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CRÔNICAS ESCOLHIDAS Design by C. R. Comini

Livro das crônicas

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A apurada perspicácia dos geniais escritores brasileiros na observação do cotidiano transformadas em autênticas obras-primas da nossa literatura.

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CRÔNICAS ESCOLHIDAS

Design by C. R. Comini

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No capítulo dos nomes difíceis têm acontecido coisas das mais pitorescas. Ou é um camara-da chamado Mimoso, que tem físico de mas-

todonte, ou é um sujeito fraquinho e insignificante chamado Hércules. Os nomes difíceis, principalmen-te os nomes tirados de adjetivos condizentes com seus portadores, são raríssimos, e é por isso que mi-nha avó a paterna — dizia:— Gente honesta, se for homem deve ser José, se for mulher, deve ser Maria!

É verdade que Vovó não tinha nada contra os joões, paulos, mários, odetes e — vá lá — fidélis. A sua im-plicância era, sobretudo, com nomes inventados, co-memorativos de um acontecimento qualquer, como era o caso, muito citado por ela, de uma tal Dona Holofotina, batizada no dia em que inauguraram a

História de um Nome

História de um Nome

StaniSlaw Ponte Preta

SELEÇÃO DE CRÔNICAS

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luz elétrica na rua em que a família morava.Acrescente-se também que Vovó não mantinha

relações com pessoas de nomes tirados metade da mãe e metade do pai. Jamais perdoou a um velho amigo seu — o “Seu” Wagner — porque se casara com uma senhora chamada Emília, muito respeitá-vel, aliás, mas que tivera o mau-gosto de convencer o marido de batizar o primeiro filho com o nome leguminoso de Wagem — “wag” de Wagner e “em” de Emília. É verdade que a vagem comum, crua ou ensopada, será sempre com “v”, enquanto o filho de “Seu” Wagner herdara o “w” do pai. Mas isso não ti-nha nenhuma importância: a consoante não era um detalhe bastante forte para impedir o risinho goza-dor de todos aqueles que eram apresentados ao me-nino Wagem.

Mas deixemos de lado as birras de minha avó — velhinha que Deus tenha, em Sua santa glória — e passemos ao estranho caso da família Veiga, que morava pertinho de nossa casa, em tempos idos.

“Seu” Veiga, amante de boa leitura e cuja cachaça era colecionar livros, embora colecionasse também filhos, talvez com a mesma paixão, levou sua mania ao extremo de batizar os rebentos com nomes que tivessem relação com livros. Assim, o mais velho chamou-se Prefácio da Veiga; o segundo, Prólogo; o

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terceiro, Índice e, sucessivamente, foram nascendo o Tomo, o Capítulo e, por fim, Epílogo da Veiga, ca-çula do casal.

Lembro-me bem dos filhos de “Seu” Veiga, todos excelentes rapazes, principalmente o Capítulo, su-jeito prendado na confecção de balões e papagaios. Até hoje (é verdade que não me tenho dedicado muito na busca) não encontrei ninguém que fizes-se um papagaio tão bem quanto Capítulo. Nem ba-lões. Tomo era um bom extrema-direita e Prefácio pegou o vício do pai — vivia comprando livros. Era, aliás, o filho querido de “Seu” Veiga, pai extremoso, que não admitia piadas. Não tinha o menor senso de humor. Certa vez ficou mesmo de relações estreme-cidas com meu pai, por causa de uma brincadeira. “Seu” Veiga ia passando pela nossa porta, levando a família para o banho de mar. Iam todos armados de barracas de praia, toalhas etc. Papai estava na janela e, ao saudá-lo, fez a graça:

— Vai levar a biblioteca para o banho? “Seu” Veiga ficou queimado durante muito tempo.

Dona Odete — por alcunha “A Estante” — mãe dos meninos, sofria o desgosto de ter tantos filhos ho-mens e não ter uma menina “para me fazer compa-nhia” — como costumava dizer. Acreditava, inclusi-

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ve, que aquilo era castigo de Deus, por causa da idéia do marido de botar aqueles nomes nos garotos. Por isso, fez uma promessa: se ainda tivesse uma meni-na, havia de chamá-la Maria.

As esperanças já estavam quase perdidas. Epílogo-zinho já tinha oito anos, quando a vontade de Dona Odete tornou-se uma bela realidade, pesando cin-co quilos e mamando uma enormidade. Os vizinhos comentaram que “Seu” Veiga não gostou, ainda que se conformasse, com a vinda de mais um herdeiro, só porque já lhe faltavam palavras relacionadas a li-vros para denominar a criança.

Só meses depois, na hora do batizado, o pai foi in-formado da antiga promessa. Ficou furioso com a mulher, esbravejou, bufou, mas — bom católico — acabou concordando em parte. E assim, em vez de receber somente o nome suave de Maria, a garoti-nha foi registrada, no livro da paróquia, após a ceri-mônia batismal, como Errata Maria da Veiga.

Estava cumprida a promessa de Dona Odete, esta-va de pé a mania de “Seu” Veiga.

