Livro Dido Rainha de Cartago

Embed Size (px)

Citation preview

opercurso de Dido,rainha de Cartago,na literatura latinaCristina Santos Pinheirosrie monografasCristina Santos Pinheiro(Universidade da Madeira)O percurso de Dido, rainha de Cartago, na Literatura LatinaCENTRO DE ESTUDOS CLSSICOSUNIVERSIDADE DE LISBOAAutor: Cristina Santos PinheiroTtulo: O percurso de Dido, rainha de Cartago, na Literatura LatinaEditor: Centro de Estudos Clssicos e HumansticosEdio: 1/2010Coordenador Cientfico do Plano de Edio: Maria do Cu FialhoConselho Editorial: Jos Ribeiro Ferreira, Maria de Ftima Silva, Francisco de Oliveira, Nair Castro SoaresDirector tcnico da coleco: Delfim F. LeoConcepo grfica e paginao: Elisabete Cao, Nelson Ferreira, Rodolfo LopesObra realizada no mbito das actividades da UI&DCentro de Estudos Clssicos e HumansticosUniversidade de CoimbraFaculdade de LetrasTel.: 239 859 981 | Fax: 239 836 7333000447 CoimbraISBN: 9789898281340ISBN Digital: 9789898281357Depsito Legal: 311733/10Obra Publicada com o Apoio de: Classica Digitalia Vniversitatis Conimbrigensis Centro de Estudos Clssicos e Humansticos da Universidade de Coimbra Centro de Estudos Clssicos da Universidade de LisboaReservados todos os direitos. Nos termos legais fca expressamente proibida a reproduo total ou parcial por qualquer meio, em papel ou em edio electrnica, sem autorizao expressa dos titulares dos direitos. desde j excepcionada a utilizao em circuitos acadmicos fechados para apoio a leccionao ou extenso cultural por via de elearning.Todos os volumes desta srie so sujeitos a arbitragem cientfca independente.ndiceNota Prvia9Introduo11Notas13Captulo I Virglio, criador de Dido15Captulo II Dido e Ovdio: desfazendo ambiguidades51Anexo: Epstola escrita por Dido a Eneias77Captulo III Reelaborao pica: Virglio vs. Ovdio nos Punicorum libri de Slio Itlico83Captulo IV A resposta aos mestres: a verso da casta Dido103Anexo115Captulo V Entre Virglio e Ovdio: a EPistula DiDonis aD aEnEam121Anexo: Antologia Latina EPstola Escrita Por DiDo a EnEias135Anexos Anexo A: Fazer reviver Dido143Anexo B: Dido em Jacqueline Kelen:a beleza do amor e o amor da beleza (um exemplo de actualizao)163Concluso179Bibliografia181 memria de Antnio Manuel Coelho Antunes9 8 9 8Mariana Montalvo MatiasNOTA PRVIAEste volume o resultado do trabalho de investigao realizado comvistaapresentaodeProvasdeAptidoPedaggicae Capacidade Cientfca, na Universidade da Madeira, em 2001, no mbito da disciplina de Literatura Latina. Benefciou da arguio sbia do Professor Doutor Jos Antnio Segurado e Campos, que enriqueceuestetrabalhocomsugestesvaliosasposteriormente neleintegradasedaorientaodaProfessoraDoutoraMaria Cristina Pimentel. AdefniodotemadoTrabalhodeSntese,nombito darealizaodeProvasdeAptidoPedaggicaeCapacidade Cientfca,inclinousecomnaturalidadeparadoisautoresque considerodosmaisnotveisdaliteraturaocidental:Virglio1e Ovdio.Encontrarumdenominadorcomum,quepermitisse equacionar a obra de ambos, foi ainda mais natural, j que, tendo conhecimento prvio da Eneida, a leitura da Heride 7 de Ovdio se nos revelou uma agradvel surpresa pelo cunho humanizante queimprimeemDido.Asquestesqueapersonagemcoloca acerca da diversidade da natureza humana tm sido preocupao assdua da Humanidade, embrenhados que estamos em formular umaequao,emdefnirummapaouumguiaparacadaser humano.Desdeoanoemqueestasntesefoidefendida,os estudos sobre as epstolas ovidianas assistiram a um incremento notvel,incrementodequeonossotextonopdebenefciar. PodemosdizeralgosemelhanteemrelaoEneida,jquea bibliografavirgilianaseenriqueceacadadiaquepassa.Ainda 1PorindicaodoConselhoEditorialdosClassicaDigitalia,utilizamos emtodootextoaformaVirglioevirgilianoouvirgiliana,emvezde Verglio, vergiliano ou vergiliana, que preferimos.11 10Paisagens Naturais e Paisagens da Alma no Drama Senequiano11 10assim,procedemosactualizaodabibliografanofnaldo volume,demodoaincluiralgumasdasmaisrecentesobrasde referncia relativas tanto obra de Virglio como s Epistulae de Ovdio, mas com a plena conscincia da impossibilidade de ter uma bibliografa completa sobre qualquer um dos dois autores. Os passos em traduo so da nossa autoria, salvo indicao em contrrio.Este trabalho fruto de uma longa teia de relaes humanas semaqualnoteriasidopossvel.Devoumapalavramuito especialdereconhecimentoaoProfessorSeguradoeCampos pelasimpatiaerigorcomquearguiuasminhasprovas, transformandoasuadefesanumaconversaamenaeinstrutiva. ProfessoraDoutoraCristinaPimentelendereoomeumais sincero tributo de agradecimento e admirao pela forma como orientou este trabalho com rigor e dedicao inesgotveis e como, desde os tempos da minha licenciatura, intensifcou o meu gosto pelaLiteraturaLatina,porquesabecomopoucosreconhecer aactualidadedosEstudosClssicoselhesconfereointeresse imorredouroquedefactotm,insufandonelesavidaea dinmica que tantas vezes lhes so negadas. Ao Professor Doutor ArnaldoEspritoSanto,pelasimpatiaepeloestmulosempre presentes,expressoomeurespeito e reconhecimento. Agradeo ainda Seco Autnoma de Estudos Clssicos e Humansticos daUniversidadedaMadeiraaboavontadecomqueacolheua realizao deste trabalho. Mariana, que ainda no existia quando este texto foi escrito, umapalavradecarinhopelaformacomoenriqueceuaminha vida. Ao Joaquim, companheiro incansvel de todas as horas, um profundo e sincero obrigado pelo apoio e empenho permanentes. Aosmeuspaiseaomeuirmoaminhagratidopeloafecto incondicional que me acompanha desde que tenho memria. Ao meutio,aquemdedicoestetrabalho,umatsempreeomeu agradecimentopelamotivaoinesgotvelepelaconfanaque depositou em mim, e porque tantas palavras fcaram por dizerFunchal, Fevereiro de 2010.11 10 11 10Mariana Montalvo MatiasINTRODUOQualquer tentativa de abranger a essncia de uma personagem comoDidoparece,primeiravista,umpercursodemasiado trilhado e previsvel. A complexidade da personagem e o fascnio quetemsuscitadoaolongodossculosactua,todavia,como um atractivo a que se torna impossvel resistir. A busca de uma defnio absoluta e unvoca de Dido um ideal inalcanvel, uma vezqueoseucarcterarredioemisteriosoobstaaumaanlise defnitiva.Porestarazo,oacervobibliogrfcoqueexplorao assunto enriquecese a cada ano que passa com interpretaes que se contradizem e complementam.Os livros 1 a 4 e 6 da Eneida de Virglio constituem a verso mais clebre e infuente da histria de Dido, ainda que Nvio, autor do sculo III a II a. C., parea ter antecipado alguns elementos retomadosnaepopeiavirgiliana.Oestadofragmentriode Bellum Poenicum no permite, todavia, tirar concluses precisas acerca da caracterizao de Dido e da forma como a sua histria seriaexploradanocontextodashostilidadesentreRomanose Cartagineses. Parece, no entanto, certo que Eneias se encontrava com a rainha de Cartago e que, perante ela, relatava a queda de Tria:Blande et docte percontat Aeneas quo pacto Troiam urbem liquerit. (Frg. 23 Morel)Terna e sabiamente conta Eneias de que modo deixou para trs a cidade de Tria.Estefragmento,sporsi,nonospermiteassegurarque EneiasfaleperanteDido.Todavia,deacordocomAlbrecht 1999: 4550, provvel que Nvio tenha recorrido presena da rainhaeaoencontroinfelizcomEneiasparajustifcaragnese das guerras pnicas. Assim se explicaria a maldio que na Eneida DidolanasobreosfuturosdescendentesdeEneias.Horsfall 1990: 139140, 143144, pelo contrrio, mostrase relutante na aceitao da hiptese de que Nvio tenha apresentado uma relao 13 12Paisagens Naturais e Paisagens da Alma no Drama Senequiano13 12amorosa entre Dido e Eneias e justifca os elementos negativos da caracterizao de Dido na epopeia virgiliana com a desconfana queatradioromanasentiaperanteosCartagineseseque estariajpresentenoBellumPoenicumdeNvio.Destemodo, a descrio da rainha como um ser nocivo e pouco fvel traria memria dos leitores de Virglio os sentimentos antiCartago dos Romanos, veiculados na obra de Nvio1.Qualquerquetenhasidoacontribuiodesteautorpara acaracterizaodeDido,foiaversodeVirglioquemais infuenciou o pblico romano e legou posteridade o ponto de partida de tantas obras literrias. A grande maioria das abordagens posterioresconstrisecomorespostaepopeiavirgilianaque, porestemotivo,tommoscomobaseparaaanliseposterior. Sem ter pretenses de exausto que impossibilitariam a realizao deste trabalho, a investigao incidiu na caracterizao de Dido emcadaumdostextosanalisadosenarelaodestacomas versesanteriores.Pelamesmarazo,omitimosreferncias pontuaisaDido,optandoporpesquisartextosque,deforma maissistemticaouaprecivel,contribuamparaadefnioda personagem. Analisamosemanexo,deformasucinta,apervivnciade Dido em alguns textos da literatura ocidental e numa das ltimas obrasquereescreveuoepisdiodoseuencontrocomEneias, semoutropropsitoquenoodemostrarqueapersonagem ultrapassou amplamente as fronteiras da literatura latina, porque, de uma forma ou de outra, acompanha o evoluir da sensibilidade Ocidental.1 Para uma sntese das interpretaes da questo da presena de Dido no Bellum Poenicum, cf. Albrecht 1999: 4950.13 12 13 12Mariana Montalvo MatiasNOTAS AsediesdostextosutilizadosestoidentifcadasnoPonto 1. da Bibliografa. Para todos os textos cuja edio no esteja a devidamente indicada, seguimos a edio do Packard Humanities Institute,nocasodostextoslatinos,eadoTesaurusLinguae Graecae para os textos gregos. Em todas as edies, substitumos v por u. Utilizamosparaosttulosdasobraslatinasasabreviaturas do Oxford Latin Dictionary e para as obras gregas, as do Greek-English Lexicon.Captulo IVirglio, criador de Dido17 16Cristina Santos PinheiroTentar defnir a essncia de Dido na Eneida s encontra uma basesustentvelnafascinantecomplexidadedacaracterizao dapersonagem.Defacto,Didoumadasindividualidades maisdensasdaobraedestadensidadenasceminterpretaes mltiplasque,longedeseanularem,secomplementam,num processoinesgotvelqueseinserenainterpretao(igualmente inesgotvel) da pica virgiliana.A histria da rainha de Cartago desenvolve-se nos livros 1 a 4 da obra, com pesos diferentes em cada um, e termina com uma breve apario no livro 6.1 Cartago, colnia da Fencia, descrita como a cidade predilecta de Juno, deusa inimiga dos Troianos (1.1ss.), ressentida desde o rapto de Ganimedes e o julgamento de Pris. Aumenta o rancor da deusa contra os Troianos o orculo que previa que do sangue dos Teucros nasceria um povo que governaria um vasto imprio eque,notvelnaguerra(1.21),haveriadedestruirCartago.A caracterizao dos Cartagineses, longe de ser completa, limita-se areferirasuaorigem(1.12),asituaogeogrfcadeCartago relativamenteItlia(1.13-14),oseupodereconmicoea aptidodopovotrioparaaguerra(1.14).NemJuno,quando se lamenta de os seus desejos no receberem por parte de Jpiter oacolhimentoconveniente,refereosCartagineses,nemJpiter osmencionaquandodesenrolaperanteVnusodestinodos Troianos. Apenas quando termina e envia Mercrio Lbia para que Cartago no feche as portas a Eneias e aos seus companheiros, se volta a falar de Dido e do seu povo. E, por interveno divina (1.303), os Cartagineses despojam-se dos seus espritos violentos (1.302-3)eadisposiodarainhaparacomos Troianostorna-se benigna(1.303-4).Didoalvodestaintervenoparaque, 1 Apesar de surgir pela primeira vez no livro 1, nos livros 2 e 3 adivinhamos apenasasuapresena,umavezqueEneiasnarraperanteDidoaquedade Tria.Olivro4,porexcelncia,oepisdiodosamoresdeDidoeEneias, desdeodespontardapaixonarainhapartidadeEneiaseaosuicdiode