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Literatura Brasileira III Florianópolis – 2009 Ana Cláudia Félix Gualberto Período

[Livro UFSC] Literatura Brasileira III (2)

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Literatura Brasileira III (2)

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  • Literatura Brasileira III

    Florianpolis 2009

    Ana Cludia Flix Gualberto3Perodo

  • Governo FederalPresidente da Repblica: Luiz Incio Lula da SilvaMinistro de Educao: Fernando HaddadSecretrio de Ensino a Distncia: Carlos Eduardo BielschowkyCoordenador Nacional da Universidade Aberta do Brasil: Celso Costa

    Universidade Federal de Santa CatarinaReitor: Alvaro Toubes PrataVice-Reitor: Carlos Alberto Justo da SilvaSecretrio de Educao a Distncia: Ccero BarbosaPr-Reitora de Ensino de Graduao: Yara Maria Rauh MullerPr-Reitora de Pesquisa e Extenso: Dbora Peres MenezesPr-Reitor de Ps-Graduao: Maria Lcia de Barros CamargoPr-Reitor de Desenvolvimento Humano e Social: Luiz Henrique Vieira da SilvaPr-Reitor de Infra-Estrutura: Joo Batista FurtuosoPr-Reitor de Assuntos Estudantis: Cludio Jos AmanteCentro de Cincias da Educao: Wilson Schmidt

    Curso de Licenciatura Letras-Portugus na Modalidade a DistnciaDiretora Unidade de Ensino: Felcio Wessling MargottiChefe do Departamento: Zilma Gesser NunesCoordenadoras de Curso: Roberta Pires de Oliveira e Zilma Gesser NunesCoordenador de Tutoria: Josias Ricardo HackCoordenao Pedaggica: LANTEC/CEDCoordenao de Ambiente Virtual de Ensino e Aprendizagem: Hiperlab/CCE

    Comisso EditorialTnia Regina Oliveira RamosIzete Lehmkuhl CoelhoMary Elizabeth Cerutti Rizzati

  • Equipe de Desenvolvimento de Materiais

    Laboratrio de Novas Tecnologias - LANTEC/CEDCoordenao Geral: Andrea LapaCoordenao Pedaggica: Roseli Zen Cerny

    Produo Grfica e HipermdiaDesign Grfico e Editorial: Ana Clara Miranda Gern; Kelly Cristine SuzukiResponsvel: Thiago Rocha Oliveira, Laura Martins RodriguesAdaptao do Projeto Grfico: Laura Martins Rodrigues, Thiago Rocha OliveiraDiagramao: Ana Flvia Maestri, Eduardo Santaella Malaguti, Karina SilveiraFiguras: Bruno NucciTratamento de Imagem: Thiago Rocha OliveiraReviso gramatical: Tony Roberson de Mello Rodrigues

    Design InstrucionalResponsvel: Isabella Benfica BarbosaDesigner Instrucional: Vernica Ribas Crcio

    AgradecimentosUm especial agradecimento s colaboradoras, Profa. Dra. Zahid Lupinacci Muzart e Profa. Dra. Tnia Regina de Oliveira Ramos.

    Copyright 2009, Universidade Federal de Santa Catarina/LLV/CCE/UFSCNenhuma parte deste material poder ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer meio eletrnico, por fotocpia e outros, sem a prvia autorizao, por escrito, da Coordena-o Acadmica do Curso de Licenciatura em Letras-Portugus na Modalidade a Distncia.

    Ficha Catalogrfica

    G899l Gualberto, Ana Cludia Flix Literatura brasileira III/ Ana Cludia Flix Gualberto. Florianpolis : LLV/CCE/UFSC, 2009. 118p. : 28cm ISBN 978-85-61482-14-5 1. Literatura brasileira contempornea. 2. Manifestaes literrias Sculo XX- XXI. I. Ttulo.

    CDU: 869.0(81)

    Catalogao na fonte elaborada na DECTI da Biblioteca Universitria da

    Universidade Federal de Santa Catarina.

  • Sumrio

    Unidade A ............................................................................................ 9Guimares Rosa: o primeiro Joo1 ...........................................................13

    Cabral de Melo Neto: o segundo Joo2 .................................................17

    Unidade B ...........................................................................................27Clarice Lispector3 ...........................................................................................31

    Lygia Fagundes Telles 4 ................................................................................39

    Nlida Pion5 ...................................................................................................47

    Lya Luft 6 ............................................................................................................55

    Unidade C ...........................................................................................61Concretismo7 ...................................................................................................65

    7.1. Haroldo de Campos ........................................................................................68

    7.2. Augusto de Campos .......................................................................................71

    7.3. Dcio Pignatari..................................................................................................71

    Anos 70 e 808 ...................................................................................................73

    8.1 Tropicalismo ........................................................................................................73

    8.2. Poesia marginal ................................................................................................76

    8.3. Anos 80: poetas, compositores e cancioneiros. ....................................79

    Unidade D ..........................................................................................85Rubem Fonseca9 .............................................................................................89

    Hilda Hilst10 .....................................................................................................95

    Caio Fernando Abreu11 ............................................................................103

    Referncias ...................................................................................... 113

  • Apresentao

    Caros estudantes, boas vindas a todos vocs!

    A disciplina Literatura Brasileira III foi dividida em quatro Unida-des, para que voc possa assimilar da melhor maneira possvel as discusses aqui sugeridas. Aspectos relevantes da contemporanei-dade e importantes conceitos analticos, tericos e crticos foram distribudos, ressaltando-se aspectos como contextualizao histrica, principais produes literrias, autores representativos de maneiras do fazer literrio, fragmentos de suas principais obras, alguns comentrios crticos e, principalmente, possveis leituras destes textos.

    Na primeira Unidade, cujos marcos histricos podem ser resumidos pelo Bra-sil dos anos 50, ps-segunda guerra mundial, ps-governo Getlio Vargas, voc conhecer dois importantes escritores, um poeta e um prosador, Joo Cabral de Melo Neto e Joo Guimares Rosa.

    Na segunda Unidade entraremos em questes mais temticas e o destaque ser direcionado literatura de autoria feminina produzida a partir de uma escri-tora que pode ser considerada um marco na Literatura Brasileira. Voc j deve ter ouvido falar em Clarice Lispector. Nesse tpico, leremos algumas narrati-vas de Clarice e estabeleceremos um dilogo com outras produes literrias de autoria feminina, entre elas: Lygia Fagundes Telles, Nlida Pion e Lya Luft. O objetivo principal dessa Unidade voc perceber como a subjetividade im-pregnou a escrita destas mulheres ao abordarem temas do cotidiano como a famlia, as relaes afetivas, o urbano, as angstias da vida moderna.

    Na terceira Unidade, diante do contexto histrico influenciado pela poltica de-senvolvimentista do governo JK, voc conhecer as experincias da poesia con-creta, da tropiclia, da poesia marginal da dcada de 70 e do rock dos anos 8090. um tpico que vai requerer de sua parte muita leitura, sua ateno nas palavras, nas construes e desconstrues poticas, influenciadas por outras mdias.

    Na ltima Unidade, estabeleceremos interfaces da literatura com duas temti-cas bastante representativas da produo contempornea: a violncia e a sexua-lidade. Aqui voc ir trabalhar com alguns textos literrios que abordam estes temas, igualmente explorados pela linguagem televisiva e cinematogrfica.

  • interessante ressaltar que, sempre que possvel, ser feita uma relao entre a leitura e a prtica docente, para que voc possa (re)pensar sua experincia em sala de aula. Esperamos que voc aproveite estas semanas para pesquisar, ler e compartilhar suas experincias.

    Boa leitura e uma boa disciplina!

    Ana Cludia Flix Gualberto

  • Unidade ADois Joes: um prosador e um poeta

  • IntroduoHora da palavra

    Quando no se diz nada Fora da palavra

    Quando mais dentro aflora Tora da palavra

    Rio, pau enorme, nosso pai

    Caetano Veloso, A terceira margem do rio

    Nesta primeira Unidade, iremos nos deter em dois escritores em-blemticos da Literatura Brasileira, Joo Guimares Rosa e Joo Cabral de Melo Neto. Os dois Joes, de acordo com a historiografia literria, esto inseridos na contemporaneidade. Voc poder perguntar: quais foram os critrios utilizados para esta classificao? A resposta para este questionamento est centrada no processo de canonizao, pois estes autores j fazem parte do cnone literrio brasileiro.

    A fim de buscar uma possvel resposta para o questionamento ini-cial O que levou a crtica literria a classificar esses autores como contemporneos? observaremos de que modo a linguagem utiliza-da em seus textos e quais so as temticas, geralmente, abordadas por esses autores.

    O nosso percurso analtico ter incio com a obra de Joo Guima-res Rosa. Aproveite, agora, para mergulhar no universo sertanejo e nas grandes veredas dos textos deste autor.

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  • Captulo 01Guimares Rosa: o primeiro Joo

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    1 Guimares Rosa: o primeiro Joo

    A apresentao do escritor Joo Guimares Rosa, nesta Disciplina, ser realizada por ele mesmo, a partir do que ele falou em uma entrevis-ta concedida a Gnter Lorenz em 1965. Nessa ocasio, o autor se auto-caracterizou da seguinte maneira:

    Que nasci no ano de 1908, voc j sabe. Voc no deveria me pedir mais

    dados numricos. Minha biografia, sobretudo minha biografia literria,

    no deveria ser crucificada em anos. As aventuras no tm tempo, no

    tm princpio nem fim. E meus livros so aventuras; para mim so minha

    maior aventura. Escrevendo descubro sempre um novo pedao de infi-

    nito. Vivo no infinito; o momento no conta. Vou lhe revelar um segredo:

    creio j ter vivido uma vez. Nesta vida, tambm fui brasileiro e me cha-

    mava Joo Guimares Rosa. Quando escrevo, repito o que j vivi antes. E

    para estas duas vidas, um lxico s no suficiente. Em outras palavras,

    gostaria de ser um crocodilo vivendo no rio So Francisco. O crocodilo

    vem ao mundo como um magister da metafsica, pois para ele cada rio

    um oceano, um mar de sabedoria, mesmo que chegue a ter cem anos de

    idade. Gostaria de ser um crocodilo porque amo os grandes rios, pois so

    profundos como a alma de um homem. Na superfcie so muito vivazes

    e claros, mas nas profundezas so tranqilos e escuros como o sofrimen-

    to dos homens. Amo ainda uma coisa dos nossos grandes rios: sua eter-

    nidade. Sim, rio uma palavra mgica para conjugar eternidade. A estas

    alturas, voc j deve estar me considerando um louco ou um charlato.

    Depois de ter conhecido um pouco mais de Guimares por ele mes-mo, vamos, agora, passear pelas veredas de sua extensa e fascinante obra literria em prosa. A obra de estria deste autor foi Sagarana, um livro de contos, publicado em 1946. Alm de Sagarana, ele escreveu outros livros de contos, que foram: Primeiras Estrias, de 1962; Tutamia (Terceiras Estrias), de 1967; Estas Estrias, de 1969. interessante ressaltar que o conto foi o tipo de narrativa mais utilizada por Guimares Rosa. Entre-tanto, seu nico romance, Grande serto: veredas (publicado em 1956), uma das obras mais importantes das literaturas em Lngua Portuguesa.

