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www.derechoycambiosocial.com ISSN: 2224-4131 Depósito legal: 2005-5822 1 Derecho y Cambio Social NORMAS CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS E DIREITOS HUMANOS Carlos Medeiros da Fonseca 1 Ozorio Vicente Netto 2 Fecha de publicación: 01/05/2016 Sumário: 1.- Poderes constituintes originários e poderes constituintes derivados. 2.- Normas-regra, normas-princípio e normas-postulado. 3.- Inconstitucionalidade de norma constitucional originária e a possibilidade de existência de contradição no direito posto. 4.- Legitimidade para declarar a inconstitucionalidade de norma constitucional originária. 5.- A dogmática do supremo: (in)constitucionalidade do art. 5º, §3º, crfb/88. Normas “supralegais”. Bloco de constitucionalidade. Referências bibliográficas Resumo: O presente trabalho parte da análise das feições do poder constituinte, originário e derivado, e expõe as três espécies de normas, no entender de Humberto Ávila: regra, princípio e postulado. Apresenta a possibilidade de ser reconhecida a inconstitucionalidade de normas constitucionais originárias, defendendo a legitimidade do poder judiciário para proceder a tal reconhecimento. Por fim, este artigo trata da posição dogmática dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento brasileiro, expondo a tese do status constitucional (material e formal) desses instrumentos normativos. Palavras-chave: poder constituinte originário; poder 1 Juiz Federal do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (Rio de Janeiro). Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: [email protected] 2 Advogado e Professor universitário. Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: [email protected]

NORMAS CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS E … · partir do giro linguístico, a realidade é criada pelo ser humano, por meio da linguagem, e que a legitimidade da legalidade (incluída

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Derecho y Cambio Social

NORMAS CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS E

DIREITOS HUMANOS

Carlos Medeiros da Fonseca1

Ozorio Vicente Netto2

Fecha de publicación: 01/05/2016

Sumário: 1.- Poderes constituintes originários e poderes

constituintes derivados. 2.- Normas-regra, normas-princípio e

normas-postulado. 3.- Inconstitucionalidade de norma

constitucional originária e a possibilidade de existência de

contradição no direito posto. 4.- Legitimidade para declarar a

inconstitucionalidade de norma constitucional originária. 5.- A

dogmática do supremo: (in)constitucionalidade do art. 5º, §3º,

crfb/88. Normas “supralegais”. Bloco de constitucionalidade.

Referências bibliográficas

Resumo: O presente trabalho parte da análise das feições do

poder constituinte, originário e derivado, e expõe as três

espécies de normas, no entender de Humberto Ávila: regra,

princípio e postulado. Apresenta a possibilidade de ser

reconhecida a inconstitucionalidade de normas constitucionais

originárias, defendendo a legitimidade do poder judiciário para

proceder a tal reconhecimento. Por fim, este artigo trata da

posição dogmática dos tratados internacionais de direitos

humanos no ordenamento brasileiro, expondo a tese do status

constitucional (material e formal) desses instrumentos

normativos.

Palavras-chave: poder constituinte originário; poder

1 Juiz Federal do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (Rio de Janeiro).

Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail:

[email protected]

2 Advogado e Professor universitário. Mestrando em Direito pela Universidade Federal do

Espírito Santo. E-mail: [email protected]

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constituinte derivado; normas constitucionais inconstitucionais;

tratados de direitos humanos; hierarquia no ordenamento

brasileiro.

Abstract: This article is part of the analysis of the features of

the constituent power, original and derived, and exposes the

three kinds of law standards, according to Humberto Ávila: rule,

principle and postulate. It presents the possibility of being

recognized the unconstitutionality of original constitutional

rules, defending the legitimacy of the judiciary to make such

recognition. Finally, this research deals with the dogmatic

position of international treaties on human rights in the Brazilian

legal system, exposing the thesis of constitutional status

(material and formal) of these legal instruments.

Keywords: original constituent power; derived constituent

power; unconstitutional constitutional rules; human rights

treaties; hierarchy in the brazilian legal system.

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1. PODERES CONSTITUINTES ORIGINÁRIOS E PODERES

CONSTITUINTES DERIVADOS

Apoiando-se na premissa de que o direito deve ser legitimado por, em

primeiro plano, um direito supralegal (LUCHI, 2005, p.131-134), e por, em

segundo plano, um agir argumentativo; e considerando o conceito de

Constituição adotado neste trabalho, explanar-se-á sobre os procedimentos

de (re)criação linguística dessa Constituição.

Para tanto, inicia-se o tema por meio da definição do que seria o poder

constituinte, que, conforme Paulo Bonavides, trata-se de “um poder

político, um poder de fato, um poder que se não analisa em termos

jurídicos formais e cuja existência e ação independem de configuração

jurídica" (BONAVIDES, 2004, p. 147).

Renomado autor ainda destaca que esse poder se divide em

constituinte originário e derivado, de modo que se pode admitir, de fato, a

existência de dois poderes constituintes originários e de dois poderes

constituintes derivados (BONAVIDES, 2013, p. 53).

Sem embargo, o primeiro poder constituinte originário seria aquele

que advém da revolução e se concretiza em uma assembleia constituinte –

ou órgão semelhante – cuja função é a de elaborar a Constituição e criar,

por meio dela, um novo sistema jurídico, um novo regime, uma nova forma

de Estado, ou seja, um novo complexo de instituições. Não à toa, ele é

considerado o poder constituinte do povo em sua manifestação mais

fidedigna:

“Há, conforme já assinalamos, dois poderes constituintes originários. O

primeiro, visível, manifesto, palpável: promana da revolução e se concretiza

num colégio constituinte cuja tarefa maior reside no elaborar não apenas a

Constituição, mas criar , por meio dela, um novo sistema jurídico, um novo

regime, uma nova forma de Estado, a saber , novo complexo de instituições;

é ele, em suma, o poder constituinte do povo, da nação, do Estado em sua

manifestação mais profunda.” (BONAVIDES, 2013, p. 53).

Já o segundo, seria aquele poder constituinte originário que emana dos

hermeneutas da Constituição criada/escrita, ou seja: aqueles intérpretes que

transformam, atualizam e rejuvenescem a Constituição, como, por

exemplo, os órgãos da judicatura, os tribunais, os governantes, e os

construtores da jurisprudência constitucional, já que esses “estão não raro

a reescrever a Constituição, adequando-lhe o espírito e a letra às

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exigências transformadoras impostas por uma ciência que avança ou por

uma consciência que não retrógrada” (BONAVIDES, 2013, p. 53).

Bonavides assevera que:

“É assim que a Lei Maior rejuvenesce e se atualiza para acompanhar a

marcha dos tempos. A partir daí aufere a Lei Suprema estabilidade, sem

desfalcar-se do teor de legitimação que lhe é imprescindível, à medida que

as condições sociais se modificam e o avanço da ciência, da tecnologia, do

progresso e da civilização prossegue ininterrupto” (BONAVIDES, 2013, p.

53).

