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Tempo de agradecer Andar é saúde, em qualquer idade. Uma boa caminhada é o melhor exercício para se ter boa respiração e oxigenação do cérebro, manter a forma física, a elasticidade dos músculos, boa circulação do sangue, assim como agilidade e equilíbrio da mente. Mas quando as distâncias ultrapassam nossos limites, apelamos para os ônibus, agradecendo de mil formas diferentes ao nosso saudoso amigo e homem político Mário Covas, ex-governador de São Paulo. Um dia ele transformou em realidade um sonho acalentado há muito tempo. Presentear às pessoas da 3ª Idade com a Carteirinha de Passageiro Especial, isentando do pagamento da passagem nos coletivos. Se não fosse por esse gesto amoroso, muita gente de cabelinho branco e pernas um tanto alquebradas, estaria mesmo é atolada no sofá da sala a maior parte do tempo, dormindo ou devorando pipocas e engordando, engordando... Em vez disso, alegres senhoras e senhores, circulam por toda cidade. Vão à parques, praças, templos, museus, centros de convivência, cinemas, teatros. Pertencem à corais e vão a mil eventos. Visitam parentes, amigos, vão à bailes, viajam, estudam, tem suas turmas e... namoram! enfim, como um bando de andorinhas, vivem a vida, depois de uma longa jornada de trabalho, aproveitando o que ela oferece de bom e bonito.

Livro Daisy

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Revista Catrca

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Tempo de agradecer

Andar é saúde, em qualquer idade. Uma boa caminhada é o melhorexercício para se ter boa respiração e oxigenação do cérebro,manter a forma física, a elasticidade dos músculos, boa circulaçãodo sangue, assim como agilidade e equilíbrio da mente.

Mas quando as distâncias ultrapassam nossos limites, apelamospara os ônibus, agradecendo de mil formas diferentes ao nossosaudoso amigo e homem político Mário Covas, ex-governador deSão Paulo.

Um dia ele transformou em realidade um sonho acalentado hámuito tempo. Presentear às pessoas da 3ª Idade com a Carteirinhade Passageiro Especial, isentando do pagamento da passagem noscoletivos.

Se não fosse por esse gesto amoroso, muita gente de cabelinhobranco e pernas um tanto alquebradas, estaria mesmo é atolada nosofá da sala a maior parte do tempo, dormindo ou devorandopipocas e engordando, engordando...

Em vez disso, alegres senhoras e senhores, circulam por todacidade. Vão à parques, praças, templos, museus, centros deconvivência, cinemas, teatros. Pertencem à corais e vão a mileventos.

Visitam parentes, amigos, vão à bailes, viajam, estudam, tem suasturmas e... namoram! enfim, como um bando de andorinhas, vivema vida, depois de uma longa jornada de trabalho, aproveitando oque ela oferece de bom e bonito.

Obrigada, amigo Mário Covas! Em nome dessa multidão de“adolescentes grisalhos”, pelo presente que você nos proporcionou.Alegria! Vida! Liberdade! Tudo isso não tem preço!

Certamente aí no azul onde é a sua morada atual, você tambémrecebeu por justo merecimento, um passe livre, assinado emdourado por nosso Pai Celestial.

Você pode percorrer a qualquer hora, universos sem fim. Egratuitamente também, visitar lugares de paz, musicalidade, harmo-nia e esplendor.

Quando você tiver uma folga, olhe pra gente aqui, sim? Do topo deuma nuvem ou no brilho de uma estrela, vá acompanhando aspáginas deste livro singelo, ditado pela minha inspiração, recriandoas histórias que eu vivi e assisti viajando nos ônibus desta nossacidade de São Paulo.

“Eu... Uma Passageira Especial” é dedicado especialmente à você,em nome de todos os meus colegas de “adolescência”.

Daisy

Tempo de desabafar

Quando comecei a escrever este livro, em 2003, logo depois determinar “Gestos de Amor” (meu primeiro livro), muitos idosos meprocuraram. Contaram “flashes” de situações desagradáveis econstrangedores que passaram em suas viagens de ônibus, mepedindo que reservasse, entre as histórias verdadeiras acontecidascomigo, um espaço para um desabafo deles.

A inspiração murmurou que seria mais interessante, juntandoalgumas frases dessas declarações, criar uma crônica, num tombem humorado. Como foi um pedido de idosos e idosos sempre têmprioridade, é essa crônica que abre este livro.

Passageiro especial ou indesejável?

“Como é? Vai subir ou não?” – “Lugar de velho é em casa, donaMaria” – “Mexe essas pernas, ó coroa!”.

Essas são algumas das pérolas com que são brindados os chamadosPassageiros Especiais, por alguns motoristas da cidade,freqüentemente neurastênicos.

Isso quando não se estatelam no chão, pois nem bem colocam o péno primeiro degrau, o ônibus dá a partida violentamente. Ou então,permanecem na calçada com cara de patetas, com suas gloriosascédulas de identidade na mão e os ônibus passam em velocidademáxima, sem dar a mínima! Ou então, voam pela faixa do meio!

