16
LITERATURA E CINEMA E A METÁFORA DO MAL EM A PELE QUE HABITO Paulo Henrique Pressotto* Praticar tortura contra uma pessoa é uma forma covarde de cometer violência física, psíquica e moral, fazendo sofrer a vítima, degradando o próprio torturador e agredindo valores que são de toda humanidade. Dalmo de Abreu Dallari, Duzentos anos de condenação da tortura RESUMEN: Buscando establecer un análisis comparativo entre la novela Tarântula, de Thierry Jonquet, y la película A pele que habito, de Pedro Almodóvar, este trabajo trata de las categorías de adaptación fílmica y diserta sobre la tortura, lo malo y la violencia que son temas presentes en las obras. PALABRAS CLAVE: Cine y literatura, tortura y violencia, Jonquet y Almodóvar. RESUMO: Buscando estabelecer uma análise comparativa entre o romance Tarântula, de Thierry Jonquet, e o filme A pele que habito, de Pedro Almodóvar, este trabalho discute as categorias de adaptação fílmica e disserta sobre a tortura, o mal e a violência que são temas presentes nas obras. PALAVRAS-CHAVE: Cinema e literatura, tortura e violência, Jonquet e Almodóvar. Este artigo consiste em uma análise comparativa entre o filme espanhol A pele que habito (2011), de Pedro Almodóvar, e o romance Tarântula, do escritor francês Thierry Jonquet, publicado no Brasil em 2011. Em Tarântula é narrada a história de um cirurgião plástico (Richard Lafargue) que mantém presa em sua casa uma “mulher” de nome Ève. No caminhar da história, percebe-se que Ève era, na verdade, Vincent, um provável estuprador da filha de Lafargue. Com toda crueldade possível, Lafargue rapta Vincent e, após muitas torturas e mutilações, o transforma em Ève. Este fato narrativo, entre outras passagens, foi abarcado por Almodóvar em seu filme A pele que habito. Fora Lafargue, a história apresenta outros personagens como Alex, Viviane, Line e Roger. Entre convergências e divergências de um processo de adaptação fílmica, busca-se

LITERATURA E CINEMA E A METÁFORA DO MAL EM A PELE … · sistema de controle do mundo da moda e que, por isso, também se relaciona à cultura de uma determinada sociedade, obrigando,

  • Upload
    dothien

  • View
    214

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

LITERATURA E CINEMA E A METÁFORA DO MAL EM

A PELE QUE HABITO

Paulo Henrique Pressotto*

Praticar tortura contra uma pessoa é uma forma covarde de cometer violência física,

psíquica e moral, fazendo sofrer a vítima, degradando o próprio torturador e agredindo valores

que são de toda humanidade.

Dalmo de Abreu Dallari, Duzentos anos de condenação da tortura

RESUMEN: Buscando establecer un análisis comparativo entre la novela Tarântula, de Thierry

Jonquet, y la película A pele que habito, de Pedro Almodóvar, este trabajo trata de las categorías

de adaptación fílmica y diserta sobre la tortura, lo malo y la violencia que son temas presentes en

las obras.

PALABRAS CLAVE: Cine y literatura, tortura y violencia, Jonquet y Almodóvar.

RESUMO: Buscando estabelecer uma análise comparativa entre o romance Tarântula, de

Thierry Jonquet, e o filme A pele que habito, de Pedro Almodóvar, este trabalho discute as

categorias de adaptação fílmica e disserta sobre a tortura, o mal e a violência que são temas

presentes nas obras.

PALAVRAS-CHAVE: Cinema e literatura, tortura e violência, Jonquet e Almodóvar.

Este artigo consiste em uma análise comparativa entre o filme espanhol A pele que habito

(2011), de Pedro Almodóvar, e o romance Tarântula, do escritor francês Thierry Jonquet,

publicado no Brasil em 2011. Em Tarântula é narrada a história de um cirurgião plástico

(Richard Lafargue) que mantém presa em sua casa uma “mulher” de nome Ève. No caminhar da

história, percebe-se que Ève era, na verdade, Vincent, um provável estuprador da filha de

Lafargue. Com toda crueldade possível, Lafargue rapta Vincent e, após muitas torturas e

mutilações, o transforma em Ève. Este fato narrativo, entre outras passagens, foi abarcado por

Almodóvar em seu filme A pele que habito. Fora Lafargue, a história apresenta outros

personagens como Alex, Viviane, Line e Roger.

Entre convergências e divergências de um processo de adaptação fílmica, busca-se

compreender no filme, para além de uma discussão sobre mudança de sexo, o mal e a tortura do

corpo como metáforas da repressão. Da aparente história contada no filme (a tortura do corpo e a

obsessão e o (des)controle de um personagem) e do trabalho estético, em que o avanço da ciência

(configurado na narrativa) se entrecruza e se completa com uma estética fílmica diferenciada que

apresenta, talvez, um efeito plástico mais rígido em sua finalização (o qual se relaciona,

obviamente, com os avanços técnicos do cinema), o cineasta parece traduzir um tempo moderno,

o presente, com os olhos voltados para o passado. Isso talvez aconteça porque Dr. Robert

Ledgard (no livro, Richard Lafargue) seja a encarnação de uma metáfora de um sistema e/ou

período antidemocrático espanhol em que raptos, torturas, crimes e desrespeito às leis de proteção

ao indivíduo eram constantes. Nesse sentido, parece que no filme os aspectos de um momento

histórico da Espanha sejam pontualmente marcados pelo cineasta através da metáfora e dos

símbolos. Almodóvar então retrata uma história que tem seu espelho no romance de Jonquet,

porém ressurgida numa ação democrática (porque o diretor teve a liberdade de fazê-la) que

envolve a própria história contada e a estrutura narrativa. O trabalho busca destacar os diálogos

que há entre os textos por meio das categorias de adaptação, como a adição, o deslocamento, a

transformação, a redução e a ampliação. Pretende-se também revelar alguns traços do mal e da

tortura do corpo e da mente presentes nas histórias. Além dos pressupostos teóricos sobre

adaptação fílmica e linguagem cinematográfica, bem como estudos sobre o mal, o gênero e o

corpo, o estudo também mostra como as reflexões do campo diegético filmico, principalmente,

pode revelar uma grande metáfora em que o social e o psicológico apresentam um sentido

altamente crítico com relação ao “mal-estar da civilização” do mundo contemporâneo.