Interessante destacar, neste ponto específico, que a colocação de

Bonavides em relação aos aplicadores do Direito como criadores de direito

se conforma perfeitamente à ideia gnosiológica deste trabalho de que, a

partir do giro linguístico, a realidade é criada pelo ser humano, por meio da

linguagem, e que a legitimidade da legalidade (incluída a própria

Constituição nesse contexto de legalidade) se dá, não somente pela criação

legislativa, mas também por meio do agir comunicativo do poder judiciário

e do poder executivo, exatamente como defende Jürgen Habermas

(HABERMAS, 1992).

De outro giro, tem-se que a Constituição tanto pode ser obra do poder

constituinte originário propriamente dito, como pode ser obra do poder

constituinte derivado. Por sua vez, o poder constituinte derivado é aquele

que se funda na ordem jurídica estabelecida pelo poder originário e vem

apenas remover, transformar ou refazer a Constituição escrita vigente, sem,

contudo, destruir as bases institucionais que lhe são pertinentes

(BONAVIDES, 2013, p. 54).

Ou seja, trata-se de um “poder constituinte de segundo grau, que

reforma e emenda a Constituição da qual deriva toda a sua competência,

dentro de fronteiras que não podem ser transpostas” (BONAVIDES, 2013,

p. 54).

Não obstante, esse poder derivado se dividiria igualmente em dois: o

primeiro também elabora a Constituição por meio de emendas, ao passo

que o segundo a reforma/revisa. Ambos possuem sua origem/legitimidade

no primeiro poder constituinte originário, mas o primeiro poder constituinte

derivado acrescenta preceitos constitucionais novos à Constituição escrita;

já o segundo, também denominado poder de emenda ou poder revisor, age,

tanto na Constituição escrita primária, quanto naquela criada pelo primeiro

poder derivado, por meio de reformas/revisões (BONAVIDES, 2013, p.

54).

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Nesse passo, lobriga-se que ambos os poderes derivados não possuem

a pretensão de fundar um novo regime, ou de criar um sistema novo de

governo, nem de propor uma nova reorganização do Estado além dos

limites da Constituição escrita que os gerou. É dizer: o poder constituinte

derivado sempre deve observar o maior grau de hierarquia característico do

poder constituinte originário (BONAVIDES, 2013, p. 54).

Entretanto, no que se refere à legitimidade do poder constituinte

originário e seus limites, objeto necessário deste estudo, é importante tecer

considerações que remontam ao próprio conceito de direito aqui defendido,

bem como entender quais normas ocupam nosso ordenamento jurídico e

qual a hierarquia existente entre elas.

2. NORMAS-REGRA, NORMAS-PRINCÍPIO E NORMAS-

POSTULADO

Em termos gerais, a doutrina admite a existência de normas-regra e de

normas-princípio no ordenamento jurídico, embora a questão sobre se

princípio seja norma, ou não, não seja um assunto desprovido de

discussões.

Nesse passo, inicialmente, informa-se que este trabalho seguirá a

classificação de Humberto Ávila, até por questão de coerência, já que se

conceituou norma de acordo com sua doutrina, além, é claro, de ele

também estudar o direito a partir das concepções do giro linguístico

(ÁVILA, 2015, p. 53-54).

Com efeito, importante observar que, partindo do giro linguístico e da

própria conceituação de norma, as normas são sempre construídas, pelo

intérprete, a partir da hermenêutica dirigida à linguagem prescrita – direito

posto (ÁVILA, 2015, p. 50 e 91).

Sem embargo, essa construção pode gerar proposições a respeito do

texto escrito, de modo a qualificá-lo como normas-regra ou como normas-

princípio, já que essas conexões axiológicas emprestadas pelo intérprete

não pertencem à prescrição do direito positivado, mas ao próprio

hermeneuta (ÁVILA, 2015, p. 91).

De fato, pode ocorrer de, em alguns casos, haver norma e não haver

dispositivo, como no caso dos princípios da segurança jurídica e da certeza

do Direito; ao passo que há outros casos em que há dispositivo e não há

normas, como o dispositivo constitucional que prevê a “proteção de Deus”.

E mais, pode haver uma norma criada a partir de mais de um dispositivo ou

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várias normas criadas a partir de um só dispositivo (ÁVILA, 2015, p. 50-

51).

É dizer, a interpretação não é mera descrição de um significado

previamente informado, mas uma decisão do intérprete que constitui a

significação e os sentidos de um texto (ÁVILA, 2015, p. 51).

Não obstante, essa construção do intérprete toma como premissas a

prescrição do direito posto e o próprio ordenamento por ele analisado, de

modo que sua interpretação alcança limites nos núcleos de sentidos que a

prescrição lhe oferece (ÁVILA, 2015, p. 53).

Assim, de fato, não se pode perder de vista que o hermeneuta não

constrói, mas reconstrói a prescrição por ele analisada a partir da

linguagem, logo, ele não pode interpretar uma expressão “trinta dias” como

“mais de trinta dias”, nem “provisória” como “permanente” (ÁVILA, 2015,

p. 53-54).

Nesse diapasão, apesar de alguns doutrinadores não qualificarem

princípio como normas, por partirem de uma suposta impossibilidade de se

criar uma consequência normativa à hipótese que lhes dá origem,

necessário frisar, entretanto, que qualquer prescrição pode ser reformulada

segundo o critério hipotético-condicional, por exemplo:

“‘Se o poder estatal for exercido, então, deve ser garantida a participação

democrática’ (princípio democrático); ‘Se for desobedecida a exigência de

determinação da hipótese de incidência de normas que instituem obrigações,

então o ato estatal será considerado inválido’ (princípio da tipicidade)”

(ÁVILA, 2015, p. 64).

Dessarte, admitem-se os princípios como normas, na medida em que

se concebe a possibilidade de que qualquer dispositivo pode ser

reformulado de maneira a possuir uma hipótese e uma consequência

(ÁVILA, 2015, p. 64).

Ademais, para reforçar esse entendimento, necessário registrar que,

em princípio, deve ser dada importância, primeiramente, à razão a que um

princípio se refere no caso concreto e, em seguida, deve-se observar que

sempre haverá uma exigência de comportamento para a realização ou

preservação de determinado estado ideal de coisas a ser adotado (ÁVILA,

2015, p.64). Para Ávila:

“Os deveres de atribuir relevância ao fim a ser buscado e de adoção de

comportamentos necessários à realização do fim são consequências

normativas importantíssimas. Ademais, apesar de os princípios não

possuírem um caráter frontalmente descritivo de comportamento, não se pode negar que sua interpretação pode, mesmo em nível abstrato, indicar as

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espécies de comportamentos a serem adotados, especialmente se for feita

uma reconstrução dos casos mais importantes.

O ponto decisivo não é, pois, a ausência da prescrição de comportamentos e

de consequências no caso dos princípios, mas o tipo da prescrição de

comportamentos e de consequências, o que é algo diverso” (ÁVILA, 2015,

p.64-65).

Outrossim, facilita a compreensão dessa perspectiva a conceituação

por ele dada – e que também se adota neste estudo – a regras e a princípios,

senão vejamos:

“As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente

retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja

aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na

finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são

axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição

normativa e a construção conceitual dos fatos.

Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente

prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para

cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de

coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como

necessária à sua promoção” (ÁVILA, 2015, p.102).

Em complemento, registra-se que a reconstrução realizada pelo

intérprete (construção a partir da prescrição) pode assumir, não apenas

duas, mas três perspectivas diferentes, uma vez que, a depender da maneira

com que se examina a prescrição do Direito positivo:

“Um ou vários dispositivos, ou mesmo a implicação lógica deles decorrente,

pode experimentar uma dimensão imediatamente comportamental (regra),

finalística (princípio) e/ou metódica (postulado)” (ÁVILA, 2015, p. 92).

Com relação a essa terceira perspectiva, importante destacar que a

interpretação a ser realizada pelo hermeneuta do direito (aplicador ou

cientista) acaba por se submeter a condições sem as quais o objeto não

pode ser apreendido. Essas condições são os postulados, normas que

estruturam a aplicação de outras, verdadeiras “metanormas”, na medida em

que se qualificam como normas sobre a aplicação de outras normas

(ÁVILA, 2015, p. 164).

Nesse espeque, registra-se que há postulados hermenêuticos, que se

prestam à compreensão do Direito, e há postulados aplicativos, que visam a

estruturar a aplicação do direito no caso concreto (ÁVILA, 2015, p. 163-

164).

Em outras palavras, as normas-postulado determinam o modo como

devem ser interpretadas/aplicadas outras normas, seja ao estabelecer

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critérios, seja ao definir as medidas de aplicação, ou seja: são “normas

estruturantes da aplicação de princípios e regras” (ÁVILA, 2015, p. 180-

181).

Posto isso, chega-se à premissa que este artigo gostaria de traçar, no

sentido de que o ordenamento jurídico admite três espécies normativas –

princípios, regras e postulados – e não comporta a distinção de princípios e

regras proposta pela doutrina clássica, nem mesmo as de Robert Alexy e de

Ronald Dworkin.

Com efeito, Alexy e Dworkin distinguem princípios de regras “pelo

critério do modo final de aplicação, pois, para eles, as regras são

aplicadas de modo absoluto tudo ou nada, ao passo que os princípios, de

modo gradual mais ou menos”, ou seja, as regras seriam aplicadas no modo

all or nothing de Dworkin e os princípios, pela ponderação de Alexy

(ÁVILA, 2015, p. 65).

Em outras palavras, quanto ao modo de aplicação, os princípios

divergiriam das regras, porquanto estas se aplicariam mediante a subsunção

dos fatos à hipótese normativa (se houvesse esse encaixe, a aplicação seria

obrigatória) e aqueles, por estabelecerem deveres provisórios, seriam

aplicados mediante ponderação, com aplicação de diferentes dimensões de

peso aos princípios no caso concreto (ÁVILA, 2015, p. 112).

No entanto, essa distinção é falha ao se observar que as normas-regra

podem ser objeto de ponderação, sem que isso determine sua invalidade ou

que ela seja utilizada como exceção, mas pela simples utilização de

postulados como, por exemplo, o da razoabilidade, senão vejamos:

“A norma construída a partir do art. 224 do Código Penal, ap prever o crime

de estupro, estabelece uma presunção incondicional de violência para o caso

de a vítima ter idade inferior a 14 anos. Se for praticada uma relação sexual

com menor de 14 anos, então deve ser presumida a violência por parte do

autor. A norma não prevê qualquer exceção. A referida norma, dentro do

padrão classificatório aqui examinado, seria uma regra, e, como tal,

instituidora de uma obrigação absoluta: se a vítima for menor de 14 anos, e

a regra for válida, o estupro com violência presumida deve ser aceito.

Mesmo assim, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar um caso em que a

vítima tinha 12 anos, atribuiu tamanha relevância a circunstâncias

particulares não previstas pela norma, como a aquiescência da vítima ou a

aparência física e mental de pessoa mais velha, que terminou por entender,

preliminarmente, como não configurado o tipo penal, apesar de os requisitos

normativos expressos estarem presentes. Isso significa que a aplicação

revelou que aquela obrigação, havida como absoluta, foi superada por

razões contrárias não previstas pela própria ou outra regra.

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(...) Para seguir com o exemplo já utilizado, a violência sexual só deixa de

ser presumida se houver motivos extravagantes com forte apelo

justificativo, como aquiescência manifesta da vítima e a aparência física e

mental de pessoa mais velha. Enfim, no caso de aplicação de regras o

aplicador também pode considerar elementos específicos de cada situação,

embora sua utilização dependa de um ônus de argumentação capaz de

superar as razões para cumprimento da regra. A ponderação é, por

consequência, necessária” (ÁVILA, 2015, p. 66 e 71).

Mais a mais, também não é correto afirmar que, para que uma regra

seja aplicada, deverá haver a subsunção do fato à hipótese normativa, uma

vez que a própria aplicação analógica das regras afasta essa máxima

(ÁVILA, 2015, p. 71).

Sem embargo, imperioso destacar que, para Alexy e Dworkin,

segundo essa mesma concepção, os princípios também seriam diferentes

das regras devido ao modo como são solucionadas as antinomias que

surgem entre si (ÁVILA, 2015, p. 112).

Nesse contexto, a doutrina clássica entende que: entre o conflito de

regras, que apenas ocorreria no plano abstrato, seria necessária a declaração

de invalidade de uma delas, caso não fosse aberta uma exceção; e entre o

conflito de princípios, que apenas se daria no caso concreto, não se haveria

a declaração de invalidade de um deles, mas tão somente o estabelecimento

de uma regra de prevalência diante de determinadas circunstâncias

verificáveis somente no plano de eficácia dessas normas (ÁVILA, 2015, p.

112).

Veja-se, todavia, que essa distinção, existente na própria estrutura

normativa de princípios e regras, também é falível, como aponta,

detalhadamente, Humberto Ávila, in verbis:

“O modo de aplicação das espécies normativas, se ponderação ou

subsunção, não é adequado para diferenciá-las, na medida em que toda

norma jurídica é aplicada mediante um processo de ponderação. As regras

não fogem a esse padrão, na medida em que se submetem tanto a uma

ponderação interna quanto a uma ponderação externa: sofrem uma

ponderação interna porque a reconstrução do conteúdo semântico da sua

hipótese e da finalidade que lhe é subjacente depende de um confronto entre

várias razões em favor de alternativas interpretativas (exemplo: definição do

sentido de livro para efeito de determinação do aspecto material da regra de

imunidade); submetem-se a uma ponderação externa nos casos em que duas

regras, abstratamente harmoniosas, entram em conflito diante do caso

concreto sem que a solução para o conflito envolva a decretação de

invalidade de uma das duas regras (exemplo: uma regra que determina a concessão de antecipação de tutela para evitar dano irreparável e outra regra

que proíbe a antecipação se ela provocar despesas para a Fazenda Pública).

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É inapropriado, por isso, fazer uma distinção entre as espécies normativas

com base em propriedades comuns às espécies diferenciadas – a

ponderabilidade e a superabilidade.