Outro dos suplícios é permanecer em pé, espremido, sufocado, poisos motoristas não se preocupam em pedir ou sugerir aos maisjovens que estão sentados – e muitas vezes fingem estar dormindo– que cedam seus lugares.

Não seria justo, que na contratação desse profissional tãoimportante (afinal, ele tem nas mãos a vida de tantas pessoas!),fosse ministrado ao candidato um curso eficiente de boa educaçãoe senso de humanidade? E que tal, uma reciclagem desse cursoperiodicamente? E como sugestão, a primeira pergunta do cursoseria: Se sua mãe estivesse subindo num ônibus, como você daria apartida?

Centenas de idosos certamente agradecidos pela passagem grátisandam amargurados, engolindo ofensas indevidas e maus tratos. Étriste sentir e presenciar isso. Afinal, essa credencial do idoso edeficiente, criada com um bom propósito pelo então prefeito MárioCovas para premiar aqueles que já muito viveram ou merecem, émesmo um prêmio? Um castigo? Ou um passaporte direto para oshospitais e clínicas de fraturas?

Sabemos que as agendas dos principais responsáveis pelostransportes estão sempre lotadas, mas, os idosos pedem espaçopara o assunto: Passageiros especiais pedem respeito!

O assunto merece ser estudado com carinho, e como sempre étempo de renovação, “Fora!” aos maus motoristas. Há centenas debons profissionais, chefes de família, com uma penca de filhospassando fome, esperando desesperadamente por um emprego.

Dizem que as pessoas precisam vivenciar o problema, sentir naprópria carne, para darem a devida importância à ele. Daí o meuconvite:

“Senhores responsáveis pelos transportes:Qualquer dia destes, disfarcem-se! Ponham óculos escuros, umaperuca ou um lenço, gorro ou boné! Vale até usar muletas,barbicha, pintar a cara! E... subam no primeiro degrau de umônibus qualquer, com sua cédula de identidade na mão!Mas cuidado, ein? Deixe seu ortopedista de plantão. Quem avisa,amigo é!”A saia de tricô

Logo que subi o primeiro degrau do ônibus, nossos olhos seencontraram e pude fotografar a cena.

Ela não era bonita nem feia, pertencia ao tipo que chamamos“simpática”. Estava sentada no primeiro banco do ônibus, nocorredor.

Deveria ter uns vinte e oito ou trinta anos e ostentava umacarequinha lustrosa, sem um fio de cabelo. Vestia-se comsimplicidade e tricotava rapidamente com lã mescla, branco, rosa eazul.

Como não havia outro lugar, sentei no segundo banco, do ladooposto ao dela. A posição me dava oportunidade de observar comque maestria ela movimentava as agulhas e puxava a lã, passadano pescoço e enrolada nos dedos longos e delicados.

As pessoas ao nosso redor foram descendo num ponto, noutro.Ficamos só nós duas. Fiquei meditando... Qual seria o dramadaquela jovem mulher? Automaticamente a inspiração murmuroupara o meu coração: “porque não aproveitar o momento paraamar, dizer alguma coisa agradável, confortar alguém?” Obedeci.

Passei para o banco da frente. Ficamos separadas apenas pelocorredor do ônibus e comecei o diálogo:- Estava admirando você tricotar. Como você é rápida, menina!

Ela sorri e fica mais bonita:

- É porque eu faço bastante tricô. Eu gosto.

Procuro uma ligação para continuar a prosa e lembro de minhamãe fazendo Crochê.

- De tricô eu só sei um ponto ou dois. Crochê, tenho um poucomais de xperiência...A lembrança puxa o meu sorriso.

- Minha mãe, sim! Adorava crochê! Era professora no assunto!

E continuo abrindo a vereda de nossa prosa.

- Sabe? Eu e minha irmã fomos criadas no meio de muito trabalhode artesanato...

Chego a sorrir mais com a lembrança do passado e ela também,criando intimidade no diálogo.

- Minha mãe, (ela chamava Maria), era danada de esperta.Quando via na rua uma mulher com uma blusa de crochê ou umabolsa diferente, ia atrás, olhando... olhando... Chegando em casapegava a linha, e agulha, e tentava, tentava, até conseguir fazerigual.

Ela sorri, acho que imaginando a cena.

- Minha mãe não faz crochê. Faz pano de prato pintado e vendedomingo, na feira.

Sustenta a casa com isso.

- Ah! E isso que você está fazendo? É uma malha?

Minha pergunta, sem querer, desvenda o mistério.

- Não! É uma saia pra minha filha de 5 anos. Ela mora lá na Ba-hia, com a minha mãe, dona...

Ela pára de falar, olha pra mim, me analisando. Sorri suavementee continua.

- Sabe o que é, dona? Eu estou há dois anos fazendo tratamentoali no Hospital Pérola Byington. De três em três meses eu vouvisitar minha mãe e minha filha e levo as roupinhas pra ela. Elafica feliz da vida!

Me emociono imaginando a cena: avó e a neta, tão longe, abrindoos pacotes. Pra disfarçar, chamo minha sogra para o diálogo.