A abordagem dessas duas obras se justifica por contribuir com as análises, no campo dos

estudos comparados, entre literatura e cinema no Brasil, revelando uma possibilidade de leitura

entre as duas linguagens. Este artigo pretende levantar e discutir questões que abordem os

aspectos narrativos de ambos os textos e os temas que envolvem as características psicológicas

dos personagens centrais, bem como o aspecto social de um passado político repressor espanhol

e, obviamente, a estética dos objetos em foco. Nesse sentido, talvez uma leitura mais atenta e

aprofundada das obras, no que se refere às suas convergências e divergências formais e de

conteúdo, poderá contribuir para o melhor entendimento dos temas tratados no livro e no filme e

suas imbricações num âmbito de um contexto histórico-social.

Dentre as concepções teóricas, utilizadas para a construção deste trabalho, estão as

definições das categorias de adaptação fílmica, elencadas por BRITO (2006), tais como: a adição

(que pode ser entendida como os elementos que se encontram no filme e não no romance); o

deslocamento (que pode ser entendido como aqueles elementos que no filme não se apresentam

num tempo cronológico ou no mesmo espaço); a transformação (que corresponde aos elementos

que tanto na literatura como no filme apresentam significados que se equivalem, porém com

configurações diferentes); a redução (que talvez possa ser determinada por elementos que estão

no texto literário, mas não são encontrados no filme); a ampliação (que compreende o aumento

da dimensão, no filme, de um ou mais elementos da literatura). Para esta leitura, faz-se uso ainda

das ideias sobre o mal, a violência, o corpo e o olhar panóptico. Assim sendo, a análise se

sustenta por meio dos estudos de Rosenfield, Arendt, Butler, Foucault, Quinet, entre outros.

O trabalho apresenta ainda as seguintes etapas de análise: a primeira se refere à leitura

crítica das obras, tendo como norte os elementos da categoria de adaptação fílmica; a segunda

aborda os temas pertencentes às duas obras, tais como o mal e a violência; o corpo e o olhar

panóptico. Também, para evitar qualquer confusão entre os personagens, faz-se necessário

mostrar quais são os do livro que correspondem aos do filme. Assim, as aproximações seguem

em parelha: Dr. Richard Lafargue – Dr. Robert Ledgard; Vincent – Vicente; Ève – Vera; Alex –

Zeca; Line – Marilia; Viviane – Norma.

A adaptação cinematográfica de Tarântula

Pretende-se aqui tratar os aspectos de adaptação em A pele que habito. Numa leitura

comparativa entre Tarântula e o filme em questão, pode-se destacar as seguintes características

de adição: após racionalmente conquistar a confiança de Robert Ledgard (Antonio Banderas),

Vera (Elena Anaya) o mata. Marília (Marisa Paredes) também acaba sendo assassinada por ela.

Devido às tentativas de escapar do cárcere privado, os assassinatos, cometidos por Vera, parecem

ser o único caminho de liberdade encontrado pelo personagem. Talvez haja, por parte do diretor,

a intenção de mostrar que a mudança de sexo, sofrida por Vicente (Jan Cornet), não mudou seu

desejo pelo sexo oposto. De acordo com Butler, “Levada a seu limite lógico, a distinção

sexo/gênero sugere uma descontinuidade radical entre corpos sexuados e gêneros culturalmente

construídos.” (2003, p. 24) Vicente, no caso, teve seu sexo modificado, mas seu gênero

permanece o mesmo.

Robert é visto, por Eva, como um grande inimigo que merece ser punido pela violação

que causou em seu corpo, promovendo-lhe tortura física e, principalmente, mental. No livro, Ève

não mata ninguém. Somente Richard acaba matando Alex por vingança. Em uma das cenas do

filme, Marilia diz a Eva que sua loucura passou para os dois filhos, Robert e Zeca. Há a alusão

aqui de que a “loucura” de ambos possa ser hereditária.

Em outra cena, nota-se também que a loja da mãe de Vicente, assim como a vendedora,

não existe no livro. Uma possível explicação para este acréscimo no filme é, primeiramente, que

a venda de vestidos seja, na verdade, a venda de uma segunda pele. Uma pele regida talvez pelo

sistema de controle do mundo da moda e que, por isso, também se relaciona à cultura de uma

determinada sociedade, obrigando, de certa forma, a mulher a aderir a uma “armadura” por meio

do processo de construção de gênero.

Na cena final do filme, o espectador parece se sentir mais aliviado ao ver que Vera volta

para a casa, ou melhor, para a loja de sua mãe e, consequentemente, para uma possível relação

com a vendedora lésbica por quem ela se sentia atraída. Ou seja, um possível relacionamento

amoroso talvez amenize, um pouco, a sensação pesada da mutilação, fazendo com que o desfecho

desemboque numa pequena dose de happy ending.

