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 Organizadores: José Marangoni Camargo Francisco Luiz Corsi  Agnaldo dos Santos Rosângela Lima Vieira BRASIL E  AMÉRICA LA TINA NA CRISE DO CAPITALISMO GLOBAL  Autores: Mauri da Silva Bruno Lacerra de Souza  Adriane de So usa Camar go Thaylizze Goes Nunes Pereira Mirian Claudia Lourenção Simonetti Diego Marques Pereira dos Anjos  Y uri Rodrigues da Cunha Rosana Isabel de Moraes Paulo Henrique Barbosa

Livro Comunicacoes XIII Forum 2013 (1)

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Uma análise da conjuntura brasileira

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  • Projeto Editorial Praxis

    Organizadores:Jos Marangoni Camargo Francisco Luiz CorsiAgnaldo dos SantosRosngela Lima Vieira

    BRASiL e AMRiCA LAtinA nA CRiSe dO CApitALiSMO GLOBAL

    Autores:

    Mauri da SilvaBruno Lacerra de Souza

    Adriane de Sousa Camargothaylizze Goes nunes pereira

    Mirian Claudia Loureno Simonettidiego Marques pereira dos Anjos

    Yuri Rodrigues da CunhaRosana isabel de Moraespaulo Henrique Barbosa

  • Imagem da capaFoto: Neil Cummings/Creative CommonsFonte: http://www.ebc.com.br/noticias/internacional/2012/12/retrospectiva-2012-protestos--tomaram-ruas-da-europa-em-ano-de-crise

  • Brasil e Amrica Latina na Crise do Capitalismo Global

    Jos Marangoni Camargo Francisco Luiz CorsiAgnaldo dos Santos

    Rosngela Lima Vieira

    1 edio 2014Bauru, SP

    Projeto Editorial Praxis

  • Copyright Canal 6, 2014

    Santos, Agnaldo dos Brasil e Amrica Latina na Crise do Capitalismo Global / Jos

    Marangoni Camargo, Francisco Luiz Corsi, Agnaldo dos Santos e Rosngela Lima Vieira. -- Bauru, SP: Canal6, 2014.

    230 p. ; 21 cm. (Projeto Editorial Praxis)

    ISBN 978-85-7917-288-5 1. Economia. 2. Crise Econmica. 3. Brasil e Amrica Latina.

    I. Camargo, Jos Marangoni. II. Corsi, Francisco Luiz. III. Santos, Agnaldo dos. IV. Vieira, Rosngela Lima. V. Ttulo.

    CDD: 338

    S2373b

    Coordenador do Projeto Editorial PraxisProf. Dr. Giovanni Alves

    Conselho EditorialProf. Dr. Antonio Thomaz Jnior UNESP

    Prof. Dr. Ariovaldo de Oliveira Santos UELProf. Dr. Francisco Luis Corsi UNESP

    Prof. Dr. Jorge Luis Cammarano Gonzles UNISOProf. Dr. Jorge Machado USP

    Prof. Dr. Jos Meneleu Neto UECE

  • Sumrio

    Apresentao ...................................................................... 7

    Captulo 1

    Vcuo hegemnico e rivalidade no centro do capitalismo? Conjuntura favorvel ao uso de poltica industrial na periferia? Mauri da Silva ............................................................. 15

    Captulo 2

    A reproduo social dos assentamentos de reforma agrria e seus atores Bruno Lacerra de Souza e Mirian Loureno Simonetti ........................................................................... 35

    Captulo 3

    Hegemonia neoliberal e resistncia camponesa: contribuies da Via Campesina ao debate sobre os Direitos dos Agricultores e os Direitos dos Criadores de Plantas

    Adriane de Sousa Camargo ......................................... 47

  • Captulo 4

    Os governos Lula: limites e possibilidades para a realizao da reforma agrria no Brasil Thaylizze Goes Nunes Pereira e Mirian Claudia Loureno Simonetti ........................................................ 64

    Captulo 5

    Origens do Estado Neoliberal Mexicano Diego Marques Pereira dos Anjos................................ 97

    Captulo 6

    Superexplorao, intensificao e terceirizao Yuri Rodrigues da Cunha ...........................................151

    Captulo 7

    A hegemonia do dlar no Sistema Monetrio Internacional sua supremacia permanecer no sculo XXI? Rosana Isabel de Moraes ........................................... 189

    Captulo 8

    Uma reviso bibliogrfica do lulismo: definies e debates principais Paulo Henrique Barbosa ........................................... 213

  • Apresentao

    O presente livro intitulado Brasil e Amrica Latina na Crise do Capitalismo Global o resultado dos tra-balhos de comunicaes apresentados no XIII Frum de Anlise de Conjuntura Economia e Sociedade: o Brasil e a Amrica Latina na conjuntura de crise do capitalismo glo-bal. O Frum tem sido uma das atividades mais tradicionais da Faculdade de Filosofia e Cincias da UNESP, evento anual voltado para a discusso de temas candentes da conjuntura poltica, social e econmica nacional e internacional. A cri-se do capitalismo global est longe de ser solucionada e no se reduz crise econmica, como sugere a existncia de um sentimento geral de descontentamento, expresso nos inme-ros movimentos sociais em diversas regies do mundo. Em termos mais gerais, as questes do desemprego, do meio am-biente, da desigualdade social, do acesso a servios pblicos universais e de boa qualidade, do grau de autonomia dos Es-tados nacionais de levar a cabo polticas econmicas voltadas

  • 8 | Apresentao

    para o atendimento das demandas sociais e o crescimento sustentado ante aos interesses financeiros dominantes.

    A crise atual estrutural e no apenas uma crise cclica. O padro de acumulao de capital baseado no domnio da capital financeiro sob gide do neoliberalismo est em ques-to. A crise abre novas possibilidades de transformaes estruturais para o capitalismo, como nas crises anteriores de grande envergadura. Contudo, ainda no h elementos que indiquem quais caminhos sero trilhados, ainda mais se consideramos que vivemos um momento de grande insa-tisfao social.

    Nesse contexto, a aparente decadncia dos EUA encer-ra a possibilidade do capitalismo caminhar, como apontam inmeros autores, para um mundo cada vez mais multipo-lar. Entretanto, como a histria um campo de possibili-dades, no est descartada uma reafirmao da hegemonia norte-americana, o que depender, sobretudo, das respostas dadas crise, das polticas de transformao da base ener-gtica, da capacidade da chamada nova economia reestru-turar a economia norte-americana. Tambm depender da recomposio do sistema financeiro norte-americano como centro da valorizao fictcia de capital, o que reafirmaria a dominncia do dlar e do capital financeiro e a dinmica da acumulao baseada em bolhas especulativas. Tambm no est descartada a possibilidade de uma transio do centro do capitalismo para a sia, apesar da China, o principal can-didato a novo centro hegemnico, no ter condies, pelo menos no mdio prazo, de assumir a liderana tecnolgica, financeira, poltica, ideolgica, cultural e militar. O mode-lo chins no entusiasma as massas oprimidas do mundo e

  • 9Apresentao |

    nem responde a crise ecolgica, um dos problemas fulcrais para a humanidade.

    Este quadro de crise estrutural do capitalismo coloca no-vos desafios para os pases latino-americanos. Dessa forma, o presente livro busca ser uma contribuio para o debate sobre os impactos da crise global no Brasil e nos demais pases da Amrica Latina. O eixo central da discusso foi a crescente dificuldade da estratgia de desenvolvimento leva-da a cabo desde o Governo Lula e continuada pelo Governo Dilma de flexibilizar as polticas macroeconmicas neolibe-rais adotadas por Fernando H. Cardoso e adotar polticas de distribuio da renda, muitas delas de carter focalizado, como sugerem o Fundo Monetrio Internacional e o Banco Mundial. Acerca desse ponto, as reflexes giraram em torno dos limites da poltica de crescimento baseada, sobretudo, na ampliao do consumo, evidenciados pelos movimentos sociais recentes. Movimentos heterogneos e multidetermi-nados que lutam pela ampliao da democracia e de direitos bsicos na sade, na educao e na chamada mobilidade ur-bana, que denotam o esgaramento das formas de vida, de fazer poltica e de organizao econmica na contramo do neoliberalismo. A partir desta conjuntura indicada acima, os artigos a seguir debatem aspectos dos impactos da crise no Brasil e na Amrica latina.

    Mauri da Silva, em Vcuo hegemnico no centro do capitalismo? Conjuntura favorvel ao uso de poltica indus-trial na periferia?, procura debater sobre o to falado decl-nio da hegemonia estadunidense. Lembrando que essa hege-monia foi construda no final do sculo XIX e incio do XX, favorecida entre outras coisas pelas conjunturas de guerras,

  • 10 | Apresentao

    Mauri utiliza as categorias gramscianas de americanismo e revoluo passiva para demonstrar como tal hegemonia foi ancorada no s no poderio econmico e militar, mas tam-bm na disputa cultural e poltica ao longo do sculo passa-do. A crise de 2008 seria um forte elemento de demonstrao do declnio norte-americano e ocidental que comeou em meados dos anos 1970, e que estaria abrindo oportunidades para os pases da periferia, como parece demonstrar a as-censo chinesa nas ltimas dcadas. Assim, o autor levanta apontamentos para refletir sobre o ressurgimento, no mbi-to das economias nacionais, de projetos de desenvolvimento apoiados em polticas industriais mais slidas do que aquela abortadas pela vulgata neoliberal.

    Bruno Lacerra e Souza e Mirian Loureno destacam em seu texto A Reproduo Social dos Assentamentos de Reforma Agrria e seus Atores como a sucesso geracional da famlia camponesa, depois de 25 anos da garantia da de-sapropriao do latifndio improdutivo para finalidade p-blica e interesse social prevista pela Constituio de 1988, uma questo relevante para a continuidade dos movimentos sociais no campo na luta pela reforma agrria. Nesse sentido, os autores procuram analisar o processo de reproduo so-cial nos assentamentos rurais, valorizando as representaes valorativas campesinas. Destacam-se nessa discusso os pa-pis sociais assumidos por uma nova gerao de assentados, no apenas para garantir a reproduo material, mas tam-bm a reproduo ideolgica e cultural para a manuteno da produo familiar, tendo como premissa um ethos cam-pons, constitudo por um conjunto de valores morais que permeiam o modo de vida campesina. Da a importncia,

  • 11Apresentao |

    para os autores, da educao e conscientizao dos jovens rurais e a formulao de polticas pblicas que viabilizem a permanncia das novas geraes no campo, levando-se em conta que h fatores que atraem os jovens assentados para os centros urbanos, como tambm fatores que os mantm nas reas rurais. Alm da relevncia do tema, o trabalho dos autores ganha ainda um maior destaque pela carncia de es-tudos acadmicos sobre a juventude rural no Brasil.