- Minha sogra (a gente chamava de Vó Sinhá) fazia mais oumenos isso que você faz. Durante o ano todo preparava asroupinhas de boneca, tudo de tricô e ia guardando numa cestaenorme. No Natal, fazia os pacotinhos para as netas, com papelde seda. Menina, era o maior sucesso!

Ela sorri, animada.- Acho que eu vou fazer isso também! Roupinha pra boneca daminha filha. Boa idéia!

Procuro aquecer um pouco mais o seu coração:

- Mas logo, logo, você vai estar bem, se Deus quiser e Ele vaiquerer! E você vai ficar só lá na Bahia. Nada de São Paulo.

- É isso mesmo, dona! O pior já passou. Preciso só um pouco depaciência. O médico falou!

Querendo por leveza na cena, eu respondo:

- Paciência e muita lã e linha... De cores bem alegres, depreferência!

Ela ri.

- Que pena! O Hospital está chegando! Eu preciso descer.

E um pouco ansiosa:

- Como é o seu nome?

- Daisy. (Quer dizer Margarida em inglês). E o seu?

- Eliana.

Ela dá o sinal. Damos as mãos. Nossos olhos se encontram e umsorriso sela nossa amizade. Ela desce. Só então noto a grandecicatriz do outro lado de sua cabeça.

Da calçada, ela acena para mim e o ônibus segue o seu trajeto.

A emoção fica dançando no ar, por conta do amor que dividimos.

Não falamos em doenças, remédios, internações, processoscirúrgicos.

Apenas quatro mulheres partilhando amor dentro do ônibus. VóMaria, Vó Sinhá (do passado), Eliana e Daisy (do presente).

Sol de Verão

Meio da tarde. Um sol abrasador, tomando conta de tudo. Dentro doônibus, um calor insuportável, pela temperatura em si, pelaproximidade das pessoas, e pelas janelas que pareciam minúsculas,mesmo escancaradas ao máximo.

Na Av. Celso Garcia, passando por um relógio de rua (aqueles queregistram a hora e a temperatura), marcava no momento um recordepara São Paulo: 35 graus!.

O motorista, alegre e simpático, enxugava toda hora, o suor queescorria pelo seu rosto num pano já bem velho, que me pareceuuma fralda de bebê. Pela proximidade do motor, o motorista era oque mais sentia a alta temperatura. O sol inclemente, batendo najanela, castigando sua pele negra.

Dentro do ônibus, alguns dormiam a sono solto. Os passageiros quesubiam, quase “torrados” do sol escaldante na espera do veículo,quando entravam tinham sempre um “Uff”! Como cumprimento aomotorista, ou outra reclamação quanto à temperatura infernal. Oônibus parecia o muro das lamentações.

Certamente todos os passageiros naquele momento, sonhavam(mesmo os que estavam acordados) com um oásis! Palmeiras seagitando, água fresca e de preferência, um sorveteiro passando,distraído, distribuindo gratuitamente picolés e maracujá, abacaxi,limão,,,

Mas essa miragem, de fato aconteceu! Pelo menos para o motoristacansado e suado.

O ônibus para num ponto da avenida, Entra uma senhora bemgorda e suada. Através dela entra uma menina de mais ou menosoito anos, moreninha, cabelos cacheados, caindo pelos ombros epresilha de borboletas, do lado.Além da beleza, seu rosto irradia uma luz especial! Seus olhosbrilham intensamente! Sobe o primeiro degrau então, abre-se oparaíso para o motorista. Ela abre um sorriso maravilhoso,mostrando a fileira de dentes muito alvos e diz alto e alegremente:

- Boa tarde, meu motorista!

Realmente aquele sorriso irradiante, aquele “Boa tarde, meumotorista!”, com tanto magnetismo, foi para ele um verdadeirooásis, naquela tarde escaldante.

Ele olha, enxuga o rosto, faz um gesto de reverência e num grandesorriso, diz:

- Entre meu Sol! Entre! O ônibus é todo seu!

Ela dá uma risadinha divertida e encabulada e caminha com asenhora gorda em direção à catraca.A sintonia muda entre os passageiros e todos se alegram com odiálogo imprevisto. Antes de dar a partida, o motorista volta-separa mim, que estava sentada no primeiro banco e diz:

- Dona! Com esse “sol” aqui dentro, eu vou até o fim do mundo,nem que seja a oitenta graus. E dá a partida no ônibus.

Muitas vezes, em dias quentes, me lembro daquela tarde de verãoescaldante. O motorista, a fralda enxugando o suor escorrendo do

rosto negro, o magnetismo do sorriso da doninha que tem ummotorista e se chama “Sol”!

Ah! Se a gente pudesse e soubesse dar valor às coisas simples ebonitas que acontecem no dia-a-dia, a vida da gente poderia serbem melhor!

Um sorriso de menina, uma frase criativa de motorista ...presentes do céu, num verão de trinta e cinco graus, como lição.

A noite, não seria interessante vivenciar esses retalhos luminososque vivemos durante o dia?

Qualidade de vida é isso!