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  • 7/26/2019 LnguaNacional Almeida

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    Lngua Nacional, Competncia Escolar e Posio Social*

    Ana Maria F. AlmeidaUNICAMP

    Na hierarquia dos saberes escolares, a Lngua Portuguesa tem ocupado um lugar

    proeminente no sistema de ensino brasileiro pelo menos desde o incio do sculo. Essa situao,

    longe de ser atenuada pela intensificao das trocas internacionais em pocas mais recentes, foi

    realada por uma srie de modificaes na forma de se conceituar o aluno competente operada

    pelo prprio sistema de ensino. Mais concretamente, este passou a sobrevalorizar, nos seus

    exames, qualidades que dizem respeito capacidade de interpretar o mundo, segundo a frmula

    disseminada pelas prprias instncias oficiais. Pensada no contexto do currculo escolar como

    capacidade a ser ensinada e, portanto, aprendida, a correta interpretao do mundo vem sendo

    tratada como estreitamente vinculada e dependente do bom domnio da Lngua Portuguesa. Um

    domnio que, desnecessrio dizer, distribui-se muito desigualmente entre os diferentes grupos

    sociais interessados na escola.

    Este artigo trata dos processos mais recentes que contriburam para reafirmar o lugar

    central ocupado por esta disciplina e do papel diferenciador que ela pode e, de fato, desempenha

    no espao escolar. A discusso estruturada por uma indagao sobre a funo exercida pelo

    sistema educacional enquanto instncia produtora da maneira como se concretizam a

    desigualdade entre os grupos sociais. As lutas pela definio da competncia escolar, outra forma

    de apresentao das lutas pela definio do conhecimento legtimo, apresentam-se, assim, como

    uma porta de entrada eficaz para se examinar o lugar da escola na produo e manuteno da

    estrutura de dominao que d sentido s interaes entre os grupos sociais na sociedade

    brasileira.

    A argumentao apia-se nos achados de uma pesquisa que tomou essa maneira de pensar

    a educao (especialmente desenvolvida por Max Weber e, posteriormente, por Pierre Bourdieu eseus colaboradores) como ponto de partida para investigar a hierarquia de saberes que estrutura o

    espao escolar brasileiro. O foco da anlise so as escolas paulistanas melhor sucedidas em

    preparar estudantes capazes de bem responder s exigncias do prprio sistema de ensino, isto ,

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    para estarem em condies de trilhar percursos escolares prestigiosos, obtendo diplomas

    necessrios para a entrada em posies dirigentes1.

    1. A boa escola

    Que qualidades ou propriedades definem uma escola como sendo de alto nvel? Essa

    uma questo crucial para a compreenso do sistema de relaes que estrutura o espao escolar da

    cidade de So Paulo: a disposio hierrquica do conjunto de escolas, a distribuio dos alunos

    entre elas e, inclusive, as diferenas de orientao propriamente pedaggica de cada uma. Nesse

    espao escolar, o vestibular desempenha um importante papel estruturador. Trata-se de um efeito

    da importncia do diploma universitrio nas estratgias reprodutivas das camadas sociais mdias

    e superiores (Faoro, 1987; Holanda, 1994; Owensby, 1998), associada forma como regulada,

    no Brasil, a entrada na universidade.

    Diferente de outros pases, como a Frana, por exemplo, onde a admisso depende dos

    resultados escolares obtidos num exame nacional, aqui, o grupo de alunos destinados ao ensino

    superior definido atravs de um exame proposto por cada universidade. Diferente tambm do

    que ocorre nos Estados Unidos, onde a admisso aos colleges mais prestigiosos, como aqueles

    que fazem parte da Ivy League, igualmente regulada por cada instituio, mas consiste numa

    avaliao das propriedades escolares e tambm pessoais dos candidatos (Cookson & Persell,

    1985), as universidades brasileiras, para escolher seus estudantes, consideram apenas as notasobtidas nas provas que fazem parte do concurso, avaliando apenas os contedos ensinados no

    nvel secundrio.

    Todos os alunos que sobrevivem aos mecanismos de excluso implementados pelo

    sistema escolar e chegam at o final do secundrio podem apresentar-se como candidatos a uma

    vaga na universidade. A escolarizao de nvel secundrio no Brasil, porm, bastante rara em

    funo da proporo de alunos excludos durante os perodos anteriores do curso. Em 1989, por

    exemplo, apenas 17% dos jovens entre 15 e 19 anos estavam nesse nvel de ensino (Brasil, 1990)

    e, em 1990, apenas 13% da populao o havia concludo (Brasil, 1996). Trata-se, claro, de uma

    excluso praticada desigualmente entre os diferentes grupos sociais. Em conseqncia, a

    * Este artigo uma verso modificada e reduzida do artigo The Formation of the Elites in Brazil, Social ScienceInformation, no. 40 (4): pp. 585-606, 2001.1A pesquisa foi financiada pela FAPESP (Processo: 95/5257-0). Uma apresentao mais completa dos resultados

    pode ser encontrada em Almeida (1999).

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    populao atingida por esse concurso, uma pequena parte da populao total, inclui, de fato, a

    quase totalidade dos jovens oriundos das famlias mais privilegiadas aos quais juntam-se, em

    menor nmero, aqueles jovens oriundos de famlias mais pobres que conseguiram sobreviver ao

    ensino secundrio2. Somando-se a esse quadro a objetividade da avaliao escolar realizada pelo

    vestibular, tem-se como resultado um ensino de segundo grau que define-se, antes de tudo, como

    uma via de acesso universidade, assumindo um carter propedutico3.

