Livro Conselho Aos Governantes

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  • CONSELHOS AOSGOVERNANTES

    !scratesP!atiio

    KautilyaMaquiavel

    Erasmo de RoterdMiguel de Cervantes

    Ml1ZdrinoMaurcio de NtISSI1u

    Sebastio Csar de MenesD. Lus da Cunha

    Marqus de PombalFrederico da Prssia

    D. Pedro II

    Volume 15

  • Sesso do Conselho de Estado, leo sobre tela de Georgina de Albuquerque - 1922(Museu Histrico Nacional - MHN)

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    CONSELHOS AOSGOVERNANTES

  • Coleo Clssicos da Poltica

    CONSELHOS AOSGOVERNANTES

    Iscrates Plato Kautilya Maquiavel Erasmo de Roterd Miguel de Cervantes Mazarino Maurcio de Nassau Sebastio Csar de Meneses

    D. Lus da Cunha Marqus de Pombal Frederico da Prssia D. Pedro II

    Braslia 1998

    .........................................................

  • CLSSICOS DA POLTICAO Conselho Editorial do Senado Federal, criado pela Mesa Diretora em 31 de janeiro de 1997 --composto pelo Senador Lcio Alcntara, presidente, Joaquim Campelo Marques, vice-presi-dente, e Carlos Henrique Cardim, Carlyle Coutinho Madruga e Raimundo Pontes Cunha Neto,como membros -- buscar editar, sempre, obras de valor histrico e cultural e de importnciarelevante para a compreenso da histria poltica, econmica e social do Brasil e reflexo sobreos destinos do pas.

    COLEO CLSSICOS DA POLTICA

    Conselhos aos Governantes, de Iscrates, Plato, Kautilya, Maquiavel, Erasmo, Cervantes, Mazarino,Maurcio de Nassau, Sebastio Csar de Meneses, D. Lus da Cunha, Marqus de Pombal,Frederico II, D. Pedro II.Escritos Polticos, de Immanuel KantSobre a Autoridade Secular, de Lutero e CalvinoDireito da Paz e da Guerra, de Hugo GrotiusEscritos Polticos, de Max WeberA Constituio Britnica, de Walter Begehot

    Projeto Grfico: Achiles Milan Neto

    Senado Federal, 1998Congresso NacionalPraa dos Trs Poderes s/n.CEP 70168-970Braslia -- DF

    . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Conselhos aos governantes / Iscrates ... et al. -- Braslia :

    Senado Federal, 1998.

    841 p. -- (Coleo clssicos da poltica)

    1. Filosofia poltica. 2. Histria poltica. I. Iscrates, 436-338 a. C. II. Srie.

    CDD 320.01

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    SUMRIO GERAL

    APRESENTAO, por Walter Costa Porto pg. 7

    Iscrates / Nicoclspg. 27

    Plato / Aos amigos e parentes de Diopg. 47

    Kautilya /Arthashastrapg. 77

    Nicolau Maquiavel -- O Prncipepg. 121

    Erasmo de Roterd -- A Educao de um Prncipe Cristopg. 267

    Miguel de Cervantes -- Conselhos de D. Quixote a Sancho Panapg. 427

    Cardeal Mazarino -- Brevirio dos Polticospg. 443

    Maurcio de Nassau -- Testamento Polticopg. 507

    Sebastio Csar de Meneses -- Suma Poltica pg. 515

    D. Lus da Cunha -- Testamento Polticopg. 599

  • Marqus de Pombal -- Carta ao Sobrinho, Governador do Maranho,Joaquim de Melo e Pvoas

    pg. 649

    Frederico da Prssia -- Anti-Maquiavelpg. 657

    D. Pedro II -- Regente D. Isabelpg. 809

    ndice Onomsticopg. 833

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    Apresentao

    Walter Costa Porto

    H governantes e governados Mas h, tambm, osque, sob o poder do prncipe, tentam orient-lo, moldar-lhe a conduta.

    A referncia ao prncipe logo lembra Maquiavel e seu texto tofamoso, padro que identifica e delimita essa tarefa, por vezes no exitosa, deaconselhar os dirigentes.

    Renem-se, aqui, alguns desses exemplos, de textos que seescreveram para a educao de chefes de governos. rica a seara: hquem tenha contado cerca de mil livros da espcie, vindos luz entre ossculos nono e o sculo dezoito.

    Comea-se com um vitorioso, Iscrates. Em Fedro, Plato faladele, pela voz de Scrates:

    "- Iscrates jovem ainda, meu querido Fedro, sem embargodirei o que espero dele."E depois:"- Parece-me que possui demasiado gnio para comparar suaeloqncia com a de Lsias e que sua natureza mais gen-erosa. No me admiraria que, com o avanar dos anos, brilhe o

  • gnero que cultiva at o ponto em que seus predecessorespare-am crianas a seu lado e que, pouco satisfeito de seus xitos,se veja impulsionado at ocupaes mais elevadas devido adivina inspirao."1

    Iscrates, que, muito mais tarde, Milton, em um de seus sonetos, vercomo "o velho eloqente", escreveu, ao que se cr em 376 a. C., ao seu ex-discpulo Nicols, que assumira o trono em Salamina, na ilha de Chipre, re-comendaes. Grato, o novo rei lhe enviou sessenta talentos em ouro.

    Sete das cartas de Plato, entre as treze que nos ficaram dele,tratam de suas frustradas intervenes na poltica de Siracusa.

    O filsofo fora, pela primeira vez, Siclia, em 387 a. C., duranteo reinado do Dionsio, o Velho. Deste Dionsio, restou-nos um retratodramtico, por Ccero, no livro V de suas Tusculanes, onde se relata oto clebre caso de Dmocles.

    Dmocles era um dos aduladores do tirano, que submetera Siracusaao peso de um jugo intolervel. Felicitou ele, certa vez, Dionsio, pelo seupoder, por suas tropas, pelo brilho de sua corte, e a magnificncia de seupalcio, dizendo que nenhum outro prncipe havia to feliz.

    Dionsio, ento, lhe perguntou se no queria provar um poucodaquele fausto, colocando-se em seu lugar. E o fez reclinar-se, coroado,em um leito de ouro, sobre tapetes riqussimos, com perfumes e incensos,junto a uma mesa com as mais finas iguarias, rodeado por um sem-nmero de escravas solcitas.

    Segundo Ccero, Dmocles estava se imaginando o mais afortunadodos homens quando, em meio ao festim, percebeu, por sobre a cabea,uma espada nua que Dionsio fizera pendurar ao teto, sustentada poruma simples crina de cavalo.

    8 Conselhos aos Governantes

    (1) In Fedro, Dilogos Socrticos, Madri, 1927.

  • Os olhos do felizardo se turvaram, a coroa lhe caiu da cabea, suasmos nem ousaram tocar nos pratos. Pediu ao tirano a graa de sair logodali, no desejando a felicidade quele preo.

    O breve incidente de Dmocles permite uma reflexo sobre anatureza do poder poltico, de certo poder poltico. O que Dionsio preten-deu, com xito, foi indicar, ao adulador ingnuo, que sua dominaoestava exposta a muitos riscos. A espada suspensa ao teto, de maneirato frgil, um smbolo que resiste aos tempos, se bem que poucas vezesexplicitado, em toda sua circunstncia. Sempre expresso de meraretrica, a compor discursos e frases de efeito, nunca enfatiza, verdadeira-mente, os perigos do mando sem legitimidade, que dos dirigentes queno so amados, s temidos. E mais que temidos, odiados.

    Pois no mesmo texto das Tusculanes, Ccero mostra comoDionsio, pelo temor de perder seu domnio injusto, havia se convertidoem quase um prisioneiro em seu palcio. Confiando somente em algunsescravos, formando sua guarda de estrangeiros, ferozes e brbaros. Le-vando to longe sua desconfiana a ponto de fazer ensinar, s prpriasfilhas, ainda pequenas, o ofcio de barbear, indigno, ao tempo, a pessoaslivres. E no permitindo, quando cresceram, que nem mesmo elas seaproximassem dele com lminas, passando, ento, para barbear-se, achamuscar os plos do rosto com nozes incandescentes.

    Quando se desvestia para o jogo da pela, que apreciava muito,Dionsio no entregava sua espada seno a um jovem, seu favorito. Umde seus amigos, comentou, um dia, sorrindo: "Eis, afinal, uma pessoa aquem confias a vida". Como o jovem sorriu, o tirano fez morrer os dois.Um, por haver indicado um meio de assassin-lo. O outro, por pareceraprovar a sugesto com o sorriso.2

    Foi m, para Plato, em 387 a. C., a impresso que teve daSiclia e do reinado de Dionsio. "Embriagar-se duas vezes ao dia,nunca se deitar sozinho noite", comentou. Tais estados, para ele, no ces-

    Apresentao 9

  • sariam jamais de caminhar sem sobressaltos, da tirania oligarquia e de-mocracia.

    Plato se entendeu, no entanto, admiravelmente, com o irmo deuma das mulheres do tirano, Dio, que o compreendeu melhor "do quetodos os jovens com quem havia, at ento, convivido".

    Depois da morte de Dionsio, o Velho, em 367 a. C., Dio con-venceu o jovem Dionsio, que assumira o trono, a convocar Plato: que ofilsofo viesse com urgncia, antes que outras influncias se exercessem so-bre o novo tirano, "conduzindo-o a uma existncia diferente da vida per-feita". Dionsio, o Jovem, terminou por acusar Dio de conspirar contrao regime e o expulsou de Siracusa.

    Plato regressaria ainda uma ltima vez Siclia, por insistncia eclara chantagem de Dionsio:

    "Se eu te convencer a vires agora Siclia, em primeiro lugaros negcios de Dio sero regularizados como queres. Sei bemque s me fars pedidos razoveis e eu me prestarei a eles. Seno, nada relativo a Dio, a seus negcios ou a sua pessoa, searranjar a teu modo."

    Com o apoio de alguns gregos, Dio toma Siracusa mas morto em354 a. C., pelo ateniense Calipo. Aos amigos de Dio, Plato dirigepelo menos duas cartas, aconselhando-os a que formassem um governo decoalizo, com representantes das famlias em choque e, at mesmo, comDionsio.

    Admiram-se, at hoje, os platnicos, pelo fato de que o filsofotenha teimado em esforos para converter, em um bom rei, um tirano irre-cupervel. Mas Plato conta, em uma das cartas, como, desde jovem,tinha o projeto de, no dia em que pudesse dispor de si prprio, "intervirna poltica". A Ditadura dos Trinta, em Atenas, porm, que ele pen-sara pudesse desviar a cidade "dos caminhos da injustia para os dajustia", logo fez com que lamentasse "os tempos da antiga ordem comouma idade de ouro".

    10 Conselhos aos Governantes

  • Ele viu, juntamente com a morte de Scrates, a corrupo da legislao eo malogro da moralidade, a tal ponto que, quanto mais avanava na idade,mais lhe parecia difcil bem administrar os negcios do estado.

    A chave da motivao e da conduta de Plato, com respeito ao jovemDionsio, est em uma das frases da carta aos amigos e parentes de Dio. Jque nunca haviam podido se realizar os seus planos legislativos e polticos, se-ria agora o momento de experimentar: "No tinha seno que persuadir sufi-cientemente um nico homem e tudo estaria resolvido."

    Bem caberia falar de "os vrios Maquiavis", tantas as interpretaes,tantas as deformaes, as acusaes que vieram sendo acrescidas aos poucoslivros do florentino, a ponto de se poder indagar se se discutem, afinal, os mes-mos textos, a ponto de se duvidar que Maquiavel tenha, em estilo simples e di-reto, escrito uma obra no complexa.2

    Permito-me uma recordao pessoal. Menino da Zona da Mata de Per-nambuco, ouvi muitas vezes, com que alegria e encantamento, a Cano doVilela. Eu a escutava recitada por violeiros, lidas nos cordis, em feiras. E areli, num desses dias, transcrita por Leonardo Mota.3

    Vilela era um celerado,"que morava em um lugare at o prprio governotinha medo de o cercar".