O mesmo ocorre com relação ao modo de solução de antinomias. Embora o

conflito entre regras resolva-se, normalmente, com a decretação de

invalidade de uma delas, nem sempre isso ocorre, podendo ser constatados

conflitos entre regras com as mesmas características dos conflitos entre

princípios – concretos, contingentes e no plano da eficácia. Por esse motivo,

descabe fundar uma distinção entre as espécies normativas no modo de

solução de antinomias se ele, em vês de estremá-las, termina aproximando-

as em alguns casos.

Registre-se que a distinção entre as espécies normativas com base no modo

de aplicação e no modo de solução de antinomias também pode conduzir, de

um lado, a uma trivialização do funcionamento das regras, transformando-as

em normas que são aplicadas de modo automatizado e sem a necessária

ponderação de razões. Mais que isso: essa distinção leva a crer que as regras

não podem ser superadas, quando, em realidade, toda norma jurídica –

inclusive as regras – estabelece deveres provisórios, como comprovam os

casos de superação das regras por razões extraordinárias com base no

postulado da razoabilidade. De outro lado, esses critérios de distinção, se

não somados a critérios precisos de aplicação e de argumentação, podem

conduzir, indiretamente, a um uso arbitrário dos princípios, relativizados

conforme interesses em jogo” (ÁVILA, 2015, p. 113-114).

Como exemplo justificador dessa incongruência da doutrina clássica,

cita-se o caso em que uma regra do Código de Ética Médica – que

determina que o médico não pode esconder nada de seu paciente, devendo

falar toda a verdade sobre sua situação de saúde – entra em conflito com

outra regra, do mesmo Código de Ética Médica, que, por sua vez,

estabelece que o médico deverá fazer tudo que estiver ao seu alcance para

curar o paciente. Suponha-se, ainda, que, no caso concreto, dizer a verdade

ao paciente sobre sua doença diminui suas chances de cura (ÁVILA, 2015,

p. 75).

No exemplo dado acima, percebe-se que o médico, ao adotar uma

postura voltada a uma das regras em destaque, estará abdicando da

observância da outra, mas sem que isso implique a invalidade de qualquer

delas e, além disso, sem que isso implique que uma delas deva ser encarada

como exceção, de modo que apenas deverá haver um sopesamento entre

essas normas-regra (ÁVILA, 2015, p. 75).

Assim, verifica-se que é plenamente possível que haja um conflito de

regras em um dado caso concreto, como ocorre normalmente com os

princípios, ao passo que também é possível que haja um conflito abstrato

entre princípios.

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Dessarte, feitas essas considerações, consectário lógico é entender que

os princípios não podem ser vistos, necessariamente, como alicerces do

ordenamento jurídico, nem mesmo podem colocar as regras em segundo

plano somente por serem princípios.

Com efeito, em primeiro lugar, nota-se que as regras consistem em

normas que visam a solucionar conflitos entre bens e interesses, com

caráter de superabilidade mais rígida, ou seja, exigem um ônus

argumentativo maior para serem superadas, ao passo que os princípios

visam à complementaridade e, portanto, possuem superabilidade mais

flexível e dependem de um ônus argumentativo menor para serem

superados (ÁVILA, 2015, p. 130-131).

Como visto, a conceituação aqui adotada permite conceber que,

quando houver colisão entre princípio e regra, é de bom grado que se dê

prevalência à segunda espécie normativa, até para que não se fique preso a

“decisionismos” e a “achismos” dos aplicadores e dos cientistas do direito

(ÁVILA, 2015, p. 131).

É lógico que, inicialmente, deve-se atentar à hierarquia normativa, de

modo que, a título exemplificativo, nenhuma regra legal possa superar um

princípio constitucional. No entanto, no caso de se tratar de regra e

princípio de mesma hierarquia, prevalecerá, normalmente, a norma-regra

(ÁVILA, 2015, p. 131).

Não obstante, há também os casos em que o princípio poderá se

sobrepor à regra de mesma hierarquia, mas apenas se ficar demonstrado

que há uma razão extraordinária que impeça a aplicação da regra, como,

por exemplo, no caso de se interpretar como norma-regra a norma

constitucional que não permite a coexistência de mais de um sindicato da

mesma categoria em uma mesma base territorial e, em contraponto,

apontarem-se os princípios da democracia e da liberdade como colidentes

(ÁVILA, 2015, p. 131). Nesse caso, a regra poderá ser julgada

inconstitucional ou, na lógica positivista, deverá deixar de ser aplicada em

razão do postulado da razoabilidade.

No mais, se o mesmo comando constitucional referido no parágrafo

anterior, em uma nova perspectiva, for interpretado como princípio da

unicidade sindical, ainda assim seria possível resolver a antinomia

principiológica surgida para com os princípios, também constitucionais, da

democracia e da liberdade, pois, como já se demonstrou, os princípios

também podem colidir no plano abstrato. Esse embate, no entanto, será

analisado com mais nitidez, nos tópicos seguintes.

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3. INCONSTITUCIONALIDADE DE NORMA CONSTITUCIONAL

ORIGINÁRIA E A possibilidade de EXISTÊNCIA DE CONTRADIÇÃO NO

DIREITO POSTO

Há, na doutrina e na jurisprudência, divergências a respeito da

(im)possibilidade de se haver limitação ao poder constituinte originário

decorrente da revolução, aquele que, por meio de uma Assembleia

Nacional Constituinte – ou órgão de mesma função –, primeiro prescreve o

direito positivo, consistente na primeira Constituição escrita de um povo

após o movimento revolucionário (BONAVIDES, 2013, p. 53); bem como

a respeito de ser, ou não, possível a existência de contradição interna na

Constituição escrita.

Diante dessa celeuma, importante esclarecer que, segundo premissas

conceituais de Direito e de Constituição adotadas, pode-se identificar que a

resposta a ambos os questionamentos é afirmativa.

Em primeiro lugar, cumpre esclarecer que a legitimidade da legalidade

não se explica por uma racionalidade independente, ínsita às prescrições

legislativas (HABERMAS, 1992, p. 30).

Além disso, registra-se que nem mesmo o discurso jurídico se legitima

por uma racionalidade baseada em uma moral-neutral, como pretendeu

Weber, senão pela estratificação do direito em regras, princípios

(HABERMAS, 1992, p. 32) e postulados (ÁVILA, 2015, p. 164).

Outrossim, a segurança jurídica visada por quem defende o contrário

se esvazia nas ausências: de possibilidade de participação de todos os

interessados na criação das leis; de oportunidades iguais em decisões

políticas; e da própria distribuição homogênea de indenizações sociais

(HABERMAS, 1992, p. 24).

Digno de nota que esses fatos, por si sós, inviabilizam o pensamento

de que um Direito Constitucional válido, criado pelo povo e para o povo,

possa ter legitimidade sem que, antes, se verifique a inexistência de

violação do mínimo ético do imperativo categórico – fundamento de

validade do ordenamento jurídico para Kant (SALGADO, 2012, p. 187, e

LUCHI, 2005, 131-134) – bem como de um agir argumentativo que, no

momento do exercício do poder constituinte originário, não pode ser

afastado, haja vista a necessária imbricação entre Direito e Moral também

no mesmo plano (HABERMAS, 1992, p. 120, e LUCHI, 2005, 131-134).