    O vestibular das universidades pblicas torna-se, assim, o principal elemento

    estruturador do espao escolar, na medida que os resultados obtidos pelos alunos nas provas

    desse concurso impem uma hierarquizao ntida das escolas secundrias. Ao construir seus

    exames como uma seleo de "bons alunos", as universidades pblicas produzem, no mesmo

    movimento, a crena de que a competncia escolar o que define o acesso aos diplomas mais

    prestigiados, ocultando o que tal competncia deve s condies econmicas das famlias.

    Vestibular e definio da excelncia

    "Para ter um bom desempenho no nosso vestibular o aluno deve, aolongo de sua formao escolar, ter aprendido a pensar, a elaborarhipteses, a desenvolver o raciocnio lgico, a se expressar bem ecomunicar-se com clareza" (). Por esse motivo a preparao de

    ltima hora costuma no surtir efeito.Revista do Vestibulando, UNICAMP, 1999.

    Nos vestibulares das universidades - pblicas, em sua maioria - que ocupam o plo

    dominante do sistema superior de ensino, as decises de privilegiar um tipo particular de prova

    impe, seja pelo tipo de questes (mltipla escolha por oposio a questes abertas), seja pelos

    assuntos considerados importantes, seja ainda pelas caractersticas definidoras das respostas

    corretas, uma concepo determinada das competncias que as escolas secundrias se engajam

    em produzir.

    2Alm das dificuldades associadas ao acesso escola secundria, esses alunos so confrontados tambm a umobstculo suplementar bastante concreto: o custo da taxa de inscrio ao vestibular. Em 1996, a taxa de inscrio aovestibular da USP era igual metade do salrio mnimo em vigor, apesar de tratar-se de uma universidade pblicaque oferece uma escolarizao gratuita. Apenas em 1999, as universidades pblicas paulistas passaram a considerarcomo aceitvel conceder iseno de taxa de inscrio aos alunos menos favorecidos economicamente, desde queesses o solicitassem expressamente.3Isso verdadeiro mesmo para as escolas profissionalizantes de ensino mdio, j que as mais prestigiosas soaquelas que adicionam formao profissional uma boa preparao para o vestibular.

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    O estilo do vestibular no o mesmo em todas as universidades. Tambm no se trata de

    um estilo imutvel, mas de um estilo que tem recentemente sofrido modificaes importantes

    particularmente a partir de meados dos anos oitenta, quando a Universidade de Campinas

    (Unicamp) passou a propor exames mais analticos e interpretativos, progressivamente tomados

    como modelo por outras universidades4. Entre essas encontra-se a USP, cujo vestibular, tal como

    pensado hoje, valoriza aqueles alunos que, no vocabulrio dos professores e reformadores,

    "interessam-se pelos desafios intelectuais" e apresentam "capacidade de anlise e de

    interpretao". As provas de portugus e redao esto no centro do exame e so responsveis

    pela distribuio do maior nmero de pontos, mas a tarefa de avaliar as ditas capacidades de

    anlise e interpretao no tratada como um monoplio dessas provas. Um dos professores que

    participam da preparao do vestibular da USP, por exemplo, lembrava recentemente aos alunos

    que "ler os clssicos e ir ao cinema muito importante para compreender fsica e qumica"

    (Revista Veja So Paulo, 1997: 21)5.

    O vestibular da USP d tambm uma grande importncia familiaridade dos alunos com

    as "atualidades", o que definido como um conhecimento da "realidade" que os cerca e uma

    capacidade de explic-la. Essa familiaridade com a "atualidade-realidade", segundo os conselhos

    dos professores da universidade entrevistados pela imprensa, obtida atravs de um contato

    constante dos alunos com a mdia, mas um contato que, segundo eles, mediado pela capacidade

    de ler e interpretar o que se apresenta como notcia ou anlise.Aceitando-se, por um lado, a idia de que a forma como a sociedade seleciona,

    classifica, distribui, transmite e avalia o conhecimento escolar reflete tanto a distribuio de

    poder quanto os princpios de controle social e considerando-se, por outro lado, que tal

    4Essa mudana, acompanhada por vivas discusses entre os professores do secundrio e das universidades, foiconduzida pelo proprietrio de uma escola secundria privada de So Paulo e marcou o fim da associao dessauniversidade ao vestibular da USP. At ento os vestibulares das duas universidades eram realizados conjuntamente.

    Nesse artigo, eu trato sobretudo do poder de imposio, por parte da Universidade, dos critrios definidores doensino considerado de alto nvel, analisando a dependncia do ensino secundrio em relao ao vestibular. Num

    outro trabalho, eu interrogo tambm se e como as escolas (ou o ensino secundrio) chegam a impor um modelo deexcelncia sobre o vestibular. Para isso, fao um estudo mais aprofundado sobre as mudanas no vestibular dessasuniversidades que leva em considerao os agentes sociais a atuantes - sua formao escolar, suas relaes com oensino privado considerado de alto nvel (do qual eles so, na maior parte, antigos alunos). As mudanas novestibular da Unicamp, por exemplo, no podem ser compreendidas sem que se leve em conta as relaes entre oreitor que as implementou no final dos anos oitenta e a pessoa que pensou a reforma - os dois participaram domovimento de professores na campanha pelas Diretas J (Almeida, 1999b).