Dido. No livro 4, a sombra de Dido aparece a Eneias nos Infernos, sendo este o ltimo encontro de ambos.19 18O percursO de didO, rainha de cartagO, na Literatura Latina19 18desconhecedora do destino (1.299), no se oponha vontade dosdeuses.Destemodo,comamanipulaodanaturezados Cartagineses e da sua rainha est preparada a chegada de Eneias e dos seus companheiros. Depoisdeteremenfrentadoatempestadedesencadeada porJunoparaosafastardaItlia,desembarcamnaLbia. Julgandoperdidosalgunsdosseuscompanheiros,Eneiassaido acampamentoparaexplorarasredondezas.Nestacaminhada, encontraVnusdisfaradacomoumajovemcaadora:armada dearcoealjava(1.318;1.336),comoscabelossoltos(1.319), joelhos descobertos (1.320) e calada com coturnos cor de prpura (1.337). A forma como a deusa se apresenta perante Eneias, como umajovem2,antecipaocontextoerticodoencontrodaquele comDido.AfirmaOliensis1997:306,aestepropsito: The point is that Venus presents herself to her son in the guise of a marriageable girl, ofering him a kind of preview of Dido. A razo do disfarce parece obscura. Se o objectivo da deusa era no ser reconhecida pelo flho, o disfarce foi um fracasso, uma vez que este imediatamente se d conta de que no est na presena deumsermortal(1.327-9)e,nomomentoemqueVnusse prepara para partir, Eneias reconhece a me, acusando-a, ento, de ser cruel para com o seu prprio flho (1.407-9). SegundoHarrison1988:201ePobjoy1998:43,Vnus aparecedisfaradaparanoserreconhecidaporJuno,umavez que se encontra em territrio protegido por esta3. Hiptese a ter em conta, se tivermos em ateno o facto de, em outros encontros comEneias(2.589ss.;8.608ss.),Vnusnousarqualquertipo dedisfarce.Parece,ento,que,emTriaenaterraprometida pelo destino, no h necessidade de artifcios. Assim, ao aparecer disfaradaaEneias,serintenodadeusamostrar-lhequese encontraemterritrioinimigoou,pelomenos,quenopode confarnosseusanftries,aindaqueahistriadopassadode Dido (bem como a representao da queda de Tria no templo de Juno) parea ser uma forma de atenuar a angstia dos Troianos. De acordo com Hardie 1997: 322 e com os autores citados, ao apresentar Vnus calada com coturno (1.337), maneira dos actores trgicos, Virglio reala o carcter trgico que caracteriza o episdio da paixo de Dido por Eneias. Quando este diz a Vnus 2 Juventude enfatizada pela repetio de uirginis em 1.314.3 tambm recorrendo ao disfarce, assumindo a imagem de Ascnio, que Cupido instila em Dido o fogo oculto da paixo (1.688).19 18 19 18Cristina Santos Pinheiroque ela deve ser um dos imortais (1.327-9), talvez a prpria Diana ou uma ninfa, a deusa faz questo de explicar o uso dos coturnos (e da aljava) como um costume das jovens fencias. No entanto, j que o coturno era o calado utilizado tambm pelos caadores, no seria de estranhar numa jovem que, supostamente, caa com as irms. AodescreveraEneiasopassadodeDido,Vnus,calada com coturnos em vez de sandlias, parece proferir o prlogo da tragdia que vai resultar do encontro de ambos, j que apresenta osantecedentesdavidadarainha,opercursoqueaconduziu atfundaodeCartago(Harrison1988:207ss.).Ahistria do exlio forado de Dido apresenta algumas semelhanas com o passado de Eneias: ambos se viram coagidos a abandonar a ptria, ambos assumiram o estatuto de lder por fora das circunstncias, ambos perderam entes queridos, um e outro viajaram pelo mar embuscadeumrefgio.Devemosreferiraindaafundaode uma cidade em terras estrangeiras, facto que para Dido j uma realidade e para Eneias ainda um almejo. As afnidades do passado de ambos so um modo de preparar Eneias para o encontro com a rainha e de despertar o interesse do Troiano por um ser assim semelhanteasiprprio.Noentanto,lem-senasentrelinhas algumasnotasmenosabonatriasdocarcterdeDidoedos Cartagineses (Cairns 1989: 42-3, 99). A inimizade entre estes e os povos vizinhos devia ter sido interpretada por Eneias como um mau pressgio, como sinal de que no se encontrava perante um povo pacfco. A acrescentar ao carcter hostil dos Cartagineses, os antecedentes familiares de Dido (discrdia, ambio, crime...) noauguramumbomdesfechoparaarelaoentreosdois povos.OexliodeDidofoimotivadopelaambiodesmedida do seu prprio irmo e por um crime hediondo por ele cometido. sobre estes princpios pouco louvveis que fundada a cidade de Cartago. Assim, tudo ambguo no encontro de Eneias com a sua me: das palavras aparncia fsica, tudo se presta a leituras mais complexas do que poderia parecer numa primeira anlise.oqueacontece,comoreferido,comodisfarcedeVnus. Alm de, pela referncia ao cothurnus e pela narrao do passado deDido,Vnusassumirafunodeumapersonagemtrgica, acaracterizaodadeusacomatributosdeDianaproduzuma ambiguidadefagrante,senoparadoxal.Comaaparnciade uma jovem caadora, Vnus reveste-se de caractersticas que no so suas. Na descrio da deusa esto presentes dois factores que 21 20O percursO de didO, rainha de cartagO, na Literatura Latina21 20acentuam a identifcao de Vnus com entidades que merecem algumarefexo.Vnusaparecetransportandoarmasdeuma jovemespartana(1.315-6)ecomparadaaHarplice,fgura mitolgicaoriundadaTrcia,correndopelasmargensdorio Hebro com os seus cavalos velozes (1.316-7).4 No pode ser casual o facto de tanto as mulheres de Esparta como as da Trcia serem exemplosdesistemasemqueaeducaofemininaultrapassava a preparao para a vida familiar e para a economia da casa. As mulheres de Esparta recebiam uma educao que inclua exerccios fsicos e preparao musical e artstica, alm de, segundo algumas fontes, exercerem maior infuncia sobre os maridos e os flhos do que seria desejvel5. As mulheres da Trcia tinham tambm uma vida particularmente activa6. Podemos,assim,concluirqueVnussurgedeliberada eenfaticamenteassociadaapadresatpicosdeeducao femininaquevalorizamaintervenoactivadasmulheres.E nestecontextoquedevemosentenderorelatoqueVnusfaz dasfaanhasdeDido.Disfaradaedescrevendo-lheopassado audaciosodarainha, VnusintroduzEneiasnumacomunidade emqueumamulherquemassumealiderana.Foradapelas vicissitudes do seu passado, Dido evoluiu do estatuto de esposa devota (1.344-6) para a posio de monarca, anormal para a sua condio de mulher7. AochegaraCartago,EneiasentranotemplodeJunoefca surpreendidocomarepresentaodecenasdaguerrade Tria. O que Eneias interpreta como a venerao da calamidade que os Troianos sofreram, levanta, no entanto, algumas questes8. Eneias 4 Filha do rei trcio Harplico que a educou para lhe suceder, uma vez que notinhaflhoshomens.Ajovemtornou-sehbilnomanejodasarmase, quando ambos foram expulsos da cidade, refugiaram-se nos bosques, vivendo da caa e da pilhagem. A celeridade da jovem permitia-lhe roubar sem nunca serapanhada,atqueumdiafoicapturadanumaarmadilhaparaanimais selvagens. Cf. Grimal 1982: ad voc. e Srvio, A. 1.316ss..5 Cf. Pl. Lg. 7.804e; Arist. Pol. 1269b12; Plu. Lyc. 14.6 Cf. Pl. Lg. 7.804e.7 De acordo com Hardie 1997: 321-2, Dido aceita esta mudana de estatuto at chegada de Eneias e dos Troianos. Depois, gera-se nela a confuso.8Pschl1962:70afrmaquenasimagensdotemploEneiasreconhece ahumanitasdeDido.Suzuki1989:106-7explicaainterpretaofavorvel de Eneias pela obsesso deste pelo seu prprio passado. Hexter 1992: 355ss. considera que Eneias interpreta erroneamente as imagens: To infer from such decorations in a temple dedicated to Juno that her devotees would be kindly to Junos enemies is a monumentally stupid inference. (355) Da mesma opinio: 21 20 21 20Cristina Santos PinheirovnasimagensumsinaldequepodeconfarnosCartagineses, uma prova de que Dido sente compaixo pelo destino de Tria. Esquece, todavia, que essas mesmas imagens retratam a vitria dos Aqueus sobre os Troianos e que o templo em que se encontram foi dedicado por Dido divindade que a mais forte opositora sua misso9. Assim, ao invs de aliviar a dor de Eneias, a representao pictricadaderrotados Troianosdeveriasuscitarnelealgumas desconfanas, j que o objectivo destas pode ser a celebrao da destruio de Tria e a sua consagrao a Juno. Eneias continua, assim,alerdeformafavorvelasvriaspistasquevosendo semeadas no seu percurso em direco rainha. Eneiasvaiobservandonasportasdotemplorepresentaes deepisdiosdaguerrade Tria,numaviagemdolorosaaoseu prpriopassado.Nasequnciadestasimagens,assumeespecial importnciaadescriodePentesileia,porantecederaentrada em cena de Dido10. Pentesileia descrita no no momento da sua morte s mos deAquiles,queseapaixonapelasuabelezadepoisdeamatar, mascomandandoosesquadresdeAmazonas(1.490).Surge como uma imagem de desafo, de coragem, e no de submisso (Putnam 1998: 35-6):Ducit Amazonidum lunatis agmina peltis Penthesilea furens, mediisque in milibus ardet,aurea subnectens exsertae cingula mammaebellatrix, audetque uiris concurrere uirgo. (1.490-93)Chefa os esquadres das Amazonas de escudos em forma de lua Pentesileia em fria e arde no meio de milhares,com o cinturo dourado apertado por baixo do seio nu,guerreira, ela que, sendo uma jovem mulher, ousa combater[com homens.Lyne 1987: 209-10 e Horsfall 1990: 137-8 e 1995: 106-8.9Acercadainverosimilhanaquesubjazconsagraodeumtemploa Juno pelos Cartagineses, cf. Hexter 1992: 355ss..10Pigon1991:48consideraqueasimagensdotemplorepresentama fatalidade do destino dos Troianos e a crueldade dos Aqueus, que tm como augeadescriodocadverdeHeitorarrastadopeloscavalosdeAquilese Pramo em posio de splica, funcionando as imagens que se seguem (a do prprio Eneias, de Mmnon e de Pentesileia) como uma forma de diminuir a tenso para preparar a chegada de Dido.23 22O percursO de didO, rainha de cartagO, na Literatura Latina23 22Aanttesequeopeuiriscomhomenseuirgoumajovem mulher no verso 1.493 permite vislumbrar uma das motivaes maisimportantesdaimagemdePentesileia,quesebaseia narelaodossexosmasculinoefeminino.ComoDianaou Harplice, tambm as Amazonas desprezam os homens e se regem porregrasconsideradasanormaisparaumamulher.Comoas Espartanas, pegam em armas e desempenham um papel activo na sua comunidade11. A sequncia de fguras femininas que comea comodisfarcede Vnussituaoleitor(eEneias)nombitoda transgresso e prepara-o(s) para a entrada de Dido em cena12. AcomparaodeDidoaumasriedepersonagensquese mantm castas especialmente Pentesileia e Diana lana sobre a narrativa, de acordo com Putnam 1998: 37, uma luz sombria, enfatizandoasexualidadedarainha:Aslongassheremainsa virgin, which in her case means as long as she refrains from sexual involvement,shecanretainherquasi-divinestanceofpower. Eroticism, we soon learn, will bring her only misadventure.,noentanto,oentusiasmodePentesileiaquesobressaina ekphrasiseseexprimeempalavras-chavecomofurensemfria eardetardenoverso1.491oubellatrix13guerreiraeaudet ousanoverso1.493:preparadaparaocombate,embebida emardorguerreiroeaudcia.Asassociaestextuaiscom Didosoevidentes:oadjectivofurenseaformaverbalardet, ambosrealadospelaposiomtrica,revestir-se-odeuma importnciacapitalnacaracterizaodeDido.Porfm,amor emorteunem-senahistriadeambascomoumaamlgama funestae,destemodo,acontiguidadedarepresentaode PentesileiaemcombateedaimagemdeDidoaentrarno temploindiciaofnaltrgicodoencontrodestacomEneias14. 