14

LITERATURA FANTÁSTICA: O JOGO ENTRE DOIS MUNDOS · literatura é linguagem descontextualizada, cortada de outras funções e propósitos, é também, ela própria, um contexto, que

  • Upload
    others

  • View
    1

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

LITERATURA FANTÁSTICA: O JOGO ENTRE DOIS MUNDOS:

o estímulo à leitura literária a partir de contos fantásticos

Professora PDE: Regina Maria Fernandes Stuani1

Professora Orientadora: Maria Carolina de Godoy2

Resumo

Este trabalho empenhou-se em encontrar um elo entre o interesse do jovem estudante e a literatura para que a tarefa de ler não seja encarada como enfadonha, sem sentido e cansativa. Com o objetivo de formar leitor de textos literários para a melhoria da qualidade do ensino nas escolas públicas do Paraná, a propositura foi com contos fantásticos: “As formigas” e “A caçada” de Lygia Fagundes Telles, “Laura” de Saki e “O que se enterrou” de Miguel de Unamuno, textos envolventes que levam o leitor a posicionar-se diante do lido. Para a conceituação do fantástico acatamos a teoria de Todovov (2010), embora Lovecraft (2007), Selma Calasans (1988), José Paulo Paes (1985) e outros também se fizessem presentes nos estudos realizados. Reunindo considerações de Kleiman (2011), Richard Bamberger (1977) e Geraldi (2002) entre outros, corporificaram-se reflexões sobre a formação do leitor literário. O problema mobilizador do estudo foi: a partir do contexto em que estão inseridos, os alunos poderão apreciar a literatura fantástica? Será possível ver algum sinal de leitura espontânea de outros textos literários, além dos apresentados? Os sujeitos da pesquisa foram os alunos da 1ª. Série do Ensino Médio do Colégio Estadual Rosa Delúcia Calsavara de Cambira que se mostraram propensos a ler mais literatura fantástica, abstendo-se, no entanto, de ampliar o leque de interesse de leitura para outras temáticas.

Palavras-chave: Literatura. Formação. Leitor Literário. Contos Fantásticos.

Introdução

Um rol de argumentos, tanto no âmbito educacional como fora dele, vem

endoçando a preocupação e a necessidade de se formar leitores com interesses

especiais de leitura. Objetivou-se formar leitores de textos literários a partir de contos

fantásticos, levando os alunos do 1º ano do Ensino Médio a lerem para ampliar sua

concepção de mundo e de si mesmo e a valorizar a leitura como fonte de prazer.

A opção pelo texto literário foi resultado da observação e da experiência de

muitos anos de sala de aula em escola pública. É nela onde se verifica ser preciso

maximizar a bagagem cultural do estudante, não lhe negando o direito à leitura e,

por conseguinte, à cultura. Coube ainda, perpassar pelo conceito de literatura

emoldurado por Jonathan Culler (1999) e de literário e não literário em Lajolo (2005).

1 Professora de Língua Portuguesa do Colégio Estadual Rosa Delúcia Calsavara – Ensino Fundamental e

Médio. Cambira - Paraná 2 Professora Adjunta da Universidade Estadual de Londrina. Londrina – Paraná. Pós-doutora em Ciências

Sociais Aplicadas.

Os textos reunidos para o corpus pertencem ao gênero discursivo, narrativa

fantástica. Os contos foram: “As formigas” e “A caçada” de Lygia Fagundes Telles,

“Laura” de Saki e “O que se enterrou” de Miguel de Unamuno. Cruzam-se nestes,

muitas das características fundamentadas em Todorov. O entendimento de gênero

foi o mesmo indicado nas Diretrizes Curriculares da Educação Básica – Língua

Portuguesa (2008, p. 52) apoiado na teoria de Bakhtin.

A Intervenção Pedagógica foi aplicada por meio de uma unidade didática ou

sequência de aprendizagem como nomeia Zabala (2006, p. 179). Lajolo (2005, p.

93) orienta-nos que um bom trabalho com leitura literária deverá ser fomentado por

atividades suficientemente significativas.