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    conhecimento um importante regulador da estrutura da experincia, como mostram, entre

    outros, os trabalhos de Bourdieu (1967) e Bernstein (1971 e 1980), torna-se necessrio investigar

    os efeitos, sobre os diferentes grupos de alunos que submetem-se ao vestibular, da incluso das

    ditas capacidades de interpretao e crtica no centro das qualidades mais valorizadas.

    Primariamente, essas exigncias tm por efeito a desvalorizao relativa daquelas

    capacidades intelectuais passveis de ser adquiridas exclusivamente dentro das escolas. At esse

    momento, o vestibular valorizava sobretudo a acumulao de conhecimentos, compunha-se

    majoritariamente de provas de mltipla escolha e eram poucas as exigncias relativas a

    dissertaes ou interpretao. Nesse modelo, a acumulao de informaes atravs da

    memorizao desempenhava um papel importante na obteno de um bom resultado no concurso.

    Os cursinhos6, que ofereciam uma nova forma de trabalhar a memorizao, so originalmente

    produto dessa lgica e o sucesso comercial que experimentam atesta a difuso da crena na

    eficcia dessa estratgia.

    A nfase nas habilidades de crtica e interpretao muda a relao de foras presentes no

    vestibular. Uma base de conhecimentos continua a ser solicitada aos alunos bem sucedidos, o que

    s pode ser acumulado atravs de um volume intenso de trabalho escolar. Esses conhecimentos,

    porm, passam a servir de pretexto para medir a capacidade dos alunos de analisar e questionar o

    mundo em que vivem, isto , a ordem social em que esto imersos. Uma capacidade que depende

    de uma relao especfica, desigualmente distribuda entre os grupos sociais, com o mundo e coma cultura (Bourdieu, 1979; DiMaggio, 1991) e que, para ser adquirida exclusivamente atravs da

    escola, exige um trabalho de transformao da representao que o aluno tem de si mesmo e do

    mundo que o cerca.

    Essa diferenciao entre os grupos de alunos imposta pelo vestibular tem efeitos

    concretos sobre a organizao do trabalho pedaggico nos diferentes colgios. No prximo item,

    eu analiso dois casos exemplares de produo da "excelncia escolar" em colgios considerados

    de alto nvel em So Paulo, associando os investimentos diferentes exigidos de cada populao

    de alunos posio social de suas famlias.

    5Essa constatao parece indicar a existncia de uma certa "traduo" num idioma propriamente brasileiro dosmesmo princpios de hierarquizao das disciplinas identificados por Pierre Bourdieu & Monique de Saint Martin(1970), no seu estudo sobre os laureados do concurso geral na Frana.6Cursos livres de curta durao que propem uma preparao especializada para as provas do vestibular.

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    2. Origem social, modelos pedaggicos e modos de produo da excelncia

    Apesar do reconhecimento pblico da qualidade do ensino que ministram (seja pela

    sofisticao e complexidade dos contedos trabalhados, seja pelas exigncias feitas ao alunos em

    termos do contedo a ser dominado), importante sublinhar, em primeiro lugar, que a elite dos

    colgios paulistanos diferencia-se mais do conjunto dos colgios da cidade pelas operaes de

    seleo dos seus alunos do que por suas estratgias pedaggicas.

    Esses colgios, sem exceo, exercem um forte controle sobre a definio do seu

    alunado por meio, principalmente, de exames de admisso draconianos no incio do secundrio e

    da recusa em permitir que os alunos com desempenho ruim permaneam no colgio. Atuando

    sobre uma populao j previamente selecionada em termos financeiros, os colgios conseguem,

    com esses expedientes, reunir um alunado homogneo tambm em termos da capacidade de

    responder bem ao ritmo de aprendizagem proposto pelo colgio. O papel dos psiclogos e

    pedagogos fundamental nesse processo, na medida que so eles os responsveis por traduzir na

    linguagem da adaptao pessoal os mecanismos de expulso daqueles jovens que exigiriam um

    maior investimento de tempo ou de energia para apresentar a performance considerada natural

    aos alunos desses colgios.

    A homogeneidade do alunado em termos da maneira de viver a escolarizao permite

    que esta seja experimentada como uma totalidade provida de sentido e que os colgios possam de

    fato promover uma determinada relao com a cultura por meio das suas estratgias pedaggicas.Essa funo de diferenciao social desempenhada pela escola brasileira revela-se de forma

    particularmente contundente pela anlise da maneira como se ensina a Lngua Portuguesa.

    Para isso, toma-se aqui dois colgios que tm-se destacado na preparao dos alunos

    aprovados para os cursos mais seletivos da USP7. A forma de preparao , porm, muito

    diferente e tais diferenas expressam-se em diversas reas do trabalho pedaggico. Ela varia em

    7Para identificar as escolas encarregadas de oferecer uma boa preparao para o vestibular, eu entrevisteiprofessores, alunos e ex-alunos dos trs cursos que foram os mais seletivos durante os ltimos oito anos do concurso(Medicina, campusPinheiros; Jornalismo matutino; Engenharia Mecnica com especializao em Automao eSistemas). As respostas permitiram construir uma lista de oito colgios que foram distribudos no espao escolar dacidade de So Paulo em funo da origem e destino social dos alunos e do estilo pedaggico de cada um. Trs entreeles foram selecionados para sediar a pesquisa por reunirem de forma mais completa as propriedades tpicas da

    posio que ocupavam nesse espao escolar. Esse texto compara os resultados obtidos para dois desses colgios - osque ocupam as posies mais opostas entre si.