    O texto Hegemonia neoliberal e resistncia camponesa: contribuies da Via Campesina ao debate sobre os Direitos dos Agricultores e os Direitos dos Criadores de Plantas, de Adriane de Sousa Camargo, apresenta o processo histrico no qual os Direitos dos Criadores de Plantas se tornaram he-gemnicos em detrimento dos Direitos dos Agricultores. Ou seja, a produo agropecuria, consideradas commodities, tem como finalidade o lucro privado prejudicando os agri-cultores. O monoplio das sementes, por exemplo, protegido por leis de propriedade, privatiza aquilo que deveria ser um patrimnio da humanidade. A FAO tem um papel ideol-gico fundamental nessa inverso de funes, vinculando-se estritamente aos interesses do capital. Consequentemente, segundo a autora, esse processo gerou movimentos de resis-tncia, como o caso da Via Campesina.

    O artigo de Thaylizze Pereira e Mirian Loureno inti-tulado Os governos Lula: Limites e Possibilidades para a Realizao da Reforma Agrria no Brasil analisa o II Plano Nacional de Reforma Agrria, elaborado em 2003 no pri-meiro mandato do Governo Lula da Silva e abandonado em 2007. As autoras mostram que as propostas do plano no saram do papel, na medida em que os assentamentos reali-

  • 12 | Apresentao

    zados ficaram muito aqum das metas iniciais previstas para o perodo 2003-2007, assim como os outros objetivos do pla-no, como a regularizao fundiria e a concesso de crdito fundirio. J no segundo governo de Lula (2007-2010), o ob-jetivo de realizar a reforma agrria foi completamente deixa-do de lado, privilegiando os interesses do agronegcio e sem alterar a estrutura fundiria do pas, marcada por uma forte concentrao da terra. Assim, a chamada contra-reforma agrria dos governos Lula da Silva, frustrou os movimentos sociais pela terra, mas por outro lado, a questo fundiria continua atual e a luta pela terra e pela reforma agrria per-manecem sendo uma demanda importante, mesmo que esse movimento seja caracterizado por avanos e recuos, o que depende segundo as autoras da conjuntura poltica, social e econmica, que determinam os rumos e as estratgias a serem seguidas pelos movimentos sociais no campo.

    Diego Marques Pereira dos Anjos, no texto Origens do Estado Neoliberal Mexicano, apresenta uma anlise do pro-cesso histrico de constituio das polticas neoliberais no mbito do estado mexicano desde incio da dcada de 1980. O artigo incide em duas partes. Inicialmente foi feita uma exposio geral das transformaes no processo de acumu-lao do capital internacional e em seguida foram caracteri-zadas as principais reformas mexicanas nas esferas jurdica e poltica. A interpretao do autor, a respeito dessas transfor-maes, consiste no fato de que elas foram necessrias para criar as condies sociais necessrias para o avano do pro-cesso de intensificao da explorao do trabalho no atual regime de acumulao do capital.

  • 13Apresentao |

    O artigo de Yuri Rodrigues da Cunha, Superexplora-o, intensificao e terceirizaio, aborda as novas tendn-cias de explorao do trabalho no capitalismo globalizado. O texto faz uma sntese de sua pesquisa de mestrado ainda em curso. O autor busca discutir essas tendncias a partir de uma pesquisa com os trabalhadores terceirizados de escolas estaduais do Municpio de Marlia, na qual almeja respon-der como a terceirizao os afeta objetiva e subjetivamente ao intensificar a explorao. Inicialmente so apresentados os fundamentos metodolgicos do trabalho, para, em segui-da, ser abordado o estgio atual das pesquisas com os traba-lhadores do setor nestas condies e o conceito de superex-plorao do trabalho.

    O artigo A hegemonia do dlar no Sistema Monet-rio Internacional sua supremacia permanecer no sculo XXI? foi produzido por outra mestranda do Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais da FFC/Unesp cam-pus de Marlia, Rosana Isabel de Moraes. Trata-se de uma reflexo sobre o sistema monetrio-financeiro internacional, constitudo no final dos anos 1970 com o colapso de Bretton Woods. A autora analisa a predominncia at os dias atuais do padro-dlar flexvel no capital financeiro, que faz do d-lar americano a moeda corrente para reservas internacionais e tambm o meio para transaes internacionais na econo-mia mundial. O texto avalia os impactos da desregulamen-tao e da liberalizao dos mercados financeiros globais e aponta alguns aspectos que contribuem para a manuteno do padro dlar-flexvel, na ausncia de um padro mone-trio substituto perfeito, ainda que esta liderana esteja em lento declnio no Sistema Monetrio Internacional.

  • 14 | Apresentao

    O artigo Uma reviso bibliogrfica do lulismo: defini-es e debates principais, de Paulo Henrique Barbosa, faz um balano da literatura recente acerca do chamado lulis-mo. Tambm aborda de maneira crtica a emergncia do que muitos autores denominam de a nova classe mdia. O foco da discusso reside nas polticas sociais e econmicas ado-tadas pelos governos Lula e Dilma. Polticas voltadas para ampliar o mercado interno e para incorporar ao mercado de consumo setores do proletariado at ento dele excludos. Os programas desses governos teriam alcanado relativo suces-so em um contexto internacional bastante favorvel e teriam aberto a possibilidade de ascenso para os referidos setores de classe. A partir dessa discusso o autor busca refletir so-bre os limites das polticas dos governos do PT, que teria sido indicado pelas manifestaes de vrios movimentos so-ciais de diferentes matizes no ano de 2013.

    Alm da pertinncia do contedo aqui apresentado, cre-mos ser fundamental a divulgao do material produzido pelo corpo discente da graduao e da ps-graduao de nossa faculdade, que expressa no s sua qualidade como tambm uma contrapartida da instituio para com a so-ciedade, disponibilizando o produto do trabalho acadmico.

    Desejamos a todos uma tima leitura!

    Os organizadores.

  • Captulo 1

    Vcuo hegemnico e rivalidade no centro do capitalismo? Conjuntura

    favorvel ao uso de poltica industrial na periferia?

    Mauri da Silva1

    Introduo

    Os anos 1990 e o incio dos anos 2000 testemunharam o fortalecimento do poder norte-americano. Na esfera econmica, financeira e militar, a ponto deles alcanarem a condio de superpotncia. Apesar dos problemas e preocupa-es, a dcada de 1990 representou a reafirmao da potncia norte-americana. Com o colapso da Unio Sovitica, a inva-so e a capitulao do Iraque cogitou-se a emergncia de uma nova ordem mundial ou mesmo o fim da histria como defendido por Francis Fukuyama. Segundo esta crena, a ru-na do imprio sovitico representou o triunfo do capitalismo democrtico liderado pelos Estados Unidos. Ao fim dos anos 1970 o capitalismo ingressava numa nova fase capitalismo

    1 Professor da Faculdade de Tecnologia de Ourinhos-FATEC; doutorando do PPG em Cincias Sociais da UNESP/Marlia; e-mail: [email protected].

  • 16 | Vcuo hegemnico e rivalidade no centro do capitalismo? Conjuntura favorvel ao uso de poltica industrial na periferia?

    liberal. Quase 30 anos mais tarde, em agosto de 2007, uma crise financeira internacional irrompeu nos Estados Unidos. Ela originou-se no mercado subprime, mas, em outubro de 2008, ela j havia se espraiado pela economia mundial. A crise logo suscitou o debate sobre o possvel declnio hegemnico dos Estados Unidos. Com isso, baseado no esquema de pen-samento de Antonio Gramsci, a investigao ter os seguintes objetivos: (i) anlise da construo dos pilares da hegemonia norte-americana; (ii) anlise do debate sobre a possvel eroso hegemnica norte-americana e um possvel compartilhamen-to da liderana com outros atores; e (iii) num contexto de uma possvel eroso de hegemonia no core do capitalismo global, analisar as condies materiais dos pases da periferia empre-gar a poltica industrial como meio de melhorar seu lugar na diviso internacional do trabalho.

    Gramsci e a formao potncia norte-americana

    Trotsky j havia percebido o irromper da nova potncia no cenrio internacional. Na obra Amrica e Europa, de 1923, ele apontou a tendncia de deslocamento hegemnico da Eu-ropa em direo aos Estados Unidos, o que, decerto, influen-ciou Antonio Gramsci tambm a se debruar sobre o tema. (DEL ROIO, 2007). No Caderno 13, volume 3, Breves notas sobre a poltica de Maquiavel, o autor italiano elencou os qua-tro pilares da formao da potncia de uma nao: (i) ex-panso territorial; (ii) fora econmica; (iii) fora militar; e (iv) posio ideolgica a qual classificou de elemento imponde-

  • 17Vcuo hegemnico e rivalidade no centro do capitalismo? Conjuntura | favorvel ao uso de poltica industrial na periferia?

    rvel. Gramsci chamou ateno destes elementos elevao a condio de potncia de uma nao da seguinte forma:

    Dispor de todos estes elementos que, nos li-mites do previsvel, do segurana de vitria significa, dispor de um potencial de presso diplomtica de grande potncia, isto significa obter uma parte dos resultados de uma guer-ra vitoriosa sem necessidade de combater. (GRAMSCI, 2007a, p. 55)

    No caderno 2 dos cadernos miscelneos, Gramsci de-talhou os determinantes formao de uma potncia. Em relao ao item i, os escritos sobre a expanso territorial formao da potncia norte-americana no so vastos, mas so esclarecedores.

    Quadro 1 - Expanso territorial norte-americana: perodo 1793-1867, em milhes de Km2.

    TERRITRIO CEDENTE RA PERODOEstado da Luisinia Frana 1,750 1793

    Estado do Texas Mxico 0,690 1835/1845Estados do Arizona, Colora-

    do e Wyoming2 Mxico 1,700 1848

    Alaska Rssia 1,723 1867

    Fonte: Elaborado pelo autor a partir de GRAMSCI, 2007a.2

    2 Pelo tratado Guadalupe Hidalgo (1848), os mexicanos, aps serem der-rotados, cederam este territrio as Estados Unidos mediante pagamento de US$ 15 milhes (valores da poca) pelos norte-americanos.

  • 18 | Vcuo hegemnico e rivalidade no centro do capitalismo? Conjuntura favorvel ao uso de poltica industrial na periferia?

    Aps a sua independncia de constatar o apetite ex-panso territorial dos EUA. Entre 1793 e 1867 eles incorpo-raram algo como 5,863 milhes de Km2 ao seu territrio (ver quadro 1). Ainda assim, a expanso territorial no cessou, ela mudou-se Amrica Central e Caribe3.

    Ao tratar da fora econmica (item ii), Gramsci a divi-diu em duas partes: finana e comrcio internacional4; e base produtiva material. No caderno 22 dos Cadernos do Crce-

    3 Ao trmino do sculo XIX e incio do XX a expanso territorial dos EUA voltou-se Amrica Central e o Caribe. Em decorrncia da guerra his-pano/norte-americana, em dezembro 1898, a Espanha renunciou seus direitos sobre Cuba, cedendo-lhes o territrio de Porto Rico. Em 1907, a Repblica Dominicana foi posta sob o controle financeiro dos EUA. Em 1915, eles assumiram o controle alfandegrio de Porto Prncipe no Haiti; em 1917 compraram as ilhas Virgens da Dinamarca, por fim, em 1926 o Panam comprometeu-se em alinhar-se aos Estados Unidos em caso de Guerra.

