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Literatura Portuguesa II Florianópolis - 2012 Stélio Furlan Período

[Livro UFSC] Literatura Portuguesa II

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Literatura Portuguesa II

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Literatura Portuguesa II

Florianópolis - 2012

Stélio Furlan5ºPeríodo

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ção Acadêmica do Curso de Licenciatura em Letras-Português na Modalidade a Distância.

Ficha Catalográfica

Catalogação na fonte elaborada pela DECTI da Biblioteca Central da UFSCISBN: 978-85-61482-52-7

F985l Furlan, Stélio Literatura portuguesa II : 5. período / Stélio Furlan. – 2 ed. – Florianópolis : LLV/CCE/UFSC, 2012. 136p.

Inclui bibliografia 1. Literatura portuguesa – História e crítica. 2. Romantismo. 3. Realismo na literatura. 4. Simbolismo (Literatura). I. Título. CDU: 869.0.09

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Sumário

O Romantismo ..................................................................................13

Introdução .........................................................................................15

1 Romantismo: ou a liberdade do sentimento na Arte  .....................17

 1.1 Clássico versus romântico .............................................................................18

1.2 A Religião do Amor  .........................................................................................22

1.3 Em busca da cor local  .....................................................................................23

1.4 Hibridação de Gêneros  ..................................................................................24

1.5 O Vate ....................................................................................................................25

1.6 Eurico, o Presbítero (1844) .............................................................................26

2 Almeida Garrett (1799-1854)  ..................................................................31

2.1 Folhas Caídas  .....................................................................................................33

2.2 Viagens na Minha Terra (1843-1845) ..........................................................43

2.3 Uma (auto-reflexiva) criação literária .........................................................46

2.4 Imaginação e sentimento ..............................................................................49

2.5 Uns casos amorosos ........................................................................................50

Page 6: [Livro UFSC] Literatura Portuguesa II

2.6 Olhos Verdes: reflexos da alma ....................................................................57

2.7 Imagens da nação .............................................................................................60

3 O (ultra) romantismo em Portugal  ........................................................63

3.1 Um romantismo outro, exacerbado. ..........................................................63

3.2 Camilo Castelo Branco: um mestre da novela passional ....................64

3.3 Amor de Perdição .............................................................................................65

3.4 Um contador nato de histórias goza o prazer da aventura no mun-

do da imaginação ....................................................................................................69

Realismo (1865 - 1890) ..................................................................75

4 A vida como ela é ou do amor pela exatidão .....................................77

4.1 A prosa realista contra a idealização romântica  ...................................78

4.2 Questão Coimbrã e Conferências Democráticas  ..................................79

4.3 A poesia combativa de Antero de Quental (1842-1891) ....................83

5 Eça de Queirós (1845-1900) ......................................................................87

5.1 Cenas da vida portuguesa .............................................................................87

5.2 José Matias  .........................................................................................................92

5.3 O Primo Basílio  ................................................................................................103

Page 7: [Livro UFSC] Literatura Portuguesa II

Simbolismo (1890 - 1915?) ........................................................ 111

6 Simbolismo: o poder sugestivo do verbo ........................................113

6.1 Teoria das correspondências ......................................................................114

6.2 Simbolismo em Portugal ..............................................................................117

6.3 Do sonho ao símbolo ......................................................................................123

6.4 Camilo Pessanha (1867-1926) ....................................................................124

6.5 À guisa de conclusão .....................................................................................127

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ApresentaçãoA alma de uma época está em todos os seus poetas e filósofos e em nenhum.

Fernando Pessoa (1888-1935)

O objetivo principal desta Disciplina consiste no estudo das

principais manifestações da Literatura Portuguesa ao longo

do século XIX e início do século XX. A escolha dos textos e dos

autores para estudo foi condicionada por uma estratégia de leitura centrada na

investigação dos componentes fundamentais das artes poéticas desse recorte

temporal. Se este Livro não ousa muito na escolha do corpus de análise e prefere

os textos consagrados da Literatura Portuguesa, por outro lado vale dizer que

não há escolhas sem exclusões. Perdoem-nos por não dedicar largas linhas ao

poeta Cesário Verde, o poeta da modernidade portuguesa, por exemplo. Talvez

ele não tenha sido contemplado por dificultar a sua “classificação”, uma vez que

sua poesia abriga traços dos diversos movimentos literários então em voga.

Cesário Verde é um poeta que dá margem ao encanto numeroso das

leituras. Leia-se, por exemplo, o ensaio intitulado “Cesário Verde “lido”

por Klossowski: Tableaux Vivants”, de António Carlos Cortez, publicado

na Revista Outra Travessia, n. 10, 2010, publicação do Programa de Pós-

-Graduação em Literatura. Neste ensaio o autor aponta na poesia de

Cesário uma mundividência moderna, capitalista, sexualizada, apocalíp-

tica e uma visão da cidade e das relações masculino\feminino marcadas

“pelo advento de uma lógica mercantilista das relações eróticas com

base numa crise da modernidade”. O autor afirma também que Cesário

é uma “voz absolutamente nova no contexto da modernidade poética

portuguesa”. Disponível em http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/

Outra/issue/view/1630, acesso em 14 de março de 2012.

E isso é importante dizer para solicitar a você um pouco de cautela quanto às

definições conclusivas ou redutoras sobre a postura estética de um texto ou de

um autor. Como dizia um crítico, melhor avaliar o plural de que eles (os textos)

são feitos, quais as redes de relações estabelecidas (leia-se práticas intertextuais

de leitura), noutras palavras, com quem ou contra quem eles dialogam.

Em Literatura Portuguesa I, você teve a oportunidade de conhecer os primei-

ros registros escritos da literatura produzida em Portugal. Certamente desper-

tou curiosidade e encantamento o estudo daquelas apaixonantes cantigas de

amor e de amigo e daqueles irônicos cantares de escárnio. Talvez o mesmo se

Paço do Lumiar, Largo S.

Sebastião, Lisboa, ao lado da casa

onde viveu o poeta lisboeta Cesário

Verde, autor do antológico poema O

Sentimento de um ocidental.

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possa dizer dos primeiros textos literários em prosa da literatura portuguesa,

as novelas de cavalaria. E, por certo, acreditamos que você tenha achado insti-

gante conhecer a poesia dramática ou o teatro de Gil Vicente, sério e divertido

ao mesmo tempo, como também deve ter compreendido a importância de se

estudar aquele prodígio arquitetônico que são Os Lusíadas, a melhor epopeia

do Renascimento, e os sonetos esteticamente perfeitos de Camões, poeta co-

mumente lembrado pelo antológico verso “Amor é um fogo que arde sem se

ver”. Em retrospectiva, você deve se recordar igualmente dos Sermões de Padre

António Vieira, o “imperador da língua portuguesa” (Fernando Pessoa), que

elevou a prosa escrita da nossa língua portuguesa ao mesmo nível estético da

poesia camoniana, bem como deve ter compreendido por que o escritor bra-

sileiro Olavo Bilac definiu Bocage como o “máximo cinzelador da métrica”,

uma vez que este soube lapidar, ao modo clássico, o texto poético como a um

diamante. Ao fim e ao cabo desse percurso você não só conseguiu perceber a

maestria dessas composições, a consciência artesanal dos escritores do perío-

do que se estende do medievo ao neoclassicismo, como também pôde estabe-

lecer várias conexões intertextuais com a literatura e a música contemporânea.

Em Literatura Portuguesa II, você também estudará textos instigantes, seja

pela capacidade inventiva, pelo requinte formal, seja pelo esforço reflexivo que

esses textos promoveram sobre o fazer literário e sua relação com a questão da

identidade nacional. Desde já, sinta-se convidado(a) a identificar as inovações

que se introduzem no campo literário, sem deixar de reconhecer os elementos

da estética medieval e clássica que continuam presentes ao longo da moderni-

dade literária.

Como dissemos, o interesse desta Disciplina consiste em observar e identificar

o que singulariza as diferentes manifestações literárias surgidas ao longo do

século XIX, em Portugal. As linhas de força predominantes são desenhadas

pelo Romantismo, que se afirma entre 1825 e 1865; pelo Realismo, que floresce

entre 1865 e 1890; e pelo Simbolismo, cuja melhor expressão se configura no

início do século XX. Convém dizer que essas datas não são marcos definitivos,

inquestionáveis, mas que servem para facilitar o mapeamento cognitivo do

espaço-temporal, ou como uma carta de navegação necessária para essa

viagem no tempo.

Por questões de ordem didática, a disciplina foi organizada em torno de três

momentos/movimentos. Na primeira unidade você vai se concentrar no estu-

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do das condições de possibilidade da estética romântica. Para a identificação

dos componentes fundamentais do Romantismo português, foram selecio-

nados fragmentos textuais da prosa de Alexandre Herculano (1810-1877) e

poemas e fragmentos textuais da prosa de Almeida Garrett (1799-1854). Para

o estudo da segunda geração romântica, foram escolhidos recortes textuais

retirados da prosa de Camilo Castelo Branco (1825-1890).

Na segunda unidade, você estudará as condições de possibilidade do movi-

mento realista. Para fins de identificação das características fundamentais do

Realismo em Portugal analisaremos um conto e um romance de Eça de Quei-

rós (1845-1900) e sonetos de Antero de Quental (1842-1891). A partir da leitu-

ra desses textos você conhecerá os porquês do combate à estética romântica e

os elementos que animam o programa do movimento realista, então chamado

de Nova Arte.

Na última unidade desta Disciplina, o seu desafio consistirá na investigação

dos componentes fundamentais do movimento simbolista português, a partir

da análise de poemas de Eugênio de Castro (1869-1944) e de Camilo Pessanha

(1867-1926).

Enfim, resta-nos desejar que estas aulas escritas contribuam para a reflexão

sobre a importância da Literatura como maneira especial de ver e dizer o mun-

do, sem perder de vista o prazer do texto, a fruição literária, jamais. Então

vamos lá, pois, como disse o poeta, navegar é preciso (ainda que viver seja

impreciso!). 

Prof. Dr. Stélio Furlan

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Unidade AO Romantismo

Esboceto de Vasco da Gama, de Miguel Ângelo Lupi [1826-1883],

professor de pintura histórica na Academia de Artes de Lisboa.

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Introdução

O romantismo foi um movimento literário, mas também foi uma moral, uma erótica e uma política. Se não foi uma religião, foi algo mais que uma estética e uma filosofia: um modo de pensar, sentir, enamorar--se, combater, viajar. Um modo de viver e um modo de morrer.

Friedrich von Schlegel (1772 - 1829) afirmou, em um de seus escri-tos programáticos, que o romantismo não só se propunha à dissolução e à mistura dos gêneros literários e das idéias de beleza como, através da ação contraditória, porém convergente, da imaginação e da ironia, buscava a fusão entre a vida e a poesia.

E mais ainda: socializar a poesia. O pensamento romântico se des-dobra em duas direções, que terminam se fundindo: a busca desse prin-cípio anterior, que faz da poesia o fundamento da linguagem e, por con-seguinte, da sociedade; e a união desse princípio com a vida histórica.

Se a poesia foi a primeira linguagem dos homens — ou, se a lin-guagem é em sua essência uma operação poética que consiste em ver o mundo como uma trama de símbolos e de relações entre símbolos —, cada sociedade está edificada sobre um poema; se a revolução da idade moderna consiste no movimento de regresso da sociedade à sua origem, ao pacto primordial dos iguais, essa revolução se confunde com a poesia.

Blake disse: Todos os homens são iguais no gênio poético.”

Daí que a poesia romântica pretenda ser também ação: um poema não é só um objeto verbal, como também é uma profissão de fé e um ato. (Octávio Paz. Os filhos do barro. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1984)

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Capítulo 01Romantismo: ou a liberdade do sentimento na Arte

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Romantismo: ou a liberdade do sentimento na Arte 

OBJETIVOS: Nesta primeira Unidade você se concentrará no estu-

do das condições de possibilidade da estética romântica. Para a iden-

tificação dos componentes fundamentais do Romantismo português,

foram selecionados fragmentos textuais da prosa de Alexandre Hercu-

lano (1810-1877) e poemas e fragmentos textuais da prosa de

Almeida Garrett (1799-1854). Para o estudo da segunda geração

romântica, foram escolhidos recortes textuais colhidos na prosa de

Camilo Castelo Branco (1825-1890).      

A nossa primeira travessia pelos vastos mares da Literatura Portu-guesa começa com o movimento romântico. Enquanto tendência esté-tica e filosófica o Romantismo dominou diversas áreas de pensamento e da criação artística de meados do século XVIII a meados do XIX. No campo literário, costuma-se apontar o livro intitulado Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Johann Wolfgang von Goethe, lançado em 1774, como um dos “textos inaugurais” desse movimento.

Costuma-se afirmar que o romantismo tendo nascido quase que ao mesmo tempo, na Inglaterra e na Alemanha, ramificou-se por todo o con-tinente europeu, como se fosse uma epidemia espiritual. Em Portugal, os historiadores da literatura o situam entre a publicação do poema Camões, de Almeida Garrett, em 1825, e a polêmica Questão Coimbrã, de 1865.

Quando se fala em “romântico” talvez a primeira imagem que possa ocorrer seja a daquele “amante à moda antiga do tipo que ainda manda flores”, conforme uma conhecida canção popular. Como sabemos, trata-se de uma imagem demasiado estereotipada e que pouco contribui para a compreensão da complexidade do termo. Ao perguntarem-se sobre o que é o Romantismo, Saire e Löwe concluem que esse movimento é um enigma aparentemente indecifrável: 

Considerando a natureza arbitrária da escolha de algumas caracte-

rísticas em relação a outras, vários críticos tentaram contornar essa

No Brasil, convencionou--se situar o Romantismo de 1836 - com a publica-ção de Suspiros Poéticos e Saudades, de Gonçalves Magalhães (ou com a publicação da revista Niterói, cujo lema era “Tudo pelo Brasil, e para o Brasil”.) - até 1881, com as Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.

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Literatura Portuguesa II

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dificuldade apresentando listas cada vez mais compridas de deno-

minadores comuns da literatura romântica. Até aqui, a mais extensa

é aquela elaborada, em um artigo recente, por Henry Remak, sobre o

romantismo europeu que estabelece uma tabela sistemática de vin-

te e três “denominadores comuns”: medievalismo, imaginação, culto

das emoções fortes, subjetivismo, interesse pela natureza, mitologia

e folclore, mal do século, simbolismo, exotismo, realismo, retórica,

etc. Uma vez mais: ao admitir que essas características se encontram

na obra de inúmeros, ou até mesmo da maioria dos escritores ro-

mânticos, será que por essa razão ficamos sabendo o que é o roman-

tismo? Seria possível alongar as listas até o infinito, acrescentando

um número cada vez maior de “denominadores comuns”, sem nos

aproximarmos da solução do problema (Saire e Löwe).

Por se tratar de um fenômeno de difícil contorno, tal a diversidade de definições-tentativas, longe de reduzi-lo a um conjunto invariável de atributos capazes de definir as suas diferentes modulações, seja na Eu-ropa, seja na América, optamos por identificar alguns dos componentes fundamentais do projeto estético romântico para então estudar os seus desdobramentos na literatura portuguesa. 

 1.1   Clássico versus romântico

Em sentido amplo, e talvez seja um dos poucos aspectos consen-suais sobre o que se entende por Romantismo, não se pode pensá--lo sem o compreender como um movimento de oposição violenta ao Classicismo.

Num estudo crítico importante à compreensão das especificidades dos dois movimentos, Rosenfeld e Guinsburg (2005, p. 268) distinguem o Classicismo por elementos como o equilíbrio, a ordem, a harmonia, a objetividade, a ponderação, a proporção, a serenidade, a disciplina, o caráter apolíneo, logo racional, lúcido e luminoso. Tais elementos per-mitem-lhes situá-lo no “domínio do diurno”. Quanto ao Romantismo eles destacam a “efusão violenta de efeitos e paixões, as dissonâncias, a desarmonia em vez da harmonia, o subjetivismo radical”. Assim, “o

Disponível em: <http://www.unb.br/il/tel/gra-

duacao/romantismo/uma_tentativa_redefini-cao.htm>. Acesso em: 27

mai. 2008.

Fragmento textual colhi-do no prefácio de Suspi-ros Poéticos e Saudades, de 1836, de Domingos

Gonçalves de Magalhães.

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Capítulo 01Romantismo: ou a liberdade do sentimento na Arte

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ímpeto irracional, o gênio original e a exaltação dionisíaca sobrepõem--se à contenção, à disciplina apolínea da época anterior”. Daí situarem o Romantismo no “domínio do noturno”.

Como você já estudou em Teoria da Literatura I, a propósito de “Os modernos”, dita reação à arte poética clássica encontra no prefácio da peça Cromwell (1827), de Victor Hugo, um dos momentos mais contun-dentes: Mettons le marteau dans les théories, les poétiques et les sys-tèmes, ou ainda Il n’y a ni règles, ni modeles. Agora o texto literário passa a ser avaliado a partir da capacidade de expressão de uma expe-riência individual. Em consequência, o escritor passa a ser reconhecido pela sua visão pessoal do mundo. Já não mais a imaginação controlada pelos preceitos rígidos da tradição clássica, mas sim a imaginação va-gando no infinito como um átomo no espaço.

Daí a liberdade de composição que abre a possibilidade de mescla dos gêneros literários, pois em um mesmo texto passa-se a admitir o sublime e o grotesco, o cômico e o trágico, o lírico e o épico, a crônica e o drama, a poesia e a prosa...

Curioso notar que antes do século XIX a poesia reinava absoluta no campo literário. Mas, a partir de 1830 alguns escritores europeus, tais como Alexandre Dumas, autor do folhetim Os Três Mosqueteiros, publi-cado no Le Siècle de março a julho de 1844, e Walter Scott (criador do romance histórico e autor de Ivanhoé) ganharam celebridade pela publi-cação de suas histórias em prosa nos jornais da época. Essas narrativas de cunho literário passaram a ser conhecidas pelo nome de “folhetim”, pois os capítulos eram publicados diária ou semanalmente pela impren-sa, como ocorreu, por exemplo, com Viagens na minha terra, de Almeida Garrett, romance inicialmente publicado na Revista Universal Lisbonen-se, entre 1843 e 1845, sendo publicado em livro no ano seguinte.

Nesse contexto surge um novo tipo de escritor, o que passa a viver do seu próprio trabalho por conta do desaparecimento do mecenatismo (o patrocínio das artes), favorecido pela relativa liberdade de imprensa e

Ao martelo com as teorias, as poéticas, os sistemas. Já não mais esquemas rígidos pré--fixados, as regras ou mo-delos dados de antemão, escreve Victor Hugo.

Fragmento textual colhido no prefácio de Suspiros Poéticos e Saudades, de Domingos Gonçalves de Magalhães, cuja obra é para alguns historiadores da literatura a pedra fun-damental do romantismo brasileiro.

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pelo aparecimento de um novo público consumidor. Ou melhor dizen-do, de um novo tipo de leitor. Nas palavras de Saraiva e Lopes: 

o público do Romantismo não tem uma grande preparação especifi-

camente literária. Ignora as convenções e os padrões da literatura clás-

sica (mitologia, história antiga, tópicos e figuras de tradição retórica,

regras dos gêneros, etc.). Não compreende os valores literários clássi-

cos. Aprecia mais a emoção que a finura; gosta da expressão concreta

e imediatamente acessível (...). A sua própria impreparação estética

torna-o sugestionável pela peripécia romanesca, pela simples inten-

sidade e diversidade das impressões (SARAIVA; LOPES, 2001, p. 657).

Em países como Portugal e Brasil, a literatura de cunho romântico aparece profundamente marcada pela busca das origens da nacionalidade, pela tentativa de delimitação da identidade pátria inseparável de um forte apelo místico. Vale lembrar o conhecido quadro de Victor Meirelles A primeira missa no Brasil. Em Portugal, não seria errôneo afirmar que o quadro de Ângelo Lupi, a propósito do episódio a partida das naus, de Os Lusíadas, contribui para esse processo de construção do mapa imaginário da nação. 

Alia-se à preocupação de caracterizar as especificidades geo-his-geo-his-tóricas e culturais da nação a tarefa de construção de figuras modelares capazes de corporificar os ideais pátrios.

Isso vale para o indígena Peri, criação literária do brasileiro José de Alencar (1829-1877) e para o cavaleiro medieval Eurico, de Alexandre Herculano (1810-1877), um dos principais escritores do Romantismo português.

O culto ao medievo igualmente se percebe na onda arquitetônica neogótica do século XIX e na restauração de monumentos da Idade Média.

O melhor exemplo desse horizonte de expectativas é, juntamente com o Mosteiro dos Jerônimos, o Mosteiro de Santa Maria da Vitória (1387 - 1533), em Batalha, Portugal.

 Esboceto de Vasco da Gama de Miguel Ângelo Lupi (1826-1883),

Professor de pintura histórica na Academia de Artes de Lisboa.

Alexandre Herculano

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Capítulo 01Romantismo: ou a liberdade do sentimento na Arte

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Bem como, no campo da literatura, na re-valorização de temas e processos compositivos típicos da poética trovadoresca. Era preciso ser novamente um trovador. Em vez das formas fixas clássicas, tais como o soneto, e da valori-zação da antiguidade greco-latina, prefere-se o lirismo fluente de ritmos populares bem ao gosto medieval, tal como veremos na poesia de Almeida Garrett. Mas não pretendemos perpe-tuar a noção de que o Romantismo se reduz ao evasionismo, à mera fuga do real rumo ao sau-dosismo passadista. O que anima esse retorno é a tomada de consciência das particularidades da nação, numa palavra, da “cor local”.

Assim, no caso português, o culto à Idade Média se justifica tanto pelo ambiente misterioso e transcendental quanto pela evocação dos primórdios da nação. É que o escritor romântico nutre uma verdadeira paixão política. Sente-se “o arauto das inquietações populares”, um mago, um profeta. Idealista, acredita no progresso do homem e sonha com a liberdade, igualdade e fraternidade. Note que Victor Hugo, afirmando a crença na missão civilizadora do poeta, atribui-lhe uma função política: “o poeta deve guiar os povos”, escreve em 1837.

Outros preferem também atribuir ao escritor uma função de guia espiritual. Em 1836, Alexandre Herculano, cuja produção textual afirma constantemente que a norma estética é parte integrante da ética, escreve que a mais nobre missão do poeta é ser útil ao Cristianismo e à Liberdade. Curioso notar que o forte teor místico igualmente contagia o poeta brasileiro Gonçalves de Magalhães. Na segunda parte do livro de poemas intitulado Suspiros poéticos e sau-dades, de 1836, associado aos primórdios do Romantismo no Brasil, deixa transparecer o seu dever poético e sua aspiração à condição de vate ou porta-voz do mundo transcendental: 

Foto do autor. Detalhe do conjunto arquitetônico iniciado

no reinado de D. João I, em homenagem ao bom sucesso das armas

portuguesas em Aljubarrota, em batalha travada em 14 de Agosto de

1385. Esta vitória, que garantiu a independência de Portugal, ocorreu

no distrito de Distrito de Leiria, região Centro. Há um sítio que reco-

mendo, inclusive com imagens em hd sobre o Mosteiro de Batalha.

Vide: http://3d.culturaonline.pt/Content/Common/VirtualTour/Index.

htm?id=42bb5d98-e786-4f02-bb5f-2aa349af28dd .

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eu sou órgão de um Deus; um Deus me inspira;

seu intérprete sou; oh terra! ouvi-me

1.2 A Religião do Amor 

Na literatura romântica luso-brasileira constata-se, portanto, não só a valorização do sentimento pessoal, mas sobretudo as reflexões de cunho identitário voltadas ao mapeamento das especificidades do na-cional, o que justifica o interesse pelo passado medieval.

Contudo, nos manuais de literatura costuma-se destacar como componentes fundamentais do Romantismo a revalorização da imagem sentimental e subjetiva do amor e da mulher como atributos fundamentais. Por certo, o protótipo de um texto literário produzido segundo o gosto romântico envolve o tema dos direitos do coração contra as injustas convenções e hierarquias sociais.

Noutras palavras, uma história de amor contrariado, em geral entre jovens de níveis sociais diferentes. Em Portugal, como veremos adiante, dentre os casos mais contundentes figuram os de Eurico e Hermengar-Hermengar-da, criações literárias de Alexandre Herculano, e o triângulo amoroso envolvendo Teresa, Mariana e Simão, personagens de Amor de Perdição, romance de Camilo Castelo Branco.

Se, no século XIX, surge um novo tipo de leitor - a “classe média” é o modelo social dos românticos e o seu público (SARAIVA, 2001, p. 659) -, pode-se dizer que também se afirma uma nova forma de tematização da questão amorosa. Não mais o amor comedido, vivido em pensamento, disciplinado pela Razão, atrelado à mitologia, como era típico na poesia neoclássica, mas o que se pode chamar de um amor-obsessão cujo ardor põe em cena o rebentar dos sentimentos individuais.

Nesse sentido, os escritores românticos acabam por rubricar um novo significado para as paixões humanas: a expressão “amor romântico” traduz tanto exclusividade, profundidade e intensidade, quanto a des-a des-medida afetiva que em geral leva a um final comovente.

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Capítulo 01Romantismo: ou a liberdade do sentimento na Arte

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Foram os românticos que inventaram tal amor-obsessão? A nosso ver, esse exagero passional remonta àquela Religião do Amor cantada pelos trovadores medievais. Em consequência, o encarecimento do feminino se faz necessário. A idealização do feminino ganha novo alento na prosa de Herculano. Leia-se como ele a enuncia no prólogo de Eurico, o presbítero: 

Dai às paixões todo o ardor que puderdes, aos prazeres mil vezes mais

intensidade, aos sentidos a máxima energia e convertei o mundo em

paraíso, mas tirai dele a mulher, e o mundo será um ermo melancólico,

os deleites serão apenas o prelúdio do tédio. Muitas vezes, na verda-

de, ela desce, arrastada por nós, ao charco imundo da extrema depra-

vação moral; muitíssimas mais, porém, nos salva de nós mesmos e,

pelo afecto e entusiasmo, nos impele a quanto há de bom e generoso.

Quem, ao menos uma vez, não creu na existência dos anjos revelada

nos profundos vestígios dessa existência impressos num coração de

mulher? E porque (ou por que? Ver original) não seria ela, na escala da

criação, um anel da cadeia dos entes, presa, de um lado, à humanidade

pela fraqueza e pela morte e, do outro, aos espíritos puros pelo amor

e pelo mistério? Porque (ou por que?) não seria a mulher o intermédio

entre o céu e a terra?” (HERCULANO, 1997, p.11). 

1.3 Em busca da cor local 

Alexandre Herculano foi um dos principais escritores e teori-zadores do Romantismo português. Diretor da revista Panorama, de caráter artístico e científico, romancista, novelista, contista e poeta, também se dedicou ao jornalismo e à atividade de historiador. Es-critor de vasta erudição, a ele coube a introdução da narrativa histó- rica em Portugal.

Na prosa, é comumente lembrado pelo romance histórico in-titulado Eurico, o presbítero, editado em volume em 1844, um ano depois de ter saído em excertos na revista Panorama e na Revista Universal Lisbonense.

Tal romance (ou novela como querem alguns) está plenamente concorde ao contexto de idéias e sentimentos de seu tempo. Seja pelo

Escultura funerária onde jaz o cor-

po de Alexandre Herculano, no Mosteiro

dos Jerónimos, em Lisboa. Em epígrafe,

os seguintes dizeres: “ Aqui dorme um

homem que conquistou para a grande

mestra do futuro, para a História, algumas

importantes verdades”. A. Herculano.

Revista Universal Lisboense

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Literatura Portuguesa II

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recorte histórico e geográfico, pela defesa da unidade entre o ideal cristão e o ideal na-cional, pela construção do protagonista de feições heroicas ou no modo de retratar o Amor e a Mulher.

Não se pode deixar de mencionar que o próprio Herculano se autodesignava um “romântico” e que fez a defesa de uma lite-ratura com feições “nacionais” inspirada nos tempos históricos. É o que o move a realizar em Eurico, o presbítero um resgate da era his-tórica originária da nação portuguesa.

Sem rodeios, a intenção de Herculano consiste em descrever o “nascimento das sociedades modernas da Península” ibéri-ca e, como tal, privilegia a ruína do impé-rio godo-cristão no século VIII, causada pela ocupação árabe.  Ou seja, o texto re-visita as raízes históricas e étnicas de Por-tugal e as reconstitui de modo primoroso pelas descrições pormenorizadas sobre as vestimentas, os costumes da época, a ar-quitetura e por aí afora. 

1.4 Hibridação de Gêneros 

Curioso notar que, na vanguarda da renovação literária romântica, Alexandre Herculano titubeia quanto à definição do seu romance Eurico, o presbítero: 

Sou o primeiro que não sei classificar este livro; nem isso me aflige de-

masiado. Sem ambicionar para ele a qualificação de poema em prosa

– que não o é por certo –, também vejo, como todos hão-de ver, que

não é um romance histórico, ao menos conforme o criou o modelo e a

Interior do Mosteiro dos Jerónimos, uma obra prima de Portugal,

financiada com o comércio das especiarias trazidas por Vasco da Gama.

Lembrar que esta viagem foi cantada por Camões em Os Lusíadas. Nele estão

os monumentos funerários em homenagem ao navegador Vasco da Gama e

aos poetas Luís de Camões, Alexandre Herculano e Fernando Pessoa. Trata-

-se de uma das mais importantes construções de Portugal. Acompanhe pelo

youtube um vídeo sobre essa maravilha arquitetônica em www.youtube.com/

watch?v=7w02xWdPioA

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Capítulo 01Romantismo: ou a liberdade do sentimento na Arte

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desesperação de todos os romancistas, o imortal Scott. [...]. Desde a pri-

meira até à última página do meu pobre livro caminhei sempre por es-

trada duvidosa traçada em terreno movediço; se o fiz com passos firmes

ou vacilantes, outros, que não eu, o dirão (HERCULANO, 1997, p182).