11 Recorde-se, para exemplifcar a interveno das mulheres espartanas na comunidade,ocomentriodeAristtelesnaPoltica(Pol.1269b30):Que diferenaexisteentreseremasmulheresagovernareosgovernantesserem governados pelas mulheres? que o resultado exactamente o mesmo.12 A propsito da importncia da associao de Dido a Diana e Pentesileia, afrmaPigon1991:52:DianaandPenthesilearepresent,therefore,two sidesofDidospositionandpersonality:onebright,theotherdark.Diana correspondeaDidocomomonarcacasta,enquantoPentesileiarepresentaa exacerbao e o arrebatamento que se apoderaro da rainha.13Palavraqueocorreapenasduasvezesnaobra:noversocitado, caracterizando Pentesileia, e em 7.805, referindo-se a Camila.14Cf.Conte1986:194-5,Moskalew1982:132-3,Smith1997:33e Putnam 1998: 37.23 22 23 22Cristina Santos PinheiroQuandoosolhosdestesedetmnaimagemdarainhadas Amazonas, aparece Dido:Haec dum Dardanio Aeneae miranda uidentur,dum stupet, obtutuque haeret defxus in uno, regina ad templum, forma pulcherrima Dido,incessit magna iuuenum stipante caterua.(1.494-7)Enquanto estas cenas espantosas so contempladas pelo dardnio [Eneias,enquantoasadmira,estupefacto,esemantmpresonumnico [olhar,a rainha Dido, de belssima aparncia, entrou no templo,acompanhando-a uma numerosa multido de jovens.Atransioentreosdoismomentosabrupta,produzindo umaespciedesobreposiodaimagemdasduasmulheres, acentuada pela simultaneidade que a conjuno temporal impe e pela importncia que assume o sentido da vista. A substituio de uma imagem pela outra acontece perante os olhos de Eneias queseadivinhaesttico,defrontedaimagemdePentesileia, estupefacto. Os recursos de Vnus (o disfarce e o relato do passado deDido)eavisualizaodemomentosdolorososdaguerrade Tria, especialmente a imagem de Pentesileia, preparam o esprito de Eneias para este momento. Eneias j sabe que est perante uma mulher diferente, que, como ele, muito sofreu, que j realizou o que ele ainda almeja. QuandoDido,formapulcherrimadeaparnciabelssima, (1.496),entramajestaticamentenotemplo,acompanhadapor uma multido de jovens, parece rodeada por uma aura divina, j que , logo de seguida, comparada a Diana. A presena de Diana notexto,aindaqueestanoparticipenaaco,demonstraat quepontosoimportantesalgunsparmetrosdacaracterizao da deusa que fguras como Pentesileia ou Harplice partilham. Tambm Dido participa neste universo de mulheres que assumem posies de liderana. No entanto, o smile que aqui associa a rainha de Cartago deusa da caa mais complexo, ultrapassa a questo da transgresso do cnone feminino que, no livro 1, parece ocupar umlugardedestaque,setivermosemcontaagaleriadefguras femininasquepodemsercatalogadascomotransgressoras,isto ,comomulheresquesedesviamdecaractersticasconsideradas femininas como a fraqueza e a passividade:25 24O percursO de didO, rainha de cartagO, na Literatura Latina25 241. O disfarce de Vnus (1.314ss.):a) armas de jovem espartana (1.315-6),b) comparada trcia Harplice (1.316-7),c) faz lembrar Diana a Eneias (1.329),d) conta a histria das faanhas inusitadas de Dido a Eneias (1.340-68).2.EmCartago,quandoEneiascontemplaasimagensdo templodeJuno(1.453ss.),altimaimagemquevade Pentesileia (1.490-3).3.DidosurgeperanteosolhosdeEneias(1.494-7)e comparada a Diana (1.498-502).Da caracterizao de todas estas fguras femininas sobressaem elementos de cariz venatrio. Vnus, como as supostas irms que procura, est equipada para a caa e tambm transporta a aljava15. O mesmo acontece com Diana, que, apesar de o smile no fazer refernciaactividadevenatria,traztambmconsigoaaljava (1.500-1)ecomPentesileia,umavezqueadescriodestaem combateimpequeaimaginemosarmada.OprprioEneias, quandoencontraVnus,estarmado.Oencontroentreme eflho,preparadosparacaar(ouparacombater?),aliadoao facto de tambm Dido, como caadora, se equipar com a aljava, quando sair para a caada que defnir o seu destino, e analisado em conjunto com o smile (4.68-73) que a compara, apaixonada, aumacoraferida,leva-nos,noseguimentodeLyne1987: 194ss., a questionar o papel das personagens na relao predador presa.Nolivro1,nohaindavtimas.AssociadaaDianae aPentesileia,Didoparecepertencertambmaestasequncia de fguras preparadas para caar, actividade que, de acordo com Cairns 1989: 31, evoca qualidades de um bom monarca.A comparao de Dido a Diana retoma o smile que na Odisseia associa Nauscaa a rtemis16, adaptao que desde a Antiguidade 15 Namque umeris de more habilem suspenderat arcum / uenatrix (...) (1.318-19) que, de acordo com o costume, transportava suspenso do ombro o arco manejvel; uidistis si quam hic errantem forte sororum, succinctam pharetra et maculosae tegmine lyncis (...) (1.322-3) Vistes por acaso vagueando por aqui alguma das minhas irms, munida de aljava e coberta com a pele malhada de uma fmea de tigre?; uirginibus Tyriis mos est gestare pharetram (...). (1.336) costume das jovens trias trazer consigo a aljava.16 Tambm Apolnio de Rodes na Argonutica 3.876-84 compara Medeia a rtemis. 25 24 25 24Cristina Santos Pinheirotem suscitado algumas crticas ao engenho virgiliano17. De facto, a associao de Nauscaa a rtemis parece mais natural, mais bvia: Nauscaa uma jovem, inconsequente, entretida com brincadeiras com as aias. Dido casou e j viva e tem a seu cargo toda uma cidade,temresponsabilidadesqueNauscaadesconhece,e noexercciodestasresponsabilidadesquecomparadaaDiana brincando com os coros de ninfas. Assituaesenunciadastmemcomum,almdamultido que acompanha cada um dos elementos (Dido acompanhada por uma multido de jovens, Diana por uma multido de Orades), ofactodesedesenrolarememlugaresdeculto(Dido juntodo templo de Juno, Diana junto do Eurotas e do monte Cinto). DeacordocomCairns1989:130-1,oprincipalefeito daadaptaodosmile,apesardasdiferenas,aassociao queestabeleceentreDidoeNauscaa.Se,numaprimeira anlise,parecemnadateremcomum,assemelhanasnoso despiciendas: ambas prestam ajuda a um heri em difculdades; ocasamentoumapreocupaoparaumaeparaaoutra, ainda que as circunstncias sejam diferentes; dispem ambas de pretendentesquedesprezame,seNauscaarepresentaumrisco srio para o regresso de Ulisses a casa, Dido compromete o destino de Eneias.Segundo Pschl 1962: 65ss., o objectivo do smile o resultado que este tem na mente de Eneias, centrando a ateno deste em Dido. Comparada a Diana, Dido parece ter uma pose celestial, como se estivesse revestida de uma estatura divina. Cresce perante osolhosvidosdeEneiasquevosendoconduzidosatravsda sequncia de imagens femininas esquematizada acima.As semelhanas que Eneias reconhece entre o destino de Dido e o seu (ambos exilados, obrigados a procurar refgio em terras estrangeiras) e o facto de Dido se encontrar em pleno trabalho de fundao suscita em Eneias a admirao por aquela mulher que pareceamaterializaodoseuprpriodestino.Assim,osmile dcontinuidadeaoartifciodeVnus:Eneiascontinuaaser propositadamente atrado para Dido, como uma borboleta para uma vela acesa, despojado de qualquer tipo de desconfana para com os Cartagineses. TambmDido,comoEneias,infuenciadapeloprimeiro encontro de ambos. Quando a nuvem que o escondia enquanto assistiaaodilogodarainhacomosseuscompanheirosse 17 Cf. Gel. 9.9, 9.14-17.27 26O percursO de didO, rainha de cartagO, na Literatura Latina27 26desvanece,tendoestaacabadodeexprimirodesejodeEneias estarpresente(1.575-8),oTroianoaparecesemelhanteaum deus (1.589), como um deus ex machina. Vnus intervm uma vezmaisnaformacomoDidoeEneiasseencontram.Depois deterdespertadonoflhoaadmiraopelarainha,avezde os olhos desta fcarem deslumbrados com a aparncia de Eneias, realada para o efeito pela deusa: Restitit Aeneas claraque in luce refulsit, os umerosque deo similis; namque ipsa decoram caesariem nato genetrix lumenque iuuentae purpureum et laetos oculis adfarat honores. (1.588ss.)[a nuvem afastou-se mas] Eneias fcou para trs e resplandeceu [claridade da luz,semelhante a um deus no rosto e na estatura; que a prpria me tinha insufado na cabeleira do flho a beleza, na sua juventude [um brilho]purpreo e no seu olhar uma beleza jovial. O aspecto fsico de Eneias actua, segundo Cairns 1989: 30, em conjunto com a descrio que Ilioneu fez, na presena de Dido, do Troiano como um chefe virtuoso (1.544-5), criando na rainha umaexpectativafavorvelemrelaoquele.Deacordocomo mesmoautor,ofactodeasprimeiras palavrasdeIlioneuserem um elogio s qualidades de Dido enquanto monarca e de Eneias ser apresentado como rex insupervel, faz com que Dido se sinta desafada a emul-lo e, consequentemente, a acolher os Troianos deformahospitaleira.AssimCitereiamanipulaoespritode Dido e de Eneias, cada um deles comovido pelo aspecto e pelos acontecimentos do passado do outro18. No livro 1, Eneias parece passar por um processo de preparao mental que funciona como meio de apaziguar o esprito angustiado dosTroianos19.SVnuscontinuaadesconfareavelarpela segurana do flho, recorrendo a ardis que dominem o esprito dos Trios e da sua rainha, pela primeira vez caracterizados de forma 18 Obstipuit primo aspectu Sidonia Dido / casu deinde uiri tanto (...) (1.613-4) A Sidnia Dido fcou estupefacta primeiro por causa da sua aparncia, depois por causa da to grande infelicidade do heri.. 19OprpriorelatodaguerradeTriaumacatarseparaEneias,que, assim, parece deixar para trs o passado.27 26 27 26Cristina Santos Pinheiromanifestamentenegativa20.Mesmodepoisdaintervenode Mercrio junto dos Troianos, Vnus continua a temer a natureza deDidoedosseussbditosefazCupidoassumiropapelde Ascnio, para instilar na rainha furentem em fria (1.659) o fogo da paixo. O facto de ser Vnus quem, pela primeira vez, atribui a Dido o furor que assumir um papel de relevo no livro 4, alm doindcioqueintroduznotexto,pareceprovarrealmenteque s a deusa teme ainda os Cartagineses e conhece a sua verdadeira natureza. Diz a Cupido:Tu faciem illius noctem non amplius unam falle dolo, et notos pueri puer indue uoltus, ut, cum te gremio accipiet laetissima Dido regalis inter mensas laticemque Lyaeum, cum dabit amplexus atque oscula dulcia fget, occultum inspires ignem fallasque ueneno. (1.683ss.)Tu, engana-os com este dolo: durante no mais do que uma [noite, assumeo rosto dele e, tu que s um menino, toma a fsionomia [conhecida de outro menino,de modo a que, quando Dido, muito alegre, te acolher [no seu regao,entre as mesas do palcio real e o lquido de Lieu,quando te abraar e te der doces beijos,tu instiles nela o fogo oculto e a enganes com veneno. Aorecorrer,maisumavez,dissimulao,Vnusvale-sedo instinto maternal de Dido. O facto inesperado de Cupido no ser descritocomostraostradicionaisdearqueiro,nocontextodo livro 1 em que, como vimos, as armas parecem assumir um peso e signifcado especiais, acentua o poder do seu disfarce. Dido, assim enganada, no podia resistir ternura da criana que a contagia. A anttese entre amplexus abraos e oscula dulcia doces beijos no verso 1.687, por um lado, e occultum... ignem fogo oculto e ueneno com veneno no verso 1.688, por outro, acentua a crueldade do artifcio utilizadoporVnus.DeacordocomStroppinideFocara1990: 23ss.,oestratagemautilizadoporVnussurgeperanteoleitor comoumprocessobemmaisrepugnantedoqueosanteriores, que visam atrair Dido e Eneias: Cest aller trop profond dans ce 20DomumtimetambiguamTyriosquebilinguis;(1.661)temeumacasa enganadora e os Trios sem palavra.29 28O percursO de didO, rainha de cartagO, na Literatura Latina29 28que les tres ont dessentiel, de sacr, cest toucher au coeur de la nature humaine et passer les bornes permises qui veut se venger: ce niveau les tres nont plus ni dfense ni refuge, et la dloyaut tournelacruautmonstrueuse.Nutall1998:92caracterizao