Outro elemento que ocorre no filme é a redução. Não há momentos em que Vera se

prostitui como acontece com Ève. Esta é obrigada, por Richard, a ficar com alguns homens. Essas

passagens foram suprimidas por Almodóvar, pois Robert, ao contrário de Richard, mantinha em

segredo sua vítima que ele transformou quase fisicamente idêntica à sua mulher Gal. Aqui, ocorre

um jogo de espelho que oferece à personalidade de Robert um tom mais misterioso que resvala

num conflito interno com seu objeto de desejo, ou seja, sua vítima.

Ainda no campo da redução, nota-se que não há no filme uma participação constante do

motorista. No romance, ele aparece mais e tem um nome (Roger). A supressão deste personagem

no filme se dá por sua quase insignificância tanto na narrativa literária como na cinematográfica.

No filme, a única passagem onde ele aparece é quando Vera sai com Marilia para fazer compras.

Outra passagem que foi suprimida no filme é aquela em que Ève provoca Richard. Ela,

por vezes, o faz recordar de uma canção que tocava no baile em que Viviane foi estuprada. Tal

canção traz lembranças desagradáveis a Richard: “Na penumbra, [Richard] foi até a vitrola e

desligou o som, interrompendo as primeiras notas da melodia que, no disco, acompanhava „The

Man I Love‟.” (2) (2011, p. 8-9) Esse é o momento em que a presa, sem saber o motivo, castiga

seu predador. Por sua vez, no filme não há certa provocação, por parte de Vera, mas há, nas cenas

iniciais do filme, um fundo musical ao som de piano. Com relação à importância da música no

filme, Betton afirma que

A música tem uma considerável função psicológica no cinema, já reconhecida nos

tempos do cinema mudo: a de dar ao espectador a sensação de uma duração

efetivamente vivida e „de libertá-lo do terrível peso do silêncio.‟ Tem também uma

função estética e psicológica de altíssimo grau, criando um estado onírico, uma

atmosfera, choques afetivos que exaltam a emotividade. (1987, p. 47)

No filme, a transformação pode ser percebida também nas seguintes passagens: Zeca

(Roberto Álamo) aparece como filho de Marilia, nascido no Brasil, e também como irmão de

Robert. No livro, o personagem que se aproxima ao personagem Zeca do filme é Alex, amigo de

Vincent. Zeca e Alex são foragidos da justiça e, no final, acabam mortos. Zeca pensa que Eva é

sua ex amante (a esposa de seu irmão Robert). Ele se convence de que ela tinha voltado, após

escapar de um acidente de carro. Com essa certeza, ele a estupra vestido de tigre. Essa “fantasia”,

que ele usa, nos lança à ideia de que o personagem apresenta atitudes e ações animalescas. Para

Martin, “[...] o vestuário faz parte do arsenal dos meios de expressão fílmicos. Sua utilização pelo

cinema não é fundamentalmente diferente da que é feita pelo teatro [...]” (p. 60). Dessa forma, a

fantasia de tigre não é gratuita, pois revela, de algum modo, a personalidade do personagem.

Fig. 1 - Zeca no momento em que tenta estuprar Vera

Por sua vez, em Tarântula, Ève chega a ser sequestrada por Alex, pois este precisa que

Richard lhe faça uma plástica facial, com o único objetivo de não ser reconhecido pela polícia

que o persegue. O sequestro de Ève não existe no filme. A convergência entre os personagens,

Alex e Zeca, ocorre mais especificamente no campo da violência sexual: Zeca estupra Vera, e

Alex Viviane, a filha de Richard.

A ampliação aparece, no filme, no instante em que ocorre a interferência do mundo

exterior na vida de Robert, pois este sofre a crítica de um dos colegas de profissão que lhe faz

alguns questionamentos sobre as suas pesquisas e um possível descumprimento das regras no

campo da ética. Robert também se irrita com a desconfiança de outro colega que desconfia que

Vicente é, na verdade, Vera. Para esse colega, Ledgard internou Vicente e forçou-lhe a mutilação.

A falta de informação, sobre o desaparecimento de Vicente, ganha maiores proporções

quando é focalizada a foto dele no jornal, juntamente com outras pessoas que estão sendo

procuradas naquele momento. Tal fato talvez aluda ao passado, ao período de ditadura em que

vários jovens eram presos, torturados e mortos pelo regime autoritário.

Um exemplo de deslocamento é a morte de Zeca não ocorrer no final do filme. Tal fato

contribui para o clímax que se acerca ao desfecho trágico e libertador de A pele que habito.

Enfim, a análise das categorias de adaptação, presentes nessa obra de Almodóvar,

contribui para o seu melhor entendimento e, consequentemente, do livro de Jonquet. Hamburger,

ao tratar da discussão entre literatura e cinema, afirma que “Os gêneros dramático e épico

fundem-se no filme na forma particular do drama epicizado e do épico dramatizado – uma fusão

em que ambos os fatores são ampliados e limitados de forma singular, porém justificado do ponto

de vista estrutural e epistemológico.” (1986, p. 164). Nesse sentido, o processo de adaptação,

alcançado por Almodóvar, se justifica por apresentar um trabalho de junção de forma e conteúdo

que convergirá no valor estético do filme, que também será tratado a seguir.

Traços do mal e da violência

Após o assassinato de Zeca, sobre a cama de Vera, Marilia troca a colcha suja do sangue

de seu filho. Esta mesma colcha vermelha, que contrastava com o corpo de Eva (fig.4), agora

acumula o vermelho do sangue, desfazendo o tom erótico. Nessa cena, não há dramaticidade na

emoção de Marilia, há somente a razão que impera no instante dela limpar a cama (trocar a

colcha) e lamentar pela tragédia ocorrida. No livro, Line corresponde a Marilia, no entanto ela é

somente a empregada da mansão e não a mãe de Richard. Ao redor do fogo, que queima as

roupas de seu filho, Marilia conta a Vera a história da vida de Robert e, de certa maneira, por ser

a mãe deste, também participa da história.