    4 Gramsci apresentou com nitidez a supremacia norte-americana na esfera das finanas e do comrcio internacional aps a 1 Guerra Mun-dial. Entre 1912 e 1922 a riqueza deles aumentou 72%, saltando de 925 bilhes de francos-ouro para 1,6 bilhes. Em comparao, no mesmo perodo, o estoque de riqueza da Inglaterra aumentou apenas 14%. Gramsci tambm chamou ateno, no exatamente com estas palavras, para o aumento da participao norte-americana no comrcio interna-cional. As suas exportaes aumentaram, entre 1913 e 1919, 2,5 vezes, enquanto as importaes cresceram apenas 0,9 vezes no perodo. Para dar suporte expanso comercial internacional a capacidade de carga da marinha mercante tambm teve aumentar, a qual saltou de 7,9 bi-lhes de toneladas para 12,5 bilhes, no perodo 1914-1919. Visto desta perspectiva a guerra foi uma beno s pretenses econmicas norte--americanas (GRAMSCI, 2007a).

  • 19Vcuo hegemnico e rivalidade no centro do capitalismo? Conjuntura | favorvel ao uso de poltica industrial na periferia?

    re, americanismo e fordismo, ele centrou ateno em dois fenmenos distintos, mas visceralmente entranhados: (i) modo de acumulao de capital baseado na mudana radi-cal no processo de trabalho - produo fordista; e (ii) ins-taurao do consumo de massa para realizao da produo (LIPIETZ, 1982). Entre 1908 e 1914 a Ford Motors Company (FMC) estruturou seu moderno sistema de produo em massa, migrando do processo baseado no trabalho artesanal para o trabalho mecanizado e com menor dependncia do trabalho especializado. A mudana provocou um grande sal-to de produtividade da indstria automobilstica, permitindo uma forte reduo no preo do automvel. Assim, por exem-plo, um veculo Ford que, em 1908, custava US$ 850, sete anos mais tarde era comercializado por US$ 360. Do ponto de vista da firma, o resultado de tal poltica no tardou, e a FMC, em 1914, com apenas 16% dos trabalhadores do setor produziu de 48% automveis pelo setor (RUPERT, 1995).

    Contudo, a introduo das inovaes tcnicas e organi-zacionais produo em massa no foi um processo amig-vel. Em resposta resistncia dos trabalhadores ao mtodo de produo em massa, a administrao da FMC adotou uma srie de medidas para amain-los, culminando, em janeiro de 1914, com a divulgao do plano de participao nos lucros e de polticas trabalhistas de cunho paternalista5 para minar a resistncia dos trabalhadores. A FMC tambm criou a Ford English School destinada aos seus trabalhadores

    5 A empresa tambm forneceu atendimento mdico aos trabalhadores na fbrica, assistncia jurdica para questes de investimento, seguros e contratos imobilirios.

  • 20 | Vcuo hegemnico e rivalidade no centro do capitalismo? Conjuntura favorvel ao uso de poltica industrial na periferia?

    imigrantes que no falavam ingls requisito inicial para se conseguir a cidadania norte-americana (RUPERT, 1995).

    Bem cedo, Gramsci percebeu que o principal meio de luta pelo poder, especialmente nas sociedades ocidentais, no era pelo uso da coero, mas sim pelo emprego da ideo-logia como forma de convencimento ou sujeio. Gramsci viu as medidas adotas pela FMC como instrumentos de con-trole sobre os trabalhadores a fim de consolidar o padro fordista de produo. Para ele, a FMC atuava no plano da conscincia dos trabalhadores, intervindo em questes de natureza moral e psicolgica, fiscalizava a vida da famlia dos trabalhadores, a sexualidade, e outras atividades fora do local de trabalho. Tal empreitada era um esforo da empresa para estabelecer a submisso cultural voluntria dos traba-lhadores requerida disciplina exigida pela nova ordem de produo. O projeto cultural fordista foi executado por or-ganizaes pblicas, e associaes voluntrias como: Rotary Club e a YMCA (ANTONIO; BONANNO, 2000).

    Gramsci reservou um lugar de destaque questo cul-tural ao processo de construo de hegemonia. O cotidia-no, os valores, as crenas, as imagens, a linguagem, as in-terpretaes dos acontecimentos histricos ou das relaes de poder numa sociedade so elementos que se articulam, determinando a viso de mundo do indivduo e a sua forma de insero no mesmo (FORTUNATO, 2007).

    Para Gramsci, a luta revolucionria deveria ser empreen-dida no pelo ataque direto contra o Estado, mas, sim, por meio da disputa pela hegemonia sobre a sociedade civil, uma luta prolongada pelo controle do aparelho de dominao

  • 21Vcuo hegemnico e rivalidade no centro do capitalismo? Conjuntura | favorvel ao uso de poltica industrial na periferia?

    ideolgica6. Para ele, a luta mais importante pela hegemo-nia deveria ser travada no campo da conscincia, e a batalha cultural7 era o principal instrumento de luta revolucion-ria (JONES, 2006). Em resumo, para Gramsci o principal locus de disputa pela hegemonia a conscincia (superes-trutura), e isso requer uma estratgia de ao de longo prazo para transformar a conscincia dos indivduos. A luta revo-lucionria equivale ao exerccio de convencimento sobre a sociedade civil de que a sua viso de mundo superior a de seus oponentes a fim de convenc-los e conquist-los - exer-cer sua liderana. A batalha pela conquista do poder ocorre essencialmente na superestrutura, o confronto especifica-

    6 A YMCA era um destes intermedirios, e teve papel relevante no pro-jeto cultural fordista. Ela tinha como objetivo oferecer servios de recreao e de influncia crist aos operrios para garantir-lhes um bom ambiente cultural e moral. As suas aes agiam diretamente sobre a conscincia dos operrios, evitando que muitos deles frequen-tassem, por exemplo, bares e chegassem atrasados ou mesmo faltassem ao trabalho. Em troca, os empresrios faziam doaes instituio para que ela pudesse exercer suas atividades. O valor das doaes um bom indicador da sintonia (interesses) entre eles. Assim, por exemplo, quan-do YMCA de Nova York acumulou dvidas de US$ 300.000, os irmos Dodge, John D. Rockefeller e J. P. Morgan doaram US$ 100.000 cada um (BOYD, 2006).

    7 Antonio Gramsci, emprestando e a ampliando o conceito de hegemonia de Lnin, v a luta pela hegemonia do proletariado como instrumen-to transformador, capaz de construir uma nova sociedade, uma nova estrutura econmica, uma nova organizao poltica, uma nova ordem ideolgica e cultural. Dessa forma, a hegemonia no deve ser entendida exclusivamente como direo poltica, mas tambm como direo mo-ral e cultural (GRUPPI, 1978).

  • 22 | Vcuo hegemnico e rivalidade no centro do capitalismo? Conjuntura favorvel ao uso de poltica industrial na periferia?

    mente ideolgico (cultural) para mudar costumes, crenas e valores enraizados numa sociedade (BUTKO, 2006).

    Como observado nesta seo, a mudana do centro di-nmico da economia mundial da Europa em direo aos Estados Unidos foi capitada muito cedo por Trotsky. Con-tudo, foi Gramsci quem desenvolveu o referencial terico--analtico compreenso do fenmeno, para isso, elencou os pilares necessrios a uma nao tornar-se potncia. Ele, seguindo a tradio de Nicolau Maquiavel e Georg Friedrich List, percebeu que fora de uma nao dependia do forta-lecimento da unidade nacional, e por isso ele identificou a expanso territorial como fundamental para formao de uma potncia. Gramsci tambm entendia que a fora militar era fundamental formao de uma potncia, contudo no avanou nesta questo.

    Ademais, para Gramsci, a formao de uma potncia de-pendia da fora econmica e da posio (fora) ideolgica, os quais foram abordados por ele sob a tica do americanismo e do fordismo. Gramsci elaborou um excelente retrato das transformaes em curso nos EUA, mostrando que o for-dismo transcendeu a fbrica e a acumulao de capital. Era um mtodo de dominao. O americanismo, para Grams-ci, era o instrumento para viabilizar o fordismo: regulao na fbrica e fora dela. O americanismo era mais que apenas um mtodo de trabalho, era o modo de vida fsico e psico-lgico norte-americano. Assim, o americanismo era o meio ideolgico e cultural para forjar um tipo de modo de vida e de trabalhador. Alm disso, o fordismo e o americanismo so particularidades do capitalismo norte-americano, uma revoluo passiva. O mtodo de Gramsci fundamental

  • 23Vcuo hegemnico e rivalidade no centro do capitalismo? Conjuntura | favorvel ao uso de poltica industrial na periferia?

    compreenso do percurso para os EUA se tornarem po-tncia hegemnica. Dentre os determinantes elencados por Gramsci, nos parece que o elemento ideolgico (cultural) o mais eficiente. Os valores do american way of life foram ex-portados para o mundo, e junto com ele foram os interesses econmicos norte-americanos.

    Auge e declnio hegemnico norte-americano?

    Ao trmino da Segunda guerra mundial os Estados Unidos emergiram como a grande potncia mundial. Eles eram a maior fora econmica e militar do planeta, com sua mquina cultural operando a plena carga. Bem como vis-lumbrou Gramsci, os EUA tornaram-se a principal potncia hegemnica. Contudo, ainda falta tratar de um elemento da fora econmica, que Antonio Gramsci, ao seu tempo, no pode antever: a hegemonia financeira pelo dlar.

    A Grande Depresso e a Segunda Guerra Mundial de-sarranjou o sistema financeiro internacional. Em 1944, os pases do ocidente firmaram o Acordo de Bretton Woods (ABW)8 para rearranjar a finanas internacionais. Por um

    8 Os pilares do ABW so: (i) regime de cmbio fixo, porm ajustvel em funo de desequilbrios estruturais de balanos de pagamentos; (ii) o ouro foi escolhido como ativo de reserva internacional; (iii) livre con-versibilidade entre moedas nacionais para garantir plena mobilidade do capital privado entre os pases; (iv) possibilidade de ajustes compensa-trios de desequilbrios estruturais de balanos de pagamentos; e (v) institucionalizao da nova ordem internacional (BAER et al., 1995).

  • 24 | Vcuo hegemnico e rivalidade no centro do capitalismo? Conjuntura favorvel ao uso de poltica industrial na periferia?

    lado, ele concedia liberdade aos Estados para perseguirem objetivos econmicos nacionais (entenda-se pleno emprego), e, por outro, estabelecia um regime de cmbio fixo, impe-dindo depreciaes cambiais com a finalidade de aumentar a competitividade internacional (GILPIN, 2002).

