avancem em direção à

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302596

superação da fragmentação do conhecimento, oportunizando formas e espaços de

compreensão que contribuam para construir com os educandos uma visão de totalidade

dos processos sociais.

E, tanto a interdisciplinariedade, quanto a superação da fragmentação do

conhecimento encontram seu melhor campo de materialização a partir da principal

transformação que se deve processar nas Escolas do Campo, para que, de fato, elas

possam vir à atuar a partir das expectativas que movimentos sociais camponeses

constroem em torno dela: ter o trabalho socialmente útil como o mais relevante princípio

educativo. Este é, ao mesmo tempo, o mais importante e mais difícil princípio a ser

materializado nas Escolas do Campo, pelas inúmeras complexidades teóricas e práticas

que o integram.

A proposta de trazer o trabalho para dentro da Escola do Campo, com a perspectiva

de teórica de produzir práticas educativas que contribuam, de fato, para promover a

superação da distinção entre o trabalho manual e o trabalho intelectual; que rompam com

a separação operada no capitalismo, do trabalhador do produto do seu trabalho, tem

encontrado inúmeras dificuldades. Desde as burocráticas, que passam pelas

determinações das redes municipais e estaduais de Educação, em relação exigências da

carga horária e do cumprimento do que está previamente definindo como currículo a ser

trabalhado, impedindo a materialização de experiências concretas fora desta “grade”, até

as próprias dificuldades de compreensão dos pais dos estudantes sobre o porque se está

“propondo que seus filhos trabalhem na escola, se não queremos que nossos filhos

repitam nossa trajetória”. (MACHADO, 2014) Como enfrentar os desafios da inserção

sentido educativo e formativo do trabalho, se a prática concreta de trabalho que vivenciam

as famílias camponesas, é em sua maioria, de desumanização e de exploração? Embora

estejam em curso experiência bastante desafiadoras conduzidas pelos egressos nesta

direção, conforme a experiência em curso no Escola do Vale da Esperança a superação

desta contradição está longe de passar apenas por dimensões pedagógicas...

3. Desafios às transformações no âmbito das relações sociais da Escola do Campo

Diferentes dimensões da escola devem-se ser transformadas para que ela possa ir

adquirindo as marcas da Educação do Campo, e ir se aproximando da concepção

construída por este Movimento do que seria uma Escola do Campo. Esta Escola do

Campo, idealizada nestes quinze anos de luta do Movimento e materializada em

diferentes gradações e dimensões em práticas sociais conduzidas pelos sujeitos coletivos

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302597

do campo, organizados em diferentes tipos de movimentos sociais e sindicais no meio

rural brasileiro, tem, como uma das dimensões centrais de intervenção destes coletivos, o

conjunto das relações sociais que ocorrem dentro da escola.

A partir da compreensão teórica segunda a qual a escola, com sua lógica de

organização; de funcionamento; com seus ritmos; rituais e procedimentos, de uma

maneira geral, hierárquicos; autoritários; pouco participativos e centralizadores, ensina

muito mais que apenas conteúdos científicos (Freitas, 2006) e, muito mais, um

determinado tipo de postura na vida e nas relações nas quais se inserem os sujeitos que

esta escola (des)educa, é necessário estar atento à lógica subjacente a estes processos e

rituais, intencionalizando ações que sejam capazes de subverte-los.

Se, neste conjunto de processos e procedimentos a escola vai cultivando posturas

de submissão; de pouca ou nenhuma participação; de mero cumprimento de normas sem

instigar o desejo e a vontade de se conhecer como; porque; para quem e com objetivos

foram e são feitas estas normas; de acatamento das decisões tomadas por um diretor que

tudo sabe e resolve, sem ouvir o coletivo da escola, vai-se, cada vez mais, aproximando-

se da formação de coletivos de educandos com as características da clássica metáfora

descrita por Freitas, ao referir-se às instituições que inspiraram a escola capitalista - o

exército e a igreja: educandos que se conformam em ser um “rebanho disciplinado”.

Ora, se ao contrário disto, a partir dos princípios do Movimento da Educação do Campo,

cuja fonte de inspiração é a pedagogia socialista, o que se quer com os processos, ritmos

e ritos, nas Escolas do Campo, é cultivar posturas e práticas que ajudem a formar lutadores

e construtores do futuro, como diria Pistrak, é preciso incidir fortemente sobre este tipo

de relação social, produzindo e cultivando relações de outro tipo.

Por isto, as relações sociais na Escola do Campo devem intencionalmente ser

direcionadas para promover cada vez mais, o trabalho coletivo e participativo, em

diferentes níveis e dimensões. O trabalho coletivo dos educadores, organizados em

diferentes frentes, implicando as áreas de conhecimento nas quais atuam; os ciclos ou

séries com as quais trabalham; os componentes curriculares que ministram, enfim,

diferentes possibilidades devem ser vivenciadas e exercitadas, na perspectiva de conceber

e exercitar práticas didáticas que oportunizem o trabalho coletivo e com ele, e através

dele, também promovam, simultaneamente, a superação da fragmentação do

conhecimento.

