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LINGUAGEM E REALIDADE: UMA ANÁLISE DO CRÁTILO DE PLATÃO Jorge Ferro Piqué* T? stc artigo visa esclarecer a concepção da linguagem, particularmente I Jdo nome, que Platão apresenta em seu diálogo Crátilo. Esse diálogo, tão fundamental para a história do pensamento lingüístico ocidental, talvez seja uma das obras de Platão que mais ocasionou comentários posteriores, especialmente nesta segunda metade do século XX (Robinson, 1955; Lorenz e Mittelstrass, 1967; Bollack, 1972; Genette, 1972; Froidefond, 1982; Goldshmidt, 1982; Duran, 1983; Kahn, 1986; Neves, 1987; Vandelvelde, 1987). Entretanto, julgamos que uma de suas características mais importantes, ou seja, seu estilo paródico, talvez ainda não tenha sido suficientemente explici- tada. Essa característica estilística, por sua vez, tem profundas implicações para a correta leitura do texto e a clara compreensão do pensamento lingüístico platônico antes do diálogo O Sofista. Sem essa clareza, o texto pode levar, como de fato levou, a interpretações diferentes e até mesmo contraditórias de seu conteúdo. Pode-se estabelecer, no Crátilo, uma primeira análise, em duas partes, de acordo com o interlocutor de Sócrates. São dois: Hermógenes, um discípulo seu, e Crátilo, pensador de vertente heraclitiana. O primeiro participa com Sócrates na maior parte do diálogo (Crat., 383a-427d) e o segundo apenas no * Universidade Federal do Paraná (e-mail: [email protected].) Letras, Curitiba, n.46, p.139-157. 1996. F.ditora da UFPR 139

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  • LINGUAGEM E REALIDADE: UMA ANLISE DO CRTILO

    DE PLATO

    Jorge Ferro Piqu*

    T? stc artigo visa esclarecer a concepo da linguagem, particularmente

    I Jdo nome, que Plato apresenta em seu dilogo Crtilo. Esse dilogo, to fundamental para a histria do pensamento lingstico ocidental,

    talvez seja uma das obras de Plato que mais ocasionou comentrios posteriores, especialmente nesta segunda metade do sculo XX (Robinson, 1955; Lorenz e Mittelstrass, 1967; Bollack, 1972; Genette, 1972; Froidefond, 1982; Goldshmidt, 1982; Duran, 1983; Kahn, 1986; Neves, 1987; Vandelvelde, 1987).

    Entretanto, julgamos que uma de suas caractersticas mais importantes, ou seja, seu estilo pardico, talvez ainda no tenha sido suficientemente explici-tada. Essa caracterstica estilstica, por sua vez, tem profundas implicaes para a correta leitura do texto e a clara compreenso do pensamento lingstico platnico antes do dilogo O Sofista. Sem essa clareza, o texto pode levar, como de fato levou, a interpretaes diferentes e at mesmo contraditrias de seu contedo.

    Pode-se estabelecer, no Crtilo, uma primeira anlise, em duas partes, de acordo com o interlocutor de Scrates. So dois: Hermgenes, um discpulo seu, e Crtilo, pensador de vertente heraclitiana. O primeiro participa com Scrates na maior parte do dilogo (Crat., 383a-427d) e o segundo apenas no

    * Universidade Federal do Paran (e-mail: [email protected].)

    Letras, Curitiba, n.46, p.139-157. 1996. F.ditora da UFPR 139

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    quarto final (Crat., 427d-440e). possvel tambm subdividir a parte inicial em trs sees.

    Primeiramente temos uma introduo (Crat., 383a-384e) onde Her-mgenes expe a Scrates resumidamente as posies que se confrontam quanto questo do fundamento da linguagem. Em resumo, para Crtilo "cada coisa tem por natureza um nome apropriado, e que no se trata da denominao que alguns homens convencionaram dar-lhes" (Crat., 383a), o que est de acordo com a teoria naturalista dos nomes, segundo a qual as palavras tm sentido certo e sempre o mesmo. Para Hermgenes, ao contrrio, os nomes das coisas so estabelecidos por conveno humana. Essa questo tomou em geral o nome de controvrsia physis-nomos ou physis-thesis.