    O ABW, ao estabelecer o ouro como ativo de reserva in-ternacional, selou a hegemonia dos EUA no sistema finan-ceiro internacional (SFI). Eles, poca, detinham cerca de 2/3 das reservas internacionais de ouro. O dlar, em conse-quncia, era a nica moeda com capacidade de conversibi-lidade para assumir o papel de principal moeda de conver-sibilidade internacional. O padro ouro-dlar foi fixado na proporo de US$ 35,0 por ona troy9 mantida estvel at 1971 (BAER et al., 1995).

    Entretanto, o ABW j apresentava sinais de fraqueza logo aps sua constituio. No final dos anos 1950, os EUA, o principal protagonista do SFI, j apresentavam claros si-nais de desequilbrios macroeconmicos: i) gastos com a Guerra Fria; ii) concorrncia comercial com as revigoradas economias da Europa e do Japo; iii) dficit do balano de pagamentos; iv) acumulao de dlares nos bancos centrais da Europa e do Japo (BELLUZZO, 2005). O aumento das reservas internacionais em dlares em poder dos parceiros comerciais dos EUA reduziu a credibilidade internacional do dlar. (EICHENGRENN, 2000).

    A persistncia dos dficits explicada pela perda de di-namismo da economia norte-americana. A fase de cresci-mento econmico mais exuberante fim dos anos 1920 at

    9 Uma ona troy equivale a 31,1034768 gramas.

  • 25Vcuo hegemnico e rivalidade no centro do capitalismo? Conjuntura | favorvel ao uso de poltica industrial na periferia?

    o incio dos 1950 havia ficado para trs, e em meados dos 1950 a economia norte-americana comeava a perder flego. Contribui para isto o fim da Guerra da Coria, um poderoso instrumento de estmulo demanda agregada. A desacele-rao econmica foi interpretada por muitos especialistas como um problema de estagnao capitalista. A raiz do pro-blema, de modo simplificado, residia na baixa oportunidade de lucro aos investimentos produtivos no interior do pas em comparao s oportunidades de investimento no exterior (BRENNER, 2003).

    Com isso, o governo norte-americano colocou em pr-tica aes estratgicas de socorro indstria manufatureira domstica, que visava transferir aos concorrentes estrangei-ros o nus de sua desacelerao. Em agosto de 1971, o go-verno Nixon unilateralmente suspendeu a conversibilidade do dlar ao ouro. Em fevereiro de 1973, os EUA liquidaram definitivamente o ABW, substituindo o sistema de taxas de cmbio fixas por um flutuante (VELASCO E CRUZ, 2009). Assim, as crises dos anos 197010 foram classificadas pelos crticos do modelo como uma estratgia de reafirmao he-gemnica dos EUA (FIORI, 2000). A diplomacia do dlar foi uma poltica unilateral de valorizao do dlar sobre as demais moedas nacionais durante o governo Reagan. O Fe-deral Reserve (Banco Central dos EUA) promoveu uma forte elevao das taxas de juros compra de ttulos da dvida pblica norte-americana de tal intensidade que uma parcela significativa dos recursos financeiros que estavam dispersos pelo mundo foi drenada para os EUA, inclusive capitais que

    10 Choques nos preos do petrleo e o abandono do padro dlar-ouro.

  • 26 | Vcuo hegemnico e rivalidade no centro do capitalismo? Conjuntura favorvel ao uso de poltica industrial na periferia?

    financiavam inverses produtivas em pases como Alema-nha, Japo e em pases em desenvolvimento. Desta feita, o padro-dlar flexvel deu o poder aos norte-americanos no apenas de conter o crescimento do Japo e da Alemanha, mas tambm de recuperar a prpria economia e, com isso, interferir, por meio de sua monetria, no desempenho eco-nmico da economia global.

    Mesmo com o acirramento da rivalidade no interior do sistema capitalista internacional e dos percalos enfrentados pela economia norte-americana e pelo dlar, ambos manti-veram suas respectivas posies na arena global; pelo menos at a Crise Financeira Global (CFG) de 2007, que, para mui-tos, comparvel apenas com a Grande Depresso dos anos 1930 (MILAN, 2012). Com isso, iniciou-se um debate sobre um possvel esfacelamento hegemnico dos EUA e a emer-gncia de novos atores, especialmente a China. A disputa pela hegemonia no centro tem implicaes importantes na periferia do capitalismo global. Por exemplo, a diplomacia do dlar forte foi prejudicial aos pases latino-americanos, especialmente ao Brasil que gestava uma estratgia de mu-dana tecnolgica. Ademais, a reforma liberal baseada no Consenso de Washington, posta em marcha nesta regio, contribuiu ao enfraquecimento desta ainda mais. Com isso, na prxima seo discutiremos o acirramento da rivalidade no centro do capitalismo e as opes de polticas estratgicas na periferia do capitalismo.

  • 27Vcuo hegemnico e rivalidade no centro do capitalismo? Conjuntura | favorvel ao uso de poltica industrial na periferia?

    Rivalidade e vcuo hegemnico e no centro do capitalismo? H um espao de ao estratgica de transformao das foras produtivas aos pases da periferia?

    A CFG reacendeu o debate acadmico sobre o eventual declnio hegemnico norte-americano. O tema controver-so e no existe uma resposta questo. Entretanto, possvel detectar duas abordagens antagnicas para o assunto: pessi-mista e otimista.

    Na perspectiva pessimista, os Estados Unidos e demais pases desenvolvidos enfrentam um problema de estagnao capitalista de longo prazo. Lawrence Summers, ex-secretrio de Tesouro dos EUA, em conferncia proferida ao Fundo Mo-netrio Internacional (FMI), mostrou-se pessimista quanto possibilidade de que as economias de alta renda retornem facilmente normalidade pr-crise. Summers acredita que as economias maduras do ocidente e o Japo enfrentam uma crise estrutural, empregando dois argumentos para justifi-car sua tese: (i) mesmo com o emprego de polticas anticcli-cas a recuperao destas economias aps a CFG est sendo desalentadora; e (ii) nestas economias as taxas de juros de longo prazo antes da crise j eram baixas. No Reino Unido a taxa de juros da dvida pblica caiu de 4% para prximo de 2% aps a crise da sia, tornando-se negativa aps a CFG. Nos EUA, os juros sobre os ttulos da dvida pblica tiveram comportamento semelhante. Diante destas evidncias, no parece provvel que apenas restaurar a sade do sistema fi-nanceiro e reduzir o excesso de endividamento seja suficien-

  • 28 | Vcuo hegemnico e rivalidade no centro do capitalismo? Conjuntura favorvel ao uso de poltica industrial na periferia?

    te. Por esta abordagem, os pases maduros enfrentam uma crise de realizao do capital, materializada no excesso de poupana mundial ou na escassez de investimentos produ-tivos (WOLF, 2013).

    Na perspectiva otimista, os EUA esto vivenciando um processo de reindustrializao. Os argumentos que funda-mentam tal crena so: (i) as exportaes norte-americanas, perodo 2007-2012, cresceram aproximadamente um tero, indicando uma retomada da competitividade industrial dos EUA; (ii) expanso da oferta de gs de xisto que baratear o custo da energia; ele j responde por 40% da produo na-cional; e (iii) salto industrial desencadeado pelo aumento da automao por meio da robtica (KUPFER, 2013).

    Contudo, a anlise mais detida destes fatos coloca em dvida a hiptese de reindustrializao norte-americana. verdade que as exportaes norte-americanas em 2012 cres-ceram, contudo o dficit comercial dos EUA pouco mudou, ele continua rondando a casa dos US$ 800 bilhes anuais, muito prximo do dficit registrado em 2007, incio da crise. Logo, sob este ponto de vista a competitividade industrial norte-americana no apresenta sinais de mudana signifi-cativa. Em relao ao segundo argumento, o gs de xisto j barateou e provavelmente baratear ainda mais os custos de produo de indstrias de insumos bsicos e de indstrias energo-intensivas: petroqumica, papel e celulose, siderur-gia. Para estes segmentos o gs de xisto far a diferena. Por outro lado, ele ter mais dificuldade para trazer de volta da sia setores mais leves, como por exemplo, a indstria ele-trnica e de bens de consumo. Em relao ao terceiro item, possvel que a mudana tecnolgica impulsione uma signifi-

  • 29Vcuo hegemnico e rivalidade no centro do capitalismo? Conjuntura | favorvel ao uso de poltica industrial na periferia?

    cativa substituio de trabalhadores por mquinas, neutra-lizando o diferencial competitivo do progresso tecnolgico norte-americano em relao aos pases em desenvolvimento (KUPFER, 2013).

    Com a possvel reduo da hegemonia do EUA no scu-lo XXI, o candidato natural a ocupar o vcuo hegemnico deixado e rivalizar com eles a China. Ela mais do que um continente, com um quinto da humanidade e com o fortale-cimento de suas foras produtivas, a China tende, cada vez mais, ocupar o centro da arena internacional. Na esfera eco-nmica a musculatura chinesa tambm impressiona. O pas j o maior mercado automotivo do planeta. Seu PIB deve ultrapassar o norte-americano em 2016 ou 2017, conforme projeo do Fundo Monetrio Internacional (FMI). A China tambm mudou da condio de dependente de investimento estrangeiro direto (IED) para o pas com o maior estoque de reservas internacionais em dlares US$ 3,38 trilhes em 2012 de acordo com FMI. Mas os feitos da China suplan-tam a questo econmica. Na Educao ela tambm vem surpreendendo. No Programa Internacional de Avaliao de Alunos (PISA em ingls) de 2009, a provncia de Shan-gai obteve a maior pontuao no exame (KAPUWA; AMIN; NASEER, 2012).

    Por isso, tomando emprestada a ideia de Alice Amsden, o mundo parece estar vivenciando A ascenso do resto. Em The Future of American Power: How America Can Sur-vive the Rise of the Rest (2008), Fareed Zakaria discute o de-clnio hegemnico norte-americano e a ascenso da China. Uma concluso possvel deste cenrio de rivalidade geopo-ltica que o desafio continuidade do projeto de expanso

  • 30 | Vcuo hegemnico e rivalidade no centro do capitalismo? Conjuntura favorvel ao uso de poltica industrial na periferia?

    chinesa tambm um grande desafio hegemonia dos EUA. Uma possvel liderana chinesa pode oferecer modelos al-ternativos de instituies econmicas e sociais com maior nfase no bem-estar social e na estabilidade do que a mera liberdade individual, como preconizado pelo ocidente, espe-cialmente os Estados Unidos (ZAKARIA, 2008).

    Dois eventos contribuem para lanar luz sobre o assun-to: desapontamento com os resultados das reformas liberais (orientao para o mercado) dos anos 1990 nos pases latino--americanos, e o milagre econmico dos pases do leste asitico. A conexo entre eventos espacialmente distantes a poltica industrial. Os pases do leste asitico, por um lado, no a abandonaram para seguir a cartilha liberal. Os pases latino-americanos, por outro lado, em maior ou me-nor grau, seguiram os ditames do credo liberal. Com isso, a sorte das duas regies pautou-se pela escolha de agenda de poltica econmica que colocaram em prtica. E a vigo-rosa mudana tecnolgica dos pases do leste asitico atesta isto. Parece-nos que a poltica estratgica de transformao das foras produtivas no deve, e no pode ser deixada a car-go das livres foras de mercado. O modelo de capitalismo de cima para baixo praticado pelos pases do leste asitico parece estar produzindo resultados mais promissores que capitalismo liberal. Por isso, a ascenso do resto deve ser-vir como fonte de inspirao para o Estado usar a poltica industrial como estratgia ao desenvolvimento das foras produtivas nacionais, ao invs de depositar toda esperana na instituio mercado.

