80
Linguiça de Sapateiro Um dialeto que marcou a história de Passos Thatianna e Oliveira

Linguiça de Sapateiro

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Um dialeto que mudou a história de Passos

Citation preview

Page 1: Linguiça de Sapateiro

Linguiça de Sapateiro

Um dialeto que marcou ahistória de Passos

Thatianna e Oliveira

Page 2: Linguiça de Sapateiro
Page 3: Linguiça de Sapateiro

OLIVEIRA, Thatianna e. Linguiça de Sapateiro: um diale-to que marcou a história de Passos. São Paulo, 2014.

Livro Digital.

Produto apresentado ao curso de Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo, da Universidade Estadual Pau-lista Júlio de Mesquita Filho, como exigência parcial para

obtenção de título de Bacharel em Comunicação Social, sob orientação do Prof. Dr. Jean Cristtus Portela.

Revisão e Diagramação: Beatriz Spinelli dos SantosIlustração e Capa: Thatianna e Oliveira e Beatriz Spinelli

dos Santos

1. Língua de Sapateiro 2. Sociolinguística 3. Livro Reportagem

contato: [email protected]

Page 4: Linguiça de Sapateiro
Page 5: Linguiça de Sapateiro

À Passos e às boas lembranças que a cidade me traz

Page 6: Linguiça de Sapateiro
Page 7: Linguiça de Sapateiro

Linguiça de Sapateiro 7

agradecimentosÀ minha mãe, pela dedicação e companheirismo nos bons

e maus momentos. Ao meu pai, de quem tiro coragem e deter-minação. Ao meu padrinho, minha referência de bom comporta-mento e inteligência.

Ao meu orientador, pela paciência e compreensão a cada etapa deste trabalho. Suas orientações e comentários, sempre muito construtivos, foram essenciais para este trabalho.

Aos meus tios e principais incentivadores, tio João e tia Vera. Sem eles, nada disso teria sido possível. Aos meus primos, Junior, Régis e Marcela. Ao Antônio Grillo, historiador de Passos e principal fonte das informações desta obra.

À minha amiga-irmã, Beatriz Spinelli, pela ajuda, pelos abraços e conversas não apenas ao longo da produção desta obra, mas a cada momento compartilhado. À Marília Gonçalves, por todos os ensinamentos neste último ano.

Aos meus entrevistados: João Borges, Sebastião Borges, Luciana Pasta, Tomás Marson e Carina Oliveira.

À hospitalidade e amizade de Isis, Mariana e Rafaela que abriram suas portas durante minhas visitas à cidade de Bauru. Ao João Jacetti, pelas horas que passou ao meu lado no início do projeto e por todas as sugestões ao longo da confecção do mes-mo.

E a todos que me desejaram sucesso e me direcionaram boas energias e palavras.

Esta obra também é de vocês.

Page 8: Linguiça de Sapateiro
Page 9: Linguiça de Sapateiro

Índice

Dedicatória 05Agradecimentos 07Introdução 11Capítulo 1: O primeiro contato 13Capítulo 2: O que será? 23Capítulo 3: Língua que não é língua 36Capítulo 4: O Declínio 45Capítulo 5: Virou Rui-barbês 56Dicionário 63Sobre a autora 78

Page 10: Linguiça de Sapateiro
Page 11: Linguiça de Sapateiro

Linguiça de Sapateiro 11

IntroduçãoA presente obra representa o final de uma etapa: a conclu-

são do curso de Jornalismo pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Assim como todas as escolhas que faço, este livro não podia ser afastado de um propósito. A concretiza-ção destas páginas tem como objetivo deixar um registro cultural para uma cidade que sempre me proporcionou bons momentos, amizades e ensinamentos.

Passos contribuiu com alguns traços de minha formação: por ser o local onde passei meses de minha infância e adoles-cência; por mudar minha forma de enxergar a vida conturbada da cidade de São Paulo; e por ajudar a rever muitos conceitos, principalmente, os ligados ao que é um bom pão de queijo.

Para mim, é uma honra poder fazer parte da história de Passos, nem que seja como observadora. A língua de sapateiro, que me trouxe boas risadas quando mais nova, hoje traz meu diploma. Sou paulistana, mas em partes formada à mineira. Na vida e na faculdade.

Page 12: Linguiça de Sapateiro
Page 13: Linguiça de Sapateiro

Capítulo 1O primeiro contato

Page 14: Linguiça de Sapateiro

Thatianna e Oliveira14

1

Não me lembro da primeira vez em que visitei Passos e nem acho que isso seja importante, mas o gosto do queijo e da goia-bada já me traz prazer e saudade há algum tempo. Do dia em que conheci o que viria a ser assunto principal deste livro, po-rém, lembro-me perfeitamente.

Tinha 15 anos de idade, oito anos atrás para ser mais pre-cisa, estava sentada à mesa da sala de jantar quando meu tio e um dos meus primos começaram a trocar frases que não faziam sentido para mim. Era português com toda certeza, mas as pa-lavras estavam dispostas de forma aleatória, o discurso não pa-recia seguir a menor lógica.

O diálogo me chamou atenção e, alguns minutos depois, percebi também que algumas palavras, por mais que perten-cessem à língua portuguesa, recebiam terminações exóticas. “Cebola tenente carabina fernete de montanha”, disse meu tio a meu primo. Ambos chamados João, um pai e outro Junior. “Eu-rico navio. Cebola herói fernete de montanha”, retrucou Junior gargalhando.

Perguntei o que eles falavam. Eles riram. A paulistana es-tava por fora da língua de sapateiro. “Helena herói Chateau-

Page 15: Linguiça de Sapateiro

Linguiça de Sapateiro 15

briand de montanha, cebola navio achambelo?”, perguntou meu tio para mim. E eu achava que falar alemão era diferente. Minha resposta não passou de um “Hãn?”. Ele riu novamente da minha ignorância.

2

A cidade de Passos está situada na região sudoeste do es-tado de Minas Gerais com pouco mais de 111 mil habitantes, segundo dados divulgados em 2013 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)¹. Foi lá que meus avós paternos fizeram sua vida e criaram seus cinco filhos. Foi lá também onde passei muitas semanas de minhas férias escolares. A vida era bem diferente daquela que eu vivia em São Paulo.

Eu e meu primo mais novo brincávamos no espaço que sobrava na garagem entre o portão e o carro estacionado. Não era grande, devia ter em torno de uns quatro metros quadrados, mas muitas das minhas lembranças da casa são dali. Era lá que meu avô ouvia as modas de viola em um rádio antigo, cujo for-mato assemelhava-se ao de uma maleta de advogado: possuía uma alça e uma forma retangular e grande.

Era ali também que o seu Marçal alimentava e brigava com as pombas. Todos os dias, no mesmo horário, meu avô buscava um punhado de arroz e jogava na calçada para as aves comerem - quando os netos estavam lá, elas recebiam mais de um punha-do. Ele adorava ver como elas chegavam e iam embora, muitas delas até aproximavam-se um pouco antes apenas para aguar-

Page 16: Linguiça de Sapateiro

Thatianna e Oliveira16

dar a refeição.

Algumas, no entanto, mais gulosas e folgadas sempre per-maneciam além do horário combinado. Às vezes, até ousavam passar pelas grades do portão e entrar na garagem. Com essas, ele se irritava. Depois de um tempo gritando onomatopéias, le-vantava-se da cadeira de plástico alaranjado e, com as costas curvadas e mãos abanando, fazia gestos para que elas voassem para longe.

Contando assim pode parecer tudo muito simples, mas é exatamente a simplicidade da vida daquele lugar que sempre me cativou. Outro fato interessante o formato estranho da casa onde moravam meus avós. Ela possuía uma fachada larga e pouco funda, não era como costuma ser a maioria dos lares. Os cômo-dos eram posicionados um ao lado do outro, como livros em uma estante. Se vista de fora, a casa parecia grande, mas, por dentro, não se estendia muito.