Poema em prosa, romance histórico, lenda, crônica-poema, numa palavra, a regra é a ausência de regra. Aqui, a liberdade de pesquisa estética possibilita a fusão do ritmo melodioso da linguagem à liberdade imaginativa. Nas palavras de Antonio Soares Amora, este romance-poe-Antonio Soares Amora, este romance-poe-ma é uma “obra prima da ficção histórica em língua portuguesa”. 

1.5 O Vate

A crença de que os poetas são videntes e profetas, o espírito fala por sua boca, como escreve Octávio Paz, em Os filhos do barro, a propósito onda mística romântica, não é alheia a Alexandre Herculano. Como se fosse um alter-ego do autor, escreve Nelson Rodrigues Filho, “o nar-rador se apresenta como profeta, aquele que anuncia uma verdade as-sumindo o ponto de vista onisciente e dirigindo a narrativa segundo as demandas de doutrina a ser exemplificada pela ação do herói”. Para fazer jus ao afirmado logo no início do romance, 

Na conta de inspirado por Deus, quase na de profeta, o tinham as

multidões.

No capítulo VII, Eurico interpreta os “terribilíssimos” sonhos enviados por Deus. Em seus sonhos, vê “dous castelos de nuvens cerradas e negras” que “começaram a alevantar-se, um da banda da Europa, outro do lado de África”. Os “dous exércitos de nuvens prolongaram-se em fren-te um do outro e toparam em cheio. Era uma verdadeira batalha”. Eurico pressente a migração árabe sobre a península ibérica e a inevitabilidade do confronto, e adverte os cristãos que preparam a resistência.

A assertiva de Guinsburg e Rosenfeld (2005), sobre o narrador romântico enquanto mensageiro divino, o herói mediador do infini-to em meio à finitude, calha à perfeição para se pensar o vate-pres-bítero de Herculano: 

Disponível em http://www.letras.puc-rio.br/Catedra/revista/1Sem_11.html.

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Literatura Portuguesa II

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Agora, trata-se de um verdadeiro demiurgo, de uma força cósmica,

inata, que decifra de maneira intuitiva e direta, o “livro da natureza”,

criando sob o impacto da inspiração.

Quanto à construção do personagem, Eurico é caracterizado como um típico cavaleiro medieval: misto de guerreiro valoroso, poeta inspirado, patriota leal dedicado à defesa da pátria e dos valores nacionais.

Isso revela a atitude edificante como uma constante na literatura de Herculano. Ele não poupou esforços na criação do herói nacional. Assim, Eurico se junta ao rol das personagens transformadas em figuras modelares alçadas à condição de emblema da nacionalidade. 

1.6 Eurico, o Presbítero (1844)

Em breves linhas, eis o enredo. No início do romance, após delinear o espaço-temporal - no caso, a península ibérica do século VIII -, o narrador descreve as causas da decadência do império godo-cristão, minado pelas lutas internas e pela decadência moral. Em seguida, apresenta-nos Eurico, que abandona a vida guerreira quando seus amores por Hermengarda são frustrados por Favila, pai da sua amada. Ele o repele pela condição social de Eurico, um modesto gardingo ou nobre. Eurico se retira para a vida religiosa e se torna um presbítero dedicado. Vale citar um fragmento do capítulo VI, sugestivamente inti-tulado de “Saudade”, no qual o ensimesmado Eurico se revela atormen-tado pela recordação saudosa e amargurada da amada: 

É assim que eu te vejo em meus sonhos de noites de atroz saudade:

mas, em sonhos ou desenhada no vapor do crepúsculo, tu não és para

mim mais do que uma imagem celestial; uma recordação indecifrável;

um consolo e ao mesmo tempo um martírio.

Não eras tudo emanação e reflexo do céu? Por que não ousaste, pois,

volver os olhos para o fundo abismo do meu amor? Verias que esse

amor do poeta é maior que o de nenhum homem; porque é imenso,

como o ideal, que ele compreende; eterno, como o seu nome, que

nunca perece.

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Capítulo 01Romantismo: ou a liberdade do sentimento na Arte

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Hermengarda, Hermengarda, eu amava-te muito! Adorava-te só no san-

tuário do meu coração, enquanto precisava de ajoelhar ante os altares

para orar ao Senhor. Qual era o melhor dos dois templos?

Foi depois que o teu desabou, que eu me acolhi ao outro para sempre.

Por que vens, pois, pedir-me adorações quando entre mim e ti está a cruz

ensanguentada do Calvário; quando a mão inexorável do sacerdócio

soldou a cadeia da minha vida às lájeas frias da igreja; quando o primeiro

passo além do limiar desta será a perdição eterna?

Mas, ai de mim!, essa imagem que parece sorrir-me nas solidões do es-!, essa imagem que parece sorrir-me nas solidões do es-

paço está estampada unicamente na minha alma e reflecte-se no céu

do oriente através destes olhos perturbados pela febre da loucura, que

lhes queimou as lágrimas (HERCULANO, 1997, p. 40).

Porém, intuindo o avanço árabe sobre a península ibérica une- une--se aos cristãos tornando-se conhecido como o Cavaleiro Negro. Eu-rico colocara sobre a veste de presbítero a armadura de guerreiro. Mas o ardor combativo do “demônio da assolação”, não impede a derrota de seu povo.

Então, Pelágio, irmão de Hermengarda, torna-se um dos respon-sáveis pela organização da resistência contra o avanço árabe. Em meio à guerra, a donzela é raptada num assalto a um convento de freiras e entregue a um dos chefes árabes, chamado Abdulaziz. Mas o destemi-do Cavaleiro Negro, num ato de coragem e bravura, consegue penetrar no acampamento inimigo e salvar a donzela. Então... o amor entre am-bos se reaviva! Porém, surge outro impedimento, agora já não é mais a proibição do pai de Hermengarda, mas a do celibato.

Em meio a batalhas sangrentas e amores impossíveis, nada mais apropriado para terminar o romance que a epígrafe do último capítu-lo: “Da morte às trevas, / Imortal, te diriges!” (Merobaudes). Como o amor entre ambos não pode se consumar por questões morais, Eurico se lança numa luta mortal contra o exército inimigo. E Hermengarda? No auge do desespero, ela canta um hino sagrado composto por Euri-co, e, conforme se lê nas últimas linhas do romance, 

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Quando Hermengarda acabou de cantar, ficou um momento pensan-

do. Depois, repentinamente, soltou uma destas risadas que fazem eriçar

os cabelos, tão tristes, soturnas e dolorosas são elas: tão completamente

exprimem irremediável alienação de espírito.

A desgraçada tinha, de feito, enlouquecido (HERCULANO, 1997, p.181).

E assim termina o romance, talvez suscitando muitas lágrimas, anti- anti-gamente, risos hoje em dia, Agora, vale destacar que o desfecho mais não faz do que reiterar o quão  intenso, o quão veemente é o amor romântico. Seja no que diz respeito ao amor sublimado e impossível de Eurico e Her-mengarda, seja em relação à paixão nacional, ao amor pátrio.

Dissemos, no início deste texto, que é consensual pensar o Romantismo como a celebração da liberdade imaginativa. Alexandre Herculano celebrava a noite onde a fantasia do ser humano é mais ar-dente. Assim é o romantismo, um estado de espírito onde prepondera o elemento noturno. Não deixe de ouvir as peças para piano intituladas Nocturnos, de Chopin (1810-1849), um dos principais compositores ro-mânticos. Algumas delas exprimem o profundo sentimento dramático típico do romantismo. Dita valorização do noturno não é alheia às pági-nas repletas de sentidas expressões líricas, de Eurico, o presbítero: 

Por que te havia eu de amar, ó Sol, se tu és o inimigo dos sonhos do

imaginar; se tu nos chama à realidade, e a realidade é tão triste?

Pela escuridão da noite, nos lugares ermos e às horas mortas do alto

silêncio, a fantasia do homem é mais ardente e robusta.

É então que ele dá movimento e vida aos penhascos, voz e entendimento

às selvas que se meneiam e gemem à mercê da brisa noturna.

É então que ele colige as suas recordações; une, parte, transmuda as

imagens das existências que viu passar ante si e estampa nas sombras

que o rodeiam um universo transitório, mas para ele real (HERCULANO,

1997, p.35).

Nesse sentido, pode-se afirmar que no plano geral de Eurico, o pres-bítero ganham destaque os trágicos conflitos entre o coração e a cons-ciência moral, a intensidade do drama passional e de consciência dos

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Capítulo 01Romantismo: ou a liberdade do sentimento na Arte

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amantes, enfim, a lógica de uma ordem social que se sobrepõe e sufo-ca a paixão dos enamorados. O que nos leva a concluir que Eurico, o presbítero corrobora a tese de Anatol Rosenfeld e J. Guinsburg, a quem deixaremos as últimas palavras desta primeira travessia pela constelação romântica à portuguesa, sob o domínio do noturno: 

“E o conceito de noite se funde e confunde com o conceito de amor, e

a ideia de amor, com a de morte. É a grande trindade romântica – Noite,

Amor e Morte” (2005, p. 272)

Leia mais!

Para um maior aprofundamento do assunto, recomendamos a leitura dos capítulos I e III, intitulados “O Romantismo” e “Alexandre Hercula-no”, respectivamente, publicados em História da Literatura Portuguesa (Porto: Porto Editora, 2001), de António José SARAIVA e Óscar LO-PES. Trata-se de um bom estudo sobre o conceito e as condições gerais do Romantismo em Portugal e uma boa contribuição para uma visão panorâmica da textualidade de Alexandre Herculano.

E, a propósito das diferenças entre o romance histórico no século XIX e o romance histórico contemporâneo, vale a pena ler o ensaio “Sara-mago e o romance histórico”, de Nelson Rodrigues Filho, publicado na Revista Semiar e disponível em: <http://www.letras.puc-rio.br/Catedra/revista/1Sem_11.html>. Acesso em: 11 mar. 2012.

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Capítulo 02Almeida Garret

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2 Almeida Garrett (1799-1854) Sim, esta voz do peito meu se exala!

Esta voz é minha alma que se espraia,

é minha alma que geme, e que murmura,

como um órgão no templo solitário;

minha alma, que o infinito só procura,

(Gonçalves de Magalhães. Suspiros Poéticos e Saudades, 1836)

OBJETIVOS: Conhecer, compreender e interpretar a poesia e a narrativa

ficcional portuguesa do século XIX a partir do estudo das principais obras de

Almeida Garrett.

Dissemos anteriormente que, embora haja uma constelação de definições sobre o Romantismo, um dos seus aspectos mais carac-terísticos consiste na valorização da efusão violenta das paixões ex-pressa em tom confessional.

Como novidade romântica, o valor da obra passou a residir e ser avaliado a partir da capacidade de reprodução de uma experiência in-dividual, da auto-expressão do artista. Como consequência, o prestígio do escritor proveio não mais da habilidade de se imitar os modelos con-sagrados pela tradição clássica, mas, sim, da sinceridade com a qual ex-pressava sua visão pessoal do mundo.

É justamente o que se pode observar no prefácio de Folhas Caídas (1853), de Almeida Garrett. Em tom de profissão de fé, escreve: 

Os cantos que formam esta pequena colecção pertencem todos a

uma época de vida íntima e recolhida que nada tem com as minhas

outras colecções.

Essas mais ou menos mostram o poeta que canta diante do público.

Das Folhas Caídas ninguém tal dirá, ou bem pouco entende de estilos

e modos de cantar.

Almeida Garret

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Literatura Portuguesa II

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Não sei se são bons ou maus estes versos; sei que gosto mais deles do

que de nenhuns outros que fizesse. Por quê? É impossível dizê-lo, mas é

verdade. E como nada são por ele nem para ele, é provável que o públi-

co sinta bem diversamente do autor. Que importa?

Apesar de sempre se dizer e escrever há cem mil anos o contrário, pa-

rece-me que o melhor e mais reto juiz que pode ter um escritor é ele

próprio, quando o não cega o amor-próprio. Eu sei que tenho os olhos

abertos, ao menos agora (In: FERREIRA, s/d, p.17).

       E, mais à frente: 

Sei que as presentes Folhas Caídas representam o estado d’alma do

poeta nas variadas, incertas e vacilantes oscilações do espírito que, ten-

dendo ao seu fim único, a posse do Ideal, ora pensa tê-lo alcançado, ora

estar a ponto de chegar a ele — ora ri amargamente porque reconhece

o seu engano — ora se desespera de raiva impotente por sua credulida-

de vã (In: FERREIRA, s/d, p.18)

Folhas Caídas é considerado o documento mais expressivo da poe-sia lírica de cunho romântico em Portugal. É certo que para isso contri-buiu a disposição de expressar “o estado d’alma do poeta nas incertas e vacilantes oscilações do espírito”, logo, a eliminação das fronteiras entre a poesia e a existência.

Antes de passarmos à análise dos poemas de Garrett, vale lembrar que o autor entrou para a história da literatura portuguesa como o in-trodutor do Romantismo em Portugal. Estudou Direito em Coimbra. Sofreu o exílio por conta da sua defesa das causas liberais e democrá-ticas, contra a instituição absolutista ou a centralização do poder nas mãos do rei. Isso lhe custou o exílio na Inglaterra e na França. Em Gar-rett, a política e a estética caminham de mãos dadas.

Além de Doutor em leis, ministro e parlamentar, também con-tribuiu para a reflexão sobre literatura como nova maneira de falar a pátria. Célebre é a sua peça teatral, Frei Luís de Sousa (1844), na qual constrói a sua versão de herói épico nacional. Não menos célebres são as suas Viagens na minha terra (1846), de que trataremos mais adiante, também marcada pela questionação de Portugal. Capa do livro

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Capítulo 02Almeida Garret

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Mas não é menos certo afirmar que o conjunto da textualidade garrettiana apresenta trabalhos tipicamente arcádicos ao lado de ou-tros que, apesar de demonstrarem influências neoclássicas, partem de propostas românticas. É o que ocorre em Camões, lançado em 1825, considerado o ponto de partida do romantismo português, no qual se constrói um retrato bastante sentimental dos fados e da obra de Luís Vaz de Camões, autor de Os Lusíadas.

Por conta da proposta de mapear alguns dos componentes funda-mentais do Romantismo em Portugal, o nosso interesse se concentrará no estudo da poesia de Folhas Caídas e em uma breve incursão sobre a prosa de Viagens na minha terra, duas das principais obras de Garrett. 

2.1 Folhas Caídas 

Lançado em 1853, Folhas Caídas é composto de quarenta e seis composições poéticas divididas em duas partes. De modo geral, con-forme um título de um dos seus poemas, expressa o “Gozo e Dor” que envolvem a paixão amorosa. No caso, exprime os efeitos contraditórios do amor a oscilar entre a alegria de amar e os tormentos sentimentais. Leia-se: 

Este inferno de amar – como te amo! –

Quem mo pôs aqui n’alma... quem foi?

Esta chama que alenta e consome,

Que é a vida – e que a vida destrói –

Como é que se veio a atear,

Quando – ai quando se há de ela apagar?

Eu não sei, não me lembra: o passado,

A outra vida que dantes vivi

Era um sonho talvez... – foi um sonho –

Em que paz tão serena a dormi!

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Literatura Portuguesa II

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Oh! que doce era aquele sonhar...

Quem me veio, ai de mim! despertar?

Só me lembra que um dia formoso

Eu passei... dava o Sol tanta luz!

E os meus olhos, que vagos giravam,

Em seus olhos ardentes os pus.

Que fez ela? eu que fiz? – Não no sei;

Mas nessa hora a viver comecei...

(In: FERREIRA, s/d, p.29)

Embora apresentando estrofes com o mesmo número de versos [nove sílabas poéticas] e esquema regular de rimas, o “ritmo do verso ganha um andamento coloquial ou mesmo popular, à beira de transfor-mar-se em prosa versificada” (MOISÉS, 1997, p. 221).

No campo semântico, este poema apresenta um jogo de antíteses e imagens para caracterizar a paixão amorosa. Ele tece uma oposição entre presente (inferno de amar) e passado (paz), entre um sentimento que o faz sofrer e o faz viver. As palavras de Jorge de Sena aplicam-se à perfeição ao poema: 

O tom do livro, em que, a par de singelíssimas líricas, todos os cambian-

tes de uma paixão violenta e sensual eram dados com uma contenção

rítmica e uma elegância coloquial inigualáveis, esse ressumava uma in-

tensa e culposa sinceridade, que só uma juventude muito madura seria

capaz de atingir.

Por “contenção rítmica” entenda-se a preocupação com a perfei-ção formal dos poemas. A referida “juventude muito madura” deriva do fato de Garrett ter escrito Folhas Caídas aos 54 anos. Garrett causou escândalo por celebrar poeticamente a euforia erótica, melhor, sucessos amorosos tão colados à sua biografia. Nas suas palavras, poetiza “uma época de vida íntima e recolhida”. Se ele concebe a arte como expressão da sociedade e a literatura como reflexo da época, pode-se dizer que em seus poemas encontramos uma escrita de si.

(In: FERREIRA, s/d, p. 16)

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Capítulo 02Almeida Garret

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Como ocorre ao longo de Folhas Caídas, no poema Este inferno de amar o autor faz várias referências a termos como “rosa”, “luz”. Trata-se de claras alusões à sua dama de eleição, D. Rosa de Montúfar, Viscon-dessa da Luz, mulher belíssima, porém casada com oficial do exército Joaquim António Vélez Barreiros, o que justifica o escândalo causado pela publicação do livro de poemas de Garrett.

Logo, o poeta não canta mais aquelas musas idealizadas de feições clássicas, a saber, as Lídias, as Neeras, as Marílias, mas, sim, busca tradu-zir em tom confessional as suas próprias vivências, aspecto fundamen-tal para a compreensão do fazer literário romântico, o que nos permite identificar a realização de uma “poética da pessoalidade”.

Mas você não acha que caberia perguntar em que medida essa po-esia contribui para a reflexão sobre as especificidades da nação como rezava o credo romântico? Uma resposta satisfatória pode começar com as palavras de Garrett no prefácio do seu Romanceiro, para o qual a história da literatura portuguesa no segundo quartel deste século consistiu na reação romântica, que trouxe a renascença da poesia na-cional e popular, em conseqüência, nenhuma coisa pode ser nacional se não for popular (1843).

Assim, vale dizer que a valorização da “cor local” típica do ro-mantismo literário se identifica com o movimento de retorno à “alma” do povo, às suas fontes de criação. Conforme Rosenfeld e Guinsburg (2005, p. 267), eis a fonte de onde proviria a beleza autêntica e a gran-de arte significativa, o que justifica o enorme interesse pela canção popular. Tal interesse se percebe com nitidez no poema Bela de Amor, publicado em Folhas Caídas. Leia-se: 

Pois essa luz cintilante

Que brilha no teu semblante

Donde lhe vem o ‘splendor?

Não sentes no peito a chama

Que aos meus suspiros se inflama

Caricatura de Garret e a Viscondessa da Luz

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Literatura Portuguesa II

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E toda reluz de amor?

Pois a celeste fragrância

Que te sentes exalar,

Pois, dize, a ingênua elegância

Com que te vês ondular

Como se baloiça a flor

Na Primavera em verdor,

Dize, dize: a natureza

Pode dar tal gentileza?

Quem ta deu senão amor?

Vê-te a esse espelho, querida,

Ai!, vê-te por tua vida,

E diz se há no céu estrela,

Diz-me se há no prado flor

Que Deus fizesse tão bela

Como te faz meu amor.

(In: FERREIRA, s/d, p.37)

Convém notar que, como escreve Antônio José Saraiva a propósito do aspecto formal de Folhas Caídas, Garrett abandona definitivamente o verso branco arcádico e as formas clássicas, como o soneto, e ma-nifesta preferência por estrofes e rimas mais próximas da simplicidade popular (SARAIVA, 2001, p. 668-699).

Noutras palavras, abandona os versos que possuem métrica, mas que não utilizam rimas, bem como ignora o soneto, composição de forma fixa, com 14 versos dispostos em duas estrofes de quatro versos (quartetos) e duas estrofes de três versos (tercetos) cada, típicos da arte poética clássica.

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Capítulo 02Almeida Garret

37

Como você pôde perceber no poema Bela de Amor o lirismo fluen-te de ritmos populares se constata no predomínio de versos curtos, no caso, a tradicional redondilha, cujos versos são compostos de cinco ou sete sílabas poéticas. Desnecessário lembrar que para identificar os ver-sos redondilhos desse poema você deve, na contagem das sílabas poéti-cas, fazer a ligação entre as vogais culminando na última sílaba tônica, como se pode observar no seguinte verso: 

       1           2      3   4   5     6   7

       Queaos/ meus/ sus/ pi/ ros/ sein/fla/ma 

O poema Bela de Amor, também escrito em tom de confidência es-pontânea, encarece o feminino por meio de uma sofisticada hipérbole: a mulher é bela porque amada e por isso é maior que a beleza da natureza criada por Deus. Afora a mencionada idealização da mulher, em Folhas Caídas podemos verificar igualmente a celebração da plenitude amoro-sa com um sensualismo nada disfarçado. Leia-se: 

São belas — bem o sei, essas estrelas,

Mil cores — divinais têm essas flores;

Mas eu não tenho, amor, olhos para elas:

Em toda a natureza

Não vejo a outra beleza

Senão a ti — a ti!

Divina — ai! Sim, será a voz que afina

Saudosa — na ramagem densa, umbrosa.

Será; mas eu do rouxinol que trina

Não oiço a melodia,

Nem sinto outra harmonia

Senão a ti — a ti!

Respira — n’aura que entre as flores gira,

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Literatura Portuguesa II

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Celeste — incenso de perfume agreste.

Macia — deve a relva luzidia

Do leito — ser por certo em que me deito;

Mas quem, ao pé de ti, quem poderia

Sentir outras carícias,

Tocar noutras delícias

Senão em ti — em ti!

A ti! Ai, a ti só os meus sentidos

Todos num confundidos,

Sentem, ouvem, respiram;

Em ti, por ti deliram.

Em ti a minha sorte

A minha vida em ti;

E quando venha a morte,

Será morrer por ti.

(In: FERREIRA, s/d, p.38 e 39)

Neste poema se exprime o tema amor-paixão, não mais idealizado e vivido em pensamento por conta das alusões explícitas à corporeidade. Ob-serve que em cada estrofe do poema dá-se a expressão gradual dos sentidos (o visual, o auditivo, o olfativo, o tátil) como indícios da aproximação do sujeito poético até ao contato físico e à união plena com a mulher amada.

Observe também a identidade semântica dos versos no final de cada estrofe (Senão a ti — a ti!/ Senão em ti — em ti!). Isso não é gra-tuito, pois é também o que atesta a revalorização de recursos típicos das cantigas medievais, no caso, o refrão.

Lembre que, como disse um poeta, “cantando a pátria nasceu”. Se Portugal nasceu à época do Trovadorismo, por volta do século XII, po-de-se dizer que a reconstrução da arte de trovar faz parte da busca da

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Capítulo 02Almeida Garret

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chamada “cor local”, os traços que singularizam a nação. Nisso, Garrett, um novo trovador na modernidade, também está plenamente concorde ao programa estético do Romantismo.

Como se pôde notar nos poemas selecionados, o tom intimista e confessional vazado pela técnica do monólogo-dialogado, a cumplici-dade entre “autor” e “poeta”, a intensidade passional e a exaltação da mulher, a fusão de poesia e prosa, são todas características que permi-tem o enquadramento de Folhas Caídas no movimento romântico.

Acrescente-se ao rol dos componentes fundamentais do Roman-tismo a seleção vocabular distanciada da linguagem erudita, repleta de latinismos, típica da poesia clássica. Em Folhas Caídas, prefere-se a lin-guagem mais simples e direta, quase espontânea, enfim, o registro ino-vadoramente coloquial marcado por intensa emotividade. 

2.1.1 Paisagem, estado de alma. 

Resta destacar o tratamento dado à natureza em Folhas Caídas. A propósito do Romantismo, Antonio Candido refere que 

a natureza superficial e polida dos neoclássicos parece percorrida de

repente por um terremoto: o que se preza agora são os seus aspectos

agrestes e inacessíveis – montanha, cascata, abismo, floresta que irrom-

pem de sob colinas, prados e jardins (CANDIDO, 1997, p. 27).

No Romantismo, a natureza se exibe soldada às emoções do po-eta. Conforme o lema paysage état d´âme, na descrição da paisagem configura-se um estado de espírito que a contamina. A paisagem mais não é que um desdobramento da subjetividade pessoal. Obser-ve como isso se manifesta na composição intitulada Cascais, também de Folhas Caídas: 

Acaba ali a terra

Nos derradeiros rochedos,

A deserta árida serra

“paisagem estado da alma”

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Nome da disciplina

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Por entre os negros penedos

Só deixa viver mesquinho

Triste pinheiro maninho.

E os ventos despregados

Sopravam rijos na rama,

E os céus turvos, anuviados,

Tudo ali era braveza

De selvagem natureza.

Aí, na quebra do monte,

Entre uns juncos mal medrados,

Seco o rio, seca a fonte,

Ervas e matos queimados,

Aí nessa bruta serra,

Aí foi um céu na terra.

Ali sós no mundo, sós,

Santo Deus! Como vivemos!

Como éramos tudo nós

E de nada mais soubemos!

Como nos folgava a vida

De tudo o mais esquecida.

Que longos beijos sem fim,

Que falar dos olhos mudo!

Como ela vivia em mim.

Como eu tinha nela tudo,

Minha alma em sua razão,

Meu sangue em seu coração!

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Capítulo 02Almeida Garret

41

Os anjos aqueles dias

Contaram na eternidade:

Que essas horas fugidias.

Séculos na intensidade,

Por milênios marca Deus

Quando as dá aos que são seus.

Ai! sim foi a tragos largos,

Longos, fundos, que a bebi

Do prazer a taça: – amargos

Depois... depois os senti

Os travos que ela deixou...

Mas como eu ninguém gozou.

Ninguém: que é preciso amar

Como eu amei – ser amado

Como eu fui; dar, e tomar

Do outro ser a quem se há dado,

Toda a razão, toda a vida

Que em nós se anula perdida.

Ai, ai! que pesados anos

Tardios depois vieram!

Oh, que fatais desenganos,

Ramo a ramo a desfizeram

A minha choça na serra,

Lá onde se acaba a terra!

Se o visse... não quero vê-lo

Aquele sítio encantado;

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Literatura Portuguesa II

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Certo estou não conhecê-lo,

Tão outro estará mudado.

Mudado como eu, como ela,

Que a vejo sem conhecê-la!

Inda ali acaba a terra,

Mas já o céu não começa;

Que aquela visão da serra

Sumiu-se na treva espessa,

E deixou nua a bruteza

Dessa agreste natureza.

(In: FERREIRA, s/d, p.43 e ss).

O espaço é caracteristicamente romântico pela escolha de um locus horrendus, um lugar tenebroso feito de “derradeiros rochedos”, “deserta e árida serra”, “negros penedos”. Este ambiente seco e árido, que antes havia sido transformado pelo amor (Ali foi um céu na terra) termina por emoldurar o estado de alma do sujeito poético. Este projeta na descrição da natureza a sua desilusão pelo esvaziamento ou perda da paixão amo-rosa. Leia-se novamente: 

Aquele sítio encantado;

Certo estou não conhecê-lo,

Tão outro estará mudado.

Mudado como eu, como ela,

Que a vejo sem conhecê-la!

Em resumo, neste poema a paisagem se exibe como desdobramen-to das emoções pessoais, o verso curto (redondilha maior) com o sabor da oralidade e a veia sentimental da confissão são os elementos que des-tacamos como sintomáticos da estética romântica presentes na poesia de Almeida Garrett, a mais eloquente expressão do lirismo moderno.

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Capítulo 02Almeida Garret

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Deixemos as últimas palavras desta breve leitura sobre Folhas Ca-ídas com Saraiva e Lopes (2001, p. 699), para os quais este livro foi o que de melhor se produziu no âmbito do Romantismo, superior “em originalidade, em vibração de vida vivida, na crispação comunicável de um gozo que é também uma dor – e, resumindo, em invenção literária”

2.2 Viagens na Minha Terra (1843-1845)

De forte tonalidade romântica, Viagens na Minha Terra, publicado em obra completa em 1846, inaugura a prosa portuguesa moderna. É comum afirmar-se que essa escrita-viagem garretiana se constitui num dos mais bem realizados textos em prosa da literatura portuguesa do século XIX.

A propósito da importância de Viagens, Antonio Soares Amora es-creve que o leitor sente, “logo às primeiras linhas, que está diante de um prosador admirável, ameno, espirituoso, sedutor – o que faz, desde logo, compreender porque tem sido unânime a crítica em afirmar que foi Gar-rett, depois de três séculos de literatura clássica portuguesa, o mais talen-toso renovador da prosa em nossa língua” (AMORA, 1997, p.10).

Em Viagens na Minha Terra, livro composto de 59 capítulos, des-creve-se as impressões da curta viagem do próprio escritor, Almeida Garrett, que partira de Lisboa com destino a Santarém. Observe no mapa o percurso dessa viagem:

Segundo Alberto Carvalho,

As Viagens são um daqueles livros cujo título não parece oferecer gran-

de ambiguidade na decifração de seu sentido em geral; de que viagem

se irá tratar, quais são as suas motivações, é o que o primeiro capítulo

começa por esclarecer logo na sua abertura estas viagens (esse trecho

deixa o parágrafo confuso, favor verificar no original), ao contrário das

de Xavier de Maistre, não se desenrolarão num espaço fechado, mas,

pelo contrário, abrir-se-ão para o exterior, para o imprevisto e a aventura

espreitam com muito maior probabilidade (CARVALHO, 1981, p. 33).