No mesmo dia do estupro de Vera, Robert, com o objetivo de fazer sexo, pede que ela

suba com ele para o quarto. Tal ação mostra o nível de perversidade do personagem que, após o

estupro realizado pelo irmão, também quer manter relação sexual com a vítima. Segundo Quinet,

Em Mal-estar na civilização, Freud coloca o Eros na origem mítica do grupo humano: o

Eros é o cimento pulsional que empurra para a união, fazendo com que a humanidade

guarde junto a si seus objetos sexuais, ou seja, a mulher como objeto para o homem e a

criança como objeto para a mulher. Esses dois objetos libidinais carregam a marca da

falta-a-ter, seja pela ameaça da perda, seja pelo afastamento. Mulher e criança são,

portanto, objetos algamáticos, bens dos quais não queremos ser desapossados. (2004, p.

276)

Nesse caso, Vera passa a ser o objeto algamático, o objeto desejado de Robert que, ao ver

Zeca relacionando-se com ela, sente-se ameaçado, pois já havia perdido, anteriormente, sua

mulher para o irmão. Tal fato fez com que ele talvez se decidisse a matá-lo, pois, fazendo isso,

não sofreria com a perda de Vera.

Seis anos antes desse acontecimento, numa festa, Robert sai à procura de sua filha Norma

(Blanca Suárez) no jardim do recinto, onde se realizava o evento. Ele constata que ela parece ter

sido violentada por Vicente. Com esta certeza em mente, ele sai em perseguição deste jovem.

Após encontrá-lo, tortura-o e, também, o mutila, transformando-o em Eva. Robert caça Vicente

como se este fosse um animal. Aqui há a alusão ao predador e sua presa. Como a aranha faz com

o inseto capturado, Robert prende Vicente e começa a torturá-lo física e mentalmente. Vicente,

como se estivesse preso às teias da aranha, se esforça para dela escapar. Por sua vez, em

Tarântula encontra-se a seguinte passagem que ilustra a definição do personagem Richard:

Mas Tarântula porque ele era como a aranha, lenta e secreta, cruel e feroz, ávida e

imponderável em seus desígnios, escondido em algum lugar naquele covil onde a

mantinha sequestrado há meses, uma teia de luxo, uma armadilha dourada, de que você

era carcereiro e detento. (JONQUET, 2011, p. 66, grifo do autor)

Vicente, na verdade, não chega a estuprar Norma, ele simplesmente tenta se relacionar

com ela. Quando Robert chega ao lugar sombrio, onde Vicente está trancafiado, parece uma

aranha que vai aos poucos dominando as ações de sua presa. Vicente tenta, a todo o momento,

desvencilhar-se de Robert, que vai dosando seu veneno contra Vicente até dominá-lo por

completo. A transformação de Vicente vai ocorrendo aos poucos, ou seja, ao longo de seis anos.

Num determinado momento, pela não aceitação de seu novo corpo e de sua situação, Vicente, já

com o corpo de Vera, se revolta e rasga os vestidos que recebia de Robert. Também não aceita o

livro de maquiagem e as pinturas. Após um tempo, diante do espelho, Vicente/Vera tenta se

reconhecer, mas isso ainda é difícil. Na intenção de se livrar das garras de seu algoz, a vítima

tenta, de maneira mais racional, uma aproximação com ele.

O que Robert fez com Vicente, incluindo a vaginoplastia, foi de extrema maldade. Sobre

o mal, Rosenfield escreve que:

O mal, enquanto forma da ação, é, nesse sentido, uma „coisa feita‟, algo que é „feito‟ seja

em relação ao mundo (exploração incontrolada da natureza, que altera a sua „ natureza‟

própria), seja em relação a outros homens individualmente considerados (ação má contra

um indivíduo, procurando atingi-lo em sua integridade pessoal e física), seja em relação

a um grupo de indivíduos (por consideração racial, ideológica ou outra, visando à sua

exterminação física). (2003, p. 81)

O mal, nas obras em foco, é notado nos níveis de tortura e violência que abate sobre as

vítimas. Não se pode deixar de tocar num ponto importante na adaptação que Almodóvar faz do

romance de Jonquet, que é a questão histórica que envolve a Espanha. Em Tarântula, parece não

haver nada de significativo que caracterize a cultura francesa no que se refere à problemática

histórica de um determinado tempo. O contrário acontece em A pele que habito, onde se

consegue ler uma crítica, mesmo nas entrelinhas, de um período histórico de uma Espanha

antidemocrática. Aproveitando o eixo temático e a estrutura narrativa de Tarântula, Almodóvar

consegue aludir, em algumas passagens, à problemática de um sistema opressor. Tais passagens

estão caracterizadas, ou melhor, representadas nas atitudes do personagem Robert, quando este

aprisiona, tortura e mutila Vicente. Como afirma Arendt:

A diferença decisiva entre a dominação totalitária, baseada no terror, e as tiranias e as

ditaduras, estabelecidas pela violência, é que a primeira investe não apenas contra seus

inimigos, mas também contra seus amigos e apoiadores, temendo todo poder, mesmo o

poder de seus amigos e apoiadores. O ápice do terror é alcançado quando o Estado

policial inicia a devoração de suas próprias crias, quando o executante de ontem se torna

a vítima de hoje. É esse também o momento em que o poder desaparece completamente.