A formação do leitor de texto literário

Este estudo do PDE desenvolveu-se através do trabalho com contos

fantásticos na sua potencialidade de envolver, desafiar e falar alto às expectativas

dos adolescentes.

Pesquisa realizada pelo Instituto Pró-Livro (IPL) no período de onze de junho a

três de julho de 2011, intitulada Retratos da Leitura no Brasil, em sua terceira

edição, indica que a população brasileira lê pouco e assim são os alunos da nossa

escola. Ler pode influenciar muito positivamente no avanço intelectual do aluno e da

aluna. Maria do Rosário M. Magnani diz:

A falta de hábito de leitura tem sido apontada como uma das causas do fracasso escolar do aluno e, em consequência do seu fracasso enquanto cidadão. Subjacente a essa ideia não só se encontra a crença de que a escola forma para a vida e que a leitura, especialmente a da literatura, tem grande parcela de responsabilidade nessa formação, como também se evidencia a vinculação entre literatura e escola, o que se torna mais problemático quando se pensa na instituição escolar como um espaço de conservação e na literatura como a possibilidade da contradição e do movimento e, portanto, como agente de transformação. (MAGNANI, 2001, p.11)

A direção do trabalho permeou a reflexão sobre a formação do leitor literário.

Para Kleiman:

[...] leitura implica uma atividade de procura por parte do leitor, no seu passado, de lembranças e conhecimentos, daqueles que são relevantes para a compreensão de um texto que fornece pistas e sugere caminhos, mas que certamente não explicita tudo o que seria possível explicitar. (KLEIMAN, 2011, p. 27)

Justificou-se o uso da ficção fantástica para o incentivo à leitura literária porque

segundo Lovecraft:

O escritor leva o leitor ao pavor. Por mais assustadoras que possam ser, as histórias terríveis dão satisfação, no sentido amplo do termo. A identificação com os personagens proporciona vivências por delegação, sensações e calafrios, e o suspense pode ser tensão ou tesão, o corpo em suspensão, um doloroso prazer. Isto explica a adesão a este tipo de leitura, permeada de gozo. (LOVRECRAFT, 2008, p.11).

Richard Bamberger (1977, p. 34) diz que “o jovem leitor não lê porque

reconheça a importância da leitura, mas por várias motivações e interesses que

correspondam a sua personalidade e ao seu desenvolvimento intelectual”. Na

prática, vemos esta afirmação comprovada. Se o aluno considerar a leitura difícil ou

se o tema não estiver ligado aos seus interesses pessoais naquele momento, ele

facilmente optará por outra atividade. Herculano-Houzel (2005, p. 99) explica que o

adolescente tem por característica própria e marcante tentar fugir do tédio, portanto,

para a leitura ocorrer, é necessário um tema instigante e avesso ao mundo

monótono de todos os dias. A leitura deve ser uma experiência intensa, ou seja,

deve despertar grandes emoções levando o leitor a driblar os seus conflitos internos.

“A leitura literária democratiza o ser humano porque mostra o homem e a

sociedade em sua diversidade e complexidade, e assim nos torna mais

compreensivos, mais tolerantes [...]”. (SOARES apud PACHECO, 2008, p.31).

De acordo com as Diretrizes Curriculares para o Ensino de Língua Portuguesa

do Estado do Paraná, um dos objetivos do ensino-aprendizagem de Língua

Portuguesa é aprofundar, por meio da leitura de textos literários, a capacidade de

pensamento crítico e a sensibilidade estética, permitindo a expansão lúdica da

oralidade, da leitura e da escrita. Neste sentido, foi ratificada a relevância da

formação e aperfeiçoamento do leitor em textos literários.