    Ele cometera o primeiro crime com a idade de dez anos. Aos doze,matou o prprio irmo, por causa de um cachimbo. Matou, depois, o cu-

    Apresentao 11

    (2) O estilo de Maquiavel, dir Isaiah Berlin, "singularmente lcido, sucinto e pun-gente -- modelo de uma clara prosa renascentista". Berlin, Isaiah, O Problema deMaquiavel, Textos de Aula, Centro de Documentao Poltica e Relaes Inter-nacionais, Braslia, s/d.

    (3) Mota, Leonardo, Cantadores, Rio, Liv. Editora Ctedra/Inst. Nacional do Livro,1976. Leonardo conta: "Essa conhecida lenda sertaneja inspirou inmeras canti-gas. Jac Passarinho e Serrador, por exemplo, cantam variantes. O cego Ader-aldo garante que a primeira Cantiga do Vilela foi composta pelo cantador Manuelda Luz, de Bebedouro. Sinfrnio assegurou-me que a sua que a verdadeira, "aboa e legtima do Braga" e acrescentou que "a havia aprendido de Jaqueira".

  • nhado, depois o filho de um padrinho. Em quase oitentaestrofes, a cantiga fala de seus crimes, dos fracassos da polcia paracont-lo, dos batalhes enviados para captur-lo. At que um alferes, quechama Negreiros, se disps a enfrent-lo. Quando, depois de muitasperipcias, o alferes chega frente da casa do criminoso, diz:

    "Vilela me abra a portadeixe de machaveliaconhea que t cercadopela tropa da puliano batalo me acompanhaOficial de Justia."

    S muito mais tarde, eu iria perceber, relendo a cantiga, quemachavelia -- ou macavelia, como muitas vezes tambm ouvi -- eramaquiavelismo, procedimento astucioso, to bem recebido em heris comoos das peas de Ariano Suassuna.

    Os dicionrios so mais rigorosos: falam do exerccio de m-f nosassuntos polticos. Veja-se, por exemplo, o Aurlio:

    "MAQUIAVELISMO s. m. 1. Sistema poltico exposto porNicoll Machiavelli, escritor e estadista florentino, em suaobra O Prncipe e caracterizado pelo princpio amoralista deque os fins justificam os meios. 2. Poltica desprovida de boa-f.3. Procedimento astucioso, velhaco, traioeiro, velhacaria, perfdia."

    Na linguagem comum, ficou, tambm, a expresso "florentino",com uma carga pejorativa: a "intriga florentina", a "estocada florentina",essas mais eficazes, mais letais.

    Com Florena, rivalizavam, ao tempo de Maquiavel, entre outros, oDucado de Milo, a Repblica de Veneza, o reino de Npoles. E mui-tos estados menores, como a Repblica de Gnova, o Ducado de Ferrara,o Marquesado de Mntua, o Ducado de Urbino, as Repblicas de Sienae de Luca. Mas s as intrigas de Florena ganharam, em razo de seuto ilustre filho, essa marca insidiosa. Mas deveriam ser iguais s venez-ianas, s napolitanas, s milanesas. Toma-se, ento, a cidade pelo seu

    12 Conselhos aos Governantes

  • habitante, o todo pela parte, lembrando aquela figura de gramtica queaprendemos -- e logo esquecemos -- no ginsio.

    Quanto aos eruditos, h uma tragdia maquiavelana, que faz lembraruma frase de Malraux a De Gaulle, transccrita em livro genial, com as con-versaes do estadista, j afastado do governo, com seu ex-ministro da Cul-tura. Malraux diz que "pertencer Histria pertencer ao dio".4

    frase que cabe, na medida certa, a Maquiavel. No HenriqueIV, de Shakespeare, representado em 1690, ele j tido por"mortfero".5 Para Chevalier, ele teria escrito "um brevirio da tira-nia".6 Para Titone, ele tinha uma preferncia mrbida pelos meios"mais cruis e mais mpios".7 Se depender de Dante, ele est agora noInferno, condenado s chamas que devem envolver os herticos. Seuescrito, especialmente O Prncipe, seria, para Prezolijn e Haidn, "anti-cristo." Sua obra, para Renzo Sereni, a de homem amargamente frus-trado. Para os jesutas, ele "um scio do Diabo em crimes". Segundo ocardeal ingls Pole, O Prncipe teria sido escrito "pela mo do Di-abo".8 Para Bertrand Russell, ele seria o autor de "um compndio paragngsters" para Bodin, seria "um corruptor do Estado", muito em vogaentre "os bajuladores de tiranos" e para quem "a astcia tirnica era ocentro da cincia poltica."9 E, para completar, chegaram a cham-lo de"docteur de la scleratesse". Quer dizer, Maquiavel seria mais que umcelerado, um PHD do crime.

    Apresentao 13

    (4) Malraux, Andr. Quando os Robles se Abatem, Lisboa, Edies Livros do Brasil,1971, p. 94.

    (5) Shakespeare, Henrique IV, parte III, ato III, cena 2.(6) Chevalier, Jean-Jacques, Histria do Pensamento Poltico, Rio, Zahar Editores, 1982,

    p. 262.(7) Cit. por Baktine, Lonide, Maquiavel, Leituras Universitrias, Fund. Ron-

    don/MEC, s/d, p. 38.(8) Cit. por Gautier Vignal, Louis, Maquiavelo, Mxico, Fondo de Cultura, 1978, p.

    102.(9) In Berlin, Isaiah, O Problema de Maquiavel, Textos de Aula, Centro de Documen-

    tao Poltica e Relaes Internacionais, Universidade de Braslia.

  • Isso em razo de suas gestes Igreja e a seus princpios, por suadefesa de uma poltica cruel, a da eficcia, e por seu tecnicismo frio, porsua integrao, na verdade, ao mundo srdido que o cercava.10

    Todas as incriminaes a Maquiavel formam sua lenda de dio,que Cassirer contrape a uma lenda de venerao11. Pois h os que oveneram.

    Sobre ele, Fichte publicou, em 1807, um artigo com observaesque, segundo dizia, se destinavam "a salvar a reputao de um homemjusto". E o via "com profundo discernimento das verdadeiras forashistricas que moldam os homens e transformam sua moralidade"12. Al-dersio o considera "um catlico apaixonado e sincero."13 Isaiah Berlinindica a obra de um compilador annimo do sculo XIX: Mximas Re-ligiosas Verdadeiramente Extradas das Obras de Nicoll Machiavelli.Bacon reconhecia uma grande dvida para com ele, "um insigne realistarecusando fantasias utpicas" e "que descreveu o que os homens fazem eno o que deveriam fazer."14 Para Rousseau, ele, "fingindo dar liesaos reis, deu-as, grandes, aos povos".15

    Para Herder, ele um "maravilhoso espelho de seu tempo". ParaHegel, ele era "um gnio que viu a necessidade de unir uma srie de

    14 Conselhos aos Governantes

    (10) E por falar em Igreja, lembro um incidente curioso, na Universidade de Braslia,quando, professor do Departamento de Cincia Poltica e Relaes Internacion-ais, eu colaborava com o programa editorial da instituio. Depois de publicarobras de Maquiavel, at ento inditas no pas -- como os Comentrios sobre aDcada de Tito Lvio, A Arte da Guerra, Belfagor -- o ento decano de extenso man-dou imprimir cartazes que diziam "Neste Natal, Maquiavel", sugerindo que, nospresentes de fim de ano, as pessoas inclussem os livros, recm-editados. Um re-ligioso, que integrava a direo da Universidade, se rebelou: "Como ligarMaquiavel, to anticatlico, festa magna da cristandade?" Os cartazes foram in-cinerados.

    (11) Cassirer, Ernst, O Mito do Estado, Rio, Zahar Editores, 1976, p. 135.(12) In Cassirer, Ernst, ob. cit., p. 141.(13) In Cassirer, Ernst, ob. cit., p. 135.(14) Bacon, Francis, Advancement of Learning, 1929, II, XXI.(15) Rousseau, J-J, Ouvres Compltes, Paris, Pliade, t. III, p. 409.

  • caticos principados fracos e pequenos num todo coerente". Para Koening,"um esteta tentando evadir-se do mundo catico e srdido da Itlia deca-dente de seu tempo, para um sonho de arte pura". Para Gramsci, ele era,acima de tudo, um inovador revolucionrio, dirigindo suas setas contra aobsoleta aristocracia feudal, o papado e seus mercenrios. O Prncipeseria um mito representando a ditadura das foras novas e progressistas,prevendo o papel vindouro das massas e a necessidade da emergncia denovos lderes imbudos do realismo poltico. Engels o v como "um dos gi-gantes do iluminismo, um liberto do enfoque do pequeno burgus". ParaMarx, os Discursos seriam "verdadeiras obras-primas". Vitrio Al-fieri fala, afinal, de um "divino Maquiavel."16

    Que escreveu Maquiavel, que fez Maquiavel, para dar motivo a en-tendimentos to desencontrados?

    Redigiu o que sempre chamou de "opsculo", O Prncipe, noqual, como disse em carta a seu amigo Vettori,

    "sondo, at onde posso, os problemas de tal matria, discutindoo que um principado, quantas classes existem, como soadquiridos, como se pode mant-los, e porque no perdidos...A um Prncipe, sobretudo se um Prncipe novo, deve resultaraceitvel."17

    Comparou, nos Discorsi, traduzidos no Brasil, sob o ttulo deComentrios Primeira Dcada de Tito Lvio18, as instituiespolticas da repblica romana com as de seu prprio tempo. Entendendo,como disse no prefcio da obra, que

    "Para fundar uma repblica, manter estados, para governarum reino, organizar um exrcito, conduzir uma guerra, dis-tribuir justia, expandir o imprio, no se acha nem prncipe,

    Apresentao 15

    (16) V. Berlin, Isaiah, ob. cit.(17) Carta a Francesco Vettori, in Arocena, Luis A., Cartas Privadas de Nicolas Maquiav-

    elo, Argentina, Editorial Universitrio de Buenos Aires, 1979, p. 118.(18) Maquiavel, Comentrios sobre a Primeira Dcada de Tito Lvio, Braslia, Editora

    da Universidade de Braslia, 1979.

  • nem repblica, nem capito, nem cidado que recorra aos ex-emplos da Antiguidade. Essa negligncia devida aindamenos ao estado de fraqueza a que nos reduziram os vcios denossa educao atual, do que aos males causados por essapreguio orgulhosa que reina na maior parte dos estadoscristos, do que a falta de um verdadeiro conhecimento damatria.19"

    Escreveu uma Arte da Guerra20, com a justificativa de que "to-das as artes praticadas na sociedade em funo do bem comum, todas asinstituies nela fundadas mediante o respeito s leis e o temor de Deusseriam vs se no se preparasse igualmente sua defesa, a qual, se eficaz,permite mant-las mesmo quando imperfeitamente estruturada.

    ......................Porque sem o apoio militar as boas instituies no podemsubsistir em boa ordem."

    E a obra com que ele figurasse "entre os mais importantes pensa-dores no terreno da administrao militar".

    Comps o que seria "um misto de biografia, romance e tratadopoltico", a Vida de Castrucio Castracani21, sobre um tipo de con-dottieri da cidade de Luca. E uma Histria de Florena, tida porQuentin Skinner como "sua obra mais larga e sossegada"22 -- queescreveu em 1525, por encomenda do Cardeal de Mdici.