Diante disso, qualquer poder constituinte, seja ele originário ou

derivado, estaria limitado pelo Direito natural (tido como Direito

supralegal) e pela Moral desenvolvida juntamente com o direito positivo,

por meio de um agir argumentativo.

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De outro giro, mas no mesmo sentido, Otto Bachof esclarece ser

possível a existência de normas constitucionais originárias

inconstitucionais por infração ao Direito supralegal positivado na

Constituição escrita (BACHOF, 1994, p. 62) e por infração ao Direito

supralegal não positivado, existente na Lei Fundamental – aqui entendida

como Constituição em seu sentido material (BACHOF, 1994, p. 67).

Com efeito, quanto à infração do Direito supralegal positivado:

“À «Constituição», e à Constituição não só em sentido material, mas

também em sentido formal, pertence igualmente o direito supralegal, na

medida em que tenha sido positivado pelo documento constitucional. Uma

norma jurídica que infrinja direito constitucional assim positivado será,

portanto, simultaneamente «contrária ao direito natural» e inconstitucional.

Se uma norma constitucional infringir uma outra norma da Constituição,

positivadora de direito supralegal, tal norma será, em qualquer caso,

contrária ao direito natural e, de harmonia com o exposto supra (...),

carecerá de legitimidade, no sentido de obrigatoriedade jurídica. Mas não

tenho dúvida em qualificá-la também, apesar de pertencer formalmente à

Constituição, como «inconstitucional», se bem que o fundamento último da

sua não obrigatoriedade esteja na contradição com o direito supralegal: a

«incorporação material» (IPSEN) dos valores supremos na Constituição faz,

porém, com que toda a infracção de direito supralegal, deste tipo, apareça

necessária e simultaneamente como violação ao conteúdo fundamental da

Constituição” (BACHOF, 1994, p. 62-63).

Não obstante, em relação à possibilidade de infração a Direito

supralegal não positivado, o autor prossegue:

“É susceptível de dúvida o saber se também pode incluir-se na

«Constituição» (não escrita) direito supralegal que não foi positivado

através da sua transformação em direito constitucional escrito.

(...) A favor da incorporação na «Constituição» milita, a meu ver, a

circunstância de o direito supralegal ser imanente a toda a ordem jurídica

que se reivindique legitimamente deste nome e, portanto, também, e até

mesmo em primeira linha, a toda a ordem constitucional que queira ser

vinculativa” (BACHOF, 1994, p. 67-68).

Logo, conclui-se que são limites ao poder constituinte originário: a

violação de norma de Direito natural-supralegal, assim entendida aquela

constante do mínimo ético (LUCHI, 2005, p.131-134); bem como a

ausência de um agir argumentativo válido na criação das normas

constitucionais originais, por meio do diálogo entre Moral e Direito em um

mesmo plano (HABERMAS, 1992, p. 120).

De outra banda, com relação à possibilidade de se extraírem

contradições dos textos prescritivos, necessário destacar que, porque o

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conhecimento está atrelado à linguagem, a visão do Direito como um bem

cultural, principalmente a partir do giro linguístico, deve ser compreendida

como correta, visto que todo conhecimento encontra-se dentro dos

quadrantes da linguagem, de modo que os fatos culturais advêm

exatamente dessa formação de conhecimento (MOUSSALEM, 2006, p. 36-

40).

Nesse sentido, nota-se que os fatos culturais são a objetivação da vida

humana, que só acontece por meio do emprego de interpretação no

universo humano, ou seja, por meio da linguagem. Nessa senda, o direito,

como fato cultural que é, também se mostra como fruto de uma linguagem

prescritiva identificável nos corpos das estruturas normativas que o

compõem, e essas estruturas normativas nem sempre estarão postas, apesar

de identificáveis (MOUSSALEM, 2006, p. 36-40).

Por outro lado, mas no mesmo diapasão, a ciência do direito é

composta de uma linguagem descritiva, criada por meio da comunicação

com os enunciados prescritos pelo direito, ou seja, é a linguagem que

descreve a linguagem (é uma metalinguagem), de modo que, por óbvio,

não pode reduzir a linguagem do direito, apenas descrevê-la por meio de

sua linguagem específica (MOUSSALEM, 2006, p. 36-40).

Dessa forma, reconhece-se que há níveis de linguagem, na medida em

que aquela sobre que se fala é denominada linguagem objeto (prescritiva –

o direito), ao passo que aquela que fala sobre o objeto é taxada de

metalinguagem (descritiva – ciência do direito). Logo, a linguagem não é

concebida como um fim, e sim como um paradigma a partir do qual será

construído o tema proposto por meio da conversação entre o objeto e a

metalinguagem (MOUSSALEM, 2006, p. 36-40).

Nesse sentido, Paulo de Barros Carvalho identifica que: “a linguagem

científica fala a respeito de outra linguagem: a linguagem técnica do

direito positivo. Pretende dizer como ela é, investigando-a nas suas

dimensões semióticas” (apud MORAES, 2012, p. 109).

Sem embargo, lobriga-se que a linguagem científica não é utilizada

nos textos prescritivos, mas apenas pelo cientista do direito, e o que

distingue a linguagem científica da linguagem ordinária ou técnica é

justamente a ausência de vaguidade e contradição que só ocorre na

linguagem puramente científica, logo a possibilidade de contradição no

Direito prescrito é patente, na medida em que sua linguagem é, quando

muito, técnica (CARVALHO apud MORAES, 2012, p. 109).

Igualmente, destaca-se o entendimento esposado por Lourival

Vilanova, no sentido de que “os sistemas jurídicos contêm contradições

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internas e que não satisfazem suficientemente a exigência de coerência ou

consistência intra-sistemática” (VILANOVA, 1982, p. 17).

E mais: “as proposições jurídicas meramente descrevem a

contradição entre normas como um fato” (VILANOVA, 1982, p. 17).

Logo, não há contradição em descrever que “no sistema S, a norma N é

vigente”, e que “no sistema S’, a norma não-N é vigente”. Para o autor,

“descrever em proposições cognoscitivas as normas contraditórias, N e

não-N, é consistente, não contraditório” (VILANOVA, 1982, p. 18).

Assim, finalmente, conclui-se que, tanto o poder constituinte

originário possui limitações, quanto a existência de contradições no Direito

positivo é, não só aceitável, como esperada, inclusive, por parte do

legislador constituinte originário.

Quase em postimeiro, com o escopo de estabelecer um consenso ao

fim deste trabalho, importante mencionar a interessante questão com

relação à anulação das contradições no sistema do direito positivo que, para

linha de pensadores positivistas, apesar de necessária para manter-se a

unidade e a coerência do ordenamento (BOBBIO, 2011, p. 79-82), só será

possível por meio da criação de outras normas.

Logo, para os positivistas, as normas contraditórias em relação ao

ordenamento jurídico, enquanto não sobrevier nova norma, deverão ter sua

aplicação rechaçada, por se tratar de normas ineficazes (proposição), mas

não desaparecem do ordenamento enquanto prescrição.