    Agora iremos verificar a proeza deste autor em trabalhar, dominar, expandir e reinventar a nossa Lngua Portuguesa. Iniciaremos com uma

    Guimares Rosa

    Entrevista citada por Beth Brait em: BRAIT, Beth. Guimares Rosa: seleo de textos, notas, estudos biogrfico, histrico e crti-co e exerccios. So Paulo: Abril Educao, 1982. p. 03 (Literatura Comentada).

    Sagarana. Capa da primeira edio, 1946.

  • Literatura Brasileira III

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    leitura do prefcio de Tutamia, que se encontra no livro Terceiras Est-rias, intitulado Ns, os temulentos.

    Aps ler esse texto, possvel que voc sinta dificuldades em rela-o sintaxe e ao vocabulrio. Como voc interpretaria este trecho do prefcio?

    E conseguiu quadrupedar-se, depois verticou-se, disposto a prosseguir

    pelo espao o seu peso corporal. Da, deu contra um poste. Pediu-lhe:

    Pode largar meu brao, Guarda, que eu fico em p sozinho... Com

    susto, recuou, avanou de novo, e idem, ibidem, itidem, chocou-se; e

    ibibidem. Foi s lgrimas: Meu Deus, estou perdido numa floresta

    impenetrvel!

    Veja o que diz o colunista Daniel Piza do jornal Estado de So Paulo:

    Quem abandona sua leitura pela falta de hbito com seu vocabulrio e sua

    sintaxe falha em perceber como direto e sincero o universo de Rosa, por

    baixo de todas as suas sofisticaes. O que faz que Rosa viva, que sua obra

    no pare de rodar na nossa sensibilidade, exatamente esse poder que

    tem de nos deixar mais prximos das coisas, dos animais e das pessoas.

    sempre bom reler o texto Ns, os temulentos, assinalando algumas palavras que voc no conseguiu compreender e que no havia no dicionrio. Essas palavras so denominadas neologismos, que, de acordo com o Dicionrio Houaiss, podem ter duas acepes: 1. o emprego de palavras novas, derivadas ou formadas de outras j existentes, na mesma lngua ou no; 2. atribuio de novos sentidos a palavras j existentes na lngua. Guimares Rosa, devido ao seu vasto conhecimento lingstico, tanto recriou palavras, a partir da derivao ou formao, com base no portugus arcaico ou popular, quanto adicionou um novo sentido a palavras j existentes. Veja alguns exemplos da criatividade desse autor:

    Taurophtongo.

    Neologismo dos mais eruditos concebidos por Guimares Rosa.

    Quer dizer mugido, voz de touro. O escritor recorreu aos termos gre-

    gos turos (touro) e phtoggos (som da fala).

    ROSA, Joo Guimares. Tutamia. In: Terceiras Es-trias. Rio de Janeiro: Jos

    Olympio, 1976. p. 103.

    PIZA, Daniel. Rosa Viva. In: Estado de So Paulo,

    So Paulo, 16 set. 2008, Se-o Livros. Disponvel em: . Acesso em: 17 set. 2008.

    HOUAISS, Antnio. Dicio-nrio eletrnico Houaiss

    da lngua portuguesa. verso 1.0. Rio de Janeiro:

    Objetiva, 2001.

  • Captulo 01Guimares Rosa: o primeiro Joo

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    Enxadachim.

    Rosa empregou o termo para designar um trabalhador do campo, que

    luta para sobreviver. A palavra formada por enxada e espadachim.

    Mimbauamanhanaara.

    Esse dos mais complexos. Quer dizer vaqueiro ou o que vigia o

    gado. Para criar a palavra, o autor fundiu os termos tupi mimbaua

    (criao, animal domstico) e manhana (vigia) e adicionou o sufixo

    ara (que faz).

    Imitaricar.

    Significa arremedar, fazer trejeitos imitativos. Provm da juno do

    verbo imitar com o sufixo diminutivo icar, que indica a repetio

    de pequenos atos.

    Ensimesmudo.

    Trata-se de um amlgama entre as palavras ensimesmado e mudo. Gui-

    mares Rosa utilizou-o para designar um sujeito fechado e taciturno.

    Embriagatinhar.

    Neologismo de conotao humorstica. Serve para indicar qualquer

    um que esteja engatinhando de to bbado. Origina-se da fuso de

    embriagado e gatinhar.

    Fluifim.

    Significa pequenino, gracioso, e se compe da juno de fluir e fino.

    O termo exemplo da preocupao do escritor em fazer a sonorida-

    de acompanhar o significado da palavra.

    Velvo.

    Uma das vrias palavras que Rosa criou com base em outros idiomas.

    uma adaptao do ingls velvet, que quer dizer veludo. No contexto

    empregado pelo autor, corresponde a planta de folhas aveludadas.

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    Esta lista de neologismos faz parte de uma pesquisa desenvolvida pela professora de estilstica da USP, Nilce SantAnna Martins, du-rante um perodo de mais de dez anos, que resultou no livro O lxico de Guimares Rosa. Voc pode verificar como ocorreu o processo de reinveno da lngua portuguesa por este autor. Ele no s usa o nosso idioma, como tambm faz um emprstimo de vocbulos de outras ln-guas, como pode ser observado no neologismo velvo.

    Mas qual foi o percurso trilhado por Guimares Rosa para inventar uma lngua prpria? A este respeito o crtico Flvio Moura afirma que:

    Para criar sua prpria lngua, o autor recorreu a vrios mtodos. Foi, por

    exemplo, um pesquisador incansvel dos hbitos e da fala dos sertane-

    jos de Minas Gerais, assim como do portugus antigo e de vrias outras

    lnguas. Segundo o crtico alemo Gnter Lorenz, Rosa era capaz de ler

    em vinte idiomas. Nas diversas incurses que fez pelo serto mineiro, ele

    anotou de tudo em suas cadernetas: de expresses utilizadas pelos jagun-

    os a frases de pra-choque de caminho. No deixava escapar nenhum

    detalhe. Grande parte dos termos que causam estranhamento em seus

    livros, assim, no foi tirada do vcuo. Palavras como alimpar ou percurar,

    por exemplo, so utilizadas pela populao das regies pesquisadas pelo

    autor. Do mesmo modo, convinhvel e humildoso so na realidade ar-

    casmos que constam de dicionrios e da obra de autores mais antigos e

    pouco lidos, entre eles Alexandre Herculano e Ferno Lopes.

    Depois de desfrutarmos da criatividade, demonstrada atravs da linguagem, e de mergulharmos no envolvente universo sertanejo da obra de Guimares Rosa, chegou o momento de transitarmos na aridez da poesia de Joo Cabral de Melo Neto, sem nos despedirmos da tem-tica do serto.

    MARTINS, Nilce SantAnna. O lxico de Guimares Rosa. So

    Paulo: Edusp, 2008.

    MOURA, Flvio. Nonada e outras invenes: um

    dicionrio mostra como Guimares Rosa criava

    as palavras que com-pem seu universo. In:

    Veja on-line, 06 jun. 2001. Disponvel em: . Acesso em:

    17 set. 2008.

  • Captulo 02Cabral de Melo Neto: o segundo Joo

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    2 Cabral de Melo Neto: o segundo Joo

    Agora, deixemos de lado, por algum tempo, a prosa e vamos co-nhecer a poesia desta poca, conduzidos pelos versos de Joo Cabral de Melo Neto, o poeta pernambucano. Mas, quem foi este poeta?

    Alfredo Bosi, em Histria concisa da Literatura Brasileira, apresenta Joo Cabral como o poeta recifense que estreou com a preocupao de desbastar suas imagens de toda gama de resduos sentimentais ou pito-rescos, ficando-lhe nas mos apenas a intuio das formas e a sensao aguda dos objetos que delimitam o espao do homem moderno.

    Diante da vasta obra potica Joo Cabral, escolhemos Morte e vida severina (195455) para ingressar no universo da sua poesia. Este po-ema foi denominado pelo autor como um auto de Natal pernambu-cano, um poema scio-dramtico, considerado um dos textos mais populares de sua obra.

    Morte e vida severina foi censurado durante o perodo da ditadura militar, depois foi liberado para publicao. Ele tambm foi musicado por Chico Buarque, dramatizado e televisionado em uma minissrie. Um clssico da obra de Joo Cabral, este poema possui caractersticas da literatura popular, por ser escrito em versos de sete slabas denominados heptasslabos ou redondilhas maiores, considerados os mais simples, do ponto de vista da mtrica, e os mais utilizados em quadrinhas e canes populares e folclricas, alm de ser dividido em episdios que recor-dam os folhetos ou a literatura de cordel correspondentes a estgios da viagem trilhada pelo eu potico, Severino, que vai contando e (en)cantando sua dor, seu medo, sua desiluso, sua (des)esperana, atravs de uma linguagem simples, s vezes coloquial, e meldica.

    Severino de Maria sai do agreste de Pernambuco em direo capi-tal Recife, atravessando desde a caatinga, passando pela zona da mata, at chegar ao litoral, a fim de fugir de uma vida e de uma morte severina.

    No que tange vida severina (aquela vida que menos/ vivida que defendida,/ e ainda mais severina/ para o homem que retira); en-quanto a morte severina a morte de que se morre/ de velhice antes dos

    BOSI, Alfredo. Histria concisa da Literatura Brasileira. So Paulo: Cultrix, 1994. p. 469.

    GOLDSTEIN, Norma. Ver-sos, sons e ritmos. So Paulo: tica, 1991. p. 270.

    Cf. MELO NETO, Joo Cabral de. Morte e vida severina, apud MEYER, Marlyse. Autores de cordel. So Paulo: Abril Educao, 1980. p. 53 e 46, respectivamente.

    Joo Cabral de Melo Neto

  • Literatura Brasileira III

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    trinta,/ de emboscada antes dos vinte/ de fome um pouco por dia/ (de fraqueza e de doena/ que a morte severina/ ataca em qualquer idade,/ e at gente no nascida) .

    Este poema, embora narre a histria de Severino, trata do homem do serto nordestino, o subalterno que sobrevive da agricultura de sub-sistncia, como pode ser visto neste trecho:

    Somos muitos Severinos

    iguais em tudo na vida:

    na mesma cabea grande

    que a custo que se equilibra,

    no mesmo ventre crescido

    sobre as mesmas pernas finas

    e iguais tambm porque o sangue,

    que usamos tem pouca tinta [...] (MELO NETO, ibidem, p. 46).

    Na primeira parte do poema, o retirante explica ao leitor quem e a que vai, ou seja, de que est fugindo, ou de quem, e o que busca nesta viagem para a cidade grande.

    A literatura de cordel uma das principais formas de expresso da

    cultura popular do Nordeste. Conforme Manuel Diegues, as condi-

    es sociais de formao do Nordeste como que predispuseram para

    que pudesse surgir, desenvolver-se e tomar caractersticas prprias

    este tipo de manifestao cultural [...] A organizao da sociedade

    patriarcal, o surgimento de manifestaes messinicas, o apareci-

    mento de bandos de cangaceiros ou bandidos, as secas peridicas

    provocando desequilbrio econmico e social, as lutas de famlia [...]

    deram oportunidade para que se verificasse o surgimento de grupos

    cantadores como instrumentos do pensamento coletivo, das mani-

    festaes da memria popular. (DIEGUES, Manuel. Ciclos temticos

    da Literatura de Cordel. In: Literatura popular em versos. Rio de Ja-

    neiro: Casa de Rui Barbosa/MEC, 1973, p. 14, apud MEYER, Marlyse.

