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Literatura Ocidental II Liliana Reales Rogério Confortin Florianópolis, 2012. Período

[Livro UFSC] Literatura Ocidental 2

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Literatura Ocidental 2

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  • Literatura Ocidental II

    Liliana RealesRogrio Confortin

    Florianpolis, 2012.

    4 Perodo

  • Governo FederalPresidente da Repblica: Dilma Vana Rousseff Ministro de Educao: Aloizio MercadanteSecretaria de Educao a Distncia (SEED/MEC)Universidade Aberta do Brasil (UAB)

    Universidade Federal de Santa CatarinaReitora: Roselane NeckelVice-reitora: Lcia Helena Martins PachecoSecretrio de Educao a Distncia: Ccero BarbosaPr-reitora de Ensino de Graduao: Roselane Ftima CamposPr-reitora de Ps-Graduao: Joana Maria PedroPr-reitor de Pesquisa: Jamil AssreuyPr-reitor de Extenso: Edison da RosaPr-reitor de Planejamento e Oramento: Luiz AlbertonPr-reitor de Administrao: Antnio Carlos Montezuma BritoPr-reitora de Assuntos Estudantis: Beatriz Augusto de PaivaDiretor do Centro de Comunicao e Expresso: Felcio Wessling MargottiDiretor do Centro de Cincias da Educao: Wilson Schmidt

    Curso de Licenciatura em Letras-Espanhol na Modalidade a DistnciaDiretor Unidade de Ensino: Felcio Wessling MargottiChefe do Departamento: Silvana de GaspariCoordenadoras de Curso: Maria Jos Damiani Costa Vera Regina de Aquino VieiraCoordenadora de Tutoria: Raquel Carolina Souza Ferraz DElyCoordenao Pedaggica: LANTEC/CED

    Projeto Grfico

    Coordenao: Luiz Salomo Ribas GomezEquipe: Gabriela Medved Vieira Pricila Cristina da SilvaAdaptao: Laura Martins Rodrigues

    Comisso Editorial

    Adriana Kuerten DellagnelloMaria Jos Damiani CostaMeta Elisabeth ZipserVera Regina de Aquino Vieira

  • Equipe de Desenvolvimento de Materiais

    1 edio (2008)

    Laboratrio de Novas Tecnologias - LANTEC/CEDCoordenao Geral: Andrea Lapa

    Coordenao Pedaggica: Roseli Zen Cerny

    Material Impresso e HipermdiaCoordenao: Thiago Rocha Oliveira, Laura Martins RodriguesDiagramao: Ana Flvia Maestri, Gabriel NietscheIlustraes: Natlia Gouva, Rafael de Queiroz Oliveira, Thiago Rocha OliveiraReviso gramatical: Rosangela Santos de Souza

    Design InstrucionalCoordenao: Isabella Benfica BarbosaDesigner Instrucional: Felipe Vieira Pacheco

    2 edio (2011)Laboratrio Multimdia/CCE - Material Impresso e Hipermdia

    Coordenao: Ane GirondiDiagramao: Letcia Beatriz Folster, Grasiele Fernandes HoffmannSuperviso do AVEA: Mara Tonelli SantosDesign Instrucional: Paula Balbis GarciaReviso: Rosangela Santos de SouzaIlustrao: Kamilla Santos de Souza

    Copyright@2012, Universidade Federal de Santa Catarina/LLE/CCE/UFSC. Nenhuma parte deste material poder ser comercializada, reproduzida, transmitida e gravada sem a prvia autoriza-o, por escrito, da Universidade Federal de Santa Catarina.

    Ficha catalogrfica

    Catalogao na fonte elaborada na DECTI da BU/UFSC

    R288lReales, Liliana Literatura ocidental II/ Liliana Reales, Rogrio Confortin. Florianpolis : LLE/CCE/UFSC, 2009. 120 p. Inclui bibliografia UFSC. Curso de Licenciatura em Letras-Espanhol na Modalidade a Distncia ISBN 978-85-61483-14-2

    1. Literatura ocidental. 2. Sculo XX. I. Confortin, Rogrio.II. Ttulo. CDU: 82

  • Sumrio

    Unidade A ........................................................ 9

    1 O literrio e os conceitos de Afeco e Durao ............111.1 O literrio .................................................................................................. 111.2 O conceito de afeco ......................................................................... 131.3 O conceito de durao ......................................................................... 17