Texto extraído do livro “A Casa Demolida”, Edi-tora do Autor — Rio de Janeiro, 1963, pág. 175.

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Filho de Américo Pereira da Silva Por-to e de D. Dulce Julieta Rangel Porto, Sérgio Marcos Rangel Porto, um cida-dão acima de qualquer desfeita, nasceu no Rio de Janeiro em pleno verão, no dia 11 de janeiro de 1923, e ficou fa-moso anos depois sob o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta, emprestado à Oswald de Andrade (vide Memórias de Serafim Ponte Grande). Foi casado com Dirce Pimentel de Araújo, com quem teve três filhas: Gisela, Ângela e Solan-ge.

Dizem seus estudiosos que no citado li-vro teria encontrado seu grande filão:a irreverência. Começou uma obra cario-quíssima, até hoje insuperável, trans-pondo para jornais, livros e revistas o saboroso coloquial do Rio de Janeiro. Afirmam, também, que as melhores

SOBRE O AUTOR

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crônicas são aquelas onde a disposição de desfazer o sentido de uma palavra ou de uma situação não se manifesta apenas no final do enredo, mas parece atingir a estrutura da narrativa; quer dizer, a partir de pistas falsas, a histó-ria é conduzida visando a um final que não acontece, substituído por outro, totalmente inesperado (vejam Menino Precoce e A Charneca, por exemplo).

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Hora de dormirHora de dormir

CRÔNICAS SELETAS

Fernando Sabino

— Por que não posso ficar vendo televisão?— Porque você tem de dormir.— Por quê?— Porque está na hora, ora essa.— Hora essa?— Além do mais, isso não é programa para menino.— Por quê?— Porque é assunto de gente grande, que você não

entende.— Estou entendendo tudo.

— Mas não serve para você. É impróprio.

— Vai ter mulher pelada?— Que bobagem é essa? Ande, vá dormir que você

tem colégio amanhã cedo.

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— Todo dia eu tenho.— Está bem, todo dia você tem. Agora desligue isso

e vá dormir.— Espera um pouquinho.

— Não espero não.

— Você vai ficar aí vendo e eu não vou.— Fico vendo não, pode desligar. Tenho horror de te-

levisão. Vamos, obedeça a seu pai.

— Os outros meninos todos dormem tarde, só eu que durmo cedo.

— Não tenho nada que ver com os outros meninos: tenho que ver com meu filho. Já para a cama.

— Também eu vou para a cama e não durmo, pronto. Fico acordado a noite toda.

— Não comece com coisa não, que eu perco a paci-ência.

— Pode perder.— Deixe de ser malcriado.— Você mesmo que me criou.— O quê? Isso é maneira de falar com seu pai?— Falo como quiser, pronto.

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— Não fique respondendo não: cale essa boca.— Não calo. A boca é minha.

— Olha que eu ponho de castigo.

— Pode pôr.— Venha cá! Se der mais um pio, vai levar umas pal-

madas.— . . .

— Quem é que anda lhe ensinando essas modas? Você está ficando é muito insolente.

— Ficando o quê?— Atrevido, malcriado. Eu com a sua idade já sabia

obedecer. Quando é que eu teria coragem de res-ponder a meu pai como você faz. Ele me descia o braço, não tinha conversa. Eu porque sou muito mole, você fica abusando . . . Quando ele falava está na hora de dormir, estava na hora de dormir.

— Naquele tempo não tinha televisão.— Mas tinha outras coisas.— Que outras coisas?

— Ora, deixe de conversa. Vamos desligar esse negó-cio. Pronto, acabou-se. Agora é tratar de dormir.

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— Chato.— Como? Repete, para você ver o que acontece.— Chato.— Tome, para você aprender. E amanhã fica de cas-

tigo, está ouvindo? Para aprender a ter respeito a seu pai.

— . . .— E não adianta ficar aí chorando feito bobo. Venha

cá.— Amanhã eu não vou ao colégio.— Vai sim senhor. E não adianta ficar fazendo essa

carinha, não pense que me comove. Anda, venha cá.

— Você me bateu . . .— Bati porque você mereceu. Já acabou, pare de cho-

rar. Foi de leve, não doeu nem nada. Peça perdão a seu pai e vá dormir.

— . . .— Por que você é assim, meu filho? Só para me abor-

recer. Sou tão bom para você, você não reconhece. Faço tudo que você me pede, os maiores sacrifí-cios. Todo dia trago para você uma coisa da rua. Trabalho o dia todo por sua causa mesmo e, quan-do chego em casa para descansar um pouco, você vem com essas coisas. Então é assim que se faz?

— . . .

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— Então você não tem pena de seu pai? Vamos! Tome a benção e vá dormir.

— Papai.— Que é?— Me desculpe.— Está desculpado. Deus o abençoe. Agora vai.— Por que não posso ficar vendo televisão?

Nasceu em 12 de outubro de 1923, na capital mineira, Belo Horizonte. Aprendeu a ler em casa, na adolescência trabalhou como locutor de rádio e já escrevia para revistas da cidade.