(ARENDT, 2011, p. 73)

No filme, essa tirania está simbolizada em Robert Ledgard. De acordo com Martin, “[...] o

processo normal do símbolo é sempre fazer surgir uma significação secundária e latente sob o

conteúdo imediato e evidente da imagem.” (2003, p. 105) Nesse sentido, com pontos semelhantes

às torturas cometidas pelos militares contra os presos políticos, a violência/tortura, em A pele que

habito, envolve o corpo e a mente de Vicente/Eva. Enquanto tudo isso ocorre, durante um

período de anos, a mãe de Vicente (Susi Sánchez) vai até a delegacia e pede ao delegado que

encontre seu filho. Tal fato alude também à época da ditadura na Espanha, bem como em alguns

países latino-americanos, onde jovens, contrários à ideologia do governo autoritário,

desapareciam. Tanto em Tarântula como em A pele que habito, as mães de Vincent e de Vicente,

respectivamente, nunca desistem de procurá-los. No livro, a mãe de Vincent vai à delegacia,

como se pode comprovar nesta passagem: “Ela não deixava de fazer sua visita ritual e semanal à

delegacia de Meaux, para indagar em que pé estavam as buscas pelo filho.” (2011, p. 54). Há

também o jornal com as fotos dos desaparecidos, este símbolo talvez possa ser relacionado ao

momento de repressão espanhola em que jovens sumiam sem deixar rastros.

No que se refere à beleza dos personagens, transformados fisicamente, Ève, ao contrário

de Vera, contempla sua beleza e sabe de seu poder de sedução junto aos homens. Vera, em uma

das passagens, tenta cortar seus seios, revelando sua insatisfação, pois não se aceita. Como não

tem nenhuma vida social ativa, pois está enclausurada em todos os sentidos, ela busca, depois de

alguns pedidos de soltura (sem sucesso) e de tentativa de fuga, seduzir Robert para escapar de sua

clausura.

Em suas cenas iniciais, o filme enfoca a simetria, a beleza física do corpo de Vera,

revestido por um tecido que protege ou dá forma à sua pele. A simetria, que encontramos na

beleza do personagem, e por todo o filme, desemboca na assimetria das relações e atitudes dos

personagens em geral, revelando a imperfeição de seus sentimentos e emoções. Essa assimetria é

que move a narrativa com seus percalços e conflitos. Só para completar a ideia e ampliar o tal

conceito, segue a citação do livro Criação imperfeita, de Gleiser, que trata do incômodo

provocado pela assimetria:

A assimetria incomoda. Ela expõe medos profundos, alguns esquecidos há muito, suas

raízes estendendo-se às origens da fé monoteísta. Um mundo assimétrico não pode ser

obra de um Deus perfeito. O que Platão e Kleper diriam de um mundo que não reflete

em sua estrutura as simetrias perfeitas da geometria? Que Deus geômetra seria esse? Se

o mundo é assimétrico, Deus não pode estar presente. E se Deus não existe, estamos sós,

sem uma força superior para nos ajudar a enfrentar nossos problemas, a lidar com nossos

predadores e inimigos, como nossas escolhas e nossa dor. Um mundo assimétrico é

atemorizante pois nos força a ser responsáveis pelos nossos atos. (2010, p. 153)

Com isso, pode-se relacionar Richard/Robert à ideia do “médico-monstro” em que,

livrando-se de um contexto particular, cotidiano e universal assimétrico, procuram, na criação de

um corpo belo, perfeito e simétrico, um estado mais cômodo e tranquilo que se revela o/no objeto

de desejo, nem que para isso cometam atrocidades contra o próximo. Tratando da relação entre

sujeito e objeto na narrativa, Bal disserta que

El objeto no es siempre una persona. El sujeto puede aspirar también a alcanzar cierto

estado. En Rojo y negro de Stendhal, por ejemplo, se puede detectar el esquema

siguiente: Julien – quiere amasar – poder; o Julien – aspira a – llegar a ser un hombre

poderoso. Otros objetos de intención que se encuentran en las fábulas son: riquezas,

posesiones, sabiduría, amor, felicidad, un lugar en el cielo, un lecho donde morir, un

aumento de sueldo, una sociedad justa, etc. (1) (2009, p. 35)

Buscando ocupar seu tempo, Vera vê, pela televisão, o programa National Geographic,

onde um leão mata sua presa, depois de torturá-la; ela também se interessa pela ioga e ganha,

com essa prática, um autocontrole, um equilíbrio que será usado para se livrar do cativeiro. Vera

ainda escreve, na parede, frases repetidas que a colocam num âmbito de controle, concentração e

foco.

Outra metáfora da tortura pode ser percebida no momento em que Robert controla o

crescimento de uma árvore. Ele consegue impedir o desenvolvimento normal da planta,

deixando-a miniaturizada através da técnica de poda do bonsai. Essa cena do filme pode ser

entendida como uma analogia à situação de Vera.

No livro, Ève coloca na vitrola uma canção que traz acordes de piano; no filme não há

essa passagem, porém, em algumas cenas, há notas de piano que vão ganhando proporção e

contribuindo com o clima de suspense. Elas estão como pano de fundo nas cenas iniciais, por

exemplo. No livro, as frases curtas contribuem para a aceleração da narrativa, dando ritmo ao

texto. Martin afirma que “[...] o movimento é certamente o caráter mais específico e mais

importante da imagem fílmica.” (2003, p. 22) Por outro viés, mas, de certa forma, completando a

ideia de movimento, D‟Onofrio disserta que “[...] a narrativa pode ser considerada como uma

seqüência de situações ou de relações de estado, sendo a passagem de uma para outra

determinada por uma transformação realizada pelo fazer das personagens.” (2007, p. 66) Nesse

sentido, na literatura e no cinema há um movimento que é análogo e provocado pelas sequências

dos fatos relatados e das fotografias, respectivamente, ocasionando o ritmo em ambas as

linguagens. Em A pele que habito, o movimento das fotografias recebe ajuda do som ritmado da

música de fundo. Segundo Hamburger, “Não é pela imagem fotográfica como tal que o filme é

comparável à literatura, mas é a imagem fotográfica móvel que possibilitou isso.” (1986, p. 157).