  • 31Vcuo hegemnico e rivalidade no centro do capitalismo? Conjuntura | favorvel ao uso de poltica industrial na periferia?

    Consideraes finais

    Considerando o fato de a dinmica produtiva internacio-nal ter ingressado em um padro tecnolgico mais intensivo em conhecimento, isto exige uma maior ateno do Estado, que dever estar dotado de instrumentos de ao altura de tal incumbncia. A poltica industrial deve ser empregada para criar firmas com capacidade de criao de solues de alto valor agregado. Mas qual a relao deste tema com a rivalidade no centro do capitalismo mundial? Concordando com Fareed Zakaria, os Estados Unidos parecem enfrentar um declnio hegemnico. No faz parte do escopo deste tra-balho prever se a China suplantar os EUA, nem que o s-culo XXI ser o sculo da China. Parece-nos sim que existe um vcuo de hegemonia no centro do capitalismo que abre espao ao emprego de polticas estratgicas (poltica indus-trial) ao fortalecimento das foras produtivas nacionais, que foram to condenadas pelo credo liberal.

    No sculo XXI, necessrio que as firmas tenham capa-cidade de inovao e de empregar tecnologias eficientes no uso de energia e materiais, que elas tenham orientao para o cliente e ao trabalho em rede, e, por fim, que elas tenham sua disposio material humano criativo. Pela dimenso do desafio, no nos parece que o mercado sozinho seja capaz de dar conta de tantas demandas, assim como o Estado sozinho tambm no seja. Isto abre espao ao uso da poltica indus-trial de fronteira para fomentar novos negcios ou facilitar a reestruturao de setores enfraquecidos em detrimento da acirrada competitividade internacional. Ao nosso juzo, diante de tal desafio, quanto maior o nmero de instru-

  • 32 | Vcuo hegemnico e rivalidade no centro do capitalismo? Conjuntura favorvel ao uso de poltica industrial na periferia?

    mentos de poltica industrial, melhor estar o Estado para enfrent-lo. No se trata de escolher os vencedores, mas sim de criar a infraestrutura adequada para que eles possam aparecer. Esse o papel do Estado e da poltica industrial no sculo XXI.

    Referncias

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  • 33Vcuo hegemnico e rivalidade no centro do capitalismo? Conjuntura | favorvel ao uso de poltica industrial na periferia?

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  • 34 | Vcuo hegemnico e rivalidade no centro do capitalismo? Conjuntura favorvel ao uso de poltica industrial na periferia?

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  • Captulo 2

    A reproduo social dos assentamentos de reforma agrria e

    seus atores

    Bruno Lacerra de Souza1

    Mirian Loureno Simonetti2

    Os processos de luta pelo territrio no Brasil so ma-nifestos desde o perodo da colonizao, que a partir mercantilizao das terras atravs das leis de terra de 1850, podem ser pensados enquanto tradues das posies dos camponeses contrrios lgica econmica e poltica do ca-

    1 Possui Bacharel em Cincias Sociais pela Faculdade de Filosofia e Cin-cias UNESP, Campus de Marlia. Atualmente Mestrando do Curso de Ps Graduao em Desenvolvimento Territorial na Amrica Latina e Caribe e Bolsista CAPES, no Instituto de Polticas Pblicas e Relaes Internacionais (IPPRI). Graduando de Bacharel em Cincias Sociais. Integrante e Pesquisador do Centro de Pesquisa e Estudos Agrrios e Ambientais CPEA UNESP - Campus de Marlia. E-mail: [email protected]

    2 Professora dos cursos de graduao e ps-graduao em Cincias So-ciais da Universidade Estadual Paulista, Campus de Marlia. Doutora em Geografia Humana pela Universidade de So Paulo. Coordena o Centro de Pesquisa e Estudos Agrrios e Ambientais (CPEA) da UNESP/Marlia/SP/Brasil. Bolsista Produtividade 2 CNPq. Email: [email protected]

  • 36 | A reproduo social dos assentamentos de reforma agrria e seus atores?

    pitalismo, reforando os processos de resistncia dos movi-mentos sociais camponeses que carregam essas bandeiras. nesse contexto social, que buscamos entender as dinmicas, no que se refere resistncia camponesa aps a conquista de seus direitos sociais (assentamentos, polticas pblicas, fi-nanciamentos e etc.), ligadas reproduo dos assentamen-tos de reforma agrria, tendo em vista que h pelo menos vinte e cinco anos (considerando a Constituio de 1988que garante a desapropriao do latifndio improdutivo para finalidade pblica e interesse social) ocorreram as primei-ras demarcaes de lotes de reforma agrria, dos quais seus primeiros ocupantes, que construram, participaram da luta pela terra, plantaram, colheram e gerenciaram as dinmicas econmicas e polticas, esto agora chegando ao perodo de sua velhice, no podendo mais executar seus papis da mes-ma forma com que protagonizavam outrora.

    Torna-se necessria uma profunda reflexo nos movi-mentos sociais e assentamentos acerca da sua reproduo social, que em um cenrio de mudana social, torna-se um processo preponderante, parte das tantas transformaes que vem ocorrendo no meio rural, principalmente com o advento e a fora incrvel do agronegcio. Sob essa denomi-nao, o agronegcio tem permeado, por um lado, uma dada industrializao do mundo rural, mas por outro, fator de impedimento do acesso a terra por quem nela trabalha especialmente em experincias que buscam o assentamento de famlias agricultoras.

    Por isso, a discusso acerca da sucesso geracional da famlia camponesa deve ser prioritria para a continuidade dos movimentos sociais camponeses e de assentados, para

  • 37A reproduo social dos assentamentos de reforma agrria e seus atores |

    a continuidade da reforma agrria e para a democratizao da terra, pois no se trata apenas de sucesso da posse das propriedades agrcolas, mas trata tambm da reposio de lideranas e de dirigentes3 em todas as instncias dos movi-mentos sociais, trata tambm da reposio da fora de tra-balho em assentamentos com relativo tempo de ocupao, nos quais os assentados ento passando por um processo de envelhecimento; reposio essa que a luta pela terra e a re-forma agrria exigem.

    Essa luta camponesa revela a todos os inte-ressados na questo agrria um lado novo e moderno. No se est diante de um processo de luta para no deixar a terra, mas diante de um processo de luta para entrar na terra. Ter-ra que tem sido mantida improdutiva e apro-priada privadamente para servir de reserva de valor e/ou reserva patrimonial s classes dominantes. Trata-se, pois, de uma luta de expropriados que, na maioria das vezes, expe-

    3 A esse respeito, selecionamos uma passagem que traduz as necessidades da vivncia deste dilema; Atuar segundo um movimento/organizao implica na tarefa contnua de formar esses quadros. O processo de educa-o poltica ganha relevncia e o educador que atua nos cursos de forma-o tambm um formador poltico. Neste sentido, Boaventura Santos tem razo ao afirmar que os movimentos so produzidos pelo encontro entre intelectuais de pensamento crtico e pessoas das camadas populares onde se confrontam ideias, saberes, prticas, produzindo organizaes que, aos poucos, vo se transformando em sujeitos coletivos, expresso de movimentos sociais populares (GOHN, 1995, p. 107).

  • 38 | A reproduo social dos assentamentos de reforma agrria e seus atores?

    rimentaram a proletarizao urbana ou rural, mas resolveram construir o futuro baseado na negao do presente. No se trata, portanto, de uma luta que apenas revela uma nova opo de vida para esta parcela pobre da sociedade brasileira, mas, muito mais, revela uma estra-tgia de luta acreditando ser possvel, hoje, a construo de uma nova sociedade. Uma nova sociedade dotada de justia, dignidade e cida-dania. (OLIVEIRA, 2001, p. 194/195)

    Sendo assim, passadas algumas dcadas desde o estabe-lecimento dos primeiros assentamentos de reforma agrria importante que investiguemos a consecuo desses projetos, ou seja, como vem se dando o processo de reproduo social dentro destes espaos. Para a compreenso da problemtica da sucesso geracional dos camponeses integrantes de assen-tamentos de reforma agrria no Brasil, tido como refern-cia o conceito de Reproduo Social, que de acordo com o socilogo francs Pierre Bourdieu (1974), o processo social pelo qual as culturas so reproduzidas atravs de geraes. Bourdieu aplicou esse conceito principalmente ao avaliar a maneira como instituies sociais so usadas para transmitir ideias culturais que servem de base e do respaldo posio privilegiada das classes dominantes ou governantes.

    A reproduo social no consiste apenas na repetio da cultura atualmente existente, mas tambm na manuteno da prpria estrutura social e do sistema de estatutos e papis sociais existentes num dado momento. Portanto, os agentes de socializao, ao promoverem a aprendizagem da cultura

  • 39A reproduo social dos assentamentos de reforma agrria e seus atores |

    de uma sociedade e a integrao do indivduo na sociedade e em grupos sociais especficos, promovem simultaneamente a reproduo da estrutura social existente num dado momento.

    Em nosso universo de estudos a reproduo social pode ser utilizada enquanto categoria de anlise, para medirmos em que medida uma formao social ou sociedade solicita-da, em cada momento, a produzir os bens necessrios sua sobrevivncia imediata. Ou seja, um conjunto de prticas por meio das quais os indivduos tendem de maneira conscien-te, a conservar seu patrimnio e correlativamente a manter ou melhorar sua posio na estrutura das relaes de classe. Cada formao social deve assegurar-se de que as geraes vindouras podero continuar a produzir, garantindo, assim, a sua reproduo. Ao assegurar a reproduo material, a so-ciedade dever garantir tambm a sua reproduo cultural e ideolgica. Se os valores, ideias e modelos que sustentam o funcionamento de uma sociedade no forem reproduzidos, esses alicerces sociais se transformaro radicalmente, e com eles, todas as caractersticas da formao social.

    Ao aprofundarmos a anlise acerca da reproduo so-cial, nos deparamos com uma srie de autores que tratam da juventude como principal sujeito social de reproduo desses processos, sobre essa categoria especfica, observa-mos que a noo de juventude pode ser pensada a partir do olhar de Dayrell,

    (...) a juventude uma categoria socialmen-te construda. Ganha contornos prprios em contextos histricos, sociais distintos, e marcada pela diversidade nas condies

  • 40 | A reproduo social dos assentamentos de reforma agrria e seus atores?

    sociais, culturais, de gnero e at mesmo ge-ogrficas, dentre outros aspectos. Alm de ser marcada pela diversidade, a juventude uma categoria dinmica, transformando-se de acordo com as mutaes sociais que vem ocorrendo ao longo da histria. Na realida-de, no h tanto uma juventude e sim jovens, enquanto sujeitos que a experimentam e sen-tem segundo determinado contexto sociocul-tural onde se inserem (DAYRELL, 2007, p. 4).

