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Literatura Brasileira II Florianópolis - 2008 Marco Antonio De Mello Castelli Período

[Livro UFSC] Literatura Brasileira II

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Literatura Brasileira II

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  • Literatura Brasileira II

    Florianpolis - 2008

    Marco Antonio De Mello Castelli2Perodo

  • Governo FederalPresidente da Repblica: Luiz Incio Lula da SilvaMinistro de Educao: Fernando HaddadSecretrio de Ensino a Distncia: Carlos Eduardo BielschowkyCoordenador Nacional da Universidade Aberta do Brasil: Celso Costa

    Universidade Federal de Santa CatarinaReitor: Alvaro Toubes PrataVice-Reitor: Carlos Alberto Justo da SilvaSecretrio de Educao a Distncia: Ccero BarbosaPr-Reitora de Ensino de Graduao: Yara Maria Rauh MullerDepartamento de Educao a Distncia: Araci Hack CatapanPr-Reitora de Pesquisa e Extenso: Dbora Peres MenezesPr-Reitor de Ps-Graduao: Jos Roberto OSheaPr-Reitor de Desenvolvimento Humano e Social: Luiz Henrique Vieira da SilvaPr-Reitor de Infra-Estrutura: Joo Batista FurtuosoPr-Reitor de Assuntos Estudantis: Cludio Jos AmanteCentro de Cincias da Educao: Carlos Alberto Marques

    Curso de Licenciatura Letras-Portugus na Modalidade a DistnciaDiretora Unidade de Ensino: Viviane M. HeberleChefe do Departamento: Zilma Gesser NunesCoordenadoras de Curso: Roberta Pires de Oliveira e Zilma Gesser NunesCoordenador de Tutoria: Josias Ricardo HackCoordenao Pedaggica: LANTEC/CEDCoordenao de Ambiente Virtual de Ensino e Aprendizagem: Hiperlab/CCE

    Comisso EditorialTnia Regina Oliveira RamosIzete Lehmkuhl CoelhoMary Elizabeth Cerutti Rizzati

    Equipe Coordenao Pedaggica Licenciaturas a Distncia

    EaD/CED/UFSCNcleo de Desenvolvimento de MateriaisProduo Grfica e HipermdiaDesign Grfico e Editorial: Ana Clara Miranda Gern; Kelly Cristine SuzukiResponsvel: Thiago Rocha OliveiraAdaptao do Projeto Grfico: Laura Martins Rodrigues, Thiago Rocha OliveiraDiagramao: Gabriela Dal To Fortuna, Thiago Felipe Victorino, Laura Martins RodriguesFiguras: Bruno Nucci, Robson Felipe Parucci, Felipe Oliveira GallCapa: Laura Martins RodriguesReviso gramatical: Marcelo Mendes

    Design InstrucionalResponsvel: Isabella Benfica BarbosaDesigner Instrucional: Vernica Ribas Crcio

  • Copyright 2008, Universidade Federal de Santa Catarina/LLV/CCE/UFSCNenhuma parte deste material poder ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer meio eletrnico, por fotocpia e outros, sem a prvia autorizao, por escrito, da Coordena-o Acadmica do Curso de Licenciatura em Letras-Portugus na Modalidade a Distncia.

    Ficha Catalogrfica

    C348l Castelli, Marco Antonio Literatura brasileira II / Marco Antonio Castelli. Florianpolis : LLV/CCE/UFSC, 2008. 93p. : 28cm ISBN 978-85-61482-08-4 1. Literatura brasileira. 2. Modernismo. 3. Ensino de literatura . I. Ttulo CDU 869.0(81)

    Catalogao na fonte elaborada na DECTI da Biblioteca da UFSC

  • Sumrio

    Apresentao ...................................................................................... 7

    Unidade A ..........................................................................................13Primeiro Fragmento1 ....................................................................................15

    Segundo Fragmento2 ...................................................................................21

    2.1 Machado de Assis .............................................................................................21

    2.2 Joo do Rio ..........................................................................................................26

    Terceiro Fragmento3 .....................................................................................27

    Conferindo Conceitos.............................................................................................28

    Quarto Fragmento4 .......................................................................................31

    4.1 Da Telenovela .....................................................................................................32

    4.2 De Iracema ..........................................................................................................33

    4.3 De Razes do Brasil ............................................................................................34

    4.4 Oswald de Andrade! ........................................................................................35

    Unidade B ...........................................................................................45Quinto Fragmento5 .......................................................................................47

    5.1 Retomando 1928 ..............................................................................................47

    Sexto Fragmento6 ..........................................................................................55

    6.1 Uma Fatia de Poesia: Augusto dos Anjos, Carlos Drummond de Andrade e Adlia Prado ...................................................55

    6.2 Anlise 1 ...............................................................................................................57

    6.3 Anlise 2 ...............................................................................................................66

    6.4 Adlia Prado ........................................................................................................71

    Stimo Fragmento7 .......................................................................................75

    7.1 Outra Fatia de Poesia .......................................................................................75

    7.2 Romantismo Parnasianismo Simbolismo ..........................................76

    Oitavo Fragmento8 ........................................................................................79

    8.1 Um Dedo de Prosa ............................................................................................79

    8.2 Afonso Henriques de Lima Barreto: A Cidade e os Homens .............80

  • 8.3 Contedo e Problemtica da Nova Literatura ........................................82

    8.4 O Posicionamento Crtico de Lima Barreto..............................................83

    8.5 Euclides da Cunha: O Serto Vai Virar Mar ...............................................84

    8.6 Graciliano Ramos: O Serto No Sai do Lugar ........................................87

    8.7 Guimares Rosa: Ser-To Poesia nas Veredas de Matraga ..................88

    ltimo Fragmento: o Corpo Inteiro 9 ou o Mosaico que se Cumpre ...................................................................89

    9.1 Sesso de Artes Plsticas ................................................................................89

    Referncias........................................................................................91

  • Apresentao

    Literatura Brasileira II, ou Fragmentos para um Mosaico

    E ste livro-texto no se traa em linha reta. Seguir com ele o con-tedo inerente Literatura Brasileira II como um passeio atravs de caminhos incertos. Como aqueles em que a gente sai pelas ruas da cidade distraidamente procurando-olhando um no-se-sabe-o-qu; como um dndi, moda Joo do Rio, a borboletear seu pouso inconfessvel sobre cada passante. Assim: um livro livre em sua geometria difusa, sinuosa apenas aparentemente anti-lgica.

    Distante de uma abordagem estruturalista, este livro-texto no se preocupa com a ordem cronolgica que convencionalmente caracteriza os livros didti-cos. Prope-se, na verdade, a estabelecer elos entre as correntes de criao e produo literrias brasileiras. Nesse sentido, enfocaremos parte da histria do pensamento brasileiro a que se desenvolveu entre fins do sculo XIX e meados do XX alinhavando manifestaes esttico-literrias e escritores re-fletindo acontecimentos e inquietaes de seu tempo. Antes, cotejaremos au-tores de perodos histricos e estticos diferentes. No nos parece fundamental seguir a linha cronolgica que insiste nos rompimentos entre o antes e o agora, o velho e o novo. O importante o laivo do permanente e sua transformao caleidoscpica. Os vestgios de um tempo no outro, de uma obra dentro da outra. No se trata de continusmo, mas sim de continuidade feita de novos lances, novos dados que, todavia, jamais aboliro o acaso, bem lembrando, assim, o poeta francs Stphane Mallarm por seu poema Um lance de dados jamais abolir o acaso.

    Desta feita, ora estaremos nos anos dez do sculo passado, ora na contem-poraneidade, com os olhos nos anos 60 e seus reflexos tecnolgicos na boca do presente sculo, ora nos anos 20 e 30. Noutro momento, retomaremos aos meados do sculo XIX to romntico quanto revolucionrio e passaremos ao cientificismo finissecular para, quem sabe, entendermos as contradies da sociedade brasileira. A testemunha, claro, ser sempre a obra literria.

    Dividido em duas unidades As Entradas e As Bandeiras, referncia aos pri-meiros sertanistas , este livro busca, na verdade, os ladrilhos para que o aluno

  • componha, aos poucos, o mosaico que forma a cultura brasileira. Da viria um ttulo adequado para este programa de Literatura Brasileira II: Fragmentos para Um Mosaico.

    Por meio deste livro, identificaremos os fragmentos concernentes Literatura Brasileira II, objetivando um mural, um quadro, enfim, uma composio har-moniosa ao termo do semestre. Nosso princpio pode ser tomado s rapsdias da Odissia, de Homero, que os alunos de Teoria da Literatura I tiveram a opor-tunidade de conhecer atravs das tramas de Penlope. A mulher de Ulisses ter sido a mais emblemtica das personagens da literatura no que se refere fatura esttica, porquanto tecia e destecia at que as aventuras do marido guerreiro se completassem. H que tomarmos, ainda, a rapsdia do prprio povo brasileiro representado nas estripulias do protagonista homnimo de Macunama, a obra de Mrio de Andrade: uma colcha de retalhos da cultura brasileira.

    No presente, Fragmentos Para Um Mosaico, voc j sabe, no incio, qual a ltima tarefa a ser realizada, aquela que encerrar o Curso do semestre. Acom-panhando o livro diretriz da Disciplina , voc se colocar como um artis-ta plstico que, pela palavra escrita, cumprir a tarefa de ordenar a grande quantidade de fragmentos escolhidos para este livro e para este Curso. A, en-to, caber a voc, aluno, a complementao do processo interativo que deve nortear o ensino. No caso, mostrar o corpo da civilizao brasileira, em toda a sua expresso esttica, moral, poltica, social.

    Mas, para bem entender quais ferramentas so necessrias para compor o mo-saico, h que se passar por muitos de nossos estudiosos Alfredo Bosi, Antonio Cndido, Cavalcanti Proena, Roberto Schwarz, Otto Maria Carpeaux, Silvi-ano Santiago, Benedito Nunes, Affonso vila, J. Guinsburg. vila, por exem-plo, oferece uma abordagem crtica bastante apropriada sobre a lngua como ferramenta maior para a formao da linguagem literria. Especialmente no caso brasileiro, oriundos que somos de um longo processo de colonizao e de influncias profundas de vrias outras culturas, desde a marcha das imigraes no sculo XIX, at os tempos atuais, com a forte presena da lngua inglesa de origem estadunidense.

    Convenhamos: uma lngua se deforma para se conformar. Assim est nas falas, assim est nas escritas que as formam, ora em intenes lingsticas como a estria inventada pelo fillogo Joo Ribeiro, em 1944, ora pela licena poti-ca para a mesma palavra, trazida no linguajar inventivo de Guimares Rosa, tambm nos anos 40 do sculo passado.

  • Como a nossa, a lngua inglesa dos estadunidenses se deforma: inconteste a contribuio lingstica dos afro-descendentes dos EUA, sobretudo a partir do movimento rythm and poetry (o rap) criado nos guetos do Harlem e do Bronx novaiorquinos.

    O fato que, filologicamente, avanamos americanos do Norte e do Sul amarras rompidas por ns mesmos, por nossa mistura estranha e instvel, pontilhada de uma diversidade imensa de sons e de culturas que incidem dire-tamente na lngua, na linguagem e em uma cultura. A lngua de um povo um processo to dinmico quanto o prprio povo que dela se utiliza e que a tem grafada nas pginas dos livros.

    No caso do Brasil, desde que a famlia Imperial para c se mudou, em 1808, nada mais parou de mudar, e a literatura, se continua viva e palpvel nas p-ginas livrescas, ps-se navegadora por entre fibras ticas. Galharda, em lngua fugaz, em lngua mutante...