    Uma srie de relatrios resultou de suas misses diplomticas, algumasde grande importncia, como as viagens corte do Duque Csar Brgia e ado Papa Jlio II, Frana, corte do Imperador Maximiliano I, relatrioso mais das vezes assinado pelos embaixadores. Segundo um deles, Nicoll

    16 Conselhos aos Governantes

    (19) In Comentrios..., ob. cit.(20) Maquiavel, A Arte da Guerra, A Vida de Castruccio Castracani, Belfagor, o Arquidiabo,

    Braslia, Editora da Universidade de Braslia, 1980.(21) In A Arte da Guerra..., ob. cit.(22) Skinner, Quentin, Maquiavel, Madri, Alianza Editorial, 1984, p. 100. Istorie Floren-

    tine, publicada em 1532.

  • Valori, era fcil formar um juzo claro e certo com base naqueles textos.Teatro e poesia completam sua obra. O poeta Maquiavel, que o Brasilainda no viu traduzido, tanto se considera que se queixa em carta a umamigo, que Ariosto, em Orlando Furioso, no o tivesse mencionado naenumerao dos poetas italianos. Cr, por isso, que o tratavam "como umcachorro23".

    Eu no faria, como muitos, a distino entre O Prncipe e osDiscorsi, apontando este ltimo como obra de maior madureza. Masindicaria, antes, os propsitos, os endereamentos diversos, a explicar, as-sim, antinomias e oposies agudas entre os dois textos.

    O primeiro era obra dirigida a um homem e com um objetivo claro-- como se acompanhasse um currculo -- de obter, de volta, o emprego.Era o prprio currculo. Como se dissesse: quem capaz de aconselhar,com tanto brilho, o Prncipe deve ficar ao seu lado.

    Inicialmente, Maquiavel quis dedicar O Prncipe ao Cardeal Gi-uliano de Mdici. Segundo alguns bigrafos, constava que Giuliano de-veria receber, de Leo X, Npoles ou um novo estado, compreendendoParma, Piacenza e Mdena.

    Mas quando Vettori recebe o manuscrito, conta Oskar von Wer-gheimer,

    "Giuliano no precisava mais de conselhos polticos e, sim, deauxlio dos mdicos. Adoeceu, para morrer em 1516".24

    Maquiavel muda a dedicatria, transferindo-a para Lorenzo, no oLorenzo Magnfico, mas o Lorenzo de Piero, no to magnfico. Omanuscrito, que no chegou a ser entregue a Giuliano, quase certo queno foi lido por Lorenzo.

    Esse mais um ngulo da tragdia de Maquiavel, dirigindo consel-hos a um prncipe que no os pediu e que os ignorou.

    Apresentao 17

    (23) Carta a Ludovico Alamanni, in Cartas... ob, cit., p. 187.(24) Von Wergheimer, Oskar, Maquiavel, Porto Alegre, Livraria do Globo, 1942, p.

    183.

  • Cassirer chega a comentar: Maquiavel no era um ingnuo togrande que pudesse acreditar que os governantes dos principados novos,homens como Csar Brgia, se constitussem material educvel.

    Como vimos, Plato foi um ingnuo desse tipo. Porque sua idia eraa de unir, em uma s cabea, a sabedoria e o poder.

    Para mostrar o quanto se afasta O Prncipe dos demais textosque pretendem moldar o carter dos soberanos, dos chefes de governo,basta compar-lo com o exemplo, mais perto do Brasil, de um dessesmanuais -- a carta que o Conde de Oeiras e Marqus de Pombal, dirigea seu sobrinho, Joaquim de Melo Pvoas, governador do Maranho, nofinal do sculo XVIII. Os conselhos, com exemplos tirados da histriaantiga, so para que o governador, nefito, seja, a um s tempo,

    "prudente e perspicaz, afvel e rigorosamente justo e benevo-lente, modesto e perseverante, pio e valoroso, virtuoso, mod-erado e honesto".

    Maquiavel no desejaria que a maior parte desses rtulos fosseetiquetada no Prncipe, que ele, mais do que constri, descreve.

    Engana-se, diz Pombal,"quem entende que o temor com que se faz obedecer maisconveniente do que a benignidade com que se faz amar, pois arazo natural ensina que a obedincia forada violenta e avoluntria segura".

    Maquiavel defender o contrrio:"Quem quiser fazer profisso de bondade no pode evitar suaruna entre tantos que so maus. Assim, necessrio ao Prn-cipe, que se queira manter, que aprenda a poder ser mau, eque use ou no sua maldade segundo a necessidade."

    No altere coisa alguma com coisa e nem violncia, insiste Pombal,"porque preciso muito tempo, e muito jeito, para emendarcostumes inveterados. H muitos casos que, merecendo castigo,primeiro h de haver uma prudente admoestao repreensiva".

    O conselho de Maquiavel ser bem outro:

    18 Conselhos aos Governantes

  • "Os homens se devem afagar ou exterminar, porque eles sevingam das injrias leves e, quanto s grandes, no podemfaz-lo, de sorte que o mal que se faz ao homem deve ser talque no tema vingana dele."...................................................."Apoderando-se de um pas, aquele que o ocupar deve imagi-nar todas as crueldades que precise cometer, para no ter querenov-las e poder, no as renovando, tranqilizar os homens eganh-los com benefcios.""Quem governa de outro modo, por temor ou por maus consel-hos, ser obrigado a manter sempre a faca na mo, e nopoder jamais confiar nos sditos."Porque preciso fazer todo o mal de uma s vez a fim deque, provado menos tempo, parea menos amargo, e o bempouco a pouco, a fim de que seja mais bem saboreado."

    O Prncipe, como creio, difere dos Discursos, porque esta obradirigida aos muitos, a rigor, aos sditos. Nesta, com generalizaesousadas, Maquiavel pde "respirar o amor liberdade, maneira an-tiga, e o dio tirania".

    Na primeira obra, aconselhando o Prncipe, h de se contradizer oMaquiavel historiador e terico da Poltica. Um exemplo notvel disso quando ele valora, nos Discorsi, a separao de poderes, da qual seapercebe em Polbio.

    Polbio, esse grego romanizado, no sculo I antes de Cristo, em suaHistria25, procurara descrever os acontecimentos em Roma, desde oprincpio da segunda guerra pnica (221 a. C.), at a tomada deCorinto (146 a. C.). Numa introduo obra, leva sua narrao at aprimeira guerra pnica (264 a. C.). E, no livro VI, que, lamentavel-mente, no nos chegou por inteiro, ele detm o relato e passa a discutir as

    Apresentao 19

    (25) Polbio, Histria, Paris, Gallimard, 1970.

  • formas de governo, a elogiar o modelo de Licurgo em sua repblica, a in-dicar os diferentes poderes que compunham o governo de Roma.

    Segundo ele, o governo da repblica romana estava dividido em trscorpos. E,

    "em todos trs to equilibrados e bem distribudos os direitosque ningum, anda que seja romano, poder dizer com certezase o governo aristocrtico, democrtico ou monrquico, e comrazo, pois se atendermos ao poder dos Cnsules, se dir que absolutamente monrquico e real; se autoridade do Senado,parecer aristocrtico; e, se ao poder do povo, se julgar queeste estado popular."26

    Calcando sua exposio em Polbio, copiando-a, ao que parece, porvezes, literalmente, Maquiavel, que parece ter obtido o texto integral dolivro VI, chega, ento, nos Discursos, quela passagem que, paraNorberto Bobbio seria uma antecipao da noo moderna da sociedadecivil:

    "Os que criticam as contnuas dissenses entre os aristocratas eo povo parecem desaprovar justamente as causas que assegu-raram fosse conservada a liberdade de Roma, prestando maisateno aos gritos e rumores provocados por tais dissenses doque aos seus efeitos salutares. No querem perceber que em to-dos os governos h duas fontes de oposio: os interesses dopovo e os da classe aristocrtica. Todas as leis para proteger aliberdade nascem de sua desunio, como prova o que aconteceuem Roma."

    E conclui:"Tais desordens ... fizeram nascer leis e regulamentos fa-vorveis liberdade de todos."

    A defesa to firme -- e to antecipadora -- da separao dospoderes nos Discursos cede lugar, em O Prncipe, a uma nica

    20 Conselhos aos Governantes

    (26) Polbio, ob. cit., p. 481.

  • referncia, no elogio ao Parlamento na Frana, que era, para Maquiavel,"a melhor causa da segurana do Rei e do R eino".

    A respeito daquele Parlamento, dir Maquiavel:"Pode-se, a, tirar notvel instituio: os prncipes devem en-carregar a outrem da imposio das penas. Os atos de graa,pelo contrrio, s a eles mesmos, em pessoa, devem estar afe-tos."

    Endereando seu "opsculo" a Lorenzo de Piero, Maquiavel diz:"Tome, pois, Vossa Magnificncia este pequeno presente com ainteno com que eu o mando. Se esta obra for diligentementeconsiderada e lida, Vossa Magnificncia considerar o meuextremo desejo que alcance aquela grandeza que a Fortuna eoutras qualidades lhe prometem. E se Vossa Magnificncia,no pice de sua altura, alguma vez volver os olhos para baixo,saber quo sem razo suporto uma grande e contnua msorte."

    Em uma carta ao sempre amigo Vettori, ele almeja que Mdici oempregue outra vez, "ao menos para rolar uma pedra".27

    As queixas a Vettori se sucedem:"Ficarei aqui, pois, entre meus piolhos, sem encontrar umhomem que se lembre de meus servios ou que acredite que euainda possa ser til para alguma coisa."28

    A outro amigo, Vernacci, diz:"A sorte no me deixou seno parentes e amigos dos quaisfao agora meu capital."29

    Maquiavel servira, com dedicao, repblica florentina desde1498, secretrio da segunda chancelaria e, logo, secretrio do Conselho

    Apresentao 21

    (27) Carta a Francesco Vettori, de 10-12-1512, in Cartas ..., p. 119.(28) Carta a Francesco Vettori, de 10-6-1514, in Cartas ..., p. 174.(29) Carga a Giovanni Vernacci, de 19-11-1515, in Cartas ..., p. 178.

  • dos Dez, rgo encarregado da defesa do pas e das questes diplomti-cas.

    Com o retorno dos Mdicis, foi dispensado, em novembro de 1512.O documento de sua demisso cruel:

    "Cassaverunt, privaverunt e totaliter amoverunt."As trs palavras, em latim, tm o mesmo sentido. Segundo os

    bigrafos de Maquiavel, os novos donos do poder pretenderam, assim, dartoda nfase a seu alijamento. E como se as trs palavras no bastassem,se acrescentou mais uma, "totaliter", totalmente.

    Suspeito em um processo de conspirao, Maquiavel chegou a ser en-carcerado e foi, numa ocasio, aoitado com uma corda.

    Os anos seguintes viram sua insistncia -- que a tantos, nos sculosseguintes, pareceu abjeta -- de voltar a servir ao Governo, desta vez aoautoritarismo reinante.

    Abjeta, tambm, pareceu, a muitos, a dedicatria -- ou o pedido deemprego -- de O Prncipe. Mas, como se trata de Maquiavel, houvequem visse o final da dedicatria como:

    "cheio de respeito mas, ao mesmo tempo, de altivez".30

    constrangedor como um homem da estatura do florentino, comsua perspiccia, com sua lgica feroz, veja estreitados seus caminhosprofissionais.

    H um lado redimidor: o fato de que ele obedea a uma vocao, auma destinao irresistvel.

    Nasci, diz em carta,"para a palestra nas cortes dos prncipes."31

    E noutra carta, "O que posso fazer falar sobre o estado e me vejo forado oua fazer voto de silncio ou discutir sobre ele."32

    22 Conselhos aos Governantes

    (30) In Von Vertheimer, Oscar, ob. cit., p. 161.(31) In Von Vertheimer, Oscar, ob. cit., p. 142.(32) Carta a Francesco Vettori, de 9-4-1513, in Cartas ..., p. 72.

  • Mas h, tambm, a perspectiva amarga, que atravessou os sculos:a do adulador de tiranos, a do intelectual sempre disposto a servir, seja arepblicas, seja a principados, seja a organizaes democrticas, seja aoligarquias despudoradas.