    Colocado diante dessas duas posies, Scrates aceita examin-las. Comea primeiramente pela tese admitida por Hermgenes e a parte 384e-387d do dilogo ser a sua crtica, uma vez que a sua conseqncia mais imediata seria a total impossibilidade de conhecimento atravs da linguagem, devido ao seu carter completamente arbitrrio, dando nesse caso razo aos sofistas, para os quais basta falar para dizer a "verdade".

    Scrates procura reduzir essa arbitrariedade, primeiramente ressaltando o carter coletivo da conveno, que sc ope ao particular subjetivo. Em seguida, j que Hermgenes, como seu discpulo fiel, aceita que a relao entre Lin-guagem e Mundo possa ser verdadeira ou falsa, e que, portanto, os nomes, enquanto partes de proposies verdadeiras, devem ser necessariamente ver-dadeiros, limita a conveno a convencionar o verdadeiro. Esta concluso favorece o afastamento de Scrates, na obra, dc posies sofsticas.

    Finalmente, como Hermgenes ainda resiste, Scrates critica a tese de Protgoras da no-existncia nas prprias coisas de uma essncia de algum modo permanente, sendo a verdade, o real, a opinio de cada um segundo as coisas lhe paream. Para Protgoras no h essncia, s aparncia, no h verdade absoluta, todo o conhecimento pessoal e particular. Refuta tambm a tese de Eutidemo, segundo a qual "as coisas so semelhantes e sempre para todo o mundo" (Crat., 386a).

    Para Scrates "as coisas devem ser em si mesmas de essncia perma-nente, no esto em relao conosco, nem na nossa dependncia, nem podem ser deslocadas em todos os sentidos por nossa fantasia, porm existem por si mesmas, de acordo com sua essncia natural" (Crat., 386d-e).

    Assim, o Mundo, sejam os objetos, sejam as aes, tem uma organizao permanente. A diferena necessria entre o bom e o mau, o judicioso e o insensato, a razo e a sem-razo, diferena esta herdada por Plato do socratismo puro, implica nisso.

    Da mesma forma que a natureza de um corte depende da natureza do objeto cortante e da natureza do objeto cortado, o dizer humano deve procurar

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    recortar o Mundo segundo a natureza desse mesmo Mundo. Toda tcnica humana, techne, se apia na physis e age conforme sua prpria natureza.

    Exemplificando: se uma tesoura corta uma folha de papel, porque a folha "cortvel", isso faz parte de sua natureza. O Mundo tambm, "se recortado" pela linguagem, o devido a sua natureza, da qual faz parte ser recortvel assim, ou dizendo o mesmo de outro modo, "conjuntizvel" assim, j que o que existe uma nica operao: separar-reunir. Mas isso no significa que o seja de qualquer maneira. O Mundo no admite qualquer sentido.

    Neste sculo, as anlises semnticas de lnguas de povos indgenas, com concepes radicalmente diferentes das categorias europias tradicionais, fa-voreceram a noo de um certo relativismo de base lingstica, para o qual no haveria um Mundo, mas sim vrios, tantos quantas fossem as estruturas lingsti-cas existentes. O exemplo da diversidade de organizao do campo semntico das cores foi repetido vrias vezes como um paradigma incontestvel. De fato, temos lnguas em que o que ns discernimos pelos nomes de amarelo e verde, so representados por apenas um nome. Ou, ao contrrio, o que ns chamamos de azul, seja claro ou escuro, para certas lnguas tem dois nomes diferentes e no so encaradas como sendo a mesma cor. Mas o que esquecido nesses casos que se so apresentadas vrias organizaes possveis porque h um substrato fsico que as permite, mas no a todas as organizaes ou recortes. Assim, por exemplo, no h lnguas que agrupem sob um mesmo nome o branco c o preto. o continuum fsico, real, do espectro luminoso, que orienta a diversidade de possibilidades de se dar nomes s cores.

    Para Plato, da mesma forma, essa ordem fundamental do Mundo impe um limite arbitrariedade da linguagem. Essa arbitrariedade s se manifesta no que chamaramos hoje de significante do signo lingstico. O onoma, geralmente traduzido por nome em Plato, antes do dilogo O Sofista, instrumento para informar a respeito das coisas e para separ-las de acordo com sua natureza, pois s enquanto de alguma forma ligada ao Mundo, a linguagem, sendo uma techne, poder operar sobre ele.