    Marco Antonio De Mello Castelli

  • Literatura o exerccio da inteligncia a servio da sensibilidade nostlgica ou revoltada.

    (Albert Camus)

    Atravs da arte, distanciamo-nos e ao mesmo tempo aproximamo-nos da realidade.

    (Goethe)

    To be, or not to be: that is the question.

    (Hamlet Shakespeare)

    Tupy, or not tupy that is the question.

    (Oswald de Andrade)

    Eu sou trezentos, trezentos e cinqenta.

    (Mrio de Andrade)

  • Unidade AAs Entradas

    BRASIL

    UFSC

  • Captulo 01Primeiro Fragmento

    15

    Primeiro FragmentoDando incio busca de nossos ladrilhos, vamos aos ttulos que compem

    a matria-prima do programa, seguidos de um coquetel sobre a conformao da lngua a partir do Barroco at a era da tecnologia.

    Ento, isso, pessoal. Vocs vo encarar essas obras a citadas em seguida, o que, alis, pouco para que vocs se aprontem como pro-fessores de Portugus. No adianta torcer o nariz, fazer bocas ou caras como artista de novela, nem xingar. Afinal, literatura tudo o que h de mais importante na formao de um povo. Na verdade, de um ser humano, de um cidado se a gente pensar em termos amplos (globali-zantes, para usar uma expresso da hora).

    Textos para leitura obrigatria:

    Jos de Alencar: 1) Iracema.

    Machado de Assis: 2) Dom Casmurro. Contos (Coleo Grandes Leituras. FTD).

    Raul Pompia: 3) O Ateneu.

    Alusio Azevedo: 4) O Cortio.

    Euclides da Cunha: 5) Os Sertes A terra (cap. I, IV, V) O ho-mem (cap. II e III).

    Lima Barreto: 6) Triste Fim de Policarpo Quaresma. O Destino da Literatura.

    Joo do Rio: 7) O Homem da Cabea de Papelo (ler na WEBTE-CA).

    Mrio de Andrade: 8) Macunama.

    Oswald de Andrade: 9) Manifestos Pau-Brasil e Antropofgico. Me-mrias Sentimentais de Joo Miramar. O Rei da Vela.

    Graciliano Ramos: 10) Vidas Secas.

    Guimares Rosa: 11) A Hora e a Vez de Augusto Matraga.

    1

  • Unidade A - As Entradas

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    Srgio Buarque de Holanda: 12) Razes do Brasil.

    A potica romntica:13)

    Gonalves Dias: A Cano do Exlio (in: Primeiros Can-a) tos), Cano do Tamoio (in: ltimos Cantos).

    Castro Alves: Vozes dfrica (in: Os Escravos).b)

    A potica parnasiana:14)

    Alberto de Oliveira: Fantstica (in: Meridional: Poesias. 4. a) srie. Francisco Alves, 1927).

    Olavo Bilac: Profisso de F (in: Poesias 26. ed. Francisco b) Alves, 1956).

    A potica simbolista:15)

    Cruz e Sousa: Antfona (in: Broqueis: Poesia Completa. Ed. a) da UFSC, 1985), Da Senzala..., Dilema (in: O Livro Derra-deiro: Poesia Completa. Ed. da UFSC, 1985).

    A potica modernista:16)

    Manuel Bandeira: Os Sapos (in: Carnaval), Potica (in: Li-a) bertinagem).

    Carlos Drummond de Andrade: Quadrilha (in: Alguma b) Poesia), poro, O Elefante, Morte do Leiteiro (in: A Rosa do Povo).

    Jorge de Lima: Essa Negra Ful (in: Novos Poemas).c)

    Ceclia Meirelles. Lamento do Oficial por seu Cavalo Mor-d) to (in: Mar Absoluto e outros poemas).

    Vincius de Moraes: A Rosa de Hiroshima (in: Antologia e) Potica. Companhia das Letras, 1992).

    Pense s uma coisa (ah, bom avisar: ao longo de nossa conversa, es-tarei sempre alternando o tratamento quanto ao nmero - voc/vocs):

  • Captulo 01Primeiro Fragmento

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    1. a lngua um conjunto de hbitos convencionais de mtua compreenso que existem numa coletividade, produto e funo

    da vida de grupo que se resume em dicionrio e gramtica.

    2. a lingstica cincia da linguagem, isto , o estudo da lngua em si mesma e por si mesma.

    3. a literatura o conjunto das composies de uma lngua, com preocupao esttica, mas tambm o conjunto de trabalhos li-

    terrios de um pas ou de uma poca.

    Estes conceitos so, na verdade, meras transcries lexicais que voc encontra em qualquer dicionrio de lngua portuguesa. Alis, esse tema voc j tirou de letra em Histria dos Estudos Lingsticos, Estu-dos Gramaticais e Teoria da Literatura I.

    Mas vamos reflexo. A lngua que a gente fala e usa para a co-municao entre ns cidados brasileiros, aqui nascidos ou no a lngua que tomamos aos portugueses. Essa tomada da lngua aos portugueses configura-se literariamente e devemos entend-la como um longo processo, que se estende desde os primeiros tempos da co-lonizao. Esse processo, ns o acompanharemos atravs da aborda-gem apresentada por Affonso vila em Do Barroco ao Modernismo: o desenvolvimento cclico do projeto literrio brasileiro (VILA, 1975: 29-38), que voc deve ler logo aps passar pelos prximos itens, todos referentes linguagem. Destes itens, os trs primeiros foram retirados do texto de vila:

    A tomada principia quando a colonizao comeara a se fir-1) mar quase ao fim do sculo XVII e primeira metade do sculo XVIII, tempo em que se d o chamado perodo Barroco da his-tria literria brasileira. Naquele momento, a obra potica de Gregrio de Matos oferecia elementos a uma anlise formal, lingstica e ideolgica como indicativos de um processo de apropriao da linguagem e apropriao da realidade.

  • Unidade A - As Entradas

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    Face Independncia do Brasil, a lngua dos portugueses se 2) transforma em coisa nossa, ao longo do sculo XIX. Ela ganha tinturas muitssimo diferentes das originais, envolta pela exta-sia tropical e de uma mtica telrica. Seria a lngua brasileira como a pensava Jos de Alencar, com sua inolvidvel metfora da Amrica atravs da personagem Iracema, a virgem dos l-bios de mel. Como ele, seus tantos outros pares do Romantismo braslico tomam, definitivamente, posse da lngua portuguesa.

    Por fim, a lngua passa ao processo de reflexo crtica via li-3) teratura de experimentao formal, de linguagem inventiva e comumente voltada para uma concepo crtica do real. o Modernismo de Oswald e Mrio de Andrade, que, desde os primeiros tempos do sculo XX, reinventa a linguagem brasi-leira, embora sem atingir a fulgurao absoluta que ficaria ao encargo de Guimares Rosa, abrindo o tempo a que chama-riam Ps-Modernismo.

    A esses trs tpicos processadores da formao de uma lingua-4) gem literria brasileira, eu acrescentaria um quarto momento. Trata-se de um processo em curso, a que poderamos chamar linguagem transubstanciada. Isso se deve ao nosso carter ti-picamente aberto a toda e qualquer influncia estrangeira, que afeta predominantemente nossa cultura e, por conseguinte, a lngua. Entretanto, elemento vazado, ela se consubstancia, amalgamando vrias outras fontes lingsticas, fazendo brotar palavras e expresses absolutamente novas. Sua fonte maior parte de um fenmeno que atinge todas as culturas do planeta notadamente o avano das cincias tecnolgicas.

    Ligeiros, vocs diriam:

    Mas isso tudo vem da lngua inglesa, no mesmo? Principal-mente da casa do Tio Sam.

    Bom. Vocs tm certa razo. Afinal, a mdia dos EUA que se impe de maneira incisiva em nossas vidas. Entenda isso como a produo de um lixo cultural que entra na casa de todo mundo por diversas vias. De fato, a prpria inteligentzia estadunidense no deixa por menos em duras

  • Captulo 01Primeiro Fragmento

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    autocrticas, seja por meio de artigos na imprensa, seja por meio de sua melhor expresso artstica, como em seu melhor cinema ou teatro.

    Mas o que eu percebo que o ingls no fator de influncia abso-luta. Antes, vm desta lngua expresses que se conformam em uma lin-guagem prpria e especfica. Em verdade, trata-se de expresses oriun-das das fibras ticas que, por sua vez, abrem-se em pginas de um livro de ningum: o computador.

    Este fenmeno lingstico define o que chamamos de perodo Ps-Utpico, o qual, por sua vez, englobaria as demais terminologias utiliza-das at aqui. Trata-se de termos como ps-modernismo, ps-colonialis-mo, ps-industrialismo termos usados e gastos com a rapidez de um chip ligando nosso computador.

    Pois isso: tal fenmeno lingstico estabeleceu um novo processo literrio de linguagem inventiva (como pensava Oswald de Andrade), porm exacerbado em seu incontrolvel desenvolvimento. Tempos de hiper: hipertexto, hiper-linguagem, hiper-realismo.

    A lngua do agora traz mltiplas linguagens nela embutidas para determinar o pensamento moderno e as atitudes ticas e estticas da metade do sculo XX para c. Que o digam as mais recentes geraes de escritores e artistas. Eles tm na mdia a matria-prima mais urgente de sua fatura esttica ou de sua performance artstica. A tev, a fotografia, o cinema, o outdoor, a imagem, enfim, formam a grade dos elementos para a composio esttica. Quanto ao contedo, este no raro se assen-ta na referncia ao j visto, ao j dito, ao j pensado em obras anteriores e em outros tempos. Os temas abordados so marcadamente urbanos, primam pela fragmentao semelhante aos clipes das mais variadas cor-rentes do rockn roll.

    Olha a, minha gente, isso assunto que no acaba mais e nos leva busca da gerao dita 90 e 00 (1990 e 2000), e da em diante. Isto , os escritores que vieram na esteira dessa transubstanciao lingstica, cujos fenmenos eclodiram com a gerao baby boom, ou seja, os nas-cidos ao tempo da exploso atmica em Hiroshima e Nagasaki; com a gerao easy-rider, desdenhosa do sistema american way of life, que teve em Jack Kerouak seu mais expressivo representante; com a gerao

  • Unidade A - As Entradas

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    rockn roll de Elvis Presley e Os Beatles; com a gerao hippie e beatnik da liberao sexual dos anos 70; a nova ordem econmica instaurada nos anos 80 e embasada no neo-liberalismo ingls de Margareth Ta-tcher e referendada pelo ex-ator hollywoodiano Ronald Reagan, ento presidente dos EUA; com, enfim, a queda do muro de Berlim em 1989, curiosamente h exatos 200 anos aps a queda da Bastilha, exaurindo o perodo iluminista calcado na trade libert-egalit-fraternit, que tanto ajudou a fundar os movimentos libertrios do sculo XIX, como a abolio dos escravos e a proclamao da repblica onde grassava o sistema monarquista.

    Hoje, pois, fim das utopias. No existe aquele pas, aquela socieda-de em que tudo est organizado de modo a haver graa e felicidade nas relaes humanas. Hoje, h o reinado da hipermdia e da lei de merca-do. Era da tecnologia exacerbada. E ponto.