4. LEGITIMIDADE PARA DECLARAR A

INCONSTITUCIONALIDADE DE NORMA CONSTITUCIONAL

ORIGINÁRIA

Em linhas gerais, explanou-se até aqui que uma norma constitucional

originária pode ser objeto de controle: uma vez que pode estar em

contradição com normas supralegais, seja no plano positivo, seja no âmbito

material não escrito da Constituição; ou porque pode não ter sido criada por

meio de um agir argumentativo válido; ou, ainda, porquanto em

contradição com o sistema de Direito positivo.

De fato, a princípio, reconhecer a possibilidade de controle não

significa reconhecer a competência judicial para declarar essa não

obrigatoriedade jurídica, nem significa deixar de aplicar o direito

considerado pelo juiz como não vinculativo (BACHOF, 1994, p. 70).

No entanto, Bachof advoga no sentido de que o poder judiciário

poderia, sim, realizar tal controle, senão vejamos:

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“Abstraindo por completo do facto de a Lei Fundamental ser geralmente

pouco precisa na sua terminologia, e de usar a expressão «Constituição»,

por exemplo, em sentidos inteiramente diversos – razão por que importa

advertir em geral contra uma sobrevalorização das deduções terminológicas

–, a verdade é que todo o direito materialmente incorporado na Constituição

pela Lei Fundamental, ou por ela pressuposto, se deixa também subsumir,

sem violência, no conceito de «Lei Fundamental»”(BACHOF, 1994, p. 72-

73).

É dizer, se o termo Constituição deve ser interpretado no sentido de

Constituição, ao mesmo tempo, escrita e não escrita, formal e material; e se

o judiciário é competente para a guarda da Constituição, a legitimidade do

controle pelo judiciário não pode ser rechaçada (BACHOF, 1994, p. 72-73).

Em complemento, pode-se citar o entendimento esposado por Peter

Häberle, de pensamento realista, ou seja, mais voltado à práxis do que à

teoria, mas cujo conteúdo é oportunamente reconhecido como válido por

este trabalho, uma vez que compatível com os preceitos aqui adotados:

“A vinculação judicial à lei e a independência pessoal e funcional dos juízes

não podem escamotear o fato de que o juiz interpreta a Constituição na

esfera pública e na realidade (...) Seria errôneo reconhecer as influências, as

expectativas, as obrigações sociais a que estão submetidos os juízes apenas

sob o aspecto de uma ameaça a sua independência. Essas influências contêm

também uma parte de legitimação e evitam o livre arbítrio da interpretação

judicial. A garantia da independência dos juízes somente é tolerável, porque

outras funções estatais e a esfera pública pluralista (pluralistiche

Öffentlichkeit) fornecem material para a lei” (HÄBERLE, 2002, p. 31).

Veja-se, nesse diapasão, que a lição de Häberle vai ao encontro das

disposições legais que determinam que o juiz deve observar, na aplicação

da lei (em sentido lato), a função social e o bem comum, logo, o

entendimento acima é compatível com o ordenamento jurídico brasileiro.

Além disso, Peter Häberle expõe que:

“Em resumo, uma ótima conformação legislativa e o refinamento

interpretativo do direito constitucional processual constituem as condições

básicas para assegurar a pretendida legitimação da jurisdição constitucional

no contexto de uma teoria da Democracia” (HÄBERLE, 2002, p. 49).

Não é demais frisar que a “sociedade aberta de intérpretes” apregoada

por Häberle é de notável pertinência à Teoria do Discurso de Habermas,

sobretudo em razão de que, para ambos, o Direito deve ser

interpretado/validado por todos aqueles que dele participam, seja como

criadores, seja como destinatários.

Por fim, na incessante busca, não só pela coerência, mas também pelo

consenso, passa-se a explanar sobre a dogmática adotada pelo Supremo

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Tribunal Federal em relação às normas de pactos internacionais de

conteúdo eminentemente de Direitos Humanos que são incorporadas ao

ordenamento jurídico, bem como em relação à natureza e à forma como são

incorporadas, e, também, quanto às críticas doutrinárias a esse respeito.

5. A DOGMÁTICA DO SUPREMO:

(IN)CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 5º, §3º, crfb/88.

NORMAS “SUPRALEGAIS”. Bloco de constitucionalidade.

Sabe-se que, após a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) em

1945, foi adotada e proclamada, por mais de 40 países, inclusive o Brasil,

por meio da Resolução 217 A (III), Assembleia Geral das Nações Unidas,

em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (PIOVESAN,

2008, p. 03-04).

Esse contexto veio a corroborar a importância dos direitos humanos

enquanto norma fundamental universal de qualquer ordenamento jurídico.

Nesse sentido e na mesma linha de raciocínio deste trabalho, Flávia

Piovesan afirma que:

“A Declaração de 1948 introduz a concepção contemporânea de direitos

humanos, marcada pela universalidade e indivisibilidade desses direitos.

Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos,

sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a

titularidade de direitos, considerando o ser humano como um ser

essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade, esta

como valor intrínseco à condição humana. Indivisibilidade porque a garantia

dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos

sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Quando um deles é violado, os

demais também o são. Os direitos humanos compõem, assim, uma unidade

indivisível, interdependente e inter-relacionada, capaz de conjugar o

catálogo de direitos civis e políticos com o catálogo de direitos sociais,

econômicos e culturais” (PIOVESAN, 2008, p. 04).

É dizer, com o advento da Declaração Universal de 1948 e da

concepção contemporânea de direitos humanos por ela introduzida,

começou a ser desenvolvido, com mais afinco e com maior consenso por

parte dos países, o Direito Universal aos Direitos Humanos, especialmente

por meio da adoção de inúmeros tratados internacionais voltados à proteção

desses direitos.

Quanto a esses tratados, sua internalização hierárquico-normativa no

ordenamento pátrio de há muito é objeto de discussão no Brasil, de modo

que o Art. 5º, §2º, CRFB/88 (PLANALTO, 2015) regula o tema da seguinte

maneira:

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“Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros

decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados

internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”

(PLANALTO, 2015).

Diante dessa prescrição, a discussão doutrinária e jurisprudencial

sobre a posição hierárquica dos tratados de direitos humanos celebrados

pelo Brasil seguiu quatro caminhos interpretativos: o de que a natureza

desses tratados seria de ordem supranacional; o de que eles seriam normas

constitucionais, no sentido de Constituição escrita; o de que seriam normas

supralegais (acima dos instrumentos legislativos ordinários), mas

infraconstitucional; e, por fim, o de que entrariam no ordenamento jurídico

com status de lei ordinária. Nessa discussão, destaca-se o posicionamento

de uma das maiores juristas sobre o tema:

“É nesse contexto que há de se interpretar o disposto no art. 5º, § 2º do

texto, que tece a interação entre o Direito brasileiro e os tratados

internacionais de direitos humanos. Ao fim da extensa Declaração de

Direitos enunciada pelo art. 5º, a Carta de 1988 estabelece que os direitos e

garantias expressos na Constituição “não excluem outros decorrentes do

regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em

que a República Federativa do Brasil seja parte”. À luz desse dispositivo

constitucional, os direitos fundamentais podem ser organizados em três

distintos grupos: a) o dos direitos expressos na Constituição; b) o dos

direitos implícitos, decorrentes do regime e dos princípios adotados pela

Carta constitucional; e c) o dos direitos expressos nos tratados

internacionais subscritos pelo Brasil. A Constituição de 1988 inova, assim,

ao incluir, dentre os direitos constitucionalmente protegidos, os direitos

enunciados nos tratados internacionais de que o Brasil seja signatário. Ao

efetuar tal incorporação, a Carta está a atribuir aos direitos internacionais

uma hierarquia especial e diferenciada, qual seja, a de norma constitucional.