Mapa de Portugal

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Noutras palavras, antes de cada capítulo, encontramos uma sinopse do que nele ocorre. Trata-se de uma contração de texto, uma vez que tal síntese narrativa revela um conjunto de segmentos narrativos funda-mentais que definem o plano esquemático do capítulo que introduzem. Leia-se na abertura do primeiro capítulo:

De como o autor deste erudito livro se resolveu a viajar na sua terra,

depois de ter viajado no seu quarto; e como resolveu imortalizar-se

escrevendo estas suas viagens. Parte para Santarém.

Assim, para fazer jus ao título, o escritor valoriza os matizes parti-culares da paisagem e dos tipos humanos. É o que ocorre logo ao final do primeiro capítulo, quando o escritor descreve a disputa entre os Ílha-vos e os Bordas-d’água. A disputa girava em torno da seguinte questão: quem era mais valente, mais bravo, os camponeses (Bordas-d´Água) ou os pescadores (Ílhavos)?. Os primeiros acreditavam-se melhores do que todos os demais: “por agarrar um toiro, cuidam que são mais que nin-guém, que não há quem lhes chegue”, ressente-se um pescador.

Vejamos o argumento do campino (em Portugal, significa guarda-dor de touros) e o desdobramento dessa contenda:

“— A força é que se fala”, tornou o campino, para estabelecer a questão

em terreno que lhe convinha: “A força é que se fala: um homem do cam-

po que se deita ali à cernelha [base do pescoço] de um toiro que uma

companhia inteira de varinos lhe não pegava, com perdão dos senho-

res, pelo rabo!...”

E reforçou o argumento com uma gargalhada triunfante, a qual

achou eco nos interessados circunstantes que já se tinham apinhado

a ouvir os debates.

Os Ílhavos ficaram um tanto abatidos; sem perderem a consciência da

sua superioridade, mas acanhados pela algazarra.

Parecia a esquerda de um parlamento quando vê sumir-se, no burburi-

nho acintoso das turbas ministeriais, as melhores frases e as mais fortes

razões dos seus oradores.

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Capítulo 02Almeida Garret

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Mas o orador ílhavo não era homem de se dar assim por derrotado.

Olhou para os seus, como quem os consultava e animava, com um

gesto expressivo, e voltando-se a nós, com a direita estendida aos seus

antagonistas:

“— Então agora como é de força, quero eu saber, e estes senhores que

digam, qual é que tem mais força, se é um toiro ou se é o mar.”

“Essa agora!...”

“— Queríamos saber.”

“— É o mar.”

“Pois nós que brigamos com o mar, oito e dez dias a fio numa tormenta,

de Aveiro a Lisboa, e estes que brigam uma tarde com um toiro, qual é

que tem mais força?”

Os campinos ficaram cabisbaixos; o público imparcial aplaudiu por esta

vez a oposição [...]. [GARRETT, 1987, Cap.I]

Logo, os Ílhavos levaram a melhor. Como você percebeu, enquanto escritor romântico Garrett procura retratar o ser humano dentro de um ambiente peculiar: daí o seu constante interesse pelo pitoresco, pelos tipos humanos que compõem o tecido social, em suma, pela “cor local”. Dito interesse também se exibe em uma passagem de Viagens, a nosso ver auto-explicativa:

Tenho visto alguma coisa do mundo, e apontado alguma coisa do que

vi. De todas quantas viagens porém fiz, as que mais me interessaram

sempre foram as viagens na minha terra (GARRET, 1997, p.254).

É útil lembrar que o desafio que se impunha aos escritores do perí-odo já não mais era a imitação dos modelos consagrados pela tradição clássica. No início do século XIX Ferdinand Denis, um dos primeiros historiadores da literatura, defendia que a questão da originalidade era fundamental para a criação de uma nova literatura: “Agora, que têm ne-cessidade de fundar a sua literatura, repito: ela deve ter caráter original.” Dita originalidade derivaria tanto do que Ferdinand Denis chamava a teinte local [a cor da paisagem local], como também da necessidade do escritor de marcar sua presença dentro da obra construída.

naturais de Ílhavo, cida-de portuguesa, situada no Distrito de Aveiro, região Centro e subre-gião do Baixo Vouga, em Portugal.

Résumé de l`histoire lit-téraire du Portugal, suivi de l`histoire littéraire du Brésil, (1826).

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2.3 Uma (auto-reflexiva) criação literária

A “poética da pessoalidade” de que falamos anteriormente sobre a poesia de Folhas Caídas também é válida para o romance-crônica Via-gens na minha terra. Logo nas primeiras linhas percebemos a identifica-ção do autor com o narrador e este com o personagem principal:

Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes, de Inverno,

em Turim, que é quase tão frio como Sampetersburgo — entende-se.

Mas com este clima, com este ar que Deus nos deu, onde a laranjeira

cresce na horta, e o mato é de murta, o próprio Xavier de Maistre, que

aqui escrevesse, ao menos ia até o quintal.

Eu muitas vezes, nestas sufocadas noites de Estio, viajo até à minha jane-

la para ver uma nesguita de Tejo que está no fim da rua, e me enganar

com uns verdes de árvores que ali vegetam sua laboriosa infância nos

entulhos do Cais do Sodré. E nunca escrevi estas minhas viagens nem

as suas impressões: pois tinham muito que ver! Foi sempre ambiciosa a

minha pena: pobre e soberba, quer assunto mais largo. Pois hei-de dar-

-lho. Vou nada menos que a Santarém: e protesto que de quanto vir e

ouvir, de quanto eu pensar e sentir se há-de fazer crônica (GARRET, 1997,

Cap.I).

Em tom de confidência ao leitor, o narrador revela uma vontade nas suas impressões e digressões. Elas formam um bom panorama dos assuntos que animavam a então cena moderna. O tom de confi-dência também se constata logo no início do terceiro capítulo, onde se lê que “a prosaica sinceridade do Autor destas viagens” talvez de-saponte o seu leitor:

Vou desapontar decerto o leitor benévolo; vou perder, pela minha fatal

sinceridade, quanto em seu conceito tinha adquirido nos dois primeiros

capítulos desta interessante viagem.

Pois que esperava ele de mim agora, de mim que ousei declarar-me

escritor nestas eras de romantismo, século das fortes sensações, das

descrições a traços largos e incisivos que se entalham na alma e entram

com sangue no coração? (Idem, 1997, Cap.3).

Para além dos traços românticos, aponta-se, como um traço mar-cante da modernidade da prosa de Garrett, o que se convencionou cha-

Nota do autor: “É visí-vel alusão ao popular e inimitável opúsculo de

Xavier de Maistre, Voyage autour de ma chambre,

que decerto foi principia-do a escrever em Turim, e que muitos supõem que

fosse concluído em S. Petersburgo”

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Capítulo 02Almeida Garret

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mar de auto-reflexividade Isto diz respeito aos comentários do narra-dor-autor sobre o fazer literário, o que faz com que as referências ao seu trabalho de escrita também se tornem conteúdo do texto.

A propósito do conceito de auto-reflexibilidade na literatura, Car-los Ceia afirma que um romance auto-reflexivo é aquele que se refere ao seu próprio processo de criação, em consequência, as digressões do autor de Viagens na Minha Terra funcionariam “como meio de interro-gação do acto de narrar”.

Nesse sentido, é curioso notar que, no capítulo V das Viagens, não sem uma boa pitada de ironia, o narrador exibe em que consiste o “estilo dum verdadeiro escritor romântico”:

Sim, leitor benévolo, e por esta ocasião te vou explicar como nós hoje

em dia fazemos a nossa literatura. Já me não importa guardar segredo,

depois desta desgraça não me importa já nada. Saberás pois, ó leitor,

como nós outros fazemos o que te fazemos ler.

Trata-se de um romance, de um drama — cuidas que vamos estudar a

história, a natureza, os monumentos, as pinturas, os sepulcros, os edifí-

cios, as memórias da época? Não seja pateta, senhor leitor, nem cuide

que nós o somos. Desenhar caracteres e situações do vivo da natureza,

colori-los das cores verdadeiras da história... isso é trabalho difícil, longo,

delicado, exige um estudo, um talento, e sobretudo tacto!... Não senhor:

a coisa faz-se muito mais facilmente. Eu lhe explico.

Todo o drama e todo o romance precisa de:

Uma ou duas damas, mais ou menos ingênuas.

Um pai — nobre ou ignóbil.

Dois ou três filhos, de dezanove a trinta anos.

Um criado velho.

Um monstro, encarregado de fazer as maldades.

Vários tratantes, e algumas pessoas capazes para intermédios e centros.

Ora bem; vai-se aos figurinos franceses de Dumas, de Eugène Sue, de

Vítor Hugo, e recorta a gente, de cada um deles, as figuras que preci-

sa, gruda-as sobre uma folha de papel da cor da moda, verde, pardo,

CEIA, Carlos. Verbetes “reflexividade” e “auto--reflexividade”. Disponível em: <http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/R/reflexividade.htm>. Acesso em: 23 abr. 2012. Leia-se: “podemos aplicar o con-ceito a todos os discursos auto-reflexivos: um poema sobre o estatuto literário do poema, um romance sobre o romance ou uma peça de teatro sobre o teatro. Em qualquer caso, para se atingir um grau de conformidade, é necessá-rio que o texto metaliterá-rio possua características bem definidas para a concretização da auto--reflexividade”.

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azul — como fazem as raparigas inglesas aos seus álbuns e scrapbooks;

forma com elas os grupos e situações que lhe parece; não importa que

sejam mais ou menos disparatados. Depois vai-se às crônicas, tiram-se

uns poucos de nomes e de palavrões velhos; com os nomes crismam-se

os figurões (GARRET, 1997, Cap. V).

E conclui:

— E aqui está como nós fazemos a nossa literatura original.

Se há um tom jocoso na leitura das técnicas narrativas de produ-ção literária que configuram a “originalidade” romântica, o mesmo se pode dizer da afirmação da imaginação criadora enquanto componente fundamental do programa estético do Romantismo. A nosso ver, a re-flexão garretiana sobre a textualidade romântica não deixa de aplicar-se ao próprio texto das Viagens.

Trata-se de uma narrativa que entremeia as descrições da pai-sagem, meditações filosóficas, reflexões sobre a cultura e a literatura, alusões intertextuais, tradução de poemas, tudo isso aliado a um sin-gular caso de amor.

Para tanto, mescla-se o tom de reportagem à crônica, o tom confes-sional das cartas à poesia lírica, resultando dessa miscelânea de registros discursivos o que foi chamado de romance histórico.

Mas, como veremos, o fragmentário dessa narrativa tecida de re-cortes e colagens ganha unidade de enredo graças à presença do narra-dor participante bem como graças à trágica história de Carlos e Joani-nha. Essa maneira de compor entrelaçando fragmentos dispersos num só conjunto não passa despercebida ao narrador de Viagens:

Neste despropositado e inclassificável livro das minhas Viagens, não é

que se quebre, mas enreda-se o fio das histórias e das observações por

tal modo, que, bem o vejo e o sinto, só com muita paciência se pode

deslindar e seguir em tão embaraçada meada.

Vamos pois com paciência, caro leitor; farei por ser breve e ir direito

quanto eu puder (GARRET, 1997, Cap.XXXII).

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2.4 Imaginação e sentimento

É sob o primado da imaginação e do sentimento que se escrevem as Viagens. O narrador anuncia que a “pintura” da sua escrita-viagem “deve ser a grandes e largos traços para ser romântica, vaporosa, dese-nhar-se no vago da idealidade poética”. Como dissemos, na prosa ro-mântica interessa, sobretudo, o ponto de vista do artífice, a sua visão pessoal do mundo. Coincide com o modo pelo qual o narrador-autor focaliza suas Viagens, a valoração das suas impressões diante do que vê, o que o leva a justificar-se:

Muito me pesa, leitor amigo, se outra coisa esperavas das minhas Via-

gens, se te falto, sem o querer, a promessas que julgaste ver nesse título,

mas que eu não fiz decerto. Querias talvez que te contasse, marco a

marco, as léguas da estrada? palmo a palmo, as alturas e larguras dos

edifícios? algarismo por algarismo, as datas da sua fundação? que te re-

sumisse a história de cada pedra, de cada ruína?... (GARRET, 1997, cap.29).

Em vez disso, não esconde que sua percepção das coisas é condi-cionada e dita à luz da imaginação criadora que povoa as Viagens na Minha Terra, de modo geral, e a apresentação da cidade de Santarém, em particular:

Santarém é um livro de pedra em que a mais interessante e mais poética

parte das nossas crônicas está escrita. Rico de iluminuras, de recortados,

de florões, de imagens, de arabescos e arrendados primorosos, o livro

era o mais belo e o mais precioso de Portugal. Encadernado em esmal-

te de verde e prata pelo Tejo e por suas ribeiras, fechado a broches de

bronze por suas fortes muralhas góticas, o magnífico livro devia durar

sempre enquanto a mão do Criador se não estendesse para apagar as

memórias da criatura.

Mas esta Nínive não foi destruída, esta Pompéia não foi submergida por

nenhuma catástrofe grandiosa. O povo, de cuja história ela é o livro, ain-

da existe; mas esse povo caiu em infância, deram-lhe o livro para brincar,

rasgou-o, mutilou-o, arrancou-lhe folha a folha, e fez papagaios e bone-

cas, fez carapuços com elas.

Não se descreve por outro modo o que esta gente chamada governo,

chamada administração, está fazendo e deixando fazer há mais de sé-

culo em Santarém.

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As ruínas do tempo são tristes, mas belas, as que

as revoluções trazem ficam marcadas com o

cunho solene da história. Mas as brutas degra-

dações e as mais brutas reparações da ignorân-

cia, os mesquinhos concertos da arte parasita,

esses profanam, tiram todo o prestígio.

Tal é a geral impressão que me faz esta terra.

(GARRET, 1997, Cap.XXIX)

2.5 Uns casos amorosos

Embora fragmentárias, tais Impressões de Viagem ganham unidade de enredo por

conta da relação amorosa entre Joaninha e Carlos. Primeiro, vamos ao anúncio dessa história:

assim, belas e amáveis leitoras, entendamo-nos: o que eu vou contar

não é um romance, não tem aventuras enredadas, peripécias, situações

e incidentes raros; é uma história simples e singela, sinceramente conta-

da e sem pretensão. (GARRET, 1997, Cap.X)

Em segundo lugar, observe como o narrador descreve o cenário:

O Vale de Santarém é um destes lugares privilegiados pela natureza, sí-

tios amenos e deleitosos em que as plantas, o ar, a situação, tudo está

numa harmonia suavíssima e perfeita: não há ali nada grandioso nem

sublime, mas há uma como simetria de cores, de sons, de disposição em

tudo quanto se vê e se sente, que não parece senão que a paz, a saúde,

o sossego do espírito e o repouso do coração devem viver ali, reinar ali

um reinado de amor e benevolência. As paixões más, os pensamentos

mesquinhos, os pesares e as vilezas da vida não podem senão fugir para

longe. Imagina-se por aqui o Éden que o primeiro homem habitou com

a sua inocência e com a virgindade do seu coração (Idem, Cap. X)

Depois, encadeado à apresentação do espaço, surge o desenho da personagem Joaninha:

Joaninha não era bela, talvez nem galante sequer no sentido popular e

expressivo que a palavra tem em português, mas era o tipo da gentileza,

o ideal da espiritualidade. Naquele rosto, naquele corpo de dezasseis

Rio Tejo, Lisboa, Portugal. 2012

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Capítulo 02Almeida Garret

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anos, havia, por dom natural e por uma admirável simetria de propor-

ções, toda a elegância nobre, todo o desembaraço modesto, toda a fle-

xibilidade graciosa que a arte, o uso e a conversação da corte e da mais

escolhida companhia vêm a dar a algumas raras e privilegiadas criaturas

no mundo (Idem, Cap.XII).

E, mais à frente:

Era branca, mas não desse branco importuno das louras, nem do bran-

co terso (correto?), duro, marmóreo das ruivas — sim daquela modesta

alvura da cera que se ilumina de um pálido reflexo de rosa de Bengala.

E doutras rosas, destas rosas-rosas que denunciam toda a franqueza de

um sangue que passa livre pelo coração à sua vontade por artérias em

que os nervos não dominam, dessas não as havia naquele rosto: rosto

sereno como é sereno o mar em dia de calma, porque dorme o vento...

Ali dormiam as paixões (Idem, Cap.XII).

Só então o narrador se detém nos traços que singularizam o rosto de Joaninha, não sem a devida atenção à sutileza dos detalhes:

Caíam dum lado e do outro da sua face gentil graciosos anéis; e o res-

to do cabelo, que era muito, ia entrançar-se, e enrolar-se com singela

elegância abaixo da coroa de uma cabeça pequena, estreita e do mais

perfeito modelo.

As sobrancelhas, quase pretas também, desenhavam-se numa curva de

extrema pureza; e as pestanas longas e assedadas faziam sombra na al-

vura da face.

Os olhos porém — singular capricho da natureza, que no meio de toda

esta harmonia quis lançar uma nota de admirável discordância!

Como poderoso e ousado maestro que, no meio das frases mais clássi-

cas e deduzidas da sua composição, atira de repente com um som agu-

do e estrídulo [som agudo] que ninguém espera e que parece lançar a

anarquia no meio do ritmo musical... os diletantes arrepiam-se, os pro-

fessores benzem-se; mas aqueles cujos ouvidos lhes levam ao coração a

música, e não à cabeça, esses estremecem de admiração e entusiasmo...

Os olhos de Joaninha eram verdes... não daquele verde descorado e trai-

dor da raça felina, não daquele verde mau e destingido que não é senão

azul imperfeito, não; eram verdes-verdes, puros e brilhantes como es-

meraldas do mais subido quilate.

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São os mais raros e os mais fascinantes olhos que há.

Eu, que professo a religião dos olhos pretos, que nela nasci e nela espero

morrer... que alguma rara vez que me deixei inclinar para a herética pra-

vidade (a correção) do olho azul, sofri o que é muito bem feito que sofra

todo o renegado... eu firme e inabalável, hoje mais que nunca, nos meus

princípios, sinceramente persuadido que fora deles não há salvação, eu

confesso todavia que uma vez, uma única vez que vi dos tais olhos ver-

des, fiquei alucinado, senti abalar-se pelos fundamentos o meu catoli-

cismo, fugi escandalizado de mim mesmo, e fui retemperar a minha fé

vacilante na contemplação das eternas verdades, que só e unicamente

se encontram aonde está toda a fé e toda a crença... nuns olhos sincera

e lealmente pretos.

Joaninha porém tinha os olhos verdes; e o efeito desta rara feição, naque-

la fisionomia à primeira vista tão discordante, era em verdade pasmosa.

Primeiro fascinava, alucinava, depois fazia uma sensação inexplicável e

indecisa que doía e dava prazer ao mesmo tempo: por fim pouco a pou-

co, estabelecia-se a corrente magnética tão poderosa, tão carregada, tão

incapaz de solução de continuidade, que toda a lembrança de outra coisa

desaparecia, e toda a inteligência e toda a vontade eram absorvidas.

Resta só acrescentar — e fica o retrato completo, um simples vestido

azul-escuro, cinto e avental preto, e uns sapatinhos com as fitas traçadas

em coturno. O pé breve e estreito, o que se adivinha da perna, admirável

(GARRET, 1997, Cap.XII).

E, por fim, as referências ao amador, Carlos. Trata-se do “primo, o companheiro, o único amigo da nossa Joaninha”, que “andava ele já no último ano de Coimbra e ia formar-se em leis”. O que ocorre no “me-morável ano de 1830”. Após a sua formatura, retorna a Santarém. O nar-rador anuncia que ele “veio triste, melancólico, pensativo, inteiramente outro do que sempre fora, porque era de gênio alegre e naturalmente amigo de folgar”. Logo o leitor toma conhecimento do que o deixava pensativo. Carlos havia tomado partido contra o regime absolutista re-presentado pelo rei D. Miguel:

mostrou-se entusiasta da causa liberal, e protestou que naquele ano, de

tal modo se tinha pronunciado em Coimbra e ainda em Lisboa, que só

uma pronta fuga o podia salvar... (GARRET, 1997, Cap.XVI)

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Importante notar que aqui se configura a identificação entre o au-tor e o personagem principal. Como Carlos, Garrett desafiou o regime absolutista em mais de uma ocasião, militou a favor da causa liberal e não poupou esforços na sua luta pelo aprimoramento da monarquia constitucional, o que lhe custou o exílio, como vimos anteriormente. Aliás,), Garrett deixa claro que sua literatura é um desdobramento lógi-co de suas convicções políticas: “A escola romântica foi tão manifesta re-ação contra os vícios e abusos dos ultra-clássicos, tal e tão perfeita como a do liberalismo contra a corrupta monarquia feudal”, tal como escreve na sua conferência intitulada Ao conservatório real (1843).

Nesse sentido, no capítulo XIX de Viagens, o narrador alude ao panorama histórico conturbado pela luta entre os “constitucionais” ou liberais e os partidários de D. Miguel ao longo da primeira metade do século XIX: “as tropas que se retiravam, as gentes que fugiam, e todo aquele confuso e doloroso espetáculo de uma retirada em guerra civil...”. Nesse cenário histórico o narrador situa a personagem Carlos, para en-tão se deter, “a largos traços”, no seu retrato:

O oficial... — Mas certo que as amáveis leitoras querem saber com quem

tratam, e exigem, pelo menos, uma esquiça (correto?) rápida e a largos

traços do novo autor que lhes vou apresentar em cena.

Têm razão as amáveis leitoras, é um dever de romancista a que se não

pode faltar.

O oficial era moço, talvez não tinha trinta anos; posto que o trato das ar-

mas, o rigor das estações, e o selo visível dos cuidados que trazia estam-

pado no rosto acentuassem já mais fortemente, em feições de homem

feito, as que ainda devia arredondar a juventude.

A sua estatura era mediana, o corpo delgado, mas o peito largo e forte

como precisa um coração de homem para pulsar livre; seu porte gentil

e decidido de homem de guerra desenhava-se perfeitamente sob o es-

pesso e largo sobretudo militar [...]. Uniforme tão militar, tão nacional, tão

caro a nossas recordações — que essas gentes, prostituidoras de quanto

havia nobre, popular e respeitado nesta terra, proscreveram do exército...

por muito português de mais talvez! [...] Não pude resistir a esta reflexão:

as amáveis leitoras me perdoem por interromper com ela o meu retrato.

Mas quando pinto, quando vou riscando e colorindo as minhas figu-

ras, sou como aqueles pintores da Idade Média que entrelaçavam nos

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seus painéis, dísticos de sentenças, fitas lavradas de moralidades e con-

ceitos... talvez porque não sabiam dar aos gestos e atitudes expressão

bastante para dizer por eles o que assim escreviam, e servia a pena de

suplemento e ilustração ao pincel...

Talvez: e talvez pelo mesmo motivo caio eu no mesmo defeito...

Será; mas em mim é irremediável, não sei pintar de outro modo.

Voltemos ao nosso retrato.

Os olhos pardos e não muito grandes, mas de uma luz e viveza imensa,

denunciavam o talento, a mobilidade do espírito — talvez a irreflexão...

mas também a nobre singeleza de um caráter franco, leal e generoso,

fácil na ira, fácil no perdão, incapaz de se ofender de leve, mas impossí-

vel de esquecer uma injúria verdadeira.

A boca, pequena e desdenhosa, não indicava contudo soberba, e mui-

to menos vaidade, mas sorria na consciência de uma superioridade in-

questionável e não disputada.

O rosto, mais pálido que trigueiro, parecia comprido pela barba preta e

longa que trazia ao uso do tempo. Também o cabelo era preto; a testa

alta e desafogada.

Quando calado e sério, aquela fisionomia podia-se dizer dura; a mais

pequena animação, o mais leve sorriso a fazia alegre e prazenteira, por-

que a mobilidade e a gravidade eram os dois pólos desse caráter pouco

vulgar e dificilmente bem entendido (GARRET, 1997, Cap.XX).

Mais uma vez notamos aquela constante formal típica do estilo garretiano, a saber, as digressões feitas de intrusões do narrador. Tam-bém aqui ele comenta a própria narrativa de modo auto-reflexivo: “Mas quando pinto, quando vou riscando e colorindo as minhas figuras...”. E não se pode negar que Garrett é um fino observador das sutilezas da psicologia humana.

É o que você conseguiu perceber na maneira de desenhar uma boca. Vale reler: “A boca, pequena e desdenhosa, não indicava contudo soberba, e muito menos vaidade, mas sorria na consciência de uma su-perioridade inquestionável”. Garrett não é só um fino observador das sinuosidades do coração humano, mas também possui a habilidade de as encarnar em pequenos traços, em um leve meneio dos lábios.

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Isto posto, apresentados o cenário, a inocente donzela, o impetuoso enamorado, o narrador refere o que considerou a mais terna e maviosa cena de amor que esse vale tivesse visto.

Alegra-se assim um triste dia de Novembro como raio do Sol transiente

e inesperado que lhe rompeu a cerração num canto do céu...

Tal era, e tal estava diante de Joaninha adormecida, o que não direi

mancebo porque o não parecia — o homem singular a quem o nome,

a história e as circunstâncias da donzela pareciam ter feito tamanha

impressão.

— Joaninha! — murmurou ele apenas a viu à luz ainda bastante do cre-

púsculo, Joaninha! — disse outra vez, contendo a violência da exclama-

ção: — É ela sem dúvida. Mas que diferente!... quem tal diria! Que graça!

que gentileza! Será possível que a criança que há dois anos?... Dizendo

isto, por um movimento quase involuntário lhe tomou a mão adormeci-

da e a levou aos lábios. Joaninha estremeceu e acordou.

— Carlos, Carlos! balbuciou ela, com os olhos ainda meio fechados, Car-

los, meu primo... meu irmão! era falso, diz: era falso? Foi um sonho, não

foi, meu Carlos?... E progressivamente abria os olhos mais e mais até se

lhe espantarem e os cravar nele arregalados de pasmo e de alegria.

— Foi, foi continuou ela; — foi sonho, foi um sonho mau que eu tive. Tu

não morreste... Fala à tua irmã, à tua Joana; diz-lhe que estás vivo, que

não és a sombra dele... Não és, não, que eu sinto a tua mão quente na

minha que queima, sinto-a estremecer como a minha... Carlos, meu Car-

los! diz, fala-me: tu estás vivo e são? E és... és o meu Carlos? Tu próprio,

não é já o sonho, és tu...

— Pois tu sonhavas? tu, Joana, tu sonhavas comigo?

— Sonhava como sonho sempre que durmo... e o mais do tempo que

estou acordada... sonhava com aquilo em que só penso... em ti.

— Joana!... prima... minha irmã!

E caiu nos braços dela; e abraçaram-se num longo, longo abraço — com

um longo, interminável beijo... longo, longo e interminável como um

primeiro beijo de amantes...

O abraço desfez-se, e o beijo terminou enfim, porque os reflexos do céu

na terra são limitados e imperfeitos como as incompletas existências

que a habitam (GARRET, 1997, Cap.XX)

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Literatura Portuguesa II

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Ao longo do capítulo XXI, prossegue o relato do enlevo, do em-bevecimento dos enamorados. Numa noite de primavera, com estrelas luzindo no céu azul, caminhavam de mãos dadas, alheios a tudo, “obe-decendo ao poder de um magnetismo superior e irresistível. Passavam, sem as ver e sem refletir onde estavam, por entre as vedetas de ambos os campos...”. Vedetas são as guaritas para vigia. Súbito, ouviram a adver-tência de uma sentinela que os interpela: “— Quem vem lá?”. E assim,

acordaram sobressaltados... viram-se na terra erma e bruta, viram a espa-

da flamejante da guerra civil que os perseguia, que os desunia, que os

expulsava para sempre do paraíso de delícias em que tinham nascido...

(Idem, Cap. XXI)

Notar a transição do lugar ameno, edênico, “à terra erma e bru-ta” envolta na guerra civil. Esse artifício não é gratuito, pois prepara o espírito do leitor para o que ocorreria muito mais adiante, no capítulo XXXII do romance.

Após um dos confrontos decisivos entre conservadores e liberais, marcado “pelo fuzilar das espingardas e pelo trovejar dos canhões”, Carlos é encontrado todo crivado de balas e coberto de sangue. Leva-do para um hospital de Santarém e posteriormente para o Convento de São Francisco, na mesma cidade, ele encontra os cuidados de uma “bela mulher de estatura não acima de ordinária, mas nem uma linha menos, envolvida nas amplíssimas pregas de um longo roupão de seda”. Era Carlota, o outro grande amor de sua vida, com o qual trocara cartas ardentíssimas. No desenho da personagem, o narrador destaca-lhe:

a infinita graça dos longos e ondados anéis louros do cabelo, e a pureza

simétrica de um rosto oval, clássico, perfeito, sem grande mobilidade de

expressão mas belo, belo, quanto pode ser belo um rosto em que pouco

da alma se reflecte, e em que a serena languidez de uns olhos azuis enti-

bia (inebria) e modera a energia do sentimento que não é menos profun-

do talvez, mas certamente se expande menos (GARRET, 1997,Cap. XXXII).

Carlota zela por sua saúde e, ao convalescer... Carlos a reconhece e tenta reconquistá-la com um longo discurso amoroso. Mas Carlota o evita, por saber do seu namoro com Joaninha. Claro, não se constrói

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Capítulo 02Almeida Garret

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uma narrativa de feições românticas sem recorrer ao artifício dos usu-ais triângulos amorosos!