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    funo do tipo de professores contratados, das exigncias disciplinares, da maneira como o

    contedo abordado, entre outras coisas8.

    A excelncia como consagrao

    Compreender a organizao atual da disciplina Lngua Portuguesa no colgio aqui

    chamado de So Toms implica conhecer a histria da sua implementao e das modificaes

    que ela sofreu acompanhando as modificaes do sistema de ensino nas ltimas dcadas.

    Como todas as disciplinas do colgio, a Lngua Portuguesa foi iniciada por um ncleo

    reduzido de professores recrutados principalmente junto Universidade de So Paulo num

    momento (meados da dcada de 50) em que o duplo emprego era relativamente comum para essa

    categoria de profissionais. Foi atravs desses iniciadores, das suas recomendaes, que todos os

    recrutamentos posteriores tiveram lugar. E o estilo - definido pelos entrevistados como

    "personalista" - que eles imprimiram ao ensino de portugus est supostamente presente nos

    programas e mtodos adotados ainda hoje no colgio.

    Seja porque o programa de portugus do vestibular no representava nenhum

    constrangimento, seja porque esses constrangimentos eram desprezveis, os professores

    trabalhavam sob o signo de uma grande liberdade na fixao dos contedos. Um professor

    ensinava lingstica. Ele gostava de ensinar lingstica, ele ensinava semitica ao alunos. , diz a

    atual coordenadora9

    , notando que esse contedo estava "muito alm daquilo que era e prescritopelas normas curriculares oficiais". Os resultados dos alunos no vestibular eram, apesar de ou

    graas a esse estilo, muito bons. O prprio programa do vestibular, principal estruturador, hoje,

    do currculo, era diferente: No existia lista de livros. Os professores, ento, pediam que os

    alunos lessem Dostoievski. Hoje, ainda segundo a coordenadora, o programa do colgio est

    bastante diferente, mas continua "ultrapassando o currculo prescrito, principalmente no que se

    refere ao espao dado s belas artes, msica e ao teatro em conexo com a literatura". Um

    8As informaes em que se baseia esse trabalho foram reunidas por meio de um trabalho que incluiu, por um lado, arealizao de observaes e entrevistas aprofundadas com diretores, coordenadores, professores, alunos e ex-alunosdos colgios. Alm disso, um questionrio foi respondido por uma parte dos alunos da segunda srie do segundograu em cada estabelecimento atravs do qual procurei identificar as caractersticas sociais e as prticas educativas eculturais dos alunos e suas famlias. Por outro lado, contei tambm com diversos materiais produzidos e/ou

    publicados pelos estabelecimentos como memrias dos fundadores dos colgios, jornais de alunos e professores,textos de projetos pedaggicos, circulares internas, folhetos de divulgao, etc. Utilizei, por fim, uma gama variadade artigos produzidos pela imprensa local e nacional.

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    exemplo: O tema do segundo ano o sculo XX. (...) A, mesmo que no faa exatamente parte

    do programa oficial (...) o estudo real, aprofundado, das vanguardas europias do comeo do

    sculo, eu trabalho isso com eles.

    A escola encontra, ento, os meios para colocar disposio dos alunos um conjunto de

    obras entre as quais os filmes e reprodues de quadros ao lado de produes literrias

    consideradas mais difceis - como as obras surrealistas, por exemplo. A escolha desses contedos

    justificada pela inteno de constituir nos alunos o que se poderia chamar de uma aesthetic

    disposition (Bourdieu, 1979): fundamental para que eles despertem [a sensibilidade] para a

    arte moderna. Para que eles possam assistir MTV e ter uma idia de onde vem essa linguagem,

    de onde vem o fragmentado. Mobiliza-se, nesse caso, o aprendizado de um modo de percepo

    artstica com claras intenes diferenciadoras: Eles [os alunos] no fariam isso

    espontaneamente, eles no fariam essas coisas, ou eles no iriam ao museu ou eles no iriam ao

    teatro. Ou se eles fossem, como acontece durante as viagens tursticas, eles consumiriam aquilo

    como a classe mdia consome. Como um objeto turstico.

    Essa preocupao em produzir disposies interessadas numa apropriao esttica da

    produo cultural utilizada para explicar a funo de um grande evento organizado ao final de

    cada ano, no qual os alunos fazem a apresentao das produes artsticas que eles

    desenvolveram em grupo durante o segundo semestre. So grupos de 10 a 15 alunos. Eles

    produzem curtas, instalaes, peas, performances. Eles utilizam diversas linguagens sobreassuntos variados, a identidade nacional, as emoes, o futuro. (...) O colgio transforma-se num

    pavilho da Bienal . No contexto brasileiro e, sobretudo, paulista, aproximar esse evento escolar

    da Mostra Bienal das Artes tem um significado bastante particular. A srie de mostras, que

    pretende reunir os trabalhos mais representativos da arte contempornea mundial, teve incio em

    1951, idealizada pelas elites paulistas, num momento em que se encontravam alijados do ncleo

    de poder do regime poltico que se impusera ao Brasil na dcada de trinta. A instaurao da

    Mostra fez parte de um movimento mais amplo que englobou a criao do Museu de Arte

    Moderna de So Paulo em 1949, a partir de uma colaborao com o Museu de Arte Moderna de

    Nova York (sob a direo, na poca, de Nelson Rockefeller) e com o Guggenheim (dirigido por

    Karl Nierendorf). Contando sempre com forte patrocnio governamental, a Bienal, que em 2001

    9Trs dos quatro professores de portugus graduaram-se na USP. O quarto graduou-se na Unesp. Todos fizeram aomenos os crditos de mestrado.