  • Captulo 02Segundo Fragmento

    21

    2 Segundo FragmentoVamos a duas abordagens de reflexo em torno de questes cientfico-

    tecnolgicas para percebermos a modernidade em dois autores marcantes de nossa literatura. Contemporneos entre si, porm de fases e estilos diferentes,

    Machado de Assis e Joo do Rio so os pilares do presente fragmento.

    Bem. No d para pr um ponto final no assunto do Fragmento anterior, assim, sem mais nem menos. claro que a tecnocincia um assunto do hoje, do agora, e que vai, no mnimo, atravessar esse XXI. Mas no possvel falar do hoje sem que nos reportemos ao passado. No caso, voltemos cem anos (fins do XIX incio do XX) quando, ento, toda uma era cientfica se esgotava. Comeava o tempo dos grandes inventos tec-nolgicos: o automvel chegava pela primeira vez em solo brasileiro (S. Paulo) em 1893, Santos Dumont (1873-1932) inaugurava a era da avia-o, o cinematgrafo dos irmos Lumire estreava em 1896, Karl Marx (1818-1883) j era texto sagrado do socialismo-comunismo que sacudia a Europa e Sigmund Freud (1856-1939) teorizava sobre as neuroses hu-manas, enquanto Machado de Assis (1839-1908) j havia posto muita gente em seu div de analista (basta lembrar o velho Simo Bacamarte, o Alienista, que botou uma cidade inteira no manicmio da Casa Verde).

    2.1 Machado de Assis

    E por falar em Machado de Assis, vamos traz-lo j para o nosso Curso. Vamos com ele abordar um de seus temas mais preciosos, ou seja, os deslizes psquicos do ser humano. Por meio desta abordagem, Machado se coloca como dos mais avanados escritores de seu tempo. Como dissemos acima, ele se antecipa a Freud: enquanto este pesquisa a mente e o comportamento humanos, o brasileiro vai direto ao ponto, porquanto transfere para o plano esttico-literrio o drama das desor-dens mentais. S que com refinada ironia.

    Vamos ao texto longo conto O Alienista, que , sem dvida, uma jia da literatura mdica. Mdica? Isso mesmo, porm sem compromis-so com a cincia, mesmo porque o texto , na verdade, pea de crtica ao excesso de cientificismo que marcou o fim do XIX. Entretanto, parte de Figura 1. Machado de Assis

  • Unidade A - As Entradas

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    uma das preocupaes mais profundas de Machado, pois a epilepsia, doen-a nervosa que o acometera, nele se manifestava na forma de convulses.

    Moderno esse conto que, de certa maneira, inaugura matria ca-racterstica da ps-modernidade: a exposio de dramas psicopatolgi-cos vividos por seus personagens, manipulados pelo psiquiatra Simo Bacamarte em sua busca obsessiva dos limites entre a razo e a loucura. Da pena irnica machadiana no escapa o cruel retrato dos manic-mios brasileiros semelhantes aos nossos atuais presdios. Outro ingre-diente importante o fato de refletir a ordem poltico-social brasileira por meio do micro universo representado pela provinciana cidade de Itagua. Publicado pela primeira vez em 1881, O Alienista entrou para a galeria dos cnones na qualidade de obra fonte da literatura brasileira.

    Agora, vamos trazer baila outro conto cabea (duplo sentido: mexe com o tema cabea e mexe com a cabea do leitor). Trata-se de O Homem da Cabea de Papelo, do antenado Joo do Rio, autor que, embora sem o mesmo refinamento literrio de Machado, soube fazer o retrato do Rio de Janeiro de seu tempo sem nunca perder de vista as mazelas e contradies humanas.

    Antes, porm, para que voc tenha certa noo da modernidade de Joo do Rio e compreenda como pode um texto significar igualmente dois tempos to distantes (os anos dez do sculo XX e do XXI), ocupe-se com as Abordagens Reflexivas I e II:

    2.1.1 Abordagem I

    Para entendermos a modernidade de Joo do Rio e sua cabea de papelo, passemos reflexo assomada a abaixo, que espicha aquela do quadro logo acima. Esta vem na forma de parfrase, quando no com palavras tomadas integralmente a Adauto Novaes (O Estado de So Paulo, D6, 19/8/07), intelectual que se aprimorou em juntar cabeas pensantes do Brasil em conferncias que discutem temas de capital im-portncia para esse nosso tempo de mutaes. Uma dessas confern-cias justamente a que trata do Silncio dos Intelectuais, como se eles houvessem sido tomados por uma paralisia ante as situaes de risco, porque no dizer ante as barbries de uma sociedade perplexa face quebra dos tradicionais conceitos sobre poltica, crenas e pensamen-to. Mais do que crise, estes fenmenos poderiam ser entendidos como

  • Captulo 02Segundo Fragmento

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    um processo de mutao que germina no nada da revoluo tcnico cientfica dos ltimos tempos e aponta para a igualdade entre crebro humano e artificial, aquele dos computadores.

    Esse assunto no tem ponto final, como pretendi acima. Entretanto, no vamos muito alm. Apenas um pouquinho mais de reflexo sobre o tema a que chamamos Ps-Utopias, no qual linguagens, conceitos e crenas entram em crise. Crise no seria o termo adequado, melhor falar em mutao.

    Em tempos de avanadssima tecnologia, em que os biotecnlo-gos prevem, ainda para meados deste sculo XXI, a equivalncia total da inteligncia artificial (a de computadores) inteligncia humana, a mutao o processo marcante. No se trata do conceito em seu sen-tido tradicional, em que a mutao era precedida de grandes sistemas filosficos, polticos, culturais, artsticos. A mutao que vivemos atu-almente feita no vazio do pensamento, na esteira da grande revoluo tcnico-cientfica das dcadas recentes. A tecnocincia tem autonomia face s cincias humanas que tm precedentes na histria do pensamen-to. Como a tecnocincia no tem em que se apoiar, o resultado que precisamos inventar muita coisa.

    Vivemos em uma poca crtica, em que concepes polticas, cren-as e idias, que antes pareciam dar sentido, agora perdem valor. O fato que estamos passando por uma grande mutao que, embora consiga-mos identificar, no conseguimos definir.

    Fala-se muito em uma grande revoluo da informao, mas como trabalhar com informaes provisrias que se tornou uma grande questo. A informao apenas a mostra do imediato pnico, do fato em si, puro e simples. Ela a imagem do caos e, como tal, apenas o caos. Portanto, haveramos de nos ocupar com a reviso dos fatos, o que no conseguimos fazer no calor da hora. Assim que no administra-mos a poltica dos fatos e nos deixamos levar por esse caos assustador em que se desvaloriza a idia do tempo histrico. Ou seja, vivemos em um tempo que definido pelo aqui e agora, destroando-se, com isso, as duas maiores invenes da humanidade, que so o passado e o futuro. como se a gente pensasse: j que somos mortais e, por certo, desapare-ceremos, que se dane o futuro, e o passado j era!

  • Unidade A - As Entradas

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    Estampa-se no presente o mal pensado da morte da civilizao. Qual seria, ento, outra perspectiva (se houver)?

    Hoje as coisas no podem ser pensadas isoladamente e est mui-to claro que h uma interdependncia entre os mais variados assuntos. Convergem os temas entre si: a nanotecnologia com a biotecnologia, a infotecnologia com as cincias cognitivas. Est cada vez mais evidente que o pensamento no existe isoladamente. Assim pensam intelectuais como Srgio Paulo Rouanet, para quem o homem tem a necessidade de voltar a ser o sujeito do processo de gerao e aplicao do conhecimen-to, com a capacidade plena de ter uma viso de conjunto das atividades cientficas e tecnolgicas contemporneas.

    Um Gancho Para Que Se Pense Na Educao

    Nesse sentido, pensando na educao, rea da qual todos ns fa-

    zemos parte, no parece evidente a prtica da interdisciplinari-dade? Mais que isso, a transdisciplinaridade? Que se comece desde j (e o j j se faz tarde!) a preparar nossos alunos para a

    concepo de um mundo em que os pensamentos so, de fato, in-

    terdependentes. Afinal, urge essa necessidade de sermos sujeitos

    do processo e no objetos cnicos e reificados de um poder abso-

    luto que se esconde por detrs das vozes gravadas na telefonia das

    grandes empresas.

    Ateno: voltaremos ao tema em uma atividade de Prtica de En-sino.

    2.1.2 Abordagem II

    Voc assistiu ao filme de Ridley Scott, O Caador de Andrides, ou Blade Runner (1982), seu ttulo em ingls? Pois bem, um filme que um espanto. Quanto mais o vemos, mais descobrimos ngulos a serem ana-lisados. Nele, o ator Harrison Ford faz um detetive duro que sai caa de pobres andrides, seres criados em laboratrio de biotecnologia, que eram enviados para terrveis guerras interplanetrias e que, pior, tinham um tempo de vida delimitado. Alguns desses trans-humanos lograram

  • Captulo 02Segundo Fragmento

    25

    fugir da guerra e vm para uma Los Angeles catica em busca do Pai, ou seja, daquele que os criara para to desgraada finalidade. Sobretudo, eles no queriam morrer!

    A fico se adianta realidade. Sempre foi assim: o artista criador, muito tempo antes da realidade, prev em traos, letras, formas um fu-turo distante a ser realizado pela cincia. Assim se deu, atravs das hist-rias em quadrinhos, a criao de Flash Gordon, a prenunciar as viagens espaciais; o Superman, dubl de homem e mquina. Porm, antes deles, a literatura genial de Jlio Verne, com seus personagens em viagens ex-traordinrias ao fundo do mar e ao centro da terra; e, antes de todos, o Frankstein de Mary Shelley, estranha criatura urdida nas nvoas densas, toda sombras do ultra gtico romntico, expresso mesma da iminente decadncia de uma Europa cansada de sua prpria civilizao.

    Frankstein se saiu um monstro. Os robs de hoje trazem mlti-plos disfarces, inclusive para esconderem candidamente o assassino que neles poder existir. Foi o caso de outra pea de fico anterior a Bla-de Runner. Hall 2000, personagem robtico/computador inteligente, que protagoniza uma das cenas antolgicas do melhor cinema de fico cientfica. Em 2001, uma Odissia no Espao, Stanley Kubrick, baseado no romance homnimo de Arthur C. Clark (1918-2008), mostra-nos a agonia e morte do rob. Trata-se de Hall, nas cenas em que desligado pelo nico tripulante que sobreviveu srie de assassinatos tecnologica-mente praticados pelo prprio rob.

    Anos 60. Ainda assistia-se supremacia do homem sobre a mqui-na. Ser assim em 2045, tempo para o qual est prevista a ocorrncia daquilo a que os biotecnlogos chamam de Singularidade Tecnolgica, ou seja, o momento exato em que a inteligncia artificial (a de computa-dores) se igualar dos humanos?

    Enfim, chegou o tempo daquilo tudo que era urdidura, trama, in-veno ficcional tornar-se realidade. Assustadora em meio a um noti-cirio de pnico, complexa diante de uma sociedade que s faz pensar narcisicamente no presente como se no houvesse a morte que vir, sem querer lembrar o passado que poderia ter sido.

    Que fazer, enquanto so tantos os homens e pior, homens com investidura poltica que tm cabea de papelo?

  • Unidade A - As Entradas

    26

    (Voc pensou em algum poltico, em algum cartola ou em algum seu vizinho-amigo-colega espertalho, sempre pronto para levar vantagem em tudo? Ento, voc pensou certo!)