Seu Marçal tinha muito orgulho de dizer que o projeto da construção era dele, ele desenhou tudo sozinho mesmo não ten-do nenhuma formação em arquitetura ou engenharia. Eu acha-va aquela conversa bacana, mas o que eu achava ainda melhor era o fato de que a casa ocupava uma esquina e ficava bem de frente para a padaria onde comprávamos os pães de queijo re-cém-saídos do forno e o leite vendido em sacos plásticos.

Montávamos a mesa do café da tarde, quase tão sagrado quanto as imagens de santos espalhadas pela casa e o quadro da Santa Ceia posicionado bem atrás da grande e antiga mesa de jantar. Objetos decorativos que não poderiam faltar em uma casa liderada por uma mulher que rezava o terço todas as noites antes de ir para a cama. Foi durante um desses cafés da tarde

Page 17: Linguiça de Sapateiro

Linguiça de Sapateiro 17

que eu ouvi a conversa entre os “Joões”, João-tio e joão-primo, de que falei há pouco.

“Cebola tenente carabina fernete de montanha”, disse meu tio. “Eurico navio. Cebola herói fernete de montanha”, retorquiu meu primo, dirigindo-se a mim: “Helena herói Chateaubriand de montanha, cebola navio achambelo?”. Esse diálogo em por-tuguês equivale ao seguinte: “Você tem uma cara feia demais” e “Eu não. Você é feio demais”, e a pergunta direcionada a mim era “Ele é muito chato, você não acha?” Eu demorei um mês para começar a entender o que significavam aquelas palavras jogadas ao acaso.

3

A mesa do café era grande, tinha espaço para dez pessoas. Isso porque, como toda boa família mineira, o povo sempre gos-tou mesmo de se reunir para comer e contar história. Não é à toa que, de tanto papear, os passenses tenham criado um novo dialeto.

A data exata do surgimento da língua de sapateiro é incer-ta, mas se sabe que foi entre as décadas de 40 e 50. O momento social e político desse tempo favoreceu a criação e garantiu a dis-seminação da língua. Mais à frente vou me dedicar a esse tema. Por enquanto, digo que durante algumas décadas a língua de sapateiro tornou-se marcante na cultura da cidade e considero importante contar um pouco mais sobre a história do município.

A cidade não foi chamada de Passos desde sua formação.

Page 18: Linguiça de Sapateiro

Thatianna e Oliveira18

Em 1780 o local era formado apenas por fazendas de subsistên-cia que não possuíam nenhum sistema administrativo comum. Ninfas, Cruzeiro e Bonsucesso foram os nomes dados às primei-ras ocupações de terra da região.

Até 1820, Passos era apenas um arraial, ou seja, uma pe-quena povoação pertencente aos “Sertões do Jacuhy”², pedaci-nho de chão subtraído da capitania de São Paulo no século 18 que se estendia desde uma longa faixa à direita do Rio Grande até além da Serra da Canastra.

Vale comentar que a Serra da Canastra é o charme dos

Foto: Mapa da região Sudoeste de Minas com foco nos Sertões do Jacuhy.

Page 19: Linguiça de Sapateiro

Linguiça de Sapateiro 19

pães de queijo da região. Lá é produzido um dos melhores e mais famosos queijos mineiros, que leva o nome da serra. Salgado o danado, com um gosto forte e textura seca. Não dá para comer puro sem tomar nada gostoso para acompanhar.

O nome da cidade veio de um antigo curador, pessoa indi-cada para cuidar das terras doadas para a igreja. Coube a Do-mingos Barbosa Passos a construção da nova capela que pudes-se comportar um padre residente. Quando a obra foi aprovada pelo bispo de São Paulo, Domingos Barbosa Passos passou a ser conhecido como Senhor dos Passos.

Três anos depois que a Capela Curada ficou pronta, o pa-dre Francisco de Paula Trindade solicitou a criação de uma pa-róquia devido ao crescimento da população do arraial. Em 1840, foi aprovado o levante da Paróquia do Senhor Bom Jesus dos Passos, em homenagem ao antigo curador da região.

Já nessa época a atividade econômica do arraial mostrava sinais de desenvolvimento. As produções de açúcar, melado, ra-padura, cachaça e a engorda de gado começavam a ganhar pro-porções maiores e vinham substituir as práticas de subsistência.

Uma nova corrente migratória motivada pela “Revolução de 1842”, que lutou pela criação de uma província independente nas populações de São João del Rei e de Lavras do Funil, veio a contribuir ainda mais para o crescimento da comunidade pas-sense. Muitas famílias se instalaram nas margens do Rio Gran-de, atraídas pela alta fertilidade do solo, e seriam essas as prin-cipais atuantes no processo de elevação do arraial ao status de vila.³

Em 1848, depois de aprovada pela Câmara da Vila de Ja-cuhy (ou Jacuí, ou Jacuhi), inicia-se um novo tempo para a então

Page 20: Linguiça de Sapateiro

Thatianna e Oliveira20

Vila Formosa do Senhor Bom Jesus dos Passos, marcado pela inauguração de uma Câmara Municipal. No dia 13 de setembro, a Comissão de Redação da Assembleia Provincial de Minas Ge-rais emitiu o Projeto de número 99 que elevou o arraial ao status de vila. O documento possui mais cinco artigos e foi assinado por José Augusto Ferreira da Silva.4

Dez anos depois de receber o título de vila, em 14 de maio de 1858, Passos é elevada a município e tem início sua fase republicana. José Joaquim da Silva escreve o “Tratado de geo-graphia descriptiva especial da Província de Minas-Geraes” em 1878 e contabiliza 700 casas habitadas, 33 ruas não calçadas, 21 mil moradores e 44 eleitores na Cidade de Passos. São tam-bém enumerados 6 largos, dentre eles o da Matriz e o do Rosário, onde ficava a Cadeia Municipal, 4 igrejas, sendo elas a do Rosá-rio, Santo Antônio, São Miguel e a da Penha e 1 hospital fundado pelo fazendeiro Jeronymo Pereira de Mello e Souza.

José Joaquim da Silva descreve a cidade como pacífica, mo-rigerada, religiosa, hospitaleira e dedicada às letras. “A música alli apreciada e uma boa orchestra bem importante presta-se para as necessidades do lugar. Ha na cidade um teatro bem de-corado. Além das aulas publicas de primeiras lettras para ambos os sexos, ha alli aula publica de latim e francês.” 5

O comércio da cidade é mencionado como “animado e im-portante”. Passos exportava mais de 30 mil cabeças de gado por ano, mais de 8 mil “porcos gordos”, mais de 2 mil carneiros e mais de 8 mil “varas de pano” de algodão. 6

Com a proclamação da república em 1889, a Câmara Mu-nicipal foi dissolvida para a entrada de uma Intendência a fim de facilitar a adaptação do município às novas condições republica-

Page 21: Linguiça de Sapateiro

Linguiça de Sapateiro 21

nas. Três anos mais tarde, a Câmara volta a ser ativada por meio de sua primeira eleição. Dr. Francisco da Silveira Gusmão, até então presidente da Intendência é eleito, mas renuncia ao cargo e quem assume é Francisco Gomes de Souza Lemos.7

O cenário político da cidade, por mais que com algumas pe-quenas turbulências ao longo da história, só voltaria a ser aba-lado drasticamente a partir da instalação da ditadura militar. Por sinal, ela tem muita relação com o surgimento da língua de sapateiro.

NOTAS

¹ IBGE.Passos/Minas Gerais: histórico. Disponível em <http://biblioteca.ibge.gov.

br/visualizacao/dtbs/minasgerais/passos.pdf> 27.05.2013

² GRILO, Antonio. Câmara de Passos: 150 anos. Edição Comemorativa do Sesqui-

centenário,1998, p.14-19.

³ Id., Ib., p.14-19

4 Id., Ib., p.14-19

5 SILVA, José Joaquim da. Tratado de Geographia descritiva Especial da Provín-

cia de Minas Gerais. Juiz de Fora: Typ. Do Pharol, 1878.

6 Id., Ib.

7 GRILO, Antonio. Câmara de Passos: 150 anos. Edição Comemorativa do Sesqui-

centenário,1998, p.113-116.

Page 22: Linguiça de Sapateiro
Page 23: Linguiça de Sapateiro

Capítulo 2O que será?