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    completa 50 anos, percebida localmente at hoje como um evento que permite a So Paulo se

    apresentar como um centro cultural internacional de vanguarda.

    No h aula de gramtica. A transmisso das normas consideradas cultas se d atravs

    da prtica de escrita, sem sistematizao. Durante as aulas de redao, a nfase tambm

    colocada na criao. Sem se limitar escrita de textos, os alunos so levados a fazer a produo

    completa de revistas e jornais: [Essa prtica] muito importante para que eles criem, para que

    eles pratiquem a criao que eles viram tambm em outros lugares, porque ningum aprende a

    criar sem olhar o que os outros fizeram.

    A coordenadora bastante consciente de que existe uma concordncia entre aquilo que a

    escola ensina aos alunos e o que a USP exige no vestibular. Ns percebemos que

    progressivamente (comeou com o vestibular da Unicamp e a USPfoi pelo mesmo caminho) eles

    comearam a pedir aquilo que ns fazamos aqui h muitos anos. atravs dessa capacidade de

    se perceber como detentor dos critrios de excelncia dominantes nesse espao escolar que

    afirma-se a posio dominante do Colgio So Toms. Uma tal percepo est em completo

    acordo com a posio social ocupada pelas famlias dos alunos. Trata-se de um colgio que,

    desde a sua fundao, esteve destinado aos filhos das famlias das camadas sociais mais

    privilegiadas, devido s alianas estabelecidas entre os fundadores e as elites econmicas e

    culturais da cidade10(Almeida, 2002).

    Uma srie de caractersticas contriburam para a definio desse perfil, desde o endereodo estabelecimento - num bairro de classe mdia alta -, ao alto custo das mensalidades e ao

    projeto educativo do colgio, baseado num regime de acompanhamento individualizado dos

    alunos. Alguns dos documentos estudados mostram que o colgio foi rapidamente classificado

    como um estabelecimento de "super dotados", o que ajuda a explicar que ele tenha se tornado

    10As informaes sobre as famlias foram obtidas atravs de um questionrio respondido pela totalidade dos alunos

    de trs classes da segunda srie do segundo grau (n=95). A quase totalidade dos pais (n=85) e aproximadamente70% das mes (n=69) concluram um curso superior sendo que a maioria (n=58) dos pais apresenta um diploma deengenheiro, mdico ou administrador de empresas. Em termos da ocupao, um pouco mais da metade dos pais atuacomo empresrio e profissional liberal autnomo ou empregador (n=49), sendo que os profissionais liberaisempregados formam o segundo grupo mais numeroso (n=21). Em torno de 60% das mes trabalham foram (n=58) e,entre essas, os dois maiores grupos so formados pelas profissionais liberais (n=29) e, em segundo lugar, pelas

    professoras e tradutoras (n=22). No que se refere gerao anterior, entre os 60% dos alunos que responderam sperguntas sobre a escolarizao do av paterno (n=57), 75% indicam que o av paterno e o materno tambmpossuem um diploma de ensino superior (n=42). As ocupaes mais citadas desses so "empresrio" e profissionalliberal empregador (n=33).

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    alvo das preferncias das famlias burguesas mais educadas e dos intelectuais mais em evidncia

    na cidade, em particular os professores da Universidade de So Paulo11.

    A excelncia como aprendizado escolar

    Nenhuma ambigidade aqui. O curso de portugus do Colgio Santo Estvo est a

    servio da preparao para o vestibular - principalmente o da USP - e seu statusna escola tem

    evoludo em sintonia com a progressiva valorizao da prova de portugus entre o conjunto das

    provas desse concurso, ganhando espao num sistema de preparao orientado primariamente

    para as carreiras de Engenharia.

    O colgio encontra-se hoje confrontado s novas exigncias dos vestibulares da USP e

    da Unicamp em relao s capacidades de crtica e interpretao, diante das quais os professores

    no sabem bem o que fazer. A coordenadora da rea explica as dificuldades encontradas pelos

    professores para adaptar-se a tais exigncias12: difcil por diversas razes. O professor (...) no

    teve essa formao. (...) Aquilo que ele aprendeu no secundrio uma coisa, aquilo que ele

    aprendeu na universidade outra coisa e aquilo que exigido hoje [no vestibular] ainda outra

    coisa.

    Em termos do trabalho desenvolvido, a gramtica ensinada de maneira normativa e o

    ensino de redao est concentrado sobre a dissertao (o tipo de texto exigido no vestibular da

    USP). As aulas so destinadas a trabalhar os aspectos que respondem aos critrios de avaliaoformalmente enunciados pela USP e pela Unicamp - uma introduo que seja breve, clareza na

    exposio dos argumentos, adequao do texto ao tema proposto.

    na medida que os alunos e os professores dessa escola compartilham a mesma

    distncia em relao s habilidades exigidas pela universidade que a tarefa de ensin-las torna-se

    to difcil. Os professores parecem no perceber que essas exigncias dizem diretamente respeito