    Autores de cordel. So Paulo: Abril Educao, 1980. p. 07.)

  • Captulo 02Cabral de Melo Neto: o segundo Joo

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    Depois que Severino se apresenta ao() leitor(a), convidando-o(a) a escutar a sua histria, depara-se pela primeira vez com a morte sua fiel companheira durante esta viagem a qual pode ser considerada, neste caso, como os nos impostos pela vida sua condio de margem, de oprimido pelo sistema: Dize que levas somente/ coisas de no:/ fome, sede, privao./ [...] Dize que coisas de no,/ ocas, leves:/ como o caixo, que ainda deves. (Ibidem, p. 52). A condio de misria vivida por estes Severinos, habitantes da regio da caatinga do Nordeste, reme-te a uma vida de negao, a qual perceptvel, inclusive, na forma de fa-lar em algumas dessas regies, em que a partcula negativa empregada numerosas vezes numa mesma sentena, a fim de concretizar a idia de negao. Ex.: No, eu no quero no.

    O encontro primeiro com o sepultamento de um lavrador da re-gio da caatinga, Severino Lavrador proprietrio de um pequeno ro-ado que foi assassinado numa emboscada. Interessado em saber os detalhes deste homicdio o Severino de Maria comea a perguntar sobre o acontecido aos irmos das almas que conduziam o defunto.

    E quem foi que o emboscou,

    irmos das almas,

    quem contra ele soltou

    essa ave-bala?

    Ali difcil dizer,

    irmo das almas,

    sempre h uma bala voando

    desocupada.

    E o que havia ele feito

    irmos das almas,

    e o que havia ele feito

    contra a tal pssara?

    Ter um hectare de terra,

    irmo das almas,

    de pedra e areia lavada

    que cultivava.

    [...]

    E era grande sua lavoura,

    irmos das almas,

  • Literatura Brasileira III

    20

    lavoura de muitas covas,

    to cobiada?

    Tinha somente dez quadras,

    irmo das almas,

    todas nos ombros da serra,

    nenhuma vrzea.

    Mas ento por que o mataram,

    irmos das almas,

    mas ento por que o mataram

    com espingarda?

    Queria mais espalhar-se,

    irmo das almas,

    queria voar mais livre

    essa ave-bala.

    E agora o que passar,

    irmos das almas,

    o que que acontecer

    contra a espingarda?

    Mais campo tem para soltar,

    irmo das almas,

    tem mais onde fazer voar

    as filhas-bala. (Ibidem, p. 4849).

    Nesta passagem, desnuda-se uma das caractersticas marcantes na luta pela terra, o crime encomendado que silencia quem costuma atra-palhar as leis do latifundirio, do coronel, os quais desejam, cada vez mais, avanar os limites de suas glebas. Em oposio ao pequeno agri-cultor que tenta permanecer cultivando a prpria roa para a subsis-tncia familiar, lutando contra a aridez do solo e a falta de incentivo do Governo, alm da explorao por parte dos grandes fazendeiros, como pode ser percebido nesta passagem do poema:

    [...]

    a de abrandar estas pedras

    suando-se muito em cima,

    a de tentar despertar

    terra sempre mais extinta,

  • Captulo 02Cabral de Melo Neto: o segundo Joo

    21

    a de querer arrancar

    algum roado da cinza. (Ibidem, p. 46).

    Ao sair da regio castigada pela seca, Severino de Maria chega zona da mata e logo percebe a fartura de gua daquelas terras:

    Como ela uma terra doce

    para os ps e para a vista.

    Os rios que correm aqui

    tm gua vitalcia.

    Cacimbas por todo lado;

    cavando o cho, gua mina. (Ibidem, p. 46).

    Admira-se ao observar a imensa plantao de cana-de-acar apon-tando para o surgimento dos latifundirios, que substituem os pequenos engenhos por grandes usinas, alimentando um sistema de acumulao de riquezas atravs da concentrao de terras, provocando, assim, o de-semprego e a desigualdade social:

    [...]

    Mas no avisto ningum,

    s folhas de cana fina;

    somente ali distncia

    aquele bueiro de usina;

    somente naquela vrzea

    um bang velho em runa.

    Por onde andar a gente

    que tantas canas cultiva? (Ibidem, p. 5859).

    No entanto, depara-se mais uma vez com a morte, e ao escutar a la-dainha entoada pelos companheiros do defunto conclui que ali tambm h misria, desta vez no a natureza uma das causas, mas a centraliza-o de poder, proveniente da posse da terra. No trecho a seguir fica evi-dente um dos principais problemas que, ainda, impedem o andamento da reforma agrria no Brasil:

    Essa cova em que ests,

    com palmos medida,

    a cota menor

    que tiraste em vida.

    (Ibidem, p. 5960). Este um dos trechos do po-ema que foi musicado, intitulado O funeral de um lavrador, esta cano foi interpretada por Chico Buarque de Holanda, em 1965, para a pea Morte e vida Severina. A msica encontra-se disponvel no seguinte endereo eletr-nico: http://www.chicobu-arque.com.br/construcao/index.html. Acesso em: 22 set 2008.

  • Literatura Brasileira III

    22

    de bom tamanho,

    nem largo nem fundo,

    a parte que te cabe

    neste latifndio.

    No cova grande,

    cova medida,

    a terra que querias

    ver dividida.

    uma cova grande

    para teu pouco defunto,

    mas estars mais ancho

    que estavas no mundo.

    uma cova grande

    para teu defunto parco,

    porm mais que no mundo

    te sentirs largo.

    uma cova grande

    para tua carne pouca,

    mas a terra dada

    no se abre a boca.

    As mortes que permeiam as trilhas de Severino remetem aos in-meros homicdios ocorridos no meio rural na luta pela terra. Esta te-mtica abordada por Joo Cabral , atualmente, muito estudada por profissionais da rea das Cincias Humanas, antroplogos, socilogos, historiadores, cientistas polticos etc., que buscam compreender os Mo-vimentos Sociais em luta pela terra, como no caso do MST.

    Depois desta leitura do poema Morte e vida severina, seguem tre-chos de mais dois textos deste autor, a partir dos quais voc poder ob-servar outras particularidades da poesia de Joo Cabral.

    Tecendo a Manh

    1

    Um galo sozinho no tece uma manh:

    ele precisar sempre de outros galos.

    De um que apanhe esse grito que ele

    MELO NETO, Joo Cabral de. A educao pela pedra (19621965).

    In:_____. Obra completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1999. p.

    345346. (Tecendo a Ma-nh e Catar feijo)

  • Captulo 02Cabral de Melo Neto: o segundo Joo

    23

    e o lance a outro; de um outro galo

    que apanhe o grito de um galo antes

    e o lance a outro; e de outros galos

    que com muitos outros galos se cruzem

    os fios de sol de seus gritos de galo,

    para que a manh, desde uma teia tnue,

    se v tecendo, entre todos os galos.

    2

    E se encorpando em tela, entre outros,

    se erguendo tenda, onde entrem outros,

    se entretendendo para todos, no toldo

    (a manh) que plana livre de armao.

    A manh, toldo de um tecido to areo

    que, tecido, se eleva por si: luz balo.

    Observe que o poeta usa praticamente as mesmas palavras para compor seus versos; h, aqui, uma economia lingstica, o poema la-pidado, a ponto de se despir de traos suprfluos e cadncias sentimen-tais, como afirma Bosi.

    Catar feijo evidencia uma temtica muito explorada na poesia deste autor: a metalinguagem. Aqui ele compara o ato de escrever poesia com a atividade de catar o feijo e depois coloc-lo para cozinhar. Aproveite para explorar a forma e o contedo deste poema, exercite a sua leitura de poesia brincando com as imagens que vo surgindo a cada verso.

    Catar feijo

    1.

    Catar feijo se limita com escrever:

    joga-se os gros na gua do alguidar

    e as palavras na folha de papel;

    e depois, joga-se fora o que boiar.

    Certo, toda palavra boiar no papel,

    gua congelada, por chumbo seu verbo:

    pois para catar esse feijo, soprar nele,

    e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

    BOSI, Alfredo. Histria con-cisa da Literatura Brasilei-ra. 41 ed. So Paulo: Cultrix, 2003. p. 471.

  • Literatura Brasileira III

    24

    2.

    Ora, nesse catar feijo entra um risco:

    o de que entre os gros pesados entre

    um gro qualquer, pedra ou indigesto,

    um gro imastigvel, de quebrar dente.

    Certo no, quando ao catar palavras:

    a pedra d frase seu gro mais vivo:

    obstrui a leitura fluviante, flutual,

    aula a ateno, isca-a como o risco.

    Finalizamos esta Unidade com estes instigantes poemas de Joo Cabral. Agora chegou o momento de voc exercitar o que foi lido e dis-cutido durante este momento do Curso.

    Leia mais!

    Caso voc esteja esquecido(a) do conceito cnone para a Literatura, o qual j foi evidenciado na disciplina Teoria da Literatura I, releia alguns textos que abordam esta temtica. Sugiro:

    REIS, Roberto. Cnon. In: JOBIM, J. Lus (Org.). Palavras da crtica: tendncias e conceitos no estudo da literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992.

    FANTINI, Marli. Guimares Rosa: fronteiras, margens, passagens. So Paulo: Ateli Editorial, 2004.

  • Captulo 02Cabral de Melo Neto: o segundo Joo

    25

    Referncias

    BOSI, Alfredo. Histria concisa da Literatura Brasileira. 41 ed. So Paulo: Cultrix, 2003.

    BRAIT, Beth. Guimares Rosa: seleo de textos, notas, estudos bio-grfico, histrico e crtico e exerccios. So Paulo: Abril Educao, 1982. (Literatura Comentada).

    CAMOCARDI, Carolina. Chico Buarque de Holanda: tijolo por tijolo em canes, literatura, teatro e cinema. Disponvel em: . Acesso 15 set. 2008.

    GOLDSTEIN, Norma. Versos, sons e ritmos. 7. ed. So Paulo: tica, 1991.

    HOUAISS, Antnio. Dicionrio eletrnico Houaiss da lngua portu-guesa. verso 1.0. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

    MARTINS, Nilce SantAnna. O lxico de Guimares Rosa. So Paulo: Edusp, 2008.

    MELO NETO, Joo Cabral. Morte e vida severina e outros poemas para vozes. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

    _____. A educao pela pedra (19621965). In:_____. Obra completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1999.

    MEYER, Marlyse. Autores de cordel. So Paulo: Abril Educao, 1980.

    MOURA, Flvio. Nonada e outras invenes: um dicionrio mostra como Guimares Rosa criava as palavras que compem seu universo. Veja on-line, 06 jun. 2001. Disponvel em: . Acesso em: 17 set. 2008.

    PIZA, Daniel. Rosa Viva. Seo Livros, Estado de So Paulo, So Pau-lo, 16 set. 2008. Disponvel em: . Acesso em: 17 set. 2008.

    ROSA, Joo Guimares. Ns, os temulentos. Prefcio de Tutamia. In: Terceiras estrias. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1976.