“O que será, que será?Que andam suspirando pelas alcovas

Que andam sussurrando em versos e trovasQue andam combinando no breu das tocas

Que anda nas cabeças anda nas bocasQue andam acendendo velas nos becos

Que estão falando alto pelos botecos”

(O que será, Chico Buarque de Holanda)

Page 24: Linguiça de Sapateiro

Thatianna e Oliveira24

1

Como dissemos no capítulo anterior, o momento histórico em que a cidade se encontrava no surgimento da língua de sapa-teiro foi muito importante para a dimensão que ela ganhou. Por mais que não existam registros e documentações escritas que digam com precisão quando foi inventado ou quem foi seu ideali-zador do dialeto, o que reafirma sua tradição oral, entrevistados são unânimes em dizer que a língua surgiu dentro das sapata-rias que ficavam localizadas no centro da cidade e apontam as décadas de 40 e 50 como cenário de sua aparição.

“Quando eu comecei a trabalhar nos anos 50, eles já fala-vam essa língua, só que não há muito tempo. Eu imagino que ela tenha começado por aí, na década de 40. Naquela época, as sapatarias eram importantes para a cidade. Não existiam lojas de sapatos. Todo mundo frequentava as sapatarias”, afirma Se-bastião Wenceslau Borges, proprietário da tradicional sapataria Nossa Senhora da Penha. Sebastião já está aposentado, mas o local ainda funciona e é administrado por seu irmão João Bor-ges.

Antônio Grilo, principal historiador de Passos, confirma a data. Aos 13 anos de idade, ele trabalhou na sapataria de seu

Page 25: Linguiça de Sapateiro

Linguiça de Sapateiro 25

Fotos: Sapataria Nossa Senhora da Penha.

Page 26: Linguiça de Sapateiro

Thatianna e Oliveira26

tio Jacó. Naquela época era comum ver garotos dessa idade co-meçarem a aprender algum ofício. “Eu fiquei na sapataria do Tio Jacó uns 3 meses quando era molecote, na década de 50, e os funcionários falavam a língua fluentemente entre eles. Eu acre-dito que a língua seja herança da década de 40.”

2

Para compreender como surgiu a língua de sapateiro, é ne-cessário dizer de forma mais detalhada o que ela é. O contato com a língua no capítulo anterior, por meio da conversa entre meu primo e meu tio, deve ter gerado algum estranhamento no leitor, assim como o título desta obra. Espero que tudo fique um pouco mais claro daqui para frente.

“Linguiça” significa língua na língua de sapateiro e dai vem o nome do livro. Esse falar criado pelos sapateiros de Passos é um desdobramento do português. Seus falantes criam novas palavras e atribuem novos significados e classes gramaticais a expressões já existentes na língua portuguesa. Assim, “alicate” não serve mais para cortar, mas significa “ali”, “comércio” vira o verbo “comer” e “vampiro” é colocado no lugar do presente do indicativo do verbo “ir” conjugado na terceira pessoa, “vai”.

Flexões verbais de gênero e número desaparecem e nomes próprios viram pronomes: “Elena” serve para dizer “ele”, “eles”, “ela” ou “elas”. Ou seja, se alguém quiser falar “Ele vai comer ali” em língua de sapateiro, ficará “Elena vampiro comércio alicate”. A criatividade e o raciocínio rápido são essenciais para associar

Page 27: Linguiça de Sapateiro

Linguiça de Sapateiro 27

o som do começo das palavras e relacioná-los com o já conhecido vocabulário do português.

O mais difícil para quem deseja entrar na brincadeira é que cada falante vai criando seu próprio vocabulário. O outro enten-de por associação com a sonoridade do português e contexto. Conforme a conversa vai se desenrolando em um grupo algumas palavras viram regra, mas isso muda de roda para roda de falan-tes. Tem que estar mesmo em contato constante com o dialeto para não ficar ultrapassado.

A língua de sapateiro, por ser dependente do português, não pode ser considerada uma língua. Sem a base oferecida por nosso idioma, ela não existiria, portanto, ela não se desenvolveu ao ponto de se emancipar.

Para quem ouve a língua hoje, ela pode parecer engraçada. No entanto, ela facilitou a vida de muitos homens passenses nos anos 40 e 50 e exerceu uma importante função na comunicação censurada da fase ditatorial das décadas seguintes. Não foi ale-atória a escolha da música de Chico Buarque de Holanda para abertura deste capítulo.

3

Décadas de 40 e 50, quando as mulheres ainda usavam vestidos longos e as meias-calças cobriam suas canelas, enxer-gar qualquer pedacinho de pele ou avistar o contorno de suas pernas por debaixo dos panos rodados já causava euforia nos homens. Os elogios dirigidos às moças também deviam ser de-

Page 28: Linguiça de Sapateiro

Thatianna e Oliveira28

licados, nada de cantadas agressivas ou vulgares. As mulheres não podiam perceber comentários sobre suas curvas e, portanto, a discrição na hora de falar sobre moças que passavam na frente das sapatarias era fundamental.

“Andorinha, moçoró bonifácio” alertava o sapateiro mais perto da porta de entrada. Os outros já sabiam, tinham que ficar atentos porque uma mulher bonita estava passando. “Andori-nha” não possui significado na língua de sapateiro, era a pala-vra usada como interjeição para chamar atenção dos ouvintes. Já “moçoró” é usado para dizer moça e “bonifácio” para dizer bonita.

Em tempos de pernas cobertas e elogios cuidadosos, a lín-gua de sapateiro servia como uma ferramenta eufemizadora. O historiador Antônio Grilo descreve o falar como “a língua da dis-simulação”. Por meio dela, era mascarado aquilo que se queria falar mas não podia. “Não era nenhuma sacanagem”, comenta Grilo, “era apenas um entusiasmo masculino”.

Apesar de serem assunto recorrente, as mulheres não ti-nham contato direto com a língua. Era outra época. Garotos de pouco mais de 10 anos já eram aprendizes enquanto meninas eram criadas para se tornarem donas de casa. Assim, a língua de sapateiro ficou restrita à boca dos homens por muitos anos. Além de não estarem presentes nos ambientes de trabalho, as mulheres também não frequentavam os bares onde os falantes se reuniam à noite. O maior reduto desses bares era o Bairro das Candeias, mais precisamente a Rua Onze de Dezembro.

Até hoje alguns bares daquela época ainda podem ser en-contrados na região. É o caso do Vadico Bar. Desde sua origem ele já mudou de dono e de nome, mas permanece no mesmo lo-

Page 29: Linguiça de Sapateiro

Linguiça de Sapateiro 29

Foto acima: Placa da Rua Onze de Dezembro. Foto abaixo: Bar Vadico.

Page 30: Linguiça de Sapateiro

Thatianna e Oliveira30

cal.

No bairro, também ficavam algumas sapatarias e morava a maioria dos prestadores de serviços da cidade. Sapateiros, mar-ceneiros, alfaiates e ourives compartilhavam costumes, interes-ses e até uma forma de falar própria. Foi ali que a brincadeira, antes limitada às sapatarias, se popularizou, cresceu e se tor-nou um dialeto.

4

Formado em 1825, o Bairro das Candeias sempre foi mui-to querido por seus moradores. Até hoje, quem percorre suas ruas pode perceber um sentimento de pertencimento por parte de quem vive lá. E esse “patriotismo” é tão grande que alguns chegam a cogitar uma revolução.

“E veio a ideia de ficarmos independentes de Passos e fun-darmos ali a República Democrática das Candeias. Chegamos a esta conclusão depois de analisar sob todos os aspectos: eco-nômicos, socioculturais, estruturais e a beleza física do bairro. Seria uma luta pacífica, pois o exercito de revolucionários ainda não está formado. Tomaríamos o poder através de um plebisci-to”, brinca João Pagliuso, nascido no bairro. “A região teria até idioma oficial.”

A ideia de transformar o bairro em uma república nada mais é do que uma fantasia, mas a verdade é que o cenário político que se desenrolou nos anos seguintes teve forte influência sobre a relevância que a língua de sapateiro veio a ganhar. Quando a

Page 31: Linguiça de Sapateiro

Linguiça de Sapateiro 31

ditadura militar tomou o governo nacional na década de 60, o dialeto, que antes era apenas usado para disfarçar comentários sobre mulheres, começou a mascarar opiniões contra os oficiais que vigiavam a cidade.