Glosando o narrador de Viagens, talvez desapontemos decerto o leitor benévolo ao encerrarmos aqui essa breve contação das oscilações amorosas de Carlos, dos infortúnios passados por Joaninha e por aí afo-ra. Mas não o fazemos sem deixar o convite para que se leia a prosa lírica de Viagens na minha terra, cujo final não deixa de ser surpreendente.

Por certo, se os recortes que fizemos já foram suficientes para per-mitir a identificação de alguns dos componentes fundamentais da prosa romântica, ainda assim resta comentar um pouco mais sobre o cruza-mento de gêneros e registros discursivos de Viagens.

2.6 Olhos Verdes: reflexos da alma

Como se lê num espelho

Pude ler nos olhos seus!

Os olhos mostram a alma,

Que as ondas postas em calma

Também refletem os céus;

Mas, ai de mi!

Nem já sei qual fiquei sendo

Depois que os vi!

(Gonçalves Dias, 1857)

Se Garrett recusava estereótipos dizendo que não era clássico nem romântico e que não tinha “seita nem partido em poesia”, não deixa de ser curioso notar que o retrato de Carlos, identificado ao seu criador, é pintado como um autêntico “poeta romântico” (ver cap. XXIII de Via-gens). Vale observar, conforme a tópica dos olhos como janelas da alma de extração medieval e comum em diversos textos românticos, que o

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personagem brinda o leitor com “um fragmento de suas aspirações po-éticas”, inspirado nos seus vários amores. Leia-se:

Olhos verdes!...

Joaninha tem os olhos verdes...

Não se reflecte neles a pura luz do céu, como nos olhos azuis.

Nem o fogo — e o fumo das paixões, como nos pretos.

Mas o viço do prado, a frescura e animação do bosque, a flutuação

e a transparência do mar...

Tudo está naqueles olhos verdes.

Joaninha, porque (não seria “por que” ?) tens tu os olhos verdes?

Nos olhos azuis de Georgina arde, em sereno e modesto brilho, a luz

tranquila de um amor provado, seguro, que deu quanto havia de dar,

quanto tinha que dar.

Os olhos azuis de Georgina não dizem senão uma só frase de amor, sem-

pre a mesma e sempre bela: Amo-te, sou tua!

Nos olhos negros e inquietos de Soledade nunca li mais que estas pala-

vras: Ama-me, que és meu!

Os olhos de Joaninha são um livro imenso, escrito em caracteres móveis,

cujas combinações infinitas excedem a minha compreensão.

Que querem dizer os teus olhos, Joaninha?

Que língua falam eles?

Oh! para que tens tu os olhos verdes, Joaninha?

A açucena e o jasmim são brancos, a rosa vermelha, o alecrim azul...

Roxa é a violeta, e o junquilho cor de ouro.

Mas todas as cores da natureza vêm de uma só, o verde.

No verde está a origem e o primeiro tipo de toda a beleza.

As outras cores são parte dela; no verde está o todo, a unidade da for-

mosura criada.

Após a leitura do poema em prosa, sugerimos que

se faça uma pesquisa on-line, por meio do link

“imagens”, para melhor visualizar as flores e suas

cores mencionadas no texto.

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Capítulo 02Almeida Garret

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Os olhos do primeiro homem deviam de ser verdes.

O céu é azul...

A noite é negra...

A terra e o mar são verdes...

A noite é negra mas bela: e os teus olhos, Soledade, eram negros e belos

como a noite.

Nas trevas da noite luzem as estrelas que são tão lindas... mas no fim de

uma longa noite quem não suspira pelo dia?

E que se vão... oh! que se vão enfim as estrelas!...

Vem o dia... o céu é azul e formoso: mas a vista fatiga-se de olhar para ele.

Oh! o céu é azul como os teus olhos, Georgina...

Mas a terra é verde: e a vista repousa-se nela, e não se cansa na varieda-

de infinita de seus matizes tão suaves.

O mar é verde e flutuante... Mas oh! esse é triste como a terra é alegre.

A vida compõe-se de alegrias e tristezas...

O verde é triste e alegre como as felicidades da vida.

Joaninha, Joaninha, porque tens tu os olhos verdes?...

(GARRETT, 1997, Cap.XXIII]

Este fragmento textual, que aparece inserido na prosa de Viagens, calha à perfeição para ilustrar a confluência de diferentes gêneros literá-rios no corpo do texto. Para Ângela Varela, essa passagem possui traços de uma cantiga de amor:

constituindo-se como poema, mas não pretendendo dispor-se em ver-

so, ainda se aproxima dos processos versificatórios pela abundância de

frases-linha [e inacabadas, suspensivas, muitas até apenas esboçadas],

representando assim uma variedade lírica que se insufla na prosa poli-

mórfica das Viagens. (VARELA, 1999, p. 274).

Nesse sentido, conclui-se que a “originalidade” do texto de Garrett se alimenta justamente desse vigor combinatório de elementos.

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Literatura Portuguesa II

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2.7 Imagens da nação

Resta dizer que o realce à cor local se conjuga ao desenho da per-sonagem Joaninha.

Observe que nos primeiros versos-frase desse poema em prosa a contemplação da paisagem do “poeta romântico” se projeta nos olhos da amada: “o viço do prado, a frescura e animação do bosque, a flutuação, e a transparência do mar...”. Deste modo, os olhos verdes de Joaninha ser-vem de suporte para a encarnação da natureza edênica da paisagem, no caso, o vale de Santarém. O que nos leva a corroborar a linha de leitura de Ângela Varela, para a qual “tanto a paisagem como a personagem Joaninha ilustram a tese da obra, a saber, a idealização dos genuínos valores nacionais” (VARELA, 1999, p. 265).

Assim, com o triste fim de Joaninha se compreende porque as viagens são “simbólicas”, como ficou anunciado no início do ro-mance. À sua morte se associaria a própria decadência da pátria, glosando Camões, mergulhada numa apagada e vil tristeza. Acaso Carlos não representaria o oposto de Joaninha, a decadência ou desvalorização desse ideal, o pragmatismo que vence o “espiritua-lismo”? Basta lembrar-se de como o narrador havia lhe desenhado, no cap. XX, o caráter:

a mobilidade e a gravidade eram os dois pólos desse carácter.

Ao longo de Viagens, dita “mobilidade” se exibe tanto na volubili-dade das suas relações amorosas quanto, e de modo mais surpreenden-te, na sua mudança de posição política. No final do texto se lê que ele não só “virou a casaca” como também recebeu o título nobiliárquico de Barão, em consequência passou a adotar o conservadorismo retrógrado que antes combatera com tanto ardor.

Em resumo, nessa escrita-viagem o culto da imaginação e sensibili-dade pessoais alia-se às reflexões sobre a questão nacional. Nas palavras de Eduardo Lourenço, o núcleo da pulsão literária determinante em Garrett passa pela reflexão de Portugal enquanto realidade histórico-

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Capítulo 02Almeida Garret

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-moral. A partir de Garrett surgiu um projeto novo de problematizar a relação do escritor com a realidade específica e autônoma que é a pátria. E como o laço próprio que une o escritor, enquanto tal, a sua pátria é a escrita, a problematização dessas relações é antes de tudo a problemati-zação da escrita, nova ou inovadora maneira de falar a Pátria.

Noutras palavras, Teresa Cristina Cerdeira da Silva afirma que a contrapelo das viagens celebradas em Os Lusíadas, que fez de Por-tugal um cais de partida rumo “ao largo oceano”, Garrett inaugura a proposta de se navegar “Tejo-arriba”, para ir ao encontro do “quintal português”. Em vez das naus épicas que se lançaram por mares nunca dantes navegados, a sua viagem ocorre num simples barco a vapor e acaba por assinalar o fim da epopeia dos mares em nome de uma terra ainda por descobrir:

O barco vai conhecer o Portugal interior, vai acompanhar o narrador na

parte inicial de sua viagem a Santarém, viagem pequena, certamente,

se pensarmos em geografia, viagem sem glória, sem adasmatores nem

fogos de santelmo. E, no entanto, viagem importante, para dentro de

um Portugal a reconhecer, para dentro da cultura, para dentro das tradi-

ções, para dentro da História [Disponível em: <http://www.letras.ufmg.

br/cesp/textos/(1999)01-De%20viagens.pdf>. Acesso em: 22 abr. 2012].

Deixemos as últimas palavras com Machado de Assis, que leu as Viagens no calor da hora, para o qual Almeida Garrett, o “maior enge-nho depois de Camões”, soube “juntar em seus livros a alma da nação com a vida da humanidade”:

Garrett, posto fosse em sua terra o iniciador das novas formas, não foi

copista delas, e tudo que lhe saiu das mãos trazia um cunho próprio e

puramente nacional. Pelo assunto, pelo tom, pela língua, pelo sentimen-

to era o homem da sua pátria e do seu século.

Leia mais!

Para um maior aprofundamento do assunto, recomendamos a leitura do capítulo II, intitulado Almeida Garrett, publicado em História da Lite-ratura Portuguesa, de António José Saraiva e Óscar Lopes (Porto: Porto Editora, 2001). Nele você poderá estudar mais sobre a complexidade de

Como se lê no ensaio Da literatura como inter-pretação nacional (2000, p.81-82) de Eduardo Lourenço.

Vale a pena ler o ensaio de Teresa Cristina Cerdeira, intitulado De viagens e viajantes: Camões, Garrett e Saramago. O texto está disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/cesp/textos/(1999)01-De%20viagens.pdf>. Acesso em: 22 abr. 2012.

Você pode ler o texto de Machado de Assis no sítio disponível em: <http://www.literatura-brasileira.ufsc.br/busca/conteudo/>. Acesso em: 23 abr. 2012.

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Literatura Portuguesa II

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sua obra, desde a sua formação clássica até a sua guinada em direção à literatura romântica.

Você pode obter mais informações biográficas e referências sobre as obras dos autores trabalhados no curso de Literatura Portuguesa II, con-sultando o Projecto Vercial, disponível em: <http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/vercial.htm>. Ou no site <http://www.bibvirt.futuro.usp.br/textos>, no qual você encontrará textos literários completos e informa-ções sobre a vida e obra dos escritores mencionados.

Não seria de todo errôneo afirmar que a leitura mais recente sobre tex-tualidade garrettiana, em particular, e sobre um panorama dos textos incontornáveis da literatura moderna e contemporânea tenha saído da lavra de Annabela Rita, professora integrada ao CLEPUL (Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas da Faculdade de Letras da Universida-de de Lisboa). Recomendo a leitura do seu livro intitulado Paisagens e Figuras, lançado pela Esfera do Caos, em 2011, em especial o capítulo “Almeida Garrett, Viagens na minha terra (1846)”, pp.40-48), disponí-vel na nossa Webteca. O mesmo trata das linhas de força do programa literário garrettiano, em especial sua influência no ideário da Geração de 70, também chamada “Realista”. Esta sugestão não é gratuita pois vem justamente alertá-la(lo) uma vez mais para a cilada didática de se rotular os autores e as obras dentro de escolas literárias dadas de ante-mão. Por conta disso, em vez de “escolas” consideramos mais oportuno pensarmos em “movimentos literários”.

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Capítulo 03O (ultra) romantismo em Portugal

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O (ultra) romantismo em Portugal 

OBJETIVOS: Conhecer, compreender e interpretar os aspectos fundamen-

tais da narrativa ficcional portuguesa de meados do século XIX a partir do

estudo da prosa de Camilo Castelo Branco. 

3.1 Um romantismo outro, exacerbado.

Se o primeiro momento do Romantismo português caracterizou-se e foi marcado por escritores do porte de Almeida Garrett e Alexandre Herculano, que, embora educados na escola neoclássica, contribuíram com textos de cunho teórico e literário para a afirmação do movimento romântico, ao segundo momento se convencionou chamar de “Ultra-romantismo”, sendo Camilo Castelo Branco o escritor de maior destaque.

A rigor, não se pode pensar esses dois mo[vi]mentos como opostos entre si. Embora controversa a delimitação de Romantismo e Ultra-Romantismo, nas palavras de Maria Leonor Machado de Sousa

Controvérsias à parte, o fato é que em meados do séc. XIX se levou ao exagero algumas temáticas caras ao Romantismo, resultando numa supervalorização do idealismo amoroso elevado a única condição de realização das expectativas pessoais e a predileção pela ambiência noturna e fúnebre. Dentre os textos canônicos da literatura chamada ultra-romântica encontram-se o poema O noivado do sepulcro, de Soares Passos (1826-1860) (Leia esta balada em http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/passos.htm, acesso 25 de abr. 2012. E, para atestar a popularidade deste poema ainda hoje, vale conferir a interpretação deste poema por Adélia Augusta, disponível em http://www.youtube.com/watch?v=RS2UFU13h_Q&feature=related. O vídeo foi filmado no Concelho de Vimioso, em Portugal, em colaboração com a Biblioteca Municipal de Vimioso e com o apoio do Direcção Geral do Livro.) e, na prosa, Amor de Perdi-ção, de Camilo Castelo Branco (1825-1890), tema deste Capítulo. 

3

não podemos fugir à caracterização de “ultra-ro-mântico” que os próprios contemporâneos aplicaram ao estilo excessivo tão em voga, sobretudo nos jornais literários da época. Numa tentativa de rigor na definição cronológica destes períodos, devemos adotar a opinião de Jacinto Prado Coelho, segundo o qual “mais convirá conside-rar ‘romantismo’ e ‘ultra-ro-mantismo’ duas facetas pa-ralelas, simultaneamente, de um movimento único”. Este ponto de vista justifi-ca-se pelo fato indiscutível de que nos chamados poetas românticos, como Castilho, Garrett e Hercu-lano, podemos encontrar tiradas que acompanham e mesmo ultrapassam as dos autores claramente representativos da fase final do Romantismo (SOUSA,“Pós-modernismo”. In: CEIA, Carlos (Coord.). E-Dicionário de Termos Literários. Disponível em: <http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/P/posmo-dernismo.htm>. Acesso em 21 abr. 2012. ISBN: 989-20-0088-9.)

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3.2 Camilo Castelo Branco: um mestre da novela passional

Camilo Castelo Branco, nascido em Lisboa, no dia 16 de março de 1825, foi um dos mais produtivos escritores da Literatura Portuguesa. Entre 1851 e 1886, escreveu aproximadamente trinta e oito obras, entre novelas e romances. Sua biografia é uma das mais polêmicas dentre os escritores por-tugueses de todos os tempos. É comum afirmar que a vida de Camilo é uma intensa novela camiliana! Teve uma vida muito atribulada. Filho bastardo, casou-se aos quinze anos. Abandonou a mulher e uma filha. Foi espancado por causa de um artigo de jornal. Raptou uma menor e foi preso. Depois se apaixonou por uma freira; tentou o seminário; abandonou-o; andou por di-versas cidades. Cometeu adultério. Apaixonou-se por Ana Plácido, casada; raptou-a; foi preso com ela por um ano. Contraiu sífilis e aos poucos foi per-dendo a visão. Teve que vender sua preciosa biblioteca para quitar dívidas.

Depois de muito ímpeto e tempestade; depois de 137 obras publicadas, depois de confirmada a cegueira definitiva, suicida-se: “Era necessário ser desgraçado para não contradizer os fados da família”, afirmava. Sendo obrigado a escrever para sobreviver, produziu uma obra extensa e variada, nem toda ela sob a rubrica do [ultra] romantismo, pois também publicou textos com características do chamado “Realismo”. Também se dedicou ao jornalismo e à crítica literária, acrescente-se.

A Camilo Castelo Branco se deve a fixação do mais típico gênero literário do Romantismo, a saber, a novela.

Vale lembrar, conforme afirmam os teóricos da literatura, em sen-

tido amplo a novela situa-se a meio caminho entre o romance e o

conto, sendo menos extensa do que o primeiro, mais longa que o

segundo. A novela pode ser identificada pelo critério quantitati-

vo; em geral, possui de cem a duzentas páginas, ou mais de vinte

mil palavras, mas, sobretudo, pode ser reconhecida pelo aspecto

formal, pois o narrador tem maior destaque e ocorre a valoriza-

ção de um só evento no plano geral do texto.

Camilo Castelo Branco

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Capítulo 03O (ultra) romantismo em Portugal

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Dentre os elementos que contribuíram para o sucesso das novelas camilianas, pode-se mencionar, com José de Nicola, a exploração do contraste entre a mulher fatal e a mulher-anjo; os obstáculos do amor e a devoção dos personagens aos mandamentos da “religião do amor”, de acordo com um modelo de servidão amorosa herdado da poética trovadoresca medieval. Caso de Amor de Perdição, de 1862. Sua publi-cação, graças à acirrada polêmica gerada em torno da obra, acabou por consagrar o autor. 

3.3 Amor de Perdição

“Não serias nada sem o estímulo do meu amor.”

[Camilo Castelo Branco. Amor de Perdição,1994, p.109.]

Em Amor de Perdição, Camilo Castelo Branco brinda o leitor com algumas constantes da novela passional, que mais não são que variações de um mesmo tema. Tudo passa pelo tema do amor impossível e supe-rior ou marginal aos preconceitos sociais. Daí o tema do amor-devoção, do amor impetuoso, realizado à margem e à revelia do casamento, como força capaz de enfrentar as convenções sociais. Daí o fatalismo do desti-no a cujas garras os protagonistas não escapam. Os protagonistas, geral-mente um casal apaixonado, enfrentam situações dramáticas originadas do conflito entre os valores afetivos e as convenções sociais e morais.

Como se sabe, nenhum resumo substitui a leitura de um texto literário. Porém, como estamos interessados na reflexão sobre a exploração dos processos de efabulação caracterizadores de um estilo de época, passemos ao plano geral da novela.

A história de Amor de Perdição é inspirada na biografia de um tio de Camilo, como se lê no prefácio da obra. Narra os insucessos amorosos entre Simão Botelho e Teresa de Albuquerque, cuja paixão, conforme o título da novela, faz deles os novos penitentes do amor. Trata-se da reedição do tema do amor impossível, a la Romeu e Julieta. As famílias Botelho e Albuquerque eram inimigas. Qual o motivo? Domingos Bote-

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lho, pai de Simão e corregedor de Viseu (cidade portuguesa, local onde se passa o romance), dera sentenças desfavoráveis a Tadeu de Albuquer-que, pai de Teresa.

Simão e Teresa, perdidamente apaixonados, namoram às escondidas por três meses. Ao longo da novela, este amor é representado como única expectativa de realização pessoal. Ao final, Teresa confessa numa de suas cartas endereçadas a Simão: “Não serias nada sem o estímulo do meu amor” (Conclusão). Se a força avassaladora do amor-devoção conduz os protagonistas da novela à perdição, antes disso ele possui força regeneradora. Caso da extraordinária transformação de Simão Botelho.

No início da novela, ou do romance, como querem alguns, Simão é apresentado como um jovem de forte compleição, cujos quinze anos “têm aparência de vinte”. Irônico, arruaceiro, estudante indisciplinado, gastava a sua “mesada” com armas e folias. Numa carta ao pai, o seu irmão mais velho, de 22 anos, queixou-se de não poder mais conviver com ele, temeroso do gênio sanguinário dele, que “a cada passo se vê ameaçando a vida”. Contudo, ao apaixonar-se por Teresa ele surpreende a todos com uma verdadeira transfiguração: 

As companhias da ralé desprezou-as. Saía de casa raras vezes, ou só, ou

com a irmã mais nova, sua predileta. O campo, as árvores e os sítios mais

sombrios e ermos eram o seu recreio (BRANCO, 1994, cap. I).

       E, mais adiante: 

Simão Botelho amava. Aí está uma palavra única, explicando o que pa-

recia absurda reforma aos dezessete anos. Amava Simão uma sua vizi-

nha, menina de quinze anos, rica herdeira, regularmente bonita e bem-

-nascida. Da janela do seu quarto é que ele a vira pela primeira vez, para

amá-la sempre. Não ficara ela incólume da ferida que fizera no coração

do vizinho; amou-o também, e com mais seriedade que a usual nos

seus anos (BRANCO, 1994, cap. II).

Assim, como se lê ao final do segundo capítulo, Simão é pintado como 

o acadêmico, convertido aos deveres, à honra, à sociedade e a Deus,

pelo amor.

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Capítulo 03O (ultra) romantismo em Portugal

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Vale a pena ler também a cena descrita pelo autor sobre o momento em que o “amor discreto e cauteloso” é descoberto pelos pais de Teresa: 

estava Simão Botelho despedindo-se da suspirosa menina, quando su-estava Simão Botelho despedindo-se da suspirosa menina, quando su-

bitamente ela foi arrancada da janela. O alucinado moço ouviu gemidos

daquela voz que, um momento antes, soluçava comovida por lágrimas

de saudade. Ferveu-lhe o sangue na cabeça; contorceu-se no seu quar-

to como o tigre contra as grades inflexíveis da jaula. Teve tentações de

se matar, na impotência de socorrê-la. As restantes horas daquele dia

passou-as em raivas e projetos de vingança (BRANCO, 1994, cap. II)

Na sequência, Simão parte para Coimbra e Teresa é enviada a um convento por não aceitar o casamento com o seu primo Baltasar Coutinho, imposto pela família. Contudo, Simão retorna a Viseu decidido a resgatar Teresa: esconde-se na casa do ferreiro João da Cruz, amigo da sua família. João da Cruz, personagem de origem popular, possui uma filha, Mariana, que ajuda na correspondência entre Simão e Teresa.

Ocorre que Mariana se apaixona por Simão, embora jamais se declare a ele. Em silêncio, cultiva a sua paixão, onde se conjugam o amor e sofrimento: 

O que tu sofrias, nobre coração de mulher pura! Se o que fazes por esse

moço é gratidão ao homem que salvou a vida de teu pai, que rara virtu-

de a tua! Se o amas, se por lhe dar alívio às dores tu mesma lhe desem-

peces o caminho por onde te ele há de fugir para sempre, que nome

darei ao teu heroísmo! Que anjo te fadou o coração para a santidade

desse obscuro martírio? (BRANCO, 1994, Cap. IX).

Nas palavras de Eduardo Lourenço, esse “amor sem esperança mas não desesperado, humilde e infinito” de Mariana define com perfeição o próprio do ‘amor à maneira portuguesa’.

Curioso notar, quanto ao foco narrativo ou ponto de vista, que a narrativa é realizada em terceira pessoa por um narrador onisciente que revela ao leitor os sentimentos mais intensos e profundos das persona-profundos das persona-gens. Um dos recursos desse mergulho na consciência dos personagens consiste na apresentação das cartas trocadas entre Simão e Teresa. Leia-se: 

Para Maria Lourdes de Soares, em Eduardo Lourenço e as evidências do silêncio que grita, à portuguesa, a propósi-to de Simão, Mariana e Teresa, Camilo reinventa o lugar-comum: “Trans-formando a díade (a dos casais paradigmáticos da linhagem dos mártires de amor, como Tristão e Isolda, Romeu e Julieta) em tríade, Mariana, com o seu silencioso grito, espécie de paixão implo-dida, instaura a diferença portuguesa” (SOARES, 2001, p. 131).

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É necessário arrancar-te daí — dizia a carta de Simão. — Esse convento

há de ter uma evasiva. Procura-a, e dize-me a noite e a hora em que

devo esperar-te. Se não puderes fugir, essas portas hão de abrir-se dian-

te da minha cólera [...]. És minha! Não sei de que me serve a vida, se a

não sacrificar a salvar-te. Creio em ti, Teresa, creio. Ser-me-ás fiel na vida

e na morte. Não sofras com paciência; luta com heroísmo. A submissão

é uma ignomínia quando o poder paternal é uma afronta. Escreve-me a

toda hora que possas. Eu estou quase bom. Dize-me uma palavra, cha-

ma-me, e eu sentirei que a perda do sangue não diminui as forças do

coração (BRANCO, 1994, Cap.VIII).

Em resposta às cartas de Simão, Teresa escreve: 

A vida era bela, era, Simão, se a tivéssemos como tu ma pintavas nas

tuas cartas, que li há pouco! Estou vendo a casinha que descrevias de-

fronte de Coimbra, cercada de árvores, flores e aves. A tua imaginação

passeava comigo às margens do Mondego, à hora pensativa do escure-

cer. Estrelava-se o céu, e a Lua abrilhantava a água. Eu respondia com a

mudez do coração ao teu silêncio e, animada por teu sorriso, inclinava

a face ao teu seio, como se fosse ao de minha mãe. Tudo isto li nas tuas

cartas; e parece que cessa o despedaçar da agonia enquanto a alma se

está recordando. (BRANCO, 1994, Cap. Conclusão).

Por conta da recusa de Teresa em aceitar o casamento com Baltasar, e com a intenção de afastá-la de vez de Simão, os pais a destinam a outro convento, cuja prioresa era desconhecida de Teresa. Porém, na hora de sua mudança, “noite alta”, quando Simão tentava resgatá-la, surge o “vilão” da história, Baltasar. Duelam. Simão o vence e Baltasar, ferido mortalmente com um tiro na cabeça, cai aos pés de Teresa. Simão é detido. Teresa é enviada para o convento de Monchique, localizado na cidade de Porto.

Aflito, em constantes sobressaltos, ao cabo de dezenove meses de cárcere Simão constata que o amor “leva ao abismo pelo caminho da sonhada felicidade”. Restavam-lhe duas situações angustiosas: ser conduzido ao patíbulo (à forca) ou ao exílio. Graças à interferência de seu pai, Domingos Botelho, Simão é penalizado com um degredo de 10 anos nas Índias. Mariana decide acompanhar o amado.

É o clímax da novela, pois a partir daí tudo se precipita!

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Capítulo 03O (ultra) romantismo em Portugal

69

Na hora da partida da nau, do alto de um mirante, Teresa vê a passagem do navio, acena para Simão com um lenço e... “a claridade dos olhos se lhe apagou”. O mesmo ocorre com Simão que, tomado de febre intensa, após agonizar murmurando passagens das cartas de Teresa, morre em plena viagem. Seu corpo é lançado da nau, mas “antes que o baque do cadáver se fizesse ouvir na água, todos viram, e ninguém já pôde segurar Mariana, que se atirara ao mar”: 

Viram-na num momento, bracejar, não para resistir à morte, mas para

abraçar-se ao cadáver de Simão, que uma onda lhe atirou aos braços. O

comandante olhou para o sítio donde Mariana se atirara, e viu, enleado

no cordame, o avental, e à flor da água, um rolo de papéis, que os ma-

rujos recolheram na lancha. Eram, como sabem, a correspondência de

Teresa e Simão (BRANCO, 1994, Cap. Conclusão).

3.4 Um contador nato de histórias goza o prazer da aventura no mundo da imaginação

Embora muito breve, a contação da história de Amor de Perdi-ção nos permite caracterizar algo da chamada “sensibilidade ultra--romântica”, avessa aos primeiros movimentos do Romantismo por-tuguês, que como vimos, apelava para a busca da feição nacional, mais “combativo” portanto. Comecemos observando os espaços se-lecionados, preferencialmente sob o que chamamos de o “domínio do noturno”. Note que os ambientes prediletos do enamorado Simão eram “os sítios mais sombrios e ermos”. Isso nos remete às palavras de Guinsburg e Rosenfeld, para os quais o termo “romântico” surge em meados do século XVII, 

sendo-lhe dado inicialmente um sentido pejorativo, pois, em meio a

um mundo clássico, destina-se a qualificar um gênero de relato ficcional

meio disparatado, absurdo, cheio de lances heróicos e fantásticos, onde

há muitas peripécias de amor e aventura. (...) Mas, pouco a pouco, o termo

começa a impor-se e a perder sua conotação negativa. Uma lenta trans-

formação do gosto deixa de favorecer as figuras bem proporcionadas e as

vistas bucólicas, para destacar, por exemplo, as solitárias, selvagens e me-

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Literatura Portuguesa II

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lancólicas paisagens que recebem o nome de “românticas” (GUINSBURG;

ROSENFELD, 2005, p. 265).

A paisagem que se contrapõe ao locus amoenus convencionou-se chamar de locus horrendus, por melhor combinar com as “incertas e vacilantes oscilações do espírito”, e com a onda de sentimentalismo burguês, intensamente emotiva, que se espraia pelo século XVIII e pri-meira metade do século XIX. O pranto é geral, afirmam Guinsburg e Rosenfeld. Onda que se espraia também ao texto Amor de Perdição, a começar pelo prefácio no qual o autor busca comover a leitora, o leitor, apelando para o tom melodramático. A propósito da triste sina do seu protagonista, inspirado num familiar, Camilo Castelo Branco escreve na Introdução: 

Dezoito anos! O amor daquela idade! A passagem do seio da família, dos

braços da mãe, dos beijos das irmãs, para as carícias mais doces da vir-

gem, que se lhe abre ao lado como flor da mesma sazão e dos mesmos

aromas, e à mesma hora da vida! Dezoito anos!... E degredado da pátria,

do amor e da família! Nunca mais o céu de Portugal, nem mãe, nem

reabilitação, nem dignidade, nem um amigo!... É triste!

O leitor decerto se compungia; e a leitora, se lhe dissessem em menos

de uma linha a história daqueles dezoito anos, choraria!

Amou, perdeu-se e morreu amando.

É a história. E história assim poderá ouvi-la a olhos enxutos a mulher,

a criatura mais bem formada das branduras da piedade, a que por

vezes traz consigo do Céu um reflexo da divina misericórdia?! Essa, a

minha leitora, a carinhosa amiga de todos os infelizes, não choraria se

lhe dissessem que o pobre moço perdera a honra, reabilitação, pátria,

liberdade, irmãs, mãe, vida, tudo, por amor da primeira mulher que o

despertou do seu dormir de inocentes desejos?!