    ______. Primeiras estrias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

  • Unidade BLiteratura de autoria feminina

  • 29

    Introduo

    o nico poder que tenho, eu no tenho poder poltico, no tenho poder econmico. Meu nico poder o da palavra.

    Lygia Fagundes Telles

    Nesta Unidade voc entrar em contato com a produo literria de autoria feminina produzida a partir da segunda metade do sculo XX atravs da escrita de Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Nlida Pion e Lya Luft.

  • Captulo 03Clarice Lispector

    31

    3 Clarice Lispector

    Iniciaremos este percurso lanando um olhar mais atento traje-tria literria de Clarice Lispector, que constituda por uma produo complexa, rica e densa, tornando-se, assim, fonte inesgotvel de leitu-ras crticas. A escritora, embora tenha falecido no auge de sua criativi-dade, deixou uma vasta produo literria: Perto do corao selvagem (1943); O Lustre (1946); A Cidade Sitiada (1949); Alguns Contos (1952); Laos de Famlia (1960); A Ma no Escuro (1961); A Legio Estrangeira (1964); A Paixo Segundo G. H. (1964); Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres (1969); Felicidade Clandestina (1971); A Imitao da Rosa (1973); gua Viva (1973); Onde Estiveste de Noite? (1974); A Hora da Estrela (1977); Para No Esquecer (1978); Um Sopro de Vida (1978); e A Bela e a Fera (1979).

    Clarice Lispector apontada por muitos crticos, entre eles os pr-prios Antonio Candido e Alfredo Bosi, como dona de uma escrita real-mente nova, surpreendente. Ela surge na cena literria brasileira com o livro Perto do corao selvagem escrito aos dezessete anos. talo Mori-coni tece os seguintes comentrios sobre esta narrativa:

    Clarice Lispector apareceu no cenrio em 1944 com uma fico subje-

    tivista e uma retrica no mimtica, cheia de metaforizaes inslitas,

    violentos desvios metonmicos, estranhamentos produzidos por um

    narrar que se deixava conduzir por um descrever alusivo, fundado em

    intensa ateno ao sensvel e ao detalhe.

    Ainda sobre a estria triunfal desta jovem escritora no universo li-terrio brasileiro, Lus Augusto Fischer afirma que:

    os melhores crticos perceberam que ali estava uma novidade relevante:

    mais do que a vida psicolgica, colocada na berlinda com certa volpia,

    ali se via uma tentativa de fazer a linguagem ser ela mesma um elemen-

    to de interesse para o leitor, que era convocado a aderir fico num

    patamar indito no Brasil.

    MORICONI, talo. A Hora da Estrela ou A Hora do Lixo de Clarice Lispector. In: ROCHA, Joo Cezar de Cas-tro (Org.). Nenhum Brasil existe: pequena enciclop-dia. Rio de Janeiro: Opbook ; UERJ, 2003. p. 720.

    Clarice Lispector

    FISCHER, Luis Augusto. Revista Bravo!, vol. 116, abr. 2007.

  • Literatura Brasileira III

    32

    Voc pode observar que a escrita de Clarice surpreendeu os leitores, por demonstrar um processo de desconstruo da narrativa tradicional. De acordo com Bella Jozef (JOZEF, Bella. Clarice Lispector e o ato de narrar. In: RAMALHO, Cristina (Org.). Literatura e feminismo: pro-postas tericas e reflexes crticas. Rio de Janeiro: Editora Elo, 1999. p. 173182.), alm desta desconstruo, Clarice redimensionou o espao da fico, atravs de textos que dinamizaram o seu universo interior, explo-rando suas obsesses numa linguagem bela e persuasiva, rica em imagens, visionria, com um imenso potencial simblico. Esse potencial simblico construdo em torno de situaes extradas do cotidiano, como voc poder perceber a partir da leitura da crnica Medo da eternidade:

    Medo da Eternidade

    Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramtico contato com a

    eternidade.

    Quando eu era muito pequena ainda no tinha provado chicles e mes-

    mo em Recife falava-se pouco deles. Eu nem sabia bem de que espcie

    de bala ou bombom se tratava. Mesmo o dinheiro que eu tinha no dava

    para comprar: com o mesmo dinheiro eu lucraria no sei quantas balas.

    Afinal minha irm juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para

    a escola me explicou:

    Como no acaba? Parei um instante na rua, perplexa.

    No acaba nunca, e pronto.

    Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de his-

    trias de prncipes e fadas. Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que

    representava o elixir do longo prazer. Examinei-a, quase no podia acre-

    ditar no milagre. Eu que, como outras crianas, s vezes tirava da boca

    uma bala ainda inteira, para chupar depois, s para faz-la durar mais. E

    eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparncia to inocente, tornan-

    do possvel o mundo impossvel do qual j comeara a me dar conta.

    Com delicadeza, terminei afinal pondo o chicle na boca.

    E agora que que eu fao? Perguntei para no errar no ritual que

    certamente deveria haver.

    Agora chupe o chicle para ir gostando do docinho dele, e s depois

    que passar o gosto voc comea a mastigar. E a mastiga a vida inteira. A

    menos que voc perca, eu j perdi vrios.

    Perder a eternidade? Nunca.

    O adocicado do chicle era bonzinho, no podia dizer que era timo. E,

    ainda perplexa, encaminhvamo-nos para a escola.

    Voc pode acessar o E-Dicionrio de Termos

    Literrios e ler o verbete desconstruo disponvel

    em: . Acesso em 6 nov. 2008.

    LISPECTOR, Clarice. Medo da eternidade. In: A

    descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fron-

    teira, 1984. p. 446448.

  • Captulo 03Clarice Lispector

    33

    Acabou-se o docinho. E agora?

    Agora mastigue para sempre.

    Assustei-me, no saberia dizer por qu. Comecei a mastigar e em breve

    tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que no tinha

    gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita. Na ver-

    dade eu no estava gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna

    me enchia de uma espcie de medo, como se tem diante da idia de

    eternidade ou de infinito.

    Eu no quis confessar que no estava altura da eternidade. Que s me

    dava aflio. Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar.

    At que no suportei mais, e, atravessando o porto da escola, dei um

    jeito de o chicle mastigado cair no cho de areia.

    Olha s o que me aconteceu! Disse eu em fingidos espanto e tris-

    teza. Agora no posso mastigar mais! A bala acabou!

    J lhe disse repetiu minha irm que ela no acaba nunca. Mas

    a gente s vezes perde. At de noite a gente pode ir mastigando, mas

    para no engolir no sono a gente prega o chicle na cama. No fique

    triste, um dia lhe dou outro, e esse voc no perder.

    Eu estava envergonhada diante da bondade de minha irm, envergonha-

    da da mentira que pregara dizendo que o chicle cara na boca por acaso.

    Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim.

    Perceba que no simples fato de mascar chicles pela primeira vez, a protagonista evidencia uma questo metafsica: o medo da eternidade. assim que vai se moldando a escrita de Clarice, uma escrita metafri-ca, introspectiva e reveladora de uma complexa subjetividade. A refle-xo sobre o processo desta escrita avassaladora foi um tema presente na obra da autora. O ato de narrar abordado em trs de seus textos ficcionais: gua Viva, A hora da estrela e Um sopro de vida.

    Voc j leu alguma destas narrativas? Este um bom momento para

    conhecer estas obras, ou saber mais sobre elas. Pesquise! Consulte a

    biblioteca de sua cidade e desfrute da agradvel leitura destes textos!

    A hora da estrela foi a ltima obra que a autora publicou, ela o fez poucos meses antes de morrer. O narrador do romance Rodrigo S.

  • Literatura Brasileira III

    34

    M., um escritor que ironiza, atravs de contnuas intruses no texto, o estilo da narrativa que ele prprio utiliza. Escrever para Rodrigo o significado da prpria existncia, ele adverte deste o incio da narrativa: Enquanto eu tiver perguntas e no houver resposta, continuarei a es-crever. Ele ocupa, pela freqncia com que dialoga com o leitor sobre a construo da narrativa, o lugar de uma das personagens centrais do romance. A partir desta linguagem dialgica, Rodrigo compartilha com o leitor a desestruturao do romance tradicional diante do absurdo e da angstia existencial.

    A personagem-protagonista desta narrativa Macabea, uma imigrante nordestina, semi-analfabeta, que sai de Alagoas para ir morar no Rio de Janeiro. Chegando ao Rio, vai viver em uma penso miservel e trabalhar como datilgrafa em uma pequena firma. Ela acumula em seu corpo franzino, herana do serto, todas as formas de represso cultural, o que a deixa alheada de si e da sociedade. Dessa maneira, con-forme o narrador, Macabea nunca se deu conta de que vivia em uma sociedade tcnica onde ela era um parafuso dispensvel.

    Estes breves comentrios sobre A hora da estrela devem servir para que

    voc busque ler e conhecer mais a respeito desta obra. Voc sabia que

    h um filme baseado neste romance de Clarice? Ento, no deixe de ver

    A hora da estrela (1985), de Suzana Amaral. Aproveite para observar dife-

    renas e semelhanas presentes entre as duas obras: o filme e a novela.

    Agora voc ir desfrutar da leitura de outra narrativa de Clarice, o miniconto Felicidade clandestina.

    Felicidade Clandestina

    Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos,

    meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto ns todas ainda

    ramos achatadas. Como se no bastasse, enchia os dois bolsos da blu-

    sa, por cima do busto, com balas. Mas possua o que qualquer criana

    devoradora de histrias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

    Pouco aproveitava. E ns menos ainda: at para aniversrio, em vez de

    pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mos um carto-

    postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo,

    LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro:

    Ed. Jos Olympio, 1977.

    Marclia Cartaxo como Macabea no filme A hora da estrela, de Suzana Amaral, 1985.

    CAMPEDELLI, Samira; ABDALA JR.; Benjamim.

    Clarice Lispector: seleo de textos, notas, estudos

    biogrfico, histrico e crtico. So Paulo: Abril

    Educao, 1981.

    LISPECTOR, Clarice. In: Fe-licidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

  • Captulo 03Clarice Lispector

    35

    onde morvamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrs escrevia

    com letra bordadssima palavras como data natalcia e saudade.

    Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingana, chu-

    pando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, ns que

    ramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos li-

    vres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha

    nsia de ler, eu nem notava as humilhaes a que ela me submetia: con-

    tinuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela no lia.

    At que veio para ela o magno dia de comear a exercer sobre mim uma

    tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possua As reina-

    es de Narizinho, de Monteiro Lobato. Era um livro grosso, meu Deus,

    era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o.

    E, completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse

    pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.

    At o dia seguinte eu me transformei na prpria esperana de alegria:

    eu no vivia, nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e

    me traziam.

    No dia seguinte fui sua casa, literalmente correndo. Ela no mora-

    va num sobrado como eu, e sim numa casa. No me mandou entrar.

    Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro

    a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para busc-lo. Boquia-

    berta, sa devagar, mas em breve a esperana de novo me tomava toda

    e eu recomeava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho

    de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem ca: guiava-me a promessa

    do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha

    vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas

    como sempre e no ca nenhuma vez.