    A categoria Juventude Rural no acompanha h muito

    tempo o debate acadmico, segundo Maria Nazareth Wander-ley (2007), no uma categoria alvo de discusso e nunca foi um tema privilegiado nem mesmo dentro do campo de debate sobre questo agrria. A invisibilidade desta categoria tambm pode ser percebida no universo das pesquisas que estudam a juventude que entendem a juventude rural enquanto uma subcategoria. Nas palavras de Eliza Guaran de Castro,

    (...) a juventude rural percebida como uma categoria especfica, e no na perspectiva de jovens e rurais. uma categoria minoritria dentro da juventude. Quando retomamos os dados da PNAD4 essa anlise faz algum senti-

    4 APesquisa Nacional por Amostra de Domiclio(PNAD) uma pesquisa feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE) em uma amostra de domiclios brasileiros que, por ter propsitos mltiplos, inves-tiga diversas caractersticas socioeconmicas dasociedade, como popula-o,educao, trabalho, rendimento, habitao, previdncia social,migra-

  • 41A reproduo social dos assentamentos de reforma agrria e seus atores |

    do. Os dados apontam que a populao de 15 a 29 anos de 49 milhes de pessoas e repre-senta 27% da populao. Por outro lado, 4,5% seriam jovens rurais. No entanto, ainda que pa-rea pouco no universo total, estamos falando de 8 milhes de pessoas. Isso sem entrarmos na problematizao da prpria definio de rural e urbano. Assim, se fossemos pensar a juven-tude rural como categoria especifica e de pou-ca expresso numrica na sociedade brasileira, mesmo esse eixo deveria ser revisto. uma po-pulao de 8 milhes de jovens! Nesse sentido, a invisibilidade que marca a juventude rural deve ser problematizada (CASTRO, 2007, p. 129).

    No levantamento feito por Nilson Weisheimer (2005),

    sobre juventude rural no perodo entre 1990 e 2004 poss-vel perceber que a produo acadmica sobre jovens rurais numericamente pequena, mas so elucidativas as questes relativas ao seu modo de ser e viver e os processos sociais que se desenvolvem nos espaos caracterizados como rurais. Esses temas, no entanto, esto presentes desde a literatura clssica sobre o campesinato, que trata a questo como in-trnseca ao processo de reproduo social do campesinato e como consequncia da desvalorizao do campo frente cidade (WOORTMANN, 1990; MOURA, 1978).

    o, fecundidade,sade, nutrio etc., entre outros temas que so includos na pesquisa de acordo com as necessidades de informao para o Brasil.

  • 42 | A reproduo social dos assentamentos de reforma agrria e seus atores?

    Para Woortmann (1990) as anlises do campesinato que pensam o modo de produo agrrio decorrente do modo de produo feudal e estruturalmente subordinado ao modo de produo capitalista, corroboram para uma viso economi-cista da construo do campo, pensando sistematicamente em um homo-economicus (WOORTHMANN, 1990), ob-servao tangente ao marxismo ortodoxo. Para o autor, dei-xar a observao dos aspectos econmicos e partir para uma empreitada analtica da existncia de uma tica no campo, significa observar a subjetividade do ser social, entendendo os significados das aes dos indivduos forjadas por uma moral constituinte da tica compartilhada pelo campesinato.

    A perspectiva do significado de cultura enquanto valor moral, assim como demonstra o autor, no exclui a anlise do campo enquanto fator econmico, mas ao mesmo tempo, sugere que o homo-economicus e o homo-moralis consti-tuem um mesmo sujeito que no pode ser pensado somente por uma perspectiva terica (WOORTHMANN, 1990).

    Na anlise empreendida atravs do discurso de campo-neses, a terra percebida enquanto um patrimnio de onde se retira o fruto do trabalho, que garante o sustento da fam-lia e das prximas geraes. O trabalho por sua vez, se cons-titui na integrao da fora de trabalho familiar, elemento que garante a alimentao de todos os integrantes da famlia, que entendida, alm de uma unidade de produo, tambm como ncleo que d base para uma organicidade social cam-ponesa, elemento estruturante, socializador de seus integran-tes. O valor liberdade atribudo ao fato de no se sujeitar ao outro, ao ritmo ou s condies de trabalho de outrem, nesse aspecto, possuir um pedao de terra retira o campons

  • 43A reproduo social dos assentamentos de reforma agrria e seus atores |

    da condio de assalariado, da sujeio, da humilhao, do cativeiro que se estabelece quando no se possui liberdade.

    O autor ressalta que nas relaes sociais objetivas coti-dianas, essas representaes valorativas campesinas podem encontrar-se adormecidas ou naturalizadas, mas que, po-dem se transformar em projeto (fator de unio) em mo-mentos de crise frente s condies de explorao do capital. Nesse contexto a reconstruo de uma ordem tradicional se apresenta como um projeto de mudana.

    A partir desse raciocnio podemos entender que a tradi-o um meio de sobreviver s grandes transformaes e as-sim em meio possibilidade da proletarizao e empobreci-mento do campons a tradio, ento, no o passado que sobrevive no presente, mas o passado que, no presente, constri as possibilidades de futuro (WOORTHMANN, 1990).

    Esses valores morais que conduzem a ao e orientam fins e estratgias para promover a manuteno da vida cam-pesina so compartilhados pelos camponeses em maior ou menor grau dependendo do tempo e do espao, constituindo um ethos campons. Nesse sentido relativo da formao do ethos campons o agricultor pode ter uma concepo du-pla da realidade tendendo a tica campesina ou concepo mercadolgica (capitalista), frente s circunstancias impos-tas pela dinmica da realidade. Essas escolhas e tendncias circunstanciais influenciam fortemente os fatores de repro-duo social, com seus arranjos e desarranjos, determinan-do que no h produo onde no existe a reproduo.

    A reproduo social, no caso dos assentamentos de reforma agrria, deu-se nos ltimos anos preponderantemente atravs dos papis sociais assumidos por uma nova gerao de assen-

  • 44 | A reproduo social dos assentamentos de reforma agrria e seus atores?

    tados, configurando-se nas formas pelas quais se executou o trabalho, a educao e a conscientizao dos jovens rurais que ocuparam o cenrio do campo brasileiro nos ltimos anos.

    Ao utilizarmos a Juventude Rural como categoria de debate cientfico temos que assim como para Durston, a fase juvenil se caracteriza por uma gradual transio at a assun-o plena dos papis adultos em todas as sociedades, tanto rurais como urbanas e a juventude dura desde o trmino da puberdade at a constituio do casal e de um lar aut-nomo (Durston, 1994:14-5), mostrando que os limites desta categoria possuem variaes dentre as diferentes sociedades e classes sociais, sendo assim, o perodo da juventude, depen-de da noo de auto identificao como do reconhecimento dos outros sujeitos. nesse sentido que entendemos que essa juventude especfica, que se difere da juventude presente nas grandes metrpoles, possui um ethos prprio, que se mo-difica circunstancialmente e difere simbolicamente Bourdieu (1974) do ethos campons observado por Woorthmann (1990). Para uma compreenso moderna das problemticas referentes ao campo no Brasil, temos em conta que a Ques-to Agrria possui diversos atores, vivncias e dinmicas, por exemplo, a convivncia do velho e do novo explicita-do na relao entre os jovens rurais e uma primeira gerao que formou os quadros dos assentamentos. significante o fato de que o meio rural est envelhecendo e masculinizando--se, os agricultores tm mais de 55 anos, baixa escolaridade e dificuldades de produzir renda regular, podendo ser indi-cativo de que este mundo rural mais envelhecido e masculi-nizado seja um dos principais fatores que geram dificuldades para fazer com que os filhos e filhas permaneam estudando

  • 45A reproduo social dos assentamentos de reforma agrria e seus atores |

    e trabalhando nas propriedades, que no possuem atrativos condizentes com a escolaridade elevada dos filhos,5 e com a incorporao de parte do modo de vida urbano: acesso aos meios de comunicao, bens de consumo, menor isolamento, etc. (CAMARANO & ABRAMOVAY, 1998).

    Ao observarmos o peso que os assentamentos de refor-ma agrria, integrados aos movimentos sociais camponeses, desempenham no cenrio poltico brasileiro, que destaca-mos a importncia do assessoramento, do planejamento e da gesto dos agricultores familiares permeadas pelos pro-cessos de educao e de reproduo de uma juventude que no possui contornos definidos. Essa discusso um passo significativo para dar novo sentido funo social dos agri-cultores e valorizao da agricultura familiar, elemento crucial na reorientao das polticas pblicas que pretendem o desenvolvimento do meio rural, possibilitando a muitos jovens que desejam permanecer no campo, condies obje-tivas para que esse fato ocorra.

    Referncias

    BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simblicas. So Paulo: Pers-pectiva. 1974.

    CAMARANO, A. A.; ABRAMOVAY, R. xodo rural, envelhecimento e masculinizao no Brasil: panorama dos ltimos cinqenta anos. Revis-ta Brasileira de Estudos de Populao, v. 15, n. 2, p. 45-66, jul./dez. 1998.

    5 No Censo 2009 h dados que indicam que existem no Brasil mais de 80 mil escolas de educao bsica localizadas em reas rurais ligadas ao MST.

  • 46 | A reproduo social dos assentamentos de reforma agrria e seus atores?

    CASTRO, Elisa. Entre ficar e Sair: uma etnografia da construo so-cial da categoria jovem rural. Tese doutorado. PPGAS. Museu Nacional.UFRJ. 2005.

    DAYRELL, Juarez e REIS, Juliana Batista.Juventude e Escola: Reflexes sobre o Ensino da Sociologia no ensino mdio. Anais do XIII Congres-so Brasileiro de Sociologia. Recife, 2007.

    DURSTON, John. Juventude Rural, Modernidade e Democracia: Desa-fio para os Noventa. In: Juventude e Desenvolvimento Rural no Cone Sul Latino-americano. Srie Documentos Temticos. RS. Brasil. Junho 1994.

    GOHN, Maria da Glria. Histria dos movimentos e lutas sociais. So Paulo: Loyola, 1995.

    MOURA, M. M. Os herdeiros da terra. So Paulo: Hucitec, 1978.

    OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino. A longa marcha do campesinato brasileiro: movimentos sociais, conflitos e Reforma Agrria. Estud. av. vol.15 n. 43 So Paulo Sept./Dec. 2001 Disponvel em: .

    WANDERLEY, Maria Nazareth. Juventude rural: vida no campo e pro-jetos para o futuro. Projeto de pesquisa (mimeo) 2003.

    WEISHEIMER, N. Estudos sobre os jovens rurais do Brasil: mapeando o debate acadmico. Braslia: Nead/MDA, 2005.

    WOORTMAN, Klass. Com parente no se neguceia: o campesinato como ordem moral. Anurio Antropolgico/87. Editora Universidade de Braslia/Tempo Brasileiro, 1990.