Em época de liberdade de expressão reprimida, frases como “Omega tenente rabanete presunto por dinamite” (Homem tem rabo preso por dinheiro) ou “Andorinha, se omega sabonete, mortadela cebola” (Cuidado, se o homem sabe, ele te mata) eram exemplos do que surgiam dentro das sapatarias.

A área da educação foi a mais afetada pelo regime autori-tário. Muitos professores foram presos por serem taxados de co-munista, entre eles o professor Armando Righeto - grande ícone da cidade contra a ditadura militar, transferido para a capital Belo Horizonte. Contrários às prisões dos mestres, os alunos que faziam parte da União dos Estudantes Passenses (UEP) se reuniam em locais públicos, como a Praça da Matriz e a Praça do Rosário, e privados, como Clube de Passos e o Clube Passense de Natação, para organizar movimentos de libertação.

A língua usada nesses encontros era a língua de sapateiro. “Usávamos essa língua para que as pessoas infiltradas não en-tendessem. Os militares, muitas vezes, se passavam como sócios dos clubes para averiguar o que estava sendo conversado lá den-tro e se estavam sendo discutidas ideias comunistas”, relata o empresário Clécio Freitas que fez parte da UEP de 1964 a 1967. “A União dava apoio aos professores e, por isso, logo depois foi extinta por ser considerada comunista”.

Page 32: Linguiça de Sapateiro

Thatianna e Oliveira32

5

A ditadura não representou apenas repressão para Passos. Quando a cidade completou 100 anos de emancipação com pou-co mais de 40 mil habitantes, o escultor José Barbosa Andrade e Silva, ou Zé da Beca, inspirou-se na bandeira da Paraíba para criar uma bandeira para o município mineiro. Nela, ele inscre-veu os dizeres nacionalistas “Por Passos, por Minas, pelo Brasil”.

Na mesma época também foi escrito o hino da cidade a quatro mãos. Francisco Soares de Melo, professor de português, linguística, latim e literatura e José Marciano Negrinho, músico, violonista e flautista foram os compositores da obra:

“Salve, Passos! A passos de gigante

Prossegues teu destino glorioso:

Se teu passado é heróico e grandioso,

Teu futuro é risonho e fulgurante!

Estendia entre vales e montanhas,

Aos fecundos abraços do Rio Grande,

Tua prole multíplice se expande

Como os raios do sol em que te banhas.

Salve, Passos! Cidade centenária,

Torrão acolhedor e hospitaleiro,

Que sintetizas na alma legendária

As virtudes do povo brasileiro!

Se Minas toda aclama o teu valor

Page 33: Linguiça de Sapateiro

Linguiça de Sapateiro 33

E ante labor algum jamais te prostras,

É que empenhas a Cruz do Redentor,

Cujos passos tu segues de mãos postas.

Na alma do teu povo varonil,

E em teus rebanhos, glebas e oficinas

Palpita a fibra épica de Minas

Espelha-se a grandeza do Brasil!

Glória Passos, a ti, terra excelente,

Que a todos generosa abre os braços

Passos tu caminhar eternamente

Sob as bençãos do Bom Senhor Jesus dos Passos”

Nos anos 60 também começaram “os anos dourados”: che-gou a primeira boate, a “Toca da Onça”, o primeiro cinema e a paquera ficou mais intensa com os “relas” da Praça da Matriz. Embalados pelas músicas tocadas pelos alto-falantes do Cine Roxy, os jovens rondavam a praça em busca de trocas de olhares e de um toque leve no braço de alguém do sexo oposto.

“ Homens de terno e gravata, cabelos penteados com Gumex e Glostora, as mulheres, a maioria de coque com muito laquê, saia plissada de tergal que não amarrotava e conjunto Banlon. E o saudoso rela! Mulheres circulando para um lado, sentido con-trário aos rapazes, facilitando os flertes. Aí era ter coragem de se aproximar, se apresentar embalado pelos sucessos musicais de Sérgio Endrigo, Pepinno di Capri, Rita Pavone, Carlos Gonza-ga”, descreve Sebastião Wenceslau Borges em seu conto “Passos do passado”, publicado na 1° Antologia lançada pela Associação

Page 34: Linguiça de Sapateiro

Thatianna e Oliveira34

dos Escritores de Passos e Região.

Se a menina encostasse no braço do menino enquanto pas-sava ao seu lado era sinal de que ela tinha se interessado. Se-não, elas passavam reto. Nesse cenário de mistério e suspense juvenil, os garotos também utilizavam a língua de sapateiro para conversar entre eles sobre alguma moça que tinham achado bo-nita, seguindo seus mestres sapateiros. A língua tinha vindo para ficar. Ela marcou as conversas dos anos dourados e a cultura passense.

Page 35: Linguiça de Sapateiro
Page 36: Linguiça de Sapateiro

Capítulo 3Língua que não é língua

“O que a gente chama de língua de sa-pateiro? É um jeito de falar, não tem vo-cabulário específico, não tem gramática, não tem regras, não tem um dicionário.

Então, aparentemente, não é uma língua. Por isso que eu falo que é mais um jeito de

falar.”

Antônio Grilo

Page 37: Linguiça de Sapateiro

Linguiça de Sapateiro 37

1

Depois conhecer um pouco sobre a língua de sapateiro e a cidade de Passos, agora é hora de entender melhor essa “língua que não é língua”.

A fala de Antônio Grilo, grande historiador da cidade de Passos, é bem significativa. Se analisada de forma linguística, a língua de sapateiro - por mais que seja chamada de língua - não pode ser definida como uma. Para ser considerado uma língua, um sistema deve possuir características que o tornem indepen-dente de outros sistemas linguísticos de forma que um não de-penda do outro para existir.

Uma língua precisa ter estruturas fônica, gramatical e lexi-cal definidas e distintas das demais. Se pegarmos como exemplo a língua portuguesa, sabemos que ela é derivada do latim, mas hoje ela é autossuficiente e possui uma estrutura bem delinea-da, registrada em dicionários e gramáticas. A língua de sapateiro não é independente da língua portuguesa.

Sem saber o português não é possível compreender, apren-der ou falar a língua de sapateiro. Isso porque sua gramática segue a maioria das regras gramaticais do português brasileiro. Portanto, como a língua de sapateiro seria uma língua dentro de

Page 38: Linguiça de Sapateiro

Thatianna e Oliveira38

outra língua ou “uma modificação regional de uma língua”, ela pode ser definida como um dialeto.¹

O dialeto não deve ser entendido como uma corrupção da língua, ele segue uma tendência natural de variação da mesma. Normalmente um dialeto está associado a uma região territorial delimitada por fronteiras geográficas. Quando um dialeto contém um conjunto de características linguísticas associadas e aplica-das por uma determinada classe ou categoria social específica, ele pode ser considerado um dialeto social ou socioleto.

2

Neste capítulo, toda vez que utilizar a palavra “língua” sozi-nha estarei me referindo ao conceito mais geral do termo adota-do por William Labov: “conjunto estruturado de normas sociais” de uma expressão linguística. Labov é considerado o grande per-cursor da Sociolinguística, ramo da linguística que relaciona lín-gua e sociedade, e seus estudos ajudarão a entender a língua de sapateiro de forma integrativa.

3

A partir de uma visão sociolinguística entendemos que a língua não serve apenas para transmitir informações, mas ela promove relacionamentos de forma a acompanhar de perto as

Page 39: Linguiça de Sapateiro

Linguiça de Sapateiro 39

transformações sociais e seus padrões comportamentais. Ela va-ria conforme o tempo e o espaço em que se encontram seus fa-lantes, variando de acordo com as necessidades sociais de uma realidade.