Chorava, chorava! Assim eu lhe soubesse dizer o doloroso sobressalto

que me causaram aquelas linhas, de propósito procuradas, e lidas com

amargura (BRANCO, 1994, p.9).

No capítulo dedicado a Camilo Castelo Branco, publicado recentemente em Paisagens. Figuras, Anna Bela Rita situa a obra não mais dentro do primeiro romantismo português, revolucionário, so-

Caberia perguntar o porquê desse culto às

lágrimas, à sensibilidade? Saire e Löwe afirmam que

“o amor como emoção pura” e o entusiasmo

cavalheiresco, por exten-são, que o ethos medieval

surgem como crítica à racionalidade e ao capita-

lismo, em consequência, pensam o romantismo na

contramão da moderni-dade, ou como sua crítica.

Lugar ameno, sereno, próprio para o deleite

amoroso, típico da arte poética clássica.

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Capítulo 03O (ultra) romantismo em Portugal

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cial e politicamente interventivo, idealista, mas sim dentro de um romantismo outro, esvaziado de uma função interventiva e mais in-teressado na valorização do sentimentalismo amoroso. Embora lon-ga, vale a pena a citação:

O Amor de Perdição (1862) será, de facto, a obra mais emblemáti-

ca deste Romantismo, quer pelo ciclo de amor e morte que impõe

esta como via de sublimação daquele, sugerindo-o realizado no en-

contro no além dos apaixonados separados pela oposição familiar,

quer pelo feminino mediador, por amor, do amor que impede o seu,

quer pela identificação entre a figura do narrador-autor e a do prota-

gonista, numa relação distanciada no tempo e ancorada na mesma

prisão onde a clausura por motivação passional irmana diferentes

membros de uma mesma família (como irmana e duplica a histó-

ria dos amorosos, emoldurando-a), quer pelo modo como o incipit textual promove uma leitura empaticamente emocional da história

amorosa, quer ainda, pelo facto de a reiteração do drama passional

na mesma família ser informada pelo eco do signo da tragédia. O sig-

no gera-se no signo: da secura do registo prisional de outrora nasce

o signo ficcional emocionado, revoltado, denunciando os “homens

feitos feras” e defendendo o amor impedido” (2011, p.51).

Contudo, se Amor de Perdição tenha sido louvado por ser “um narrador de histórias românticas ou romanescas com lances empol-gantes e situações humanas comoventes”, dentre as críticas ao autor, afirma-se que ao ceder aos padrões impostos pelo gosto burguês, Ca-milo Castelo Branco acabou caindo nas armadilhas próprias da novela passional, tais como a inverossimilhança, a pobreza psicológica, a fa-cilidade na sugestão de atmosferas de terror e mistério e de produzir mera literatura de entretenimento.

Contudo, como assinala o crítico brasileiro Massaud Moisés, Camilo possui um “dom superior” que não se pode esquecer: 

o de ser um contador nato de histórias, dono de um estilo todo seu, e

que fez escola, de quem conhece os segredos da Língua, tanto a erudita,

como a popular ou regional. Muito do mérito e do fascínio camiliano,

— fascínio persistente ainda hoje, como atesta o grande número de es-

tudiosos e admiradores de sua obra, — vem daí (MOISÉS, 1988, p. 144).

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Literatura Portuguesa II

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Afora encarar a literatura como profissão, Camilo defende, em tom de profissão de fé no prefácio à segunda edição de Amor de Perdição (1865), que o texto literário “tem de firmar sua duração em alguma es-pécie de utilidade, tal como o estudo da alma, ou a pureza do dizer”. Como conclusão, tomamos de empréstimo as palavras de Saraiva e Ló-pes, que assinalam as qualidades de Amor de Perdição: 

uma grandeza trágica de paixões e situações; uma narração precisa e

rápida das acções decisivas; caracteres psicológicos secundários intei-

ramente subordinados às necessidades de dignificação do conflito cen-

tral, mas por vezes realistas e enérgicos, sobretudo quando extraídos do

meio popular (João da Cruz, Mariana, por exemplo); diálogo geralmente

eivado de retórica sentimental, mas por vezes de grande nobreza trá-

gica nas personagens principais, e extraordinariamente vivo, colorido,

incisivo nos tipos populares (SARAIVA; LÓPES, 2001, p. 785).

Resta dizer, como fizemos anteriormente com Almeida Garrett que não se pretende emoldurar didaticamente Camilo Castelo Branco dentro de um estilo de época, pois se trata de um escritor “ideologicamente flutuante” (conforme Jacinto do Prado Coelho), cuja textualidade é complexa demais para ser definida por um “ismo” redutor.

Embora, como vimos, Amor de Perdição calha à perfeição para o es-tudo das constantes da novela passional bem ao gosto (ultra)romântico. Assim, em matéria de afinidades eletivas e postura estética, Camilo Cas-telo Branco está mais para Almeida Garrett do que para Eça de Queirós. Veremos o porquê dessa tomada de posição na próxima Unidade. 

Leia mais!

Como conclusão deste Capítulo, transcrevemos abaixo a introdução da novela Amor de Perdição. 

Folheando os livros de antigos assentamentos no cartório das cadeias

da Relação do Porto, li, no das entradas dos presos desde 1803 a 1805,

a fl. 232, o seguinte:

Simão António Botelho, que assim disse chamar-se, ser solteiro e estu-

dante na Universidade de Coimbra, natural da cidade de Lisboa, e as-

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Capítulo 03O (ultra) romantismo em Portugal

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sistente na ocasião de sua prisão na cidade de Viseu, idade de dezoito

anos, filho de Domingos José Correia Botelho e de D. Rita Preciosa Cal-

deirão Castelo Branco; estatura ordinária, cara redonda, olhos castanhos,

cabelo e barba preta, vestido com jaqueta de baetão azul, colete de

fustão pintado e calça de pano pedrês. E fiz este assento, que assinei —

Filipe Moreira Dias.

À margem esquerda deste assento está escrito:

Foi para a Índia em 17 de Março de 1807.

Não seria fiar demasiadamente na sensibilidade do leitor se cuido

que o degredo de um moço de dezoito anos lhe há-de fazer dó.

Dezoito anos! O arrebol dourado e escarlate da manhã da vida! As

louçanias do coração que ainda não sonha em frutos e todo se embal-

sama no perfume das flores!

Dezoito anos! O amor daquela idade! A passagem do seio da família,

dos braços da mãe, dos beijos das irmãs, para as carícias mais doces da

virgem, que se lhe abre ao lado como flor da mesma sazão e dos mes-

mos aromas, e à mesma hora da vida! Dezoito anos!... E degredado da

pátria, do amor e da família! Nunca mais o céu de Portugal, nem mãe,

nem reabilitação, nem dignidade, nem um amigo!... É triste!

O leitor decerto se compungia (ou compungiria?); e a leitora, se lhe dis-

sessem em menos de uma linha a história daqueles dezoito anos, choraria!

Amou, perdeu-se e morreu amando.

É a história. E história assim poderá ouvi-la a olhos enxutos a mulher,

a criatura mais bem formada das branduras da piedade, a que por vezes

traz consigo do Céu um reflexo da divina misericórdia?! Essa, a minha lei-

tora, a carinhosa amiga de todos os infelizes, não choraria se lhe disses-

sem que o pobre moço perdera a honra, reabilitação, pátria, liberdade,

irmãs, mãe, vida, tudo, por amor da primeira mulher que o despertou do

seu dormir de inocentes desejos?!

Chorava, chorava! Assim eu lhe soubesse dizer o doloroso sobres-

salto que me causaram aquelas linhas, de propósito procuradas, e lidas

com amargura e respeito e, ao mesmo tempo, ódio. Ódio, sim... A tempo

verão se é perdoável o ódio, ou se antes me não fora melhor abrir mão

desde já de uma história que me pode acarear enojos dos frios julgado-

res do coração e das sentenças que eu aqui lavrar contra a falsa virtude

de homens, feitos bárbaros, em nome da sua honra (BRANCO, 1994, p.9).

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Literatura Portuguesa II

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Unidade BRealismo (1865-1890)

A leitura, de Gustave Courbet (1819-1877)

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Capítulo 04

A vida como ela é ou do amor pela exatidão

“o Romantismo era a apoteose do sentimento; o Realismo é a

anatomia do caráter, é a crítica do homem”.

(Eça de Queirós, 1845-1900) 

OBJETIVOS: Na segunda Unidade, você estudará as condições de possi-

bilidade do movimento realista. Para fins de identificação das características

fundamentais do Realismo em Portugal analisaremos um conto e um romance

de Eça de Queirós (1845-1900) e sonetos de Antero de Quental (1842-1891). A

partir da leitura desses textos você conhecerá os porquês do combate à estética

romântica e os elementos que animam o programa do movimento realista,

então chamado de Nova Arte. 

Dissemos anteriormente que Machado de Assis, na celebração do centenário de nascimento de Almeida Garrett, considerou que a textu-alidade garretiana foi o que de melhor se produziu depois de Camões.

Mas teria sido o autor de Folhas Caídas e Viagens na minha terra a maior expressão da literatura portuguesa do período? Talvez sim, tal-vez não. Ao situar Garrett como o máximo expoente do século XIX, é possível que Machado de Assis revelasse certo consenso sobre a obra de Garrett por conta dos seus muitos admiradores e seguidores. A devoção pela textualidade desse autor acabou gerando um movimento ao qual se convencionou chamar Neogarretismo.

Força é dizer que a atual orientação da crítica contemporânea con-sidera que a produção de Eça de Queirós, em virtude do “apuro que im-primiu à arte da expressão verbal”, o coloca dentre os mais significativos prosadores, senão o mais talentoso prosador da Literatura Portuguesa de todos os tempos. Aliás, é um nome indispensável para a reflexão so-bre a renovação do campo literário ocorrida em meados do século XIX, usualmente definida com a rubrica do Realismo.

ASSIS, Machado de. “Gar-rett”. In: Obra Completa de Machado de Assis, Rio de Ja-neiro: Nova Aguilar, vol. III, 1994, p. 931. Texto publica-do originalmente no jornal Gazeta de Notícias, em 04 de fevereiro de 1899.

Dentre os principais repre-sentantes dessa corrente literária que ganhou força no fim do século XIX, vale mencionar Alberto de Oliveira, António Nobre, Teófilo Braga e Teixeira de Pascoais.

A vida como ela é ou do amor pela exatidão

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4

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Numa das mais antológicas intervenções a favor dessa nova escola literária, Eça de Queirós afirmou que o Realismo é uma reação contra o Romantismo. Se, para Eça, o Romantismo era a apoteose do sentimento, o Realismo se definiria como a anatomia do caráter, a crítica da condi-ção humana. Para compreendermos melhor o que se altera na paisagem literária e o significado desta afirmação, vamos esboçar algumas refle-xões sobre o que ele chamou de a “Nova Arte”. 

4.1 A prosa realista contra a idealização romântica 

O Realismo entra em cena na segunda metade do século XIX como movimento de reação ao Romantismo. Após a morte de Almei-da Garrett e Alexandre Herculano a cena literária portuguesa se carac-terizou pelos designados escritores ultra-românticos, cuja produção exacerbava a temática melancólica e lutuosa (o amor infeliz, a morte, a saudade, a vitimização do eu), elaborada num estilo melodramáti-co e distanciado do real. Interessante notar que os escritores ultra--românticos eram comprometidos com o regime monárquico e eram beneficiados pelos cargos que se lhes ofereciam.

Se na primeira metade do século XIX a geração romântica estava voltada para a cor local e se embebia de sentimento patriótico, a partir de meados do mesmo século vai se afirmando a geração realista que, avessa à monarquia e em parte republicana, pretendia-se europeia e cosmopolita.

Enquanto os escritores ultra-românticos deixaram-se levar nas ondas de um mar de lágrimas, na correnteza de suas emoções desembocando nos excessos do sentimentalismo e no culto ao individualismo e do passado medieval, os escritores realistas preferiram descrever o presente, a realidade social tal qual a viam, descrita nos seus pormenores. O desejo de observar e analisar os levou a retratarem a vida contemporânea, o seu próprio tempo.

Embora não tenhamos a pretensão de realizar um amplo panorama histórico, gostaríamos de mencionar um fato marcante. A renovação li-

Literatura Portuguesa II

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Capítulo 04

terária de cunho realista correu paralela à construção da estrada de ferro que ligou Portugal à Europa, por volta de 1864, tornando-se um emble-ma de fluxo de ideias e mercadorias, enfim, da abertura à modernidade.

Há um depoimento de Eça de Queirós, nas suas Notas Contemporâ-neas, a propósito de Antero de Quental, que testemunha as circunstâncias que prepararam o terreno para a Questão Coimbrã, em 1865: 

Coimbra vivia então numa grande actividade, ou antes num grande tu-

multo mental. Pelos caminhos de ferro, que tinham aberto a Península,

rompiam cada dia, descendo da França e da Alemanha (através da Fran-

ça), torrentes de coisas novas, idéias, sistemas, estéticas, formas, senti-

mentos, interesses humanitários... Cada manhã trazia a sua revelação,

como um sol que fosse novo (NICOLA, José de. “Eça de Queirós. Vida e

obra”, in QUEIRÓS, Eça. O primo Basílio. São Paulo: Scipione, 1994, p.V).

No programa estético do realismo transparecia a preocupação de observar o ser humano com a imparcialidade das ciências físicas, pois só assim acreditava-se poder criar uma “literatura verdadeira”, mais adequada aos tempos modernos. Nas palavras de Antero de Quental, caberia ao escritor elevar-se “sobre todos pela ciência, pelo paciente estudo de si mesmo e dos outros, pela limpeza interior de uma alma que só vê e busca o bem, o belo, o verdadeiro”. Deste modo, preten-deu-se intervir na cena contemporânea com uma atitude efetivamen-te mais crítica e combativa. E nada melhor para identificarmos esta atitude do que a Questão Coimbrã (1865), que inaugura o Realismo em Portugal, e as Conferências do Casino (1871), que definem os pro-pósitos e consagram a Nova Arte. São momentos de intensa agitação literária e social que acabam por evidenciar as diferentes tomadas de posição dos escritores envolvidos naquela polêmica. 

4.2 Questão Coimbrã e Conferências Democráticas 

A chamada Questão Coimbrã, deflagrada no ano de 1865, re-sultou da confrontação entre jovens estudantes de Coimbra e os po-

Compunha este novo ideário a filosofia de Hegel, o socialismo de Proudhon, o positivismo de Comte, as teorias de Darwin, o determinismo de Taine, a prosa literária de Balzac e Flaubert, a poesia de Bau-delaire, e por aí afora.

A vida como ela é ou do amor pela exatidão

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Page 80: [Livro UFSC] Literatura Portuguesa II

etas ultra-românticos de Lisboa. Tudo começou com uma referência pouco elogiosa do poeta Antonio Feliciano de Castilho, protetor dos ultra-românticos, à nova literatura portuguesa representada pela pu-blicação de Odes Modernas (1865), de Antero de Quental. Castilho aproveitou o posfácio ao Poema da Mocidade, de Pinheiro Chagas, seu protegido, para atacar a poesia revolucionária de Antero de Quental.

Como réplica, Antero de Quental respondeu-lhe numa carta aber-ta intitulada Bom-Senso e Bom-Gosto. Nela afirmou que a grande falta cometida pela “escola de Coimbra” foi o desejo de inovar, e criticou a atividade literária de Castilho, para Quental esvaziada de conteúdo ideológico, repleta de “frases e sentimentos postiços de acadêmico”. O texto de Antero provocou a publicação de diversos folhetins e artigos trocados entre as duas facções, detonando a Questão Coimbrã.

Camilo Castelo Branco foi em defesa de Castilho, lançando o texto intitulado Vaida-des Irritadas e Irritantes (1866), enquanto que Teófilo Braga, com o folhetim intitulado Teo-cracias Literárias (1866), e Luciano Cordeiro, com o artigo A arte realista (1867), tomaram partido a favor de Antero de Quental. Cons-ta que a acirrada polêmica terminou com um duelo à espada, na cidade portuguesa do Por-to, entre Antero de Quental e Ramalho Orti-gão, partidário de Castilho.

Pode-se afirmar que a consolidação do Re-alismo em Portugal derivou de um longo pro-cesso iniciado em 1865 e culminado em 1871. Convencionou-se chamar de Geração de 70 à elite intelectual que promoveu este movimento cultural e literário renovador, de funda reper-cussão no país. Tal movimento contou com a

participação mais combativa de Antero de Quental, considerado o mes-tre da geração, bem como de Eça de Queirós, Adolfo Coelho, Augusto

Dentre os principais participantes das Célebres Conferências do Ca-

sino, auto intitulados “Os vencidos da vida”, também conhecida por Geração

de 70 fazem parte Antero de Quental, Eça de Queirós, Oliveira Martins, Te-

ófilo Braga, Ramalho Ortigão, Batalha Reis. Sentado, à esquerda, portando

uma bengala, o mais talentoso dos prosadores da época, Eça de Queirós.

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Capítulo 04

Soromenho, Augusto Fuschini, Germano Meireles, Guilherme de Aze-vedo, Batalha Reis, Oliveira Martins, Manuel de Arriaga, Salomão Sára-gga e Teófilo Braga. As conferências por ele realizadas são conhecidas como Conferências Democráticas do Casino Lisbonense.

O propósito das conferências era o de expor as grandes ques-

tões contemporâneas religiosas, literárias, políticas, sociais e

científicas, num espírito de franqueza, coragem e positivismo

(entenda-se corrente filosófica derivada das teorizações de

Augusto Comte pautadas sobretudo pelo lema Ordem e Pro-

gresso). É o que se pode ler no manifesto publicado sob título

A Revolução de Setembro de 18 de Maio de 1871, que define a

finalidade das conferências realizadas no Casino Lisbonense: 

Ӳ Abrir uma tribuna onde tenham voz as ideias e os tra-balhos que caracterizam esse movimento do século, preocupando-nos contudo com a transformação so-cial, moral e política dos povos;

Ӳ Ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o assim nutrir-se dos elementos vitais de que vive a hu-manidade civilizada;

Ӳ Procurar adquirir consciência dos factos que nos ro-deiam na Europa;

Ӳ Agitar na opinião pública as grandes questões da Filo-sofia e da Ciência moderna;

Ӳ Estudar as questões da transformação política, econô-mica e religiosa da sociedade portuguesa. (Apud SA-RAIVA, 2001, p.802).

 

Para os propósitos das nossas reflexões sobre os componentes fun-damentais do Realismo em Portugal, é útil citar um fragmento da con-ferência intitulada A literatura nova, de Eça. Leia-se: 

A vida como ela é ou do amor pela exatidão

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Page 82: [Livro UFSC] Literatura Portuguesa II

O Realismo é bem outra coisa: é a negação da arte pela arte; é a

proscrição do convencional, do enfático, do piegas. É a abolição

da retórica considerada arte de promover a emoção, usando da

inchação do período, da epilepsia da palavra, da congestação dos

tropos. É a análise com o fito na verdade absoluta. Por outro lado,

o Realismo é uma reacção contra o Romantismo: o Romantismo

era a apoteose do sentimento; o Realismo é a anatomia do cará-

ter, é a crítica do homem. É a arte que nos pinta a nossos próprios

olhos para condenar o que houver de mau na nossa sociedade. A

norma agora são as narrativas a frio, deslizando como as imagens

na superfície de um espelho, sem intromissões do narrador. O ro-

mance tem de nos transmitir a natureza em quadros exactíssimos,

flagrantes, reais (QUEIRÓS, A literatura nova. O Realismo como ex-

pressão da arte, 12 de Junho de 1871). 

Em poucas linhas, Eça consegue sintetizar muito do ideário da nova corrente literária. Aí encontramos

a) a defesa da análise e síntese da realidade contra o subjetivismo e idealismo românticos;

b) a busca da reprodução da Natureza com exatidão, veracidade e abundância de pormenores;

c) a preocupação com uma verdade não apenas verossímil, mas exata;

d) a análise corajosa e crítica dos problemas sociais;

e) a preferência por temas cosmopolitas em vez dos nacionais e tradicionais dos românticos.

Acrescente-se também a predileção pelo narrador onisciente, a valoração da expressão das idéias, sentimentos e fatos, de maneira simples e sem afetação ou convencionalismos (o oposto ao tom de-clamatório dos românticos) e a substituição do testemunho subjetivo individual pelo depoimento objetivo. 

Conforme o sentido dicionarizado do termo,

trata-se de uma acumula-ção excessiva ou anormal

de um fluido, muitas ve-zes o sangue, num órgão

ou numa determinada re-gião do corpo (HOUAISS,

Dicionário do Português Atual, p.629 ISBN 978-

972-42-4691-8).

Literatura Portuguesa II

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Page 83: [Livro UFSC] Literatura Portuguesa II

Capítulo 04

4.3 A poesia combativa de Antero de Quental (1842-1891)

Sim! Que é preciso caminhar avante!

Andar! Passar por cima dos soluços!

Como quem n´uma mina vai de bruços,

Olhar apenas uma luz distante!

(Antero de Quental, “Tentanda Via”. Odes Modernas, 1865)

Antero de Quental é considerado um dos melhores sonetistas da literatura portuguesa, ao lado de Camões, Bocage e Florbela Es-panca. Como dissemos, ele foi um dos principais animadores da Ge-ração de 70, a que patrocinou a ruptura com o programa estético do romantismo. Conforme se lê no texto intitulado Antero de Quental em linha, no sítio web da Biblioteca Nacional de Portugal, o poeta em questão é uma

figura relevante da cultura portuguesa, é o símbolo de um dos nossos

mais marcantes movimentos intelectuais, a Geração de 70. Prosador bri-

lhante e notável poeta, é ainda referência obrigatória no ensaísmo filo-

sófico e literário, na política militante e no jornalismo. Aos 23 anos, com

a publicação em 1865 de Odes Modernas e do folheto Bom Senso e Bom

Gosto – Carta ao Exmo. Sr. António F. de Castilho, Antero dá início à grande

polémica literária do século XIX em Portugal - a Questão Coimbrã - que

rompe com o Ultra-Romantismo e prepara o advento da poesia moderna.

(Disponível em http://www.bnportugal.pt/ , acesso em 23 de abr. 2012).

Noutras palavras, Antero de Quental, tornou-se símbolo da Geração de 70 também e sobretudo por presidir as Conferências Democráticas do Casino, dissertando sobre as “Causas da Decadência dos Povos Peninsula-res”. Embora a sua obra seja marcada por uma temática rica e variada, nos interessa destacar o que consideramos um desdobramento poético da po-lêmica Questão Coimbrã. Não é difícil perceber que o soneto intitulado “A um poeta” foi endereçado de modo irônico aos poetas ultra-românticos,e sugestivamente epigrafado com a frase-valise Surge et ambula!  

Antero de Quental

O soneto é uma das mais dificul-tosas e fascinantes manifestações líricas no Renascimento (séc XVI), e foi praticado até o advento do Romantismo (séc. XIX). Negado pelos românticos, foi retomado como se vê pelos poetas realistas. Conforme o étimo, soneto deriva do provençal sonet, diminutivo de son, modalidade poética ligada à música desde a sua origem no sé-culo XIII. Como você poderá notar, no soneto intitulado “A um poeta”, sua estrutura formal é composta de quatorze versos, distribuídos em dois quartetos e dois tercetos, com esquema simétrico de rimas. As estrofes possuem o mesmo nú-mero de versos, sendo que Antero prefere fazer uso do verso decassí-labo heroico.. É muito importante que a última estrofe contenha a “chave de ouro”, o remate, a con-densação de sentido, noutras pa-lavras, o ponto de vista do poeta.

levanta-te e anda!

A vida como ela é ou do amor pela exatidão

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Tu que dormes, espírito sereno,

Posto à sombra dos cedros seculares,

Como um levita à sombra dos altares,

Longe da luta e do fragor terreno.

Acorda! É tempo! O sol, já alto e pleno

Afugentou as larvas tumulares…

Para surgir do seio desses mares

Um mundo novo espera só um aceno…

Escuta! É a grande voz das multidões!

São teus irmãos, que se erguem! São canções…

Mas de guerra… e são vozes de rebate!

Ergue-te, pois, soldado do Futuro,

E dos raios de luz do sonho puro,

Sonhador, faze espada de combate!

(QUENTAL, 1991, p.191)

Observe que no primeiro quarteto o sujeito poético se dirige aos po-etas que cultuavam a temática lutuosa, cemiterial, o que fica implícito na metáfora vegetal dos cedros seculares, árvores fúnebres por excelência. Melhor seria se houvesse dito ciprestes. Mas creio que a escolha deveu--se a questões de silabação poética, ou métrica. O último verso define os ultrarromânticos pela perda da consciência do coletivo, do social. Em seguida, avesso ao domínio do noturno, cultua o domínio do diurno, do sol, apolíneo, logo, pautado menos pela sensibilidade do que pela razão.

Em seguida, fazendo jus à crença de que a poesia é a voz da revolu-ção, canta as vozes que reivindicam, que, insatisfeitas, bradam, para cul-minar com a defesa do engajamento político, para se combater o bom combate. Isso no aspecto temático, pois no aspecto formal percebe-se a volta do soneto, composto em versos decassílabos heroicos, já que o acento é sempre posto na sexta e na décima sílabas poéticas. Observe.

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10Tu que dor mes, es pí ri to se re no, 

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Capítulo 04

Força é dizer que este soneto rompe com a poética da pessoali-dade, intimista, confessional, para afirmar uma poesia do não-eu, de empenhamento ideológico, participante. Longe da supervalorização romântica das emoções pessoais, Antero sugere que o amor român-tico leva à perda da consciência do coletivo, melhor, cujo sentimento exclusivo isolava o ser humano do mundo e o desinteressava de todos os seus deveres sociais.

Como se lê nestes versos, não mais se cultua o domínio do no-turno, mais próprio aos devaneios pessoais românticos, mas, sim, o domínio do diurno. E o mesmo se pode dizer do soneto Mais Luz!, também de Antero de Quental: 

Amem a noite os magros crapulosos,

E os que sonham com virgens impossíveis,

E os que se inclinam, mudos e impassíveis,

À borda dos abismos silenciosos...

Tu, Lua, com teus raios vaporosos,

Cobre-os, tapa-os e torna-os insensíveis,

Tanto aos vícios cruéis e inextinguíveis,

Como aos longos cuidados dolorosos!

Eu amarei a santa madrugada,

E o meio-dia, em vida refervendo,

E a tarde rumorosa e repousada.

Viva e trabalhe em plena luz: depois,

Seja-me dado ainda ver, morrendo,

O claro Sol, amigo dos heróis!

(QUENTAL, 1991, p.186)

Trata-se, pois de uma poesia iluminada pelo desejo de intervir no contemporâneo, afinal, como escreve o poeta, “A poesia é a voz da Revolução”. O soneto mais não é do que um desdobramento lógi-co das célebres Conferências do Casino, onde Antero pontificou que

A vida como ela é ou do amor pela exatidão

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A arte deve corrigir e ensinar e não ser só destinada a causar impres-

sões passageiras, a dar-se unicamente ao prazer dos sentidos. Deve vi-

sar um fim moral. Se a arte não tem moral, perde a sociedade. Deve-se

tentar a regeneração dos costumes pela arte. Quando a ciência disser:

a ideia é verdadeira; a consciência nos segredar; a ideia é justa; e a arte

nos bradar: a ideia é bela – teremos tudo (apud MOOG, Viana. Eça de Queirós e o século XIX, 2006, p..144.

Como veremos a seguir, a noção de literatura de intervenção, vol-tada para a consciencialização dos problemas sociais define muito bem certa textualidade de Eça de Queirós, que ele, chave confessional, cha-mava de Literatura Nova, entenda-se o o Realismo como nova expressão na arte literária portuguesa após a segunda metade do século XIX. 

Leia mais!

Deixo como sugestão bibliográfica suplementar, um estudo incontornável

sobre a chamada Geração de 70, a saber o trabalho de Álvaro Manuel Ma-

chado intitulado A Geração de Setenta. Uma revolução cultural e literária.

Consulte a Biblioteca Digital Camões em

http://cvc.instituto-camoes.pt/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid=54&Itemid=69

Pode-se fazer o download gratuito dessa referência clássica sobre o assunto.

Boa leitura!

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Capítulo 05Eça de Queirós (1845-1900)

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5 Eça de Queirós (1845-1900)

Sob o manto diáfano da fantasia a crua nudez da verdade.

(Eça de Queirós)

OBJETIVOS: Conhecer, compreender e interpretar os aspectos funda-

mentais da narrativa ficcional portuguesa da segunda metade do século XIX a

partir do estudo da prosa de Eça de Queirós. 

5.1 Cenas da vida portuguesa

A propósito do livro O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queirós, no calor da hora, um crítico literário brasileiro escreveu: “foi a estréia no romance, e tão ruidosa estréia, que a crítica e o público, de mãos dadas, puseram desde logo o nome do autor na primeira galeria dos contempo-râneos”. Por certo, dentre os elementos que contribuíram para o sucesso de Eça de Queirós pode-se mencionar a fina ironia aliada à maestria na construção de uma vasta galeria de personagens, à preocupação com os mínimos detalhes para reforçar a verossimilhança do relato, cujo resul-tado é uma lúcida reflexão sobre o Portugal do século XIX.

Ao pintar “a sua província, a sua capital, os seus pasmosos habitantes, os costumes, os sonhos medíocres hipertrofiados”, Eça revela seu desejo de descobrir, “com mais paixão do que a sua ironia de superfície deixa supor, a face autêntica de uma pátria que talvez ninguém tenha tão amado e detestado”, no caso, por ela não ser tão civilizada quanto desejava. Daí o seu projeto pessoal de engajamento na causa social por meio da literatura intitulado Cenas da vida portuguesa, no qual buscou retratar diferentes segmentos da sociedade sua contemporânea, cujo projeto acabou sendo reconhecido como “a mais aguda interpretação da realidade nacional”.