Em 1940, Fernando Sabino ingressou na Faculdade de Direito, mesma fase em que inicia no “Folha de Minas” como reda-tor. Em 1941, publica no Rio de Janeiro, o livro de contos “Os Grilos não Cantam mais”, seu primeiro lançamento literário.

Em 1942, trabalhou na Secretaria de Fi-nanças de Minas Gerais, além de trabalhar como professor de português. Em 1943, é

SOBRE O AUTOR

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nomeado oficial de gabinete do secretário de Agricultura do Estado.

Em 1944, muda-se para o Rio de Janeiro para trabalhar como oficial de Registro de Interdições e tutelas da Justiça, forma-se em direito em 1946, e viaja para os EUA com Vinícius de Moraes, morou em Nova York por dois anos, trabalhando no Con-sulado Brasileiro.

Em 1956, lança o livro “Encontro Marca-do”, obra editada até no exterior; em 1957, decide viver somente da escrita, lançan-do livros e escrevendo para os jornais. Em 1964, é contratado por João Goulart para trabalhar em Londres; a permanência na Inglaterra o fez correspondente da Copa de 66 para o Jornal do Brasil.

Entre as suas obras mais recentes estão uma biografia da ex-ministra Zélia Cardoso de Mello, de 1991; e o romance “Os Movi-mentos Simulados”, de 2004. Faleceu no dia 11 de outubro de 2004, em sua casa no bairro de Ipanema, após ter lutado con-tra um câncer de fígado.

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aspiradoraspirador

CRÔNICAS SELETAS

Fernando Sabino

Antes que eu lhe pergunte o que deseja, o gor-dinho começa a exibir-me uma aparelhagem

complicada, ainda na porta da rua. São tubos que se ajustam, fio para ligar na tomada, escovinhas de sucção e outros apetrechos.

— Entre — ordenei. Ora, acontece que jamais pres-tei sentido na existência dos aspiradores de pó.

Por isso é que fui logo cometendo a imprudência de convidar o gordinho a exibir-se de uma vez no in-terior da sala. Na porta da rua venta e faz muito pó, disse-lhe ainda, tentando um trocadilho infeliz. En-tramos os dois, para a tradicional peleja entre com-prador e vendedor.

Vi o gordinho desdobrar-se, suando, estica o fio, não dá até a tomada, arrasta a cadeira um pouco para lá, não é isso mesmo? assim, com licença, quer limpar esse tapete?

É um tapete que arrasto comigo há anos, por todos

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os lugares em que venho morando. Já abafou meus passos em dias de inquietação, já recebeu alguns pu-los meus de alegria, e manchas de café, de tempo, de poeira dos sapatos. Pois olhe só — em dois tempos o gordinho pôs a engenhoca a funcionar, esfrega da-qui e dali, praticamente mudou a cor do meu tapete.

— Agora é que o senhor vai ver — anunciou, feliz, revelando-me a existência, dentro do aparelho, de uma sacola onde o pó se acumulava. Exibiu-me seu conteúdo com um sorriso de puro êxtase, o tarado.

Aquilo me decepcionou: pois se tinha de despejar o pó no lixo, por que não recolhê-lo de uma vez com a vassoura? Evidente burrice da minha parte — o gordinho devia estar pensando: com certeza eu es-perava que o pó se volatilizasse dentro do aspirador, num passe de mágica?

Deixei que ele me enumerasse as outras aplicações do miraculoso aparelho: servia para escovar um ter-no, por exemplo, quer ver? E voltou para mim o cano da arma, que num terrível chupão quase me leva a manga do paletó.

— Serve também para massagens. Com sua licen-ça — e passou-me no rosto a ponta do tubo. Minha pele foi repuxada sob a improvisada ventosa, deslo-cando-se ruidosamente num violento beijo de cava-lo.

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— Basta! — protestei: — Estou convencido. Com-pro o aspirador.

— E digo mais — prosseguiu ele, sem me ouvir: — Serve para refrescar o ambiente. Duvida? E só virar ao contrário...

— Não duvido não. Já está comprado. — ... e funciona como um perfeito ventilador. Fui buscar o dinheiro, paguei e despedi sumaria-

mente o gordinho que, perplexo, continuava ainda a recitar sua lição:

— Aspira o pó dos lugares mais inacessíveis: aspi-ra atrás das estantes, aspira cinzeiros, aspira...

— Obrigado, obrigado — e fechei a porta atrás dele. Passei o resto da tarde me distraindo com a nova

aquisição. De todas as maneiras: aspirei cinzeiros, estofados, cortinas, ternos, aspirei atrás das estan-tes, fiz desaparecer, até o último grão, o pó existente na casa.

Então tentei retirar das entranhas do aspirador a tal sacola, como o gordinho me havia ensinado. Para meu júbilo, estava bojuda como um balão. Só não me lembrei foi de desligar o aparelho que, como ele me havia ensinado também, virado ao contrário funcio-na como um perfeito ventilador: de súbito, explode

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no ar uma bomba de pó acumulado. Tudo voltou ao que era dantes, fui à cozinha buscar uma vassoura. És pó e em pó reverterás — pensei comigo.

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