    2.2 Joo do Rio

    Pois agora chega de bl e vamos ao nosso personagem o Antenor inventado pelo extravagante Joo do Rio. Ou Godofredo de Alencar, ou Jos Antonio Jos, ou Joe, ou Claude, ou Joo Paulo Emlio (Crist-vo) Coelho Barreto, seu verdadeiro nome, dado pelos pais um gacho e uma mulata desde seu nascimento em 05/08/1881, no Rio de Janeiro, onde morreu em 23/06/1921. Foi redator de jornais importantes, como O Pas e Gazeta de Notcias, fundando depois um dirio que dirigiu at o dia de sua morte, A Ptria. Contista, romancista, autor teatral (condio em que exerceu a presidncia da Sociedade Brasileira de Autores Tea-trais), tradutor de Oscar Wilde, foi membro da Academia Brasileira de Letras, eleito na vaga de Guimares Passos. Entre outros livros, deixou Dentro da Noite, A Mulher e os Espelhos, Crnicas e Frases de Godofredo de Alencar, A Alma Encantadora das Ruas, Vida Vertiginosa, Os Dias Passam, As religies no Rio e Rosrio da Iluso, que contm como pri-meiro conto a admirvel stira O homem da cabea de papelo.

    A obra literria deste contemporneo de Machado de Assis no se encaixa facilmente no Realismo finissecular, nem na esttica modernis-ta j em andamento, quando, em 1922, se v confirmada na Semana de Arte Moderna, em So Paulo.

    Joo do Rio se situa naquele entre-tempo, entre-caminho a que se convencionou chamar de Pr-Modernismo, em companhia de Euclides da Cunha, Afonso Henriques de Lima Barreto, Monteiro Lobato, para citar alguns dos mais importantes nomes que j apontavam para as grandes pre-ocupaes nacionais e literrias das trs primeiras dcadas do sculo XX.

    Dedique-se agora leitura de O Homem da Cabea de Papelo.

    Figura 2. Joo do Rio

  • Captulo 03Terceiro Fragmento

    27

    3 Terceiro Fragmento

    Tema recorrente do programa, a literatura a nossa discusso. E para que voc veja que existe interdisciplinaridade, remetemos Disciplina Estu-

    dos Gramaticais para melhor acentuarmos alguns conceitos de literatura.

    O estudo da lngua se faz atravs da Lingstica enquanto cincia. E isso se d com mltiplas variaes, pois esta cincia se divide em vrios segmentos ou disciplinas como, por exemplo, Estudos Gramaticais, que voc acabou de ver no semestre anterior.

    Voc haver de se lembrar da primeira lio dessa Disciplina, no mesmo? Logo no princpio da Unidade A, aparece um quadro conten-do a imagem de um elefante com dois homens que seriam cegos. Ime-diatamente ao lado desse quadro, h um texto encimado pela pergunta Que lingstica? Lembrou?

    Pois bem. Para dar conta de uma resposta a tal pergunta, o autor, o professor Ataliba Castilho, faz uso de uma fbula.

    E o que uma fbula?

    Fbula uma das formas do gnero literrio em prosa que apre-senta uma narrao alegrica, cujos personagens so geralmente ani-mais, e que tem o propsito de passar uma lio moral. , portanto, uma histria inventada que se presta a fazer com que melhor se veja a realidade. literatura.

    Pois, agora?! (Expresso tpica da fala regional da ilha de Santa Catarina, usada quando a pessoa entendeu, mas no entendeu).

    Pois agora que estou tentando dizer que uma lngua s quando ela est documentada.

    Uai! (Exclamao tipicamente mineira para expressar um espan-to face obviedade de uma resposta a uma pergunta).

    O fato que, por exemplo, a lngua portuguesa passou a existir como lngua a partir do momento em que foi encontrado o texto A Can-tiga da Ribeirinha, de Paio Soares de Taveirs, no ano de 1198. Certo?

    GRSKI, Edair; ROST, Clu-dia. Introduo aos estudos gramaticais. Florianpolis: LLV/CCE/UFSC, 2008.

  • Unidade A - As Entradas

    28

    Bah, tch! (L vem o gacho admirado de confirmao).

    Pois isso. Veio a fala. A gente se comunicou. Desde a mais remo-ta antigidade que se contam histrias que encerram as mais variadas experincias vividas, como anotou Walter Benjamin para pensar a nar-rativa, no livro Magia e Tcnica, Arte e Poltica (BENJAMIN: 1987, 197-221). Mas o que era literatura oral e no foi grafado perdeu-se. Assim como h muitas lnguas que desaparecero porque no tm literatura. No tm a memria documentada, grafada, escrita.

    Orra, meu! (O paulistano macarrnico, bem depois do jeito que Antnio de Alcntara Machado flagrou a fala da italianada no formid-vel Brs, Bexiga e Barra Funda).

    Claro que vocs, curiosas e curiosos, movidos pelo esprito de pesquisa de que todo professor deve se imbuir, havero de buscar confirmao para o assunto em livros como Presena da Literatura Portuguesa das origens ao Realismo, de Antonio Soares Amora e Segismundo Spina, pela Editora Bertrand. Portanto, uma lngua s desde que tenha literatura. Afinal, o texto documenta um momento histrico e at mesmo os aspectos scio-lingsticos de uma gente, de uma sociedade, de uma nao. Correria o risco de desaparecimento toda riqueza da memria de um povo, por sua literatura oral, caso no fosse grafada. Eis a a funo da literatura.

    E a? (Pergunta todo o Brasil como quem quer saber o que que eu fao com isso?).

    Bom, se para entender o que Lingstica, conforme o professor Castilho, tem que ficar pegando em elefante, digo que para entender de literatura (um pouco) tem que pegar em livros na forma e no conte-do. Vamos l!

    Conferindo Conceitos

    Literatura: o que e quais alguns conceitos que podero deixar clara sua importncia para uma sociedade como a brasileira, que, alis, no l, malgrado o alerta feito por Monteiro Lobato (aquele do Stio do Pica-pau Amarelo?):

    Um pas se faz com homens e livros.

  • Captulo 03Terceiro Fragmento

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    1. LITERATURA uma forma especial de linguagem, em contraste

    com a linguagem comum que usamos habitualmente. Para Roman

    Jakobson, fundador da Escola Lingstica de Praga (celeiro da cor-

    rente formalista nos anos 20), a literatura representa uma violncia

    organizada contra a fala comum. A literatura transforma e inten-

    sifica a linguagem comum, afastando-se sistematicamente da fala

    cotidiana (EAGLETON: 1994).

    2. Paul de Man, da corrente desconstrutivista estadunidense, obser-

    va que toda linguagem inevitavelmente metafrica, operando por

    tropos e figuras; um engano acreditar que qualquer linguagem

    literalmente literal. Mesmo a filosofia, o direito, a teoria poltica fun-

    cionam por metforas (EAGLETON: 1994).

    3. Agora vejamos o conceito de Literatura emitido por um de nossos

    mais importantes intelectuais, o prof. Antonio Candido, no ensaio A

    Personagem de Fico: quando nos referimos literatura, pensa-

    mos no que tradicionalmente se costuma chamar belas letras. [...]

    Na acepo lata, literatura tudo o que aparece fixado por meio

    de letras obras cientficas, reportagens, notcias, textos de propa-

    ganda, livros didticos, receitas de cozinha, etc. [...] As belas letras

    representam um setor restrito. Contudo, seu carter mais distinto

    de ordem ficcional ou imaginria, aliado a um alto nvel esttico, diz

    Antonio Candido em outras palavras.

    4. Para Ernst Cassirer, citado por Candido no mesmo estudo, a li-

    teratura, como a obra de arte em geral, por seu carter esttico e

    supostamente ficcional, traz toda uma riqueza encerrada em seu

    contexto. Ao afastar o leitor de sua realidade e elev-lo a um mundo

    do simblico, ao voltar realidade, este aprende melhor a riqueza e

    profundidade.

    5. Goethe, o escritor smbolo maior da cultura germnica, dizia que

    atravs da arte, distanciamo-nos e ao mesmo tempo aproximamo-

    nos da realidade (CANDIDO: 1968).

  • Captulo 04Quarto Fragmento

    31

    4 Quarto Fragmento

    Colhendo este quarto fragmento, voc ter uma idia sobre as razes culturais brasileiras, principalmente a partir das reflexes modernistas. Tais

    reflexes aparecem aqui por meio de um recurso que bem poderia ser entendi-do como um dilogo entre Srgio Buarque de Holanda, Oswald de Andrade e

    Mrio de Andrade. Entretanto, para aodar o assunto, havemos de nos remeter ao indianismo de Jos de Alencar e malandragem braslica, esta correndo

    solta pelas novelas de tev.

    Onde comea o Brasil?

    Essa uma boa pergunta. Porm, antes de mais nada, d uma olha-dinha no esplndido quadro A Primeira Missa do Brasil, pintado em 1861 pelo catarinense Vitor Meireles.

    A Primeira Missa do Brasil, Vitor Meireles

  • Unidade A - As Entradas

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    Ento, se voc logo se puser a ler Razes do Brasil, de Srgio Buar-que de Holanda, vai descobrir de cara a ponta do novelo para entender quem somos ns, os brasileiros. Vai descobrir de onde veio toda essa preguia, o desleixo com a coisa pblica, o anseio por buscar o meio mais fcil para atingir um fim, o levar vantagem em tudo, as relaes de favo-res, a facilitao s prticas corruptas, o gostoso sentimento da saudade.

    Se voc pensou no colonizador portugus, acertou em cheio. In-sisto: leia Razes do Brasil e o assunto lhe parecer muito claro. Outra obra de grande importncia para entender a nossa nao Retratos do Brasil, cujo autor, Paulo Prado, trouxe-o a lume no efervescente ano de 1928, o mesmo ano do Macunama de Mrio de Andrade e do definitivo Manifesto Antropfago, do agitador cultural Oswald de Andrade.

    Quer saber de uma coisa? Pegue uma folha de papel almao pauta-da (ops! coisa mais antiga!), abra o Word e j v escrevendo sua primeira redao sobre o assunto O Brasil: o que era e no que deu para que j faa um arquivo para consulta posterior sobre o aproveitamento que voc tirou dessas paradas.

    Agora vamos encarar a cozinha brasileira, preparando uma comi-dinha cultural.

    Pegue os seguintes ingredientes:

    um suco bem concentrado de Razes do Brasil;1)

    uma poro bem escolhida de Iracema;.2)

    uma medida esperta de Paraso Tropical (ou qualquer outra te-3) lenovela equivalente).

    4.1 Da Telenovela

    Lembra daquela telenovela do ano passado na Globo, em que a sa-fadeza, a bandidagem e o mau-caratismo corriam soltos? Era a tal Para-so Tropical, em que personagens com aquelas qualidades aqui citadas faziam a catarse da nao brasileira. Era o Olavo (personagem vivido por Wagner Moura) e a Bebel (vivida por Camila Pitanga). ta, dupla de cafajestes! Mas cafajeste era o que no faltava naquela novelinha, no

    Este assunto ser retoma-do logo frente.

  • Captulo 04Quarto Fragmento

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    mesmo? (Alis, mau carter o que no pode faltar em novela alguma, caso contrrio, no d ibope.)

    Despreze aqueles personagens xaropes feitos de caras e bocas, ba-lanando a cabeorra tal aqueles bichinhos de R$ 1,99 que muitos mo-toristas gostam de pr no painel do automvel s pra ver aquelas coisi-nhas balanarem ao movimento do carro. Estou falando de personagens clichs como a Lcia, feita pela atriz Rene de Vilemond: s ela no en-xerga que o marido a trai e toda bondade! Depois da grande desiluso em saber-se enganada, descobre, toda pudores, o grande amor de sua vida. Trata-se de um jovem com idade para ser seu filho e com quem, para delrio dos telespectadores, adota uma criana. Mais politicamen-te corretos impossvel. Telenovela isso: o abuso da inverossimilhana. Dane-se. A audincia a-do-ra!