Aliás, o seu testemunho é bastante ilustrativo como definição do seu programa estético: “A minha ambição seria pintar a sociedade portuguesa, e mostrar-lhe, como num espelho, que triste país eles formam – eles e elas”. É o que ocorre logo nos dois primeiros romances que escreve.

Eça de Queirós, 25/11/1845 -16/08/1900

Machado de Assis. “Eça de Queirós: O Primo Basílio”. Disponível em www.literaturabrasileira.ufsc.br/. Acesso 22 abr.2012.

LOURENÇO, Eduardo. O la-birinto da saudade. Lisboa, Gradiva, 2000, p. 95.

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Em O Crime do Padre Amaro, lançado em primeira versão em 1875, a nosso ver, nascido à luz das ideias manifestas nas Conferências do Ca-sino, faz a crítica a certos integrantes do baixo clero, seja pela tendência aos gozos materiais, em particular a luxúria e a gula, seja pela sua coop-tação política pelos donos do poder.

Em O primo Basílio, lançado em 1878, ganha destaque a fútil edu-cação romântica das burguesas lisboetas, sua apatia, seu caráter abúlico, frívolo, fútil, representada pela personagem Luísa.

Em ambos os casos temos o que se pode chamar de um romance de tese. As personagens-foco, nas quais se concentram as duas narrativas, sejam Amaro e Amélia, no primeiro caso, seja Luísa, no segundo, são figuras condicionadas pelo meio em que vivem. Como se lê no Dicioná-rio de Literatura Portuguesa, 

Eça procura fundar a representação narrativa na observação que pôde

fazer dos cenários que privilegia; as personagens que os povoam

surgem então como figuras afetadas por factores educativos e here-factores educativos e here-

ditários que os romances tratam de por em evidência, de forma nor-

malmente muito crítica. Se Luísa é levada ao adultério, um tal destino

há-de ser explicado como resultado de deformações que o passado

e o presente da personagem atestam: as leituras românticas, o ócio

burguês, etc.; por sua vez, Amaro e Amélia são conduzidos a uma rela-

ção amorosa moralmente irregular porque os temperamentos que os

dominam e o meio em que se encontram favorecem uma visão ambi-

guamente divinizada do padre, detentor de um poder que transcende

a esfera espiritual (MACHADO, 1996, p. 397).

Como você já deve ter percebido, longe do projeto romântico de construção de figuras modelares, os escritores românticos não só buscaram descrever as paisagens locais, as características das suas respectivas nações, configurar o ser humano dentro do seu ambien-te, como também se preocuparam com a construção de figuras he-roicas, guerreiras, cavalheirescas, repletas de virtudes morais e cívi-cas. Tais figuras transparecem um valor simbólico (moral) para se converterem em emblema da própria nacionalidade, em uma ima-gem mesma da nação.

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Capítulo 05Eça de Queirós (1845-1900)

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Em Portugal, as duas personagens mais representativas são Eurico, o presbítero, personagem de Alexandre Herculano, e Manuel de Sousa Coutinho, personagem do drama Frei Luís de Sousa, de Almeida Gar-rett. Eça as substitui pela construção de personagens extraídos da ob-servação da vida cotidiana. O que se pretende agora é a compreensão de como operam os mecanismos sociais, com boa dose de ironia, por certo.

É como se Eça retomasse um lugar comum da tradição literária, a lógica do ridendo castigat mores: rindo, corrigem-se os costumes. Na tradição literária portuguesa, vale lembrar que é com Gil Vicente, na primeira metade do século XVI, que essa máxima deu seus melhores resultados. Em Eça também encontramos dita mistura de ironia e riso como maneira de discutir os problemas sociais. Aliás, conforme uma passagem antológica publicada nas Farpas, uma revista de crônicas so-bre o contemporâneo assinada por Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, lê-se: “Vamos rir pois. O riso é um castigo, o riso é uma filosofia” (1871).

Ou ainda, citado por Álvaro Manuel Machado, em A Geração de 70 - uma revolução cultural e literária, Eça de queirós, afirmara que nessa Lisboa do fim do século o que ainda tornava a vida tolerável era de vez em quando uma boa risada: “Só nós aqui, neste canto do mundo bárba-ro, conservamos ainda esse dom supremo, essa coisa bendita e consola-dora – a barrigada de riso!” (1986, p.14)

E não seria interessante associar esta passagem com aquele verso de Camões, publicado em Os Lusíadas, “ora deleitando, ora ensinando”? A con-clusão é que Eça leva a sério o papel do escritor, por que não dizer, naquela linhagem dos antigos que pensavam a criação artística conforme o lema dulce et utile. A um só tempo, casa o entretenimento, o cômico, o deleite, à crítica social, feito uma farpa “na epiderme de cada fato contemporâneo”.

Não é difícil constatar uma afinidade de propósitos entre as Con-ferências do Casino, atenta à “transformação social, moral e política dos povos”, e as Cenas da Vida Portuguesa, de Eça de Queirós, sobretudo pela pretensão declarada de mostrar o que estava por trás dos fatos da realidade provinciana de Portugal.

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Você deve se recordar que Eça refletiu sobre a Literatura como uma lição de Anatomia. Conforme o sentido dicionarizado do termo, trata-se de uma “dissecação do corpo humano ou de qualquer animal ou vegetal para estudo e conhecimento de sua organização interna”, ou ainda, “exame detalhado, análise crítica, estudo exaustivo” (Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa). Em Eça há, portanto, uma íntima relação entre literatura e ciência. Ele deixa por escrito o modo como pensa o dever do artista: “estudar os fenômenos sociais como o botânico estuda as plantas, sem se importar que seja a beladona ou a batata, que envenene ou nutra”.

O olhar “objetivo”, “científico” é o ponto de partida para a observação e análise vitais à pintura daquela sociedade. A pergunta a ser feita é: isso afetou a construção das personagens? Claro que sim! Agora as personagens de ficção precisariam ser mais verossímeis, retiradas da vida cotidiana, portanto, um produto de minuciosa observação. Aliás, melhor chamá-las de “tipos”. As personagens-tipo aparecem vinculadas à realidade cotidiana: suas atitudes, gestos e falas, suas aspirações e conflitos servem para representar o grupo ao qual pertencem. É o que se convencionou chamar de tipificação social, cujo objetivo era o de instigar o leitor a estabelecer relações críticas entre o texto e a realidade histórica em que a personagem se inseria.

Esta tomada de posição sobre o ofício de escrever inseparável da “laboriosa observação da realidade” se exibe no artigo intitulado Idealismo e Realismo, de Eça. Embora longas as citações, estas são váli-das para a compreensão do fazer literário à luz dos postulados realistas de Eça, em contraposição à liberdade criadora do romantismo: 

A arte moderna é toda de análise, de experiência, de comparação. A

antiga inspiração que em quinze noites de febre criava um romance é

hoje um meio de trabalho obsoleto e falso. Infelizmente já não há mu-

sas que insuflem num beijo o segredo da natureza! A nova musa é a

ciência experimental dos fenómenos – e a antiga, que tinha uma estrela

na testa e vestes alvas, devemos dizê-lo com lágrimas, lá está armaze-

nada a um canto, sob o pó dos anos, entre as couraças dos cavaleiros

andantes, (...) e os outros acessórios, tão simpáticos mas tão arcaicos,

QUEIRÓS, Eça de. Idealis-mo e Realismo. Disponível

em: <http://faroldasletras.no.sapo.pt/realismo_natu-ralismo.htm#idealismo_e_

realismo>. Acesso em: 23 abr. 2012.

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Capítulo 05Eça de Queirós (1845-1900)

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do velho cenário romântico! (QUEIRÓS, Eça de. Idealismo e Realismo.

Disponível em: <http://faroldasletras.no.sapo.pt/realismo_naturalismo.

htm#idealismo_e_realismo>. Acesso em: 23 de abr. 2012).

Talvez se possa dizer sobre a passagem “em quinze noites de febre criava um romance”, que se trata de uma alusão à famosa novela Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco, partidário de Castilho e dos ul-tra-românticos na Questão Coimbrã. Lembrar que essa novela, sucesso entre os leitores da época, foi escrita em pouco mais de duas semanas.

Ora bem, após a apresentação do quadro de referências que ani-ma a nova “arte moderna”, também é digna de interesse a maneira como Eça compara a construção das personagens no romantismo e conforme a Nova Arte: 

Suponho (tudo é permitido a uma alma como a tua, amante da arte e

curiosa da vida), suponho, digo, que se trata de te descrever uma meni-

na que mora ali defronte, num prédio da Baixa.

Apresentam-se dois novelistas – o idealista e o naturalista. Tu dás-lhes o

teu assunto: uma menina que se chama Virgínia e que habita ali defronte.

O idealista não a quer ver nem ouvir; não quer saber mais detalhes.

Toma imediatamente a sua boa pena de Toledo, recorda durante um

momento os seus autores, e, num relance, cria-te a menina Virgínia

deste modo: na figura, a graça de Margarida; no coração, a paixão

grandiosa de Julieta; nos movimentos, a languidez de qualquer odalisca

(à escolha); na mente, a prudência de Salomão, e nos lábios, a eloqu-a eloqu-

ência de Santo Agostinho” (QUEIRÓS, Eça de. Idealismo e Realismo.

Disponível em: <http://faroldasletras.no.sapo.pt/realismo_naturalismo.

htm#idealismo_e_realismo>. Acesso em: 23 abr.2012).

       E conclui: 

“Mas voltemos à nossa Virgínia, que mora ali defronte. É agora o nosso

escritor naturalista que a vai pintar. Este homem começa por fazer uma

coisa extraordinária: vai vê-la!...

Não se riam: o simples facto de ir ver Virgínia quando se pretende descrever

Virgínia, é uma revolução na arte! É toda a filosofia cartesiana: significa que

só a observação dos fenómenos dá a ciência das coisas. Este homem vai ver

Virgínia, estuda-lhe a figura, os modos, a voz; examina o seu passado, indaga

O manuscrito dessa novela se encontra no Real Gabi-nete Português de Leitura, no Rio de Janeiro.

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da sua educação, estuda o meio em que ela vive, as influências que a envol-

vem, os livros que lê, os gestos que tem – e dá enfim uma Virgínia que não é

Cordélia, nem Ofélia, nem Santo Agostinho, nem Clara de Borgonha – mas

que é a burguesa da Baixa, em Lisboa, no ano da graça de 1879.

Caro concidadão, a qual dás tu a preferência? O primeiro mentiu-te. A

Virgínia que tens diante de ti é um ser vago, feito de frases, que não tem

carne nem osso, e que, portanto, não pertencendo à humanidade a que

tu pertences, não te pode interessar. É uma quimera, não é um ser vivo.

O que ela diz, pensa ou faz, não te adianta uma linha no conhecimento

da paixão e do homem.

Uma tal Virgínia não pode ficar como documento de uma certa socieda-

de, num determinado período: é um livro inútil.

Tens diante de ti uma moeda falsa.

O segundo dá-te uma lição de vida social: põe diante dos teus olhos,

num resumo, o que são as Virgínias contemporâneas; faz-te conhecer

o fundo, a natureza, o carácter da mulher com quem tens que viver. Se

a Virgínia, em conclusão, não é boa – evitarás que tua filha seja assim;

podes-te acautelar desde já com a nora que te espera; é-te lição no pre-

sente, e, para o futuro, ficará como um documento histórico”.

(QUEIRÓS, Eça de. Idealismo e Realismo. Disponível em: <http://fa-

roldasletras.no.sapo.pt/realismo_naturalismo.htm#idealismo_e_realis-

mo>. Acesso em: 23 abr. 2012).

As palavras de Eça são muito ilustrativas dos esforços empenhados no combate à literatura romântica e também no que diz respeito à fi na-ratura romântica e também no que diz respeito à fina-lidade didática da literatura enquanto forma de conscientização sobre as mazelas sociais. Mas, afinal, em que medida tais teorizações sobre os elementos da Nova Arte contribuem para o seu fazer literário? 

5.2 José Matias 

Dentre os textos incontornáveis de Eça de Queirós vamos nos con-vamos nos con-centrar no estudo de partes do romance O primo Basílio, lançado em 1878 e do conto intitulado José Matias, publicado na Revista Moderna em 1897. Afora o mérito literário, são sintomáticos das transformações estéticas da prosa do seu tempo.

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Não nos parece forçoso afirmar que, com o conto intitulado José Matias, Eça satiriza o idealismo romântico, que ele define como a “apo-teose do sentimento”. Logo nas primeiras linhas do conto pode-se cons-tatar o caráter reflexivo e o espírito científico do narrador. Este pretende fazer a “anatomia” de um singular caso de amor “infinito, absoluto”.

Perdoe-nos uma vez mais as longas citações. É que elas são importantes para demonstrar a confluência entre teoria e prática, bem como o quão prazerosa é a leitura da prosa de Eça. Então, às primeiras linhas do conto: 

Linda tarde, meu amigo!... Estou esperando o enterro do José Matias –

do José Matias de Albuquerque, sobrinho do Visconde de Garmilde...

O meu amigo certamente o conheceu – um rapaz airoso, louro como

uma espiga, com um bigode crespo de paladino sobre uma boca inde-

cisa de contemplativo, destro cavaleiro, duma elegância sóbria e fina.

E espírito curioso, muito afeiçoado às ideias gerais, tão penetrante que

compreendeu a minha Defesa da Filosofia Hegeliana! Esta imagem do

José Matias data de 1865: porque a derradeira vez que o encontrei,

numa tarde agreste de Janeiro, metido num portal da Rua de S. Bento,

tiritava dentro duma quinzena cor de mel, roída nos cotovelos, e chei-

rava abominavelmente a aguardente.

Mas o meu amigo, numa ocasião que o José Matias parou em Coimbra,

recolhendo do Porto, ceou com ele, no Paço do Conde! Até o Craveiro,

que preparava as Ironias e Dores de Satã, para acirrar mais a briga entre

a Escola Purista e a Escola Satânica, recitou aquele seu soneto, de tão

fúnebre idealismo: Na jaula do meu peito, o coração... E ainda lembro

o José Matias, com uma grande gravata de cetim preto, tufada entre o

colete de linho branco, sem despegar os olhos das velas das serpentinas,

sorrindo palidamente àquele coração que rugia na sua jaula (QUEIRÓS,

1987, p166).

Curioso notar que o uso do termo “paladino” não é gratuito. O termo designa um cavaleiro errante da Idade Média que vagava em busca de façanhas que lhe comprovassem o seu valor e a sua correção. Talvez se possa dizer que tudo converge para a apresentação de José Matias como uma personagem medieval, um homem apaixonado que segue as regras do amor cortês típico das canções de amor do Trovadorismo. Daí a neces-

Relembre o Trovadoris-mo! Veja em FERRAZ, S. Literatura Portuguesa I. Florianópolis: LLV/CCE/UFSC, 2012.

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sária submissão e a consagração a sua dama de eleição, a fidelidade, a constância. O que nos permite afirmar que o amor de José Matias é uma releitura daquele amor-vassalagem que no medievo se desig-nava fin’Amors.

Esse “puro amor” se exibe no conto como “amor transcendentemente desmaterializado”.  E como tal, a situação amorosa de José Matias é dese-nhada como uma espécie de adoração. O narrador o compara a um “mon-ge, prostrado ante uma Imagem da Virgem, em transcendente enlevo”. Pa-rodiando uns versos de Camões, José Matias é o amador que se transforma na cousa amada por motivo de muito imaginar: “dentro da sua alma, numa fusão tão absoluta que se tornou consubstancial com o seu ser!” 

Os fragmentos que apresentaremos a seguir calham à perfeição para a análise não só da personagem, mas, sobretudo da postura adotada pelo narrador. Leia-se: 

Era no Outono, quando a imagem tua

À luz da Lua...

Pois, como nessa estrofe, o pobre José Matias, ao regressar da praia da

Ericeira em Outubro, no Outono, avistou Elisa Miranda, uma noite no

terraço, à luz da Lua! O meu amigo nunca contemplou aquele precioso

tipo de encanto Lamartiniano. Alta, esbelta, ondulosa, digna da compa-

ração bíblica da palmeira ao vento. Cabelos negros, lustrosos e ricos, em

bandós ondeados. Uma carnação de camélia muito fresca. Olhos ne-

gros, líquidos, quebrados, tristes, de longas pestanas... (QUEIRÓS, 1987,

p.168).

Se o olhar como veículo do amor, causa da paixão amorosa era um dos principais lugares-comuns da religião do amor trovadoresca, o mes-mo se pode dizer do que ocorre com José Matias: 

As janelas do quarto do José Matias abriam sobre o seu jardim e sobre

o jardim dos Mirandas: e, quando entrei, ele ainda se vestia, lentamen-

te. Nunca admirei, meu amigo, face humana aureolada por felicidade

mais segura e serena! Sorria iluminadamente quando me abraçou, com

um sorriso que vinha das profundidades da alma iluminada; sorria ain-

da deliciadamente enquanto eu lhe contei todos os meus desgostos

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Capítulo 05Eça de Queirós (1845-1900)

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no Alentejo: sorriu depois extaticamente, aludindo ao calor e enrolando

um cigarro distraído; e sorriu sempre, enlevado, a escolher na gaveta da

cómoda, com escrúpulo religioso, uma gravata de seda branca. E a cada

momento, irresistivelmente, por um hábito já tão inconsciente como o

pestanejar, os seus olhos risonhos, calmamente enternecidos, se volta-

vam para as vidraças fechadas... De sorte que, acompanhando aquele

raio ditoso, logo descobri, no terraço da casa da Parreira, a divina Elisa,

vestida de claro, com um chapéu branco, passeando preguiçosamente,

calçando pensativamente as luvas, e espreitando também as janelas do

meu amigo, que um lampejo oblíquo do Sol ofuscava de manchas de

ouro. O José Matias, no entanto, conversava, antes murmurava, através

do sorriso perene, coisas afáveis e dispersas. Toda a sua atenção se con-

centrara diante do espelho, no alfinete de coral e pérola para prender a

gravata, no colete branco que abotoava e ajustava com a devoção com

que um padre novo, na exaltação cândida da primeira missa, se reveste

da estola e do amicto, para se acercar do altar. Nunca eu vira um homem

deitar, com tão profundo êxtase, água-de-colónia no lenço! E depois de

enfiar a sobrecasaca, de lhe espetar uma soberba rosa, foi com inefável

emoção, sem reter um delicioso suspiro, que abriu largamente, solene-

mente, as vidraças! Introibo ad altarem Deam! Eu permaneci discreta-

mente enterrado no sofá. E, meu caro amigo, acredite! Invejei aquele

homem à janela, imóvel, hirto na sua adoração sublime, com os olhos, e

a alma, e todo o ser cravados no terraço, na branca mulher calçando as

luvas claras, e tão indiferente ao mundo como se o mundo fosse apenas

o ladrilho que ela pisava e cobria com os pés!

E este enlevo, meu amigo, durou dez anos, assim esplêndido, puro,

distante e imaterial! Não ria... Decerto se encontravam na quinta de D.

Mafalda: decerto se escreviam, e transbordantemente, atirando as cartas

por cima do muro que separava os dois quintais: mas nunca, por cima

das heras desse muro, procuraram a rara delícia duma conversa roubada

ou a delícia ainda mais perfeita dum silêncio escondido na sombra. E

nunca trocaram um beijo... Não duvide! Algum aperto de mão fugidio

e sôfrego, sob os arvoredos de D. Mafalda, foi o limite exaltadamen-

te extremo, que a vontade lhes marcou ao desejo. O meu amigo não

compreende como se mantiveram assim dois frágeis corpos, durante

dez anos, em tão terrível e mórbido renunciamento... Sim, decerto lhes

faltou, para se perderem, uma hora de segurança ou uma portinha no

muro. Depois a divina Elisa vivia realmente num mosteiro, em que fer-

rolhos e grades eram formados pelos hábitos rigidamente reclusos de

Matos Miranda, diabético e tristonho. Mas, na castidade deste amor, en-

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trou muita nobreza moral e finura superior de sentimento. O amor espi-

ritualiza o homem – e materializa a mulher. Essa espiritualização era fácil

ao José Matias, que (sem nós desconfiarmos) nascera desvairadamente

espiritualista; mas a humana Elisa encontrou também um gozo delicado

nessa ideal adoração de monge, que nem ousa roçar, com os dedos

trêmulos e embrulhados no rosário, a túnica da Virgem sublimada. Ele,

sim, ele gozou nesse amor transcendentemente desmaterializado um

encanto sobre-humano. E durante dez anos, como o Rui Blas do velho

Hugo, caminhou, vivo e deslumbrado, dentro do seu sonho radiante,

sonho em que Elisa habitou realmente dentro da sua alma, numa fusão

tão absoluta que se tornou consubstancial com o seu ser! Acreditará

o meu amigo que ele abandonou o charuto, mesmo passeando soli-

tariamente a cavalo pelos arredores de Lisboa, logo que descobrira na

quinta de D. Mafalda, uma tarde, que o fumo perturbava Elisa?

E esta presença real da divina criatura no seu ser criou no José Matias

modos novos, estranhos, derivando da alucinação. Como o Visconde de

Garmilde jantava cedo, à hora vernácula do Portugal antigo, José Ma-

tias ceava, depois de S. Carlos, naquele delicioso e saudoso Café Central,

onde o linguado parecia frito no céu, e o Colares no céu engarrafado.

Pois nunca ceava sem serpentinas profusamente acesas e a mesa junca-

da de flores. Porquê? Porque Elisa também ali ceava, invisível. Daí esses

silêncios banhados num sorriso religiosamente atento... Porquê? Porque

a estava sempre escutando! Ainda me lembro dele arrancar do quarto

três gravuras clássicas de Faunos ousados e Ninfas rendidas... Elisa paira-

va idealmente naquele ambiente; e ele purificava as paredes, que man-

dou forrar de sedas claras. O amor arrasta ao luxo, sobretudo amor de

tão elegante idealismo: e o José Matias prodigalizou com esplendor o

luxo que ela partilhava. Decentemente não podia andar com a imagem

de Elisa numa tipóia de praça, nem consentir que a augusta imagem

roçasse pelas cadeiras de palhinha da plateia de S. Carlos. Montou, por-

tanto, carruagens dum gosto sóbrio e puro: e assinou um camarote na

Ópera, onde instalou, para ela, uma poltrona pontifical, de cetim branco,

bordado a estrelas de ouro.

Além disso, como descobrira a generosidade de Elisa, logo se tornou

congénere e sumptuosamente generoso: e ninguém existiu então em

Lisboa que espalhasse, com facilidade mais risonha, notas de cem mil-

réis. Assim desbaratou, rapidamente, sessenta contos com o amor da-apidamente, sessenta contos com o amor da-

quela mulher a quem nunca dera uma flor!

E, durante esse tempo, o Matos Miranda? Meu amigo, o bom Matos Mi-o Matos Miranda? Meu amigo, o bom Matos Mi-

randa não desmanchava nem a perfeição, nem a quietação desta felici-

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Capítulo 05Eça de Queirós (1845-1900)

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dade! Tão absoluto seria o espiritualismo do José Matias, que apenas se

interessasse pela alma de Elisa, indiferente às submissões do seu corpo,

invólucro inferior e mortal?... Não sei. Verdade seja! aquele digno diabé-

tico, tão grave, sempre de cache-nez de lã escura, com as suas suíças

grisalhas, os seus ponderosos óculos de ouro, não sugeria ideias inquie-

tadoras de marido ardente, cujo ardor, fatalmente e involuntariamen-

te, se partilha e abrasa. Todavia nunca compreendi, eu, filósofo, aquela

consideração, quase carinhosa, do José Matias pelo homem que, mes-

mo desinteressadamente, podia por direito, por costume, contemplar

Elisa desapertando as fitas da saia branca!... Haveria ali reconhecimento

por o Miranda ter descoberto numa remota rua de Setúbal (onde José

Matias nunca a descortinaria) aquela divina mulher, e por a manter em

conforto, solidamente nutrida, finamente vestida, transportada em ca-

leches de macias molas? Ou recebera o José Matias aquela costumada

confidência – “não sou tua, nem dele” – que tanto consola do sacrifício,

porque tanto lisonjeia o egoísmo?... Não sei. Mas, com certeza, este seu

magnânimo desdém pela presença corporal do Miranda no templo,

onde habitava a sua Deusa, dava à felicidade de José Matias uma unida-

de perfeita, a unidade dum cristal que por todos os lados rebrilha, igual-

mente puro, sem arranhadura ou mancha. E esta felicidade, meu amigo,

durou dez anos... Que escandaloso luxo para um mortal!

Mas um dia, a terra, para o José Matias, tremeu toda, num terramoto

de incomparável espanto. Em Janeiro ou Fevereiro de 1871, o Miranda,

já debilitado pela diabetes, morreu com uma pneumonia. Por estas

mesmas ruas, numa pachorrenta tipóia de praça, acompanhei o seu en-ruas, numa pachorrenta tipóia de praça, acompanhei o seu en-

terro numeroso, rico, com Ministros, porque o Miranda pertencia às Ins-

tituições. E depois, aproveitando a tipóia, visitei o José Matias em Arroios,

não por curiosidade perversa, nem para lhe levar felicitações indecentes,

mas para que, naquele lance deslumbrador, ele sentisse ao lado a força

moderadora da Filosofia... Encontrei porém com ele um amigo mais an-

tigo e confidencial, aquele brilhante Nicolau da Barca, que já conduzi

também a este cemitério, onde agora jazem, debaixo de lápides, todos

aqueles camaradas com quem levantei castelos nas nuvens... O Nicolau

chegara da Velosa, da sua quinta de Santarém, de madrugada, reclama-

do por um telegrama do Matias. Quando entrei, um criado atarefado

arranjava duas malas enormes. O José Matias abalava nessa noite para o

Porto. Já envergara mesmo um fato de viagem, todo negro, com sapatos

de couro amarelo: e depois de me sacudir a mão, enquanto o Nicolau

remexia um grogue, continuou vagando pelo quarto, calado, como em-

baçado, com um modo que não era emoção, nem alegria pudicamente

disfarçada, nem surpresa do seu destino bruscamente sublimado. Não!

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Literatura Portuguesa II

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se o bom Darwin não nos ilude no seu livro da Expressão das Emoções,

o José Matias, nessa tarde, só sentia e só exprimia embaraço! Em fren-

te, na casa da Parreira, todas as janelas permaneciam fechadas sob a

tristeza da tarde cinzenta. E, todavia, surpreendi o José Matias atirando

para o terraço, rapidamente, um olhar em que transparecia inquietação,

ansiedade, quase terror! Como direi? Aquele é o olhar que se resvala

para a jaula mal segura onde se agita uma leoa! Num momento em que

ele entrara na alcova, murmurei ao Nicolau, por cima do grogue: – “O

Matias faz perfeitamente em ir para o Porto...” Nicolau encolheu os om-

bros: – “Sim, pensou que era mais delicado... Eu aprovei. Mas só durante

os meses de luto pesado...” Às sete horas acompanhámos o nosso amigo

à estação de Santa Apolónia. Na volta, dentro do cupé que uma grande

chuva batia, filosofámos. Eu sorria contente: – “Um ano de luto, e depois

muita felicidade e muitos filhos... É um poema acabado!” – O Nicolau

acudiu, sério: – “E acabado numa deliciosa e suculenta prosa. A divina

Elisa fica com toda a sua divindade e a fortuna do Miranda, uns dez ou

doze contos de renda... Pela primeira vez na nossa vida contemplamos,

tu e eu, a virtude recompensada!”

Meu caro amigo! Os meses cerimoniais de luto passaram, depois outros,

e José Matias não se arredou do Porto. Nesse Agosto o encontrei eu

instalado fundamentalmente no Hotel Francfort, onde entretinha a me-

lancolia dos dias abrasados, fumando (porque voltara ao tabaco), lendo

romances de Júlio Verne e bebendo cerveja gelada até que a tarde re-

frescava e ele se vestia, se perfumava, se floria para jantar na Foz.

E apesar de se acercar o bendito remate do luto e da desesperada espera,

não notei no José Matias nem alvoroço elegantemente reprimido, nem

revolta contra a lentidão do tempo, velho por vezes tão moroso e trô-

pego... Pelo contrário! Ao sorriso de radiosa certeza, que nesses anos o

iluminara com um nimbo de beatitude, sucedera a seriedade carregada,

toda em sombra e rugas, de quem se debate numa dúvida irresolúvel,

sempre presente, roedora e dolorosa. Quer que lhe diga? Nesse Verão,

no Hotel Francfort, sempre me pareceu que o José Matias, a cada instan-

te da sua vida acordada, mesmo emborcando a fresca cerveja, mesmo

calçando as luvas ao entrar para a caleche que o levava à Foz, angustia-

damente perguntava à sua consciência: – “Que hei-de fazer? Que hei-de

fazer?” – E depois, uma manhã, ao almoço, realmente me assombrou,

exclamando ao abrir o jornal, com um assomo de sangue na face: “O

quê? Já são 29 de Agosto? Santo Deus... Já o fim de Agosto!...”

Voltei a Lisboa, meu amigo. O Inverno passou, muito seco e muito azul.

Eu trabalhei nas minhas Origens do Utilitarismo. Um domingo, no Ros-

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Capítulo 05Eça de Queirós (1845-1900)

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sio, quando já se vendiam cravos nas tabacarias, avistei dentro dum cupé

a divina Elisa, com plumas roxas no chapéu. E nessa semana encontrei

no meu Diário Ilustrado a notícia curta, quase tímida, do casamento da

sr.ª D. Elisa Miranda... Com quem, meu amigo? – Com o conhecido pro-

prietário, o sr. Francisco Torres Nogueira!...