Além de ouvir a canção “The man I love” na vitrola, Ève pinta Richard travestido de

mulher:

Maquiou-se, depois tirou do cavalete de pintura do estojo, espalhou as tintas, os pincéis

e voltou a trabalhar na tela já esboçada. Tratava-se de um retrato de Richard, pesadão e

grosseiro. Havia-o representado sentado num banquinho alto de bar, as coxas afastadas,

travestido de mulher, piteira nos lábios, num vestido cor-de-rosa, as pernas ataviadas

com ligas e meias pretas; sapatos de salto alto apertavam-lhe os pés... (2011, p. 60)

Já Vera constrói bonecos com os retalhos de tecido que usa pegado à sua nova pele. A

expressão geral dos bonecos parece de sofrimento, de angústia. Tal ação talvez aluda ao que

Robert lhe faz, isto é, constrói uma nova pele para ela. Tais bonecos correspondem ao espelho de

sua situação atual. Vale salientar que Vicente, na loja de sua mãe, vestia o manequim para a

exposição na vitrine. Percebe-se que ele sentia prazer quando apalpava carinhosamente os seios

desse boneco, no instante de ajeitar o vestido. Outra passagem interessante é quando um homem,

abandonado pela esposa, pergunta à mãe de Vicente se ele pode deixar, na loja, a roupa de sua

mulher para serem vendidas. Na verdade, parece que ele quer desfazer da segunda pele dessa

mulher e, com isso, das lembranças. As roupas sejam talvez a extensão dessa pessoa.

Voltando à análise para outro viés da tortura e do controle, tanto no livro como no filme

há a presença do olhar panóptico. Baseada na figura arquitetural de uma torre projetada por

Bentham, a ideia de panóptico, descrita por Foucault,

[...] funciona como uma espécie de laboratório de poder. Graças a seus mecanismos de

observação, ganha em eficácia e em capacidade de penetração no comportamento dos

homens: um aumento de saber vem se implantar em todas as frentes do poder,

descobrindo objetos que devem ser conhecidos em todas as superfícies onde este se

exerça. (2010, p. 194)

Vera é vigiada por câmeras (olhar panóptico/olhar de controle) e não pode ver os outros

do lado de fora do quarto onde habita, pois está presa e é, na verdade, dominada e transformada

naquilo que Robert deseja. O interfone é o meio de comunicação entre ela e Marilia.

No entanto, Eva percebe, pelas atitudes de Robert, que está sendo desejada por ele.

Começa então a fazer, racionalmente, seu próprio jogo, tentando seduzi-lo, pois percebe que ele

pode se render aos seus encantos. No livro, Ève, ao invés de se rebelar contra o seu torturador,

fica com ele no final da história. Pode-se constatar isso nas últimas frases do livro: “Ela sentou-se

perto dele e pegou sua mão. Deixou a cabeça repousar sobre seu ombro. Baixinho sussurrou: -

Venha... Não podemos largar o cadáver aqui.” (2011, p. 158) No filme, ao contrário de Ève, Vera

carrega consigo Vicente, seu gênero.

A violência contra o corpo pode ser verificada também nos experimentos científicos que

Robert realiza. Praticando violência contra o corpo de Eva e de animais, ele consegue alcançar,

com sucesso, os resultados almejados. No afã de aprimorar sua técnica, Robert faz experimentos

com sangue extraído de animal ainda vivo. (Aqui é outra crueldade/tortura que ocorre no filme.

Além da mutilação do corpo de Eva, há também a tortura de outros corpos, como os dos

animais).

Meticulosamente, Robert vai implantando nova pele em Vera. Ele constrói uma pele

resistente ao fogo e às picadas de insetos através da transgênese. A técnica que ele usa

(transferência de uma célula de animal para o ser humano) é proibida. Robert não obedece às

normas éticas, mas consegue propagar suas ideias de transplante de rosto e de pele para uma

seleta plateia de médicos cientistas.

Neste filme, as cores são mais sóbrias, não tão explosivas, “emocionais”, como em outros

filmes de Almodóvar. Pode-se relacionar este fato ao raciocínio meticuloso de Ledgard, um

raciocínio científico e também perverso, calculista e frio. No livro, nota-se toda a estratégia de

um jogo entre os dois personagens (Ève e Richard), um jogo onde há o caçador e a caça, o

ganhador e o perdedor: “Tarântula volta e meia jogava xadrez com você. Refletia longamente

antes de arriscar uma jogada que você nunca esperava. Às vezes, improvisava ataques sem se

preocupar em proteger seu jogo, impulsivo, mas infalível.” (p. 82, grifo do autor) Este narrador

parece ser Alex/Ève, relatando sua vida a ela mesma ou a um possível leitor. Há outras passagens

em que esta mesma voz revela os acontecimentos, parecendo dialogar com o Outro.