Os textos reunidos para o corpus pertenciam ao gênero discursivo: narrativa

fantástica. Bakhtin define gênero discursivo como sendo os tipos relativamente

estáveis de enunciados. E para quem as manifestações comunicativas mediante a

língua não acontecem com elementos linguísticos isolados, elas se dão, como

discurso. (DCE LÍNGUA PORTUGUESA, 2008, p. 52)

Como a proposta converge para o aprimoramento do leitor em textos

literários, coube avistar a diferença entre o literário e não literário. Culler julga que:

[...] a distinção não parece metodologicamente crucial. [...] Isso não significa que todos os textos são de algum modo iguais: alguns textos são

considerados mais ricos, mais vigorosos, mais exemplares, mais contestadores, mais centrais, por uma razão ou outra. (CULLER,1999, p. 26-47).

Ao longo de seu artigo O que é literatura e tem ela importância? Jonathan

Culler sugere que da literatura também se pode dizer:

[...] quando a linguagem é removida de outros contextos, destacada de outros propósitos, ela pode ser interpretada como literatura (embora deva possuir algumas qualidades que a tornam sensível a tal interpretação). Se a literatura é linguagem descontextualizada, cortada de outras funções e propósitos, é também, ela própria, um contexto, que promove ou suscita tipos especiais de atenção. Por exemplo, os leitores atentam para potenciais complexidades e procuram sentidos implícitos, sem supor, digamos, que a elocução está ordenando que façam algo. Descrever a “literatura” seria analisar um conjunto de suposições e operações interpretativas que os leitores podem colocar em ação em tais textos. (CULLER ,1999, p. 26-47).

O estímulo à leitura literária a partir de contos fantásticos

Tem havido extensa divulgação da literatura fantástica, seja pela interação na

internet ou por outros meios de comunicação de massa. O sobrenatural, o nefasto, a

imortalidade, as forças ocultas, enfim, os mistérios da vida e da morte intervêm no

imaginário das pessoas. Tais eventos vêm aparentemente influenciando o gosto e

opção por este tipo de literatura. O mais forte do texto fantástico é o adentramento à

emoção do leitor causando medo, hesitação, escolhas:

“As histórias de arrepiar constituem uma parcela importante do imaginário coletivo. Transmitidas oralmente ou impressas. São a prova da fruição mútua entre narradores e público, por séculos a fio.” (LOVRECRAFT, 2008, p.10).

O aluno tem estado num contexto estimulante de ênfase ao fantástico através

de livros, filmes, jogos eletrônicos. Geraldi defende com singularidade:

“[...] as atitudes produtivas na leitura e que fazem da leitura uma produção de sentidos pela mobilização dos „fios‟ dos textos e de nossos próprios „fios‟ podem ser recuperadas de nossa história de leituras externas à escola”. (GERALDI, 2002, p.171)

Em se tratando da formação do leitor literário, a direção da pesquisa foi: a

partir do contexto em que estão inseridos, os alunos poderão apreciar a literatura

fantástica? Será possível ver algum sinal de leitura espontânea de outros textos

literários, além dos apresentados?

Magda Soares (2008, p. 31) procura diferenciar a leitura com objetivo

pragmático, ou seja, ler para se instruir, ler para se informar, da leitura com objetivo

“gratuito”: ler por prazer, ler como lazer. Seria bom e natural que a leitura literária se

desse gratuitamente e sem obrigações avaliativas. Em seu livro Como um romance

Daniel Pennac faz a defesa da importância de os adultos, que circundam o leitor em

formação:

[...] se recusarem a transformar em obrigação aquilo que era prazer, entretendo esse prazer até que ele se faça um dever, fundindo esse dever na gratuidade de toda aprendizagem cultural, e fazendo com que encontrem, eles mesmos, o prazer nessa gratuidade. (PENNAC, 1993, p.55)

Culler (1999, p. 26-47) comenta a respeito da não praticidade da leitura de

literatura: “[...] considerar um texto como literatura é indagar sobre a contribuição de

suas partes para o efeito do todo, mas não considerar a obra como sendo

principalmente destinada a atingir algum fim, tal como nos informar ou persuadir”.