    Quem tem o conhecimento para julgar a adequao dos nomes criados o dialtico, que os usa para interrogar e responder. A justeza (orthotes) do instrumento s patentear-se- no contato com o Mundo, para o qual e a partir do qual foi feito. Esse o motivo de Plato criticar a teoria convencionalista na sua verso mais radical, pois dessa forma estaria excluda, por sua total arbi-trariedade, qualquer utilizao filosfica da linguagem. "Privarmo-nos disso", isto , do discurso, "com efeito, seria desde logo perda suprema privar-nos da filosofia" (Sof., 260a).

    Na terceira parte do dilogo Crtilo (387d-427a), Hermgenes apresenta uma certa resistncia crtica de Scrates e pede uma demonstrao da natural exatido dos nomes. Scrates corrige essa formulao dizendo que os nomes

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    no so exatos, mas que tm uma "certa" correo (physei te tina orthoteta echon Crat., 391a-b).

    Assim, concluindo que h algo de certo no que Crtilo diz, ou seja, que "os nomes das coisas derivam da sua natureza" e que "nem todo homem demiurgo de nomes", pergunta-se que orthotes, que justeza esta, a dos nomes.

    Paradoxalmente, o que Scrates ir demonstrar nessa parte central do dilogo, pela aplicao da posio de Crtilo a aproximadamente 140 nomes, que o mtodo etimolgico apenas uma engenhosidade humana, com um carter muitas vezes derrisrio. O que mais propriamente faz parodiar o mtodo etimolgico, expondo suas falhas e levantando conexes com doutrinas filosfi-cas certamente criticveis para Plato. Essa exposio clara do mtodo, levando-o at o seu fundamento que , como veremos a imitao da essncia das coisas por meio de sons e slabas, assumida pelo prprio Scrates, e que ocupa uma grande parte do dilogo, fundamental para problematizar o naturalismo lingstico. Ao que parece, Crtilo, assim como Herclito, um tanto obscuro na expresso (bem no incio do dilogo, Hermgenes pedira a Scrates para "interpretar o orculo de Crtilo"). Sem essa "exposio", esse "desvelamento" d procedimento etimolgico, no seria possvel critic-lo de uma maneira completa.

    Assim, Scrates comea mandando Hermgenes procurar um sofista para aprender com ele a exatido dos nomes, mas como seu discpulo no tem dinheiro para pagar as aulas, indica-lhe o exame de Homero, como se este fosse uma espcie de "sofista dos pobres". Nos poemas homricos distinguetn-se nomes dados por deuses e dados por homens, como no caso do rio Xanto-Es-camandro, ou diferentes nomes dados ao mesmo referente, como por exemplo Astianax-Escamandrio para o filho de Heitor. Nesse exame etimolgico, Scrates prope o princpio diretor de que certo dar o mesmo nome ao pai e ao filho.

    Novo sinal de que durante essa parte do dilogo as coisas no so como parecem, o que no impediu alguns comentaristas da obra de tomarem a srio as palavras de Plato, o pequeno aviso que Scrates d a Hermgenes e indiretamente o autor desse dilogo d aos seus leitores: "Mas, acautela-te, para que eu no faa alguma tramia contigo". Ao dizer isto, e neste contexto, de que o gerador e o gerado devem ter o mesmo nome, Scrates brinca com o nome de Hermgenes, o qual logo no incio do dilogo confessou-se intrigado porque Crtilo lhe havia dito que, conforme a sua teoria, os nomes Scrates e Crtilo, que por sinal tm em comum a palavra kratos (poder, fora), eram naturais, mas o de Hermgenes no. Como Crtilo guardasse para si o sentido irnico dessa afirmao, Hermgenes pede a ajuda de Scrates, que diz tratar-se de uma brincadeira de Crtilo, "talvez com isso queira insinuar que desejarias ser rico, porm nunca chegas a adquirir fortuna, por no ser de fato filho de Hermes",