    A propsito, se voc no viu Paraso Tropical, serve qualquer outra, pois ingrediente de novela sempre o mesmo. E, pelo jeito, ser sempre assim.

    Mas vale aqui indicar as origens da malandragem braslica que debandou, lamentavelmente, em cafajestice generalizada. Refiro-me necessria leitura de Memrias de um Sargento de Milcias, de Manuel Antnio de Almeida, que focalizou os costumes fluminenses dentro do momento histrico de um Rio de Janeiro transformado em sede do im-prio portugus, com D. Joo VI. Para se aprofundar no tema, voc deve mergulhar no precioso ensaio de Antonio Candido, intitulado Dialti-ca da Malandragem (1993).

    4.2 De Iracema

    A Iracema do Alencar era aquela ndia bonita, toda bondade e toda entregue ao portugus desbravador, com o intuito ideolgico de mostrar a miscigenao das raas ndia e branca para a boa formao do carter nacional. Mas s que, voc bem observou, o danado do bravo portugus pegou o filhinho dele feito com a pobre ndia que, coitada, morreu, e levou pra criar e educar em Portugal. Direitinho como faziam as fam-lias de grandes recursos em relao aos seus rebentos, seus filhos, que voltariam de Coimbra diplomados em Direito para continuar a gerir os

    Lembretinho chato: se ainda no leu, corra!

  • Unidade A - As Entradas

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    bens da famlia. Suas terras, suas plantaes, seus escravos. Sempre de dentro da mquina do poder, fosse o Brasil monarquista, fosse o Brasil republicano.

    Iracema

    4.3 De Razes do Brasil

    Desta obra, voc vai retirar os elementos-chaves. So observaes e explicaes que Srgio Buarque oferece e desenvolve preciosamente para se pensar o Brasil.

    Alis, Razes do Brasil, cuja primeira publicao ocorreu em 1936, veio na esteira daquele estimulante ano de 1928, quando os modernistas (pelo menos aqueles imbudos de um esprito de rebeldia) puseram a mo na massa. Isto , mos obra, no tocante ao grande projeto de se passar da fase do barulho a Semana de Arte Moderna, em 1922 fase da reflexo crtica propriamente dita.

    Pai de Chico Buarque de Holanda, voc sabia?

  • Captulo 04Quarto Fragmento

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    Bom mesmo para entrar nesse assunto e entend-lo com segurana e qualidade dar uma boa lida (isto quer dizer: fazer uma leitura crite-riosa) nas poucas pginas (apenas dez) em que Affonso vila apresenta o projeto literrio brasileiro entre o Barroco e o Modernismo. O texto se encontra em O Modernismo, editado pela Perspectiva, que contm vrios ensaios sobre o tema, assinados por Benedito Nunes, Silviano Santiago, Affonso Romano de Santanna, entre outros, e foi o prprio Affonso vila quem coordenou e organizou essa importante edio em comemorao aos 50 anos da Semana de Arte Moderna. Bom, sobre o texto de Affonso vila, apontarei algumas dicas mais adiante.

    O negcio o seguinte: 1928 foi o ano da publicao, nada mais nada menos, de trs ttulos de fulcral importncia para o entendimento do Brasil. Vejam s:

    Manifesto Antropfago1) , de Oswald de Andrade.

    Macunama2) , de Mrio de Andrade.

    Retratos do Brasil3) , de Paulo Prado.

    mole? Ento vamos voltar quatro anos, 1924, para bem entender o esprito da coisa. Quer dizer, do Modernismo. E comecemos pelo seu grande mestre de cerimnias. Como em um picadeiro, assim diramos: Senhoras e senhores, com vocs, para animar a festa:

    4.4 Oswald de Andrade!

    Para bem compreender o Modernismo do Brasil, cumpre sejam feitas algumas leituras. Os Manifestos de Oswald de Andrade Pau-Brasil, de 1924, e Antropfago, de 1928 so bandeiras apontando para um novo pensamento que abraa a um s tempo as artes, a poltica e a sociedade.

    Importantssima foi a obra de Oswald. Seus dois romances, Mem-rias Sentimentais de Joo Miramar (1924) e Serafim Ponte Grande (1933), sua poesia inscrita do Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade (1927), bem como sua pea teatral O Rei da Vela, escrita em 1933, publicada em 1936 e levada ao palco apenas em 1963 na ence-nao fundadora do Tropicalismo, criada por Jos Celso Martinez no Oswald de Andrade

  • Unidade A - As Entradas

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    Teatro Oficina de So Paulo, radicalizam as conquistas da liberdade de criao artstica propugnadas pelo Modernismo.

    Vamos pegar a seguir alguns versos comentados desse aluno mes-tre que, no dizer de Dcio Pignatari (bem ao final do documentrio da TV Cultura), mais do que vanguarda de seu tempo, Oswald foi moder-no, mais que moderno, eterno.

    4.4.1 Pau-Brasil

    No livro Pau-Brasil, Oswald de Andrade pe em prtica as propos-tas do Manifesto de mesmo nome. Na primeira parte do livro, Histria do Brasil, ele recupera documentos da nossa literatura de informao, dando-lhes um vigor potico surpreendente. Na segunda, Poemas da colonizao, rev alguns momentos de nossa poca colonial.

    A descrio da paisagem brasileira, as cenas do cotidiano e o uso de metalinguagem so constncias entre os poemas de Pau-Brasil, marca-dos, ainda, pelo verso livre, pelo tom de prosa, pela simplicidade da lin-guagem e pela extrema condensao. Pau-Brasil sugere a idia da poesia como ingenuidade, surpresa e tambm imaginao, inveno, magia, liberdade. Associado ao universo infantil, o livro rompe as fronteiras entre sonho e realidade, propondo uma potica de renovao esttica que aponta para a redescoberta da poesia.

    Passemos a alguns dos poemas de Pau-Brasil, pincelando pequenos comentrios:

    Pronominais

    D-me um cigarro

    Diz a gramtica

    Do professor e do aluno

    E do mulato sabido

    Mas o bom negro e o bom branco

    Da nao brasileira

    Dizem todos os dias

    Deixa disso camarada

    Me d um cigarro

  • Captulo 04Quarto Fragmento

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    Os versos apontam para uma potica da coloquialidade e da na-cionalidade. Da miscigenao racial negros e brancos , forma-se o mulato, ou seja, uma outra cor, uma nova raa. Esta raa, por sua vez, altera a cultura do colonizador e faz valer sua prpria inveno lings-tica. Em processo, pois, a miscigenao cultural. O poema remete a um dos baluartes da formao cultural brasileira. Trata-se de Gregrio de Matos, que, juntamente com Machado de Assis e Euclides da Cunha, forma o que Oswald chamava de base literria do Brasil.

    O Capoeira

    Qu apanh sordado?

    O qu?

    Qu apanh?

    Pernas e cabeas na calada

    A idia de luta sugerida apenas por um dilogo-relmpago, ti-picamente popular (note que o texto escrito copia a oralidade) e pela metonmia (pernas e cabeas na calada a parte pelo todo), que ilustra o estilo telegrfico, extremamente sinttico, de Oswald de Andrade. Se-gundo Antonio Candido, Oswald foi o inaugurador, em nossa literatura, da transposio de tcnicas de cinema montagem de cenas, tentativa de descontinuidade para causar a impresso de imagens simultneas para o texto literrio.

    Relicrio

    No baile da corte

    Foi o conde dEu quem disse

    Pra Dona Benvinda

    Que farinha de Suru

    Pinga de Parati

    Fumo de Baependi

    com beb pit e ca

    Este poema representativo da proposta Pau-Brasil de poesia de exportao. Trata-se de recontar momentos significativos da histria da colonizao do Brasil de maneira irnica, crtica, como na cena de Relicrio. Nela, um personagem histrico, o Conde dEu, no baile da

  • Unidade A - As Entradas

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    Corte, conversa com Dona Benvinda uma conversa de cozinha: rt-mica, folclrica, engraada, surpreendente para o contexto do baile da Corte. Note que o relicrio significa recinto ou lugar especial, prprio para guardar objetos de estimao. Veja-se, pois, a impropriedade con-tida no poema ele mesmo um relicrio para essas coisas to prosaicas e pndegas do Brasil monarquista. Poema marcadamente oswaldiano: a conversa, a ironia, a piada.

    Cano de Regresso Ptria

    Minha terra tem palmares

    Onde gorjeia o mar

    Os passarinhos daqui

    No cantam como os de l

    Minha terra tem mais rosas

    E quase que mais amores

    Minha terra tem mais ouro

    Minha terra tem mais terra

    Ouro terra amor e rosas

    Eu quero tudo de l

    No permita Deus que eu morra

    Sem que eu volte para l

    No permita Deus que eu morra

    Sem que eu volte para So Paulo

    Sem que eu veja a rua 15

    E o progresso de So Paulo

    Esta a primeira pardia modernista da Cano do Exlio de Gon-alves Dias, poeta romntico. Hino nacionalidade, o poema original apresenta uma viso ufanista, idealizadora da ptria. Em sua pardia, Oswald de Andrade troca palmeiras por palmares, mostrando, assim, o nacionalismo crtico dos modernistas: minha terra tem opresso, escra-vido, dominao e tambm lutas pela libertao. Palmares o nome do mais famoso quilombo para onde fugiam os escravos.

  • Captulo 04Quarto Fragmento

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    H, tambm, uma referncia clara ao progresso de So Paulo sm-bolo do desenvolvimento econmico do pas , que se ope valoriza-o da natureza presente no poema de Gonalves Dias.

    Ao dizer que os passarinhos daqui, isto , do estrangeiro, no can-tam como os de l os do Brasil , Oswald relativiza a idia da superio-ridade de nossa fauna e de nossa flora em relao Europa, afirmando a diferena em oposio ao que se encontra em Gonalves Dias. O ver-so E quase que mais amores acentua a relativizao do patriotismo romntico a que nos referimos. Finalmente, a ausncia de pontuao, especialmente em Ouro terra amor e rosas, acaba de configurar a mo-dernidade da Cano de Regresso Ptria. Trata-se, pois, de um poema pardico que, aparentemente imitando o texto a partir do qual foi escri-to, faz, na verdade, inverter seus sentidos atravs da stira.

    Leitura:

    Manifesto da Poesia Pau-Brasil

    A poesia existe nos fatos. Os casebres de aafro e de ocre nos verdes da

    Favela, sob o azul cabralino, so fatos estticos.

    O Carnaval no Rio o acontecimento religioso da raa. Pau-Brasil. Wagner

    submerge ante os cordes de Botafogo. Brbaro e nosso. A formao tni-

    ca rica. Riqueza vegetal. O minrio. A cozinha. O vatap, o ouro e a dana.

    Toda a histria bandeirante e a histria comercial do Brasil. O lado doutor,

    o lado citaes, o lado autores conhecidos. Comovente. Rui Barbosa: uma

    cartola na Senegmbia. Tudo revertendo em riqueza. A riqueza dos bailes

    e das frases feitas. Negras de Jockey. Odaliscas no Catumbi. Falar difcil.

    O lado doutor. Fatalidade do primeiro branco aportado e dominando

    politicamente as selvas selvagens. O bacharel. No podemos deixar de

    ser doutos. Doutores. Pas de dores annimas, de doutores annimos. O

    Imprio foi assim. Eruditamos tudo. Esquecemos o gavio de penacho.