estratagemadeVnuscomohalf-blasphemy.VnuseCupido exploram, assim, o desejo que Dido tem de ser me para a infectar com a paixo por Eneias e a rainha torna-se vtima da manipulao divina e da sua prpria vulnerabilidade.Eassimque,noconfortodoseupalcio,arainhavai sendoenvenenada.Ocenriododolo,porsis,umsinalde condenao21. A descrio do palcio de Dido (1.637-42; 1.697-708)signifcativanaexpressodaopulnciaedariquezae contrasta com duas outras residncias em que Eneias acolhido: no livro 7, o rei Latino recebe os Troianos no palcio de Pico, que temcomocaractersticamaismarcanteopesodarepresentao da histria e a venerao dos antepassados; no livro 8, Evandro recebeEneiashumildementenobosqueemqueofereceum sacrifcio.Assim,ariquezadopalciodeDido,atradicional riquezaoriental,contrriaaoespritoromano,estabeleceuma diferenafundamental,umabarreiraintransponvelentreos Trios e os Troianos. A aliana entre os dois povos impossvel earelaodeDidoeEneias,queevocaaligaofunestaentre Clepatra e Marco Antnio, no pode ter futuro.Assim, desde o incio, a tragdia de Dido adivinha-se no poder inexorveldosestratagemasdeVnuseemalgunsvislumbres, pouco abonatrios, da sua ndole. Dido est condenada. E, se a natureza do seu esprito s evidente para a deusa, os indcios que vosendointroduzidosnanarrativafazemaimagemdarainha oscilar entre a imponncia e a desmesura, entre a racionalidade e a castidade de Diana e o arrebatamento apaixonado e sem escrpulos de Vnus. Esta dualidade e a confuso que cria na prpria Dido so,assim,introduzidasnaobrapelaimagemambivalentede VnuscaracterizadacomoDiana22.ComoafrmaSuzuki1989: 105, the goddess of loves masquerade as the goddess of virginity willfndanironiccorollaryinDidostransformationfroma chaste queen to an impassioned lover.Eassimquecomeaolivro4:Didocompletamente 21 Pavlock 1990: 76-7 comenta as implicaes morais de ordem negativa que as referncias ao ouro e riqueza introduzem no texto.22 Hardie 1997: 321ss. afrma que Virglio juntou numa nica imagem as epifanias de Afrodite e de rtemis no incio e no fm do Hiplito de Eurpides, respectivamente, associando, assim, a tragdia de Dido a esta obra.29 28 29 28Cristina Santos Pinheiroconquistadapeloamor,vencida,portanto,peloestratagemade Vnus. Depois da manipulao divina, a paixo que Dido sente por Eneias fsicamente evidente.Osprimeirosversosdescrevemapaixodarainhamediante duas imagens que se tornam recorrentes no episdio: a imagem do amor como fogo e como ferida. A caracterizao do amor da rainha como um fogo surge no livro 1, na descrio do ardil de Vnus e Cupido (1.659-60; 1.673-4; 1.687-8; 1.712-14). O efeito que este, assumindo o aspecto do pequeno flho de Eneias, tem em Dido coadjuvado pelos presentes que o acompanham quando Acates o traz das naus para Cartago (1.714), presentes que Eneias trouxe de Tria, depois de salvos do fogo que consumiu a cidade (1.679) e que parecem transmitir rainha o fogo funesto queavaidestruir,fogometafricodapaixo,que,dequando emquando,semanifestacomorealidadefsica(4.66-7).Ser precisamenteestefogomaterializadooqueincendiarapira funerria e consumir, ento literalmente, o corpo da rainha.A chama da paixo tambm um veneno que invade o corpo de Dido (1.688), uma realidade que congrega aspectos fsicos e psicolgicos, que joga com o corpo e com a alma da rainha. um amor que Dido bebe (1.749), um amor que doena (4.8), que uma ferida aberta, ferida psicolgica que, como o fogo, evoluir tambm no sentido da materializao. este amor, poderoso e invasivo, que domina a rainha quando, ouvida a narrativa da queda de Tria, surge perante Ana:At regina graui iamdudum saucia cura uulnus alit uenis, et caeco carpitur igni. (4.1-2)E a rainha, atingida h muito por um grave cuidado de amor,alimenta uma ferida com as suas veias e enfraquecida por um [fogo oculto.Dido est inquieta e atormentada (4.5) por um sentimento que deixara,desiludida,nopassado23equeagora,inesperadamente, ainvadedeformainvulgarmenteviolenta.Seduzem-na aaparnciafsicadeEneiaseossofrimentosqueacaboude descrever.OssintomasecausasdapaixodeDidosofsicos epsicolgicoseestaduplicidade,assimabrangente,devastar, gradualmente, a rainha. 23 Afrma em 4.23: adgnosco ueteris uestigia fammae reconheo os traos da antiga chama.31 30O percursO de didO, rainha de cartagO, na Literatura Latina31 30Aparentemente determinada em se manter fel ao seu defunto marido, Dido afrma perante a irm que, se no lhe repugnasse aideiadeumnovocasamento,apenasEneiaspoderiasero eleito(4.15-19).Arepulsadestaligaohipottica,queparece considerarimpossvel,levaarainhaaformularumjuramento de fdelidade s cinzas de Siqueu, juramento em que exprime o desejo de se manter uniuira24:sed mihi uel tellus optem prius ima dehiscat uel pater omnipotens abigat me fulmine ad umbras, pallentis umbras Erebo noctemque profundam,ante, pudor, quam te uiolo aut tua iura resoluo.ille meos, primus qui me sibi iunxit, amores abstulit; ille habeat secum seruetque sepulcro. (4.24-9)Que as profundezas da Terra se abram para mimou o Pai omnipotente me afaste com o seu raio para as sombras, para as plidas sombras, para o rebo e para densido da noite,antes de que eu te ofenda, pudor, ou atente contra as tuas leis.Aquele que foi o primeiro a unir-me a si foi esse quem levou consigo o meu amor; que consigo o mantenha e o guarde na [sepultura. Pschl 1962: 76 reala a importncia do juramento como vector de auto-condenao: It is a curse on herself that is destined to be cruelly fulflled. De facto, Dido h-de violar o juramento de fdelidade a Siqueu, mas expiar, com a morte, a sua falta. Tenha este voto sido pronunciado com convico ou no, rapidamente os conselhos de Ana dissolveram os ltimos escrpulos da mente de Dido. Recordando-lhe a fragilidade da sua condio de mulher e as vantagens que uma unio com Eneias lhe concederia, quer anvelpessoal,queranvelpblico,Anafazcomqueairm esquea as palavras que acabou de proferir. O desejo de ser me, avulnerabilidadedoreinoameaadopelospovosvizinhosea 24 I. e. mulher que s teve um marido. Este desejo determina, de acordo comalgunsautores,acondenaomoraldeDido.AindaqueosRomanos encarassemocasamentodasvivascomnaturalidade,asuniuiraeeram frequentementealvoderasgadoselogios,oquedemonstraque,pelomenos enquantosituaoidealizada,oestatutomereciaconsidervelaprovao moral.DeacordocomTreggiari1993:236,Remarriagewasnotmorally objectionable to pagan writers, except when they wanted to take a particularly high moral line, although lifelong monogamy for women was morally better and luckier.31 30 31 30Cristina Santos Pinheiroesperana depositada na aliana com os Troianos vencem a culpa (4.19) de uma nova relao.Deseguida,AnaeDidoprocuramatrairaboa-vontadedos deuses para a unio com o Troiano, mediante sacrifcios a que a prpriarainhapreside.elaquemimolaasvtimaseconsulta as suas entranhas, ritual que, de acordo com Pavlock 1990: 74, chocariaumRomano.Austin1982:adloc.considera,pelo contrrio, que Dido descrita na sua dignidade de rainha: She istheQueen,anobleandcommandingfgure.ParaSpence 1999: 84, o comentrio que o prprio narrador faz aos sacrifcios refecte sobre eles uma luz ambgua:heu, uatum ignarae mentes! quid uota furentem,quid delubra iuuant? est mollis famma medullasinterea et tacitum uiuit sub pectore uulnus. (4.65-7)Oh, mentes ignaras dos profetas! De que lhe servem, no seu[estado de fria, os votos?De que lhe servem os templos? Entretanto uma chama devora-lhe[as ternas entranhase uma ferida oculta vive no seu peito.Aoreferirachamaquelhedevoraasentranhas,no imediatamenteclarosesetratadofogorealdosacrifcioou dofogometafricodapaixo,seasentranhassodosanimais sacrifcados ou de Dido. S no verso seguinte se torna evidente quesetratadofogodapaixoque,metaforicamente,consome o corpo da rainha. No entanto, o facto de se suscitar, ainda que momentaneamente, esta dvida, faz com que Dido se identifque com a vtima destes sacrfcios.Comoquerqueseentendaopasso,deformareprovvelou dignifcante,parecequeenfatiza,antesdemais,arapidezcom quearainhaadere,semfreios,foradapaixo,paixoque ,novamente,caracterizadacomofogoecomoferidaeque amplifcada pelo smile que compara Dido a uma cora:uritur infelix Dido totaque uagatur urbe furens, qualis coniecta cerua sagitta, quam procul incautam nemora inter Cresia fxit pastor agens telis liquitque uolatile ferrumnescius: illa fuga siluas saltusque peragratDictaeos; haeret lateri letalis harundo. (4.68-73)33 32O percursO de didO, rainha de cartagO, na Literatura Latina33 32Arde a infeliz Dido e vagueia, enlouquecida, por toda a cidade, como, depois de lhe lhe ter sido arremessada [uma seta,uma cora que, imprudente, foi trespassada nos arvoredos de Cretapor um pastor que, avanando armado, deixou para trs [o ferro voltil,sem saber; ela percorre em fuga os bosques e as forestasdo monte Dicte; a fecha mortal fcou-lhe cravada no fanco.Osmilevemnoseguimentodaexploraodetpicosde carizvenatrioqueseinicianolivro1.Didocomparada,na perturbao do seu deambular pela cidade, a uma cora ferida por um pastor... nescius, letra por um pastor que no sabe (4.71-2). Se evidente a associao de Dido cora atingida, a identifcao daentidadequeaferiutemsuscitadoalgumapolmica.Lyne 1987: 194-8 peremptrio ao afrmar que Dido vtima de Eneias e no de Cupido, uma vez que este no caracterizado na Eneida comoarqueiro.Poroutrolado,aindaqueoadjectivonescius parea inocentar Eneias da acusao de ter ferido Dido, o autor consideraqueoqueeledesconheceque,efectivamente,uma das suas setas atingiu o alvo. Nesta interpretao, assume especial importnciaofactodeopastoraparecernosmilepreparado para a caa, agens telis, avanando armado (4.71), o que signifca que, por detrs do acto que vitima Dido, existe a inteno de a ferir. Assim, Eneias no ser completamente inocente na relao violenta predador-presa que o smile implica. Afrma Lyne 1987: 196: He [Eneias] has courted the queen, made up to the queen, hunted her in the hunt of love. What he does not know yet is that his courtship has been devastatingly and lethally successful (...). Consequentemente, Eneias intervm, de forma intencional, na paixo de Dido. Horsfall1995:124-5contestaestainterpretaoeafrma quearainhavtimadeVnuseCupidoenodeEneias,j queDidoquem,narelaocomoTroiano,assumeopapel deamante,opapelactivo.DidoamaEneias;Eneiasamado por Dido. Logo, o pastor nescius no pode ser identifcado com Eneias, j que o smile retrataria, assim, uma inverso nos papis da relao amorosa. , no entanto, seguro que Dido a vtima de um acto violento operadoporumaentidadepreparadaparaacaa.Moskalew 1982: 166-7 relaciona este smile com as imagens venatrias que sointroduzidasnoepisdiodesdeolivro1:Eneiascaando 33 32 33 32Cristina Santos Pinheirouma manada de veados (1.184ss.), e Vnus disfarada como uma jovem caadora (1.314ss.). Quanto a Cupido, arqueiro ou no, o certo que tambm ele exerce sobre Dido uma infuncia nefasta. Tambm ele vitima Dido de uma forma deveras violenta. Assim, Dido vtima de uma aco concertada, de carcter predatrio e muito poderosa. precisamente o poder do amor de Dido, a violncia (e tambm a rapidez...) com que a paixo se apoderou da rainha, completamente submetida pela ferida que a consome, que sobressai da descrio da cora. Comenta Pavlock 1990: 75: (...) the simile here increases the pathos of Didos sufering because it is so sudden and to some extent outside of her control. O amor