    Poderia ser um problema do mercado de trabalho. Noutros tempos,os Plates, os Aristteles, os Protgoras, instruiriam toda a sociedadenas academias, nos ensinos sofsticos. Na Florena de Maquiavel, o his-toriador, o cientista social somente poderia se abrigar sob a proteo doprncipe, tanto quanto os pintores -- os Boticellis, os Jacopos de Ponterno;tanto quanto os arquitetos -- os Brunelleschis, os Michelozzis.

    Somente ocorreu a Maquiavel, que no tem vocao para os bancos,para o comrcio, e quer resistir como intelectual, uma outra alternativa:

    "Procurarei abrigo numa regio pobre qualquer, onde ensinareias crianas a ler."33

    Durante quase dez anos, a mesma sua cantilena a Vettori, nascartas que nos ficaram e, provavelmente, em tantas outras que se ex-traviaram: quer retornar a seu emprego.

    Volta Florena a ser, mais uma vez, repblica. E Maquiavel ,mais uma vez, suspeito nova situao. Morre amargurado.

    Em seu tmulo, puderam escrever:"Tanto Nomini Nullum par Elogium." (Nenhum elogiocorresponde grandeza deste nome.)

    Mas o levantamento e a comparao entre os vrios Maquiavisbem permitiram a retificao:

    "Nenhum elogio e nenhuma infmia correspondem grandezae execrao deste nome."

    Apresentao 23

    (33) Carta a Francesco Vettori, de 10-6-1514, in Cartas ..., p. 147.

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    CONSELHOS AOSGOVERNANTES

  • ISCRATESA Nicocls

    Traduo do francs de

    Jean-Franois Cleaver

  • Iscrates

    Iscrates -- nascido em 436 a.C. e falecido em 338 a.C. -- fora amigo deEugoras, rei de Salamina, na ilha de Chipre.

    Com a morte deste, subiu ao trono seu filho, Nicocls.Iscrates enviou, ento, ao novo soberano, que havia sido seu aluno, recomen-

    daes, e o fez, anotam os analistas, sem antes formular as lisonjas autorizadas ou,at, impostas pelo costume a quem se dirigia a governantes. Agiu assim por sua inde-pendncia de carter, por uma grande estima a Nicocls ou por se julgar com per-misso dada sua condio de antigo mestre.

    O aluno, agradecido, enviou-lhe sessenta talentos de ouro.

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    SUMRIO

    Argumentopg. 31

    Introduopg. 33

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    Argumento

    Iscrates tivera relaes de amizade com Euagoras,1 Rei de Sala-mis, reino da ilha de Chipre.2 Nicocls, filho de Euagoras, fora discpulode Iscrates. Ao alcanar a realeza com a morte do pai, Nococls rece-beu de Euagoras um discurso sobre os deveres dos reis. Nesse, Iscratesministrava-lhe conselhos diretamente, sem antes formular essas lisonjasautorizadas ou, at, impostas pela praxe a quem se dirige a figura de altadignidade. Assim fazia, quer fosse por independncia de carter, pela suagrande estima por Nicocls ou, ainda, por julgar-se autorizado a mantera atitude de mestre. E Nicocls, muito longe de melindrar-se, manifestousua gratido mandando-lhe sessenta talentos de outro, emagradecimento.

    (1) O tradutor adotou, em todos os nomes prprios do texto, a grafia empregadapelo Dicionrio Oxford de Literatura Clssica. Em outras obras, encontram-se as for-mas Eugoras e Nicocls. (N.T.)

    (2) Existe certo risco de confuso entre duas regies distintas e distantes, cujosnomes so muito parecidos, talvez at semelhantes em grego. Salamina [emgredo Salamis, em francs Salamine] uma ilha situada perto da tica, perto daqual se desenrolou em 480 a.C. a batalha naval, em que os gregos arrasaram afrota persa. Muito distante, pois situada em Chipre, fica Salamis, cujo nome por-tugus igual ao de Salamina em grego, e designada no texto-fonte francs porSalamine (N.T.)

  • O discurso remetido a Nicocls admirvel pela sabedoria dos pre-ceitos e, sobretudo, por revelar o alto conceito em que Iscrates, ci-dado de uma repblica, tinha da realeza e os grandes deveres que im-pe. Iscrates pensa que um rei deve ser sbio, em atos, pensamentos epalavras. Deve ser culto, laborioso, pautado. Deve ser nobre e generoso,rodeado de homens virtuosos e capazes, que ele deve procurar e chamarjunto a si. Deve repudiar o vcio, afastar a mediocridade e sempre darempregos e autoridade aos mais dignos. Deve ser leal em todos os atos,ser grande em tudo quanto diga respeito sua pessoa e ao seu poder.Deve tirar a sua fora da ordem e regularidade da sua administrao e daprosperidade crescente dos particulares, no de impostos excessivos.Deve, por fim, amar o seu povo, proteg-lo, fazer-se amar dele, semdeixar de mostrar-se severo quando o exige a justia; pois a bondade,quando aliada fraqueza, suscita a ingratido e leva ao desprezo.

    Este discurso parece ter sido escrito em 376 a.C., algum tempo de-pois de Nicocls ascender ao trono de Salamis. Iscrates tinha, ento,cerca de sessenta e trs anos. O discurso honra tanto Iscrates quantoNicocls: aquele, pela sabedoria e nobre liberdade com que se expressa;este, ao provar que Iscrates continuava nutrindo estima pelo seu antigodiscpulo.

    Assim como ocorreu em relao ao Demonicus,3 houve quem afir-masse que o discurso dirigido a Nicocls no obra de Iscrates. Mas,como poderamos duvidar de tal, se o prprio Iscrates menciona estediscurso na fala de Nicocls sobre os deveres dos reis, como tambm ofaz no seu discurso Sobre a permuta, no qual chega a citar um trecho de ANicocls?

    32 Conselhos aos Governantes

    (3) O tradutor no conseguiu identificar a forma portuguesa deste ttulo e o deixouna forma encontrada no texto francs. (N.T.)

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    Introduo

    1. Carter deste discurso, que se destina a ministrar preceitos sobreos deveres dos reis, e vantagem de tal presente em relao queles que secostuma oferecer. Os homens de condio privada tm numerosasoportunidades de aprender sobre os seus deveres. Os reis, que exercema mais difcil misso na terra, no tm praticamente nenhuma oportuni-dade de fazer o mesmo. Por isso, os reis, que poderiam ser os homensmais felizes, levam vida extremamente atribulada, sendo completamenteerrneo o juzo da multido sobre as suas condies de vida.

    2. tarefa louvvel ensinar o que devem procurar ou repudiar osreis em geral, ainda quando a execuo seja plido reflexo do escopo.

    3. Preceitos, primeiro objeto a que devem aspirar os reis, que como a fonte dos seus deveres.

    4. Para alcanar esse objeto, o rei deve tornar-se superior aos ou-tros, cultivando o seu esprito e convivendo com homens destacadospela sabedoria.

    5. Os reis devem amar o seu povo, proteg-lo, mant-lo no dever,honrar os homens virtuosos, defender os cidados de qualquer ofensa.

    6. Regulamentos, institutos, leis, negociaes, processos, juzos;regras de administrao do Estado. Objetos nos quais devem mani-festar-se a magnificncia dos reis. Maneiras pelas quais se deve honrar osdeuses.

  • 7. Os homens que convm prestigiar. A guarda mais segura paraos reis. As riquezas dos particulares devem ser protegidas. O zelo pelaverdade. A conduta para com os estrangeiros. A clemncia com os ci-dados. Quando, e de que maneira, convm fazer guerra; moderao eiseno.

    8. Escolha dos amigos e dos homens que privam com os prn-cipes, escolha dos magistrados e ministros. H que ouvir o que oshomens dizem uns dos outros, punir os caluniadores e saber mandar emsi mesmo.

    9. As ocupaes de que devem gostar os reis. Coisas nas quais de-vem esforar-se por chegar superioridade. Honras que devem ser bus-cadas. Tendncias que devem ser dissimuladas. Inclinaes que devemser reveladas. A moderao dos reis exemplo para os cidados. Carac-teres pelos quais se reconhece um bom governante. H que deixar deherana, para os filhos, glria antes que riquezas. Magnificncia no ves-tir. Severidade nos hbitos de vida. Continncia no falar e nos atos.Moderao que deve ser observada em todas as coisas.

    10. Urbanidade com gravidade. Tipo de estudo que os reis devempreferir. Maneiras mais convenientes de ilustrar-se.

    11. A superioridade do esprito sobrepe-se beleza do corpo.Os reis devem praticar o que aprovam, o que consideram digno de emu-lao, o que prescrevem aos seus filhos. Quem so aqueles que podemser considerados sbios.

    12. Eplogo. Em preceitos desta natureza, o que se procura no tanto apresentar ensinamentos novos como reunir, de toda parte, omaior nmero possvel de ensinamentos, para oferec-los sob forma ca-paz de agradar. H conselhos que so teis, mas no agradam a quem osrecebe.

    13. Esse fato decorre da perversidade dos homens, que desejam oque lhes traz prejuzo e tm averso ao que lhes til. Disso resulta queaquele que deseja agradar multido deve, como Homero, oferece-lhefbulas e convert-las em ao, como fizeram os poetas trgicos.

    14. Um rei deve saber julgar de maneira original, no medindo ovalor dos homens e das coisas pela comodidade que lhe oferecem, maspela sua utilidade. Os homens devem ser estimados, antes de tudo, pela

    34 Conselhos aos Governantes

  • prudncia e oportunidade dos seus conselhos. Um conselheiro sbiodeve ser preferido a qualquer outro bem.

    15. Este presente diferente dos outros, na medida em que ganhamais valor com o uso, em vez de desgastar-se. [Lange]

    II1. Nicocls, aqueles que soem tazer-lhe, bem como aos outros

    reis, ricos tecidos, bronze, ouro lavrado com arte e outros objetos damesma natureza, raros em sua casa e abundantes na sua, esto evidente-mente traficando, e no presenteando-o, pois na realidade esto ven-dendo aquilo que lhe oferecem com muito mais habilidade que oshomens abertamente dedicados ao comrcio. Quanto a mim, pensei que,se eu pudesse definir corretamente os deveres de que deve cuidar e osatos de que deve abster-se para governar sabiamente Salamis e seu reino,estaria dando-lhe a prenda mais bela, mais til, a que mais convm euoferecer e voc aceitar.

    Muitas coisas contribuem para a educao dos simples particulares,em primeiro lugar, uma vida isenta de moleza e sensualidade e a obri-gao de prover s necessidades cotidianas; em segundo lugar, as leis quea todos nos governam, a liberdade que tm os amigos de dirigir-sereparos e os inimigos de acusar-se pelas suas respectivas faltas; por fim,os preceitos relativos conduo da vida, deixados por alguns dos an-tigos poetas: coisas essas em que os particulares encontram naturalmentemeios de aprimorar-se. J os reis no contam com os mesmos recursos,eles que, mais do que os outros homens, precisariam de aviso, vem-seprivados desses to logo sentam no trono. A maioria dos homens ficadistantes deles; os que deles privam s se aproximam para lisonje-los; e,transformados em donos das mais fartas riquezas e rbitros dos maioresinteresses, fazem to mau uso desses meios de poder que muitos se per-guntam se no se deve preferir, existncia dos reis, uma condio vul-gar e uma vida ilibada. Sem dvida, atentando somente para as honras,as riquezas, a autoridade, todos os homens julgam iguais a deusesaqueles que foram investidos da potncia soberana; quando, entretanto,considerarmos os seus receios, os perigos que correm e, lembrando opassado, os vemos ora sendo atacados por quem menos deveriaameaar a sua vida, ora obrigados a punir os seus entes mais amados,

    Iscrates a Nicocls 35

  • ora condenados a ambas as desgraas, somos levados a pensar que amais modesta existncia prefervel ao domnio de toda a sia, acom-panhado de tamanhas calamidades.