    Mas no ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono

    da livraria era tranqilo e diablico. No dia seguinte l estava eu porta

    de sua casa, com um sorriso e o corao batendo. Para ouvir a resposta

    calma: o livro ainda no estava em seu poder, que eu voltasse no dia

    seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do

    dia seguinte com ela ia se repetir com meu corao batendo.

    E assim continuou. Quanto tempo? No sei. Ela sabia que era tempo in-

    definido, enquanto o fel no escorresse todo de seu corpo grosso. Eu j

    comeara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, s vezes adivi-

    nho. Mas, adivinhando mesmo, s vezes aceito: como se quem quer me

    fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

    Quanto tempo? Eu ia diariamente sua casa, sem faltar um dia sequer.

    s vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas voc

  • Literatura Brasileira III

    36

    s veio de manh, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que

    no era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos

    espantados.

    At que um dia, quando eu estava porta de sua casa, ouvindo humilde

    e silenciosa a sua recusa, apareceu sua me. Ela devia estar estranhando

    a apario muda e diria daquela menina porta de sua casa. Pediu ex-

    plicaes a ns duas. Houve uma confuso silenciosa, entrecortada de

    palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o

    fato de no estar entendendo. At que essa me boa entendeu. Voltou-

    se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca

    saiu daqui de casa e voc nem quis ler!

    E o pior para essa mulher no era a descoberta do que acontecia. De-

    via ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em

    silncio: a potncia de perversidade de sua filha desconhecida e a me-

    nina loura em p porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi ento

    que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: voc vai

    emprestar o livro agora mesmo. E para mim: E voc fica com o livro por

    quanto tempo quiser. Entendem? Valia mais do que me dar o livro: pelo

    tempo que eu quisesse tudo o que uma pessoa, grande ou pequena,

    pode ter a ousadia de querer.

    Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o

    livro na mo. Acho que eu no disse nada. Peguei o livro. No, no sa

    pulando como sempre. Sa andando bem devagar. Sei que segurava o

    livro grosso com as duas mos, comprimindo-o contra o peito. Quanto

    tempo levei at chegar em casa, tambm pouco importa. Meu peito

    estava quente, meu corao pensativo.

    Chegando em casa, no comecei a ler. Fingia que no o tinha, s para

    depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas mara-

    vilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo

    comer po com manteiga, fingi que no sabia onde guardara o livro,

    achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades

    para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia

    ser clandestina para mim. Parece que eu j pressentia. Como demorei! Eu

    vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

    s vezes sentava-me na rede, balanando-me com o livro aberto no

    colo, sem toc-lo, em xtase purssimo.

    No era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu

    amante.

  • Captulo 03Clarice Lispector

    37

    Esta narrativa nos remete leitura. Sabemos que o Curso de Letras tem,

    a princpio, a finalidade de lecionar Lngua ou Literatura. Assim, como

    voc poderia usar esta narrativa em sala de aula para motivar a leitura?

    Os textos de Clarice so considerados hermticos pela maioria dos alu-

    nos que freqentam o Ensino Fundamental e o Ensino Mdio. O que

    fazer para mudar este conceito?

    Mais uma vez Clarice se apropria de uma situao aparentemente simples para expor uma questo mais complexa. No caso de Felicida-de clandestina, a autora evidencia a perversidade, a crueldade humana presente, inclusive, na infncia. Cludia Castanheira faz um apanhado sobre a importncia desta produo literria intimista, introspectiva, de Clarice para a Literatura Brasileira e para a autoria feminina:

    Com base no pensamento de Antonio Candido, Cristina Ferreira Pinto

    reconhece em Clarice Lispector o elemento que faltava, para que a pro-

    sa brasileira conseguisse alcanar nveis mais completos de excelncia

    e profundidade, num perodo em que a prosa regionalista j comeava

    a ceder espao para a literatura intimista e introspectiva, da qual, se Cla-

    rice no foi exatamente a precursora, inegavelmente foi a responsvel

    pela sua dinamizao. Comprovam-no suas arrojadas tcnicas de com-

    posio textual e a as indagaes de cunho metafsico, elevadas a pata-

    mares singularssimos. [...] Para Alfredo Bosi, a exacerbao do momen-

    to interior e a subjetivao em crise so duas fortes marcas de Clarice,

    cuja entrada no cenrio das letras nacionais deu-se como um marco,

    um divisor de guas, um evento; enfim, qualquer coisa que instalou dois

    tempos na histria da literatura brasileira, especialmente na produo

    literria de autoria feminina, para qual a obra de Clarice Lispector fun-

    dou uma linha de tradio. imperioso registrar que, para alm de um

    julgamento urdido sob uma reduzida perspectiva nacionalista, a obra

    da escritora foi colocada por alguns crticos inicialmente por lvaro

    Lins em contato com a de Virgnia Woolf e a de James Joyce, nomes

    aos quais Alfredo Bosi acrescenta o de Faulkner, Cristina Ferreira Pinto

    o de Mallarm, e Lcia Castello Branco o de Proust e o de Guimares

    Rosa, de modo que a narrativa clariceana surge compreendida sob uma

    merecida universalidade.

    CASTANHEIRA, Cludia. Literatura, mulher e subjetividade: Clarice Lispector. In: RAMALHO, Cristina (Org.). Literatura e feminismo: propostas te-ricas e reflexes crticas. Rio de Janeiro: Editora Elo, 1999. p. 183194.

  • Literatura Brasileira III

    38

    At aqui voc pde perceber o quanto a produo literria de Clari-ce Lispector foi importante para uma reestruturao do romance tradi-cional, alm de apontar novas perspectivas para o texto de autoria femi-nina. Agora iremos nos deter em outras trs autoras significativas para a produo literria brasileira.

    Aproveite para ler outros contos e crnicas de Clarice Lispector: O bfalo; Os obedientes; Amor; Rudos de passos; Feliz Aniversrio; O ovo e a galinha; Conversa descontrada; Quase; O manifesto da cidade; Mensagem de amor no lugar-comum; Quanto duram as coisas?; O mi-neirinho; e a novela A hora da Estrela.

  • Captulo 04Lygia Fagundes Telles

    39

    4 Lygia Fagundes Telles

    Lygia de Azevedo Fagundes Telles nasceu em So Paulo a 19 de abril de 1923. Em 1938, ela publicou o seu primeiro livro de contos, Poro e sobrado, numa edio financiada por seu pai e assinando Lygia Fagundes. A escritora nunca mais autorizaria a republicao deste livro. Ela comeou a participar ativamente nos debates literrios durante o perodo em que cursou Direito. Neste momento, conheceu Mrio de Andrade e Oswald de Andrade, Paulo Emlio Salles Gomes, entre outros nomes da cena literria brasileira. Foi tambm nesta poca que conhe-ceu a poetisa que veio a ser a sua melhor amiga: Hilda Hilst.

    Lygia escreveu o seu primeiro romance, Ciranda de Pedra, em 1952. Esta narrativa foi mais tarde transformada em uma telenovela (reedita-da pela Globo em 2008). Publicada pelas Edies O Cruzeiro, Ciranda de pedra seria o marco de sua maturidade intelectual na opinio do cr-tico Antonio Candido.

    Inspirada pelo contexto poltico brasileiro do final da dcada de sessenta e incio dos anos setenta, escreveu As Meninas. Em parceria com Paulo Emlio, fez uma adaptao para o cinema do romance de Ma-chado de Assis, Dom Casmurro, para o cineasta Paulo Csar Sarraceni adaptao que adotaria a alcunha da personagem principal: Capitu. Em 1970 recebeu o Grande Prmio Internacional Feminino para Estran-geiros, na Frana, pelo seu livro de contos Antes do baile. Em 1973, o seu romance As Meninas arrebatou os principais prmios literrios brasilei-ros: o Prmio Coelho Neto, da Academia Brasileira de Letras, o Prmio Jabuti, da Cmara Brasileira do Livro, e o prmio de Fico da Asso-ciao Paulista de Crticos de Arte. Em 1977, foi galardoada pelo Pen Club do Brasil na categoria de contos, pela sua coletnea Seminrio dos Ratos. Lygia faz parte da Academia Brasileira de Letras desde 1987.

    Depois de conhecer um pouco da biografia desta autora, verifique, agora, a existncia de duas escritoras Lygia Fagundes Telles: a do en-gajamento no real (como em As Meninas) e a que mergulha no mis-trio, no fantstico, no sobrenatural. Seria o caso de se perguntar qual

    Lygia Fagundes Telles

  • Literatura Brasileira III

    40

    a melhor? Haveria uma progresso ou a escritora pagaria o preo ao zeitgeist, ao esprito da poca? Parece-nos defensvel a ltima idia. As Meninas (1973), fruto dos anos 60 poltica, sexo, droga, liberdade, discusso sobre engajamento e alienao. E os contos de Mistrios e de outros livros da autora entrariam mais nos desejos de fins dos anos 70, 80 desejo de uma literatura no comprometida, cujo nico compro-misso seria com o prazer, com a fruio.

    Lygia Fagundes Telles demonstra em Mistrios plena segurana do fazer literrio, livre de quaisquer cnones. Aderindo ao esprito do tempo faz uma literatura de prazer que, ao mesmo tempo, filia-se s vertentes psicanalticas da literatura do sculo XX e mostra razes longnquas na chamada literatura de terror. S que este fazer altamente depurado.

    Todos os contos de Mistrios, escritos em pocas diversas, oferecem um clima de mistrio, apreenso, uma tenso que justifica plenamente o ttulo e o fato de estarem agrupados em uma coletnea. Todos os contos participam desse universo feito de ambigidade e meias-tintas. De to-nalidade intimista, introspectiva, estas narrativas podem ser classifica-das como contos de atmosfera lugar de reflexo para o leitor.

    Em geral os textos de Mistrios propem um enigma que poder ou no ser decifrado. Contos como Seminrio dos ratos, cuja metfora principal facilmente decodificvel, apresenta um enigma que o da alegoria poltica.

    Temos apenas trs contos inditos no livro Mistrios: Emanuel, Ne-gra jogada amarela e O muro. Os demais j tinham sido publicados em outras coletneas, tais como Histrias do desencontro (1958), Seminrio dos ratos (1977), Histrias escolhidas (1961), O jardim selvagem (1965) e Seleta (1971).

    A escolha de tais contos para integrarem uma nova coletnea re-vela-se muito feliz visto que temos uma verdadeira antologia da fico de Lygia. Mistrios s apresenta contos bem acabados, verdadeiras jias da contstica brasileira, agrupados segundo a temtica do fantstico. A idia foi de dois professores e pesquisadores, Maria Luiz e Alfred Opitz, residentes na Frana, que reuniram estes textos com o ttulo de Contos Fantsticos, para publicao na Alemanha. Em entrevista ao jornal Mu-

    Termo cunhado pelos intelectuais alemes

    do sculo XVIII, Johann Gottfried Herder e Georg Wilhelm Friedrich Hegel, e que significaria o clima

    intelectual e cultural de uma poca.