de Dido torna-se obsessivo, f-la procurar a companhia de Eneias (4.74-5; 4.77-9), v-lo e ouvi-lo quando no est presente (4.83-4), esquecer as suas obrigaes derainha(4.86-9)...Assimalienada,Didoperdealucidez,a racionalidade e a fora que a caracterizavam quando, no templo de Juno, organizava o seu reino. Assim, de acordo com Spence 1999: 83, o paralelismo entre Dido e Eneias, que era evidente no livro 1 e que atraiu as personagens uma para a outra, desaparece quando Dido passa a ser vtima da sua prpria paixo. esta mudana, esta nova perspectiva que, de acordo com a autora, ilustrada no smile: enquantoDidoidentifcadacomavtima,opapeldeEneias dbio, mantm-se, propositadamente, enigmtico. Esta dualidade domina todo o episdio. Aresponsabilidadedeumeoutronodecorrerdos acontecimentosigualmentedifcildedefnir.Ainterveno dosdeuses,asmaquinaesdeJunoedeVnustornam nebulosaestaquesto.SaberseDidoounoresponsvelpor umapaixoassimavassaladoraeauto-destrutiva,seEneias fomenta,intencionalmenteousemquerer,ossentimentosda rainhatemdadoorigemaumdebateprolixoeinconclusivo. Teria Dido amado Eneias se os deuses no tivessem manipulado osseussentimentos?Lyne1987:66ss.entendequeVnus explorasentimentosjexistentesnarainha,aproveitandoasua vulnerabilidade e a atraco que sentiu por Eneias para criar nela uma paixo desenfreada. Se associarmos esta vulnerabilidade ao desejodeserme,quenorealizounoprimeirocasamento,e fragilidadepolticadoseureino,Didoseria,ento,avtima idealparaosplanosdasduasdeusas.Vnusmanipulaarainha paragarantiraseguranadoseuflho,Junoengendraaunio deambosparaafastarEneiasdoseudestino.Dido,assim,a 35 34O percursO de didO, rainha de cartagO, na Literatura Latina35 34presa de uma perseguio (desigual...) de cariz venatrio: a cora ferida.A caa metafrica representada no smile consubstancia-se na caada em que Dido e Eneias se unem na caverna.Speluncam Dido dux et Troianus eandem deueniunt: prima et Tellus et pronuba Iuno dant signum; fulsere ignes et conscius aether conubiis, summoque ulularunt uertice nymphae (4.165-8)Dido e o chefe troiano vieram para a mesma gruta:primeiro, a Terra e Juno que preside ao matrimnio do o sinal. Luziram clares e o ter cmplice da unio. Do cimo de um monte uivaram as ninfas. A natureza desta unio a base da tenso subsequente. Juno, apercebendo-se do estado deplorvel em que Dido se encontra possuda por um amor nefasto (4.90), esquecida da sua reputao e entregue aos devaneios da paixo (4.91) , planeia com Vnus umaalianaentreasduas(4.102-4).Junopretendemantero Troiano em Cartago, oferecendo-lhe, como dote, o poder sobre osCartagineses.Assim,deacordocomaspalavrasdadeusa, Dido apenas um meio de conseguir o fm que aquela se prope. Atente-senadescrio que Junofaz dossentimentos da rainha, que caracteriza ironicamente como presa de Vnus e Eneias:egregiam uero laudem et spolia ampla refertistuque puerque tuus (magnum et memorabile numen) una dolo diuum si femina uicta duorum est. (4.93-5)Alcanais louvor sem igual e arrecadais despojos magnfcostu e o teu rapaz( grande e digno de memria o poder divino!)se uma nica mulher vencida pelos embustes de dois deuses.e acrescenta a constatao de que o amor de Dido por Eneias obra de Vnus:Habes tota quod mente petisti: ardet amans Dido traxitque per ossa furorem. (4.100-1)Conseguiste o que to empenhadamente procuraste:Dido arde, apaixonada, e faz a loucura percorrer os seus ossos.35 34 35 34Cristina Santos PinheiroPlaneiaentouni-losnumconubio...stabili,numaunio duradoura (4.126), se Vnus concordar (4.125). Ludibriada por esta, Juno pe o seu plano em marcha, desencadeia a tempestade quetrazDidoeEneiasparaamesmagrutaepresideunio deambos,convencidadasualegitimidade.Deacordocom Austin 1982: ad 166, a descrio dos acontecimentos assume o carcterdeumacerimnianupcialemqueastestemunhasso entidadessobrenaturais:oselementos(aTerra,oFogo,oAr), Juno(adivindadequepresideaoscasamentoslegtimos)eas ninfas. Pavlock 1990: 80 comenta assim a unio e a forma como esta descrita na obra: Vergil also gives some credibility to the existence of a marriage, since the union was orchestrated by the marriage-goddessJunoandincludedsymbolicelementsofa formal ceremony: the lightning fashes substituting the wedding torchesandthemusicofthenymphsfortheweddingsong. Horsfall1995:128ss.afrmaqueospressgiosquepresidiram unio so uma pardia dos que deveriam estar presentes numa verdadeira cerimnia nupcial25 e que, portanto, Dido no pode ser considerada a esposa legtima de Eneias. O autor considera que Dido utiliza esta pretenso para esconder a sua culpa, iludindo-se a si prpria:ille dies primus leti primusque malorum causa fuit; neque enim specie famaue mouetur nec iam furtiuum Dido meditatur amorem coniugium uocat; hoc praetexit nomine culpam. (4.169-72)Aquele primeiro dia foi a causa da sua morte, aquele primeiro diafoi a causa dos seus males; pois Dido no se abala com as aparncias [ou com a sua reputao,nem refecte j num amor furtivo:chama-lhe casamento; com este nome dissimulou a culpa. Comoquerqueseentendaacerimnia,legtimaouno,o comentrio que segue a descrio da unio de Dido e Eneias obsta interpretao desta como um acto cndido. Se a prpria rainha se ilude, porque sente, de algum modo, que o que aconteceu reprovvel.As referncias ao ouro e prpura que dominam a descrio 25 O autor refere ainda o facto de, aos olhos de um Romano, ser impossvel o casamento entre ambos, j que Dido uma mulher estrangeira e Eneias a representao dos ideais romanos.37 36O percursO de didO, rainha de cartagO, na Literatura Latina37 36daaparnciadarainha,antesdepartirparaacaa(4.134-8), implicam,deacordocomPavlock1990:77,umacondenao moral, patente j na descrio da opulncia do palcio26. Assim, desde o incio, Dido apresentada como moralmente reprovvel. Eneias,pelocontrrio,saiparaacaaantealiospulcherrimus omnis mais belo do que todos os outros (4.141). O smile que ocomparaaApoloeleva-oestaturadeumdeus,comoDido comparada a Diana no livro 127. A oposio entre os dois, na hora de partir para o encontro fatal, evidente. No entanto, quando Mercrio se desloca a Cartago para admoestar Eneias, a descrio da aparncia deste retoma o tpico da opulncia excessiva (4.259-64), como se, adormecido no conforto de Cartago, Eneias tivesse sido contagiado pelos valores de Dido28.De facto, depois dos acontecimentos da caverna, a infuncia nefasta da Fama que faz desmoronar o idlio em que Dido e Eneias se encontram. Advertido pelas preces de Jarbas, Jpiter envia Mercrio aCartago.Aterrorizado,Eneiaspreparaapartidaemsegredo,j quenosabecomodirigir-serainha,eadiaoconfrontocom Dido. Todavia, quando esta descobre que os Troianos se preparam para partir sem nada dizer, reage de forma violenta:Saeuit inops animi totamque incensa per urbem bacchatur, qualis commotis excita sacris Tyas, ubi audito stimulant trieterica Baccho orgia nocturnusque uocat clamore Cithaeron. (4.300-3)Privada de razo, encoleriza-se e vagueia como louca por toda a cidade,como uma Tade29 excitada pela preparao das cerimnias rituais,quando, ao ouvir o nome de Baco, a incitam as orgias trienais e, pela noite, o Citron a chama aos brados. 26 Comenta a autora: Te moral overtones of both contexts reinforce the negative connotations of gold as a symbol of decadence. One may recall that Dido acquired her wealth under violent circumstances, after her husband had been murdered for his riches, and she herself stole away with it without her brother s knowledge.27 Lyne 1987: 123-5 comenta este smile como a associao de Eneias ao atributo de Apolo como plague-bringer, como provocador da peste que invadiu Dido.28 Austin 1982: ad 260 comenta: (...) it is a Tyrian Aeneas with a jewelled sword and purple cloak, a Tyrian Aeneas, dressed out in magnifcence by Dido, not a grave and sober man of destiny. 29 I. e. uma Bacante.37 36 37 36Cristina Santos PinheiroAtente-senoretomardomotivodaerrnciapelacidade,j presente no smile da cora ferida (4.68-9). Naquele momento, numa fase incipiente (ainda que violenta...) da sua paixo, Dido percorre a cidade movida pelo poder desenfreado do amor que a fere. Depois de saber que Eneias vai partir, paixo e raiva aliam-se,noespritodarainha,formandoumaamlgamafatalquea levaloucura.AinquietaoquerevelanodilogocomAna transforma-seemdemnciaeestaassumeproporesbquicas (Moskalew 1982: 171). Como uma bacante, Dido est possuda, como demonstra o acumular de verbos e adjectivos que exprimem oseuestadodeespritodesequilibrado.Esteestadoalterado, desenfreado,evolui,aolongodoepisdio.Nolivro1,Dido surgeperanteEneiasdeumaformamajesttica,noseupapel de rainha. No entanto, o sobrepor da sua imagem entrando no templorepresentaodePentesileiafurensdeixaadivinharna caracterizao de Dido o desequilbrio que a dominar no livro 4: primeiro, fazendo-a vaguear pela cidade como uma cora ferida, depois como uma Mnade em transe. Hershkowitz1998:37acentuaapertinnciadaassociao estabelecidapelosmile.Defacto,aloucuradeDido,como ofurordeumabacante,inspiradasimultaneamenteporforas externas e internas, pela aco divina, nomeadamente de Vnus, Juno e Cupido, e pelo confronto psicolgico desencadeado pela relao com Eneias. So circunstncias agravantes da agitao da rainha o facto de, sem esperar pelas explicaes de Eneias, irromper em acusaes:Dissimulare etiam sperasti, perfde, tantum posse nefas tacitusque mea decedere terra? nec te noster amor nec te data dextera quondam, nec moritura tenet crudeli funere Dido? (4.305-8)Esperaste mesmo, prfido, poder dissimular tamanho crime e deixar, sem dizer palavra, as minhas terras?No te detm o nosso amor nem a mo direita que em tempos te estendi30,nem Dido que h-de morrer de forma cruel? Odiscursodarainhacomeadeformaviolentaperfde prfdo(4.305),crudeliscruel(4.311),masvai-setornando mais suave e pessoal: mene fugis? de mim que foges? (4.314). As acusaes do lugar s preces:30 Em sinal de aliana.39 38O percursO de didO, rainha de cartagO, na Literatura Latina39 38Per ego has lacrimas dextramque tuam te (quando aliud mihi iam miserae nihil ipsa reliqui), per conubia nostra, per inceptos hymenaeos, si bene quid de te merui, fuit aut tibi quicquam dulce meum, miserere domus labentis (...) (4.314-8)Peo-te eu por estas lgrimas e pela mo direita que me estendeste(j que eu prpria, coitada, no deixei para mim nenhuma [outra coisa),pela nossa unio, pelos himeneus iniciados,se de alguma forma procedi bem em relao a ti, ou algo em mimfoi agradvel para ti, tem piedade da minha casa que desaba Oorgulhoeadignidadedascenasiniciaisdoepisdioso substitudospelasubmissocomqueDidosedirigeaEneias, descrevendoasituaopericlitanteemquearelaocomo Troiano e a perda da boa reputao a colocaram a si e a Cartago:te propter eundem exstinctus pudor et, qua sola sidera adibam, fama prior. (4.321-3)foi por causa de tique a minha castidade se perdeu e a reputao que tinha antes e que,s ela, me elevava aos astros.Entristece-a ainda a inexistncia de um flho, de um paruulus Aeneas,deumpequeninoEneias(4.328-9)quemantivesse presentesjuntodesiostraosdoheri.Jenkyns(1996r)57-8 comentaousodoadjectivoparuulus:Ourunderstandingof Didoisenlarged:aspeechthatbeganashightragicrhetoric collapses into a tender, plaintive domesticity. We realise that Dido is not only a proud queen but also, with some part of her being, an ordinary woman with ordinary hopes and desires. Ao unir-se a