Na experiência da Licenciatura em Educação do Campo da Universidade de Brasília

vimos tentando materializar esta experiência do trabalho coletivo dos educadores,

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302598

também em diferentes níveis e frentes. Tem se buscado primeiro o trabalho coletivo dos

docentes a partir das próprias áreas de habilitação que os articulam, seja nas Ciências da

Natureza ou nas Linguagens, posto ser este quase uma exigência da formação por área.

E, em grande medida, esta exigência acabou, em nossa experiência concreta na LEDOC

UnB, funcionado como uma mola propulsora que obrigava inicialmente os docentes de

uma mesma área a sentar juntos para trabalhar e planejar o desenvolvimento dos Planos

de Estudo, não sem grande dificuldades e resistências.

À medida que a oferta das turmas da LEODC foi avançando, com relevantes

diferenças entre as habilitações ofertadas, acabou-se por conseguir também avançar no

trabalho coletivo dos educadores, estando hoje em curso diferentes tipos de práticas e

articulações coletivas que em sido benéficas ao perfil de educador do campo que se quer

edificar. Nas dissertações e teses sobre a Licenciatura defendidas no PPGE/UnB, há

inúmeras referências feitas pelos estudantes e egressos, das práticas que se tem

desenvolvido, tanto no estágios, quanto nas próprias aulas que estes têm assumido, que

expressam como eles tem se esforçado, e, em muitos casos, obtido resultados bem

positivos, de promover um trabalho mais coletivo entre os educadores que já atuam nestas

escolas . (Santos, 22012b; Barbosa, 2012; Machado, 2014)

Orientados pela mesma intencionalidade de promover práticas educativas no

percurso formativo da LEDOC que estimule a formação de lutadores e construtores do

futuro, tal como nos instigava Pistrak (2000), ao falar das funções da escola num processo

de transformação social, tem se buscado oportunizar aos educadores em formação nesta

Licenciatura, diferentes espaços e estratégias de trabalho que promovam e cultivem a sua

auto-organização.

No Projeto Político Pedagógico da Licenciatura em Educação do Campo da UnB,

construído em parceria com o ITERRA, que foi nosso parceiro na oferta da experiência

piloto da LEDOC, institui-se um relevante conjunto de mecanismos para promover esta

auto-organização, que, de maneira geral, podem ser sintetizados a partir da idéia de

oportunizar aos educandos a vivência de processos de democracia ascendente e descente,

no qual são debatidos e decididos, processualmente, com a participação dos educandos,

nas várias instâncias coletivas que serão criadas para sua inserção (Grupos de

Organicidade; Setores de Trabalhos; Comissão Político Pedagógica e Plenária da

Turma),diferentes aspectos relativos à materialização das intencionalidades pedagógicos

do currículo proposto. (Barbosa, 2012; Pereira, 2013).

Compreendemos que este processo de auto-organização é extremamente relevante

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302599

para dar materialidade a um dos princípios fundantes da Educação do Campo, e que, deve

ser uma das principais marcas de uma Escola do Campo: ter o protagonismo dos

educandos na condução da vida escolar, entendendo a escola, já como parte da vida dos

sujeitos, e não, como preparação para a vida (Pistrak, 2000). Ora, se queremos formar

sujeitos camponeses que sejam capazes de compreender as contradições presentes nas

relações sociais existentes na realidade e sobre elas intervir, nada melhor do que exercitar,

concretamente, este processo de compreensão sobre as contradições presentes nas

relações sociais na escola, construindo coletivamente, caminhos democráticos e

participativos para sua superação.

Como corolário deste processo de criação de coletivos de educadores, e do cultivo à

auto-organização dos educandos nos processos formativos, tem-se buscado cultivar

também, como parte da gestão democrática da Escola do Campo, a presença e

participação da comunidade camponesa do território no qual insere esta escola no seu

interior. Durante todo o percurso da formação destes educadores na Licenciatura em

Educação do Campo, através de componentes curriculares presentes desde os primeiros

períodos de Tempo Escola e Tempo Comunidade, tem-se buscado intencionalizar a

imprescindível relação que as Escolas do Campo necessitam construir com a comunidade

que vive no território no qual ela se localiza, e que, em última instância, dá sentido a sua

existência. Se, estes sujeitos forem desterritorializados, pelas intensa lógicas de avanço

do capital no campo, a partir do modelo de organização da agricultura proposto pelo

agronegócio, esta escola deixará de existir, e com ela, o sentido e os esforços de

construção de propostas específica para formar educadores do campo.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, A. I. C. A Organização do Trabalho Pedagógico na Licenciatura em

Educação do Campo/UnB: do projeto às emergências e tramas do caminhar. Doutorado

em Educação, PPGE/UnB.Brasília, 2012.

BOGO, A. A Educação do Campo no tempo de produção de mercadorias especiais.

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