    A nunca exportao de poesia. A poesia anda oculta nos cips malicio-

    sos da sabedoria. Nas lianas da saudade universitria.

    Mas houve um estouro nos aprendimentos. Os homens que sabiam

    tudo se deformaram como borrachas sopradas. Rebentaram.

    A volta especializao. Filsofos fazendo filosofia, crticos, critica, donas

    de casa tratando de cozinha.

  • Unidade A - As Entradas

    40

    A Poesia para os poetas. Alegria dos que no sabem e descobrem.

    Tinha havido a inverso de tudo, a invaso de tudo : o teatro de tese e a

    luta no palco entre morais e imorais. A tese deve ser decidida em guerra

    de socilogos, de homens de lei, gordos e dourados como Corpus Juris.

    gil o teatro, filho do saltimbanco. gil e ilgico. gil o romance, nascido

    da inveno. gil a poesia..

    A Poesia Pau-Brasil. gil e cndida. Como uma criana.

    Uma sugesto de Blaise Cendrars : - Tendes as locomotivas cheias, ides

    partir. Um negro gira a manivela do desvio rotativo em que estais. O me-

    nor descuido vos far partir na direo oposta ao vosso destino.

    Contra o gabinetismo, a prtica culta da vida. Engenheiros em vez de

    jurisconsultos, perdidos como chineses na genealogia das idias.

    A lngua sem arcasmos, sem erudio. Natural e neolgica. A contribui-

    o milionria de todos os erros. Como falamos. Como somos.

    No h luta na terra de vocaes acadmicas. H s fardas. Os futuristas

    e os outros.

    Uma nica luta - a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de importao.

    E a Poesia Pau-Brasil, de exportao.

    Houve um fenmeno de democratizao esttica nas cinco partes s-

    bias do mundo. Institura-se o naturalismo. Copiar. Quadros de carneiros

    que no fosse l mesmo, no prestava. A interpretao no dicionrio

    oral das Escolas de Belas Artes queria dizer reproduzir igualzinho... Veio

    a pirogravura. As meninas de todos os lares ficaram artistas. Apareceu a

    mquina fotogrfica.

    E com todas as prerrogativas do cabelo grande, da caspa e da misteriosa

    genialidade de olho virado - o artista fotgrafo.

    Na msica, o piano invadiu as saletas nuas, de folhinha na parede. Todas

    as meninas ficaram pianistas. Surgiu o piano de manivela, o piano de

    patas. A pleyela. E a ironia eslava comps para a pleyela. Stravinski.

    A estaturia andou atrs. As procisses saram novinhas das fbricas.

    S no se inventou uma mquina de fazer versos - j havia o poeta

    parnasiano.

    Ora, a revoluo indicou apenas que a arte voltava para as elites. E as

    elites comearam desmanchando. Duas fases: 1) a deformao atravs

  • Captulo 04Quarto Fragmento

    41

    do impressionismo, a fragmentao, o caos voluntrio. De Czanne e

    Malarm, Rodin e Debussy at agora; 2) o lirismo, a apresentao no

    templo, os materiais, a inocncia construtiva.

    O Brasil profiteur. O Brasil doutor. E a coincidncia da primeira constru-

    o brasileira no movimento de reconstruo geral. Poesia Pau-Brasil.

    Como a poca miraculosa, as leis nasceram do prprio rotamento di-

    nmico dos fatores destrutivos.

    A sntese

    O equilbrio

    O acabamento de carrosserie

    A inveno

    Uma nova perspectiva

    Uma nova escala.

    Qualquer esforo natural nesse sentido ser bom. Poesia Pau-Brasil

    O trabalho contra o detalhe naturalista - pela sntese; contra a morbidez

    romntica - pelo equilbrio gemetra e pelo acabamento tcnico; con-

    tra a cpia, pela inveno e pela surpresa.

    Uma nova perspectiva:

    A outra, a de Paolo Ucello criou o naturalismo de apogeu. Era uma ilu-

    so tica. Os objetos distantes no diminuam. Era uma lei de aparncia.

    Ora, o momento de reao aparncia. Reao cpia. Substituir a

    perspectiva visual e naturalista por uma perspectiva de outra ordem:

    sentimental, intelectual, irnica, ingnua.

    Uma nova escala.

    A outra, a de um mundo proporcionado e catalogado com letras nos li-

    vros, crianas nos colos. O redame produzindo letras maiores que torres.

    E as novas formas da indstria, da viao, da aviao. Postes. Gasmetros

    Rails. Laboratrios e oficinas tcnicas. Vozes e tiques de fios e ondas e

    fulguraes. Estrelas familiarizadas com negativos fotogrficos. O corres-

    pondente da surpresa fsica em arte.

    A reao contra o assunto invasor, diverso da finalidade. A pea de tese

    era um arranjo monstruoso. O romance de idias, uma mistura. O quadro

    histrico, uma aberrao. A escultura eloquente, um pavor sem sentido.

    Nossa poca anuncia a volta ao sentido puro.

  • Unidade A - As Entradas

    42

    Um quadro so linhas e cores. A estaturia so volumes sob a luz.

    A Poesia Pau-Brasil uma sala de jantar domingueira, com passarinhos

    cantando na mata resumida das gaiolas, um sujeito magro compondo

    uma valsa para flauta e a Maricota lendo o jornal. No jornal anda todo o

    presente.

    Nenhuma frmula para a contempornea expresso do mundo. Ver

    com olhos livres.

    Temos a base dupla e presente - a floresta e a escola. A raa crdula e

    dualista e a geometria, a algebra e a qumica logo depois da mamadeira

    e do ch de erva-doce. Um misto de dorme nen que o bicho vem

    peg e de equaes.

    Uma viso que bata nos cilindros dos moinhos, nas turbinas eltricas;

    nas usinas produtoras, nas questes cambiais, sem perder de vista o Mu-

    seu Nacional. Pau-Brasil.

    Obuses de elevadores, cubos de arranha-cus e a sbia preguia solar.

    A reza. O Carnaval. A energia ntima. O sabi. A hospitalidade um pouco

    sensual, amorosa. A saudade dos pajs e os campos de aviao militar.

    Pau-Brasil.

    O trabalho da gerao futurista foi ciclpico. Acertar o relgio imprio

    da literatura nacional.

    Realizada essa etapa, o problema outro. Ser regional e puro em sua

    poca.

    O estado de inocncia substituindo o estada de graa que pode ser

    uma atitude do esprito.

    O contrapeso da originalidade nativa para inutilizar a adeso

    acadmica.

    A reao contra todas as indigestes de sabedoria. O melhor de nossa

    tradio lrica. O melhor de nossa demonstrao moderna.

    Apenas brasileiros de nossa poca. O necessrio de qumica, de mec-

    nica, de economia e de balstica. Tudo digerido. Sem meeting cultural.

    Prticos.

    Experimentais. Poetas. Sem reminiscncias livrescas. Sem comparaes

    de apoio. Sem pesquisa etimolgica. Sem ontologia.

    Brbaros, crdulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau-Brasil. A

  • Captulo 04Quarto Fragmento

    43

    floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o minrio e a dana. A

    vegetao. Pau-Brasil.

    OSWALD DE ANDRADE

    Correio da manh, 18 de maro de 1924.

    (In: Revista do Livro. Rio de Janeiro: INL, n 16, dezembro, 1959. APUD: Gilberto Mendona Teles. Vanguarda Europia e Modernismo

    Brasileiro. Petrpolis: Vozes, 1978, p. 266-271.)

    Agora que voc fez este ligeiro contato com a potica do mais ino-vador dos modernistas, passemos ao texto que contm todas as cha-ves para o entendimento do pensamento moderno brasileiro. Oswald o publicou no jornal paulistano Correio da Manh, na edio de 18 de Maro de 1924. Leia o Manifesto Pau-Brasil e os poemas de Oswald de Andrade. Boa leitura!

  • Unidade BAs Bandeiras

  • Captulo 05Quinto Fragmento

    47

    Quinto FragmentoEste fragmento tem a propriedade de acentuar o grande tema das preo-

    cupaes estticas e polticas do Modernismo entre ns. Por isso ele remete a dois textos tidos como bandeiras que avanam no mbito das discusses para a

    compreenso da cultura brasileira.

    5.1 Retomando 1928

    Macunama, do outro Andrade, o Mrio, apresenta uma nova pers-pectiva da nao brasileira, porquanto alude formao de um carter nacional que se revela indefinido. Tal observao aponta para o heri sem nenhum carter como personagem universal, e no exclusivamente brasileiro. No entanto, possvel pesar os fatos do nascimento e cres-cimento do heri: Macunama nasce no fundo do mato-virgem e vive num mocambo numa clara referncia sua origem indgena , era preto retinto e filho do medo da noite (ANDRADE, 1993, p. 9). No Ca-ptulo IV, toma banho numa gua encantada, tornando-se [...] branco louro e de olhos azuizinhos (ANDRADE, 1993, p.30). Assim, Mrio nos apresenta o heri, resultado da fuso de trs raas, sendo todas elas ao mesmo tempo e, portanto, tipicamente brasileiro.

    Quanto a Retratos do Brasil, Paulo Prado o escreveu em 1928, tra-zendo como subttulo Ensaio Sobre a Tristeza Brasileira. A tristeza, o romantismo, a luxria e o vcio da imitao eram apontados como os maiores problemas da nacionalidade. Naquela poca, mais precisamen-te em 1931, dois outros livros, O Pas do Carnaval, de Jorge Amado, e Maquiavel e o Brasil, de Otvio de Farias, expressavam o clima intelec-tual da poca, marcado pela idia de crise e incerteza.

    Leitura:

    Manifesto Antropfago

    S a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente.

    Filosoficamente.

    nica lei do mundo. Expresso mascarada de todos os individualismos, de

    todos os coletivismos. De todas as religies. De todos os tratados de paz.

    5

  • Unidade B - As Bandeiras

    48

    Tupy, or not tupy that is the question.

    Contra todas as catequeses. E contra a me dos Gracos.

    S me interessa o que no meu. Lei do homem. Lei do antropfago.

    Estamos fatigados de todos os maridos catlicos suspeitosos postos em

    drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da

    psicologia impressa.

    O que atropelava a verdade era a roupa, o impermevel entre o mundo

    interior e o mundo exterior. A reao contra o homem vestido. O cinema

    americano informar.

    Filhos do sol, me dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com

    toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos

    touristes. No pas da cobra grande.

    Foi porque nunca tivemos gramticas, nem colees de velhos vegetais.

    E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteirio e continen-

    tal. Preguiosos no mapa-mndi do Brasil.

    Uma conscincia participante, uma rtmica religiosa.

    Contra todos os importadores de conscincia enlatada. A existncia pal-

    pvel da vida. E a mentalidade pr-lgica para o Sr. Lvy-Bruhl estudar.

    Queremos a Revoluo Caraiba. Maior que a Revoluo Francesa. A unifi-

    cao de todas as revoltas eficazes na direo do homem. Sem n6s a Eu-

    ropa no teria sequer a sua pobre declarao dos direitos do homem.

    A idade de ouro anunciada pela Amrica. A idade de ouro. E todas as

    girls.

    Filiao. O contato com o Brasil Caraba. Ori Villegaignon print terre.

    Montaig-ne. O homem natural. Rousseau. Da Revoluo Francesa ao

    Romantismo, Revoluo Bolchevista, Revoluo Surrealista e ao br-

    baro tecnizado de Keyserling. Caminhamos..