Eneias, Dido parece ter regressado sua condio anterior de esposa, esquecendo o seu estatuto de rainha. De esposa a rainha ederainhaaesposa,Didoatravessaparadigmasdacondio feminina. Quando Eneias chegou a Cartago, Dido desempenhava deformaconvenienteedignaassuasfunesdemonarca.A morte de Siqueu e a fuga de Tiro provocaram a transio: a fora das circunstncias transformou-a em rainha. O encontro com os Troianos e com Eneias parece gerar em Dido a determinao de regressar sua antiga condio de esposa. Todavia, o desejo de ter 39 38 39 38Cristina Santos Pinheiroum flho de Eneias responde tambm necessidade de assegurar a continuidade e a estabilidade do reino. Assim, a vontade de ser me realizaria as esperanas de Dido, quer a nvel individual, quer a nvel pblico.ArespostadeEneias,noentanto,devastadoraparaas pretenses de Dido. No s se mostra irredutvel na sua deciso de partir, como nega que alguma vez tenha querido o casamento com a rainha (4.338-9). Eneias justifca a sua partida com a misso que os deuses lhe atriburam de chegar ao Lcio, contando-lhe a visitadeMercrio,osavisosdeAnquisesnosseussonhosea necessidadedenoimpedirAscniodecumpriroseudestino. Termina com a afrmao: Italiam non sponte sequor, no por minha vontade que me dirijo para a Itlia (4.361).Assim,todosospressupostosemqueDidobasearaasua relaosedesmoronam.Aquedadarainhatorna-seiminente quando se apercebe de que foi em vo que confou na segurana que uma unio (inexistente...) traria ao seu reino. Chocada com a partida, com as palavras de Eneias, com a misso de rumar em direcoaoLcio(missoqueDidoconhecia,masqueparecia teresquecido...),arespostadeDidotorna-semaisviolenta. AascendnciadeEneias,queantessuspeitaradivinaequea encantara,agoraidentifcadacomoselementosselvagensda natureza(4.365-7);choca-aainsensibilidadedeEneias(4.369-70), a quem relembra a ajuda que lhe prestou quando, nufrago enecessitado,desembarcounascostasdaLbia(4.373-5). Esquecida a ternura do discurso anterior, a fria de Dido dilata-se com a ironia com que se refere interveno dos deuses, em que parece no acreditar, e, fnalmente, transforma-se em raiva:Spero equidem mediis, si quid pia numina possunt, supplicia hausurum scopulis et nomine Dido saepe uocaturum. sequar atris ignibus absens et, cum frigida mors anima seduxerit artus, omnibus umbra locis adero. dabis, improbe, poenas. audiam et haec manis ueniet mihi fama sub imos. (4.382-7)Pela minha parte tenho f de que, se algum poder tm[os numes piedosos,tu sejas castigado no meio dos escolhos e de que chames[muitas vezespelo nome de Dido. Mesmo ausente, seguir-te-ei com fogos nefastose, quando a fria morte separar o meu corpo e a minha alma,41 40O percursO de didO, rainha de cartagO, na Literatura Latina41 40comoumasombra,estareipresenteemtodososlugares.Sers [castigado, homem perverso.Eu ouvirei essa notcia, ela vir at mim quando eu estiver entre os [Manes das profundezas.DidoameaaEneiasde,depoisdemorta,operseguircomo umaFria.Odesejodevinganacomeaatomarformanas suaspalavras.Aperseguioretratadanosmiledacoraferida inverte-se nas imprecaes da rainha (Moskalew 1982: 167): ela quem quer perseguir Eneias.DidopedeaAnaqueintervenhajuntodoheriequelhe pea no j que fque para sempre, mas apenas que adie a partida. No pretende j a unio que julgava existir, apenas algum tempo para que aprenda a habituar-se ideia da partida. O Troiano, no entanto, continua infexvel (4.438-49) e s ento Dido desiste: est cansada de viver.Oseuestadopsicolgicorefecte-senasalucinaesesinais funestosqueselhedeparam:nossacrifcios,vaguatornar-senegra(4.454),ovinhotransformar-seemsangue(4.455); ouve a voz do marido que a chama do templo que construiu em memriadele(4.457-61)eocantodemauagourodomocho (4.462-3);afigem-natambmorculosantigos(4.464-5)ev-se,nosseussonhos,aserperseguidaporEneiaseapercorrer sozinhaumlongocaminhoeaprocurarosTriosnumaterra deserta (4.466-8). Segue-se o smile que compara o seu estado de esprito perturbado a Penteu e Orestes:Eumenidum ueluti demens uidet agmina Pentheus et solem geminum et duplices se ostendere Tebas,aut Agamemnonius scaenis agitatus Orestes ,armatam facibus matrem et serpentibus atris cum fugit ultricesque sedent in limine Dirae. (4.469-73)Como Penteu, demente, v os esquadres das Eumnidese v aparecer dois sis e duas cidades de Tebas,ou como Orestes, flho de Agammnon, atormentado, no palco,quando foge da me armada com archotes e com negras serpentese as Frias vingadoras se sentam na soleira da porta.Hardie 1997: 322 explica a loucura de Dido, que aqui parece atingirumdosseuspontosculminantes,pelofactodearainha ter consumado a sua paixo fora da cidade de Cartago, ou seja, 41 40 41 40Cristina Santos Pinheiroem territrios no civilizados. Quando regressa, traz consigo para dentro da cidade o caos e a selvajaria, e a sua loucura (como a sua relao com Eneias?) , assim, uma fuga da civilizao, tpico que se materializa no sonho de se ver sozinha em territrios desertos, nocivilizados,enaassociaoaumabacante(4.300-3)ea Penteu, dilacerado pelas Mnades no monte Citron.Hershkowitz1998:26ss.afrmaqueosmilecompletaa ilustraodadimensomltipladademnciadeDido:elano sPenteu,tambmaBacante(4.301-3),nosOrestes, mas tambm uma Fria (4.384-6). Assim, Dido no apenas identifcada com a vtima. Assume tambm, a espaos, o papel de agente. Oliensis 1997: 305-6 analisa as implicaes do smile e dos passos referidos luz do instinto maternal da rainha. Do mesmo modo que o amor de Dido criado por infuncia de pai e flho, tambm o desejo de vingana recai sobre os dois (4.600-2). Perturbadaporalucinaesesinaisfunestos,Didodecide morrer (4.474 -5) e ludibria Ana, dizendo-lhe que devem preparar umsacrifcioquealibertardoamoraEneiasourestituira relao entre ambos (4.479). Durante a noite, o mundo e os seus seresdescansam,sDidosemantmvigilanteenoconsegue dormir:At non infelix animi Phoenissa, nec umquamsoluitur in somnos oculisue aut pectore noctem accipit: ingeminant curae rursusque resurgens saeuit amor magnoque irarum fuctuat aestu. (4.529-32)Mas no [dorme] a infeliz Dido nem alguma vez se entrega[ao sonoou acolhe o descanso da noite nos seus olhos ou no seu corao.redobram as suas penas e, regressando com toda a fora,recrudesce o amor e agita-se no grande turbilho da sua clera.Atormenta-aoseufuturo.Interroga-sesobreoquefazer,na situao em que se encontra: acompanhar os Troianos, esperar a misericrdia dos pretendentes que antes desprezou? Eliminando medianteumraciocniolgicoasvriaspossibilidades,conclui que s a morte soluo (4.547) e lamenta no se ter mantido fel memria de Siqueu (4.552). Este solilquio contrasta com aperturbaoanteriorecomacleraqueevidenciaquandose apercebedequeEneiaseos Troianossefazemaomar31.Nesse 31Austin1982:ad590caracterizaassimodiscursoquesesegue:Te 43 42O percursO de didO, rainha de cartagO, na Literatura Latina43 42momento, incita os Trios em perseguio de Eneias (4.591-4), a quem chama j no esposo (4.324), nem hspede (4.323), mas estrangeiro (4.591). Adivinha-se a clera que dominar as ltimas palavras da rainha, que reconhece o seu estado de demncia:Quid loquor? aut ubi sum? quae mentem insania mutat? (4.595)Que digo ou onde estou? Que loucura transforma a minha mente?Dido mostra-se arrependida dos servios prestados aos Troianos e sarcasticamente descrente das virtudes de Eneias:Infelix Dido, nunc te facta impia tangunt?tum decuit, cum sceptra dabas. en dextra fdesque, quem secum patrios aiunt portare penatis, quem subiisse umeris confectum aetate parentem! (4.596-9)Infeliz Dido, agora que te incomodam os actos mpios?Isso devia ter acontecido no momento em que lhe entregavas o ceptro. [Eis a mo direita e a boa f,eis aquele que dizem que transportou consigo os Penates ptrios,aquele que dizem que ps s costas o pai enfraquecido pela idade.As palavras que se seguem demonstram, porm, um grau de crueldadequearainhaaindanorevelara.Didorecrimina-se pornoteragidocontraos Troianos.Enumeratodaumasrie de aces violentas que poderia ter desenvolvido contra Eneias e osseuscompanheiros:podiaterdilaceradoEneiaselanadoos seus membros ao mar (4.600-1), podia ter imolado os Troianos e mesmo Ascnio para o servir num banquete ao seu prprio pai (4.601-2)32, podia ter incendiado o acampamento e, assim, teria aniquilado a raa dardnia (4.604-6)...IntroduzidaporumainvocaoaoSol,aJuno,aHcate,s Frias e aos deuses de Elissa que est prestes a morrer (4.610), a maldio que Dido profere o culminar do seu dio a Eneias. J que o destino impe que ele se dirija ao Lcio, a rainha pede speech that follows must surely rank with the most magnifcent of any poet in any language.32 Referncias que evocam o crime de Atreu, que deu a comer o corpo dos seus sobrinhos ao irmo, Tiestes, que, sem saber, ingeriu carne do corpo dos seusprpriosflhos,eoassassniodeAbsirtoporMedeia,queespalhouos membrosdilaceradosdoirmopelocaminho,paraatrasaraperseguiode Eetes.43 42 43 42Cristina Santos Pinheiroaos deuses que ensombrem a sua vida: que ele sofra os tormentos da guerra (4.615-6), que seja afastado de Julo (4.616), que assista mortedosseuscompanheiros(4.617-8),quenodesfrute dopoderconseguido(4.618-19)ejaza,insepulto,naareia, mortoantesdotempo(4.620)...Masodesejodevinganada rainha vai mais longe. No abrange apenas Eneias, Ascnio e os companheiros troianos, mas toda a sua descendncia. O seu dio prolonga-senotempoenoespao.Amaldioadosos Troianos, resta lanar o antema da inimizade eterna entre os dois povos:tum uos, o Tyrii, stirpem et genus omne futurum exercete odiis, cinerique haec mittite nostro munera. nullus amor populis nec foedera sunto. (4.622-4)E vs, Trios, persegui com o vosso dio a raa e toda[a descendnciaque dela advir; enviai esta ddiva s minhas cinzas.No haja amizade alguma ou alianas entre os dois povos. A esta hostilidade dar continuidade um vingador que surgir dos ossos da rainha (4.625), de modo a que nunca seja possvel qualquer tipo de aliana entre os Cartagineses e os descendentes dos Troianos.ArelaoentreDidoeEneiastorna-se,assim,o mito etiolgico das guerras pnicas e justifca a sua incluso numa obra que pretende ser o louvor das origens de Roma.DidoabandonadaemfavordamissodeEneias.Roma a rival que o afasta da rainha. o prprio Eneias quem diz: hic amor, haec patria est, este o meu amor, esta a minha ptria (4.347). por isso que a maldio de Dido no s contra Eneias, mas tambm contra Roma.O poder do dio de Dido paralelo ao poder da sua paixo. No entanto, devemos interrogar-nos acerca da origem da violncia queagoraexprime.Estedesejodevinganaimplacvelfruto doressentimentodeumamulherabandonada,doseuorgulho ferido? Ou esta disposio para a violncia faz parte da natureza darainha,naturezaqueosdeusesabrandaramquandoEneias chegou a Cartago? Foi o carcter de Dido, ento, que justifcou a manipulao divina de que foi vtima? Teria realmente massacrado os Troianos se os deuses no tivessem alterado a sua natureza, se Vnus no a tivesse ferido com o amor por Eneias? Austin 1982: ad 590 considera que a partida de Eneias que provoca o dio deDidoequeo Troianonoterianadaatemerdarainha,se 45 44O percursO de didO, rainha de cartagO, na Literatura Latina45 44tivesse fcado em Cartago. Se certo que, enquanto permaneceu junto da rainha, esta no demonstrou qualquer sinal de violncia (ou,sequer,m-vontade...)paracomEneiaseos Troianos,no devemos, no entanto, esquecer o sentimento