  • Captulo 04Lygia Fagundes Telles

    41

    lher o qual, hoje, no existe mais, sendo, em 1983, suplemento domi-nical do jornal Folha de So Paulo Lygia diz o seguinte:

    Eu sou uma pessoa ansiosa, aflita, inquieta com os demnios todos que

    me assaltam s vezes e me arrastam pelos cabelos. Os temas de horror

    me so muito caros: tenho paixo por Lovecraft, Poe, Stevenson. Toda

    essa literatura do imaginrio, do fantstico e que parte para o realismo

    mgico, para essa fantasia desbragada. Ah, vou correndo, monto nesses

    cavalos todos e saio galopando... Acho que isso viver: voc ter sua

    imaginao solta, livre, sem rdeas. voc se entregar ao imaginrio, ao

    sonho. Prefiro escrever fazendo com que o leitor seja meu cmplice, co-

    nivente com o que escrevo. Eu chamo o leitor para que ele resolva cer-

    tas situaes ele se sente poderoso nisso. Detesto envelopes fechados:

    abro todos. uma forma de sugerir, de deixar as coisas no definidas.

    Meu tema, meu conto no tem fim.

    Lygia uma grande contista, diramos que melhor contista do que romancista. A arte do conto uma arte mais difcil, mais delicada em suas meias-tintas do que o romance, e na narrativa curta, Lygia Fa-gundes Telles mestra. Eis a lista de sua produo literria: Romances: Ciranda de Pedra, 1954; Vero no Aqurio, 1964; As Meninas, 1973 (Pr-mio Jabuti); As Horas Nuas, 1989. Contos: Poro e sobrado, 1938; Praia viva, 1944; O cacto vermelho, 1949; Histrias do desencontro, 1958; His-trias escolhidas, 1964; O Jardim Selvagem, 1965; Antes do Baile Verde, 1970; Seminrio dos Ratos, 1977; Filhos prdigos, 1978 (reeditado como A Estrutura da Bolha de Sabo, 1991); A Disciplina do Amor, 1980; Mis-trios, 1981; Venha ver o pr-do-sol e outros contos, 1991; A noite escura e mais eu, 1995; Venha Ver o Pr-do-Sol; Oito contos de amor; Inveno e Memria, 2000 (Prmio Jabuti); Durante aquele estranho ch: perdidos e achados, 2002.

    Depois de ter conhecido uma parte da biografia e as duas possveis escritoras Lygia, a engajada e a dedicada ao mistrio, voc ir ler um conto dela intitulado Natal na Barca, buscando verificar a presena das caractersticas que marcam a escrita desta autora:

    Natal na barca

    No quero nem devo lembrar aqui por que me encontrava naquela bar-

    ca. S sei que em redor tudo era silncio e treva. E que me sentia bem

    naquela solido. Na embarcao desconfortvel, tosca, apenas quatro

    TELLES, Lygia F. Natal na barca. In: _____; MACHA-DO, Assis; LISPECTOR, Cla-rice; ANTONIO, Joo; ASSIS, Machado de et al. Para gostar de ler. 4 ed. v. 9. So Paulo: Editora tica, 1984.

  • Literatura Brasileira III

    42

    passageiros. Uma lanterna nos iluminava com sua luz vacilante: um ve-

    lho, uma mulher com uma criana e eu.

    O velho, um bbado esfarrapado, deitara-se de comprido no banco, di-

    rigira palavras amenas a um vizinho invisvel e agora dormia. A mulher

    estava sentada entre ns, apertando nos braos a criana enrolada em

    panos. Era uma mulher jovem e plida. O longo manto escuro que lhe

    cobria a cabea dava-lhe o aspecto de uma figura antiga.

    Pensei em falar-lhe assim que entrei na barca. Mas j devamos estar

    quase no fim da viagem e at aquele instante no me ocorrera dizer-lhe

    qualquer palavra. Nem combinava mesmo com uma barca to despo-

    jada, to sem artifcios, a ociosidade de um dilogo. Estvamos ss. E o

    melhor ainda era no fazer nada, no dizer nada, apenas olhar o sulco

    negro que a embarcao ia fazendo no rio.

    Debrucei-me na grade de madeira carcomida. Acendi um cigarro. Ali

    estvamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de

    mortos deslizando na escurido. Contudo, estvamos vivos. E era Natal.

    A caixa de fsforos escapou-me das mos e quase resvalou para o rio.

    Agachei-me para apanh-la. Sentindo ento alguns respingos no rosto,

    inclinei-me mais at mergulhar as pontas dos dedos na gua.

    To gelada estranhei, enxugando a mo.

    Mas de manh quente.

    Voltei-me para a mulher que embalava a criana e me observava com um

    meio sorriso. Sentei-me no banco ao seu lado. Tinha belos olhos claros,

    extraordinariamente brilhantes. Reparei que suas roupas (pobres roupas

    pudas) tinham muito carter, revestidas de uma certa dignidade.

    De manh esse rio quente insistiu ela, me encarando.

    Quente?

    Quente e verde, to verde que a primeira vez que lavei nele uma

    pea de roupa pensei que a roupa fosse sair esverdeada. a primeira vez

    que vem por estas bandas?

    Desviei o olhar para o cho de largas tbuas gastas. E respondi com uma

    outra pergunta:

    Mas a senhora mora aqui perto?

    Em Lucena. J tomei esta barca no sei quantas vezes, mas no espe-

    rava que justamente hoje...

  • Captulo 04Lygia Fagundes Telles

    43

    A criana agitou-se, choramingando. A mulher apertou-a mais contra o

    peito. Cobriu-lhe a cabea com o xale e ps-se a nin-la com um brando

    movimento de cadeira de balano. Suas mos destacavam-se exaltadas

    sobre o xale preto, mas o rosto era sereno.

    Seu filho?

    . Est doente, vou ao especialista, o farmacutico de Lucena achou

    que eu devia ver um mdico hoje mesmo. Ainda ontem ele estava bem

    mas piorou de repente. Uma febre, s febre... Mas Deus no vai me

    abandonar.

    o caula?

    Levantou a cabea com energia. O queixo agudo era altivo mas o olhar

    tinha a expresso doce.

    o nico. O meu primeiro morreu o ano passado. Subiu no muro, es-

    tava brincando de mgico quando de repente avisou, vou voar! E atirou-

    se. A queda no foi grande, o muro no era alto, mas caiu de tal jeito...

    Tinha pouco mais de quatro anos.

    Joguei o cigarro na direo do rio e o toco bateu na grade, voltou e veio

    rolando aceso pelo cho. Alcancei-o com a ponta do sapato e fiquei a

    esfreg-lo devagar. Era preciso desviar o assunto para aquele filho que

    estava ali, doente, embora. Mas vivo.

    E esse? Que idade tem?

    Vai completar um ano. E, noutro tom, inclinando a cabea para

    o ombro: Era um menino to alegre. Tinha verdadeira mania com

    mgicas. Claro que no saa nada, mas era muito engraado... A ltima

    mgica que fez foi perfeita, vou voar! disse abrindo os braos. E voou.

    Levantei-me. Eu queria ficar s naquela noite, sem lembranas, sem pie-

    dade. Mas os laos (os tais laos humanos) j ameaavam me envolver.

    Conseguira evit-los at aquele instante. E agora no tinha foras para

    romp-los.

    Seu marido est sua espera?

    Meu marido me abandonou.

    Sentei-me e tive vontade de rir. Incrvel. Fora uma loucura fazer a primei-

    ra pergunta porque agora no podia mais parar, ah! aquele sistema dos

    vasos comunicantes.

  • Literatura Brasileira III

    44

    H muito tempo? Que seu marido...

    Faz uns seis meses. Vivamos to bem, mas to bem. Foi quando ele

    encontrou por acaso essa antiga namorada, me falou nela fazendo uma

    brincadeira, a Bila enfeiou, sabe que de ns dois fui eu que acabei fi-

    cando mais bonito? No tocou mais no assunto. Uma manh ele se le-

    vantou como todas as manhs, tomou caf, leu o jornal, brincou com o

    menino e foi trabalhar. Antes de sair ainda fez assim com a mo, eu es-

    tava na cozinha lavando a loua e ele me deu um adeus atravs da tela

    de arame da porta, me lembro at que eu quis abrir a porta, no gosto

    de ver ningum falar comigo com aquela tela no meio... Mas eu estava

    com a mo molhada. Recebi a carta de tardinha, ele mandou uma carta.

    Fui morar com minha me numa casa que alugamos perto da minha

    escolinha. Sou professora.

    Olhei as nuvens tumultuadas que corriam na mesma direo do rio. In-

    crvel. Ia contando as sucessivas desgraas com tamanha calma, num

    tom de quem relata fatos sem ter realmente participado deles. Como se

    no bastasse a pobreza que espiava pelos remendos da sua roupa, per-

    dera o filhinho, o marido, via pairar uma sombra sobre o segundo filho

    que ninava nos braos. E ali estava sem a menor revolta, confiante. Apa-

    tia? No, no podiam ser de uma aptica aqueles olhos vivssimos, aque-

    las mos enrgicas. Inconscincia? Uma certa irritao me fez andar.

    A senhora conformada.

    Tenho f, dona. Deus nunca me abandonou.

    Deus repeti vagamente.

    A senhora no acredita em Deus?

    Acredito murmurei. E ao ouvir o som dbil da minha afirmativa,

    sem saber por qu, perturbei-me. Agora entendia. A estava o segredo da-

    quela segurana, daquela calma. Era a tal f que removia montanhas...

    Ela mudou a posio da criana, passando-a do ombro direito para o

    esquerdo. E comeou com voz quente de paixo:

    Foi logo depois da morte do meu menino. Acordei uma noite to de-

    sesperada que sa pela rua afora, enfiei um casaco e sa descala e cho-

    rando feito louca, chamando por ele! Sentei num banco do jardim onde

    toda tarde ele ia brincar. E fiquei pedindo, pedindo com tamanha fora,

    que ele, que gostava tanto de mgica, fizesse essa mgica de me apare-

    cer s mais uma vez, no precisava ficar, se mostrasse s um instante, ao

  • Captulo 04Lygia Fagundes Telles

    45

    menos mais uma vez, s mais uma! Quando fiquei sem lgrimas, encos-

    tei a cabea no banco e no sei como dormi. Ento sonhei e no sonho

    Deus me apareceu, quer dizer, senti que ele pegava na minha mo com

    sua mo de luz. E vi o meu menino brincando com o Menino Jesus no

    jardim do Paraso. Assim que ele me viu, parou de brincar e veio rindo

    ao meu encontro e me beijou tanto, tanto... Era tamanha sua alegria que

    acordei rindo tambm, com o sol batendo em mim.

    Fiquei sem saber o que dizer. Esbocei um gesto e em seguida, apenas

    para fazer alguma coisa, levantei a ponta do xale que cobria a cabea da

    criana. Deixei cair o xale novamente e voltei-me para o rio. O menino

    estava morto. Entrelacei as mos para dominar o tremor que me sacu-

    diu. Estava morto. A me continuava a nin-lo, apertando-o contra o

    peito. Mas ele estava morto.

    Debrucei-me na grade da barca e respirei penosamente: era como se

    estivesse mergulhada at o pescoo naquela gua. Senti que a mulher

    se agitou atrs de mim.

    Estamos chegando anunciou.

    Apanhei depressa minha pasta. O importante agora era sair, fugir an-

    tes que ela descobrisse, correr para longe daquele horror. Diminuindo

    a marcha, a barca fazia uma larga curva antes de atracar. O bilheteiro

    apareceu e ps-se a sacudir o velho que dormia:

    Chegamos!... Ei! chegamos!