    2 A narrao em primeira pessoa ..................................... 212.1 A passagem da narrao em terceira pessoa narrao em primeira pessoa ..............................................................................................21

    Unidade B ....................................................... 25

    3 A dessacralizao da obra de arte ...................................273.1 Retomando algumas questes da unidade anterior .................273.2 As contribuies tericas de Walter Benjamin .............................303.3 O narrador .................................................................................................32

    Unidade C ....................................................... 37

    4 A experimentao narrativa ............................................394.1 Em busca de uma nova temporalidade ficcional ........................39

    Unidade D ..................................................... 49

    Introduo .......................................................................51

    5 A experincias figurativa do tempo e do espao ficcionais ...........................................................53

    5.1 Marcel Proust ..........................................................................................535.2 Marcel Proust crtico ............................................................................. 57

    6 Franz Kafka .....................................................................63

  • 6.1 Kafka e a transformao da literatura ............................................ 636.2 A exigncia da obra em Kafka .......................................................... 676.3 O papel fundamental da imagem do topgrafo na obra de Kafka ........................................................................................... 71

    7 Um novo caminho contra a iluso realista .....................777.1 Virginia Woolf ...........................................................................................777.2 Uma inovadora ........................................................................................78

    8 A paixo da escritura ...................................................... 858.1 Samuel Beckett ....................................................................................... 858.2 Paixo melanclica ................................................................................ 89

    9 Um inovador .................................................................... 939.1 James Joyce: breve biografia ............................................................. 939.2 Uma abordagem sobre o carter parodstico do Ulisses ......... 94

    10 Uma crtica teoria e prtica literrias ....................10310.1 Alain Robbe-Grillet ...........................................................................103

    11 Um escritor erudito ..................................................... 10711.1 Fama mundial .................................................................................... 10711.2 Uma biografia intelectual . ............................................................. 10811.3 Tln, metfora do mundo ............................................................. 113

    Referncias ....................................................................... 117

  • Apresentao

    Caro aluno,

    A preparao deste livro didtico, Literatura Ocidental do Sculo XX, apre-

    sentou-se para ns no s como uma tarefa especialmente prazerosa, mas

    tambm como um grande desafio. A produo literria do Ocidente do s-

    culo passado deu ao mundo uma extraordinria quantidade de obras de

    excelente qualidade. Em termos quantitativos, teria que se ter promovido

    uma pesquisa exaustiva de catalogao das mais importantes publicaes

    do sculo passado. Em termos qualitativos, a dificuldade da escolha ainda

    maior devido s implicaes tericas que a Literatura Ocidental do Sculo

    XX passa a suscitar, especialmente, a narrativa.

    Se a quantidade e a qualidade do material de uma Literatura Ocidental do

    Sculo XX so importantes em um estudo literrio, teramos, como outra

    questo implicada, a dimenso da crtica enquanto construtora e legitima-

    dora de modelos de apreciao dessa literatura. Do mesmo modo, como

    densa a qualidade das obras literrias no ocidente no sculo XX, tambm

    h uma visvel variedade de escolas crticas que se empenharam em des-

    crever e valorizar saberes dessa experincia literria.

    Dada a diversidade e a densidade do objeto de nosso livro didtico, preten-

    demos relacionar em dois tempos a escolha dos autores que aqui sero tra-

    tados, com uma observao geral sobre a qualidade da experincia literria

    enquanto experincia esttica e a potncia crtica de algumas escolas que

    se desenvolveram junto aos ritmos e aos desdobramentos de uma literatu-

    ra que se instituiu como verdadeira experimentao e contraponto a um

    certo modelo de linguagem literria do sculo XIX.

    Nesse sentido, observamos, tambm, que o eixo principal de nossa propos-

    ta ser o de descrever, em linhas gerais, o desenvolvimento de uma certa

    passagem de um modelo de romance mimtico, apoiado numa estrutura

    narrativa em terceira pessoa - que tende a esconder sutilmente o narrador

    atravs da iluso retrica de um narrador onisciente - valorizao de um

    narrador em primeira pessoa que traz consigo uma srie de estratgias nar-

  • rativas diferenciadas e que elabora modelos diferenciados de tratamento

    do foco narrativo, instituindo uma srie de re-elaboraes da experincia

    narrativa do tempo e do espao na Literatura Ocidental do Sculo XX.