    A causa dessa desordem, dessa confuso, reside na opinio, muitocomum, que a realeza igual s funes sagradas,4 que qualquer homem capaz de exercer, quando na verdade a realeza a mais alta de todas asfunes, a que requer mais sabedoria humana.

    2. Apresentar-lhe conselhos sobre a conduo de cada negcio,para que o leve adiante com prudncia, garanta o seu xito e previna assuas conseqncias nefastas, dever dos homens que soem estar ao seulado. Quanto a mim, tentarei indicar-lhe no geral as virtudes para asquais dever tender ao longo de sua vida e os cuidados que devemocup-lo. Ser o trabalho que quero oferecer-lhe digno da grandeza dotema, uma vez concludo? Eis algo difcil de enxergar desde o incio.Muitas obras, em versos ou em prosa, que tinham suscitado altas esper-anas quando s existiam no pensamento do seu autor, s obtiveram,uma vez acabadas e dadas luz, fama muito inferior esperada. Mas, dequalquer maneira, empresa honrosa procurar lanar luz sobre verdadespouco lembradas e estabelecer princpios teis para o governo das mon-arquias. Os homens que instruem os simples particulares so teis ap-enas aos que recebem os seus conselhos; o homem que pudesse levar oschefes das naes virtude seria til aos prncipes, que comandam, e aospovos que obedecem, tornando assim o poder mais seguro, para uns, emais ameno o governo, para outros.

    3. preciso considerarmos, inicialmente, o que o dever dosreis, pois se assentarmos bem, em poucas palavras, aquilo em que residea potncia da realeza, sem perdermos de vista este ponto, desenvolvere-mos melhor as diversas partes do nosso tema.

    Todos concordaro, creio eu, em que o primeiro dever dos reis,quando a sua ptria infeliz, remediar os seus males; quando prspera, mant-la na prosperidade; quando fraca, torn-la potente. Aao cotidiana do governo deveria ter esses escopos; evidente que osque receberam tamanha potncia e devem decidir de tamanhos interes-ses no devem abandonar-se moleza e ao cio, mas sim zelar por que

    36 Conselhos aos Governantes

    (4) Nota do texto francs: Por exemplo, as funes que eram sorteadas.

  • ningum os supere em sabedoria; com efeito, inegvel que a prosperi-dade de seu reino ter a mesma medida que a sua habilidade. Por isso, osatletas tm menos interesse em fortificar o corpo do que tm os reis emdesenvolver as faculdades da alma, e os prmios oferecidos em nossassolenidades no so nada, quando comparados com os que voc pro-curar conquistar diariamente.

    4. Compenetrado dessas verdades, dedique a sua fora de espritoa colocar-se, pelas suas virtudes, acima dos outros homens, tanto quantoos supera pela posio; e no creia que o cuidado e a aplicao, tovaliosos em todas as outras situaes da vida, nada possam para tornar-nos melhores e mais sbios. No condene a humanidade a desgraa talque, havendo j encontrado meios de amansar os instintos dos animais eampliar a sua inteligncia, no tenhamos influncia suficiente sobre nsmesmos para aprender a virtude. Ao contrrio, convena-se de que oscuidados e a educao tm grande poder para aprimorar a nossa natureza.Chegue-se aos homens mais sbios entre os que o rodeiam; convide a entraros que voc puder atrair e no tolere desconhecer qualquer um dos poetasclebres ou dos filsofos estimados. Seja ouvinte daqueles, seja discpulodestes; prepare-se para ser o juiz dos menos habilidosos e o rival dos maisesclarecidos. Com a ajuda de tais exerccios, logo se tornar tudo o que deveser, em nossa opinio, um rei destinado a reinar com justia e governar comsabedoria. Encontrar em si poderoso motivo de emulao, se julgar con-trrio razo o fato de o mau reinar sobre o homem de bem e o insensatomandar no sbio; e voc ter tanto mais zelo em exercer a sua intelignciaquanto mais desprezo sentir pela incapacidade dos outros.

    5. Por a devem comear os que se destinam a governar bem;alm disso, devem ser amigos da humanidade e amigos da sua ptria. Oshomens, os cavalos, os ces, os seres de toda natureza no podem serdirigidos a contento se a afeio no preside aos cuidados de que soobjeto. Por isso, dedique-se ao povo e, sobretudo, a faz-lo gostar dasua autoridade, convicto de que, entre todos os governos, sejam elesoligrquicos ou de outra natureza, os mais duradouros so os que mel-hor sabem resguardar os interesses do povo. Voc exercer ao povo no-bre e til influncia se no permitir que insulte qualquer pessoa, nem queseja insultado; e se, reservando sempre as honras aos mais dignos, cuidarde proteger os outros cidados contra a injustia. Esses so os primeiros

    Iscrates a Nicocls 37

  • princpios, os princpios mais essenciais do bom governo. Elimine emodifique as leis e costumes viciosos; empenhe-se, sobretudo, emdescobrir as leis mais convenientes para o seu pas ou, pelo menos, imiteas de outros povos que sejam reconhecidamente boas.

    6. Procure leis que sejam globalmente justas e teis, leis que seacordem entre si, leis tais que os processos escasseiem e sejam pron-tamente decididos. As leis, para serem boas, devem satisfazer todas essascondies. Faa com que as transaes sejam vantajosas e prejudiciais osprocessos, de sorte que os cidados evitem estes e corram para aquelas.Nos diferendos surgidos entre particulares, d sentenas que no sejamditadas pelo favorecimento, nem contraditrias entre si, e decida sem-pre da mesma maneira em casos semelhantes. Interessa tanto utili-dade pblica quanto dignidade real serem imutveis as sentenas do reie sabiamente feitas as leis.

    Administre o seu reino como se administrasse a herana recebidado seu pai. Seja magnfico e rgio em todas as suas disposies e tenhacuidado e rigor em arrecadar impostos, para brilhar sobremaneira epoder arcar com todas as suas despesas. Nunca exteriorize a sua magni-ficncia em profuses efmeras, mas sim nas coisas que lhe apontamos,na suntuosidade dos seus palcios e nos favores que dispensa aos seusamigos. Usando das suas riquezas dessa maneira, conservar-lhes- osfrutos e deixar queles que lhe sucederem vantagens mais valiosas queos tesouros despendidos com nobreza.

    Cultue devidamente os deuses, seguindo os exemplos deixadospelos seus ancestrais; creia, no entanto, que o mais belo sacrifcio, ahomenagem maior, ser mostrar-se justo e virtuoso. O homem animadodesses nobres sentimentos pode contar com o favor divino, mais do queaquele que imola muitas vtimas.

    7. Honre os seus parentes mais prximos com funes deprestgio e entregue os empregos que conferem poder de fato aos seusamigos mais dedicados.

    Considere que a sua melhor garantia de segurana a virtude dosseus amigos, a boa vontade dos seus concidados e a sua prpria sabe-doria: com a ajuda desses recursos que se pode adquirir o poder e con-serv-lo.

    38 Conselhos aos Governantes

  • Zele pela maneira segundo a qual os cidados administram aprpria fortuna; veja aqueles que esbanjam como homens prdigos dafortuna real e creia que aqueles que se enriquecem pelo prprio trabalhoesto acrescendo os tesouros do rei. A fortuna dos cidados faz a ri-queza dos reis que governam sabiamente.

    Demonstre, por todos os aspectos da sua vida, tal respeito pelaverdade que as suas palavras inspirem mais confiana que as juras dosoutros homens.

    Oferea a todos os estrangeiros asilo em sua cidade e faa com queeles encontrem, em todas as transaes, respeito s leis. Prefira, quelesque lhe trazem presentes, os que desejam receb-los de voc. Os favoresque voc fizer aumentaro a sua fama.

    Expulse o terror do seio do seu povo e no permita que o inocenteseja levado a temer, pois os sentimentos que voc inspirar aos seus con-cidados, voc tambm h de senti-los em relao a eles.

    No faa nada com clera, mas mostre-se irritado quando a ocasioo exigir.

    Seja temvel por exercer implacvel vigilncia; seja indulgente, im-pondo sempre castigos que ficam aqum das faltas.

    Faa respeitar a sua autoridade, no pela dureza no comando oupelo rigor dos suplcios, mas sobrepondo-se aos outros homens pela sa-bedoria e deixando-os convictos de que voc lhes d mais segurana doque teriam por meios prprios.

    Prove ser um rei belicoso, pela cincia da guerra e pelo aparatoblico, demonstre ser um prncipe amigo da paz, pela sua averso aqualquer expanso injusta.

    Comporte-se com os Estados mais fracos como gostaria de sertratado pelos Estados mais poderosos.

    No suscite contestaes sobre toda espcie de assunto; atenha-sequelas que, se ganhas, podem trazer-lhe alguma vantagem.

    No olhe com desprezo os que sucumbem atingindo um resultadotil, mas sim aqueles que obtm uma vitria prejudicial aos prprios in-teresses.

    Iscrates a Nicocls 39

  • Creia que a grandeza de alma no est nos homens que empreen-dem mais do que podem executar, mas naqueles que, perseguindo comardor o que nobre e grande, podem executar o que empreendem.

    No entre em rivalidade com os homens que estenderam suapotncia aos confins, mas com os que melhor a usam; creia que ser fe-liz, no mandando a todos os homens em meio a terrores, perigos esofrimentos, mas, sendo o que deve ser e atuando como atua hoje,tendo apenas desejos moderados, sempre coroados de sucesso.

    8. No admita como amigos seus todos aqueles que desejarem asua afeio, mas apenas os que so dignos de obt-la; no aqueles cujacompanhia lhe seja mais agradvel, mas sim os que melhor poderoajud-lo a governar o seu pas com sabedoria.

    Mantenha-se sempre informado sobre o valor das pessoas que oodeiam, sabendo que os que no podem aproximar-se de voc o jul-garo igual aos homens que privam da sua intimidade.

    Ao escolher quem deva encarregar-se de negcios que no admin-istra pessoalmente, nunca perca de vista que voc quem arcar com aresponsabilidade dos seus atos.

    Considere os mais fiis amigos, no aqueles que aprovam todas assuas palavras e elogiam todas as suas aes, mas sim os que censuram osseus erros.

    Permita que as pessoas sbias expressem a sua opinio, para ter,nas questes delicadas, conselheiros que possam proficuamente ex-amin-las com voc.

    Saiba distinguir os cortesos, que adulam com arte, dos amigos,que servem por devoo, para no dar mais crdito aos maus do que aoshomens virtuosos.

    Oua o que os homens dizem uns dos outros e procure ter luzestanto sobre os que falam quanto sobre aqueles de quem se fala.

    Castigue os caluniadores com as penas em que incorreriam os cul-pados.

    No tenham menos domnio sobre voc mesmo do que sobre osoutros homens; creia que no h nada mais rgio do que libertar-se dojugo das suas paixes e seja ainda mais senhor dos seus desejos do quedos seus concidados.

    40 Conselhos aos Governantes

  • No crie vnculos com qualquer pessoa ao acaso e sem reflexo,mas acostume-se a ter prazer nas conversas que aumentam a sua sabe-doria e reputao.

    9. No procure destacar-se nos atos que homens viciosos podemrealizar como voc; tenha orgulho da virtude, na qual no podem terparte os maus.

    Medite que as verdadeiras honras no residem nas homenagensprestadas publicamente e inspiradas pelo receio, mas nos sentimentosdaqueles que, na intimidade da famlia, admiram mais a sua sabedoria doque a sua fortuna.

    Caso voc goste de algo frvolo, oculte essa franqueza ao pblico,mostre-lhe apenas o seu zelo por aquilo que nobre e grande.

    No creia que ter uma vida decente e honesta equivalha a participarde algo vulgar e que viver na desordem seja privilgio dos reis. Oferea aregularidade da sua vida como modelo para os seus concidados e noesquea que os costumes dos povos se formam a partir dos costumesdos homens que os governam.