  • Captulo 3

    Hegemonia neoliberal e resistncia camponesa: contribuies da Via

    Campesina ao debate sobre os Direitos dos Agricultores e os Direitos

    dos Criadores de Plantas1

    1Adriane de Sousa Camargo2

    Aps a Segunda Guerra Mundial (II GM), a relao en-tre capitalismo, agricultura e direito se intensificaram. Com o programa Revoluo Verde3, e os investimentos

    1 Artigo apresentado em sesso de comunicao no XIII Frum de Anli-se de Conjuntura realizado na Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus Marlia.

    2 Mestre em Relaes Internacionais pelo Instituto de Relaes Interna-cionais (IRI) da Universidade de So Paulo (USP) e pesquisadora do Centro de Pesquisas e Estudos Agrrios e Ambientais (CPEA) da Uni-versidade Estadual Paulista (UNESP).

    3 O termo Revoluo Verde foi criado por William Gown em uma confe-rncia realizada no ano de 1966 nos EUA. O modelo da Revoluo Verde baseava-se no uso de sementes geneticamente modificadas, insumos in-dustriais e na mecanizao da lavoura, visando reduo das despesas ligadas ao manejo e, com isso, aumentar a produo de modo a sanar o dficit entre produo e consumo.

  • 48 | Hegemonia neoliberal e resistncia camponesa: contribuies da Via Campesina ao debate sobre os Direitos dos Agricultores e os Direitos dos Criadores de Plantas

    em Pesquisa & Desenvolvimento direcionados produo de novas tecnologias voltadas para o incremento da produ-tividade agrcola, surgiu a demanda pela proteo legal das tecnologias desenvolvidas para a agricultura. O direito de propriedade intelectual4 sobre os recursos fitogenticos foi apresentado como uma soluo para essa crescente deman-da, concretizando-se a traduo das inovaes nos recursos utilizados pela agricultura em produtos com portabilidade legal de direito intelectual sobre o que antes era considerado pertencente ao domnio pblico como bem coletivo, como o caso da semente, e inserindo-o na lgica da atribuio de direitos de propriedade, e de um valor de mercado atravs do sistema de preos.

    Percebe-se que, hegemonicamente, a ideologia neolibe-ral5 do lucro sobre as commodities privadas baseada na re-compensa individual entra em conflito direto com a ideo-logia camponesa de defesa do espao pblico e do carter coletivo do conhecimento (ATTAR, 2011). Assim, inserido no discurso da propriedade privada, o direito de proprie-dade intelectual sobre os recursos fitogenticos representa

    4 Os direitos sobre a propriedade intelectual so protegidos atravs da criao de leis especficas que recaem a uma classe especial de bens in-tangveis, cujo valor repousa sobre seu contedo intelectual e no sobre seus atributos fsicos.

    5 O neoliberalismo corresponde a um novo regime de acumulao do ca-pital que o desvincula de suas foras sociais e polticas locais/nacionais, submetendo-as lei do valor (SANTOS, B. de S., 2005). Como resultado, impactam-se profundamente as relaes sociais com a acentuao da polarizao entre ricos e pobres, em consequncia da concentrao de riqueza gerada pelo sistema (PENNAFORTE, 2001).

  • 49Hegemonia neoliberal e resistncia camponesa: contribuies da Via Campesina | ao debate sobre os Direitos dos Agricultores e os Direitos dos Criadores de Plantas

    a perda do controle dos camponeses sobre recursos funda-mentais para sua sobrevivncia e reproduo social6. Esse conflito ideolgico se manifestou no interior da FAO du-rante os debates sobre os direitos de propriedade sobre os recursos fitogenticos.

    A FAO est inserida dentro do sistema ONU e responde pelos temas relativos agricultura e alimentao, abrigan-do, assim, os recursos fitogenticos em seu escopo de traba-lho. Em uma perspectiva histrica, suas funes remontam ao perodo final da IIGM. Antes mesmo do fim do conflito e da criao da ONU, a agricultura europeia encontrava-se desestruturada, em decorrncia da guerra. No ano de 1943, iniciaram-se os debates que dariam origem, anos depois, no somente ONU, mas tambm possibilidade da cria-o de uma organizao que impulsionasse a agricultura e a alimentao. Assim, ligada ONU e inserida no Conselho Econmico e Social das Naes Unidas (ECOSOC)7, criada

    6 O termo reproduo social aqui utilizado como conceito que deno-mina o processo pelo qual as geraes compartilham, sucessivamente, suas concepes de mundo. Assim, quando nos referimos reproduo social do campesinato, sintetizam-se as formas pelas quais as sucessivas geraes camponesas compartilham sua concepo de mundo por meio do compartilhamento do conhecimento tradicional, este ocorrendo, so-bretudo, atravs do modo pelo qual o alimento produzido.

    7 O ECOSOC o rgo responsvel pela coordenao do trabalho desem-penhado pela ONU nas questes referentes s reas econmica e social, tais como as relaes de comrcio internacional, as polticas de desen-volvimento e bem-estar, dentre outros, e mantm sua atuao por meio de suas Agncias Especializadas (ECOSOC, 2013).

  • 50 | Hegemonia neoliberal e resistncia camponesa: contribuies da Via Campesina ao debate sobre os Direitos dos Agricultores e os Direitos dos Criadores de Plantas

    a FAO como uma Agncia Especializada8 em 16 de outubro de 1945 na cidade de Qubec (Canad), tendo sido sua sede fixada em Roma (Itlia).

    Com as mudanas ocorridas no cenrio mundial, a FAO teve de adequar-se ao seu novo contexto. No momento de sua criao, faziam parte da organizao 42 Estados-mem-bros, sendo, em 2013, formada por 194 Estados-membros, mais a Unio Europeia e dois membros associados, as Ilhas Feroe e Tokelau (FAO, 2013). Para enfrentar os desafios rela-cionados s suas competncias, a FAO, como uma Organiza-o Internacional formal, utiliza-se de seu poder de agenda para solicitar o comparecimento de chefes de Estados e re-presentantes nos encontros realizados pela instituio, pro-movidos com o intuito de sediar o debate entre seus mem-bros e reforar as resolues tomadas no mbito da prpria organizao.

    Dentre as discusses recorrentes na FAO encontram--se as referentes aos direitos sobre os recursos fitogenticos, discusses essas expressas nos debates sobre os Direitos dos Criadores de Plantas e sobre os Direitos dos Agricultores. Pri-meiramente cunhado como um conceito poltico no incio da dcada de 1980 por Pat Roy Mooney e Cary Fowler9, o

    8 As Agncias Especializadas so organizaes autnomas e trabalham sob a coordenao do ECOSOC. Podem ou no terem sido criadas ori-ginalmente pela ONU, sendo, as que no foram, incorporadas pela or-ganizao por meio do cumprimento dos Artigos 57 e 63 da Carta das Naes (ONU, 1945).

    9 Da ento Fundao Internacional para o Avano Rural (Rural Advance-ment Foundation International), atualmente ETC-Group, Pat Roy Moo-ney escreveu The Law of the Seed: Another Development and Plant

  • 51Hegemonia neoliberal e resistncia camponesa: contribuies da Via Campesina | ao debate sobre os Direitos dos Agricultores e os Direitos dos Criadores de Plantas

    termo Direitos dos Agricultores (Farmers Rights) foi utili-zado para ressaltar a relevante contribuio no recompen-sada dos agricultores para a diversidade dos recursos fito-genticos fundamentais no desenvolvimento da agricultura. Nesse perodo, havia uma ofensiva nas negociaes interna-cionais por parte das empresas biotecnolgicas que atuavam no ramo da transgenia das sementes para que seus direitos como criadores (Breeders Rights) fossem institudos in-ternacionalmente. Para aumentarem o poder de presso so-bre as organizaes internacionais, os criadores de plantas, conjuntamente com empresas de sementes fitomelhoradas e insumos, criaram a Unio Internacional para a Proteo das Obtenes Vegetais (UPOV)10. Assim, a noo de Direitos dos Agricultores surgiu como um contramovimento crescente demanda de direitos por parte dos criadores de plantas.

    Anlises realizadas de documentos produzidos pela Comisso sobre Recursos Genticos para Agricultura e Ali-mentao (CGRFA)11 da FAO mostram que o conceito de Direitos dos Agricultores apareceu, primeiramente, em suas negociaes no ano de 1986. Naquele ano, foi realizado o

    Genetic Resources onde analisou a gesto internacional dos recursos fitogenticos e argumentou sobre a contribuio dos agricultores para a gerao e manuteno de sua diversidade.

    10 Criada no ano de 1961, a UPOV uma organizao internacional que atravs da Conveno Internacional para a Proteo das Obtenes Ve-getais atua de modo a proteger a propriedade sobre a modificao de recursos fitogenticos.

    11 Documentos disponveis online na pgina da Comisso sobre Recursos Genticos para Agricultura e Alimentao em: . Acesso em: 10 ago. 2012.

  • 52 | Hegemonia neoliberal e resistncia camponesa: contribuies da Via Campesina ao debate sobre os Direitos dos Agricultores e os Direitos dos Criadores de Plantas

    primeiro encontro do Grupo de Trabalho da CGRFA onde foram discutidas as necessidades apontadas pelos grupos que promovem a transgenia do estabelecimento de seus direitos pela instituio. Nesse momento, apontou-se tam-bm a necessidade de estabelecer conjuntamente os direi-tos dos agricultores.

    O Grupo de Trabalho enfatizou que, em adi-o ao reconhecimento dos direitos de cria-dores de plantas, meno especfica deveria ser feita dos direitos dos agricultores dos pa-ses onde os materiais utilizados pelos cria-dores so originrios. Esses materiais foram o resultado do trabalho de muitas geraes e foram parte fundamental da riqueza nacio-nal (FAO, 1986)12.

    A questo central posta em negociao na CGRFA, des-de ento, foi o estabelecimento de uma compensao aos agricultores por sua contribuio passada, presente e futura na conservao, melhoramento e disponibilizao de recur-sos fitogenticos para a agricultura e a alimentao. Nesse sentido, os documentos da CGRFA so resultados de lon-gos e complexos processos de negociaes, que culminaram

    12 The working Group emphasized that, in addition to the recognition of plant breeders rights, specific mention should be made of the rights of the farmers of the countries where the materials used by the breeders origina-ted. These materials were the result of the work of many generations and were a basic part of the national wealth (FAO, 1986, traduo nossa).

  • 53Hegemonia neoliberal e resistncia camponesa: contribuies da Via Campesina | ao debate sobre os Direitos dos Agricultores e os Direitos dos Criadores de Plantas

    com o consenso em torno de um Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenticos para Agricultura e Alimentao (FAO, 2001), firmado em 2001, e que passou a vigorar em 2004.