de arrependimento que a invade quando v Eneias partir (4.596-7): devia ter tomado estaatitudededesprezoedioquandoentregouopoderao heri...Masasquestesformuladasacimapermanecemsem resposta... No fcil determinar se a hostilidade de Dido uma caracterstica inata ou a consequncia da rejeio.As palavras admonitrias de Mercrio quando, pela segunda vez, apressa a partida dos Troianos lembram a Eneias a volatilidade danaturezafemininae,consequentemente,operigoiminente que a confana nesta implica. Por esse motivo, seja Dido cruel por natureza ou por consequncia das circunstncias, Eneias tem de partir imediatamente, pois a sua vida corre perigo (4.560-70). MercriotemequeaatitudedeDidoparacomEneiasmude radicalmente, que ela se prepare para atacar, de alguma forma, os Troianos, j que a mulher no um ser fvel. Seadesilusoeasesperanasgoradasquearelaocomo Troiano lhe inspirara justifcam uma reaco violenta, a dimenso csmica que o antema assume parece ultrapassar o que seria de esperar de uma mulher ultrajada. Lipking 1988: 1ss., no entanto, afrma que uma mulher abandonada uma mulher afastada das leis,mesmodasleisdanatureza...Torna-se,porisso,umser temidopelasociedade,umseranti-naturaqueatentacontra avidadosoutros,mesmocontraaspessoasquelhesomais queridas relembre-seMedeia e contra asua prpria vida. neste sentido que devemos entender o alcance do dio de Dido.Impossibilitadadeexercerqualquertipodeviolnciacontra os Troianos, Dido lana sobre eles a crueldade do seu desejo de vinganaeprocedeaosltimospreparativosparaasuamorte (4.628ss.), incitando a velha ama de Siqueu e Ana a conclurem os sacrifcios iniciados. Lana-se ento sobre a pira e, desembainhada a espada que Eneias lhe oferecera, profere as suas ltimas palavras. Pacifcado o dio com que amaldioou os Troianos, a mgoa de um passado dignifcante que se perdeu pelo encontro com Eneias que est presente no momento da sua morte:Felix, heu nimium felix, si litora tantum numquam Dardaniae tetigissent nostra carinae! (4.657-8)45 44 45 44Cristina Santos PinheiroFeliz! Oh! Demasiado feliz, se os navios dardniosno tivessem nunca desembarcado nas nossas praias.Mas o desejo de vingana (ou o desgosto de no se ter vingado?) acompanha-a na morte:(...)Moriemur inultae, sed moriamur ait. sic, sic iuuat ire sub umbras. hauriat hunc oculis ignem crudelis ab alto Dardanus, et nostrae secum ferat omina mortis. (4.659-62)Morrerei sem vingana,mas que eu morra diz assim, assim que me agrada [descer para as sombras.Que o Dardnida cruel veja do mar alto este fogoe leve consigo os pressgios da minha morte. Namortedarainha,comonasuarelaocomEneias, intervmofogoqueprimeiroaincendioumetaforicamentee agora consome o seu corpo na pira. Mas Dido morre trespassada pela espada de Eneias e rodeada pelos objectos que este deixou: a espada (4.495), as exuuiae (4.496, 4.651) e o leito conjugal que os acolheu a ambos (4.496, 4.648). Assim, Dido morre juntamente com a lembrana de Eneias, realizando na morte a unio que no foi possvel enquanto foi viva33.Vnus,Cupidoeo Troianoinfigiramnarainhaaferidada paixo. Ela prpria se fere com a espada, materializando, assim, a ferida fatal do amor. De acordo com Lyne 1987: 121, as duas imagens tm um efeito diverso. Os ferimentos suscitam simpatia, pois apresentam uma vtima em sofrimento; Dido quem sofre, portanto ela a vtima de quem se deve sentir piedade. A imagem dofogo,pelocontrrio,maiscomplexa,maisameaadora. OfogodapaixodeDidotransforma-senosfogosnefastos (4.384) com que ameaa Eneias. Fogo,ferida,loucura,autodestruio...esteoamorde Dido, que, literalmente, a condena e a consome. E, esgotados os argumentos, a nica sada possvel a morte que a espreita desde o incio.33Pavlock1990:84refereocarctersexualdamortedeDidoque,ao trespassar-secomaespadadeEneias,materializaaderradeirarelaofsica entre ambos. Desmond 1994: 31 afrma: (...) the destructive quality of her sexuality culminates in the phallic overtones of her death.47 46O percursO de didO, rainha de cartagO, na Literatura Latina47 46Tupet1971analisaofactodeDidorecorrermagiapara esquecer Eneias ou para o trazer de volta e conclui que a morte da rainha o sacrifcio que as completa. No entanto, ao imolar-se na pira, Dido no a nica vtima, j que com ela queimada aimagemdeEneias,porimposiodarainha.Esteacto,que parecetercomoobjectivoatrairsobreEneiasforasmalfcas, ser a ltima prova do ressentimento de Dido antes do derradeiro encontro.Quando Eneias encontra Dido nos Infernos, nos Campos das Lgrimas,entreasmulheresquemorreramdeamor,aatitude queambosadoptaramnoconfrontoqueosopsnolivro4 inverte-se.Se,emCartago,Eneiasnosealongouemrespostas e explicaes, nos Infernos Dido quem se recusa a falar com o Troiano e permanece impassvel perante as suas palavras:illa solo fxos oculos auersa tenebat nec magis incepto uultum sermone mouetur,quam si dura silex aut stet Marpesia cautes. (6.469-71)Ela, desviando o olhos, mantinha-os fxos no cho,e no mostra mais comoo no rosto, depois de ele ter comeado[a falar,do que uma dura pedra ou um rochedo de mrmore do Marpesso.Lipking1988:228comentaassimosilnciodeDido:(...) as in the underworld, before a stone-faced Dido, Aeneas hears in his own excuses the lameness of the heroic mission to which he has sacrifced her. Te womans silence does not prevent her from controlling the scene. O mesmo dizer que a reaco de Dido refecte, como um espelho, sobre Eneias o peso e as consequncias das suas aces. E Eneias pergunta: funeris heu tibi causa fui? Oh! Fui eu a causa da tua morte? (6.458). Lamenta a morte da rainha e justifca novamente a sua partida de Cartago. Impuseram-na a vontadedosdeuseseasuamissodeprocuraraItlia(6.458-63).ComoemCartago,nosInfernosEneiasreafrma:inuitus, regina, tuo de litore cessi foi contra a minha vontade, rainha, que meafasteidastuaspraias(6.460).Tnueconsoloparaquem pareceterredescobertoapazjuntodeSiqueu.Recuperado oantigoamor,quepensaratertrado,aatitudeimpassvelde Dido demonstra, no entanto, que a inimizade que as suas ltimas palavras solicitaram aos deuses se mantm. Nada mudou, ento, paraDido.EntrearainhaeoTroianoesttudodito.Nada 47 46 47 46Cristina Santos Pinheiromaishaacrescentar.SnecessrioqueEneiassaibaoque aconteceuaDido.Impe-sequereconheaasvtimasdoseu destino, o preo da sua misso34. A dor deste encontro, causada pela indiferena de Dido, j o comeo da sua vingana.A evoluo da personagem parece evidente. No livro 1, Dido surge perante Eneias nas suas funes de rainha, conformada com as peripcias do seu passado e com a situao presente. De acordo comCairns1989:40,osmilequecomparaosCartagineses atarefadosnaconstruodacidadeaumenxamedeabelhas refecte o empenho da prpria rainha. O interesse dos cidados oespelhodeumbommonarca,qualidadequefazcomque Eneias simpatize com este povo e com a sua rainha. No entanto, noespritodeEneiasqueestaassociaoseestabelece.O Troiano admira o estatuto pblico de Dido e a forma como esta desempenha as suas funes. O facto de Dido ser rainha amplifca as consequncias da sua paixo. A forma como se deixa submeter pelos seus sentimentos faz com que esquea os deveres que a sua posio impe. Ducos 1990: 98 comenta esta atitude de Dido como uma substituio: a rainha desaparece para dar lugar mulher apaixonada, que pensa ter regressado sua antiga condio de esposa. Quando Mercrio adverte Eneias pela primeira vez, este quem est empenhado na construo dos edifcios da cidade (4.260-1), ou seja, Dido cedeu ao Troiano as suas obrigaes. Ao abandonar Tiro, Dido trocou oseuestatutodeesposadependentepelaposiodelder.Ao assumir a sua relao com Eneias, atribui-se novamente a si prpria o seu antigo papel. No entanto, esta inverso uma transgresso do estatuto que o passado lhe imps, estatuto enfatizado no livro 1pelasassociaescomDianaePentesileia.Didopertenceao domnio das mulheres que, imagem de Diana, imolaram a sua feminilidade ao poder, que assumiram uma posio normalmente reservada a homens. Quando volta a ser uma mulher dependente e alienada das funes que assumira, surgem o descontentamento dos seus sbditos e a hostilidade dos inimigos. Assim, a hybris de Dido a transgresso da ordem natural do universo, o extravasar de funes sociais rgidas e preestabelecidas.Acresceestagnaodostrabalhosdefundaodacidade (4.86-9), a hostilidade crescente dos vizinhos e o cime de Jarbas. As maldies de Dido, antes da sua morte, resultam na inimizade 34 Lipking 1988: 134 comenta: It is (...) through Dido that Aeneas learns what it means to be a Roman. 49 48O percursO de didO, rainha de cartagO, na Literatura Latina49 48entre Cartagineses e Romanos. Assim, as consequncias polticas e histricas da paixo da rainha tornam-na ainda mais condenvel, poiscomprometecomnecessidadesprivadasofuturodos interesses pblicos do seu povo.AviolaodojuramentodefdelidadescinzasdeSiqueu fazcomqueDidoincorraaindanaacusaodeperjrio.As consequnciasdesteactosomotivodealgumapolmica.Para algunscrticos,ojuramentoquecondenaDido.ofactode secomprometerperanteamemriadoseudefuntomaridoede faltar a este juramento que obscurece a legitimidade da sua relao com Eneias35. Acresce a perda da reputao e a infraco ao pudor que lhe garantia o respeito dos inimigos. Para Horsfall 1995: 127, estaperdaumassuntogravequeultrapassaaesfera privada. O estatuto de rainha impe a Dido uma conduta moral irrepreensvel. A relao com Eneias um atentado sua condio de uniuira, que o autor considera actuante na condenao de Dido. Afrma ainda: Nor could a mere consensual union ever have been enoughforAugustusdistinguishedancestor(Horsfall1995: 128).Didoilude-se,assim,asiprpria.Desmond1994:29-30, pelo contrrio, explica a ambiguidade da relao luz dos costumes romanos da poca de Augusto. Ainda que no se tenha realizado umacerimniaformal,arelaoentreDidoeEneiaspareceser caracterizada(pelomenosparaDido)comoummatrimnioin usu,portanto,comoumcasamentolegtimo.Omesmono acontece com Eneias. Assim, deliberadamente, a unio entre ambos ambgua. Pavlock 1990: 80-1 considera que esta ambivalncia sentida pela prpria Dido, que no est vontade com a situao e, por isso, consciente da sua culpa (4.19, 4.172). O amor da rainha classifcado, de forma bastante negativa, como infandus (4.85) e como furtiuus (4.171). Farron 1993: 100-2 explica o sentimento deculpaqueDidoevidenciacomoumaformadeintensifcar opathosquedominaoepisdioenocomoumacondenao implcita. O facto de ela se sentir culpada no quer dizer que ela deva, efectivamente, ser culpabilizada.NodevemosesquecerqueaprpriaJunopresidiuaoque elaprpriaconsiderouserumcasamentolegtimo.Adescrio elpticadoencontrodeDidoeEneiasnacavernanopermite, 35Nutall1998:94comentaaimportnciadojuramento:(...)shewas false, it will be said, to the shade of her former husband Sychaeus. What is the felt weight, in the poem, of this treachery? Far less, I fancy, than that of the treachery of Aeneas to Dido.49 48 49 48Cristina Santos Pinheirocontudo,conclusessobrealegitimidadedauniodeambos. Oquecertoqueosacontecimentosocorridosdurantea tempestadesointerpretadosdemododiferentepelaspartes envolvidas.A violncia e o arrependimento que, quer a rejeio de Eneias, quer o desrespeito pela memria do seu primeiro marido fazem nascer no esprito de Dido parecem ter provocado na rainha um ressentimento ptreo que a acompanha na morte. Nos Infernos, a personalidade da rainha, que em vida futuara entre sentimentos to dspares como