    Nunca fomos catequizados. Vivemos atravs de um direito sonmbulo.

    Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belm do Par.

    Mas nunca admitimos o nascimento da lgica entre ns. Contra o Padre

    Vieira. Autor do nosso primeiro emprstimo, para ganhar comisso. O

    rei-analfabeto dissera-lhe : ponha isso no papel mas sem muita lbia.

    Fez-se o emprstimo. Gravou-se o acar brasileiro. Vieira deixou o di-

    nheiro em Portugal e nos trouxe a lbia.

  • Captulo 05Quinto Fragmento

    49

    O esprito recusa-se a conceber o esprito sem o corpo. O antropomor-

    fismo. Necessidade da vacina antropofgica. Para o equilbrio contra as

    religies de meridiano. E as inquisies exteriores.

    S podemos atender ao mundo orecular.

    Tnhamos a justia codificao da vingana. A cincia codificao da

    Magia. Antropofagia. A transformao permanente do Tabu em totem.

    Contra o mundo reversvel e as idias objetivadas. Cadaverizadas. O stop

    do pensamento que dinmico. O indivduo vitima do sistema. Fonte

    das injustias clssicas. Das injustias romnticas. E o esquecimento das

    conquistas interiores.

    Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.

    O instinto Caraba.

    Morte e vida das hipteses. Da equao eu parte do Cosmos ao axioma

    Cosmos parte do eu. Subsistncia. Conhecimento. Antropofagia.

    Contra as elites vegetais. Em comunicao com o solo.

    Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O ndio vestido de se-

    nador do Imprio. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas peras de Alencar

    cheio de bons sentimentos portugueses.

    J tnhamos o comunismo. J tnhamos a lngua surrealista. A idade de

    ouro.

    Catiti Catiti

    Imara Noti

    Noti Imara

    Ipeju

    A magia e a vida. Tnhamos a relao e a distribuio dos bens fsicos,

    dos bens morais, dos bens dignrios. E sabamos transpor o mistrio e a

    morte com o auxlio de algumas formas gramaticais.

    Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era

    a garantia do exerccio da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli

    Mathias. Comia.

    S no h determinismo onde h mistrio. Mas que temos ns com

    isso?

    Contra as histrias do homem que comeam no Cabo Finisterra. O mun-

    do no datado. No rubricado. Sem Napoleo. Sem Csar.

    Lua nova, Lua Nova, assopra em Fulano lem-branas de mim.

    In: O Selvagem, de Couto Magalhes.

  • Unidade B - As Bandeiras

    50

    A fixao do progresso por meio de catlogos e aparelhos de televiso.

    S a maquinaria. E os transfusores de sangue.

    Contra as sublimaes antagnicas. Trazidas nas caravelas.

    Contra a verdade dos povos missionrios, definida pela sagacidade de um

    antropfago, o Visconde de Cairu: mentira muitas vezes repetida.

    Mas no foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civiliza-

    o que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o

    Jabuti.

    Se Deus a conscinda do Universo Incriado, Guaraci a me dos viven-

    tes. Jaci a me dos vegetais.

    No tivemos especulao. Mas tnhamos adivinhao. Tnhamos Poltica

    que a cincia da distribuio. E um sistema social-planetrio.

    As migraes. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urba-

    nas. Contra os Conservatrios e o tdio especulativo.

    De William James e Voronoff. A transfigurao do Tabu em totem.

    Antropofagia.

    O pater famlias e a criao da Moral da Cegonha: Ignorncia real das

    coisas + falta de imaginao + sentimento de autoridade ante a prole

    curiosa.

    preciso partir de um profundo atesmo para se chegar idia de Deus.

    Mas a caraba no precisava. Porque tinha Guaraci.

    O objetivo criado reage com os Anjos da Queda. Depois Moiss divaga.

    Que temos ns com isso?

    Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto

    a felicidade.

    Contra o ndio de tocheiro. O ndio filho de Maria, afilhado de Catarina

    de Mdicis e genro de D. Antnio de Mariz.

    A alegria a prova dos nove.

    No matriarcado de Pindorama.

    Contra a Memria fonte do costume. A experincia pessoal renovada.

    Somos concretistas. As idias tomam conta, reagem, queimam gente

    nas praas pblicas. Suprimamos as idias e as outras paralisias. Pelos

    roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas.

  • Captulo 05Quinto Fragmento

    51

    Contra Goethe, a me dos Gracos, e a Corte de D. Joo VI.

    A alegria a prova dos nove.

    A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura ilustrada pela

    contradio permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e

    o modus vivendi capitalista. Antropofagia. Absoro do inimigo sacro.

    Para transform-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade.

    Porm, s as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que

    traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identifica-

    dos por Freud, males catequistas. O que se d no uma sublimao do

    instinto sexual. a escala termomtrica do instinto antropofgico. De

    carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo,

    a cincia. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa

    antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo a inveja, a usura,

    a calnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianiza-

    dos, contra ela que estamos agindo. Antropfagos.

    Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do cu, na terra de Irace-

    ma, o patriarca Joo Ramalho fundador de So Paulo.

    A nossa independncia ainda no foi proclamada. Frase tpica de D. Joo

    VI: Meu filho, pe essa coroa na tua cabea, antes que algum aventu-

    reiro o faa! Expulsamos a dinastia. preciso expulsar o esprito bragan-

    tino, as ordenaes e o rap de Maria da Fonte.

    Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud a

    realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituies e sem peni-

    tencirias do matriarcado de Pindorama.

    OSWALD DE ANDRADE

    Em Piratininga Ano 374 da Deglutio do Bispo Sardinha.

    (Revista de Antropologia, Ano 1, No. 1, maio de 1928.)

    Passemos agora apreciao do Manifesto Antropfago, de Oswald de Andrade.

    Este Manifesto constitui-se numa sntese de alguns pensamentos do autor sobre o Modernismo Brasileiro. Inspirava-se explicitamente em Marx, em Freud, Breton, Montaigne e Rousseau e atacava explici-tamente a missionao, a herana portuguesa e o padre Antonio Vieira. Antes de os portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto

  • Unidade B - As Bandeiras

    52

    a felicidade; Contra Goethe (que simboliza a cultura clssica europia). Neste sentido, assina o Manifesto como tendo sido escrito em Piratinin-ga (nome indgena para a plancie de onde viria a surgir a cidade de So Paulo), datando-o esclarecedoramente como ano 374, da Deglutio do Bispo Sardinha, o que denota uma recusa radical, simblica e humo-rstica, do calendrio gregoriano vigente.

    H vrias idias implcitas neste Manifesto, sendo de lamentar que o seu autor no tivesse o esprito sistemtico e mais profundo do seu amigo Mrio de Andrade para as ter explanado de uma maneira mais substantiva. Uma conhecida da antropologia e tem a ver com o papel simblico do canibalismo nas sociedades tribais/tradicionais. O canibal nunca come um ser humano por nutrio, mas sempre para incluir em si as qualidades do inimigo ou de algum. Assim o canibalismo inter-pretado como uma forma de venerao ao inimigo. Se o inimigo tem valor ento h interesse em com-lo, porque assim o canibal torna-se mais forte. Oswald atualiza este conceito, no fundo expressando que a cultura brasileira mais forte; colonizada pelo europeu, mas digere o europeu e assim torna-se superior a ele: Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exerccio da pos-sibilidade. Esse homem chamava-se Galli Matias. Comi-o.

    Outra idia avanada a de que a maior revoluo de todas vai se realizar no Brasil: Queremos a revoluo Caraba.

    Outra idia a de que o Brasil, simbolizado pelo ndio, absorve o estrangeiro, o elemento estranho a si, e torna-o carne da sua carne, canibaliza-o. Oswald recusa as religies do meridiano, que so aquelas de origem oriental e semita, que deram origem ao cristianismo, sendo a favor das religies indgenas, com sua relao direta com as foras csmicas.

    O Manifesto insiste muito nas idias de Totem e Tabu, expressas em um trabalho de Freud de 1912. Segundo Freud, o pai da tribo teria sido morto e comido pelos filhos e posteriormente divinizado. Tornado Totem, e por isso mesmo sagrado, conseqentemente criaram-se inter-dies sua volta.

  • Captulo 05Quinto Fragmento

    53

    Citando o Manifesto: Antropofagia. A transformao permanente do Tabu em totem. A antropofagia, segundo Oswald, uma inverso do mito do bom selvagem de Rousseau, que era puro, inocente, edni-co. O ndio passa a ser mau e esperto, porque canibaliza o estrangeiro, digere-o, torna-o parte da sua carne. Assim o Brasil seria um pas cani-bal. O que um ponto de vista interessante, porque subverte a relao colonizador/(ativo)/colonizado(passivo). O colonizado digere o coloni-zador. Ou seja, no a cultura ocidental, portuguesa, europia, branca que ocupa o Brasil, mas o ndio que digere tudo o que chega at ele. E ao digerir e absorver as qualidades dos estrangeiros fica melhor, mais forte, e torna-se brasileiro.

    Assim, o Manifesto Antropfago, embora seja nacionalista, no xenfobo, antes pelo contrrio xenofgico: S me interessa o que no meu. Lei do homem. Lei do antropfago.

    (Adaptado de: . Acesso em 27 de jun. 2008)

    Para completar o assunto, observe o quanto Oswald de Andrade j foi retratado como personagem nos vrios meios de comunicao.

    Por Cole Santana, no filme Tabu (1982); Flvio Galvo e tala Nan-di, no filme O Homem do Pau-Brasil (1982); por Antonio Fagundes, no filme Eternamente Pagu (1987); por Jos Rubens Chach, nas miniss-ries Um S Corao (2004) e JK (2006). H tambm o documentrio Miramar de Andrade, produzido no ano 2000 pela Tev Cultura de So Paulo, disponvel em DVD neste Curso.

    As idias de Oswald de Andrade influenciaram tambm diversas reas da criao artstica: o tropicalismo, na msica, o movimento dos concretistas e o teatro. Grupos como o Oficina e Cia. Antropofgica tem sua trajetria ligada ao poeta.

    Vamos, uma vez mais, prtica interdisciplinar.

  • Unidade B - As Bandeiras

    54

    Lembrando de Literatura I

    Mas nunca admitimos o nascimento da lgica entre ns. Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro emprstimo, para ga-nhar comisso. O rei-analfabeto dissera-lhe: ponha isso no papel mas sem muita lbia. Fez-se o emprstimo. Gravou-se o acar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lbia.

    Qual a relao que este trecho do Manifesto Antropfago tem com os sermes de Vieira e com o texto Vieira ou a cruz da desigualdade, de Alfredo Bosi, que voc leu na Disciplina de LBI (LLV9002)?

    Resposta:

  • Captulo 06Sexto Fragmento

    55

    Sexto FragmentoCom este Fragmento, passamos ao estudo de um de nossos maiores

    poetas, Carlos Drummond de Andrade, cotejando-o, porm, com outras linguagens poticas. Alm de dois ensaios esclarecedores sobre a obra do poeta mineiro, o Fragmento remete prtica da interdisciplinaridade, referindo-se a um dos cantos de Os Lusadas, matria da Disciplina Literatura Portuguesa I.