“A variação no comportamento linguístico em si mesma não exerce uma decisiva influência no desenvolvimento social nem afeta as oportunidades de vida do indivíduo. De modo oposto, a forma de comportamento linguístico muda rapidamente quando muda a posição social do falante” (Labov, 1968, p.111).2

Levando em conta essa afirmativa de William Labov é possí-vel compreender alguns aspectos estruturais do dialeto da cida-de de Passos - variações linguísticas e sua estrutura gramatical – partindo de sua classe profissional percursora: os sapateiros da década de 50.

4Variações Linguísticas

Em 1968, Joseph Bram em seu estudo “Linguagem e So-ciedade” escreve que as variações linguísticas ocorrem quando uma comunidade sente necessidade de modificar alguma for-ma de expressão.³ Comunidade pode ser entendida como “um grupo cujos membros tem pelo menos em comum uma varieda-de e compartilham acordos, regras ou normas para seu emprego correto”, segundo a definição do sociolinguista Karmele Amusa-tegi. 4

A variabilidade da língua é inevitável, uma vez que seu pro-

Page 40: Linguiça de Sapateiro

Thatianna e Oliveira40

pósito final é servir como meio de expressão da cultura da qual faz parte. No caso da língua de sapateiro, a comunidade eram os sapateiros de Passos da década de 50 e a necessidade inicial era disfarçar comentários sobre perfis femininos que passavam em frente aos seus estabelecimentos.

Por depender muito da criatividade de seu falante, a língua de sapateiro apresenta um grau de variação lexical bem maior do que a maioria dos dialetos. Isso porque diversas formas lin-guísticas podem ser usadas para se dizer a mesma coisa e po-dem ser inventadas no momento do discurso. O vocabulário do dialeto passense sofre alterações a cada fala.

Por exemplo, “Eurico tenente dinamarca” serviria para di-zer “Eu tenho dinheiro”. No entanto no momento da conversa eu poderia usar também “dinossauro” ou “dinamite” para me referir a dinheiro.

Com o decorrer do tempo, algumas palavras foram se defi-nindo e se repetindo conferindo à língua de sapateiro certa es-tabilidade, como é o caso de “eurico” ou “elena” (“eu” e “ele”). O ambiente que protagonizou seu surgimento e em que ela era utilizada contribui para a definição dessas palavras. O sociolin-guista inglês Peter Trudgill, em 1979, apresentou exemplos de que o mundo exterior tem influência profunda sobre a língua. Em países que neva regularmente, por exemplo, existe uma ofer-ta de palavras para descrever o fenômeno natural muito maior do que no português brasileiro.

Considerando tal raciocínio, a língua de sapateiro desen-volveu um grande leque de opções para substituir a palavra mu-lher, tais como “mucharca”, “minerva”, “morcega” ou “mobília”, uma vez que foi criada em ambiente masculino para se falar do

Page 41: Linguiça de Sapateiro

Linguiça de Sapateiro 41

sexo oposto. Em sua expansão na década militar, o vocabulário desenvolvido foi outro. “Marimbondo”, “sorvetão”, “cadeira”, “ca-dilac” e “homenagem” eram termos utilizados pelos falantes para fazerem referência aos militares.

Diferentemente da maioria dos dialetos, aproximando-se de línguas ficcionais, a criação da língua de sapateiro foi proposi-tal. Quem a criou, queria criar algo diferente para que ninguém entendesse. Por esse motivo, ao contrário das línguas que costu-mam evitar palavras que sejam relacionadas a temas que geram tabus - como elogios a mulheres na década de 50 ou opiniões políticas na época da ditadura militar – a língua de sapateiro servia exatamente para se falar sobre eles.

Por esse motivo, na língua de sapateiro ocorre um proces-so de relexicalização intencional das palavras do português. Há um esvaziamento semântico e uma ressignificação de vocábu-los. Como vimos no capítulo anterior, a palavra “alicate” passa a significar “ali”, “cebola” significa “você”, por exemplo. Ou seja, as palavras perdem seus significados originais e ganham novos.

5Estrutura Gramatical

A estrutura gramatical da língua de sapateiro é bem seme-lhante à utilizada por nós no português, para ser mais precisa, ao dialeto mineiro. Na frase “Cebola tenente carabina fernete de montanha” (“Você tem a cara feia demais”) percebemos que a estruturação do falar é igual à lógica utilizada pelos falantes do

Page 42: Linguiça de Sapateiro

Thatianna e Oliveira42

português. Há um pronome, seguido de um verbo e objeto direto. Seguindo uma tendência do dialeto mineiro, vemos a supressão do artigo “a” antes de cara. Em Passos eles diriam mesmo “Cê tem cara feia demais”, provavelmente acompanhado do “uai”.

Nas conjugações verbais, no entanto, a língua de sapatei-ro não segue as mesmas regras. Isso porque não há conjuga-ção verbal em verbos regulares no dialeto. O verbo “falar”, por exemplo, será sempre “falambelo” independente do pronome que o anteceder: “Eurico falambelo” (“Eu falo”), “Cebola falambelo” (“Você fala”), “O papagaio de Elena falambelo” (“O pai dela fala”).

Para os verbos irregulares, a conjugação verbal quando feita por sufixos continua inexistente. O que muda aqui é que, como a escolha de vocábulos na língua de sapateiro ocorre por relação fonética com a língua portuguesa, quando o verbo é irregular a palavra para designar a conjugação de outros sujeitos também muda. O verbo ir, por exemplo, quando está no infinitivo é “Ire-ne” ou “Irineu” e no presente do indicativo é “vareta”. “Eurico vareta” (“Eu vou”), “Elena vareta” (“Ele vai”), “Nosangulo vareta” (“Nós vamos”).

O mesmo pensamento serve para conjugação temporal. Passado e futuro são designados pelos advérbios e só são perce-bidos nos verbos se houver modificações fonéticas dos radicais dos verbos no português. Comer será sempre “comércio” inde-pendente de quando foi, é ou será realizada a ação. Eu como é “eurico comércio”, eu comi ontem “eurico comércio Antenor”, eu comerei fora “eurico comércio floresta”. Em caso de alterações do radical na língua portuguesa, o procedimento será o mesmo dos verbos irregulares em conjugações pronominais: Eu vou “eurico vareta”, eu irei “eurico Irene”.

Page 43: Linguiça de Sapateiro

Linguiça de Sapateiro 43

A concordância entre substantivo e adjetivo ocorre igual ao português de acordo com o gênero e número do sujeito ou objeto ao qual a característica se refere. Nas frases “Mucharca de ce-bola herói bonifácia de montanha” (Sua mulher é muito bonita) ou “Papagaio de elena tenente carretel bonifácio” (O pai dela tem um carro bonito) é possível observar que o adjetivo “bonifácio” varia de acordo com o gênero do sujeito.

NOTAS

1 COUTINHO, Ismael de Lima. Gramática Histórica. Rio de Janeiro: Livraria Acadê-

mica, 1970.

2 LABOV, William. The Reflection of Social Process in Language Structure. In:

FISHMAN, Joshua . Readings in the Sociology of Language. The Hague: Mouton, 1968.

³ BRAM, Joseph. Linguagem e Sociedade. Rio de Janeiro: Block, 1968.

4 AMUSATEGI, Karmele. Sociolinguistica. Madrid: Editorial Sintesis, 1990.

Page 44: Linguiça de Sapateiro
Page 45: Linguiça de Sapateiro

Capítulo 4O declínio

Page 46: Linguiça de Sapateiro

Thatianna e Oliveira46

1

As décadas de 40 a 60 favoreceram o crescimento da língua de sapateiro, conforme relatado no capítulo 2. Para disfarçar co-mentários sobre o sexo feminino ou manifestar a opinião política em época ditatorial, usar palavras que os outros não entendiam era uma ótima ferramenta de expressão. No entanto, quando o contexto mudou, a necessidade do uso de um discurso disfarça-do diminuiu. Os anos 80 não foram apenas problemáticos para os cenários político e econômico do Brasil, a língua de sapateiro também viria a perder força.

O entusiasmo dos “anos dourados” diminuiu, assim como o mistério das paqueras do rela. A ditadura militar estava mais branda tendo seu fim decretado em 1985 e as conversas políti-cas não precisavam mais ser escondidas. Em 1978, durante o governo de Ernesto Geisel, o Ato Institucional número 5 - consi-derado um marco da censura ditatorial por ter suspendido uma série de direitos democráticos – havia sido revogado.