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    como seu nome sugeriria e muda de assunto. O sentido, no entanto, parece ser outro. De fato, Hermes por excelncia o "fornecedor de bens", mas outra caracterstica sua ser, como o chama Mircea Eliade,1 um trickster, isto , um trapaceiro, um velhaco, caracterizado por sua astcia. nesse sentido que Hermgenes no Hermgenes pois , ao contrrio, ingnuo. Ser, entretanto, o prprio Scrates que assumir temporariamente esse parentesco com Hermes. Hermgenes ter um papel til, a partir daqui, no dilogo, que visa sobretudo Crtilo diramos um "inocente til" no confronto agnico entre duas "foras". til porque acompanhar e concordar com Scrates em qualquer ponto, fazendo o movimento dialtico fluir, mesmo sendo previamente avisado de que ser desviado do caminho correto.

    Plato enfatiza o carter excepcional dessa incurso etimolgica. Her-mgenes ser finalmente til no final do dilogo, como exemplo vivo e presente de que o mtodo etimolgico falho. E atravs do prprio ser do seu interlocutor, seja sua docilidade, seja sua insubmisso, seja o seu prprio nome, que Scrates conduz o mtodo dialtico.

    Essa tramia de Scrates, assumindo aqui uma postura que critica, no simples, no se d pela simples dico do falso no lugar do verdadeiro. H, na verdade, uma mescla. Por entre as 140 etimologias, encontram-se crticas a Herclito, cuja doutrina Plato aprendeu do prprio Crtilo na juventude. Mas, mesmo no carter falho desse mtodo, alguma verdade se manifesta. Assim, desde a primeira etimologia que associa theoi (deuses) a thein (correr), o mobilismo heraclitiano que entra em cena. Esse mobilismo no negado por Plato de uma forma total, j que em O Sofista o movimento considerado como um dos gneros fundamentais, mas juntamente com o repouso. Caso contrrio, nenhum conhecimento verdadeiro seria possvel, j que o Mundo seria apenas um fluxo permanente, onde nenhum objeto estabilizar-se-ia o suficiente para ser conhecido ou mesmo denominado.

    O que Plato evidencia nessas etimologias a incongruncia do mtodo, j que um mesmo onoma pode, por natureza, nos levar idia do movimento e do repouso (como a palavra episteme, por exemplo), sendo que para Plato esses dois gneros podem estar em comunho com os seres, mas no entre si, pois isto significaria o aniquilamento de ambos. J para Herclito, ao contrrio, jus-tamente o fato de episteme levar tanto ao repouso como ao movimento seria uma evidncia de que os nomes existem "por natureza", pois manisfestar-se-ia nesse nome o princpio da unidade dos opostos.

    'ELIADE, M. Histria das crenas e das idias religiosas. Tomo I: Da Idade da Pedra aos mistrios de Elusis. Vol. 2: Dos vedas a Dioniso. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p. 108.

    2 Cf. o fragmento 48: "Do arco o nome vida e a obra morte". In: Pr-socrticos. So Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 84.

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    Voltando ao texto: Scrates comea a aplicar o princpio de que cada ser deve receber o nome do gnero a que pertence para que seja correto, justo. Sendo assim, comea a escalar uma linha genealgica ascendente, evidentemente patrilinear, que vai de filho a pai, de heris a deuses, apresentando o sentido etimolgico de cada nome prprio:

    Orestes = carter feroz e selvagem, asperezas das montanhas Agamemnon = admirvel em persistncia Atreu = obstinado, intemerato, funesto Plops = s v o que se encontra prximo Tntalo = o mais infeliz dos homens Zeus = causa da vida C r o n o s = pureZ5, l impidez d e en t end imen to Urano = que olha para cima

    Hermgenes mostra-se admirado por essa asceno ao mundo divino que o mtodo proporciona. Scrates diz ser um conhecimento que caiu sobre ele no se sabe dc onde, como uma espcie de inspirao, provavelmente influncia da conversa pela manh com o advinho Eutfron. Diz ele: "E bem possvel que seu entusiasmo no somente me tivesse deixado os ouvidos cheios com sua sabe-doria, como tambm apoderou-se de minha alma" e em seguida: "aproveitemos neste resto de dia essa influncia para concluirmos o que falta dizer sobre os nomes".