    Voc ter uma prova da sabedoria do seu governo se vir que assuas diligncias garantiram mais riqueza e costumes mais honestos aospovos sobre os quais reinou.

    Prefira deixar aos seus filhos um nome glorioso do que grandes ri-quezas. As riquezas so perecveis, a glria imortal. As riquezas podemser adquiridas pela glria, a glria no se compra com riquezas. As ri-quezas so, s vezes, compartilhadas pelos maus, mas a glria s podeser adquirida por homens de virtude superior.

    Tenha magnificncia no vestir e em tudo o que possa contribuir para obrilho da sua personalidade, mas seja simples e austero no resto dos seuscostumes, como convm aos que governam, para que os que vem a magni-ficncia sua volta o creiam digno de reinar, e que os que se aproximam devoc, vendo a fora da sua alma, formem a mesma opinio.

    Esteja sempre disciplinando as suas palavras e atos, para cometer omenor nmero possvel de faltas.

    O mais importante, nos negcios, perceber qual o ponto de quedepende o xito; como esse ponto difcil de identificar, melhor noatingi-lo do que passar dele. A verdadeira sabedoria fica aqum do ob-jetivo, em vez de passar alm.

    Iscrates a Nicocls 41

  • 10. Procure unir a polidez gravidade. A gravidade convm potncia soberana; a polidez o ornamento da sociedade. Este duplopreceito , de todos, o mais difcil de observar; quase sempre, os queafetam gravidade incorrem em frieza, e quem procura ser educado podeparecer humilde e rasteiro. preciso, reunindo as duas qualidades queindicamos, evitar a desvantagem inerente a cada uma delas.

    Se quiser aprofundar os conhecimentos que convm aos reis, juntea experincia teoria; a teoria lhe mostrar o caminho e a experincia lhepermitir andar com passos firmes nesse caminho.

    Pense nas vicissitudes e desgraas que afetam os particulares e osreis, as lembranas do passado reforaro a sabedoria dos seus consel-hos para o futuro.

    Fique convicto que, quando simples particulares aceitam sacrificar asua vida para serem louvados aps a sua morte, uma vergonha, para osreis, no terem a coragem de destacar-se por atos que lhes dem, emvida, fama honrosa.

    Faa com que as suas esttuas permaneam como monumentos sua virtude, mais do que como lembrana da sua pessoa.

    Antes de tudo, esforce-se por garantir a sua segurana e a do seureino; mas, se houver que enfrentar perigos, prefira morrer com glria aviver na vergonha.

    Em todas as suas aes, lembre que voc rei e tenha todo o cui-dado para no fazer nada que seja indigno dessa posio suprema.

    11. Receie morrer por inteiro e, j que recebeu da natureza umcorpo perecvel e uma alma imortal, empenhe-se em deixar da sua almauma lembrana que no morra.

    Habitue-se a falar de costumes e aes honrosas, para nutrir, noseu corao, sentimentos condizentes com o objeto das suas conversas.Aquelas coisas que lhe parecem melhores quando est refletindo s, re-alize-as nas suas aes.

    Imite os homens cuja glria excita a sua emulao.Os conselhos que voc daria aos seus filhos, creia que digno voc

    tambm segui-los.Faa uso dos preceitos que lhe ofereo, ou procure achar outros,

    melhores.

    42 Conselhos aos Governantes

  • Considere sbios, no os homens que empreendem discussesminuciosas sobre temas frvolos, mas os que tratam com habilidade dasquestes importantes; no os que prometem a felicidade aos outros,vivendo na misria, mas os que, falando com reserva do que lhes diz re-speito, so capazes de tratar utilmente homens e negcios e, sem nuncaserem afetados pelas vicissitudes da vida, sabem passar pela boa e mfortuna com a mesma nobreza e moderao.

    12. E no estranhe haver, nas coisas que eu lhe disse, muitas jconhecidas de voc; este ponto no me escapou. No estava eu sem sa-ber que grande nmero de particulares e prncipes j tinham formuladoparte destas verdades, que outros as tinham ouvido proclamar, outros astinham visto sendo aplicadas e outros, ainda, j as estavam aplicandopor conta prpria. Mas no nos discursos destinados a expor regras deconduta que se dever procurar idias novas. Nesses discursos, no hlugar para qualquer coisa paradoxal, ousada, contrria s idias esta-belecidas, e quem capaz de reunir o maior nmero de verdades espas-sas nos pensamentos dos homens para apresent-las da forma mais elo-qente deve ser visto, entre todos os escritores, como o mais digno deagradar. Tampouco ignorava eu que, entre todos os discursos e escritos,em prosa e em verso, os que tm por objeto oferecer conselhos so uni-versalmente considerados os mais teis, por quem os escuta, porm noos mais agradveis. Tem-se para com eles o mesmo sentimento reser-vado aos homens que se prezam de dar conselhos: todos os louvam,mas ningum os procura, e preferimos a companhia dos que compartil-ham os nossos erros dos que nos demovem de comet-los. Poder-se-ia, em apoio do que digo, citar as poesias de Hesodo, de Tegnis e deFocilides. Esses grandes homens so proclamados os melhores consel-heiros da vida humana, mas aqueles mesmos que o declaram preferemgastar o tempo em conversas frvolas a nutrir-se com as suas sbias dou-trinas. Ainda mais, se algum escolhesse, nas obras dos maiores poetas,os trechos trabalhados com mais esmero, e que so chamados de mxi-mas, essas mximas seriam acolhidas com a mesma disposio, sendosempre a comdia mais ftil ouvida com mais prazer do que o so pre-ceitos elaborados com arte to perfeita.

    13. Alis, haver necessidade de deter-nos em cada objeto? Se quis-ermos examinar no geral a natureza dos homens, veremos que, em sua

    Iscrates a Nicocls 43

  • maioria, no se sentem atrados pelos alimentos mais sadios, nem pelasocupaes mais nobres, nem pelas melhores aes, nem pelos preceitosmais teis; veremos que procuram os prazeres mais contrrios aos seusinteresses e consideram modelos de constncia e energia homens que scumprem com alguma parte dos seus deveres. Como se poderia agradara semelhantes ouvintes, dando-lhes conselhos, instrues ou avisosteis, se, alm de tudo o que dissemos, atormentam os homens sbioscom a sua inveja e julgam que os insensatos so apenas homens simplese abertos? To longe da verdade esto eles que ignoram at os assuntosque lhes dizem respeito; irritam-se quando tm de tratar dos seusprprios interesses; s gostam de discutir os interesses de outrem e sub-meteriam o prprio corpo a torturas de todo tipo antes que exercer oesprito no trabalho e dedicar ateno a alguma coisa necessria. Reuni-dos, trocam escrnios e insultos. Se esto ss, voc no os encontrarrefletindo, mas afagando desejos quimricos. No digo isso de todos oshomens: digo-o daqueles que tm os defeitos que apontamos.

    Destarte, evidente que os que desejarem escrever, seja em versoou em prosa, de forma a agradar multido, no devem prender-se sverdades mais teis mas, antes, s fices mais maravilhosas. A multidoaprecia tais relatos, comove-se vendo lutas e combates. Por isso, de-vemos admirar o gnio potico de Homero e dos primeiros inventoresda tragdia; tendo avaliado a natureza humana, deram aos seus relatosas duas formas que acabamos de citar. Homero representou, nas suasfices, os combates e as guerras dos semideuses; os poetas trgicosleram essas mesmas fices ao cenrio, em relatos e aes, de maneira atornar-nos ao mesmo tempo ouvintes e espectadores. Em face de semel-hantes exemplos, fica evidente, para aqueles que desejam encantar osseus ouvintes, que devem cuidadosamente abster-se de dar avisos ouconselhos, empenhando-se em dizer ou escrever o que acharem maisprprio para agradar multido.

    14. Apresentei-lhe este quadro pensando que voc, que no homem da multido, mas a governa, no deve ter os mesmos sentimen-tos que o vulgo e deve avaliar a relevncia das coisas e o valor doshomens pela sua utilidade, no pelo prazer que posam oferecer. Chegueia tal opinio, sobretudo, aps reconhecer que os mestres de sabedoriadivergiam quanto aos meios de desenvolver as faculdades da alma, anun-ciando que tornariam seus discpulos mais sbios e habilidosos usandoora as discusses da dialtica, ora os discursos polticos, ora outros

    44 Conselhos aos Governantes

  • meios, mas ficando todos de acordo num ponto: o homem formado pornobre educao deveria ser capaz de tirar, de cada uma dessas fontes,elementos de sabedoria. Assim que preciso, para julgar com certeza,abandonando as coisas controversas, estear-se no que admitido por to-dos e, sobretudo, avaliar os homens pelos conselhos que do em deter-minadas circunstncias ou, pelo menos, pelo que dizem em relao a to-dos os negcios. Por fim, voc deve rechaar aqueles que, em relaoaos assuntos que lhes dizem respeito, no sabem nada do que precisosaber: evidente que aquele que no pode ser til a si mesmo nuncaensinar sabedoria a ningum. Ao contrrio, outorgue a sua estima eapoio aos homens esclarecidos, aos homens cuja viso alcana alm dados espritos vulgares, convicto que um sbio conselheiro o mais til, omais rgio de todos os tesouros; por fim, creia que os homens que lheoferecerem mais recursos para cultivar a sua inteligncia so os que maiscontribuiro para a grandeza do seu reino.

    15. Digirindo-lhe estes conselhos, proporcionados pelas minhasluzes, honro-o com os meios dos quais disponho. Quanto a voc, comodisse no incio deste discurso, no permita mais que lhe tragam essespresentes consagrados pelos hbitos, que voc, assim como os outrosreis, compra daqueles que os oferecem muito mais caro do que o fariade quem os vende, e prefira ddivas que, muito longe de desgastarem-secom o uso que delas faa, adquiram a cada dia novo valor.

    Iscrates a Nicocls 45

  • Plato, escultura romana baseada em original grego do sc. III a.C. (Museu do Vaticano, Roma)

    PLATOAos parentes e amigos de Dio

  • Plato

    Plato nasceu em 427 a.C. e faleceu em 348 a.C.Seu nome era Arstocles, mas o apelido, que o celebrizou, veio em razo do fato

    de possuir ombros largos. Dada a fortuna de sua famlia, recebeu educao esmerada.Suas obras mais conhecidas so A Repblica e As Leis.Ligando-se a Dio, cunhado do tirano Dionsio, o Velho, de Siracusa, Plato

    tentou converter em um bom rei Dionsio, o Jovem, que substitura o pai. A carta aosamigos de Dio, d conta de seus esforos.

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    De Plato aos amigos e parentes de Dio

    Escreveis-me convictos da conformidade das vossasidias com as de Dio, e pedeis-me instantemente para vos ajudar namedida do possvel pelos meus atos e palavras.

    Seguramente, consinto em colaborar, se na verdade a vossamaneira que seus, de contrrio teria necessidade de refletir melhor. Dassuas concepes e projetos posso falar com segurana. Com efeito,quando pela primeira vez fui a Siracusa, tinha cerca de quarenta anos;Dio tinha a idade que tem hoje Hiparinos e via ento as coisas comonunca deixou de as ver ento: os siracusanos, na sua opinio, deveriamser livres e reger-se pelas melhores leis. No seria, pois, surpreendenteque as idias polticas de Hiparinos, graas a uma interveno divina,surgissem conformes s de Dio. Quanto sua gnese, vale a pena serconhecida, tanto dos jovens como dos mais velhos.

    Vou tentar fazer-vos a narrao desde a origem: as presentes cir-cunstncias a tanto do ensejo.