Após a concretização de sua experiência científica e a construção de Vera, Ledgard é

vencido pela razão de Vera que lhe sugere manter um convívio social como todas as outras

pessoas. Dessa forma, usando as artimanhas de sedução, ela consegue convencê-lo disso, fazendo

com que ele se apaixone cada vez mais por ela. Por sua vez, Ève também parece estabelecer um

jogo com Richard, provocando-o eroticamente: “Estava resplandecente, num vestido decotado de

lamê preto; um colar de pérolas enfeitava seu pescoço. Debruçou-se para ele e ele reconheceu em

sua pele lívida o cheiro do perfume que ele acabava de lhe dar.” (JONQUET, 2011, p. 44). Os

desenhos que Vera faz, na parede de seu quarto, parecem não provocar em Robert dúvidas com

relação ao sentimento de paixão que ela diz sentir por ele. Nesse jogo, Marilia é a única a

perceber que Vera pode acabar com a vida de seu filho, mas seus conselhos, direcionados a

Robert, não fazem com que ele deixe de se render aos encantos de sua presa. Chega então o

momento da criatura se rebelar contra o seu criador. Robert tenta colocar Vera no lugar de sua

mulher que morreu. A partir do instante em que a razão é deixada de lado a favor da emoção,

Ledgard é derrotado, vencido pelo raciocínio de Eva que, munida de uma arma, o liquida. No

filme, o presente parece ser uma consequência do passado: Robert mutilou Vicente,

transformando-o em Vera, e isso gerou uma consequência que foi a sua paixão e morte. O mesmo

acontece com Marilia que abandona o filho: este se torna um foragido da justiça e acaba sendo

assassinado por Robert, seu irmão (aqui há uma referência bíblica que é a história de Caim e

Abel). Segundo Arendt:

A violência, sendo instrumental por natureza, é racional à medida que é eficaz em

alcançar o fim que deve justificá-la. E posto que, quando agimos, nunca sabemos com

certeza quais serão as consequências finais do que estamos fazendo, a violência só pode

permanecer racional se almeja objetivos a curto prazo. (2011, p. 99)

Nesse sentido, a violência contra Robert e sua mãe, praticada por Vera, é racional, pois,

de certa maneira, foi pensada, calculada para que ela chegasse ao objetivo (a liberdade).

No jogo de emoção versus razão, Almodóvar abandona o carro vermelho, sempre presente

em seus filmes anteriores (Kika, La flor de mi secreto, Volver, entre outros), pelo branco. Além

disso, há a presença de tons cinza pelos cenários. O vermelho, o verde e o alaranjado parecem

dissolvidos nas cenas. Tal fato resvala também na pouca emoção dos personagens que, devido às

circunstâncias em que se encontram, estão mais atentos e calculistas.

Fig. 2 - Laboratório de Ledgard

Tais características estéticas revelam talvez a racionalidade imperante de todo o filme que

condiz com as atitudes dos personagens. Nesse sentido, a estética se volta para um estilo mais

clean, para um cenário onde há vidros e metais. Para Martin,

[...] a cor pode ter um eminente valor psicológico e dramático. [...] sua utilização bem

compreendida pode ser não apenas uma fotocópia do real exterior, mas preencher

igualmente uma função expressiva e metafórica, da mesma forma que o preto-e-branco é

capaz de traduzir e dramatizar a luz. (2003, p. 71)

Em um dos cômodos da casa, nota-se que uma das telas, de Tiziano Vecellio (1488/90 –

1576), traz Vênus (3), a deusa da beleza. Nessa tela, obviamente, há um trabalho estético e

racional do pintor. Trabalho esse que Dr. Robert, como cirurgião plástico, realiza em Vera. É

clara a aproximação que ocorre entre a figura de Vênus com a imagem de Vera. Portando um

tecido da cor da pele, que sugere sua nudez, Vera posiciona-se na cama, acercando-se à posição

da figura de Vênus no quadro.

Fig. 3 – imagem que se aproxima à tela de Vecellio

No entanto, a nudez legítima de Vera está escondida debaixo de uma pele que ela habita.

Tal fato talvez se remeta à aparência, à condição de Eva não ser Eva, mas, sim, Vicente. O seu

gênero não corresponde, obviamente, ao corpo físico, modificado, arbitrariamente, por Robert.

Ele passa pela figura de Vênus, exposta na parede, e não a contempla, pois seus olhos se dirigem

para o vídeo, para o corpo e os olhos de Eva. Ele parece ter esquecido, devido à beleza de sua

criatura, que ela é Vicente.

Tal cena é mostrada ao som dos acordes de violino que parecem delinear cada canto,

desenho e forma do cenário. No quarto de Robert, a tela da televisão traz Vera em tamanho

grande. Ela é focada, por vezes, nua e ao vivo, diretamente do outro quarto. Para ele, tal imagem

talvez seja uma obra de arte, ou seja, a sua arte.

Fig. 4 - Ledgard contemplando, em close-up,

o rosto de Eva

Para terminar, este item do artigo, faz-se necessário colocar aqui que a tortura praticada

por Richard, em sua vítima (Ève), envolve os cinco sentidos humanos, como a audição, o tato, o

olfato, o paladar e a visão. Para efeito de ilustração, seguem elencados alguns momentos em que

esse fato ocorre. Com relação à visão, tem-se a seguinte passagem: “___Eu lhe suplico, não

demore mais, sua vagabunda! Ève teve um sobressalto violento quando as duas caixas de som

300 watts embutidas nas divisórias da alcova repercutiram poderosamente o berro de Richard.”