    6.1 Uma Fatia de Poesia: Augusto dos Anjos, Carlos Drummond de Andrade e Adlia Prado

    Para a presente aula, voc vai encarar trs tempos literrios dife-rentes por meio de trs poetas com alguns pontos em comum. Voc comprovar algumas coisas importantes:

    que a gente pode ensinar e estudar literatura agrupando pocas 1) bem distintas e autores diferentes entre si.

    que ns, professores, no precisamos (e nem devemos) progra-2) mar o ensino seguindo uma linha horizontal, como nos im-pem os livros didticos tradicionais.

    que escritores e artistas de diferentes tempos cumprem estti-3) cas diferentes, porm se alinham em torno de temas comuns de maneira grandiosa.

    que fases literrias diferentes so muito relativas, pois no se 4) joga fora o passado de um momento a outro.

    Os trs tempos so:

    Simbolismo, Decadentismo, Impressionismoa) , cujo pero-do ficaria definido entre as ltimas dcadas do sculo XIX e a Semana de Arte Moderna de 1922, em So Paulo. O processo literrio se d nos anos 80 e 90 daquele sculo, quando o ne-gro catarinense, Joo da Cruz e Sousa, surge com uma potica que se afasta pouco a pouco da dos parnasianos, indo na dire-o de uma mais profunda, tal qual a dos franceses Baudelaire,

    6

  • Unidade B - As Bandeiras

    56

    Verlaine, Rimbaud e Mallarm. Ao lado de Cruz e Sousa, h outro simbolista marcante, o mineiro Alphonsus Guimares, e os contemporneos ditos decadentistas, Augusto dos Anjos, paraibano, mais o baiano Pedro Kilkerry.

    Modernismob) , cometido em geraes ou momentos distintos: o da Semana de 22, liderado pelos paulistas Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia e Mrio de Andrade, que trouxera baila o mineiro Carlos Drummond de Andrade e tantos outros poetas que puseram o Parnasianismo literrio no museu; a segunda gerao, dos anos 30, com enfoque no social e com carter re-gionalista, donde destacamos o alagoano Jorge de Lima.

    Ps-Modernismoc) ou contempornea, com mltiplas variantes estticas, desde a poesia exata do pernambucano Joo Cabral de Melo Neto, at a lrica espiritualista da fluminense Ceclia Meireles, passando pelo Concretismo do paulista Dcio Pig-natari, pela Catequese Potica do catarinense Lindolf Bell ou pelos versos politizados do maranhense Ferreira Gullar; pelo feminino-religioso da mineira Adlia Prado, at a Gerao 90-00 (1990 e 2000), muito voltada para o hiper-realismo.

    Vejamos estes trs nomes:

    AUGUSTO DOS ANJOS, paraibano, nasceu em 1884 e morreu 1) em 1914.

    CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, mineiro, nasceu em 2) 1902 e morreu em 1987.

    ADLIA PRADO vive desde 1935 em sua terra de origem, Di-3) vinpolis, interior pacato de Minas Gerais.

    Leitura Bsica

    Faa agora a leitura dos poemas A Mquina do Mundo, de Drummond de Andrade, e As cismas do destino, de Augusto dos Anjos.

    Boas Leituras!

  • Captulo 06Sexto Fragmento

    57

    6.2 Anlise 1

    Para o bom entendimento destas duas obras da literatura brasileira, escolhemos a anlise em termos comparativos feita pelo escritor, jorna-lista, compositor paraibano Brulio Tavares.

    A Mquina do Mundo / As Cismas do Destino Uma Anlise Comparativa entre Drummond e dos Anjos

    Brulio Tavares

    Quero comparar dois poemas famosos de nossa literatura: As Cismas do

    Destino, de Augusto dos Anjos (1908), e A Mquina do Mundo, de Carlos

    Drummond de Andrade (em Claro Enigma, 1948-1951). So tantas as se-

    melhanas entre os dois poemas (em tema, em linguagem, em estrutura)

    que no h dvida de que o segundo uma citao deliberada do pri-

    meiro. Penso que a inteno de Drummond foi de recompor em termos

    prprios a experincia da viso csmica, registrada no texto de Augus-

    to. Podemos dizer, com alguma liberdade potica, que ambos os poetas

    funcionaram como stuntminds, como mentes de aluguel que correram

    o risco de receber o Claro emitido pela Verdade Oculta do Universo (ou

    coisa equivalente) para transmitir em palavras o seu plido reflexo.

    So numerosos os relatos de indivduos que declaram haver experi-

    mentado em algum momento um vislumbre visionrio em que o mun-

    do inteiro parecia estar presente diante de si, e em que todas a coisas

    pareciam embebidas de significao. Ao emergir de uma experincia

    desse tipo, as pessoas de ndole religiosa a consideram uma iluminao

    mstica, um sinal da presena da Divindade. Freud chamou a isso ex-

    perincias ocenicas, Jung experincias numinosas, Abraham Maslow

    experincias culminantes (peak experiences). As interpretaes variam,

    mas parece claro que esto todos se referindo mesma coisa.

    Os poemas As Cismas do Destino (Augusto) e A Mquina do Mundo

    (Drummond) descrevem experincias desse tipo. Em ambos, o poeta

    faz a ss uma caminhada, e comea a ser dominado pela sensao cada

    vez mais intensa da presena (quase que da aproximao) do Mundo.

    Ele tem a impresso de que o mundo se personifica, o mundo lhe dirige

    a palavra; segue-se uma torrente de imagens que procuram, de modo

    fragmentrio, exprimir esse recado do Mundo. A viso fugaz e logo se

    desvanece; o poeta constata a impossibilidade de apreender o Mundo,

    cuja complexidade transcende o intelecto e os sentidos.

    Ele pode ser lido mais amide nos sites: www.jornaldaparba.globo.com e tambm na revista ele-trnica Cronpios www.cronpios.com.br

  • Unidade B - As Bandeiras

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    As Cismas do Destino um poema longo: 105 quadras em decassla-

    bos (420 versos). A Mquina do Mundo se compe de 32 tercetos em

    decasslabos (96 versos). Para efeito desta anlise, tambm bom con-

    siderar o poema Relgio do Rosrio ( 22 dsticos em decasslabos, num

    total de 42 versos), que o prprio Drummond considerou complemen-

    tar ao outro -- os dois juntos compem a Parte VI (intitulada A mquina

    do mundo) do Claro Enigma.

    As Cismas do Destino puro Augusto dos Anjos: uma catadupa de

    imagens desconexas e inesquecveis (o poema abre com as famosas li-

    nhas: Recife. Ponte Buarque de Macedo. / Eu, indo em direo casa do

    Agra, / assombrado com a minha sombra magra, / pensava no Destino,

    e tinha medo!). Augusto era um poeta obsessivo, que gostava de vivisse-

    cionar uma imagem no papel at livrar-se dela. Em As Cismas do Desti-

    no, essa reiterao dos prprios lugares comuns acaba desequilibrando

    o poema, ao inchar em demasia suas duas primeiras partes e retardar

    o momento da Viso: Augusto dedica 40 linhas imagem do escarro

    (quadras 19 a 28 ), 64 linhas s formas de vida rudimentares (quadras 35

    a 50), 28 linhas prostituio (quadras 51 a 57). visvel nesses trechos

    (como de resto ao longo de toda sua obra) que ele no escrevia para

    produzir emoes no leitor, e sim para dren-las de si prprio.

    Surge a Revelao, que menos visual que auditiva. Augusto ouve uma

    impressionadora voz interna / o eco particular do meu Destino. Essa voz

    o interpela diretamente (Homem!); zomba da sua ambio de entender

    os cosmos, e faz depois uma extensa enumerao de todas as coisas que

    o terrqueo abismo encerra. Esta enumerao catica se desenrola ao

    longo de quase cem versos (quadras 70 a 83), e caracterstica de Augus-

    to: ele sempre d a impresso de que poderia prolong-la indefinidamen-

    te, sem nunca se dar por satisfeito. Concluda (ou melhor: interrompida)

    a enumerao, a Voz ainda joga umas derradeiras ps-de-cal no poeta, e

    cala-se. O texto se interrompe logo frente, como se o poeta tivesse de

    repente largado a pena e se erguido da mesa, dizendo: Chega.

    Comparado ao poema de Augusto dos Anjos, A Mquina do Mundo

    um texto de notvel frieza. O texto de Augusto pontilhado de excla-

    maes e de exageros; o de Drummond todo nostalgia e voz baixa,

    como um entomlogo relatando a um colega de laboratrio uma ex-

    perincia levada a efeito tempos atrs, e no muito bem sucedida. Em

    ambos os poemas, entretanto, esto presentes os mesmos elementos:

    a Caminhada; a contemplao da Paisagem; a brusca Revelao; o Re-

    cado do Mundo.

  • Captulo 06Sexto Fragmento

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    A revelao colhida por Drummond lcida, apolnea: a revelao

    dada aos olhos de um homem maduro, por volta dos 50, e difere da

    que recebida pelo rapaz neurtico de 24 que escreveu As Cismas do

    Destino. O Mundo, para Drummond, uma mquina ou algo cuja

    natureza tem parentesco com a natureza das mquinas. A mquina se

    desvela, majestosa e circunspecta; o poeta reconhece que o fez sem

    voz alguma / ou sopro ou eco ou simples percusso, mas recebe a re-

    velao como uma mensagem pessoal, e no hesita em abrir aspas para

    a mquina e atribuir-lhe palavras.

    A mquina de Drummond tambm menos loquaz do que a voz ou-

    vida por Augusto: fala-lhe durante treze linhas (a de Augusto precisou

    de 140); cala-se logo, e a enumerao catica dada ao leitor atravs

    dos olhos do prprio poeta. Encerrada a viso, o poeta no precisa da

    zombaria csmica para saber que a verdade lhe vedada: ele rejeita a

    oferta como se antevisse nela uma armadilha, e se dispensa de solver o

    mistrio. No mais o Cosmos que repele a pergunta humana sobre o

    seu significado, como em Augusto: o Homem, agnstico, que declina

    de formular essa pergunta ao Cosmos.

    Todo ms, em algum lugar do mundo, um sujeito de olhos injetados e

    barba por fazer desembarca num hospcio, esperneando s mos dos

    enfermeiros e gritando: Larguem-me, seus idiotas! Estou lhes dizendo

    que decifrei o Segredo do Universo! Por outro lado, muitos indivduos

    tiveram revelaes desse tipo, mas foram discretos o bastante para

    guard-las consigo, ou ento encontraram uma maneira inteligvel de

    transmiti-la: Kepler intuiu uma harmonia bsica na mecnica celeste,

    Descartes vislumbrou a natureza fundamentalmente matemtica do

    mundo material, Edgar Poe (no Eureka) antecipou em quase um scu-

    lo algumas idias da cosmologia contempornea. Experincias seme-

    lhantes foram relatadas por Jung, Aldous Huxley, Philip K. Dick e muitos

    outros autores.

    Esses vislumbres podem levar perplexidade, beatitude, a revolues

    cientficas ou camisa-de-fora; mas a sua universalidade nos permite

    acreditar que correspondem a uma possibilidade de funcionamento de

    nosso crebro. possvel provoc-los deliberadamente atravs de est-

    mulos fsicos: jejum, fadiga, exerccios, tcnicas de concentrao, drogas

    alucinginas. Muitas vezes, no entanto, eles se manifestam de modo es-

    pontneo e inesperado. Mesmo quando essas vises so atipicamente

    longas (o poeta Robert Graves dizia ter experimentado uma que durou

  • Unidade B - As Bandeiras

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    um dia inteiro), persiste a impresso de que houve uma compresso

    temporal, de um ano em um s dia, um dia em um s minuto. Num livro

    intitulado The Timeless Moment, Warner