    Aproximei-me evitando encar-la.

    Acho melhor nos despedirmos aqui disse atropeladamente, es-

    tendendo a mo.

    Ela pareceu no notar meu gesto. Levantou-se e fez um movimento

    como se fosse apanhar a sacola. Ajudei-a, mas ao invs de apanhar a

    sacola que lhe estendi, antes mesmo que eu pudesse impedi-lo, afastou

    o xale que cobria a cabea do filho.

    Acordou o dorminhoco! E olha a, deve estar agora sem nenhuma

    febre.

    Acordou?!

    Ela sorriu:

    Veja...

  • Literatura Brasileira III

    46

    Inclinei-me. A criana abrira os olhos aqueles olhos que eu vira cer-

    rados to definitivamente. E bocejava, esfregando a mozinha na face

    corada. Fiquei olhando sem conseguir falar.

    Ento, bom Natal! disse ela, enfiando a sacola no brao.

    Sob o manto preto, de pontas cruzadas e atiradas para trs, seu rosto

    resplandecia. Apertei-lhe a mo vigorosa e acompanhei-a com o olhar

    at que ela desapareceu na noite.

    Conduzido pelo bilheteiro, o velho passou por mim retomando seu

    afetuoso dilogo com o vizinho invisvel. Sa por ltimo da barca. Duas

    vezes voltei-me ainda para ver o rio. E pude imagin-lo como seria de

    manh cedo: verde e quente. Verde e quente.

    Agora voc ir conhecer um pouco mais da vida e obra de outra escritora que pertence Academia Brasileira de Letras: Nlida Pion.

  • Captulo 05Nlida Pion

    47

    5 Nlida Pion

    O livro o lar, a cama, o amor, o esprito. O livro a vida.

    Nlida Pion

    Nlida Pion, ao ser questionada sobre a verdadeira funo do es-critor, afirma o seguinte:

    Eu acho que o escritor deve devotar-se com paixo literatura, quase de

    uma forma soberba, e devotar-se tambm ao saber, ao conhecimento,

    para que a obra dele no deixe aflorar apenas um saber limitado, ou

    um texto sem grande arrebatamento esttico. Ele algum que julgo

    indispensvel sociedade e deve ser altamente ambicioso, no sentido

    de fazer uma grande obra literria, mesmo que fracasse. O fracasso, s

    vezes, a sua coroa. De espinhos, mas uma coroa. Mais vale fracassar do

    que no ter se empenhado em fazer uma obra significativa para o seu

    pas e para si mesmo, para suas ambies pessoais. Ele um ser que fixa

    os valores, a elasticidade e a plasticidade da lngua, que cada qual vai

    inventando na rua, nos bordis. A lngua tem uma origem espria. Cada

    palavra que se adiciona nossa lngua, ela tremula: uma palavra talvez

    suja no sentido imediato, mas depois ganha uma eloqncia, uma gran-

    deza, que o uso popular consagra. por isso que ns temos uma lngua

    portuguesa to suntuosa, opulenta, poderosa. Ela se presta a qualquer

    servio lingstico. Qualquer coisa que um escritor no conseguir dizer,

    a falha no da lngua; a falha dele. Ento, eu acho que esse conjunto

    de desafios extraordinrios d guarida ao escritor. Faz com que ele se

    prepare para ser quem ele quer ser, ou como ele vai registrar a aventura

    humana ao longo de toda uma vida, quando jovem, maduro, na sua alta

    maturidade e at quando a vida o leve. Mas ele deixa atrs de si um pa-

    trimnio, que a sua obra romanesca ou potica, ou o que seja, mesmo

    porque os grandes romances tm traados ntidos de poesia.

    Jornalista, romancista, contista, professora, Nlida nasceu no dia 3 de maio de 1937 na Vila Isabel, Rio de Janeiro, RJ. Eleita em 27 de julho de 1989 para a Cadeira n 30, na sucesso de Aurlio Buarque de Ho-landa, foi recebida em 3 de maio de 1990 pelo acadmico Ldo Ivo.

    Entrevista concedida a Jos Roberto Mendes em: MENDES, Jos Roberto. A populao brasileira est condenada ao siln-cio da prpria alma. In: Webjornal, jul./ago. 2006. Disponvel em: . Acesso em: 21 set. 2008.

    Nlida Pion

  • Literatura Brasileira III

    48

    Foi a primeira mulher, nos mais de 100 anos de existncia da ABL, a integrar a Diretoria e ocupar a presidncia da Casa de Machado de Assis, no ano do seu 1 Centenrio.

    Sua produo literria est traduzida em pases como Alemanha, Itlia, Espanha, Unio Sovitica, Estados Unidos, Cuba e Nicargua. Contos seus encontram-se publicados em centenas de revistas e fazem parte de antologias brasileiras e estrangeiras.

    A escritora foi agraciada com vrios prmios, dentre eles o Prmio Prncipe de Astrias das Letras de 2005, concedido pela fundao de mesmo nome, da Espanha. A sua produo literria vasta, sendo com-posta por romances e coletneas de contos: Guia-mapa de Gabriel Ar-canjo, romance (1961); Madeira feita de cruz, romance (1963); Tempo das frutas, contos (1966); Fundador, romance (1969); A casa da paixo, romance (1977); Sala de armas, contos (1973); Tebas do meu corao, romance (1974); A fora do destino, romance (1977); O calor das coisas, contos (1980); A repblica dos sonhos, romance (1984); A doce can-o de Caetana, romance (1987); O po de cada dia: fragmentos, contos (1994); A roda do vento, romance infanto-juvenil (1996); At amanh, outra vez, romance (1999); Cortejo do Divino e outros contos escolhi-dos, contos (2001); O presumvel corao da Amrica, discursos (2002); Vozes do deserto, romance (2004); O ritual da arte, ensaio sobre a cria-o literria (indito).

    Jos Castello em um artigo sobre a obra Vozes do deserto, romance mais recente publicado por Nlida Pion, aponta que a escrita desta au-tora um exemplo de permanncia por explorar temas arcaicos em sua produo literria e de resistncia por ter se mostrado contra a represso no perodo da ditadura militar:

    Uma das vozes que se levantou com mais vigor contra a opresso pol-

    tica durante o regime militar, Nlida Pion uma especialista no tema

    da resistncia. Vozes do deserto , de certo modo, uma recriao livre

    das Mil e uma noites, a longa histria de Scherezade e as interminveis

    histrias que ela desfia para acalmar seu Califa, na esperana de conter,

    ou pelo menos adiar, uma condenao morte. A narrao contra a

    opresso: uma luta velha, que nunca se esgota. E so os temas arcai-

    cos, as fixaes mais antigas, que interessam a Nlida.

    CASTELLO, Jos. A fora do arcaico. In: Revista

    Continental Multicultural, n 58, out. 2005. Dispo-nvel em: . Acesso em: 23 set. 2008.

  • Captulo 05Nlida Pion

    49

    Jos Castello afirma, ainda, que, alm de Vozes do deserto, toda a literatura de Nlida conserva esse carter de permanncia e de resistn-cia. Resistncia da fora da lngua e de sua potncia expressiva, em um mundo cada vez mais apressado, mais seduzido pela linguagem sinttica e pelos clichs. Luta em defesa de uma literatura densa e culta para es-crever seu ltimo romance, a autora pesquisou por cinco anos a cultura e a literatura rabes em um universo no qual predominam as narrativas de desafogo, as confisses egocntricas e as aventuras de flego curto.

    Se voc ainda no leu Vozes do deserto, aproveite para l-lo, um romance envolvente e o leitor, juntamente com o Califa, espera ansiosa-mente cada noite para poder desfrutar das magnficas histrias narradas por Scherezade.

    Agora leia um dos contos mais significativos da produo literria de Nlida Pion, I love my husband.

    I love my husband

    Eu amo meu marido. De manh noite. Mal acordo, ofereo-lhe caf.

    Ele suspira exausto da noite sempre maldormida e comea a barbear-

    se. Bato-lhe porta trs vezes, antes que o caf esfrie. Ele grunhe com

    raiva e eu vocifero com aflio. No quero meu esforo confundido com

    um lquido frio que ele tragar como me traga duas vezes por semana,

    especialmente no sbado.

    Depois, arrumo-lhe o n da gravata e ele protesta por consertar-lhe uni-

    camente a parte menor de sua vida. Rio para que ele saia mais tranqilo,

    capaz de enfrentar a vida l fora e trazer de volta para a sala de visita um

    po sempre quentinho e farto.

    Ele diz que sou exigente, fico em casa lavando a loua, fazendo compras,

    e por cima reclamo da vida. Enquanto ele constri o seu mundo com

    pequenos tijolos, e ainda que alguns destes muros venham ao cho, os

    amigos o cumprimentam pelo esforo de criar olarias de barro, todas

    slidas e visveis.

    A mim tambm me sadam por alimentar um homem que sonha com

    casas-grandes, senzalas e mocambos, e assim faz o pas progredir. E

    por isto que sou a sombra do homem que todos dizem eu amar. Dei-

    xo que o sol entre pela casa, para dourar os objetos comprados com

    esforo comum. Embora ele no me cumprimente pelos objetos fluo-

    rescentes. Ao contrrio, atravs da certeza do meu amor, proclama que

    no fao outra coisa seno consumir o dinheiro que ele arrecada no

    PION, Nlida. I love my husband. In: O calor das coisas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. p. 5767.

  • Literatura Brasileira III

    50

    vero. Eu peo ento que compreenda minha nostalgia por uma terra

    antigamente trabalhada pela mulher, ele franze o rosto como se eu lhe

    estivesse propondo uma teoria que envergonha a famlia e a escritura

    definitiva do nosso apartamento.

    O que mais quer, mulher, no lhe basta termos casado em comunho

    de bens? E dizendo que eu era parte do seu futuro, que s ele porm

    tinha o direito de construir, percebi que a generosidade do homem

    habilitava-me a ser apenas dona de um passado com regras ditadas no

    convvio comum.

    Comecei a ambicionar que maravilha no seria viver apenas no passado,

    antes que este tempo pretrito nos tenha sido ditado pelo homem que

    dizemos amar. Ele aplaudiu o meu projeto. Dentro de casa, no forno que

    era o lar, seria fcil alimentar o passado com ervas e mingau de aveia,

    para que ele, tranqilo, gerisse o futuro. Decididamente, no podia ele

    preocupar-se com a matriz do meu ventre, que devia pertencer-lhe de

    modo a no precisar cheirar o meu sexo para descobrir quem mais,

    alm dele, ali estivera, batera-lhe porta, arranhara suas paredes com

    inscries e datas.

    Filho meu tem que ser s meu, confessou aos amigos no sbado do

    ms que recebamos. E mulher tem que ser s minha e nem mesmo

    dela. A idia de que eu no podia pertencer-me, tocar no meu sexo

    para expurgar-lhe os excessos, provocou-me o primeiro sobressalto na

    fantasia do passado em que at ento estivera imersa. Ento o homem,

    alm de me haver naufragado no passado, quando se sentia livre para

    viver a vida a que ele apenas tinha acesso, precisava tambm atar mi-

    nhas mos, para minhas mos no sentirem a doura da prpria pele,

    pois talvez esta doura me ditasse em voz baixa que havia outras peles

    igualmente doces e privadas, cobertas de plo felpudo, e com a ajuda

    da lngua podia lamber-se o seu sal?