(JONQUET, 2011, p. 9) Richard, quando queria sair com Ève, ou quando se sentia provocado por

ela, gritava através da caixa de som, instalada no quarto da vítima. A tortura que envolve o tato

pode ser percebida neste trecho: “_Havia um gosto de terra molhada na sua boca, toda aquela

lama pegajosa embaixo de você, aquele contato tépido e suave contra seu torso – sua camisa

estava rasgada -, cheiros de musgo, de lenha apodrecida.” (idem, p. 32, grifo do autor) Esta

passagem se refere ao tempo em que Vincent ficou preso num esconderijo fora da casa de

Ledgard. Por sua vez, o olfato também está presente no momento em que Richard coloca um

“pano fedorento” no rosto de Vincent: “O joelho dele pesava cada vez mais nas suas costas. Você

gritou, mas ele enfiou um pano fedorento na sua cara.” (idem, p. 33, grifo do autor) Uma das

passagens que indica a tortura pelo paladar é esta: “Depois da sede, veio a fome. À secura da sua

garganta, àquelas pedras de arestas salientes que lhe rasgavam a boca, vieram juntar-se dores

profundas, difusas, em sua barriga; mãos revolvendo seu estômago, enchendo-o de fel e

cãibra...” (idem, p. 48, grifo do autor) Richard, no início da prisão de Vincent, deixou este passar

sede e fome, domesticando-o como se fosse um animal. Já a tortura pela visão pode ser

constatada neste outro trecho: “Ele largou a lanterna e, agarrando-o pelos cabelos, virou seu rosto

para o facho de luz amarela. Você não enxergava nada.” (idem, p. 33) Passando parte do tempo

num lugar sombrio, com pouca luz, Vicente é torturado quando Richard, de repente, lhe lança no

rosto um facho de luz que agride, de alguma forma, sua visão.

Neste artigo, foram analisadas as categorias de adaptação fílmica, assim como algumas

passagens, presentes tanto no romance como no filme, que tratam de temas como o mal, a

violência e as torturas do corpo e da mente sofridas pelos protagonistas. Dessa forma, o estudo

comparativo, entre essas obras, aponta alguns possíveis resultados, tais como: a) no romance não

há a construção de uma pele resistente. No entanto, no filme Robert constrói uma pele para

Vicente que resiste aos cortes e ao fogo. Talvez a pele represente toda a repressão e controle de

uma sociedade sobre o sujeito. Parece que não só Vicente é “emoldurado”, preso, por uma pele,

mas os indivíduos que habitam sob uma determinada cultura e sofrem com isso. Em suma, cada

pessoa, guardada as devidas proporções, vive sob o olhar panóptico de uma sociedade de controle

que tudo vigia. b) Robert pode representar, por um ângulo, também, o regime antidemocrático

franquista, por exemplo. Almodóvar, ao inspirar-se no romance de Jonquet, teve que adaptá-lo

para a cultura espanhola. Parece haver, nas entrelinhas dessa obra, uma volta ao passado, um

volta ao momento histórico antidemocrático espanhol. Robert talvez seja a metáfora de um

sistema antidemocrático, pois em sua personalidade está o desejo pela tortura e pelo controle de

amigos e inimigos. c) Robert parece ter dupla personalidade quando, diante do público, se

apresenta como um médico empenhado em fazer sua pesquisa para o bem da humanidade e, no

interior de sua casa, aparece o ser desumano, controlador, um indivíduo que tortura e escraviza

um homem, transformando-o em outro, em um homem transexual. Tanto Robert, como Richard,

cometem a pior das violências que é a mudança forçada, arbitrária de sexo do corpo de um ser

humano, violando a individualidade do sujeito e satisfazendo-se com isso.

Por fim, a leitura comparativa entre Tarântula e A pele que habito talvez possa esclarecer

algumas passagens das obras, assim como contribuir com os estudos comparados entre literatura

e cinema.

Notas

* Professor na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS- Dourados) e doutorando em Letras na Universidade do Rio

Grande do Sul (UFRGS).

(1)“O objeto não é sempre uma pessoa. O sujeito pode aspirar também a alcançar certo estado. Em Vermelho e negro, de

Stendhal, por exemplo, se pode detectar o seguinte esquema: Julien – quer maquinar – poder; ou Julien – aspira a – chegar a ser

um homem poderoso. Outros objetos de intenção que se encontram nas fábulas são: riquezas, posses, sabedoria, amor, felicidade,

um lugar no céu, uma cama onde morrer, um aumento de salário, uma sociedade justa, etc.” (tradução minha)

(2) Interpretada por vários cantores, entre eles Billie Holiday, Ella Fitzgerald e Caetano Veloso, a canção “The Man I Love”

(1927) foi escrita por Ira Gershwin e musicada por George Gershwin.

(3) A tela que aparece no filme é “Vénus avec Cupidon et un organiste” (1550-1552), de Tiziano Vecellio.

BIBLIOGRAFIA

A pele que habito. Direção: Pedro Almodóvar. Produtores: Agustín Almodóvar e Esther García.

Espanha. 120 min. Color. Ano: 2011.

ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Trad.: André Duarte. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2011.

BAL, Mieke. Teoría de la narrativa: una introducción a la narratología. Madrid: Cátedra, 2009.

BETTON, Gérard. Estética do cinema. Trad.: Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes,

1987.

BRITO, João Batista de. Literatura no cinema. São Paulo: Unimarco, 2006.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Trad.: Renato

Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

D'ONOFRIO, Salvatore. Forma e sentido do texto literário. São Paulo: Ática, 2007.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad.: Raquel Ramalhete. Petrópolis,

RJ: Vozes, 2010.

GLEISER, Marcelo. Criação imperfeita. Rio de Janeiro: Record, 2010.

HAMBURGER, Käte. A lógica da criação literária. Trad.: Margot P. Malnic. São Paulo:

Perspectiva, 1986.

JONQUET, Thierry. Tarântula. Trad.: André Telles. Rio de Janeiro: Record, 2011.

MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Trad.: Paulo Neves. São Paulo: Brasiliense,

2003.

QUINET, Antonio. Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

2004.

ROSENFIELD, Denis Lerrer. Retratos do mal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.