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v. 40 n. 3 Jul./Set. 2000 101 N de Richard Sennett Rio de Janeiro : Record, 1999. 204 p. por Ana Paula Paes de Paula, Mestre em Administração Pública e Governo pela EAESP/FGV e Doutoranda em Ciências Sociais na Unicamp. E-mail: [email protected] esse livro, Richard Sennett oferece-nos um instigante ensaio sobre as influŒnci- as do capitalismo flexível no mundo do trabalho e suas repercussıes no carÆter huma- no, convidando-nos a realizar uma profunda re- flexªo sobre as conseqüŒncias sociais dos novos caminhos trilhados pelos indivíduos na socieda- de da informaçªo. É de conhecimento geral o que a maioria dos consultores de recursos humanos recomenda para

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v. 40 � n. 3 � Jul./Set. 2000 101

Corrente crítica

N

de Richard SennettRio de Janeiro : Record, 1999. 204 p.

por Ana Paula Paes de Paula , Mestre em AdministraçãoPública e Governo pela EAESP/FGV e Doutoranda

em Ciências Sociais na Unicamp.E-mail: [email protected]

esse livro, Richard Sennett oferece-nosum instigante ensaio sobre as influênci-as do �capitalismo flexível� no mundo

do trabalho e suas repercussões no caráter huma-no, convidando-nos a realizar uma profunda re-

flexão sobre as conseqüências sociais dos novoscaminhos trilhados pelos indivíduos na socieda-de da informação.

É de conhecimento geral o que a maioria dosconsultores de recursos humanos recomenda para

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os profissionais nos dias de hoje: invista tudo oque puder em sua carreira para garantir suapolivalência no mercado de trabalho, não perma-neça em uma mesma empresa ou função por mui-to tempo e esteja preparado para relações de tra-balho temporárias.

Na opinião de Sennett, essas exigências de fle-xibilidade na atuação profissional e a inexorávelfugacidade das relações trabalhistas estariam con-tribuindo para enfraquecer valores como o com-promisso, a confiança e a lealdade, que são funda-mentais para a consolidação do caráter humano.Para o autor, a decadência desses valores seria umreflexo do desaparecimento das relações de longoprazo no trabalho e estaria se reproduzindo na vidasocial, dificultando o estabelecimento de relaçõesmais permanentes com os amigos e a comunidade,além de interferir na formação do caráter das cri-anças, que não vêem mais na rotina diária dos paisas virtudes que eles procuram pregar.

Essas mudanças de comportamento na vidaprofissional resultam das novas forças que estãoimpactando o mundo do trabalho na empresa fle-xível: a reinvenção descontínua das instituições,a especialização flexível de produção e a concen-tração de poder sem centralização. Reinventar aempresa e flexibilizar a produção tornaram-se umaregra em um mercado em que o que interessa é oretorno em curto prazo para os acionistas e apronta resposta à demanda do consumidor. Poroutro lado, para saciar essa vertiginosa ânsiapelo resultado imediato, tornou-se indispensá-vel acelerar os processos, de forma que foi ne-cessário permitir que funcionários tivessemmais controle sobre suas atividades, controleesse que está sendo concedido sob uma estritavigilância operada via novas tecnologias deinformação, inaugurando formas mais sofisti-cadas de dominação do que as utilizadas nasempresas no passado.

O paradoxal é que esse novo sistema dedominação está sendo construído sob a insíg-

nia da liberdade. Um dos melhores exemplosdisso é a nova forma de organizar o tempo nolocal de trabalho, que Sennett denomina �fle-xitempo�. Este é caracterizado pelo planeja-mento flexível das jornadas e pelo trabalhovirtual, no qual o funcionário deixa de sermonitorado pelo relógio de ponto para sercontrolado por meio da tela do computador.Assim, na visão do autor, a proclamada �des-burocratização� das empresas é enganadora,pois, apesar do abandono da rigidez e do for-malismo típicos da organização burocrática,a sua característica fundamental, que é a do-minação e a alienação do trabalhador, estásendo recriada.

Em atividades operacionais, por exemplo,a automação está reinventando a superespecia-lização taylorista do trabalhador. É o caso dapadaria automatizada descrita por Sennett emseu ensaio: para fazer o pão basta saber �cli-car� os ícones corretos, o que não requer co-nhecimento do ofício, mas apenas conhecimen-tos básicos de Windows. Associada ao �flexi-tempo�, essa superespecialização estaria des-mantelando as identidades e causando uma pro-funda indiferença em relação ao trabalho.