    Outrora na minha juventude experimentei o que tantos jovens ex-perimentaram. Tinha o projeto de, no dia em que pudesse dispor demim prprio, imediatamente intervir na poltica. Ora vejamos, como en-to se me apresentara a situao dos negcios da cidade: a forma degoverno existente, sujeita a crticas diversas, conduziu a uma evoluo. cabea da nova ordem cinqenta e um cidados foram eleitos chefes,

  • onze na cidade, dez no Pireu (estes dois grupos foram encarregados da"gora" e de tudo o que concernia administrao das cidades) -- mastrinta constituam a autoridade superior com poder absoluto. Vrios deentre eles sendo ou meus parentes, ou conhecidos, logo me atraram a si,para tarefas que me convinham. Alimentei iluses que no tinham nadade espantoso devido minha juventude. Imaginava, de fato, que elesgovernariam a cidade, desviando-a dos caminhos da injustia para os dajustia. Observava tambm com ansiedade o que iriam fazer. Ora, viaqueles homens em pouco tempo fazerem lamentar os tempos da antigaordem como uma idade de ouro. Entre outros, ao meu querido e velhoamigo Scrates, que no me canso de proclamar como o homem maisjusto do seu tempo, quiseram associ-lo tentativa de levar pela foraum cidado a ser condenado morte, isto com o objetivo de por algumaforma o comprometerem na sua poltica. Scrates no obedeceu, epreferiu expor-se aos maiores perigos a tornar-se cmplice de aescriminosas.

    Em face de todas estas coisas e a outras do mesmo gnero, e deno menos importncia, fiquei indignado e afastei-me das misrias dessapoca. Depressa os trinta caram e, com eles, todo o seu regime. Denovo, e ainda que com maior prudncia, estava desejoso de ocupar dastarefas do estado. Ocorriam ento, j que era um perodo conturbado,muitos fatos revoltantes e no de admirar que as revolues tenhamservido para multiplicar os atos de vingana pessoal. Entretanto, os queregressaram usaram de bastante mais moderao.

    Mas, sem que eu desse conta de como acontecia, cidadospoderosos conduzem aos tribunais este mesmo Scrates, nosso amigo, efizeram-lhe uma acusao das mais graves, que de forma alguma elemerecia: por impiedade que uns o acusam diante do tribunal e outros ocondenam e fazem morrer o homem que, quando eles prprios afas-tados do poder e cados em desgraa, no quis participar na criminosapriso de um dos seus amigos, ento banido. Assistindo a isto e vendoos homens que conduziam a poltica, mais me debruava sobre as leis eos costumes, e quanto mais avanava na idade, mais me parecia difcilbem administrar os negcios do estado. Por um lado, sem amigos e semcolaboradores fiis, isso no me parecia possvel. Ora, entre os cidadosatuais no era cmodo encontr-los, pois j no era segundo os usos e

    50 Conselhos aos Governantes

  • costumes dos nossos antepassados que a nossa cidade era governada;quanto a adquirir novos, no seria fcil faz-lo. Alm disso, a legislao ea moralidade estavam corrompidas a tal ponto que eu, inicialmentepleno de ardor para trabalhar a favor do bem pblico, considerando estasituao e vendo como tudo caminhava deriva, acabei por ficar con-fuso.

    No deixei, entretanto, de procurar nos acontecimentos e especial-mente no regime poltico os possveis indcios de melhoras, mas espereisempre o bom momento para agir. Acabei por compreender que todosos estados atuais so malgovernados, pois a sua legislao prati-camente incurvel sem enrgicos preparativos coincidindo com felizescircunstncias. Fui ento irresistivelmente conduzido a louvar a ver-dadeira filosofia e a proclamar que, somente sua luz se pode reconhe-cer onde est a justia na vida pblica e privada. Portanto, os males nocessaro para os humanos antes que a raa dos puros e autnticos filso-fos chegue ao poder, ou antes que os chefes das cidades, por uma divinagraa, se no ponham a filosofar verdadeiramente.

    Tal era o estado das minhas reflexes quando cheguei Itlia eSiclia pela primeira vez. Ento, essa vida, a considerada feliz,preenchida por perptuos festins italianos e siracusanos, enjoava-me detodo: emborrachar-se duas vezes por dia, nunca se deitar sozinho denoite... e tudo o que completa este gnero de existncia. Com semelhan-tes hbitos no existe homem algum sob o cu que, levando essa vidadesde a infncia, possa tornar-se sensato (que natureza seria to maravil-hosamente equilibrada?), nem jamais adquirir sabedoria; outro tantodiria de todas as outras virtudes. Da mesma forma no existe cidade quepossa tornar-se tranqila sob as suas leis, por boas que sejam, se os ci-dados crem dever entregar-se a loucas polticas, e alm disso, aban-donar-se completa ociosidade, salvo os banquetes ou libaes --, equando dispendem os seus esforos a consumar os seus amores. Neces-sariamente, tais estados no cessaro jamais de caminhar em sobressal-tos de tirania em oligarquia e em democracia, e os que governam no su-portaro mesmo ouvir falar no nome de um governo de justia e deigualdade.

    Fazia, ento, estas reflexes e as precedentes durante a minhaviagem a Siracusa. Seria por acaso? Creio antes que um deus se esforava

    Plato / Dio 51

  • por pr em marcha todos os fatos que se desenrolam presentemente re-lativos a Dio e aos siracusanos. E preciso ainda temer piores males,se no seguirdes os conselhos que vos dou pela segunda vez. Mas entocomo posso sustentar que a minha chegada Siclia estivesse na origemde todos estes acontecimentos? Nas minhas relaes com Dio, que eraainda jovem, desenvolvendo-lhe as minhas opinies sobre o que meparecia o melhor para os homens e, exortando-o a realiz-las, arrisquei-me a no me ter apercebido de que, de certa maneira, trabalhava incon-scientemente para a queda da tirania. Pois Dio, muito aberto a todas ascoisas, especialmente aos discursos que lhe fazia, compreendia-me admi-ravelmente, melhor que todos os jovens com quem jamais convivi. De-cidiu enveredar por uma vida diferente da que levava a maior parte dositalianos e sicilianos, dando muito mais importncia virtude que a umaexistncia de prazer e sensualidade. Desde ento, a sua atitude tornou-secada vez mais odiosa aos partidrios do regime tirnico, e isto a mortede Dionsio.

    Depois deste acontecimento, projetou no reservar apenas para si estessentimentos, que a verdadeira filosofia lhe havia feito adquirir. Verificou, deresto, que outros espritos tinham sido conquistados, poucos sem dvida,mas alguns, no entanto, e entre eles julgou com a ajuda dos deuses, poderem breve contar [o jovem] Dionsio. Ora, se assim fosse, que vida de ini-maginvel felicidade no seria a dele, Dionsio, e de todos os siracusanos!Alm disso, julgou que eu devia, de qualquer forma, voltar o mais rapida-mente possvel a Siracusa para cooperar nos seus projetos; no esquecia fa-cilmente que a nossa ligao lhe tinha inspirado uma vida bela e feliz. Se ag-ora ele inspirasse esse mesmo desejo em Dionsio, como tentava, tinha amaior esperana de estabelecer em todo o pas, sem massacres, sem mortes,sem todos esses males que atualmente se produzem, uma vida feliz e ver-dadeira. Dominado por estes justos pensamentos, Dio persuadiu Dionsioa chamar-me e ele mesmo me rogou que fosse o mais depressa possvel, noimportava como, antes que outras influncias se exercessem sobre Dionsio,conduzindo-o a uma existncia diferente da vida perfeita. Devo ser umpouco longo, mas eram estas as suas palavras: "Que melhor ocasio esper-aramos, dizia, que aquela que atualmente nos oferece o favor divino?" De-pois, descrevia-me esse imprio da Itlia e da Siclia, o poder que tinha, ajuventude de Dionsio e o seu gosto muito vivo pela filosofia e pela

    52 Conselhos aos Governantes

  • cincia, seus sobrinhos e parentes, to fceis de captar para a doutrina epara a vida que eu no cessava de enaltecer, e prontos tambm eles, a in-fluenciar Dionsio. Em suma, nunca como agora, se podia esperar reali-zar a unio, nos mesmos homens, da filosofia e do governo das grandescidades. Tais eram, estas e outras, as suas exortaes. Mas eu, por umlado, no deixava de estar inquieto a respeito dos jovens, sobre o queaconteceria um dia -- porque os seus desejos so impetuosos e mudam-se muitas vezes em sentido contrrio -- sabia, por outro lado, que Diopossua um carter naturalmente grave e que tinha uma idade j madura.Como eu refletisse e me interrogasse se valeria ou no a pena pr-me acaminho e ceder s solicitaes, o que, no entanto, fez pender a balanafoi o pensamento de que se nunca puderam ser realizados os meus planoslegislativos e polticos, seria agora o momento de experimentar: no tinhaseno que persuadir suficientemente um nico homem e tudo estaria re-solvido.

    Neste estado de esprito, aventurei-me a partir. No me impeliamos motivos que alguns imaginam, mas antes o receio de, aos meusprprios olhos, passar por fala-barato que no quer jamais deitar mos obra e de me arriscar a trair a hospitalidade e a amizade de Dio numaaltura em que ele corria srios riscos. Ora, se lhe acontecesse qualquercoisa, se, expulso por Dionsio e pelos seus outros adversrios, apare-cesse diante de mim e me dissesse: "Plato, sou um proscrito; e noforam os hoplitas ou os cavaleiros que me fizeram falta para me defen-derem dos meus inimigos, mas sim aqueles persuasivos discursos pormeio dos quais podes, bem o sei, levar os jovens ao caminho do bem eda justia e estabelecer ao mesmo tempo entre eles, em qualquer circun-stncia, laos de amizade e camaradagem. Isto faltou-me por tua culpa,razo por que deixei Siracusa e me encontro aqui. Mas o meu destinono ainda a tua maior vergonha: filosofia, de que falas a todo o mo-mento e que dizes desprezada pelos homens, como no a ters tradotanto como a mim, pois tambm ela dependia de ti? Se nshabitssemos Mgara e eu te chamasse, certamente terias corrido emmeu auxlio ou ento considerar-te-ias o pior dos homens. E agora agar-ras-te ao pretexto da distncia, da importncia da travessia, da fadiga eacreditas que podes escapar a que no futuro te chamem fraco? Estouconvencido de que ainda no chegaste a tanto." Pois bem, que poderia

    Plato / Dio 53

  • eu responder de vlido a estas palavras? Nada. Parti, portanto, pormotivos justos e razoveis, tanto quanto o podem ser os motivoshumanos, deixando por sua causa as minhas ocupaes habituais queestavam longe de ser medocres, para ir viver sob a alada de uma ti-rania que em nada parecia convir nem aos meus ensinamentos nem minha pessoa. Apresentando-me em vossa casa, saldava a minhadvida para com Zeus hospitaleiro e livrava de qualquer censura ofilsofo que, em mim, teria sido difamado, se, por comodismo etimidez, me tivesse desonrado.