As sapatarias perderam espaço para a produção em massa de calçados. Sebastião Borges, dono da sapataria Nossa Senho-ra da Penha, relembra os tempos em que começou a trabalhar e de como era difícil fazer uma mercadoria de qualidade.

Page 47: Linguiça de Sapateiro

Linguiça de Sapateiro 47

“Eu lembro do Dr. Carlos, médico da cidade, encomendar sapatos. Vinha aquele couro alemão, italiano, aquelas peças du-ras. Eu, rapaz, fazia sapato para ele. Tinha que preparar o couro para fazer os sapatos. Primeiro eu fervia a água para amolecer o couro e só depois conseguia colocá-lo na forma. Era um proces-so demorado”.

Com o tempo, a demanda das sapatarias foi sendo substi-tuída pelas fábricas. “Aos poucos as sapatarias foram acabando, Franca conquistou as lojas. Esse trabalho de confecção de sa-patos mesmo passou a não ser feito mais nas sapatarias porque ficava muito mais caro. As pessoas queriam opções, queriam comprar tudo pronto”, lamenta Borges. Até hoje ainda é possível encontrar uns poucos modelos bem simples de sapatos feitos a mão na sapataria de Sebastião.

Na década de 80, os produtos começaram a vir principal-mente da cidade de Franca e carregaram estampas de grandes marcas como Sândalo e Samello. Os pares eram vendidos com preços mais baixos do que os encomendados nas oficinas e, por não conseguirem manter um preço competitivo pela produção em pequena escala muitas sapatarias perderam sua importân-cia e fecharam.

Os jovens não buscavam mais os locais para aprenderem um ofício. Carreira boa era de médico e engenheiro, formados em Belo Horizonte e Ribeirão Preto. As sapatarias não eram mais escola e a língua de sapateiro perdeu importância. Para ter seu primeiro emprego, a garotada buscava o comércio, as lojas.

Também não havia mais o que esconder das mulheres. As cantadas podiam ser mais diretas, menos polidas. As roupas femininas passaram a ser menos comportadas também, olhar

Page 48: Linguiça de Sapateiro

Thatianna e Oliveira48

Foto: Modelos de sapatos confeccionados até hoje da Sapataria Nossa Senhora da Penha.

Page 49: Linguiça de Sapateiro

Linguiça de Sapateiro 49

as pernas já não era julgado. As opções de lazer aumentaram, os bares se espalharam pela cidade, ocuparam outros pontos, o bairro das Candeias cresceu, as conversas se descentralizaram. As conversas de língua de sapateiro foram se diluindo em pesso-as e endereços.

A língua ficou restritas às brincadeiras familiares ou aos papos com os vizinhos. Os rapazes não aprendiam mais a língua dentro do ofício. Filho aprendia com o pai, pelo boca a boca, e usava o dialeto durante os intervalos da escola. O falar que co-meçou como brincadeira assim também terminava.

“Eu aprendi a língua de sapateiro com meu pai. No come-ço achava engraçado ele conversando com os amigos e fiquei curioso. Daí, eu e mais um vizinho começamos a falar e era legal porque ninguém entendia. Nós não tínhamos muito amigos que falavam, era diferente da época do meu pai. A gente brincava com as meninas, tirava um sarro, era tudo brincadeira mesmo. Moleque é tudo igual”, declara João Junior Pagliuso, filho de João Pagliuso e meu primo, aquele do primeiro capítulo. Junior nasceu no final dos anos 80. Hoje, ele está com 26 anos.

2

A língua de sapateiro foi atropelada pela nova formação que adquiria a cidade. Nos anos 80 Passos elegeu dois representan-tes para deputado estadual que trouxeram muitos avanços para a cidade. Neif Jabur e Joaquim de Melo Freire foram responsá-veis por importantes obras do município que resultaram em de-senvolvimento econômico e populacional. ¹

Page 50: Linguiça de Sapateiro

Thatianna e Oliveira50

Neif Jabur conseguiu verbas para a construção do Ginásio da Barrinha, para criação e implantação do Sistema Municipal de Saúde em convênio com o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) e inaugurou a Biblioteca Municipal. ²

Em 1988, ele foi presidente da Assembleia Constituinte Mi-neira, fortalecendo ainda mais a influência governamental sobre a cidade. Ele captou dinheiro para levantar oito ambulatórios, o Centro Regional de Saúde, a sede do Sindicato dos Trabalha-dores Rurais do município e os primeiros barracões da Casemg, uma das maiores empresas de capital misto de armazenamento de grãos. ³

Essas melhorias incentivam a produção agrícola até hoje muito forte na cidade, tendo destaque as produções de café e de milho. Por meio do trabalho de Joaquim de Melo Freire, Passos recebeu uma sede do Serviço Social da Indústria (SESI), a cons-trução do primeiro Batalhão de Polícia e de várias escolas. ¹

O comércio também tomou outra cara. A indústria confec-cionista cresceu. Durante o dia, a rodovia Passos-Glória, que corta a cidade de norte a sul, se transformou em Avenida da Moda, com mais de 70 lojas.

A prosperidade do município pode ser vista também por meio do crescimento populacional. Em 1970 Passos contava com 54.879 habitantes, vinte anos mais tarde esse número subiu para 84.515, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A nova geração que surgia dentro deste ce-nário não tinha as mesmas preocupações de antigamente.

Page 51: Linguiça de Sapateiro

Linguiça de Sapateiro 51

Foto de Fão Tavares: Avenida da Moda.

Page 52: Linguiça de Sapateiro

Thatianna e Oliveira52

3

A partir da década de 80, a língua de sapateiro deixaria de ser instrumento para se tornar entretenimento. Cada vez mais sua propagação dependia da tradição oral passada de pai para filho, e principalmente, do interesse e da curiosidade do apren-diz. O dialeto social transformou-se em um traço cultural da ci-dade de Passos.

Algumas reportagens foram escritas sobre o assunto nos últimos anos, até mesmo pela EPTV (filiada à Rede Globo), ou-tras foram publicadas em jornais de Passos e região, mas quem não viveu nos tempos áureos da língua de sapateiro não conse-gue entender a real importância que ela teve para seus falantes. Ela surgiu de forma descontraída, no entanto, ela era e até hoje é levada a sério pelos mais antigos.

Durante os diálogos conduzidos por mim antes da escrita desta obra, alguns entrevistados, como Sebastião Borges com seus mais de 70 anos, não se sentiram confortáveis para con-duzir uma conversa no “idioma” passense. Já os falantes mais novos soltavam algumas frases sem receio.

Nos bares e nas sapatarias a língua de sapateiro não é mais ouvida, para aqueles que desejam relembrar e aprofundar seus conhecimentos, só resta uma opção além dos eventos familia-res: os encontros de quinta-feira após o expediente na Sapataria Nossa Senhora da Penha.

Assim que a sapataria fecha para os clientes, ela abre para os amigos, conhecidos e admiradores do dialeto. Entre uma cer-veja e outra os simpatizantes tem oportunidade de saber um

Page 53: Linguiça de Sapateiro

Linguiça de Sapateiro 53

pouco mais sobre a língua, contar “causos” e comer um churras-quinho no fundo do comércio. O lugar é simples e pequeno, não cabe muita gente, mas tem espaço para muita história.

Esse senhor de camiseta branca que aparece na primeira e na segunda foto - nesta ele está posicionado entre um homem de blusa escura com um óculos-de-sol pendurado em sua gola e um torcedor do Santos - é João Borges. Ele é irmão de Sebastião Borges e cuida da sapataria Nossa Senhora da Penha. Sebastião já está aposentado, mas João continua na ativa e é ele quem fica de olho no entra e sai de pessoas durante as reuniões de quinta. É uma volta ao tempo.

O encontro acontece há 50 anos e é frequentado sempre por homens, deixando ao longo da história a predominância mascu-lina na língua de sapateiro. As mulheres que entram ali são ape-nas as curiosas como eu ou minha tia Vera Pagliuso, também jornalista. Por sinal, ela foi a primeira mulher a participar do que ela chamou carinhosamente de “clube do bolinha” e a visi-ta garantiu uma página na coluna social do principal jornal da

Fotos de Vera Pagliuso: Encontros de quinta-feira na Sapataria Nossa Senhora da Penha.