O meu amigo cerrou aí o punho, e bateu na coxa, espantado. Eu

também cerrei os punhos ambos, mas agora para os levantar ao Céu

onde se julgam os feitos da Terra, e clamar furiosamente, aos urros, con-

tra a falsidade, a inconstância ondeante e pérfida, toda a enganadora

torpeza das mulheres, e daquela especial Elisa cheia de infâmia entre as

mulheres! Atraiçoar à pressa, atabalhoadamente, apenas findara o luto

negro, aquele nobre, puro, intelectual Matias! e o seu amor de dez anos,

submisso e sublime!...

E depois de apontar os punhos para o Céu ainda os apertava na cabeça,

gritando: – “Mas porquê? – Por amor? Durante anos ela amara enleva-porquê? – Por amor? Durante anos ela amara enleva-

damente este moço, e dum amor que se não desiludira nem se fartara,

porque permanecia suspenso, imaterial, insatisfeito. Por ambição? Torres

Nogueira era um ocioso amável como José Matias, e possuía em vinhas

hipotecadas os mesmos cinquenta ou sessenta contos que o José Ma-

tias herdara agora do tio Garmilde em terras excelentes e livres. Então

porquê? (ver anterior?) certamente porque os grossos bigodes negros

do Torres Nogueira apeteciam mais à sua carne do que o buço louro e

pensativo do José Matias! Ah! bem ensinara S. João Crisóstomo que a

mulher é um monturo de impureza, erguido à porta do Inferno!

Pois, meu amigo, quando eu assim rugia, encontro uma tarde na rua

do Alecrim o nosso Nicolau da Barca, que salta da tipóia, me empurra

para um portal, agarra excitadamente no meu pobre braço e exclama

engasgado: – “Já sabes? Foi o José Matias que recusou! Ela escreveu,

esteve no Porto, chorou... Ele nem consentiu em a ver! Não quis casar,

não quer casar!” Fiquei trespassado. – “E então ela...” – “Despeitada, forte-

mente cercada pelo Torres, cansada da viuvice, com aqueles belos trin-

ta anos em botão, que diabo! Cotada, casou!” Eu ergui os braços até à

abóbada do pátio: – “Mas então esse sublime amor do José Matias?” O

Nicolau, seu íntimo e confidente, jurou com irrecusável segurança: – “É

o mesmo sempre! Infinito, absoluto... Mas não quer casar!” – Ambos nos

olhámos, e depois ambos nos separámos, encolhendo os ombros, com

aquele assombro resignado que convém a espíritos prudentes perante

o Incognoscível. Mas eu, Filósofo, e portanto espírito imprudente, toda

essa noite esfuraquei o acto do José Matias com a ponta duma Psicolo-

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Literatura Portuguesa II

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gia que expressamente aguçara: – e já de madrugada, estafado, concluí,

como se conclui sempre em Filosofia, que me encontrava diante duma

Causa Primaria, portanto impenetrável, onde se quebraria, sem vanta-

gem para ele, para mim ou para o Mundo, a ponta do meu Instrumento!

(QUEIRÓS, 1987, p.169 e ss)

Noutras palavras, o narrador revela a impossibilidade de compreender, à luz da análise psicológica, a “complicada subtileza desta paixão” e o que ele define como a “tortuosidade espiritual” de Matias: 

Como lhe direi?... O sentimento deste extraordinário Matias era o de

um monge, prostrado ante uma Imagem da Virgem, em transcendente

enlevo – quando de repente um bestial sacrílego trepa ao altar, e er-

gue obscenamente a túnica da Imagem. O meu amigo sorri... E então

o Matos Miranda? Ah! meu amigo! esse era diabético, e grave, e obeso,

e já existia instalado na Parreira, com a sua obesidade e a sua diabetes,

quando ele conhecera Elisa e lhe dera para sempre vida e coração. E o

Torres Nogueira, esse, rompera brutalmente através do seu puríssimo

amor, com os negros bigodes, e os carnudos braços, e o rijo arranque

dum antigo pegador de touros, e empolgara aquela mulher – a quem

revelara talvez o que é um homem!

Mas, com os demónios! Essa mulher ele a recusara, quando ela se lhe

oferecia, na frescura e na grandeza dum sentimento que nenhum des-frescura e na grandeza dum sentimento que nenhum des-

dém ainda ressequira ou abatera. Que quer?... É a espantosa tortuosida-

de espiritual deste Matias! (QUEIRÓS, 1987, p.175)

Para concluir, embora o apresentando como um abismo insondável, interessa sobretudo destacar como o narrador do conto tece o seu “ve- sobretudo destacar como o narrador do conto tece o seu “ve-redito”: 

Enredado caso, hem, meu amigo? Ah! muito filosofei sobre ele, por de-

ver de filósofo! E concluí que o Matias era um doente, atacado de hipe-

respiritualismo, duma inflamação violenta e pútrida do espiritualismo,

que receara apavoradamente as materialidades do casamento, as chine-

las, a pele pouco fresca ao acordar, um ventre enorme durante seis me-

ses, os meninos berrando no berço molhado... E agora rugia de furor e

tormento, porque certo materialão, ao lado, se prontificara a aceitar Elisa

em camisola de lã. Um imbecil?... Não, meu amigo! um ultra-romântico,

loucamente alheio às realidades fortes da vida, que nunca suspeitou

que chinelas e cueiros sujos de meninos são coisas de superior beleza

em casa em que entre o sol e haja amor (QUEIRÓS, 1987, p.176).

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Capítulo 05Eça de Queirós (1845-1900)

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Como se pretende pensar este conto como desdobramento lógico dos postulados realistas, você não acha que caberia perguntar: José Matias seria um “tipo”? Se, conforme o modo se desenhar a personagem de ficção no Realismo, os indivíduos servem para tipificar uma conduta de classe ou um grupo social [personagem-tipo], o que Matias personificaria? O “homem sentimental” ultra-romântico? Por extensão, seria ele um repre-sentante de um Portugal arcaico, cultuador do passado medieval, monár-quico e de costas às transformações do tempo presente? Noutras palavras, Matias, por conta da sua perda da dimensão do coletivo, do social, corpo-rificaria aquele idealismo combatido pela Geração de 70, e por extensão, um ideal contrário à modernidade?

Nas perguntas, as respostas. 

Certo, mas você não acharia oportuno perguntar também: Quem vê? Qual a perspectiva narrativa? Quem é esse narrador que tão bem sabe argumentar para atestar um ponto de vista, definir uma fisiono-mia, um tipo social, em suma. Ora, não é difícil identificarmos um narrador intruso que intervém, que não oculta o seu espírito analíti-co, sua cosmovisão pautada na observação e nas reflexões psicológicas e filosóficas, enfim, que tenta compreender o idealismo sentimental de José Matias. 

Convém lembrar que, conforme nos ensinam os estudos narratológi-

cos (Teoria da Literatura), o foco da narração condiciona a avaliação

de um texto e se articula com o modo como o autor e/ou o narra-

dor vê as coisas e o mundo. E isso se articula ao contexto literário da

época, no caso, a tensão entre românticos e realistas, o que remete às

disputas sobre como a literatura devia se relacionar com a realidade.

Não é gratuito, portanto, que, no início do conto, mencione-se a

data emblemática de 1865. Nesse embate saem vitoriosos os que

defendiam a análise, a síntese e exposição da realidade “tal e qual”,

contra o idealismo e os derramamentos sentimentais dos românti-

cos tão bem retratado por meio da figura de José Matias.

Para fazer uma revisão do assunto sobre personagens e narração você pode verificar a Unidade C em: VIRGINIA DE ALMEIDA, T. Teoria da Literatura II. Florianópolis: LLV/CCE/UFSC, 2012.

Visão de mundo; concep-ção do mundo.

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Literatura Portuguesa II

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Falemos agora do narrador desse conto de Eça. Trata-se de um nar-rador cosmopolita, por cujo crivo do seu espírito científico passa tudo, tudo o que considera um caso patológico. Assim, vale repetir, depois da análise, o narrador chega a uma síntese:

Ah! muito filosofei sobre ele, por dever de filósofo! E concluí que o Matias

era um doente, atacado de hiperespiritualismo (QUEIRÓS, 1987, p.176).

Observe como se revela, em todas as suas linhas, a sátira à passio-nalidade romântica sob o prisma do pensamento científico desejado por Eça. Literatura como testemunho, veredito sobre o real.

E, por fim, caberia a seguinte pergunta: afinal, qual é a lição do narrador realista? Talvez se possa dizer que do culto à forte carga de emotividade pessoal, da celebração do idealismo amoroso, do exagero sentimental derivam a perda da consciência do social, como vimos anteriormente. E isso se lê com todas as suas linhas no conto. Note como o narrador define José Matias: “ultra-romântico, loucamente alheio às realidades fortes da vida”.

E não seria exagerado afirmar que satirizar o idealismo (ultra)ro-mântico é uma estratégia discursiva contra o antigo regime monárqui-co. Lembre que, grosso modo, os realistas eram críticos do regime mo-nárquico e a favor de idéias republicanas.

Assim, o idealizado José Matias, com todos os seus atributos de nobreza (paladino, cortês, aristocrático, ocioso) pode ser lido como figuração de um Portugal arcaico que dilapida heranças em nome de um ideal anacrônico, impedindo que uma nova nação pudesse surgir. É nesse sentido que o conto se escreve, para utilizar uma expressão de Eça, como uma crítica ou benga-lada do homem de bem nos tipos humanos que se convertiam em empeci-lhos públicos. Em resumo, a construção dessa personagem de ficção neste contexto é outro traço do projeto estético realista (liberal, republicano) em combate contra o código estético romântico (tradicional, monarquista).

Daí o estudo de caso com a consequente crítica ao “monje” José Matias. A nosso ver, ele tipifica o sentimentalismo amoroso burguês do-

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Capítulo 05Eça de Queirós (1845-1900)

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entio e surge como demonstração bastante convincente dos propósitos da Nova Arte. Resta investigar agora se as singularidades desse rapaz loiro não seria uma versão masculina de Luísa, de O primo Basílio, a que tipificaria a mulher sentimental. 

5.3 O Primo Basílio 

Não vamos nos deter numa longa análise da complexidade do romance O primo Basílio, lançado em 1878. Para os nossos objetivos interessa mais observar a construção da personagem Luísa, com a qual Eça de Queirós leva adiante o seu propósito de desenhar o quadro da sociedade portuguesa do seu tempo. Curioso lembrar que, em resposta a uma crítica favorável de Rodrigues de Freitas a este romance, Eça não deixa de justificar o lugar de onde escreve: 

“O que queremos nós com o Realismo? Fazer o quadro do mundo moder-

no, nas feições em que ele é mau, por persistir em se educar segundo o

passado; queremos fazer a fotografia, ia quase a dizer, a caricatura do ve-

lho mundo burguês, sentimental, devoto, católico, explorador, aristocráti-

co, etc., e, apontando-o ao escárnio, à gargalhada, ao desprezo do mundo

moderno e democrático - preparar a sua ruína”. (QUEIRÓS, Conferências

Democráticas do Casino Lisbonense. Disponível em http://www.instituto-

-camoes.pt/encarte/encarte39i.htm. Acesso 23 abr. 2012).

Nessa cena da vida portuguesa, encontramos um “pequeno quadro doméstico, extremamente familiar a quem conhece bem a burguesia de Lisboa”. Em poucas linhas, um dos temas principais do romance gira em torno do adultério de Luísa e suas consequências. Trata-se de uma mulher de classe média, que se entediava com facilidade, sobretudo quando o marido viajava a trabalho. Por conta de suas leituras romanescas, sonhava com “o sabor poético de uma vida intensamente amorosa”. O que vem a ocorrer com a chegada de Basílio, o primo e seu primeiro amor. Depois de ceder aos galanteios de Basílio, passa a se comunicar com ele por cartas. Mas as cartas são descobertas por Juliana, a empregada do casal, que, de posse delas, chantageia a patroa. Em troca

Personagens de Eça de Queirós

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das cartas, ela não só exige que a patroa lhe faça os serviços domésticos como também lhe pede uma boa quantia de dinheiro, o que complica ainda mais a situação de Luísa. Por conta dos trabalhos domésticos e do medo que o marido descobrisse a traição, ela contrai moléstia grave, delira e morre.

Deixamos de mencionar, nesse brevíssimo resumo, toda uma diversidade de situações associadas à Luísa no plano geral do romance. Por ora, resta dizer que Luísa é uma personagem bastante verossímil. E a sensação ou efeito de real é produzido por uma arte do pormenor. Primeiro, vamos à abertura do romance, bastante significativa dessa tentativa de “fotografar” o real tal e qual: 

Tinham dado onze horas no cuco da sala de jantar. Jorge fechou o vo-

lume de Luís Figuier que estivera folheando devagar, estirado na velha

voltair de marroquim escuro, espreguiçou-se, bocejou e disse:

— Tu não te vais vestir, Luísa?

— Logo.

Ficara sentada à mesa a ler o Diário de Notícias, no seu roupão de ma-

nhã de fazenda preta, bordado a sutache, com largos botões de madre-

pérola; o cabelo louro um pouco desmanchado, com um tom seco do

calor do travesseiro, enrolava-se, torcido no alto da cabeça pequenina,

de perfil bonito; a sua pele tinha a brancura tenra e láctea das louras;

com o cotovelo encostado à mesa acariciava a orelha, e, no movimen-

to lento e suave dos seus dedos, dois anéis de rubis miudinhos davam

cintilações escarlates.

Tinham acabado de almoçar.

A sala esteirada, alegrava, com o seu teto de madeira pintado a branco,

o seu papel claro de ramagens verdes. Era em julho, um domingo, fazia

um grande calor; as duas janelas estavam cerradas, mas sentia-se fora

o sol faiscar nas vidraças, escaldar a pedra da varanda; havia o silêncio

recolhido e sonolento de manhã de missa; uma vaga quebreira amolen-

tava, trazia desejos de sestas ou de sombras fofas debaixo de arvoredos,

no campo, ao pé da água; nas duas gaiolas, entre as bambinelas de cre-

tone azulado, os canários dormiam; um zumbido monótono de moscas

arrastava-se por cima da mesa, pousava no fundo das chávenas sobre o

açúcar mal derretido, enchia toda a sala de um rumor dormente.

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Capítulo 05Eça de Queirós (1845-1900)

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Jorge enrolou um cigarro, e muito repousado, muito fresco na sua

camisa de chita, sem colete, o jaquetão de flanela azul aberto, os olhos

no teto, pôs-se a pensar na sua jornada ao Alentejo (QUEIRÓS, 1994, p.1).

A descrição da casa de Luísa e Jorge se dá pela enumeração de uma série de pormenores concretos, o que contribui para a melhor visualiza-ção do espaço onde ocorre boa parte do romance. 

        É interessante notar que essa predileção não agradou ao crítico Ma-

chado de Assis, pois, no calor da hora, criticou O Primo Basílio censu-

rando-o pela obsessão da reprodução fotográfica do real. Ele ataca o

realismo de Eça dizendo que sua “estética é o inventário”, e exemplifica

afirmando que a nova arte “é isto e só chegará à perfeição no dia em

que nos disser o número exato dos fios de que se compõe um lenço de

cambraia”, o que considera atestado da negação mesma do princípio

da arte. De todo modo, a crítica machadiana nos serve para pensarmos

o realismo de Eça enquanto uma “arte do pormenor” com a pretensão

da “pintura viva dos fatos”. Leia a crítica machadiana à prosa de Eça de

Queirós, em: < http://www.machadodeassis.ufsc.br/obras.html>.

Em segundo lugar, melhor delinear essa personagem como uma criação romântica e contextualizá-la, ela é associada aos grandes ícones do romantismo. Numa das paredes de sua casa pende um quadro de Delacroix. Ao piano, Luísa toca Chopin. Nada é gratuito. Todo porme-nor é significativo. Mas o que mais nos chama a atenção é o que Luísa lê. Aliás, na ficção de Eça é constante o recurso de casar a condição social, o estado de alma e o modo como cada personagem vê o mundo a partir dos livros que suas personagens lêem.

É o que ocorre logo no início do romance, quando o narrador nos diz que Luísa não só “entusiasmara-se por Walter Scott e pela Escócia”, como também, “sentando-se ao piano ao anoitecer, cantava Soares de Passos”: 

— Ai adeus, acabaram-se os dias

Que ditoso vivi a teu lado...

Ferdinand Victor Eugène Delacroix (1798-1863) – pintor, principal nome do romantismo francês.

Frédéric Chopin (1810-1849): pianista polonês e compositor romântico por excelência, cuja obra é marcada por um caráter pessoal e melancólico.

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Trata-se de versos do poema A Partida, do poeta Soares de Pas-sos (1826-1860). Vale lembrar que ele é autor de O noivado do sepul-cro, texto fundamental do lirismo funéreo ultra-romântico. A asso-ciação de Luísa a Soares de Passos também não é gratuita. O lirismo fúnebre e desiludido dele emoldura o estado de alma melancólico de Luísa. Acrescente-se nessa pintura da cena romântica, sob o crivo do olhar realista, que ela imagina o Paraíso, lugar arranjado por Basílio para os encontros amorosos, conforme um romance de Paulo Féval (1817-1887), escritor francês autor de romances de aventuras. É o que ocorre no capítulo VI, veja: 

Ia, enfim, ter ela própria aquela aventura que lera tantas vezes nos ro-

mances amorosos! Era uma forma nova do amor que ia experimentar,

sensações excepcionais! Havia tudo – a casinha misteriosa, o segredo

ilegítimo, todas as palpitações do perigo! Porque o aparato impres-

sionava-a mais que o sentimento; e a casa em si interessava-a, atraía-a

mais que Basílio! Como seria? Era os lados de Arroios, adiante do Lar-

go de Santa Bárbara; lembrava-se vagamente que havia ali uma cor-

renteza de casas velhas... Desejaria antes que fosse numa quinta, com

arvoredos murmurosos e relvas fofas; passeariam as mãos enlaçadas,

num silêncio poético; e depois o som da água que cai nas bacias de

pedra daria um ritmo lânguido aos sonhos amorosos... Mas era num

terceiro andar – quem sabe como seria dentro? Lembrava-lhe um ro-

mance de Paulo Féval em que o herói, poeta e duque, forra de cetins

e tapeçarias o interior de uma choça; encontra ali a sua amante; os

que passam, vendo aquele casebre arruinado, dão um pensamento

compassivo à miséria que decerto o habita – enquanto dentro, muito

secretamente, as flores se esfolham nos vasos de Sèvres e os pés nus

pisam gobelins veneráveis! Conhecia o gosto de Basílio – e o Paraíso

decerto era como no romance de Paulo Féval (QUEIRÓS, 1994, p.123).

No entanto, o que ocorre no primeiro encontro amoroso com Basílio é bem diverso das expectativas de Luísa, dos seus sonhos ro- das expectativas de Luísa, dos seus sonhos ro-manescos. Leia-se:

A carruagem parou ao pé de uma casa amarelada, com uma portinha

pequena. Logo à entrada um cheiro mole e salobre enojou-a. A esca-

da, de degraus gastos, subia ingrememente, apertada entre paredes

onde a cal caía, e a umidade fizera nódoas. No patamar da sobreloja,

uma janela com um gradeadozinho de arame, parda do pó acumula-

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Capítulo 05Eça de Queirós (1845-1900)

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do, coberta de teias de aranha, coava a luz suja do saguão. E por trás de

uma portinha, ao lado, sentia-se o ranger de um berço, o chorar doloro-

so de uma criança (QUEIRÓS, 1994, 124).

Também aqui a minuciosa descrição do espaço nos permite facilmente visualizar a cena. Desconcertada e com os “olhos muito abertos”, Luísa observa que no interior do quarto há “uma cama de ferro com uma colcha amarelada, feita de remendos juntos de chitas diferen- de remendos juntos de chitas diferen-tes; e os lençóis grossos, de um branco encardido e mal lavado”, e outros detalhes que configuram um lugar decadente. Mas há algo que de certo modo mais a fascinou: “uma larga fotografia, por cima do velho canapé de palhinha”. Tratava-se de “um indivíduo atarracado, de aspecto hílare e alvar, com a barba em colar, o feitio de um piloto ao domingo”. Agora observe como a descrição desse navegador de fisionomia alegre e clara é associada à frustrada viagem romanesca dela: 

E Luísa, sentindo um arrepio de frio nos seus ombros nus, abandonava-

-se com uma vaga resignação, entre os joelhos de Basílio – vendo cons-

tantemente voltada para si a face alvar do piloto.

Assim um iate que aparelhou nobremente para uma viagem romanesca

vai encalhar, ao partir, nos lodaçais do rio baixo; e o mestre aventureiro,

que sonhava com os incensos e os almíscares das florestas aromáticas,

imóvel sobre o seu tombadilho, tapa o nariz aos cheiros dos esgotos

(QUEIRÓS, 1994, p.125).

       Eis um dos tantos exemplos que revelam a fina ironia de Eça. Assim, com o desencanto da personagem, o narrador chama a atenção para o que se pode chamar de bovarismo à lusitana. de Luísa. Curio-so notar que, se o narrador limita-se a apresentar a cena, não deixa de passar a palavra a uma das personagens para que dê o veredito sobre a condição dessa personagem: 

Ali anda coisa de cabeça – dizia, franzindo a testa, com o ar profundo. – Sabe

o que ela tem, Sra. Helena? É muita dose de novelas naquela cachimônia.

Eu vejo-a de pela manhã até a noite de livro na mão. Põe-se a ler romances

e mais romances... Aí tem o resultado: arrasada! (QUEIRÓS, 1994, p.220).

Esta passagem, por sua vez, nos remete à carta de Eça endereçada a Teófilo Braga, na qual aquele traça um rápido perfil de seus personagens

Trata-se de uma alusão à personagem Emma Bovary, de Flaubert, uma das inspirações de Eça para a construção da sua personagem de ficção. Como se lê no E-Dicio-nário de termos literários, bovarismo é um termo “cunhado em 1892 por Jules de Gaultier a partir do romance de Gustave Flaubert, Madame Bovary, cuja heroína, saturada de leituras romanes-cas, mede a sua própria vida pelos parâmetros provenientes da sua experiência de leitora. O bovarismo consiste, assim, numa insatisfação roma-nesca com a realidade, numa inversão do olhar, e demonstra a incapa-cidade de assumir uma posição crítica em relação à ficção. O abismo que se abre entre as duas expe-riências, a da realidade e a do imaginário, confere uma dimensão ao mesmo tempo trágica e irónica ao bovarismo.” Disponível em: <http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/B/bovarismo.htm>. Acesso em: 23 abr. 2012.

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principais. No caso de Luísa, pinta-a como “a senhora sentimental, mal-educada”, “arrasada de romance, lírica, sobreexcitada no temperamento pela ociosidade, nervosa pela falta de exercício e disciplina moral”. É certo que não se trata de uma crítica ao ato de ler em si, mas, sim, uma crítica à educação sentimental romântica. É contra as instituições res-ponsáveis “por educar segundo o passado”, a família burguesa, a Mo-narquia, que se volta à literatura de Eça. E o faz, não sem boa dose de ironia, com verdadeiro culto ao pormenor, com minuciosa atenção aos detalhes com os quais representa a realidade.

Nesse sentido, vale retomar o que Eça postulava na sua conferência intitulada A literatura nova. O Realismo como expressão da arte, pronun-ciada no Casino Lisbonense, em 1871: 

A norma agora são as narrativas a frio, deslizando como as imagens na

superfície de um espelho, sem intromissões do narrador. O romance

tem de nos transmitir a natureza em quadros exactíssimos, flagrantes,

reais (Citado em: <http://faroldasletras.no.sapo.pt/realismo_naturalis-

mo.htm#idealismo_e_realismo>. Acesso em: 23 abr. 2012).

Como vimos, este fragmento sobre as pretensões do movimento realista revela o que condiciona a realização de O Primo Basílio, a saber, a verossimilhança, a pintura fidedigna da realidade, o compromisso com a crítica social e aos lugares comuns do romantismo. Mas é curioso notar que o narrador desse romance, de certo modo, relativiza a tal “norma das nar-rativas a frio” com “neutralidade do coração”. É o que ocorre em relação ao tratamento do narrador quanto à Luisa, que se altera ao longo do romance.

Durante o período de adultério, ela é caracterizada de forma negativa: é a preguiçosa, a vaidosa, a fútil, a frívola. Após sua desilusão, quando ela toma consciência de que a sua viagem romanesca encalha na lama da realidade, quando ela percebe que os incensos e almíscares da sua imaginação são dissipados pelos odores dos esgotos do real, então ela passa a ser vista, digamos, de modo menos irônico.

Aliás, o narrador chega a comover-se com o seu desenlace trágico. Ao descrever o enterro dela, o narrador afirma: “o crepúsculo triste

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Capítulo 05Eça de Queirós (1845-1900)

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descia, parecia trazer um silêncio funerário”. Cáspite! Esta interjeição, muito utilizada por Eça, exprime um misto de admiração e espanto com leve tom jocoso. O que dizer desta passagem: “o crepúsculo triste descia, parecia trazer um silêncio funerário”?

Ora, talvez se possa dizer que com isso o narrador se mostra sensibilizado com o triste fim dela. Noutras palavras, que ele revela certa afetividade para com Luísa e que esse afeto é projetado no ambiente. Em consequência, sugere confundir os seus sentimentos ou seu ponto de vista com o destino de Luísa, o que entra em tensão com a pretensa objetividade realista das “narrativas a frio”.

Isso parece antecipar a mudança no modo se de conceber o literário após o lançamento de O Primo Basílio, em 1878. Sua percepção acer-ca dos limites do Realismo fica explícita no prefácio de O Mandarim (1880), no qual ele refere “a incômoda submissão à verdade, a tortura da análise, a impertinente tirania da realidade”.  Eça mostra-se ciente de que o Realismo terminava por engessar a literatura ao condicionar a criação literária à aplicação de teses deterministas dadas de antemão (a saber, o condicionamento do meio, do momento e da hereditariedade, conforme os estudos de Hippolyte Taine.

Afirma-se que, desde 1880, Eça deu uma guinada na sua produção ficcional para praticar uma fórmula livre e pessoal de estilização realista, na qual o seu lirismo essencial e o seu humor fantasista se combinavam com “as nudezas da Verdade”.

Embora possamos identificar traços dessa mudança de perspectiva sobre a sua compreensão acerca do literário, não se pode perder de vista que O primo Basílio é, como dissemos antes, um romance de tese.

Se José Matias é um caso digno de estudo, o mesmo se pode dizer de Luísa, desenhada à luz do projeto estético ao qual se convencionou chamar de Realismo. Logo, com a personagem Luísa, Eça de Queirós concentra para generalizar, para tipificar uma conduta de uma classe social, no intuito de demonstrar o quanto uma educação viciosa pode

Hippolyte Adolphe Taine

(1828 – 1893) – crítico e historia-

dor francês, membro da Academia

Francesa. O Método de Taine consiste

no estudo da condição humana

considerando-se as influências do

meio ambiente, de raça ou heredita-

riedade e do momento histórico. Os

escritores realistas fizeram uso desse

método para a construção de suas

personagens de ficção.

Citado em: <http://farol-dasletras.no.sapo.pt/rea-lismo_naturalismo.htm>. Acesso em: 22 abr. 2012.

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culminar na formação de uma personalidade frágil, abúlica, numa pala-vra, bovarista. Finalizemos este Capítulo passando a palavra ao autor de O Primo Basílio (1878): 

é necessário acutilar o mundo oficial, o mundo sentimental, o mundo li-

terário, o mundo agrícola, o mundo supersticioso – e com todo o respeito

pelas instituições que são de origem eterna, destruir as falsas interpretações

e falsas realizações que lhe dá uma sociedade podre. Não lhe parece você

que um tal trabalho é justo? (apud José de Nicola, in QUEIRÓS, 1994, p.XIII).

Leia mais!

Para um aprofundamento do assunto, recomendamos a leitura dos capítulos VII, VIII e X, intitulados respectivamente Inícios da Geração de 70, Antero de Quental, Eça de Queirós e a ficção realista, os quais compõem a História da Literatura Portuguesa, de António José Saraiva e Óscar Lopes (Porto: Porto Editora, 2001). Os capítulos sugeridos abordam os elementos que animam o projeto das Conferências do Casino e a obra poética de Antero de Quental, como também permitem acompanhar o desenvolvimento da carreira literária de Eça de Queirós, favorecendo o reconhecimento da com-plexidade de sua obra numa visão panorâmica da mesma.

Convide os seus colegas de classe para assistir a adaptação cinematográfi-ca de O primo Basílio, realizada em 2007, por direção de Daniel Filho. Há vários sites que permitem realizar o download do mesmo, a exemplo de < http://www.superdownloads.com.br/download/152/primo-basilio-eca-de--queiros/>. Embora recriação livre, o contemporânea, o filme apresenta vários pontos de diálogo com o romance de Eça de Queirós. Fica a sugestão para uma boa conversa literária e as relações da história com a literatura.

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Unidade CO Simbolismo (1890-1915?)

Música I (1895), de Gustav Klimt (1862 - 1918)

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Capítulo 06

Simbolismo: o poder sugestivo do verbo

Alusões simbólicas representativas da criação musical.

Infinitos espíritos dispersos,

Inefáveis, edênicos, aéreos,

Fecundai o Mistério destes versos

Com a chama ideal de todos os mistérios.

Do Sonho as mais azuis diafaneidades

Que fuljam, que na Estrofe se levantem

E as emoções, todas as castidades

Da alma do Verso, pelos versos cantem.