    Quando cheguei -- no necessrio que nos alonguemos mais -- ap-enas encontrei perturbaes volta de Dionsio: caluniava-se Dio juntodo tirano. Defendi-o com todas as minhas foras, mas o meu poder erafraco e ao cabo de cerca de trs meses Dionsio acusou Dio de conspi-rar contra o regime tirnico, f-lo embarcar num pequeno barco e expul-sou-o vergonhosamente. Depois disto, ns, os amigos de Dio,temamos ver um ou outro inculpado e punido como cmplice das intri-gas de Dio. A meu respeito, corria j em Siracusa o boato de que eutinha sido condenado morte por Dionsio, como sendo a causa detudo quanto acontecera. No entanto, este ltimo, vendo-nos assim alar-mados e receando que o medo nos conduzisse a atos mais graves,tratava-nos com benevolncia, e a mim especialmente encorajava-me, le-vava-me a ter confiana e pedia-me instantemente que ficasse, porque,se o deixasse, nada de bom adviria para ele, ao contrrio do que aconte-ceria se eu permanecesse. Eram estas as razes por que ele fingia supli-car-me com insistncia. Ora, ns sabemos at que ponto os pedidos dostiranos se confundem com verdadeiras ordens. Assim, tomou medidaspara impedir a minha partida: ordenou que me conduzissem e instalas-sem na Acrpole. Nenhum capito de navio me poderia trazer dali con-tra a vontade de Dionsio, a menos que ele desse uma ordem expressade embarque. Mercadores ou guardas de fronteira, no existia ningumque, surpreendendo-me a tentar deixar sozinho o pas, me no tivessemandado parar e conduzido imediatamente junto de Dionsio; a talponto que um novo boato se espalhava, completamente contrrio aoprimeiro: Dionsio, dizia-se, havia-se ligado a Plato por uma fortssimaamizade. De que se tratava, na realidade? necessrio dizer a verdade.Com o tempo, ele ia, sem dvida, afeioando-se mais a mim, medida

    54 Conselhos aos Governantes

  • que se familiarizava com os meus modos e o meu carter, mas, por ou-tro lado, queria que eu demonstrasse mais estima por ele do que porDio e que acreditasse ser a sua amizade muito maior que a deste ltimo.

    extraordinrio como ele fazia disso o seu ponto de honra. Hesi-tava, no entanto, em enveredar pelo caminho que lhe teria sido maisseguro, supondo que alguma vez tal fosse possvel, isto , em familiari-zar-se como discpulo e auditor das minhas doutrinas filosficas: ele re-ceava, seguindo os propsitos dos caluniadores, que isso diminusse dequalquer maneira a sua liberdade, sendo Dio o maquinador de tudo.

    Por meu lado, eu sujeitava-me a tudo, fiel primeira inteno queme havia trazido, no caso de que o desejo da vida filosfica viesse a se-duzi-lo. Mas as suas resistncias dominaram-no.

    Foram estas, portanto, as vicissitudes que preencheram o primeiroperodo da minha estada na Siclia. Em seguida, parti, mas regressei umavez mais devido aos pedidos incessantes de Dionsio. At que pontoforam razoveis e justos os meus motivos e todas as minhas aes? Mas,antes de os contar, dar-vos-ei os meus conselhos e dir-vos-ei o que sedeve fazer na situao presente, deixando para mais tarde a resposta aosque me interrogam sobre quais seriam as minhas intenes ao regressaruma segunda vez, para que o acessrio da minha narrao no se torneo assunto principal. , portanto, isto o que tenho a dizer.

    O conselheiro de um homem doente, se esse doente segue um mauregime, no tem como primeira obrigao obrig-lo a modificar o seugnero de vida? Se o doente quiser obedecer, nesse caso dar-lhe- novasprescries. Se recusa, acho eu que dever de um homem reto e de umverdadeiro mdico no se prestar mais a novas consultas. Aquele que seresigna, considero-o, ao contrrio, como um fraco e um curandeiro. Omesmo se passa com um estado que tenha cabea um ou vrios chefes.Se governado normalmente, bem guiado e necessita de um conselhosobre qualquer ponto til, ser razovel que se lho d. Se, pelo contrrio,se trata de estados que se afastam completamente de uma justa legislaoe se recusam mesmo a segui-la, mas ordenam ao seu conselheiro polticoque ponha de lado a Constituio e nada mude, sob ameaa de pena demorte, tornando-se pelas suas instrues o servidor de vontades e ca-prichos, ao mostrar-lhes os caminhos mais cmodos e mais fceis, ohomem que a tal se presta, considero-o eu um fraco; em contrapartida,

    Plato / Dio 55

  • aquele que a isso se recusa , para mim, um homem corajoso. So estesos meus sentimentos, e quando algum me consulta sobre um pontoimportante da sua vida, seja assunto de dinheiro, seja da higiene docorpo ou da alma, se a sua conduta habitual se me afigura responder acertas exigncias, ou se, pelo menos, parece querer conformar-se com asminhas prescries nos casos que submete minha opinio, de bomgrado eu me torno seu conselheiro e no me afasto dele, agindo por de-ver de conscincia. Mas, se ningum me pergunta nada ou se evidenteque no escutaro a mnima das minhas opinies, eu no vou, porminha prpria iniciativa, oferec-las a tais pessoas, e no obrigarei nin-gum, nem que seja o meu prprio filho. Ao meu escravo, sim, a esse eudaria conselhos e, se ele recusasse, eu impor-los-ia. Mas a um pai ou auma me considero mpio constrang-los, salvo em caso de loucura.Levem um gnero de vida que lhes agrade, a eles, e no a mim, que nome parece conveniente irrit-los em vo com censuras, nem tampoucolisonje-los com condescendncia, proporcionando-lhes o modo de sat-isfazer vontade que eu rejeitaria na minha prpria vida. So estas as dis-posies com que deve viver o sbio relativamente ao seu pas. No casode lhe parecer que no bem governado que o diga, mas unicamente seest seguro de o no fazer em vo, ou de no se arriscar a morrer, masque no use de violncia para derrubar a Constituio da sua ptria,quando no puder ser bem sucedido seno custa de exlios e massa-cres; ento que fique tranqilo e que implore o favor dos deuses para si epara a cidade.

    , portanto, deste modo que eu vos poderei aconselhar, e assimque, de acordo com Dio, eu induzia Dionsio logo do incio a vivercada dia de maneira a tornar-se cada vez mais senhor de si prprio e aconquistar partidrios e amigos fiis, para que no lhe acontecesse omesmo que a seu pai. Este ltimo tinha conquistado na Siclia umgrande nmero de cidades importantes desvastadas pelos brbaros. Mas,depois de as ter reconstrudo, no conseguiu instalar em cada uma delasum governo seguro, confiado a amigos escolhidos por ele, quer entre es-trangeiros de diversas origens, quer entre os seus irmos que ele prpriohavia educado, porque eram mais novos, e a quem de simples particu-lares, fez chefes, e, de pobres, homens prodigiosamente ricos. De nen-hum deles pde tornar, apesar dos seus esforos, um associado do seu

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  • poder, nem pela persuaso, nem pela instruo, nem pelos seus favoresou pela afeio de famlia. Nisso mostrou-se sete vezes inferior a Dario,que, confiando em pessoas que no eram nem seus irmos, nem edu-cados por ele, mas unicamente aliados na sua vitria sobre o eunucomedo, dividiu o seu reino em sete partes, cada uma delas maior que todaa Siclia, e encontrou neles colaboradores fiis que nem lhe criaram nen-huma dificuldades, nem as suscitaram entre si. Deu assim o exemplo doque devia ser o bom legislador e o bom rei, porque, graas s leis queproclamou, conservou at hoje o Imprio persa. Vede ainda os aten-ienses. Eles prprios no colonizaram as numerosas cidades gregas in-vadidas pelos brbaros, mas anexaram-nas j povoadas. No entanto,conservaram o poder durante setenta anos, porque em todas as cidadespossuam partidrios. Mas Dionsio, que tinha reunido toda a Siclianuma s cidade, tomando como sabedoria o no se fiar em ningum,manteve-se com dificuldades, porque tinha escassos amigos e poucospartidrios fiis. Ora, nada mais significativo do vcio ou da virtudeque a falta ou a abundncia de tais homens. Eram estes os conselhos queDio e eu dvamos a Dionsio, j que a situao em que se achava porculpa de seu pai o privava tanto da sociedade que resulta da educaocomo daquela que as boas relaes proporcionam. Exortamo-lo a que sepreocupasse, antes de tudo, em procurar junto dos parentes e compan-heiros da sua idade outros amigos cujo ideal comum fosse atingir a vir-tude, e que acima de tudo conseguissem o seu acordo para o mesmo ob-jetivo, do que tinha extraordinria necessidade. No falvamos, bem en-tendido, to abertamente -- isso teria sido perigoso --, mas, por meiaspalavras, insistamos em que era esse o meio de todo o homem se pro-teger a si e aqueles a quem governava, e que agir de outro modo seriachegar a resultados completamente opostos. Se, enveredando pelocaminho que lhe indicvamos, tornando-se sensato e prudente, ele re-construsse as cidades devastadas na Siclia, as interligasse por meio deleis e constituies que solidificassem a sua unio mtua e os seus pactoscom ele, visando defesa contra os brbaros, Dionsio no duplicariaapenas o reino de seu pai, mas na verdade o multiplicaria. Ficaria entomuito mais apto a submeter os cartagineses do que o havia ficado Glon,enquanto o seu pai, pelo contrrio, se tinha visto obrigado, no seu tempo, apagar um tributo aos brbaros. Tais eram as nossas conversas e conselhos

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  • que lhe dvamos ns, que conspirvamos, contra ele, como se insinuavade diversos lados -- rumores esses em que Dionsio acreditou, que fize-ram exilar Dio e me causaram a mim um enorme receio. Mas, paraacabar a narrativa dos muitos acontecimentos que se desenrolaram emto pouco tempo, Dio voltou de Atenas e do Peloponeso e deu na ver-dade uma lio a Dionsio.

    Quando, por duas vezes, Dio libertou a cidade e a restituiu aossiracusanos, estes recompensaram-no como o havia feito Dionsioquando, educando-o e preparando-o como um rei digno do poder, seesforava por estabelecer entre si uma total familiaridade de existncia.No entanto, Dionsio preferia ainda a familiaridade dos caluniadores queacusavam Dio de aspirar tirania e de culminar com este fim todos osseus empreendimentos de ento. Esperava-se, dizia-se, que Dionsio,deixando-se prender pelos encantos do estudo, se desinteressasse dogoverno e lhe confiasse, de tal modo que ele o aambarcaria por astcia,expulsando desta maneira Dionsio. Na poca, estas calnias triunfaram,como triunfaram quando espalhadas uma segunda vez em Siracusa:vitria de resto, absurda e vergonhosa para os que eram seus autores.

    Que aconteceu ento? necessrio que o saibam aqueles que recla-mam o meu auxlio nas dificuldades atuais. Eu, ateniense, amigo e aliadode Dio, dirijo-me ao tirano com o propsito de fazer ceder a discrdiaperante a amizade. Mas nada consegui a minha luta contra oscaluniadores. Quando Dionsio, usando honras e riquezas, me quis atraire fazer de mim uma testemunha e um amigo pronto a justificar o exliode Dio, todos os seus esforos fracassaram. Mais tarde, regressando ptria, Dio levou consigo de Atenas dois irmos, aos quais o ligava umaamizade que no tinha nascido da filosofia, mas sim da vulgar cama-radagem que as relaes de hospitalidade ou os laos que unem os ini-ciados dos diferentes mistrios que fazem nascer. Tais foram, portanto,os seus companheiros de regresso, ligados a ele pelos motivos indicadose ainda pela ajuda que lhe prestaram na viagem. Assim chegaram Siclia. Ali, apercebendo-se de que Dio era suspeito de cobiar a tiraniajunto destes mesmos sicilianos que ele havia libertado, no contentes detrarem o seu amigo e anfitrio, tornaram-se os seus prprios carrascos,correndo, de armas na mo, a ajudar os assassinos. No escondo estaao vergonhosa e sacrlega, mas tambm no quero tornar a cont-la,

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  • porque muitos outros se encarregam ou se ho de encarregar ainda decontar tais acontecimentos! Mas, quando, falando dos atenienses, se dizque aqueles dois homens desonraram a nossa cidade e lhe infligiram amarca da infmia, essa uma acusao que eu rejeito! tambm umateniense, proclamo-o, aquele homem que, tendo ao alcance fortuna ehonras, no traiu Dio. Com efeito, no era uma amizade vulgar a queos unia, mas, sim, uma comum educao liberal; unicamente nela deveconfiar o homem sensato, muito mais do que em afinidades de corpo ealma. Portanto, no justo que aqueles dois homens, autores da mortede Dio, tenham sido para Atenas motivo de afronta, como se nuncativessem existido dois homens fazendo uma ao escandalosa!

    Disse tudo isto, para que sirva de advertncia aos parentes e ami-gos de Dio. Pela terceira vez repito o mesmo conselho para vs, osterceiros. Que a