Essa conclusão advém de interpretação sistemática e teleológica do texto,

especialmente em face da força expansiva dos valores da dignidade humana

e dos direitos fundamentais, como parâmetros axiológicos a orientar a

compreensão do fenômeno constitucional.10 A esse raciocínio se

acrescentam o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais

referentes a direitos e garantias fundamentais e a natureza materialmente

constitucional dos direitos fundamentais,11 o que justifica estender aos

direitos enunciados em tratados o regime constitucional conferido aos

demais direitos e garantias fundamentais. Essa conclusão decorre também

do processo de globalização, que propicia e estimula a abertura da

Constituição à normação internacional — abertura que resulta na ampliação

do “bloco de constitucionalidade”, que passa a incorporar preceitos

asseguradores de direitos fundamentais” (PIOVESAN, 2008, p. 08-09).

Nesse sentido, por força da interpretação sistemática dada ao Art. 5º,

§§ 1º e 2º, CRFB/88 (PLANALTO, 2015), pode-se concluir, tanto pela

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linha jusnaturalista, quanto pela juspositivista, que a Constituição escrita

brasileira decorrente do poder constituinte originário atribuiu aos direitos

humanos previstos nos tratados internacionais a hierarquia de norma

constitucional, incluindo-os no elenco dos direitos constitucionalmente

garantidos, que apresentam aplicabilidade imediata (PIOVESAN, 2008, p.

09-10).

Não obstante, essa opção do constituinte originário se justifica em

face do caráter especial dos tratados de direitos humanos e da superioridade

desses tratados no plano internacional, tendo em vista que integrariam o

chamado jus cogens – direito cogente e inderrogável –, ou seja, o direito

natural a que este artigo faz referência (PIOVESAN, 2008, p. 10).

Outrossim, reforça esse entendimento, especialmente quanto à

importância constitucional dos tratados sobre Direitos Humanos, a lição de

José Joaquim Gomes Canotilho:

“A legitimidade material da Constituição não se basta com um “dar forma”

ou “constituir” de órgãos; exige uma fundamentação substantiva para os

actos dos poderes públicos e daí que ela tenha de ser um parâmetro material,

directivo e inspirador desses actos. A fundamentação material é hoje

essencialmente fornecida pelo catálogo de direitos fundamentais (direitos,

liberdades e garantias e direitos econômicos, sociais e culturais)”

(CANOTILHO, 1993, p. 74).

Por outro lado, note-se que a hierarquia infraconstitucional dos demais

tratados internacionais, que não possuem conteúdo de direitos humanos, é

extraída do art. 102, III, b, CRFB/88 (PLANALTO, 2015), que confere ao

Supremo Tribunal Federal (STF) a competência para julgar, mediante

recurso extraordinário, “as causas decididas em única ou última instância,

quando a decisão recorrida declarar a inconstitucionalidade de tratado ou

lei federal” (PIOVESAN, 2008, p. 11).

Assim, essa previsão foi, por vezes, equivocadamente interpretada

pelo próprio STF e por alguns doutrinadores, no sentido de que todos os

tratados internacionais, inclusive aqueles cujo conteúdo aborda direitos

humanos, estariam hierarquicamente no mesmo plano das leis ordinárias

(PIOVESAN, 2008, p. 11):

“Sustenta-se, assim, que os tratados tradicionais têm hierarquia

infraconstitucional, mas supralegal. Esse posicionamento se coaduna com o

princípio da boa-fé, vigente no direito internacional (o pacta sunt servanda),

e que tem como reflexo o art. 27 da Convenção de Viena, segundo o qual

não cabe ao Estado invocar disposições de seu direito interno como

justificativa para o não-cumprimento de tratado. À luz do mencionado

dispositivo constitucional, uma tendência da doutrina brasileira, contudo,

passou a acolher a concepção de que os tratados internacionais e as leis

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federais apresentavam a mesma hierarquia jurídica, sendo portanto aplicável

o princípio “lei posterior revoga lei anterior que seja com ela

incompatível”.” (PIOVESAN, 2008, p. 11).

Entrementes, no ano de 2004, o poder constituinte derivado

acrescentou o §3º ao Art. 5º, CRFB/88, por meio da emenda Constitucional

n.º 45, e estabeleceu, a partir de então, que os tratados e convenções

internacionais sobre direitos humanos pactuados pelo Brasil que forem

aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três

quintos dos votos dos respectivos membros, deverão ser considerados

emendas constitucionais (PLANALTO, 2015).

Entretanto, em vez de solucionar o problema, o §3º em comento

acabou por trazer ainda mais discussões à questão sob análise. Veja-se que,

face aos argumentos aqui lançados, sustentou-se que a hierarquia

constitucional desses tratados já se extraía da interpretação sistemática do

Art. 5º, §§ 1º e 2º, CRFB/88, ou seja, para resolver a celeuma, a redação do

aludido §3º deveria abraçar a hierarquia formalmente constitucional de

todos os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos

ratificados, e afirmar, categoricamente, que esses tratados possuem

hierarquia constitucional, e não apenas condicionar os novos tratados a

serem assinados a uma aprovação qualificada (PIOVESAN, 2008, p. 18).

Assim, certo é que a redação do Art. 5º, §3º, CRFB/88, trouxe à tona

outro problema: como ficariam os tratados ratificados anteriormente à

Emenda Constitucional nº 45/2004, já que todos contaram com ampla

maioria na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, excedendo,

inclusive, o quórum dos três quintos dos membros em cada Casa, mas que,

por inexistência de previsão nesse sentido, não foram aprovados por dois

turnos de votação em cada Casa? (PIOVESAN, 2008, p. 18).

Adiante-se que essa resposta não poderia ser a mesma que o STF

vinha aplicando outrora, no sentido de que seriam equiparados à lei

ordinária, já que, de uma forma ou de outra, o acréscimo constitucional em

questão veio a corroborar, em certa medida, a ideia de que os tratados

internacionais que versam sobre direito fundamental são materialmente

constitucionais. Nessa linha, assinala Piovesan:

“Reitere-se que, por força do art. 5º, § 2º, todos os tratados de direitos

humanos, independentemente do quorum de sua aprovação, são

materialmente constitucionais, compondo o bloco de constitucionalidade. O

quorum qualificado está tão-somente a reforçar tal natureza, ao adicionar

um lastro formalmente constitucional aos tratados ratificados, propiciando a

“constitucionalização formal” dos tratados de direitos humanos no âmbito

jurídico interno. Como já defendido por este trabalho, na hermenêutica

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emancipatória dos direitos há que imperar uma lógica material e não formal,

orientada por valores, a celebrar o valor fundante da prevalência da

dignidade humana. À hierarquia de valores deve corresponder uma

hierarquia de normas22 , e não o oposto. Vale dizer, a preponderância

material de um bem jurídico, como é o caso de um direito fundamental,

deve condicionar a forma no plano jurídico-normativo, e não ser

condicionado por ela” (PIOVESAN, 2008, p. 19).