Que o pólen de ouro dos mais finos astros

Fecunde e inflame a rima clara e ardente...

(Antífona, de Cruz e Sousa ) 

 OBJETIVOS: No último mo[vi]mento literário a ser estudado nesta dis-

ciplina, o seu desafio consistirá na investigação dos componentes fundamentais

do movimento simbolista português a partir da análise de poemas de Eugênio

de Castro (1869-1944) e de Camilo Pessanha (1867-1926). 

“Quem não gosta de samba, bom sujeito não é, é ruim da cabeça, ou doente do pé”. Poderíamos refazer a letra desse samba e perguntar, “quem não gosta de música”? Pois é! A relação entre texto e pauta musical é um tema caro à literatura portuguesa, sobretudo nas suas “origens”. Você certamente deve se recordar do tempo da “palavra cantada”, o Trovadorismo. Mas no final do século XIX, após certo esgotamento da estética realista, essa relação ganhou novos contornos, pois se pretendeu alçar a poesia à condição de música. Eis um dos objetivos principais desse movimento literário que se convencionou chamar de Simbolismo. 

Trata-se de uma corrente literária que foi se afirmando ao longo da se-

gunda metade do século XIX, primeiro na França, depois em Portugal

e no Brasil. Em que consiste tal movimento? O mesmo se reduz à ten-

tativa de renovação literária ou também abarca uma visão de mundo?

Simbolismo: o poder sugestivo do verbo

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6

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O termo “Simbolismo”, enquanto corrente artística, foi cunhado por Jean de Moréas (1856-1910), num artigo-manifesto de 1886, pu-Moréas (1856-1910), num artigo-manifesto de 1886, pu-blicado no jornal Le Fígaro. Neste texto, Moréas constatou o “inelu-tável fim” do Romantismo e do Realismo bem como o surgimento de “uma nova manifestação de arte”, a qual ele preferiu nomear “Le Symbolisme”. Segundo ele, a renovação literária se dava pela valori-zação de uma “poesia inimiga da descrição objetiva”, ou seja, a fa-vor de uma arte da sugestão ou de expressão indireta dos estados de alma. E louvou o surgimento de um vocabulário “novo, em que as harmonias se combinam com as cores e as linhas”. E, num senti-do mais profundo, destacou a exploração das chamadas “analogias exteriores”, em alusão à busca de relações entre o ser e o mundo, o cosmos e o humano, o particular e o universal.

E não se pode falar de poesia e do conceito da analogia, enquanto relação de semelhança ou de identidade entre duas coisas, sem passar pelo soneto intitulado Correspondências, de Charles Baudelaire. É um poema fundamental para a compreensão da proposta e do lugar do po-eta à na vertente simbolista. 

6.1 Teoria das correspondências

Como ocorreu no Romantismo, o Simbolismo também foi marcado por forte teor místico. E ao poeta coube novamente a tarefa de se tornar um vate (porta-voz das mais altas esferas, vidente, tradu-tor). Nesse sentido, pode-se afirmar que na arte poética simbolista, contra a visão de mundo materialista que anima boa parte dos textos realistas, se retoma o culto ao mistério, logo a valorização da dimen-são mística da vida. Ao ponto de fazer da poesia uma forma de culto. Não raro consideram-se os simbolistas cultores da “religião do verbo”. A arte se postula como substituta da religião. Como escreve Mallarmé, em 1886, a poesia é a expressão, pela linguagem humana que retoma seu ritmo essencial, do sentido misterioso dos aspectos da existência; ela doa assim autenticidade à nossa vida espiritual.

Charles-Pierre Baudelaire (1821-1867) – poeta e críti-co de arte francês, conside-

rado um dos precursores do Simbolismo.

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Capítulo 06

Vejamos como alguns dos componentes fundamentais do simbo-lismo condicionam a redação do soneto de Baudelaire, na excelente tra-dução de José Lino Grünewald: 

A Natureza é um templo onde vivos pilares

Deixam sair às vezes palavras confusas:

Por florestas de símbolos, lá o homem cruza

Observado por olhos ali familiares.

Tal longos ecos longe onde lá se confundem

Dentro de tenebrosa e profunda unidade

Imensa como a noite e como a claridade,

Os perfumes, as cores e os sons se transfundem.

Perfumes de frescor tal a carne de infantes,

Doces como o oboé, verdes igual ao prado,

— Mais outros, corrompidos, ricos, triunfantes,

Possuindo a expansão de um algo inacabado,

Tal como o âmbar, almíscar, benjoim e incenso,

Que cantam o enlevar dos sentidos e o senso.

(Grünewald, 1991, p.59).

Agora confira o original Correspondances, de Charles Baudelaire (1821-1867): 

La Nature est un temple où de vivants piliers

Laissent parfois sortir de confuses paroles;

L’homme y passe à travers des forêts de symboles

Qui l’observent avec des regards familiers.

Comme de longs échos qui de loin se confondent

Dans une ténébreuse et profonde unité,

Vaste comme la nuit et comme la clarté,

Les parfums, les couleurs et les sons se répondent.

Il est des parfums frais comme des chairs d’enfants,

Doux comme les hautbois, verts comme les prairies,

— Et d’autres, corrompus, riches et triomphants,

Simbolismo: o poder sugestivo do verbo

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Ayant l’expansion des choses infinies,

Comme l’ambre, le musc, le benjoin et l’encens,

Qui chantent le transport de l’esprit et des sens.

(Grünewald, 1991, p.58).

Neste soneto o interesse se volta à tentativa de decifração dos símbolos da realidade terrena a fim de se descobrir a profunda unidade entre tudo que existe; no caso, entre microcosmo e macrocosmo, o material e o espiritual. A Natureza é o templo que a tudo abarca, como se nota nos termos de com-a tudo abarca, como se nota nos termos de com-paração que apelam para o vasto, a profunda unidade de tudo, l’expansion des choses infinies (Correspondances). Aqui, a busca das correspondências se dá pela exploração das relações entre os diversos níveis dos sentidos hu-manos e o senso do infinito ou mistério, no caso a Natureza como templo.

Mas como perceber a “unidade profunda” entre os sentidos humanos e o universo? Como compreender as correspondências entre mundo natural e mundo espiritual? A sinestesia é o caminho, uma vez que significa percepção simultânea. No caso, os vários domínios senso-riais apontam para os perfumes, as cores e os sons que se transfundem.

Observe que se liga a ideia de perfume à de frescor, mas ao valor táctil deste frescor, que a sua vez se associa com a infância. O perfume é doce como o som dos oboés e verde como as pradarias, logo, a audição se associa à visão e, importante notar, tudo se realiza ao mesmo tempo.

Importante observar também que a mescla de sentidos trabalha com o contraste entre corpo e espírito. O corpo é sugerido pelo almíscar, perfume ligado à sensualidade. O espírito, pelo benjoim e pelo incenso, substâncias aromáticas de coloração amarelada ligadas à purificação, aos rituais religiosos.

Para a percepção dessas relações e para o entendimento das “confusas palavras” é necessária uma nova concepção da função do poeta. Agora ele é visto como tradutor que decifra nessa floresta de símbolos as analogias que dão sentido à vida humana, que tornam o infinito cósmico algo mais familiar, nas palavras de Octávio Paz, que tornam o mundo habitável.

O fragmento do verso foi traduzido por “expansão de um algo inacabado”.

Gostaríamos de chamar a atenção para a ambigui-dade da palavra infinies. A palavra “infindo” tanto pode sugerir inconcluso, inacabado, quanto “sem fim”, “infinito”. A imagem que daí deriva é a de um

universo em constante movimento, embora não exclua a sugestão de que

exista algo que a tudo una.

Entenda-se conforme o étimo grego sunaisthêsis.

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Capítulo 06

O poeta simbolista toma distância do narrador-repórter do cotidiano, conforme a estética realista, para restaurar aquela idéia de poeta como o vate. Ele se converte em “um visionário”, o que “quebra os selos augustos do mistério”, como escreve o poeta brasileiro Cruz e Sousa no soneto intitulado “O grande momento”. Pretende-se um decifrador do sentido simbólico do mundo para revelá-lo às pessoas comuns por meio da palavra poética. Esta concepção sobre a função do poeta é constante no Simbolismo. Aparece nos escritores franceses Baudelaire - “ora o que é o Poeta senão um tradutor, um decifrador” - e em Rimbaud - “é preciso ser vidente, fazer-se vidente”. E o mesmo se pode dizer de Cruz e Sousa, para o qual o poeta deve tornar-se um “verdadeiro clarevidente”. Em Portugal, poderíamos mencionar Flor-bela Espanca, que a nosso ver, mesmo escrevendo em pleno Moder-nismo, possui uma obra com feições marcadamente simbolistas: 

Sonho que sou a Poetisa eleita,

Aquela que diz tudo e tudo sabe,

Que tem a inspiração pura e perfeita,

Que reúne num verso a imensidade!

(Vaidade, in: Livro de Mágoas, 1919)  

Em conclusão, o poema Correspondências, de Baudelaire, para al-guns críticos pedra fundamental do Simbolismo, define um lugar co-mum dessa postura estética que pode muito bem ser definida pela frase--valise: expressão das relações e correspondências que a linguagem cria entre o concreto e o abstrato, o material e o ideal, e entre as diferentes esferas dos sentidos. 

6.2 Simbolismo em Portugal

No ano de 1890, com a publicação de Oaristos, de Eugênio de Castro, se propõe a renovar a cena literária portuguesa. Vamos nos deter em um dos poemas mais significativos desse livro, intitula-do Um sonho. Vejamos por quais motivos este poema é uma típica realização simbolista: 

Arthur Rimbaud (1854-1891)

João da Cruz e Sousa (1861-1898)

Eugênio de Castro e Almeida (1869-1944)

Simbolismo: o poder sugestivo do verbo

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Na messe, que enlourece, estremece a quermesse...

O sol, o celestial girassol, esmorece...

E as cantilenas de serenos sons amenos

Fogem fluidas, fluindo à fina flor dos fenos...

As estrelas em seus halos

Brilham com brilhos sinistros...

Cornamusas e crotalos,

Cítolas, cítaras, sistros,

Soam suaves, sonolentos,

Sonolentos e suaves,

Em suaves,

Suaves, lentos lamentos

De acentos

Graves,

Suaves.

Flor! enquanto na messe estremece a quermesse

E o sol, o celestial girassol esmorece,

Deixemos estes sons tão serenos e amenos,

Fujamos, Flor! à flor destes floridos fenos...

Soam vesperais as Vésperas...

Uns com brilhos de alabastros,

Outros louros como nêsperas,

No céu pardo ardem os astros...

Como aqui se está bem! Além freme a quermesse...

– Não sentes um gemer dolente que esmorece?

São os amantes delirantes que em amenos

Beijos se beijam, Flor! à flor dos frescos fenos...

As estrelas em seus halos

Brilham com brilhos sinistros...

Cornamusas e crotalos,

Cítólas, cítaras, sistros,

Soam suaves, sonolentos,

Sonolentos e suaves,

Em suaves,

Suaves, lentos lamentos

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Page 119: [Livro UFSC] Literatura Portuguesa II

Capítulo 06De acentos

Graves,

Suaves...

Esmaiece na messe o rumor da quermesse...

– Não ouves este ai que esmaiece e esmorece?

É um noivo a quem fugiu a Flor de olhos amenos,

E chora a sua morta, absorto, à flor dos fenos...

Soam vesperais as Vésperas...

Uns com brilhos de alabastros,

Outros louros como nêsperas,

No céu pardo ardem os astros...

Penumbra de veludo. Esmorece a quermesse...

Sob o meu braço lasso o meu Lírio esmorece...

Beijo-lhe os boreais belos lábios amenos,

Beijo que freme e foge à flor dos flóreos fenos...

As estrelas em seus halos

Brilham com brilhos sinistros...

Cornamusas e crotalos,

Cítolas, cítaras, sistros,

Soam suaves, sonolentos,

Sonolentos e suaves,

Em suaves,

Suaves, lentos lamentos

De acentos

Graves,

Suaves...

Teus lábios de cinábrio, entreabre-os! Da quermesse

O rumor amolece, esmaiece, esmorece...

Dá-me que eu beije os teus morenos e amenos

Peitos! Rolemos, Flor! à flor dos flóreos fenos...

Soam vesperais as Vêsperas...

Uns com brilhos de alabastros,

Outros louros como nêsperas,

No céu pardo ardem os astros...

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Ah! não resistas mais a meus ais! Da quermesse

O atroador clangor, o rumor esmorece...

Rolemos, ó morena! em contactos amenos!

– Vibram três tiros à florida flor dos fenos...

As estrelas em seus halos

Brilham com brilhos sinistros...

Cornamusas e crotalos,

Citolas, cítaras, sistros,

Soam suaves, sonolentos,

Sonolentos e suaves,

Em suaves,

Suaves, lentos lamentos

De acentos

Graves,

Suaves...

Três da manhã. Desperto incerto... E essa quermesse?

E a Flor que sonho? e o sonho? Ah! tudo isso esmorece!

No meu quarto uma luz luz (aqui repete mesmo?) com lumes amenos,

Chora o vento lá fora, à flor dos flóreos fenos...

(CASTRO, “Um sonho”. Disponível em http://www.jor-

naldepoesia.jor.br/eug01.html. Acesso: 25 abr. 2012)

Em primeiro lugar, observe a valorização do aspecto melodioso da linguagem. Eugênio de Castro, fiel ao propósito de ler a poesia como música, explora praticamente todos os processos melódicos de expressão, a saber:        

Ӳ o eco, como se observa na identidade sonora ao final das pala-vras: “Na messe, que enlourece, estremece a quermesse”;

Ӳ a assonância, ou repetição da vogal e;

Ӳ a aliteração, o que se verifica pela repetição da consoante f;

Ӳ as rimas; as reiterações de palavras: “Em suaves,/Suaves, lentos lamentos/De acentos/ Graves,/ Suaves];

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Capítulo 06

Ӳ os paralelismos ou repetição de versos com a mesma estrutura sintática: “O sol, o celestial girassol, esmorece”,

Ӳ enfim, a repetição de estrofes inteiras ao modo de estribilho ou refrão.

Note também a recorrência aos instrumentos musicais citados ao longo do poema, o que demonstra que ele leva a sério a proposta do simbolista francês Verlaine, que punha De la musique avant toute chose, a música acima de tudo.

Se às vezes, essa valorização da camada sonora do verso parece privilegiar mais o som do que o sentido, por outro lado a engenhosa orquestração verbal é capaz de “produzir pela sugestão do som, um estado sensacional” (GUIMARÃES, ano?, p. 27).

E isso se alia a outro traço característico da poesia simbolista, o que é facilmente reconhecido pelo ambiente selecionado. Se os românticos revelaram predileção pelo domínio do noturno, os simbolistas demons-traram o amor pelas paisagens crepusculares.  

Observe também que o poema Um sonho se abre ao entardecer, pois o sol “esmorece”, ou “se põe”. Talvez se possa dizer que a melancolia do ambiente que impregna o sujeito poético combine com o conteúdo programático do simbolismo. Trata-se de uma poesia intimista, ou mar-cada pelo recolhimento ao mundo interior, em busca das camadas mais profundas do ser humano, ou seu “eu profundo”.

Neste poema tudo se corresponde, tudo se entrelaça numa misteriosa e profunda unidade. A messe que enlourece ou a plantação de trigo maduro se associa à cor do sol; o sol que definha é associado aos sons suaves e sonolentos e ao sono/sonho do sujeito poético que também esmorece. Ao entardecer, “soam vesperais as Vésperas”, traduzindo, soam cânticos religiosos ao cair da tarde. A coloração que predomina no corpo do poema é a do sol poente, a esmaecer, e isso se repete no verso “louros como nêsperas”, ou dourados, amarelados como a cor dessa fruta madura.

A cítola (a gaita de foles), o crótalo (instrumento de percussão) e o sistro (espé-cie de chocalho).

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Como você já deve ter percebido, aqui se sugere a ligação da imensi-percebido, aqui se sugere a ligação da imensi-dão cósmica com os sentidos do sujeito poético (a voz que fala no poema). Pode-se dizer que se trata de um desdobramento do poema Correspon-dências, de Baudelaire, poema-síntese do simbolismo, o que configura um conteúdo programático ou uma atitude de “escola” literária.

Aliás, afora as analogias que gravitam em torno do sol poente, outra analogia é assegurada pela sinestesia. Notar que após o ocaso, o sujeito poético olha para o céu e vê uma “Penumbra de veludo”. Acaso nesse verso não se atribui um valor cromático ao que é táctil? Há uma percepção simultânea do táctil e do visual. Vale repetir, a afinidade ou relação entre planos sensoriais diferentes (visual, auditivo, gustativo, táctil, olfativo) é o que caracteriza essa figura chamada sinestesia, indis-pensável à poesia simbolista.

Talvez você deva ter sentido algum estranhamento em relação ao vocabulário, bastante sofisticado, exótico, bem distante da linguagem coloquial. No prefácio de Oaristos, Eugênio de Castro de-fende o gosto pelos “raros vocábulos” com o intuito de, afora renovar a linguagem poética, saborear a “beleza própria das palavras”. Daí a valorização, no campo semântico, de termos como “sidéreos”, “bore-ais”, “cinábrio”, e por aí afora.

Mas se o que move o poema é o seu poder sugestivo, qual é o estado de alma que se evoca? Observe que no título do poema reside a chave para a sua compreensão. Enquanto que o mundo inconsciente do sonho é repleto de imagens sensuais: 

Dá-me que eu beije os teus’ morenos e amenos

Peitos! Rolemos, Flor! à flor dos flóreos fenos...

O despertar frustra as expectativas e acaba por ser identificado à noite triste e chuvosa. A paisagem é um estado de alma? Talvez nisso resida o estado de espírito sugerido. A nosso ver, recorre-se à expres-são indireta de dizer as coisas; no caso, o descompasso entre o Sonho e o Real, o que define certa visão pessimista da existência. Em resumo,

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Capítulo 06

a temática do tédio e da desilusão, do pessimismo existencial doloro-samente sentido, definem o “tom” de Um sonho, em particular, e da poesia simbolista em sentido amplo. 

6.3 Do sonho ao símbolo

Stéphane Mallarmé, um dos principais poetas do simbolismo, fran-cês, defendeu que o verdadeiro prazer do poema consistia em sugerir, e não em mostrar inteiramente as coisas pela nomeação precisa de deta-lhes ao modo realista. Como explica Mallarmé: 

Nomear um objeto é suprimir três quartos do prazer do poema, que

consiste em ir adivinhando pouco a pouco: sugerir, eis o sonho. É a per-

feita utilização desse mistério que constitui o símbolo: evocar pouco a

pouco um objeto pra mostrar um estado de alma, ou inversamente, es-

colher um objeto para extrair dele um estado de alma, através de uma

série de adivinhas (MALLARMÉ apud GOMES, 1994, p. 27).

Poeticamente falando, é mediante o uso do símbolo que tudo se sugere.

Convencionou-se afirmar que o símbolo não se confunde com o

signo. O signo é denotativo: remete para o sentido literal das pala-

vras. O símbolo é conotativo: remete para a pluralidade de sentidos.

Nesse caso, quando mencionamos a palavra Cruz, dependendo do

contexto, podemos referir um poeta simbolista, uma religião, um

simples objeto de madeira, uma marca grafêmica, uma rotina diária,

as dificuldades do cotidiano, e assim por diante.

Pode-se pensar no conceito de símbolo enquanto um “disfarce para as ideias”, noutras palavras, palavra ou conjunto de palavras ou de ver-sos, que servem para evocar um estado de espírito indefinido e cuja tra-dução jamais é imediata. Nas palavras de Álvaro Cardoso Gomes (1994, p. 62), no sentido amplo, o símbolo é uma forma de expressão que visa sugerir os mais diversos estados de alma.

Stéphane Mallarmé (1842-1898), foi poeta e crítico literário.

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Contra a busca da fotografia do real na arte, os simbolistas pregam o amor do vago e do indireto, do impreciso, do difuso, do invisível, do impalpável. Longe do cientificismo predominante na Geração de 70, celebra-se o Místico (termo que em grego significa Mistério), princípio e fim da poesia simbolista. Noutras palavras, contra a ideia de arte como imitação da realidade (ou do visível), toda ideia de descrição do real é abolida em favor da sugestão, tal como se pode observar na poesia de Camilo Pessanha.  

6.4 Camilo Pessanha (1867-1926)

Não seria exagero considerar Camilo Pessanha a mais autêntica ex-Pessanha a mais autêntica ex-pressão da poesia simbolista portuguesa. O testemunho de Fernando Pessoa, que o considerava um mestre, é auto-explicativo, pois Camilo o ensinou a sentir veladamente, e permitiu-lhe a descoberta da verdade de que para ser poeta não é necessário trazer o coração nas mãos, senão que basta trazer nelas a sombra dele.

Qualquer estudo sobre a obra de Camilo Pessanha de algum modo ou de outro passeia por alguns desses traços marcantes: o culto à “arte da sugestão”; a exploração da camada sonora do verso que acaba numa sofisticada partitura lírica; o gosto pelas sinestesias; a sugestão de esta-dos de alma, a angústia metafísica, tudo bem ao gosto simbolista. Tudo bem temperado no sal das palavras ao ponto simbolista.

Isso! A metáfora culinária é bastante feliz, pois remete àquela ideia de que a literatura [escritura] “é a que se encontra em toda a parte onde as palavras tem sabor (saber e sabor têm, em latim, a mesma etimologia)”, como escreve Roland Barthes [Aula, 1997, p.21]. Então saboreemos, na sua grafia original, um dos mais belos poemas de Camilo Pessanha, in-titulado Interrogação: 

Não sei se isto é amor. Procuro o teu olhar,

Se alguma dôr me fere, e busca d’um abrigo;

E apezar d’isso, crês? nunca pensei n’um lar

Onde fosses feliz, e eu feliz comtigo.

Camilo Pessanha, visto por

Pedro Barreiros.

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Capítulo 06Por ti nunca chorei nenhum ideal desfeito.

E nunca te escrevi nenhuns versos romanticos.

Nem depois de acordar te procurei no leito,

Como a esposa sensual do Cantico dos canticos.

Se é amar-te não sei. Não sei se te idealiso

A tua côr sadia, o teu sorriso terno...

Mas sinto-me sorrir de vêr esse sorriso

Que e penetra bem, como este sol de inverno.

Passo comtigo a tarde, e sempre sem receio

Da luz crepuscular, que enerva, que provoca.

Eu não demoro o olhar na curva do teu seio

Nem me lembrei jámais de te beijar na bocca.

Eu não sei se é amor. Será talvez começo.

Eu não sei que mudança a minha alma presente...

Amor não sei se o é, mas sei que te estremeço,

Que adoecia talvez de te saber doente.

(PESSANHA, “Interrogação”. In: Clepsydra. Poemas de Camilo Pessa-nha, 1994, p.91)

Para saber mais sobre a biografia e a poesia de Camilo Pessanha reco-

mendamos o site: <http://www.instituto-camoes.pt/cvc/sabermaisso-

bre/cpessanha/index.html>. Acesso em: 21 abr. 2012. Vale a pena con-

ferir também a releitura pictórica de Clépsydra, vista por Pedro Barreiros,

que homenageou Camilo Pessanha na passagem do 70° aniversário da

primeira edição desta obra. A exposição se intitula É tudo vermelho em

flor e encontra-se disponível em: <http://www.instituto-camoes.pt/

cvc/catalogoclepsydra/18.html>. Acesso em: 21 abril. 2012.

O poema Interrogação foi publicado em Clépsydra, livro que conside-ramos a Mona Lisa do simbolismo lusitano — no sentido de obra-prima, a um só tempo enigmática e bela. O autor não organizou a publicação do seu livro. Limitava-se a publicar seus poemas avulsamente em diversos jornais de Portugal e de Macau. A publicação do livro deveu-se à organização da escritora Ana de Castro Osório, em 1920.

Simbolismo: o poder sugestivo do verbo

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Parodiando Ulisses Infante, o poema Interrogação explora uma musicalidade suave e sugestiva, apresentando ao leitor fragmentos da realidade que, intuitivamente relacionados, permitem-lhe captar esta-dos de espírito e sensações vagas. Com efeito, trata-se de uma poesia que valoriza o aspecto melodioso da linguagem, o jogo de sonoridades do verso, em suma.

Vale dizer que Interrogação é uma típica realização simbolista pela exploração dos processos melódicos de expressão, o que ocorre desde o primeiro verso: “Não sei se isto”. Vale notar a identidade sonora das palavras ao longo do poema: interrogação, ser, luz, seio, começo, sei, estremeço. A seleção vocabular se associa à sugestão de um estado de espírito: algo que suscita uma incerteza: o sujeito poético ama alguém ou constata o princípio de um amor? Como defini-lo se no poema fica marcada a ambiguidade entre o amor místico e o sensual? Também aqui se evoca um estado de espírito indefinido cuja tradução não é fácil ou imediata. É uma maneira de convidar o leitor à reflexão, a apreciar as nuances do que fica dito nas entrelinhas.

Note-se também o gosto pela paisagem crepuscular, cujo lusco-fusco combina com a imprecisão de contornos, com a indefinição de limites, com o apelo ao vago. Para completar o quadro, convém indagar: e a questão das “analogias exteriores”? Leia-se: 

Mas sinto-me sorrir de ver esse sorriso

Que me penetra bem, como este sol de Inverno.

(PESSANHA, “Interrogação”. In: Clepsydra. Poemas de Camilo Pessa-nha, 1994, p.91)

Aí está! O sorriso da mulher é cálido como um sol ameno que aquece a alma do sujeito poético. A luz crepuscular que o enerva, que o provoca, vem associada a um rápido olhar na curva do seio dela. Tudo se entrelaça: a natureza e o ser, o místico e o sensual. Enfim, tudo se corresponde.

       Vale retomar aquela assertiva de que o 

Literatura Portuguesa II

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Capítulo 06Simbolismo foi um movimento literário em que os poetas sonharam em

elevar a poesia à condição de música. Mas porque a aproximação entre

artes tão distintas? A música, na realidade, é a mais subjetiva das artes,

porque não visa jamais representar imitativamente os objetos; a música

visa atingir o espírito. Daí a sua universalidade (GOMES, 1994, p.33).

É o que justifica o interesse dos simbolistas pela melodia do poema e pelo poema como melodia. Não se trata agora de compor um poema para ser musicado, entoado com acompanhamento de instrumentos musicais, pois dita sonoridade é elaborada por meio de recursos poéticos próprios. Estes apelam para a repetição de consoantes, vogais, fonemas, palavras, versos, estrofes.

Tais processos melódicos da expressão criam de uma identidade sonora entre as palavras e as coisas. E convertem o poema numa “mú-sica”. Lembre-se: “O sol, o celestial girassol, esmorece”; “Eu não sei se é amor. Será talvez começo...”. Ainda quanto as repetições consonantais, vale lembrar um dos maiores poetas simbolistas de todos os tempos, o brasileiro Cruz e Souza, que aqui deste lado do Atlântico também tangia a sua lira com suas “Vozes veladas, veludosas vozes/ Volúpias dos vio-lões” (Violões que choram, 1897).

Na conclusão desse breve passeio pelos bosques da poesia simbo-lista realcemos a sua contribuição “para uma forte renovação da lingua-gem poética, a qual quebra a tradição literária ao seu tempo e se coloca mesmo, projectivamente, numa linha de evolução que de certo modo conduz ao modernismo”. Mas isso já é outra história, ou outra Litera-tura. É? 

6.5 À guisa de conclusão

Cara leitora, caro leitor. Aqui termina nossa viagem à literatura portuguesa do século XIX e inícios do século XX. Este recorte tão vasto para tão longo curto tempo lembra a definição de Florbela Espanca sobre o fazer poético: “É condensar o mundo num só grito”, diz ela. No nosso caso, resumir a literatura de um século em alguns poucos

Conforme o verbete “Sim-bolismo”, disponível em: <htp://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/S/simbolis-mo.htm>. Acesso em: 25 abr. 2012.

Simbolismo: o poder sugestivo do verbo

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capítulos. À guisa de conclusão, deixemos as últimas linhas para José Saramago em Viagem a Portugal (2007): 

A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes po-

dem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o

viajante se sentou na areia da praia e disse: ‘Não há mais que ver’, sabia

que não era assim. O fim duma viagem é apenas o começo doutra. É

preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Pri-

mavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol

onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a

pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso vol-

tar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos

novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. (SARAMA-

GO, 2007, p. 475-476).

Leia mais!

Recomendamos a leitura de O Simbolismo, de Álvaro Cardoso Gomes, pu-blicado pela Editora Ática (Série Princípios). Afora a boa contextualização histórica, o pequeno livro traz um bom estudo sobre os componentes fun-damentais do simbolismo e os principais nomes do movimento, seguido de um glossário com conceitos e termos usuais dessa manifestação estética.

       Quanto à poesia de Camilo Pessanha publicada no Brasil, vale mencionar o livro intitulado Clépsydra (Campinas: Editora da Unicamp, 1994), organizado por Paulo Franchetti, no qual este faz um excelente estabelecimento de texto, bem como uma útil introdução crítica, e per-tinentes notas e comentários gerais.  

Não deixe de consultar também no site da Biblioteca Nacional de Portugal, a página dedicada ao poeta Camilo Pessanha, disponível em http://purl.pt/14369/1/. Há um bom acervo de manuscritos do au-tor, a cronologia vida e obra, cartas do poeta, entre outras informações relevantes para o estudo dessa rebuscada textualidade que marcou sig-nificativamente a poesia do início do século XX, ao ponto de Fernando Pessoa declarar que Camilo Pessanha fora um dos seus mestres, ao lado de Antero de Quental e Cesário Verde.

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