    11Em termos do destino escolar dos alunos, importa notar que uma mudana visvel de direcionamento pode ser

    percebida na dcada de noventa, quando a Engenharia perde para a Administrao de Empresas (principalmente ocurso da Fundao Getlio Vargas) o status de destino preferencial da maioria dos alunos. Esse colgio foi fundadona metade da dcada de cinqenta como colgio de meninos. Em meados da dcada de setenta, passou a recebermeninas. Hoje, a proporo de homens e mulheres praticamente equivalente. Uma anlise das experinciasescolares diferenciais quanto ao gnero foge ao escopo desse artigo, mas talvez interesse notar que, emborasubmetidas ao mesmo currculo, s mesmas exigncias e obtendo rendimento similar ao dos homens, as meninasoptam por carreiras universitrias nitidamente diferentes, dirigindo-se majoritariamente para as profisses ditas para-mdicas, como a Psicologia, e apenas um pequeno grupo volta-se para a Administrao de Empresas (curso de

    preferncia da maioria dos homens).12Cinco dos seis professores de portugus do colgio fizeram graduao na USP. Nenhum fez ps-graduao.

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    ao repertrio cultural dos alunos. E esse um domnio desconhecido para eles. Nada lhes resta

    assim a fazer alm de organizar o programa do curso de portugus em torno dos contedos mais

    tradicionais e confrontar a exigncia implcita de um repertrio cultural determinado de uma

    maneira tambm implcita: Uma redao que eu considero boa? , por exemplo, quando o

    aluno consegue relacionar o tema proposto com elementos externos ao contexto . Os elementos

    considerados clssicos para a avaliao de uma redao - e sobre os quais eles trabalham em suas

    aulas - no so, assim, considerados como suficientes para definir uma boa redao.

    Sem recursos para oferecer aos alunos as condies para a aquisio das disposies

    valorizadas pelo vestibular, os professores do colgio traduzem essas disposies em termos de

    informaes necessrias para escrever bem e as operaes para adquirir tais informaes so,

    ento, consideradas como parte do trabalho reservado aos alunos. A leitura de jornais, de

    revistas, eles tm que fazer fora. A gente no tem condies de dar tudo. Os professores

    limitam-se assim doutrinao. um pouco lavagem cerebral. Olha, se vocs no lem jornal,

    se vocs no lem nenhuma revista, vocs no tero elementos para fundamentar a argumentao

    . As melhores redaes da semana so expostas num quadro ao lado da cantina - lugar de

    passagem obrigatria dos alunos da escola. Elas esto l para que os alunos tenham uma idia

    do que uma boa redao. Eles vm aqui, eles olham, eles aprendem... .

    De fato, avaliando aquilo que eles no ensinam e utilizando a competio e a imitao

    que os professores de portugus terminam por fazer os alunos produzir redaes que sero bemclassificadas no concurso de admisso universidade. Nesse processo, a dedicao dos alunos

    aos estudos desempenha um papel fundamental. Isso revelado, por exemplo, no nmero de

    horas que os alunos declaram dedicar aos estudos fora das horas de aula - uma mdia de 30 horas

    semanais (por oposio mdia de 8 horas declarada pelos alunos do Colgio So Toms)13.

    13Como mostrei num outro trabalho (Almeida, 2000), a disposio dos alunos desse colgio em investir topesadamente nos estudos melhor compreendida quando se analisa suas trajetrias escolares em relao com ositinerrios sociais seguidos por suas famlias e pelos grupos aos quais elas pertencem.

    A partir de informaes obtidas atravs de um questionrio respondido pela totalidade dos alunos de trs das seisturmas que formam a segunda srie do segundo grau (n=128), foi possvel estabelecer as posies sociais dasfamlias dos alunos e, em linhas gerais, o itinerrio social de suas famlias (que foi melhor avaliado por meio deentrevistas): aproximadamente a metade dos pais (n=68) e 40% das mes (n=50) concluram um curso superior. Osdiplomas so mais variados, sendo que os contadores, dentistas e advogados formam os maiores grupos. O grupomais numeroso de pais o dos comerciantes ou pequenos empresrios (n=57), vindo em segundo lugar os

    profissionais liberais empregados (n=20), seguido pelos funcionrios pblicos e bancrios (n=16).Aproximadamente dois teros das mes trabalham fora (n=77) e a ocupao mais citada a de professora (n=26).Raros so os avs paternos que concluram um curso superior: entre os 45% que responderam questo sobre aescolarizao do av paterno (n=57), apenas 7% indicam a posse de um diploma de curso superior (n=4), sendo que

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    Enquanto no Colgio So Toms o investimento nos estudos parece estar associado com

    estratgias de reproduo das posies sociais, a anlise das posies sociais das famlias do

    Colgio Santo Estvo parece indicar que tal investimento faz parte de um esforo para revestir

    posies economicamente vantajosas dos benefcios adicionais associados ao pertencimento aos

    grupos intelectualizados - o que, em determinados contextos, pode implicar tambm ascenso

    social14.

    3. Escolas e famlias

    As modificaes ocorridas no espao da escolarizao considerada de alta qualidade em

    So Paulo a partir da dcada de cinqenta esto estreitamente relacionadas com as mudanas na

    estrutura social da cidade. na relao entre essas duas esferas de ao social que se explica

    grande parte dos empreendimentos voltados para criao de colgios e as lutas que orientaram o

    posicionamento de cada um deles no interior do espao escolar.