Diante disso, em razão do mais atual jugado do Supremo Tribunal

Federal a respeito do tema, foi revigorado o posicionamento anteriormente

já defendido por Sepúlveda Pertence no ano de 2000 (PIOVESAN, 2008, p.

17), pois, no julgamento do Recurso Extraordinário 349.703-1, em que se

discutia a prisão civil do depositário infiel, por maioria e a partir do voto do

Ministro Gilmar Mendes, sob o argumento da adesão do Brasil ao Pacto

Internacional dos Direitos Civis e Políticos e à Convenção Americana sobre

Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), ambas em 1992,

decidiu-se que não haveria base legal para a prisão civil do depositário

infiel (PIOVESAN, 2008, p. 21-22).

Essa decisão baseou-se no caráter “supralegal” (acima dos

instrumentos legislativos ordinários e abaixo da constituição) desses

diplomas internacionais, de modo a tornar inaplicável toda a legislação

infraconstitucional com ele conflitante, seja ela posterior ou anterior ao ato

de internalização desses pactos (PIOVESAN, 2008, p. 21-22).

Entretanto, Flávia Piovesan se inclina a entender que o

posicionamento do voto divergente do Ministro Celso de Mello seria o

mais correto:

“Ao avançar no enfrentamento do tema, merece ênfase o primoroso voto do

Ministro Celso de Mello a respeito do impacto do art. 5º, § 3º e da

necessidade de atualização jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal,

quando do julgamento do HC 87.585-8, em 12 de março de 2008,

envolvendo a problemática da prisão civil do depositário infiel. À luz do

princípio da máxima efetividade constitucional, advertiu o Ministro Celso

de Mello que "o Poder Judiciário constitui o instrumento concretizador das

liberdades constitucionais e dos direitos fundamentais assegurados pelos

tratados e convenções internacionais subscritos pelo Brasil. Essa alta

missão, que foi confiada aos juízes e Tribunais, qualifica-se como uma das

mais expressivas funções políticas do Poder Judiciário. (...) É dever dos

órgãos do Poder Público -- e notadamente dos juízes e Tribunais -- respeitar

e promover a efetivação dos direitos humanos garantidos pelas

Constituições dos Estados nacionais e assegurados pelas declarações

internacionais, em ordem a permitir a prática de um constitucionalismo

democrático aberto ao processo de crescente internacionalização dos direitos

básicos da pessoa humana". É sob esta perspectiva, inspirada na lente "ex

parte populi" e no valor ético fundamental da pessoa humana, que o

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Ministro Celso de Mello reavaliou seu próprio entendimento sobre a

hierarquia dos tratados de direitos humanos, para sustentar a existência de

um regime jurídico misto, baseado na distinção entre os tratados tradicionais

e os tratados de direitos humanos, conferindo aos últimos hierarquia

constitucional. Neste sentido, argumentou: "Após longa reflexão sobre o

tema, (...), julguei necessário reavaliar certas formulações e premissas

teóricas que me conduziram a conferir aos tratados internacionais em geral

(qualquer que fosse a matéria neles veiculadas), posição juridicamente

equivalente à das leis ordinárias. As razões invocadas neste julgamento, no

entanto, convencem-me da necessidade de se distinguir, para efeito de

definição de sua posição hierárquica em face do ordenamento positivo

interno, entre as convenções internacionais sobre direitos humanos

(revestidas de "supralegalidade", como sustenta o eminente Ministro Gilmar

Mendes, ou impregnadas de natureza constitucional, como me inclino a

reconhecer) e tratados internacionais sobre as demais matérias

(compreendidos estes numa estrita perspectiva de paridade normativa com

as leis ordinárias). (...) Tenho para mim que uma abordagem hermenêutica

fundada em premissas axiológicas que dão significativo realce e expressão

ao valor ético-jurídico -- constitucionalmente consagrado (CF, art.4o, II) --

da "prevalência dos direitos humanos" permitirá, a esta Suprema Corte,

rever a sua posição jurisprudencial quanto ao relevantíssimo papel, à

influência e à eficácia (derrogatória e inibitória) das convenções

internacionais sobre direitos humanos no plano doméstico e

infraconstitucional do ordenamento positivo do Estado brasileiro. (...) Em

decorrência dessa reforma constitucional, e ressalvadas as hipóteses a ela

anteriores (considerado, quanto a estas, o disposto no parágrafo 2o do art.5o

da Constituição), tornou-se possível, agora, atribuir, formal e materialmente,

às convenções internacionais sobre direitos humanos, hierarquia jurídico-

constitucional, desde que observado, quanto ao processo de incorporação de

tais convenções, o "iter" procedimental concernente ao rito de apreciação e

de aprovação das propostas de Emenda à Constituição, consoante prescreve

o parágrafo 3o do art.5o da Constituição (...). É preciso ressalvar, no

entanto, como precedentemente já enfatizado, as convenções internacionais

de direitos humanos celebradas antes do advento da EC n.45/2004, pois,

quanto a elas, incide o parágrafo 2o do art.5o da Constituição, que lhes

confere natureza materialmente constitucional, promovendo sua integração

e fazendo com que se subsumam à noção mesma de bloco de

constitucionalidade".” (PIOVESAN, 2008, p. 24).

No entanto, não é demais frisar que, segundo entendimento calcado

nas premissas desta pesquisa, as normas de tratados internacionais cujo

conteúdo verse sobre direitos humanos possuem caráter Constitucional

(formal e material, escrito e não escrito), quer seja quando tratem do

mínimo ético do ordenamento jurídico, quer seja por força da

argumentação-moral mais robusta declinada pelo Ministro Celso de Mello.

Ademais, cabe destacar, ainda, a possibilidade de se interpretar que,

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caso o entendimento contido no voto do Ministro Celso de Mello não seja o

adotado pela nova composição do STF, o Art. 5º, §3º, CRFB/88, estaria a

diminuir a garantia fundamental prevista no §2º do mesmo artigo e, por

consequência, haveria uma colisão de prescrição normativa do poder

constituinte originário – Art. 5º, §2º c/c as cláusulas pétreas do Art. 60, §4º,

IV, ambos, CRFB/88 – (PLANALTO, 2015) com o poder constituinte

derivado, de modo que prevaleceria, nesse caso, como já exposto, o poder

originário por ser hierarquicamente superior e por se tratar de norma

atinente ao núcleo de criação do próprio direito posto (BONAVIDES, 2013,

p. 54).

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