A leitura literária acontece quando há o entendimento da importância de se

realizar um trabalho empenhado e contínuo com textos literários:

“[...] por desencadear um processo de democratização do saber e maior acesso aos bens culturais, a escola é um elemento de transformação que não pode ser negligenciado, e este fator relaciona-se especialmente com a leitura...” (ZILBERMAN,1982, p.15)

Devido ao compromisso de dar conta de vários gêneros entre literário e não

literário e como o primeiro se torna mais escasso no cotidiano do aluno, o texto

literário acaba por apresentar falsa impressão de maior complexidade no trabalho de

sala de aula, levando a escola a preferir gêneros que circulam mais abundantemente

a realidade dos estudantes.

As teorias que buscam definir o texto literário influenciam no procedimento de

ensino de leitura na escola. Coube, portanto, fazer uma discussão a respeito de

literatura, a fim de que o projeto não continuasse a repetir uma metodologia

distanciada da efetivação de transformar o aluno em leitor de livros literários. Essa

preocupação é manifestada por Lajolo (2005, p. 92), para a autora, determinar o que

vem a ser texto literário ou não literário é inseguro, pois os pesquisadores que o

fazem têm no corpus selecionado as respostas para perguntas metodológica e

previamente elaboradas:

Qualquer esforço de teorização da literatura corre, assim, sérios riscos: todas as teorias estão fadadas a dar certo, isto é, encontrarão sempre no texto aquilo que nele vão buscar, uma vez os textos de que se ocupam foram eleitos como seu objeto exatamente por manifestarem os traços que, através de procedimentos analíticos dela derivados, a teoria (por tê-los formulado) está apta a reconhecer. (LAJOLO, 2005, p.89)

Ler para ampliar a concepção de mundo e de si mesmo é um direito a ser

garantido aos alunos em aulas que favorecem o contato com literatura:

A literatura, como qualquer outra obra de arte, oferece a possibilidade, dentro de uma relação dialógica, de cultivar espaços constantes de recriação e reformulação interior a partir do confronto autor-obra-interlocutor. Partindo desse estado de recriação interior, de reformulação da subjetividade, que se dá sempre na interação eu-outro, é possível transpor as formas de ação imediatas e buscar níveis mais profundos e consistentes de atuação na coletividade. (PACHECO, 2008, p.214)

Contemporâneo ou clássico o conto fantástico é vertente literária que vem ao

longo do tempo seduzindo leitores, pois a característica marcante desse gênero é

facultar ao leitor a reflexão acerca da realidade e da irrealidade. Para José Paulo

Paes, o fantástico tem estado em voga em parte por sua função terapêutica de

propiciar ao leitor um meio de escape a uma realidade cada vez mais codificada e

limitadora. Na literatura fantástica o real permeia o irreal porque no decorrer de uma

narração, que retrata ficcionalmente a realidade do normal, do cotidiano, do

esperado, haverá a vinculação do natural ao sobrenatural. Nesta fruição, quando a

história parece trilhar os dois paralelos, surge um elemento causador de espanto

que funde estes mundos e o leitor põe-se em dúvida quanto ao real e ao

sobrenatural:

É no mundo da realidade e da normalidade que vai ocorrer de repente um fato inteiramente oposto às leis do real e às convenções do normal. Esse fato absurdo que põe o mundo de cabeça para baixo, numa „súbita inversão de 180 graus‟, é o fantástico, fonte de espanto, quando não de horror. (PAES, 1985, p.185)

Muitas tentativas de conceituação do fantástico foram formuladas ao longo

do tempo, acatou-se a definição de Todorov, até mesmo porque os textos escolhidos

para o desenvolvimento do projeto se encaixaram perfeitamente em sua defesa. De

acordo com Todorov (1970, p. 43), o fantástico dura apenas o tempo de uma

hesitação: hesitação comum ao leitor e à personagem, que devem decidir se aquilo

que vivem pertence à realidade ou à irrealidade.