    Atravs desse tratado estabelecido um sistema mul-tilateral que procura garantir o acesso e a distribuio dos benefcios gerados pelo uso dos recursos fitogenticos. Aprovado durante a 31 Conferncia da FAO, o tratado foi idealizado em consonncia com os princpios que constam na Conferncia sobre Diversidade Biolgica (CDB), que obje-tiva a promoo da conservao dos recursos fitogenticos, bem como sua utilizao de modo sustentvel, com vistas reduo dos atuais nveis de fome e pobreza em nvel global.

    Conforme consta na declarao da Campanha Sementes da Via Campesina13 (VIA CAMPESINA, 2000), as organi-zaes internacionais que lidam com temas agrcolas, como a FAO e a OMC14, deparam-se com um dilema em suas ne-

    13 A Via Campesina um movimento social internacional do campo, que nasce em 1993 e que, atualmente, possui abrangncia quase global, sendo formada por 164 organizaes de 79 pases, reunindo, aproxima-damente, 200 milhes de camponeses, entre trabalhadores agrrios e coletores. Atuando em rede, a Via Campesina procura projetar interna-cionalmente as demandas de suas organizaes-membros e, para tanto, vem desempenhando um papel ativo junto FAO. Em 2002, a Via Cam-pesina lanou a campanha Sementes: patrimnio do povo a servio da humanidade durante o Frum Social Mundial que ocorreu em Porto Alegre (RS). Dentre os objetivos da campanha, encontra-se a garantia do direito de da produo, pelos agricultores, de sementes sadias e ade-quadas ao meio ambiente de cada regio.

    14 A atuao da Via Campesina junto OMC resultante da transferncia dos temas agrcolas da FAO para essa organizao. Para mais informa-

  • 54 | Hegemonia neoliberal e resistncia camponesa: contribuies da Via Campesina ao debate sobre os Direitos dos Agricultores e os Direitos dos Criadores de Plantas

    gociaes multilaterais, que se encontra diretamente vincu-lado ao modelo de agricultura adotado pela organizao e, posteriormente, aplicado a seus Estados-membros. Este resi-diria na opo pela adoo do uso racional e inteligente dos recursos naturais para um desenvolvimento sustentvel ou [adoo da] via que por presso exerce o livre-comrcio, do domnio do capital financeiro, e o abandono da segurana alimentar (VIA CAMPESINA, 2000)15, em outras palavras, ele reside na opo por um projeto hegemnico de desenvol-vimento por parte das organizaes internacionais.

    Objetivando equilibrar as discusses em torno do tema, a Via Campesina demonstra em seu documento que os Di-reitos dos Agricultores esto alm dos marcos jurdicos em que repousa a propriedade intelectual, sendo eles de carter pblico e coletivo. Os Direitos dos Agricultores, de carter histrico e materializado na diversidade dos recursos fito-genticos, so direitos j aceitos por diversos pases atravs da resoluo 5/89 da FAO (FAO, 1989), Convnio 169 da Or-ganizao Internacional do Trabalho (OIT, 2011), clusula 8-J do Convnio de Biodiversidade (MMA, 2000) e o ponto 14.60 da Agenda 21 (MMA, 1992), conforme apresentado no Quadro 1.

    es, consulte a obra La Va Campesina: globalization and the power of peasants de Desmarais (2007).

    15 [] uso racional e inteligente de los recursos naturales para un desar-rollo sustentable, o bien, adoptar la va que por presin ejerce el libre comercio, del dominio del capital financiero, y el abandono de la segu-ridad alimentaria (VIA CAMPESINA, 2000, traduo nossa).

  • 55Hegemonia neoliberal e resistncia camponesa: contribuies da Via Campesina | ao debate sobre os Direitos dos Agricultores e os Direitos dos Criadores de Plantas

    Quadro 1. Marcos jurdicos internacionais que endossam os Direitos dos Agricultores e seus contedos.

    Marcos jurdicos internacionais Direitos dos Agricultores

    FAOResoluo 5/89

    [] Direitos dos Agricultores significam direitos decorrentes de contribuies passadas, presentes e futuras dos agricultores na conservao, melhoria e disponibilidade dos recursos fitogenticos, parti-cularmente aqueles disponibilizados comunidade internacional, atuando como depositrios para a presente e futuras geraes de agricultores, com o objetivo de garantir-lhes benefcios e apoiar a conti-nuao das suas contribuies []

    OITConvnio 169Artigo 14 (I)

    Os direitos de propriedade e posse de terras tradi-cionalmente ocupadas pelos novos interessados de-vero ser reconhecidos. Alm disso, quando justifica-do, medidas devero ser tomadas para salvaguardar o direito dos povos interessados de usar terras no exclusivamente ocupadas por eles s quais tenham tido acesso tradicionalmente para desenvolver ativi-dades tradicionais e de subsistncia. Nesse sentido, a situao de povos nmades e agricultores itinerantes dever ser objeto de uma ateno particular.

    Convnio de Biodiversidade

    Clusula 8-J

    Em conformidade com sua legislao nacional, res-peitar, preservar e manter o conhecimento, inova-es e prticas das comunidades locais e populaes indgenas com estilo de vida tradicionais relevantes conservao e utilizao sustentvel da diversi-dade biolgica e incentivar sua mais ampla aplicao com a aprovao e a participao dos detentores des-se conhecimento, inovaes e prticas; e encorajar a repartio equitativa dos benefcios oriundos da uti-lizao desse conhecimento, inovaes e prticas.

  • 56 | Hegemonia neoliberal e resistncia camponesa: contribuies da Via Campesina ao debate sobre os Direitos dos Agricultores e os Direitos dos Criadores de Plantas

    Marcos jurdicos internacionais Direitos dos Agricultores

    Agenda 21Ponto 14.60 (a)

    Fortalecer o Sistema Global para a Conservao e Uso Sustentvel do Trabalho Internacional so-bre Recursos Fitogenticos para a Alimentao e Agricultura (TIRFAA), inter alla, acelerando o de-senvolvimento da Informao Global e Sistema de Alerta Precoce para facilitar o intercmbio de infor-maes; o desenvolvimento de formas de promoo da transparncia de tecnologias ambientalmente saudveis, em particular para pases em desenvolvi-mento, e tomar outras medidas para concretizar os direitos dos agricultores.

    Fonte: FAO, 1989; OIT, 2011; MMA, 1992; 2000. Elaborado pela autora.

    Amparada por esses marcos jurdicos internacionais, e apoiando-se no princpio da precauo16, princpio esse assi-nalado na Agenda 21 (MMA, 1992), a Via Campesina (VIA CAMPESINA, 2000) prope uma moratria na bioprospec-o e a garantia do direito informao e consulta popular nas tomadas de decises internacionais nos debates que tra-tem dos recursos fitogenticos, decises estas pertinentes ao uso, manejo e comercializao de sementes hbridas.

    Nesse sentido, a Via Campesina elabora, na Campanha Sementes, propostas apoiadas em acordos firmados inter-nacionalmente, o que a retira do bojo de aes meramente contestatrias, como a simples recusa do atual modelo he-gemnico na agricultura. Tais propostas vo de encontro

    16 O princpio da precauo presente na Agenda 21 (MMA, 1992) estabe-lece a necessidade de um estudo prvio sobre os danos ambientais que o lanamento de um determinado produto pode causar, obrigando a re-pensar a lgica de operao desse mercado, em que, antes dos interesses econmicos, a prioridade a preservao ambiental.

  • 57Hegemonia neoliberal e resistncia camponesa: contribuies da Via Campesina | ao debate sobre os Direitos dos Agricultores e os Direitos dos Criadores de Plantas

    com a governana global da agricultura, esta defensora do modelo neoliberal, baseada na acumulao global do capi-tal, e de proteo da propriedade intelectual sobre os re-cursos fitogenticos. Contrariamente a este modelo, a Via Campesina prope 11 direitos que considera essenciais para a proteo do modo campons de produo, baseado na n-tegra apropriao do produto da terra em que seu trabalho empregado (VIA CAMPESINA, 2000). O primeiro deles situa a origem de todos os outros, conferindo aos agricul-tores direitos de profundo carter histrico, que remontam criao da agricultura pelo Homem, guardiania das se-mentes e gerao de novos recursos fitogenticos atravs, sobretudo, da seleo e troca de sementes, conforme pode ser visto no Quadro 2.

    Assim, os demais direitos apontados, originados no ca-rter histrico do desenvolvimento da agricultura, versam sobre os recursos e seus conhecimentos associados, que, resumidamente, significa a aceitao do conhecimento tra-dicional e o reconhecimento de que a diversidade cultural camponesa a base do atual estgio de conhecimento sobre os recursos fitogenticos. Deste modo, conferem aos agri-cultores direitos ao controle sobre estes recursos e de defini-o de marcos jurdicos de propriedade sobre eles.

  • 58 | Hegemonia neoliberal e resistncia camponesa: contribuies da Via Campesina ao debate sobre os Direitos dos Agricultores e os Direitos dos Criadores de Plantas

    Quadro 2. Proposta da Via Campesina sobre os Direitos dos Agriculto-res apresentada na Declarao da Campanha Sementes.

    Propostas da Via Campesina sobre os Direitos do Agricultor

    1. Os Direitos dos Agricultores tm um profundo carter histrico, exis-tem desde que o homem criou a agricultura para atender suas necessidades e a temos mantido com a conservao que fazemos da biodiversidade, rati-ficando-a com a permanente gerao de novos recursos e seu melhoramen-to. Somos ns que salvaguardamos os recursos genticos, que apoiamos a evoluo das espcies e somos depositrios do esforo e conhecimento das geraes que criaram essa riqueza biolgica, por isso exigimos que reco-nheam nossos direitos.

    2. Os Direitos dos Agricultores incluem o direito aos recursos e conheci-mentos associados, unidos de forma indissocivel. Eles significam a aceita-o do conhecimento tradicional, o respeito as culturas e o reconhecimen-to de que estes so a base do conhecimento.

    3. O direito de controle, o direito de decidir o futuro desse recursos gen-ticos, o direito de definir o marco jurdico de propriedade desses recursos.

    4. Os Direitos dos Agricultores so de carter eminentemente coletivo, por isso devem ser reconhecidos como marcos jurdicos diferentes dos de pro-priedade privada e propriedade intelectual.

    5. Esses direitos devem ter uma aplicao nacional, havendo o compro-misso de promover a legislao sobre o assunto, respeitando a soberania de cada pas para estabelecer as leis locais sobre a base destes princpios.

    6. Direitos sobre os meios para conservar a biodiversidade e garantir a segu-rana alimentar, como os direitos territoriais, o direito terra, gua, ao ar.

    7. Direito de participar na definio, desenvolvimento e implementao de polticas e programas relacionados aos recursos genticos.

    8. O direito tecnologia apropriada e participao na concepo e gesto de programas de investigao.

    9. Direito de definir sobre o controle e ao manejo dos benefcios decorren-tes da utilizao, conservao e gesto dos recursos.

    10. Direito de usar, escolher, armazenar e ao livre intercmbio de recursos genticos.

    11. O direito de desenvolver modelos agrculas sustentveis que protegem a biodiversidade e influenciar nas polticas que os promovam.

  • 59Hegemonia neoliberal e resistncia campone