castidade, amor, arrependimento e dio, mostra apenasindiferenaperanteEneias.Osconfitoseasoscilaes terminaram depois da morte.Aambivalnciaeoconfitodevaloresparecem,noentanto, ser o trao mais importante do episdio. A contenda entre Eneias e Dido tambm o confronto entre racionalidade e paixo, entre homem e mulher. Oliensis 1997: 303 refere a associao, na obra, dosexofemininoaestadospsquicosalterados,asentimentos exacerbados e, portanto, destrutivos, enquanto o sexo masculino demonstranormalmentemoderaoeracionalidade.Assim, Dido e Eneias simbolizam o confito entre o caos e a ordem36.Personifcam ainda a oposio entre Oriente e Ocidente, confito caroaoscontemporneosdeVirglio.Gharbi1990:22rejeita estatesepelasorigensdeEneias,tambmorientais.Nodevemos esquecer, porm, que o Troiano , na obra, caracterizado moralmente com valores importantes para os Romanos. No encontro com Dido, entrev-se, por exemplo, a condenao da opulncia oriental, tpico familiar aos Romanos do tempo de Virglio desde os acontecimentos que culminaram na batalha de ccio. Como no comparar Eneias emCartago,vestidodeprpura,aMarcoAntnioconquistado pelosencantosdeClepatra?EaOctaviano,quandoesteescapa inclume infuncia nefasta da rainha e regressa a Roma, depois do suicdio desta? Seria, portanto, improvvel que esta associao no fosse sentida pelos leitores da obra37.Rev-se em Dido o fascnio e o perigo de Clepatra, perigo que Sullivan 1992: 65 considera ser idntico, simultaneamente, ao de Calipso, das Sereias e de Circe. No ser estranho ambivalncia 36Noconfitoentrecaoseordemdevemosincluiraoposioentre sociedades matriarcais e sistemas patriarcais.37 Dada a importncia do confronto entre Octaviano e Marco Antnio e a infuncia da propaganda augustana, parece inverosmil que o prprio Virglio desconhecesse as potencialidades do episdio, lido luz da comparao de Dido com Clepatra.PB 50O percursO de didO, rainha de cartagO, na Literatura Latinaintrnseca da personagem virgiliana o facto de recolher infuncias literriasdeorigemmltipla(Homero,ApolniodeRodes). Setivermosemconsideraoasrelaesdesemelhanaquese estabelecementreDidoealgumaspersonagenshomricas, nomeadamentedaOdisseia,concluiremos,noseguimentode Knauer 1990: 390ss., que, em momentos diferentes do episdio, Didoretomacaractersticasdepersonagenstodiversascomo Circe,Alcnoo,Arete,Calipso,Polifemooujax.Osencantos deCartagososemelhantesaosdeOggiaedeEia.Ofascnio queDidosuscitaemEneiastoperniciosoparaosobjectivos do heri como os feitios de Circe e o amor de Calipso so para o regresso de Ulisses. Tambm Calipso, como Dido, acusa Ulisses detrocarocertopeloincerto.Depoisdeabandonada,Dido, assumindo o papel de Polifemo na Odisseia, amaldioa o futuro de Eneias: ainda que chegue ao seu destino, encontrar a apenas a guerra e a infelicidade. Nos Infernos, Dido responde a Eneias comojaxrespondeuspalavrasconciliadorasdeUlisses:com silncio e indiferena.Dido assume no destino de Eneias ora o papel de personagem adjuvante, imagem de Alcnoo ou Arete, ora o de personagem-obstculo.McKleish1972:127-8afrmaquesaimportncia dada ao valor da pietas no episdio distingue Dido de personagens como Cila, Carbdis e Polifemo. Arainhaassumeumaimportnciainvulgarnaobra,porque a sua histria e a sua caracterizao se mantm sempre ambguas e obscuras38, suscitando ao mesmo tempo simpatia e repulsa. A ilustrao mais aproximada do esprito de Dido e do seu destino , talvez, o disfarce de Vnus, pela fuso paradoxal de caractersticas de duas divindades que so to divergentes. A verdadeira essncia de Dido, no entanto, permanece arredia, como um desafo que constantemente se renova.38 Cf. a afrmao de Hexter 1992: 336: Vergil presents the fgure of Dido from several perspectives (...) in order to frustrate any attempt on the reader s part to see her as univocal and coherent.Captulo IIDido e Ovdio: desfazendo ambiguidades53 52Cristina Santos PinheiroAinda que Ovdio se refra a Dido, em passos mais ou menos extensos,emgrandepartedassuasobras,acaracterizao maiscompletadapersonagemsurgenaHeride7,umacarta endereada por Dido a Eneias, que faz parte duma colectnea de epstolas escritas por personagens mitolgicas e que se divide em duas seces: da primeira fazem parte quinze cartas escritas por personagensfemininasaosrespectivosamantesoumaridosque as abandonaram, da segunda constam seis cartas com a respectiva resposta.Aslimitaesgenolgicasinerentesaestaobracondicionam aapreensodapersonagem.EnquantonaEneidaanaturezade Didocaracterizadaquerpeloscomentriosdonarrador,quer peloconfrontocomEneias,querpelassuasprpriaspalavras eaces,naepstolasoodiscursodeDidoeoseuponto devistaqueadefnem.Aextensodaepopeiavirgilianaea importncia nela assumida pelo episdio dos amores de Dido e Eneiaspermitemaexploraodapersonagem,desdeachegada dos Troianos a Cartago e subsequente delinear da paixo at ao encontrodeDidoeEneiasnosInfernos,incluindoosvrios momentos da relao de ambos e o evoluir da argumentao de umeoutro.NasHeridesencontramo-nosperanteumaoutra reaco da personagem aos acontecimentos relatados na Eneida. Dido re-interpreta a Eneida. Sem a presena de Eneias ou de um narrador, a perspectiva de Dido que se impe. So a sua individualidade, os seus sentimentos e emoes que assumem na epstola o ncleo argumentativo que gera o discurso, discurso que se torna unvoco e parcial1. Enquanto tal, o tom que domina a carta , ao mesmo tempo, incriminatrio e plangente: plangente porque Dido lamenta a situao em que a partida de Eneias a deixar, incriminatrio porque se considera vtima deste.1Watkins1995:31afrmaapropsitodoscondicionalismosdas Herides: From this feminine perspective, the crucial events are not the riseandfallofempiresbutthebirths,deaths,andloveaffairsofprivate individuals. 55 54O percursO de didO, rainha de cartagO, na Literatura Latina55 54O sentimento de rejeio que Dido experimenta faz com que Eneias seja caracterizado de forma negativa. O abandono produz, assim,ascircunstnciaspsicolgicasquedefnemadisposio comqueDidoescreve.porestarazoquearainhaaponta comoprincipalobstculoparaoseudiscursoainsensibilidade de Eneias reconhecendo, assim, desde o incio, a inutilidade das suas palavras (Ep. 7.3-4). A frustrao do discurso e o desfecho da relao de ambos entrev-se no smile que inicia a epstola2, que parece exprimir a ameaa velada da morte que se torna explcita nosltimosversos.Aalusoaocantodocisneantesdamorte introduzumarefernciaambivalentenodiscursodeDidoque precede a morte iminente.A epstola desenvolve-se, deste modo, sob o signo da morte. Como o cisne, tambm Dido entoa o seu ltimo canto, tornando, assim, evidente desde os primeiros versos o desfecho da sua histria. Se o discurso da rainha a ltima tentativa para demover Eneias de partir, nos versos 3 a 6 o desespero afrma-se como elemento condicionante desse discurso. Conhecedora da insensibilidade de Eneias,Didotemconscinciadainutilidadedassuaspalavras. Mas, como est habituada a perder, que importncia tem dirigir maisalgumaspalavrasao Troiano?Palavrasvs,meroexerccio deretricaouoltimodesabafodeumamenteconscienteda inevitabilidade da morte...Anaturezadosargumentosquearainhautiliza,bemcomo adistribuiodestesnodiscursorevelamaevoluodoseu raciocnio.Secomeaporinvocarfundamentoslgicospara queEneiasfqueemCartago,medidaqueaargumentao avanaapelaaossentimentosdoTroianoporterceiros(por exemplo,Ascnioeoscompanheirosdeviagem),comoforma de o convencer de que melhor para estes que ele desista do seu destino(Ep.7.75-78,153-162,175-176).Porfm,pede-lhej noquefqueparasempre,masapenasqueadieapartida(Ep. 7.73-74,178-189)erecusaprovveldeEneiascontrapea deciso de pr termo vida. Na Eneida, a natureza excessiva da rainha suscita nela a ira arrebatada, desde o momento em que se apercebe de que Eneias vai partir, tornando-a, assim, incapaz de 2Algunseditores,entreelesBornecque1991,consideramosmile incompleto e supem a perda dos versos iniciais da epstola. Alguns manuscritos comeamotextodestaHeridecomodstico:Accipe,Dardanide,moriturae carmenElissae/quaelegisanobisultimauerbalegis.Recebe,Dardnida,o poemadeElissamoribunda./Aspalavrasquelssoasltimasquelers escritas por mim..55 54 55 54Cristina Santos Pinheirorecorrer a argumentos de natureza lgica, como as vantagens de se estabelecer em Cartago. Seatentarmos,todavia,nosignifcadodosmileinicial,o desfecho -nos revelado ab initio, de forma mais ou menos velada, antecipandoosuicdiodarainha,consequnciadapartidade Eneias. Por este motivo, a dualidade vtima-culpado explorada saciedade em todo o discurso, como um meio de suscitar piedade e/ou remorsos ao Troiano. AcaractersticadeEneiasmaissalientadaporDidoa obstinao e a indiferena que ele manifesta em relao rainha e situao em que a sua partida a deixar. Assim insensvel, Eneias no pode ser flho de quem . Como pode o flho de Vnus fcar indiferenteperanteoamordeDido(Ep.7.36)?Geraram-no, sem dvida, os elementos mais hostis da natureza: os rochedos, osmontes,oscarvalhosinfexveis,osanimaisselvagensouo maremfria(Ep.7.37-40).ComonaEneida,acaracterizao daascendnciadoTroianoserveopropsitodeampliarasua naturezanociva.Nolivro4,Dido,meditandodesiparasinas soluesparaasituaoemqueapartidadeEneiasacoloca, interroga-se:Nescis heu, perdita, necdum Laomedonteae sentis periuria gentis? (A. 4.541-542)Ai! que no conheces, mesmo depois de te perderes, e ainda note apercebes das falsidades da raa de Laomedonte? Destemodo,eaocontrriodaepstolaovidiana,ocarcter poucofveldeEneiasumaheranaancestral,deixadapor Laomedonteaos Troianos3.Oherino,assim,diferentedos seuscompatriotas:maisumperjuronumaraadeprfdos. MasestaafrmaovemnoseguimentodoconfrontodeDido comoTroianoedastentativasfrustradasdeAnadedemover Eneias de partir, e pouco antes de lamentar no o ter despedaado juntamente com Ascnio (A. 4.600-602) e da maldio lanada sobreofuturodoTroianoesobreosseusdescendentes(A. 4.612ss.). Neste momento, a clera desenfreada de Dido ultrapassa oslimitesmeramenteindividuais.Notextoovidiano,pelo contrrio, o propsito de caracterizar Eneias de forma negativa, 3 Laomedonte pediu ajuda a Apolo e a Posdon para construir as muralhas deTria,comprometendo-searecompens-lospeloauxlioprestado.No entanto, depois de construdas, recusou-se a pagar o que prometera.57 56O percursO de didO, rainha de cartagO, na Literatura Latina57 56aliado ao apelo aos sentimentos deste pelos seus companheiros de viagem, impede que Dido refra os antecedentes pouco louvveis dos Troianos.Aargumentaobaseia-senaoposioentredois indivduos, no entre dois povos. O que interessa demonstrar que Eneias pior do que estes, que pior do que toda a gente, inclusivedoquearaahumana.TambmnaEneida,durante oconfrontocomEneias,Didonegaqueelesejaflhodeuma deusaequetenhaumanaturezahumana(A.4.365-367).Este argumento insere-se, assim, num contexto de acusaes de nvel pessoal e, por este motivo, retomado na epstola. Todavia, nesta obra,acrueldadedeEneiasultrapassaadomareadovento. O Troiano pior do que eles. A sua dureza desmesurada (Ep. 7.44). insensibilidade de Eneias e deciso de partir, cujo carcter irrevogvelseadivinhanarepetioanafricadecertusesests decidido(Ep.7.7e9),contrapeDidoargumentosracionais. Acusa-odetrocarocertopeloincerto,deprocurarumaterra quenosabesequerondefca(Ep.7.10)ede,emperseguio deste objectivo, pr em perigo a sua prpria vida (Ep. 7.45-46), os deuses, cuja imagem salvou da destruio de Tria (Ep. 7.77-78), e