    Essa referncia a Eutfron s pode ser interpretada como pura ironia socrtica, j que no dilogo homnimo ele apresentado como um fantico religioso que considerava ser piedoso acusar o prprio pai do assassinato de um escravo, escravo este que era assassino por sua vez, sem contar o fato de o pai de Eutfron t-lo matado por descuido. A aproximao do mtodo etimolgico com a inspirao divinatria evidencia a falsa postura de Scrates e o carter insuficiente da teoria naturalista dos nomes. Quanto influncia de Eutfron, ela ser transitria, como podemos observar logo em seguida: "mas amanh, caso estejas de acordo, expulsemo-la por meio de esconjuros e purifiquemo-nos, se por ventura encontrarmos algum que entenda de purificao, quer seja sacer-dote ou sofista".

    Como os nomes dc heris e de homens em geral propiciam o engano, a investigao recair sobre nomes relacionados com as coisas eternas (aei ont) e a natureza. Assim dada, a explicao etimolgica prolifera e ao mesmo tempo decepcionante. Muitos nomes so explicados pelo recurso ao sensvel. Assim theoi, dc thein, "por ter observado que todos eles se movem perpetuamente em seu curso". Aqui os deuses (theoi) so associados aos astros que percorrem

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    (thein) o cu. Outros tm quatro significados possveis, como o nome do deus Apolo, e outros ainda so mesmo humorsticos, como selene (lua), que derivaria de selaenoneoaeia, termo fotjado ao que parece por Plato, composto de selas (luz), neos (nova), enos (precedente) e aei (sempre). Hermgenes chega a dizer que lhe soa este nome como um ditirambo, tipo de verso que usado algumas vezes em invectivas cmicas. E quando no mais possvel lanar mo de nenhuma explicao melhor, utiliza-se o expediente de que uma expresso brbara.

    Note-se que esta primeira etapa do mtodo, que procura uma definio no onoma ("tal nome, Zeus, vale por um logos" Crat., 396a), s possvel devido ao carter tipolgico sinttico do grego, no qual os morfemas compo-nentes, em alguns casos, so facilmente identificveis.3

    Todas essas derivaes so entremeadas com repetidas expresses de ironia por parte de Scrates, como estas: "h bastante probalilidade, se no tomar cuidado, de hoje mesmo vir a ficar mais sbio do que seria razovel", "descobri, meu caro, um colmeal de sabedoria", "como so excelentes os cavalos de Eutfton" (que o conduzem pelo mtodo etimolgico), "penso que me adiantei bastante no terreno da sabedoria", "vesti a pele do leo" (como o heri Hracls, que tambm tinha traos cmicos). Todas essas expresses devem nos acautelar sobre a firmeza da defesa que Plato faz do mtodo edmolgico que trata de expor.

    Como j dissemos antes, a maior parte das etimologias explicada por termos de movimento e suas nuances. Contra esse mobilismo de fundo heracli-tiano, Plato se coloca claramente na seguinte passagem, onde diz em uma bela comparao, com forte ironia:

    (...) parece (...) que os homens de antigamente quando estabele-ceram os nomes, se encontravam em situao idntica a da maioria dos sbios do nosso tempo, os quais, fora de andar roda para investigar a natureza das coisas, acabam tomados de vertigem, acreditando que so as prprias coisas que giram e que tudo o mais ao redor deles pelo mesmo teor. No atribuem a culpa dessa maneira de pensar ao que se passa em seu ntimo, mas imaginam que decorre das prprias coisas, que nada estvel e permanente, e que tudo passa e se movimenta, e se encontra em permanente estado de modificao e gerao. (Crat., 411b-c)

    3 H no entanto lnguas de tipo analtico, como o vietnamita, onde todo vocbulo apresenta apenas um componente. Ao menos por esse motivo, nunca haveria um Crtilo vietnamita, isto , que procurasse expresses definitrias dentro de um nome.

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    Desse modo, uma srie de termos do vocabulrio do conhecimento encontra tambm uma origem etimolgica no movimento. O mais curioso dentre esses talvez seja noesis, a prestigiada ao intelectual, que Plato "explica" etimolgicamente por neou hesis, ou seja, nada mais nada menos que desejo de novidade.