Page 54: Linguiça de Sapateiro

Thatianna e Oliveira54

cidade em 2010.

4

Por mais que a língua de sapateiro tenha perdido territó-rio, quem teve vontade e oportunidade de aprendê-la levou-a por onde passou. Os jovens que foram estudar fora espalharam o co-nhecimento. Há relatos de falantes em Belo Horizonte, Ribeirão Preto e até São Paulo. A seguir, pretendo oferecer um panorama do momento atual desse peculiar falar mineiro.

NOTAS

¹ FOLHA DA MANHÃ. Passos 150 anos. Especial editado pelo Jornal Folha da Ma-

nhã e Fundação de Ensino Superior de Passos, fascículo 09/10, Minas Gerais, Janeiro de

2009

² Id., Ib.

³ Id., Ib.

Page 55: Linguiça de Sapateiro
Page 56: Linguiça de Sapateiro

Capítulo 5Virou Rui-barbês

Page 57: Linguiça de Sapateiro

Linguiça de Sapateiro 57

1

Fica clara ao longo do livro uma relação pessoal, tanto nar-rativa quanto histórica, estabelecida com a língua de sapateiro. É extremamente prazeroso poder registrar um falar que ouvi em minha adolescência e que esteve presente em muitas reuniões de família. É sempre bom lembrar e falar de Passos, relembrar meus avós e tudo que vivi naquela cidade, mas não foram ape-nas as boas memórias que me motivaram a estudar o assunto.

Este capítulo não será dedicado a saudosismos, ele pre-tende abordar o presente da língua de sapateiro e, quem sabe, dar pistas sobre seu futuro. Para introduzir o panorama atual do dialeto, gostaria de contar como a ideia de escrever esta obra surgiu em um Carnaval.

Em 2013, viajei para Riviera de São Lourenço, litoral de São Paulo, com alguns amigos e com outras pessoas que eu não conhecia. Entre os novos conhecidos, havia um casal que cur-sava medicina no câmpus de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP). Quando chegamos à casa que tínhamos aluga-do, eles começaram a falar entre eles a língua de sapateiro e eu tomei um susto. Perguntei a eles como eles conheciam a língua e eles me contaram que tinham aprendido na faculdade, algumas pessoas lá falavam.

Houve um choque de ambos os lados, eles não entenderam como eu compreendia o vocabulário e eu não conseguia encon-trar uma conexão entre uma faculdade de medicina de Ribeirão Preto, cidade localizada no interior do estado de São Paulo, e minha infância em Passos. Daí, resolvi resgatar a língua e enten-

Page 58: Linguiça de Sapateiro

Thatianna e Oliveira58

der de onde ela vinha afinal. Foi bom descobrir que a cidade de minha família paterna era a cidade natal da língua.

Após investigar a origem do dialeto e entender sua história, é estranho pensar que uma língua que foi criada dentro de sa-patarias e serviu para encobrir opiniões políticas contrárias ao regime militar tenha se tornado um linguajar universitário. Em Ribeirão, na faculdade de medicina onde estudam Luciana Pasta e Tomás Marson até termos médicos entraram para o dicionário do dialeto mineiro.

Amor ou amar virou “amoxicilina”, homem virou “omepra-zol”, maconha virou “marevan” e “Gustavo” não é nome próprio mas sim o adjetivo “gostoso(a)”. Até os cartazes das festas incor-poraram o palavreado: “cerejeira em dobro” significa cerveja em dobro. O nome do dialeto também mudou. Ao invés de ser cha-mado de língua de sapateiro, ele virou o “Rui Barbês”.

Na língua de sapateiro, “Rui Barbosa” significa ruim de bola. A partir disso, pode-se pensar que o “Rui Barbês” tenha come-çado sua expansão em Ribeirão Preto em um campo de futebol. Ou alguém que falava a língua jogava futebol muito mal ou ele usava o dialeto para tirar sarro de outro colega que era ruim. A verdade nunca saberemos e Luciana e Tomás também não sou-beram dizer.

Eles não sabem ao certo quando o falar chegou à Ribeirão Preto. Quando entraram na faculdade, o pessoal já falava aquela língua, eles só acompanharam. “Eurico naive sabesp falopio Rui Barbês” (“Eu não sei falar Rui Barbes”) foi a primeira frase que eles aprenderam a dizer. A segunda foi “Eurico curtico tomate cerejeira até cabrito figueiredo” (“Eu gosto de tomar cerveja até acabar com o fígado”).

Um repertório lexical se desenvolve conforme a necessidade

Page 59: Linguiça de Sapateiro

Linguiça de Sapateiro 59

de seus falantes. Era esperado que em um ambiente jovem e fes-teiro, como o de uma universidade, o vocabulário fosse diferente do que o de uma sapataria. Ainda assim, as características da língua de sapateiro são as mesmas que regem o Rui Barbês. O dialeto é o mesmo em termos gramaticais, mas muda substan-cialmente de léxico e de endereço.

Um aspecto social que permanece idêntico ao da língua de sapateiro é a predominância masculina de falantes. “Proposital-mente”, ressalta Luciana Pasta. “Eurico vamberto cateter monar-ca lorival Gustavo” (“Eu vou catar uma menina loira gostosa”) é frase comum em festas. “O Rui Barbês é muito usado para que as pessoas de fora da universidade não entendam as “besteiras” que os universitários gostam de falar”, diz a estudante.

Ela relata também que o dialeto já foi mais falado. Houve uma geração de alunos que usava bastante a língua, ela não sabe precisar datas pois são comentários transmitidos de aluno para aluno, porém a diversão vem entrando em desuso. “Dentro da faculdade há cada vez menos pessoas que falam essa língua, e os poucos os que falam tem muito menos vocabulário. Antiga-mente alunos da faculdade mantinham longas conversas em lín-gua de sapateiro. Hoje é mais uma frase solta aqui, uma palavra ali”.

2

Ao longo de uma das conversas com João Pagliuso, ele rela-tou que durante uma viagem de ônibus conheceu dois estudan-

Page 60: Linguiça de Sapateiro

Thatianna e Oliveira60

tes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) que haviam aprendido a língua de sapateiro com colegas da faculdade. Ele ouviu os meninos conversando no dialeto e foi perguntar se eles eram de Passos, para surpresa de João a resposta foi negativa. Os meninos eram mesmo de Belo Horizonte, cidade onde fica a universidade.

A UFMG recebe todo ano muitos jovens passenses, não é tão estranho pensar que o dialeto também tenha chegado por lá. Não posso afirmar que ele tenha tomado o tamanho que tomou em Ribeirão Preto, não sei sobre sua real situação no câmpus. Mas que chegou, chegou.

3

Em seus mais de 60 anos de história, a língua de sapateiro marcou gerações e momentos históricos. Marcou a história de Passos e minha história. A língua de sapateiro, por ter a tradição oral como sua principal polinizadora, teve início em um grupo, espalhou-se e daí perderam-se seus direitos autorias, as razões de sua origem e seu tempo. Onde ela coube, onde ela serviu, ela ficou e foi reinventada. É assim que acontece com as línguas.

Novas palavras foram acrescentadas e outras deixaram de existir, sem a perda da essência do dialeto. Uma mutabilidade resistente: muda-se sem perder-se, pelo menos não por enquan-to. É difícil dizer se a língua de sapateiro, ou o Rui Barbês, en-trará para sempre em desuso ou se conquistará novos falantes. Enquanto existirem falantes e curiosos, o dialeto permanecerá.

Page 61: Linguiça de Sapateiro

Linguiça de Sapateiro 61

Como instrumento de diversão, estudo ou apenas curiosidade, sinta-se à vontade para consultar o pequeno dicionário que se-gue as próximas páginas.

Não faço apologia à continuação do falar, acredito que tudo tem um começo, meio e fim e esses períodos dependem da de-manda social. Acredito também que as pessoas sempre deseja-rão disfarçar comentários sobre mulheres, futebol, política ou religião, não importa o tema, elas buscarão instrumentos para eufemizar seus discursos.