A obra Introdução à Literatura Fantástica de Todorov fornece um tributo

importante para a definição do fantástico. No conto fantástico há o estabelecimento

do irreal, mas não isolado do real. Ambos se fundem e confundem. O importante é

fazer uma conexão coerente entre o natural e o sobrenatural. Não há necessidade

de explicação para o sobrenatural, mas em dado momento, um elemento (objeto,

som, cheiro) levará o leitor, e em alguns casos até o narrador, a titubear entre “afinal

aconteceu ou não?”. Como afirma Tzvetan Todorov (2010, p. 30) "a ambiguidade

subsiste até o final da aventura: realidade ou sonho? Verdade ou ficção?”. Outra

ponderação de Todorov mostrou que enquanto o leitor hesitar haverá o fantástico.

Se acaso o leitor buscar plausibilidade no lido e por fim encontrá-la, o texto deixará

de ser fantástico e entrará no campo do estranho. E ainda, se o leitor desistir de

explicações e acreditar que a história ficou somente na ordem do imaginário, então

este texto não será nem fantástico, nem estranho, será, isto sim, o maravilhoso.

TODOROV assim esclarece:

estranho puro fantástico-estranho

fantástico-maravilhoso

maravilhoso puro

O fantástico puro seria representado, no desenho, pela linha do meio, aquela que separa o fantástico-estranho do fantástico maravilhoso; esta linha corresponde perfeitamente à natureza do fantástico, fronteira entre dois domínios vizinhos. [...] fantástico estranho. Acontecimentos sobrenaturais ao longo de toda a história, no fim recebem uma explicação racional. [...] fantástico-maravilhoso, ou em outros termos, na classe das narrativas que se apresentam como fantásticas e que terminam por uma aceitação do sobrenatural. (TODOROV, 2010. p.50-51, p. 58)

Para o fantástico, o ideal seria que o leitor buscasse ou encontrasse

explicação alguma, pois a característica mais marcante e diferenciadora do

fantástico de outros gêneros, como o maravilhoso e o realismo fantástico, está

exatamente na dúvida que permanece.

Em sua obra O Horror Sobrenatural em Literatura (2007) H. P. Lovecraft situa

os textos apresentados como literatura fantástica, porém, diferenciam-se da vertente

todoroviana da qual este projeto apropriou-se. O gótico, o horror, o macabro, não

são bem os assuntos desenvolvidos nos contos do corpus escolhido. Os enredos

são mais sutis, em que uma linha muito tênue separa o natural do sobrenatural. O

medo, nestes contos, é uma sensação que não chega ao pavor, ao horror, ao

macabro.

O corpus que Lovecraft reúne, na obra acima citada, traz em suas histórias o

demoníaco, o monstruoso, os mortos vivos, o medonho, o repulsivo, as aberrações,

o hediondo. Lovecraft insere estas histórias no fantástico e não é possível negá-las,

mas o fantástico tratado aproximou-se muito mais da visão de Todorov.

Oscar Cesarotto, em seu artigo “A Estética do Medo” pondera:

Lovecraft escreveu muito, e publicou bastante. A quase totalidade da sua produção gira em torno de cosmogonia e mitologias supra-humanas,

habitadas por seres monstruosos e que alguma vez foram deuses dominadores, há milênios ocultos e em letargo, esperando pelo despertar dos seus poderes maléficos. (CESAROTTO apud LOVRECRAFT, 2007, p.9)

Todorov (2010, p. 30) interpreta amenamente o juízo de fantástico ao dizer:

“Somos assim transportados ao âmago do fantástico. Num mundo que é exatamente

o nosso, aquele que conhecemos, sem diabos, sílfides nem vampiros, produz-se um

acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mesmo mundo familiar.”

Os personagens não são monstros ou assassinos sanguinários, são seres comuns,

cotidianos, não sendo o medo um sentimento que não deixa o leitor dormir de pavor,

mas pensativo a respeito das coisas do real e do além.

Ítalo Calvino (1998, p.110-111) narrou que ao organizar a sua antologia do

conto fantástico no século XIX viu “o fantástico brotar do cotidiano, um fantástico

interiorizado, mental, invisível”. Toda esta proximidade com situações da vida real é

passiva de promover o encontro entre texto literário e leitor em processo de

formação.