    Dessa maneira, a histria dos colgios presentes nesse espao est associada de forma

    estreita histria dos grupos que eles esto encarregados de servir. A coincidncia histrica

    entre, por um lado, a criao dos colgios e suas transformaes e, por outro lado, as

    modificaes na estrutura social da cidade de So Paulo, , porm, apenas um dos indcios

    externos dessa associao. O que importa ser retido o nvel de adequao entre as demandas

    dos grupos familiares e os principais elementos definidores do trabalho pedaggico a que seusfilhos so submetidos.

    Na relao que une as famlias e os estilos de ensino, tudo se passa como se cada colgio

    tivesse sido especialmente encomendado para resolver os problemas de diferenciao que as

    primeiras se colocavam em momentos especficos de sua histria.

    a maioria (n=41) encontra-se na faixa "no freqentou escola - concluiu o ginsio ". Desses avs, mais ou menos umtero pertence ao grupo dos comerciantes e pequenos empresrios (n=18) e o segundo grupo mais numeroso formado pelos artesos empregados - marceneiros, tapeceiros, etc. (n=11). Conclui-se, nessa anlise, que o

    investimento em tempo e energia nos estudos tanto maior quanto mais ascendente a mobilidade social da famlia.14Esse colgio foi criado em meados da dcada de oitenta como extenso de um outro colgio j tradicional nobairro, pertencente mesma congregao catlica. Tratou-se, desde o incio, de um colgio misto. Hoje, no entanto,dois teros dos alunos so meninas. Em termos dos destinos escolares, importa notar que a maioria dos alunos(meninos e meninas) dirigem-se majoritariamente para as carreiras de Engenharia da USP e da Unicamp. Apesar defugir dos limites desse trabalho e, por isso, no poder ser aprofundado, um eixo analtico importante aqui dado

    pelo pertencimento tnico, j que esse colgio recebe uma proporo razovel de alunos da primeira e segundagerao de imigrantes vindos da China, Coria e Taiwan. Isso parece contribuir para se compreender a popularidadedas carreiras da rea de exatas (menos exigentes em termos do domnio da lngua portuguesa, mas que valorizammuito a habilidade em matemtica) tambm entre as meninas.

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    Especialmente ilustrativo dessa situao a impregnao da idia de modernidade

    experincia pedaggica a que so submetidos os alunos do Colgio So Toms.

    A origem desse colgio, em meados da dcada de cinqenta, est vinculada prestao de

    servios educacionais a um conjunto de famlias que, embora ocupando posies relativamente

    dominantes, encarregam-se, nesse perodo, de construir para si prprias um espao de afirmao

    em relao a certos grupos dominantes j tradicionais, definindo-se por uma srie de

    caractersticas que acabam por dar sentido a uma oposio entre grupos modernos e

    tradicionais constituda em termos de diferenas de estilo de vida.

    A traduo escolar dessas lutas e estratgias resulta numa operao pedaggica da idia

    de modernidade que perpassa diferentes dimenses da experincia colegial: a maneira de

    gerenciar a vida dos alunos em que apaga-se com cuidado os indcios visveis de controle; a

    maneira de apresentar o trabalho escolar como produo cultural e como fruio da cultura

    letrada e jamais como tarefa; a maneira de vivenciar a religio sem o peso moral associado s

    formas mais tradicionais de catolicismo, entre outros. Como resultado, tem-se um trabalho

    pedaggico orientado para a valorizao das disposies criadoras que balizam a ocupao de

    posies de controle e autonomia no espao de produo, particularmente aquelas que so

    percebidas como inovadoras15.

    Simetricamente, esse ponto ilustrado pela utilizao da idia de esforo como

    estruturadora da experincia escolar imposta aos alunos do Colgio Santo Estvo. Ali, todas asdimenses do trabalho pedaggico so colocadas a servio da inculcao de uma disposio dcil

    em relao aos critrios de excelncia em vigor no espao social no qual esses jovens sero os

    primeiros da sua linhagem a entrar. A docilidade, a conteno e a memorizao so elementos

    centrais da definio de tradicionalismo no discurso pedaggico brasileiro.

    Os efeitos dessa situao sobre a produo das diferenas sociais so necessariamente

    diferentes daqueles encontrados nas formaes sociais cujos sistemas de ensino alcanaram uma

    maior autonomia. Em particular, tem-se, no Brasil, uma situao em que as famlias mais

    privilegiadas contam com a contribuio direta da escola para implementar suas ambies de

    15No incio dos anos 80, um artigo publicado na imprensa nacional mencionava, no sem humor, a presena doColgio So Toms na lista dos livros mais lidos, dos discos mais escutados do pas e em vrias salas do Palcio dosBandeirantes (sede do Governo do Estado de So Paulo). Tratava-se de uma aluso ao destaque obtido por vriosex-alunos na literatura, na msica e na poltica, que passava por momentos de transformao em funo do processo

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    insero social. Como resultado, essas famlias conseguem reservar para seus filhos, com um

    grau bastante alto de sucesso, mesmo aquelas posies que dependem mais estreitamente de uma

    competncia tcnica passvel de ser adquirida em ambiente escolar, como o caso das chamadas

    profisses liberais (Dezalay e Garth, 1996).

    Mas a escola privada no faz apenas a mediao entre as posies dos pais e dos filhos.

    Nesse processo, elas promovem tambm uma mediao entre o passado e o presente, operando

    como instncias transportadoras de uma tradio, e nisso que reside grande parte da sua fora

    legitimadora.