Usarão língua de sapateiro ou inventarão outro vocabulá-rio tão ou mais estranho. Incluirão as pessoas com quem dese-jam se comunicar e os outros irão se sentir excluídos. Contextos mais repressores geram mais mecanismos de escape. Cenários mais livres facilitam a manifestação da criatividade e do compar-tilhamento. Em uns ou em outros, novas ferramentas linguísti-cas surgirão.

Quando o conhecimento é passado, ele sai sem rumo a par-tir do momento em que é transmitido pela primeira vez. É difícil medir qual dimensão tomou e até onde chegou ou se já existia naturalmente por aí. Pode ser que haja uma colônia na Alema-nha que fale o “Schumacher Sprache” (língua de sapateiro em alemão) e nós nunca venhamos a saber. Em Passos foi falado e ainda é em alguns lugares e por algumas pessoas. A presente obra deseja deixar o registro de que a língua de sapateiro existiu.

Page 62: Linguiça de Sapateiro
Page 63: Linguiça de Sapateiro

Dicionário Da língua de sapateiro

Page 64: Linguiça de Sapateiro

Thatianna e Oliveira64

A

abalado - abalderio

abestado -bobistelo

abobalhado - bobina

acelerado - corrente

alambique - alambicorio

alicate - ali

amargo - amargolino

amigo - amigorio

anjo - anjorio

animal - animalesco

apertado - apertilho

avião - avionersio

acordar – acordanbelo

água - aguardente

álcool - alcolino

alegre - alegrette

ali - alicate

alto - altorama

Page 65: Linguiça de Sapateiro

Linguiça de Sapateiro 65

anão - homenagem piquenique

anta - antulho

antena - antenória

antes - antenor

areia - ariano

árvore – arvoredo

B

baixo - piquenique

bandeira - bandeirante

banho - banerje

barba – barbatana, barbante

barbudo – tenente barbatana granita

barrigudo - tenente barrigolina granita

barro - barreto

bebum - borrachão

beijo - beijorio

bobo - bobina

boca - bucaina

bolsa - bursite

bonita- bonifácia

bravo - bravox

bunda - bunarca

Page 66: Linguiça de Sapateiro

Thatianna e Oliveira66

burro – boracha

bacalhau - bacalhonerio

bagunça - bagunçaria

barata - baratolina

batata -bataterio

bater - batista

bebê - bebesorio

boate - boaterio

bola - boleta

C

cabeça - cabecirica

cabelo - cebedelo

café - cafetão

cara - carabina

carne - carneiro

caro - carretel

casa - casamata

casa - casório

celular - celulório

certo - sertão

cerveja - cervejório

cheiro – xerife

Page 67: Linguiça de Sapateiro

Linguiça de Sapateiro 67

cadáver - cadavolino

cadeira - cadeiroria

cafajeste - cafajestorio

casamento - casório

chique - chiclete

chupar - chupeta

churrasco - churrascorio

comemorar - comemorambelo

cozinhar - cozidorio

D

dar – danete, Danilo

dente - dentifrício

desarrumado - fernete

desenho - desenhambelo

dinheiro - dinamarca

doente - dondoi

doido – Dorival, Doriana

diabo – diabolino

dama - Damião

dar - danete

defunto - mortandela

deitar - deitambelo

Page 68: Linguiça de Sapateiro

Thatianna e Oliveira68

descansar - descansambelo

droga - drogolina

E

escola - esculacha

estar - estaloso

estava - tavaco

eu – eurico

educado - educambelo

erva - ervaria

esperar - esperambelo

estilo - estiloso

estudar - estudambelo

F

faca - facoria

falar - falambelo

feio - fernete

feliz - felizardo

filho - fidalgo

flor - Floriano

Page 69: Linguiça de Sapateiro

Linguiça de Sapateiro 69

fora - floresta

forma - formoso

frio - friobal

fruta – frutilha

face - carabina

família - familioria

fazer - fazendeiro

ferro - ferrete

fingido - farsorio

fino - finesse

futebol - futibolino

G

gago - gagolino

gastar - gastrite

gato - gaturama

gelado - gelatina

gelo – gelório

gêmeo - gemelar

gordo - gordolino

gostar - gostambelo

guarda - guardanapo

Page 70: Linguiça de Sapateiro

Thatianna e Oliveira70

I

ir - irineu

irmão – irmandade

ilusão - ilusoneide

J

já - janela

jogo ou jogar - jogambelo

jovem - juventus

julho - juliano

jura - juraci

L

língua – linguiça

livro - livrorio

loira - lourival

língua - linguiça

lugar - lugarejo

Page 71: Linguiça de Sapateiro

Linguiça de Sapateiro 71

M

magro - magrório

mais - maisena

mala - maleita

mancha - manchete

mão - manjuba

marido - maritaca

medo - medula

melhor - melhoral

menina - minerva

moça - mucharca

morto - mortandela

mulher – morcega

macho - machucado

mestre - mestrilho

N

nádega - bunarca

namoro ou namorado - namorisco

não - navio

nascer - nascente

Page 72: Linguiça de Sapateiro

Thatianna e Oliveira72

ninguém - nagoga

noivo - norival

nós - nosângulo

neve - nevolino

novo - novelo

nuvem - nevêncio

O

ofender - ofendembelo

oito - oitavo

olho - oitavo

otário - Otaviano

outra - outrora

ovo – ovolino

objeto - objetivo

P

pai - papagaio

pare - parede

passar - passarinho

pé - pelota

Page 73: Linguiça de Sapateiro

Linguiça de Sapateiro 73

peça - peçanha

pegar - pegajoso

pente - pentelho

pequeno - piquenique

pinga - ping pong, pingolin

poder - poderoso

por – poeira, punhal

pão de queijo - paonercio queijolino

pés - penacho

pescar - pescambelo

perfeito - perfeitorio

picolé - picolino

piolho - piolhim

política - politicório

príncipe - princípio

professor - professolino

Q

quente - quentilho

querer - querino

quilo – quilometro

queijo - queijolino

Page 74: Linguiça de Sapateiro

Thatianna e Oliveira74

R

rabo - rabanete

rápido - rapunzel

rato - raturama

ré - Renato

rei - Reinaldo

reta - retaguarda

reta - retalho

rico - Ricardo

rir - riacho

roubo - Roberto Carlos

rua - ruela

rádio - radiobraz

rancho - rancholino

S

saber - sabino

sapato - sapatório

ser - serenata

sol - soledade

sua - suruana

Page 75: Linguiça de Sapateiro

Linguiça de Sapateiro 75

sujo – sujeito

sapato -sapatilho

sapo – sapulino

senhora - mucharca

sombra - sombrilha

sono - sonífero

T

tempo - tempero

ter - tenente

toalha - toalete

tomar - tomate

trazer - traseiro

tudo – tudilho

teatro - teatrorio

trabalhar - trabuco

V

vai - Vanessa

vamos - vampiro

veja - vinagre

Page 76: Linguiça de Sapateiro

Thatianna e Oliveira76

velho - Venâncio

viado - viaduto

virar - virambelo

você – cebola

visual - Vinícius

voltar - Voltarem

X

xixi - mijarcão

Z

zangado - bravio

zonzeira - tontilho

Page 77: Linguiça de Sapateiro
Page 78: Linguiça de Sapateiro

Sobre Thatianna e Oliveira

Thatianna e Oliveira nasceu na cidade de São Paulo. Mu-dou-se para Bauru aos 17 anos para cursar Jornalismo, em 2009. Em 2011, foi para a Alemanha, fazer intercâmbio, na cidade de Dresden. Ao regressar, em 2012, decidiu voltar para São Paulo e terminar seus estudos na Universidade de São Paulo.

Thatianna sempre gostou de escrever e este foi o principal motivo de ter escolhido o jornalismo. A inspiração para escrever este livro vem de seu pai mineiro, criado na pequena cidade de Passos e onde se passa a maior parte da história narrada.

Page 79: Linguiça de Sapateiro
Page 80: Linguiça de Sapateiro