Na sala de aula

Ao instigar a leitura gratuita, propuseram-se vários contos fantásticos para

que a experiência com este tipo de texto fosse ampliada. Outros textos de diferentes

gêneros e linguagens como cinema, música, fotografia e imagem povoaram as

aulas.

Na introdução do livro Contos Fantásticos do Século XIX: o fantástico

visionário e o fantástico cotidiano, obra de sua organização, o autor Ítalo Calvino faz

uma alusão ao uso da imagem:

É como se o conto fantástico, mais que qualquer outro gênero narrativo, pretendesse "dar a ver", concretizando-se numa sequência de imagens e confiando sua força de comunicação ao poder de suscitar "figuras". (CALVINO, 2004, p. 6)

Esta não passou despercebida, pois ao planejar as estratégias de ação, além

dos textos literários, outros recursos foram evidenciados no projeto. Para leitura mais

apurada, os alunos procederam à observação da presença do fantástico na

literatura, no cinema, na TV e no saber popular.

Para uma experiência mais enriquecedora e indutiva de novas leituras, os

alunos compartilharam impressões e fizeram levantamento das características do

fantástico e de elementos que despertaram emoções tais como medo, dúvida,

estranhamento.

A unidade didática ou sequência de aprendizagem evoca organização,

planejamento e graduação de desafios que movimentam os estudantes,

impulsionando-os a serem protagonistas do próprio refletir. Zabala (2006, p.179)

define unidade de análise como sendo “o conjunto ordenado de atividades,

estruturadas e articuladas para a consecução de um objetivo educativo em relação a

um conteúdo concreto”.

Como o objetivo da unidade foi explorar a leitura gratuita e por puro prazer,

não se realizaram atividades explicitamente voltadas para a estrutura textual do

gênero e sim para o mundo das ideias e das características que o definiam como

fantástico. O registro escrito teve como fim a documentação do processo ensino-

aprendizagem, ou seja, do que foi verdadeiramente internalizado – o entrosamento

com a literatura.

A direção do processo ensino e aprendizagem, assim como a Unidade

Didática – estratégia – foram sustentadas no Construtivismo:

[...] aprender equivale a elaborar uma representação pessoal do conteúdo objeto de aprendizagem. Essa representação não se realiza em uma mente em branco, mas em alunos com conhecimentos que lhes servem para “enganchar” o novo conteúdo e lhes permitem atribuir-lhe algum grau de significado. O gancho ou vinculação não é automático, mas resulta de um processo ativo do aluno e da aluna, que lhes permitirá reorganizar e enriquecer o próprio conhecimento. (MAURI, 2006, p. 87)

Leitura dos contos

Nas narrativas analisadas ressaltou-se o narrador-personagem que tem

destacado prestígio no conto fantástico. Em seu livro O Fantástico, Selma Calasans

(1988, p. 44) reúne a maioria dos pesquisadores quem têm discorrido sobre o tema

e nos fala a respeito do narrador-personagem: “A maior parte das narrativas

fantásticas dos séculos XVIII e XIX tem um narrador-personagem, um eu que dirige

o enunciado, como testemunho”.

No conto “As formigas” de Lygia Fagundes Telles, o fantástico vai sendo

tecido quando duas estudantes acomodam-se num sótão pequeno e pobre de uma

pensão. Até então nada de incomum. A senhora locadora avisa sobre o esqueleto

de anão embaixo da cama. As moças observam que durante a noite o esqueleto

estava sendo montando por formigas. Após alguns percalços, as jovens fogem do

local. Para o leitor e a narradora paira a dúvida sobre o que aconteceria caso o

esqueleto fosse encaixado por completo.

Rompendo com toda lógica o conto de Miguel de Unamuno “O que se

enterrou” narra a história do deprimido Emílio. Requerido pelo amigo, o narrador,

passa a contar o porquê de tanta indisposição, Emílio relata que uma vez morrera e

ressuscitara, assim como Lázaro, mas num novo corpo que dele se desprendeu. O

texto faz investigações filosóficas sobre a verdade, a loucura e a realidade. Deixa o

leitor intrigado ao pensar na possibilidade de alguém morrer e ressurgiu num corpo

que é seu, porém totalmente inédito.