Já no ambiente empresarial, os executivosestão sendo expostos, pela necessidade de pro-var todos os dias a sua competência, a um es-tado contínuo de vulnerabilidade. Em um mer-cado em que há poucos ganhadores e no qualo �vencedor leva tudo�, as pessoas estão sen-do continuamente pressionadas a se superar,apesar do alto risco de fracasso. Nesse �jogo�,os funcionários de meia-idade são os que maissofrem, pois a concentração nas capacidadesimediatas leva a uma negação de sua experi-ência passada, agravada pelos rótulos de aver-são ao risco e de inflexibilidade.

Por outro lado, a ética individual do traba-lho, personificada pelo �homem motivado�,que busca incessantemente provar seu valor

©2000, RAE - Revista de Administração de Empresas / EAESP / FGV, São Paulo, Brasil

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Corrente críticaA corrosão do caráter: conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo

moral pelo trabalho, está sendo substituída pelaética do trabalho em equipe. Para Sennett, issoseria uma vitória para a civilização se o traba-lho em equipe não estivesse se transformandoem um �teatro� em que as aparências e com-portamentos são manipulados e o conflito é sis-tematicamente adiado. Na realidade, o traba-lho em equipe veio substituir a vigilância doadministrador pela pressão dos colegas, tornan-do-se uma excelente estratégia para aumentara produtividade. Assim, as responsabilidadessão partilhadas e não há uma figura que sim-bolize a autoridade, mas a dominação conti-nua permeando as relações entre os indivídu-os no trabalho.

Sennett, então, cita Rorthy para demonstrarque o �homem motivado� está sendo substitu-ído pelo �homem irônico�: �Richard Rorthy es-creve, sobre a ironia, que é um estado de espí-rito em que as pessoas jamais são �exatamentecapazes de se levar a sério, porque sabem queos termos em que se descrevem estão sujeitosa mudança, sempre sabem da contingência efragilidade de seus vocabulários finais, e por-tanto dos seus eus�. Uma visão irônica de simesmo é a conseqüência lógica de viver notempo flexível, sem padrões de autoridade eresponsabilidade� (p. 138). E nos provoca: �Aclássica ética do trabalho de adiar a satisfaçãoe provar-se pelo trabalho árduo dificilmentepode exigir nossa afeição. Mas tampouco opode o trabalho em equipe, com suas ficções efingimentos de comunidade� (p. 139).

Para Sennett, o comunitarismo resulta defortes laços entre pessoas que tiveram temposuficiente para enfrentar suas diferenças: a su-posição de que todos os membros de uma equi-pe de trabalho partilham das mesmas motiva-ções não garante uma comunicação efetiva, tor-nando o trabalho em equipe uma forma frágilde comunidade. Na sua visão, é o enfrentamen-to do conflito que oferece a base real para unir

pessoas de poder desigual e interesses diferen-tes. Além disso, para que a confiança se esta-beleça entre as pessoas, é fundamental que elassejam necessárias umas às outras.

Ironicamente, ser necessário a alguém é jus-tamente o valor que está sendo depreciado nonovo mundo do trabalho, no qual se descartamas pessoas, suas identidades e suas chances desucesso. Nas palavras de Sennett: �Esse é o pro-blema do caráter no capitalismo moderno. Háhistória, mas não a narrativa partilhada de difi-culdade, e portanto tampouco destino partilha-do. Nessas condições, o caráter se corrói; a per-gunta �Quem precisa de mim?� não tem respos-ta imediata� (p. 175-176).

Assim, para Richard Sennett, o novo capi-talismo flexível, em sua ânsia pelos resulta-dos, está gerando uma sociedade impacientee concentrada apenas no momento imediato,cujos valores amorais contribuem para cor-roer o caráter humano. E o que é mais inqui-etante: a substituição da rotina burocráticapela flexibilidade no trabalho não foi acom-panhada pela liberdade e pela emancipaçãodo indivíduo, mas pela elaboração de novasformas de dominação.

Apesar de suas constatações pessimistas,Sennett reconhece que não há como negar asnovas realidades históricas nem os avanços queocorreram no mundo do trabalho. Assim, paracompreender sua mensagem, o leitor precisaestar atento para o fato de que sua intençãonão é fazer um resgate do passado, mas ques-tionar como vamos moldar o nosso futuro emuma sociedade na qual os indivíduos não es-tão mais seguros de serem necessários aos seussemelhantes. Esse convite para tão indispen-sável reflexão é suficiente para tornar a leitu-ra desse ensaio estimulante para todos aquelesque procuram compreender as conseqüênciassociais dessa progressiva corrosão do caráterhumano. m