    Uma relao com a tradio cultural ocidental

    Um dos traos da escolarizao considerada de alto nvel que podem surpreender os

    espritos mais desavisados ou mais seduzidos pelos discursos que apregoam o fim damodernidade a importncia atribuda ao contato com a tradio cultural ocidental (os

    clssicos) no ensino ministrado pelos colgios paulistanos.

    Imposto pelos vestibulares das universidades como o conhecimento necessrio para a

    ocupao das posies dominantes, o contato com a tradio cultural do ocidente opera uma

    primeira diviso entre os grupos sociais chamados a se submeter a uma longa escolarizao e as

    camadas menos privilegiadas.

    Essas ltimas no tm como desenvolver as habilidades que o sistema de ensino define

    como superiores, j que esto relegadas a um segmento caracterizado primordialmente pela

    desestruturao. Desistindo da escola aps inmeros fracassos diante das avaliaes dos

    professores, pouco lhes resta alm de desenvolver uma certa dose de respeito pelas exigncias

    culturais responsveis por sua excluso das salas de aula.

    A distino entre os diferentes colgios privados paulistanos encarregados de promover a

    boa educao e, por conseqncia, entre os diferentes grupos dirigentes que eles esto

    encarregados de formar no reside no fato de que uns e no outros estejam em contato com essa

    tradio. A construo de pontos de vistas diferentes se d sobretudo pela maneira como

    proposta a relao com a tradio cultural em cada ambiente. Nos casos mencionados, ela variou

    de democratizao poltica do pas. Os ex-alunos de pocas mais recentes comeam a aparecer, hoje, na direo denovas gravadoras e agncias de publicidade, entre outros.

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    entre uma primeira proposta que colocava os alunos como produtores a partirda tradio e uma

    segunda que os ensinava a sesubmetera essa tradio e a aceitar os seus critrios de validao.

    Essas propostas podem exercer um papel diferenciador porque coincidem com as

    propriedades sociais das famlias dos seus alunos. Associadas a grupos sociais especficos, a

    relao com a tradio traduz, num idioma propriamente escolar, as diferenas que separam esses

    grupos. Elas contribuem, assim, para a interiorizao de disposies que definem, para cada

    grupo social, o espao do possvel em termos de estilos de vida e maneira de se ver no mundo.

    Observaes finais

    A transformao de determinados segmentos do sistema de ensino em enclaves uma das

    maneiras pelas quais as famlias dos grupos dirigentes procuram tradicionalmente garantir algum

    controle sobre a formao dos seus filhos. A escolarizao nesses espaos reservados assegura

    uma limitao do espao das experincias possveis aos alunos ali matriculados. Como mostrou

    Ringer (1969, 1979, 1985), trata-se de uma evidncia histrica encontrada em praticamente todas

    as sociedades providas de um sistema de ensino unificado.

    Essa situao pode ocorrer tanto pela utilizao do setor pblico quanto do setor privado

    do sistema de ensino. Se, no Brasil, o setor privado o alvo privilegiado dessas estratgias no

    que concerne ao ensino secundrio, os cursos mais seletivos das universidades pblicas hoje so

    exemplos de espaos pblicos onde o mesmo fenmeno pode ser observado.Os resultados obtidos a partir dos estudos da escola privada paulistana mostram os efeitos

    especficos do monoplio do setor privado na formao dos dirigentes sobre a produo de

    diferenas sociais. Isto pede por mais pesquisas que abordem comparativamente os sistemas de

    ensino onde a formao dos dirigentes se d majoritariamente num e noutro setor. De qualquer

    forma, razovel supor que a escola privada desempenhe com mais eficincia o papel de

    inculcao de disposies ligadas a grupos especficos do que a escola pblica, pelo menos na

    forma como essa ltima tem sido pensada nas sociedades contemporneas.

    Num outro sentido, possvel supor que o avano da escolarizao no pas acabe por

    configurar um sistema em que tipos diferentes de sucesso escolar acabem por diluir a fora

    social do diploma como definidor de honra e prestgio social. No entanto, talvez esse seja um

    horizonte ainda difcil de ser vislumbrado. A observao das modificaes sofridas mais

    recentemente pelo sistema de ensino brasileiro mostram que esse, ao contrrio, tem se armado de

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    maneira bastante eficiente para resistir ao avano das massas, mesmo que ao preo de

    transformar radicalmente sua configurao.

    A reforma universitria em curso no pas, por exemplo, ocorre numa conjuntura em que

    os o gasto pblico com o ensino superior sofre o ataque de inmeros especialistas em finanas

    pblicas. Ao mesmo tempo, o Estado aumenta os controles sobre a educao superior privada

    (outorgando selos de competncia socialmente legtimos). A conjuno desses dois processos

    cria um cenrio em que a migrao da formao dos grupos dirigentes para o setor privado da

    rede de ensino superior torna-se bastante provvel, principalmente se as universidades pblicas

    continuarem a ver seus recursos diminudos e vierem conseqentemente a perder seu status como

    instituies de excelncia.

    Anlises como a praticada aqui indicam que o cerne da contribuio escolar produo

    das diferenas encontra-se na articulao de funes exercidas pelos diferentes segmentos do

    sistemas de ensino. Perceber isto condio bsica para a formulao de propostas de poltica

    educacional que visem diretamente o cerne do problema da igualdade de oportunidades escolares

    no pas, por oposio a alteraes que nada mais fazem do que resguardar os privilgios de

    alguns por meio da mudana do lugar em que tais privilgios so construdos e exercidos.

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