O texto “Laura” de Saki causou incômodo porque tocou em questões

profundas e polêmicas. É a história de Laura, uma jovem vingativa e inescrupulosa.

Após sua morte, já anunciada, ela reencarna em criaturas que atormentam a vida de

um casal. Permanece a dúvida sobre a possibilidade ou não do acontecimento.

Há um jogo entre dois mundos também no conto “A Caçada” de Lygia

Fagundes Telles em que o narrador personagem consome-se numa dúvida diante

de um tapete que parece chamá-lo para outra realidade. Um texto muito rico em

imagens e ações diretamente relacionadas ao estado de espírito da personagem.

Considerações Finais

Afinal, será possível ver algum sinal de leitura espontânea de outros textos

literários, além dos apresentados?

Pôde-se apurar que os alunos e alunas da 1ª. série do Ensino Médio

sentiram-se impulsionados para a leitura da literatura fantástica. Intensificou-se a

procura dos livros na biblioteca e também trouxeram livros de casa para apresentar

aos colegas. A biblioteca faz registro dos empréstimos de livros e este documento

deu bons subsídios para a coleta de dados, resultando na conclusão ora

apresentada.

Com relação à problemática, a resposta não é afirmativa. Aqueles alunos e

alunas já leitores ampliaram seu universo de interesse ao incluírem nele o texto

fantástico, no entanto, aqueles que realizavam leituras esporádicas quando não,

obrigatórias, interessaram-se apenas por literatura fantástica por ter sido

apresentada a eles de forma convidativa.

Concluiu-se que o interesse por ler aumentou, contudo não a ampliação da

atenção para outras temáticas.

Vale salientar a impossibilidade ou risco de se negligenciar o trabalho com o

texto literário, pois a literatura, além de todo o prazer que lhe cabe, traz em si várias

outras funções como afirma Carvalho:

O processo de leitura da literatura contribui para a formação do sujeito não só enquanto leitor, mas, sobretudo, como indivíduo historicamente situado, uma vez que a interação texto-leitor promove o diálogo entre o conjunto de normas literárias e sociais presentes tanto no texto literário quanto no imaginário infantil. (CARVALHO, 2004, p. 127)

Angela Kleiman considera:

“ensinar leitura... permite o estabelecimento de relações interpessoais muito ricas pelas possibilidades de crescimento e desenvolvimento do leitor, processo esse facilitado pela interação que se dá ou se pode criar em sala de aula.” (KLEIMAN, 2008, p. 19).

Tornou-se importante considerar a demanda por livros de Lygia Fagundes

Telles. A familiaridade com a autora mobilizou-os a ler seus textos, já que a biografia

e seus contos foram abordados meritoriamente na Unidade Didática.

Compreendeu-se que para alcançar o objetivo de formar leitores de textos

literários para a melhoria da qualidade do ensino nas escolas públicas do Paraná

abrange mostrar a literatura aos alunos como forma de encantamento e com o

planejamento de atividades voltadas para a gratuidade e o prazer de ler. Neste

sentido, concluiu-se ser viável e possível angariar leitores para o texto literário,

porém será aconselhável diversificar a temática e fazer um trabalho consistente e

bem planejado com cada uma delas contempladas no texto literário.