    Olhei meus dedos revoltada com as unhas longas pintadas de roxo.

    Unhas de tigre que reforavam a minha identidade, grunhiam quanto

    verdade do meu sexo. Alisei meu corpo, pensei, acaso sou mulher uni-

    camente pelas garras longas e por revesti-las de ouro, prata, o mpe-

    to do sangue de um animal abatido no bosque? Ou porque o homem

    adorna-me de modo a que quando tire estas tintas de guerreira do rosto

    surpreende-se com uma face que lhe estranha, que ele cobriu de mis-

    trio para no me ter inteira?

    De repente, o espelho pareceu-me o smbolo de uma derrota que o

    homem trazia para casa e tornava-me bonita. No verdade que te

    amo, marido? perguntei-lhe enquanto lia os jornais, para instruir-se, e

  • Captulo 05Nlida Pion

    51

    eu varria as letras de imprensa cuspidas no cho logo aps ele assimilar

    a notcia. Pediu, deixe-me progredir, mulher. Como quer que eu fale de

    amor quando se discutem as alternativas econmicas de um pas em

    que os homens para sustentarem as mulheres precisam desdobrar um

    trabalho de escravo.

    Eu lhe disse ento, se no quer discutir o amor, que afinal bem pode

    estar longe daqui, ou atrs dos mveis para onde s vezes escondo a

    poeira depois de varrer a casa, que tal se aps tantos anos eu mencio-

    nasse o futuro como se fosse uma sobremesa?

    Ele deixou o jornal de lado, insistiu que eu repetisse. Falei na palavra

    futuro com cautela, no queria feri-lo, mas j no mais desistia de uma

    aventura africana recm-iniciada naquele momento. Seguida por um

    cortejo untado de suor e ansiedade, eu abatia os javalis, mergulhava

    meus caninos nas suas jugulares aquecidas, enquanto Clark Gable,

    atrado pelo meu cheiro e do animal em convulso, ia pedindo de

    joelhos o meu amor. Sfrega pelo esforo, eu sorvia gua do rio,

    quem sabe em busca da febre que estava em minhas entranhas e eu

    no sabia como despertar. A pele ardente, o delrio, e as palavras que

    manchavam os meus lbios pela primeira vez, eu ruborizada de prazer

    e pudor, enquanto o paj salvava-me a vida com seu ritual e seus plos

    fartos no peito. Com a sade nos dedos, da minha boca parecia sair o

    sopro da vida e eu deixava ento o Clark Gable amarrado numa rvore,

    lentamente comido pelas formigas. Imitando a Nayoka, eu descia o rio

    que quase me assaltara as foras, evitando as quedas dgua, aos gritos

    proclamando liberdade, a mais antiga e mirade das heranas.

    O marido, com a palavra futuro a boiar-lhe nos olhos e o jornal cado no

    cho, pedia-me, o que significa este repdio a um ninho de amor, se-

    gurana, tranqilidade, enfim a nossa maravilhosa paz conjugal? E acha

    voc, marido, que a paz conjugal se deixa amarrar com os fios tecidos

    pelo anzol, s porque mencionei esta palavra que te entristece, tanto

    que voc comea a chorar discreto, porque o teu orgulho no lhe per-

    mite o pranto convulso, este sim, reservado minha condio de mu-

    lher? Ah, marido, se tal palavra tem a descarga de te cegar, sacrifico-me

    outra vez para no v-lo sofrer. Ser que apagando o futuro agora ainda

    h tempo de salvar-te?

    Suas crateras brilhantes sorveram depressa as lgrimas, tragou a fumaa

    do cigarro com volpia e retomou a leitura. Dificilmente se encontraria

    homem como ele no nosso edifcio de dezoito andares e trs portarias.

    Nas reunies de condomnio, a que estive presente, era ele o nico a

    superar os obstculos e perdoar aos que o haviam magoado. Recriminei

  • Literatura Brasileira III

    52

    meu egosmo, ter assim perturbado a noite de quem merecia recupe-

    rar-se para a jornada seguinte.

    Para esconder minha vergonha, trouxe-lhe caf fresco e bolo de choco-

    late. Ele aceitou que eu me redimisse. Falou-me das despesas mensais.

    Do balano da firma ligeiramente descompensado, havia que cuidar

    dos gastos. Se contasse com a minha colaborao, dispensaria o scio

    em menos de um ano. Senti-me feliz em participar de um ato que nos

    faria progredir em doze meses. Sem o meu empenho, jamais ele teria

    sonhado to alto. Encarregava-me eu distncia da sua capacidade de

    sonhar. Cada sonho do meu marido era mantido por mim. E, por tal di-

    reito, eu pagava a vida com cheque que no se poderia contabilizar.

    Ele no precisava agradecer. De tal modo atingira a perfeio dos sen-

    timentos, que lhe bastava continuar em minha companhia para querer

    significar que me amava, eu era o mais delicado fruto da terra, uma rvo-

    re no centro do terreno de nossa sala, ele subia na rvore, ganhava-lhe

    os frutos, acariciava a casca, podando seus excessos.

    Durante uma semana bati-lhe porta do banheiro com apenas um to-

    que matutino. Disposta a fazer-lhe novo caf, se o primeiro esfriasse, se

    esquecido ficasse a olhar-se no espelho com a mesma vaidade que me

    foi instilada desde a infncia, logo que se confirmou no nascimento tra-

    tar-se de mais uma mulher. Ser mulher perder-se no tempo, foi a regra

    de minha me. Queria dizer, quem mais vence o tempo que a condio

    feminina? O pai a aplaudia completando, o tempo no o envelheci-

    mento da mulher, mas sim o seu mistrio jamais revelado ao mundo.

    J viu, filha, que coisa mais bonita, uma vida nunca revelada, que nin-

    gum colheu seno o marido, o pai dos seus filhos? Os ensinamentos

    paternos sempre foram graves, ele dava brilho de prata palavra enve-

    lhecimento. Vinha-me a certeza de que ao no se cumprir a histria da

    mulher, no lhe sendo permitida a sua prpria biografia, era-lhe assegu-

    rada em troca a juventude.

    S envelhece quem vive, disse o pai no dia do meu casamento. E porque

    vivers a vida do teu marido, ns te garantimos, atravs deste ato, que

    sers jovem para sempre. Eu no sabia como contornar o jbilo que me

    envolvia com o peso de um escudo, e ir ao seu corao, surpreender-lhe

    a limpidez. Ou agradecer-lhe um estado que eu no ambicionara antes,

    por distrao talvez. E todo este trofu logo na noite em que ia conver-

    ter-me em mulher. Pois at ento sussurravam-me que eu era uma bela

    expectativa. Diferente do irmo que j na pia batismal cravaram-lhe o

    glorioso estigma de homem, antes de ter dormido com mulher.

    Sempre me disseram que a alma da mulher surgia unicamente no leito,

  • Captulo 05Nlida Pion

    53

    ungido seu sexo pelo homem. Antes dele a me insinuou que o nosso

    sexo mais parecia uma ostra nutrida de gua salgada, e por isso vago e

    escorregadio, longe da realidade cativa da terra. A me gostava de poe-

    sia, suas imagens sempre frescas e quentes.

    Meu corao ardia na noite do casamento. Eu ansiava pelo corpo novo

    que me haviam prometido, abandonar a casca que me revestira no coti-

    diano acomodado. As mos do marido me modelariam at os meus lti-

    mos dias e como agradecer-lhe tal generosidade? Por isso talvez sejamos

    to felizes como podem ser duas criaturas em que uma delas a nica a

    transportar para o lar alimento, esperana, a f, a histria de uma famlia.

    Ele nico a trazer-me a vida, ainda que s vezes eu a viva com uma se-

    mana de atraso. O que no faz diferena. Levo at vantagens, porque ele

    sempre a trouxe traduzida. No preciso interpretar os fatos, incorrer em

    erros, apelar para as palavras inquietantes que terminam por amordaar

    a liberdade. As palavras do homem so aquelas de que deverei precisar

    ao longo da vida. No tenho que assimilar um vocabulrio incompatvel

    com o meu destino, capaz de arruinar meu casamento.

    Assim fui aprendendo que a minha conscincia que est a servio da

    minha felicidade ao mesmo tempo est a servio do meu marido. seu

    encargo podar meus excessos, a natureza dotou-me com o desejo de

    naufragar s vezes, ir ao fundo do mar em busca das esponjas. E para

    que me serviriam elas seno para absorver meus sonhos, multiplic-

    los no silncio borbulhante dos seus labirintos cheios de gua do mar?

    Quero um sonho que se alcance com a luva forte e que se transforme

    algumas vezes numa torta de chocolate, para ele comer com os olhos

    brilhantes, e sorriremos juntos.

    Ah, quando me sinto guerreira, prestes a tomar das armas e ganhar um

    rosto que no o meu, mergulho numa exaltao dourada, caminho

    pelas ruas sem endereo, como se a partir de mim, e atravs do meu

    esforo, eu devesse conquistar outra ptria, nova lngua, um corpo que

    sugasse a vida sem medo e pudor. E tudo me treme dentro, olho os

    que passam com um apetite de que no me envergonharei mais tarde.

    Felizmente, uma sensao fugaz, logo busco o socorro das caladas

    familiares, nelas a minha vida est estampada. As vitrines, os objetos, os

    seres amigos, tudo enfim orgulho da minha casa.

    Estes meus atos de pssaro so bem indignos, feririam a honra do meu

    marido. Contrita, peo-lhe desculpas em pensamento, prometo-lhe es-

    quivar-me de tais tentaes. Ele parece perdoar-me distncia, aplaude

    minha submisso ao cotidiano feliz, que nos obriga a prosperar a cada

    ano. Confesso que esta nsia me envergonha, no sei como abrand-la.

  • Literatura Brasileira III

    54

    No a menciono seno para mim mesma. Nem os votos conjugais im-

    pedem que em escassos minutos eu naufrague no sonho. Estes votos

    que ruborizam o corpo mas no marcaram minha vida de modo a que

    eu possa indicar as rugas que me vieram atravs do seu arrebato.

    Nunca mencionei ao marido estes galopes perigosos e breves. Ele no

    suportaria o peso dessa confisso. Ou que lhe dissesse que nessas tar-

    des penso em trabalhar fora, pagar as miudezas com meu prprio di-

    nheiro. Claro que estes desatinos me colhem justamente pelo tempo

    que me sobra. Sou uma princesa da casa, ele me disse algumas vezes e

    com razo. Nada pois deve afastar-me da felicidade em que estou para

    sempre mergulhada.

    No posso reclamar. Todos os dias o marido contraria a verso do espe-

    lho. Olho-me ali e ele exige que eu me enxergue errado. No sou em

    verdade as sombras, as rugas com que me vejo. Como o pai, tambm

    ele responde pela minha eterna juventude. gentil de sentimentos. Ja-

    mais comemorou ruidosamente meu aniversrio, para eu esquecer de

    contabilizar os anos. Ele pensa que no percebo. Mas, a verdade que

    no fim do dia j no sei quantos anos tenho.

    E tambm evita falar do meu corpo, que se alargou com os anos, j no

    visto os modelos de ant