    Mas o verdadeiro limite da investigao etimolgica encontra-se nos nomes primitivos, j que no so compostos de outras palavras e, portanto, nem explicveis por nenhum outro nome.4 Para estudar o seu exato significado, deve-se empregar algum mtodo novo, no qual os nomes primitivos sero a mimesis vocal da coisa imitada. A partir desse momento, o nome no ser visto mais como instrumento natural, mas como imagem, mais ou menos imperfeita, de um eidos, de uma Forma. E Plato lana mo de novas comparaes: "do mesmo modo que o pintor reproduziu uma figura por meio da pintura, aqui tambm, criaremos a linguagem por meio da arte do nome ou do falar".

    Todo o problema reside agora em verificarse as palavras primitivas foram formadas como convm, pois se elas so o fundamento das derivadas, toda a investigao poder ficar comprometida com um erro aqui, como ficar paten-teado mais tarde. Ao final dessa parte, Scrates parece retornar a si mesmo e acaba por dizer: "Afiguram-se sobremodo impertinentes e ridculas as reflexes que tenho formulado acerca dos nomes primitivos" (Crat., 426b).

    A quarta e ltima parte do Crtilo (427d-440e) comea com Scrates no se responsabilizando por nada que dissera, enquanto que Crtilo parece ter se deliciado com tantas etimologias em certa medida fantasiosas.

    Desse modo Plato far aqui uma crtica explcita da teoria naturalista, a partir de uma reviso geral de tudo o que foi dito, pois "no h nada pior do que enganar algum a si prprio" (Crat., 428d). So, portanto, retomadas as teses da teoria naturalista para melhor refut-las. So elas:

    1 ) "a correta aplicao dos nomes consiste em mostrar como constituda a coisa".

    Tanto a criao dos nomes primitivos como a dos derivados implica em erros de julgamento, o que introduz a falsidade entre as palavras. Como os nomes no so uma reproduo exata, uma verdadeira duplicao, mas a sua natureza a de apresentar semelhanas parciais e modificveis, j que a representao no deixa de ser representao, por acrscimo ou subtrao, pois o que ela representa um typos, um conjunto de traos fundamentais, h uma necessidade dc encontrar-se um critrio de verdade para as imagens ou representaes que podem ser ou falsas ou verdadeiras. No como dizia Hermgenes, nem falsas nem verdadeiras e tambm no como em Crtilo, para o qual eram sempre verdadeiras.

    4 Somente aqui iniciaria o trabalho do nosso imaginrio "Crtilo vietnamita".

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    Assim, para Plato, um objeto seria bem nomeado se todos os traos essenciais estivessem presentes no onoma. Como nos nomes ocorrem tambm letras dessemelhantes, que transmitem outro sentido, a comunicao s possvel desde que haja tambm um certo grau de conveno, j que por ela a representao se firma tanto no semelhante quanto no dessemelhante. A con-veno um expediente inevitvel, que completa a relao parcialmente natural com a coisa nomeada.

    2) "a enunciao dos nomes tem por finalidade a instruo sendo seu nico mtodo verdadeiro".

    Isso, para Plato, no poderia ser dc forma alguma verdadeiro, primeiro porque, como vimos, os nomes podem ter embutidos em si um elemento convencional arbitrrio; em segundo lugar, porque se houve um erro inicial na denominao, todo o desenvolvimento posterior ficar comprometido; e, em terceiro, se afirmado que s possvel conhecer as coisas pelos nomes, como os primeiros "fazedores de nomes" conheceram as coisas, uma vez que os nomes primitivos no tinham ainda sido fixados? Uma possvel explicao sobre-hu-mana, divina, rapidamente descartada.

    Neste dilogo, Plato considera suficiente chegar-se concluso de que no por meio de seus nomes que devemos procurar conhecer ou estudar as

    i coisas, mas, dc preferncia, por meio delas mesmas. O conhecimento direto do auto, da prpria coisa, anterior e superior a seus nomes.

    No entanto, essa concluso no exclui, de forma total, por si s, qualquer utilizao dialtica da linguagem. No final de sua vida, na Carta VII, distingue Plato trs elementos intermedirios entre este auto to fundamental e o seu conhecimento, a episteme, que reside na alma, a psyche. So eles o onoma, o logos e o eidolon, ou seja: o nome, a definio e a imagem.