Referências

BAMBERGER, Richard. Como incentivar o hábito da leitura. Tradução de Octávio Mendes Cajado. São Paulo, Cultrix. Brasília, 1977. 118 p. CALVINO, Ítalo (Org.). Contos fantásticos do século XIX: o fantástico visionário e o fantástico cotidiano. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. ______ CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

CARVALHO, Diógenes B. A. A leitura da literatura na escola: o lugar da criança como sujeito sócio-histórico. In: AGUIAR, Vera T.; MARTHA, Alice A. P. (orgs). Territórios da leitura: da literatura aos leitores. São Paulo: Cultura Acadêmica; Assis, SP: ANEP, 2006. p.127-140. COSTA, Flávio Moreira da. (Org.), PORTOCARRERO, Celina (Col.), CARNEIRO, Flávio (Apr.) e LISBOA, Adriana (Trad.) et al. Os Melhores Contos Fantásticos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. CULLER, Jonathan. Capítulo 2 – O que é literatura e tem ela importância? Teoria Literária: uma introdução. Tradução de Sandra Vasconcelos. São Paulo: Beca, 1999. PP.26-47. DA SILVA, Fernando Correia (Org.); PAES, José Paulo (Int., Sel.). Maravilhas do Conto Fantástico. São Paulo. Cultrix, 1960. GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. HERCULANO-HOUZEL, Suzana. O cérebro em transformação. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. 221p. INSTITUTO PRÓ-LIVRO – IPL. Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil – 3. ed. São Paulo. f/INSTITUTOPROLIVRO, 2011. KLEIMAN, Angela. Texto & Leitor: Aspectos Cognitivos da Leitura. 14 ed. São Paulo: Pontes Editores, 2011. LOVECRAFT, Howard Philip. O horror sobrenatural em literatura. Tradução de Celso M. Paciornik – São Paulo: Iluminuras, 2007. MAGNANI, Maria do Rosário Mortatti. Leitura, Literatura e escola: sobre a formação do gosto. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 170 páginas. MAURI, Teresa. Cap. 4: O que faz com que o aluno e a aluna aprendam os conteúdos escolares? In COLL, Cesar; MARTÍN, Elena; MAURI, Teresa; (et al). O construtivismo na sala de aula. 6 ed. (Série Fundamentos) São Paulo: Ática, 2006. p.79-121. ______ ZABALA, Antoni. Cap. 6. Os enfoques didáticos. In COLL, Cesar; MARTÍN, Elena; MAURI, Teresa; (et al). O construtivismo na sala de aula. 6 ed. (Série Fundamentos) São Paulo: Ática, 2006. p.153-195. PACHECO, Patrícia da Silva – A linguagem literária: sua especificidade e seu papel. in: Democratizando a leitura: pesquisas e práticas/Aparecida Paiva... [et al.] (org.). Belo Horizonte: Autêntica, 2008. ______ SOARES, Magda – Leitura e Democracia Cultural. in: Democratizando a leitura: pesquisas e práticas/Aparecida Paiva... [et al.] (org.). Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

PAES, José Paulo. As dimensões do fantástico. In:___. Gregos e Baianos. São Paulo: Brasiliense, p. 184-192, 1985. PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares de língua portuguesa para a educação básica. Curitiba: 2008. PENNAC, Daniel. Como um romance. Tradução de Leny Werneck. Rio de Janeiro: Rocco.1993. RODRIGUES, Selma Calasans. O fantástico. São Paulo: Ática 1988. (Princípios). TAVARES, Bráulio (Sel. e Apr.). Páginas de Sombra: Contos Fantásticos Brasileiros. Ilustração Romero Cavalcanti. – Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003. TODOROV, T. Introdução à literatura fantástica. Coleção Debates. Trad. Maria Clara Correa Castello. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 2010. ______. As estruturas narrativas. Coleção Debates. Trad. Leyla Perrone-Moisés. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. ZILBERMAN, Regina (Org.) Leitura em Crise na Escola: As alternativas do professor. 2 ed. [por] AGUIAR, Vera Teixeira et AL. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. 164 p. ZILBERMAN, Regina, SILVA, Ezequiel Theodoro da (Org.) Leitura: Perspectivas Interdisciplinares. 5 ed. São Paulo: Ática 2005. ______ LAJOLO, Marisa, Cap. 7. Leitura-literatura: mais do que uma rima, menos do que uma solução. In: Leitura: Perspectivas Interdisciplinares. ZILBERMAN, Regina, SILVA, Ezequiel Theodoro da (Org.), 5 ed. São Paulo: Ática 2005.