    Se inegvel que os elementos mais importantes so o objeto real e conhecvel (to auto) c o conhecimento psquico (lie episteme) c que nome, definio c imagem apresentam variabilidade e contradio, sem dvida por meio do penoso contato com esses elementos auxiliares, em certas condies favorveis, que pode o filsofo alar-se at o inteligvel. A imperfeio dos onontata, enquanto participantes da natureza da mimesis, no permite o seu desvinculamento da questo da verdade, como defende a tese convencionalista, c nem o seu vnculo necessrio com o eidos, a Forma, enquanto instrumento de uma techne (tcnica) justa, que o identifica plenamente com a physis e o torna o nico mtodo verdadeiro de conhecimento, segundo a tese naturalista.

    Concluindo, a posio de Plato nessa controvrsia contrape-se, assim, a uma oscilao entre dois extremos que as teorias gregas da linguagem manifestam: ou uma extrema confiana em que o nome diz a verdade (Herclito e as primeiras tragdias), ou uma extrema desconfiana, em que os nomes so

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    nada mais do que nomes (Parmnides, Demcrito e sofistas), identificando linguagem, opinio e verdade.

    Para Plato, o discurso de "natureza hbrida, verdadeira e falsa ao mesmo tempo" (Crat., 408c) como Pan, no por acaso filho de Hermes:5 "o que nele h de verdadeiro macio e divino e reside no alto com os deuses, por outro lado, o que h de falso mora em baixo, com a multido dos homens". Na viso platnica da palavra, na sua funo de representao do inteligvel, mesmo que um tanto degradada, as duas teses contrrias convergem e so superadas, tendo ambas algo do verdadeiro eidos do onoma.

    Desse modo, a linguagem, enquanto instrumento, tem o seu papel no aprimoramento do intelecto e um meio na busca do conhecimento da essncia, nesse ir c vir entre onoma, logos, eidolon e to auto, mas devido a sua imperfeio enquanto imitao ao mesmo tempo um obstculo intuio pura das Formas Eternas pela alma imortal, que no admitiria nenhuma mediao.

    Em geral as interpretaes dos historiadores da Lingstica sobre o Crtilo apresentam uma abordagem ingnua em relao ao texto. Sem dar ouvidos aos avisos que Plato tantas vezes, como vimos acima, coloca na boca de Scrates, levam a srio seu longo exerccio etimolgico, que nada mais do que a desmontagem desse mtodo, e concluem que o autor ao final no toma qualquer partido na controvrsia physis-nomos.6

    Discordamos, portanto, que este dilogo em particular tenha um carter aportico como os primeiros, de simples negao de teses opostas, demons-trando simplesmente a sua imperfeio. H algo positivo sendo enunciado: os nomes so simultaneamente por natureza c por conveno. Sendo os nomes, nessa fase do pensamento lingstico de Plato, a essncia do dizer, da lin-guagem, esse o pressuposto necessrio implicado pelo dogma platnico de que o conhecimento humano possvel e de que a linguagem tem propriedades que permitem ao mesmo tempo a enunciao do verdadeiro e do falso.

    RESUMO

    O artigo procura explicitar o uso pardico que Plato faz do mtodo etimolgico de Crtilo. Como conseqncia, a posio platnica no se resume a uma simples negao aporstica das teses naturalista e convencionalista, mas sim que ambas revelam aspectos

    5 Note-se nessa passagem o curioso jogo de palavras que Plato utiliza, pois sendo a palavra como Pan, filho de Hermes, ela que verdadeiramente "hermgenes".

    6 "As duas posies so discutidas pelos participantes do dilogo, que no chegam, contudo, a uma concluso definitiva". lit: ROBINS, R.H. Pequena histria da lingstica. Rio de Janeiro: Ao Livro Tcnico, 1979, p. 14.

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    essenciais da linguagem humana, aspectos estes que tomam possvel o conhecimento e a enunciao da verdade.

    Palavras-chave: Plato, filosofia da linguagem, histria da Lingstica.

    ABSTRACT

    We intend to show Plato's Cratilo is parodie use of the ethnological method. In consequence the platonic position about language is more complex than usually we think.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    BOLLACK, J. "Ln-de infini. L'porie du Cratyle". In: Potique, n. 11, 1972, p. 309-14.

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