    Por outro lado, levando em conta que h disciplinas especficas para tratar

    da lrica e do teatro, decidimos nos concentrar no romance que traz, desde

    o sculo XIX, uma herana de valorizao e na narrativa curta ou o conto,

    muito valorizado tambm durante o sculo XX.

    Para nossa disciplina, com carga horria de 60 horas/aulas, dividimos o ma-

    terial didtico em oito Unidades. Na Unidade A, propomos uma reflexo

    sobre a questo literria relacionada aos conceitos de afeco e de durao.

    Na Unidade B, estudaremos as contribuies de Walter Benjamin para se

    entender a arte e a literatura do sculo XX. Na Unidade C, estudaremos a

    busca da literatura por uma nova temporalidade ficcional e seu mergulho

    na experimentao narrativa. Na Unidade D, estudaremos alguns dos re-

    presentantes mais importantes da literatura do sculo XX.

    Desejamos a voc um bom estudo!

    Os autores

  • Unidade AA questo literria e a questo crtica

  • O literrio e os conceitos de Afeco e Durao

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    Captulo 01

    1 O literrio e os conceitos de Afeco e Durao

    Neste captulo, vamos refletir sobre a questo literria, os modos e as prticas singulares de experincia que ela elabora por meio da linguagem. Tambm, estudaremos o conceito de afeco entendido como operador de sentido da arte e o de durao enquanto conceito de fluxo de conscincia do tempo.

    1. 1 O literrio

    A literatura se apresenta como verdadeiro tecido de formas e mo-dos de expresso do sentido esttico e cultural de uma sociedade em uma poca. Em outras palavras, a escritura ou a textualidade literrias expressam, no jogo de suas formas e na prtica que fazem da linguagem, as questes econmicas, polticas, filosficas e histricas presentes num determinado perodo histrico e em um determinado espao. Alm de operar como um certo canal de explorao crtica dos acontecimentos histricos de um momento ou de uma poca, em nosso caso, o sculo XX, a literatura pode apresentar questes ainda no tematizadas pela cincia ou pela filosofia, pois a escritura literria tem caractersticas pr-prias que so os modos e as prticas singulares de experincia que ela elabora por meio da linguagem.

    De um modo ou de outro, a literatura tem relao com os fatos e desenvolvimentos culturais de um perodo, os quais esto intimamente relacionados tanto cincia quanto filosofia. Mas podemos afirmar que a literatura se d enquanto tal, ou seja, enquanto fenmeno e ex-presso artstica, por meio de uma linguagem diferenciada da lingua-gem por meio da qual a cincia e a filosofia se tornam possveis. Isso no significa que a literatura no se interseccione a partir de uma estru-tura comum de linguagem com a cincia e com a filosofia. A linguagem como estrutura de significao constitui e institui modelos de compre-

  • Literatura Ocidental II

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    enso do mundo. Tanto a cincia quanto a filosofia e a arte se desdo-bram em possveis modelos atravs dos quais o mundo se apresenta de forma mltipla e interseccionada. Finalmente, diramos que os modelos mesmos se interpenetram, gerando e transformando-se a si prprios.

    Segundo o filsofo Gilles Deleuze, enquanto a cincia operaria por meio de funes e percepes dos fenmenos, a filosofia operaria a par-tir de conceitos e proposies e a arte de modo geral, como a literatura de modo particular, operaria a partir de afeces ou modos expressivos especficos de ordem esttica.

    1.2 O conceito de afeco

    O conceito de afeco entendido como operador de sentido da arte seria, grosso modo, toda relao sempre mediada e intrnseca, material e subjetiva que se estabeleceria de forma dinmica na produo da obra de arte. Nesse sentido, ao qual remete Deleuze em relao afeco, a obra de arte experimentada a partir de nveis de sensao que se do no prprio trabalho de elaborao do artista e que continuam co-exis-

    No entraremos em uma discusso propriamente terica dessas diferenas conceituais. Optaremos por apresentar, por meio de links, os autores e tericos que so fundamentais para uma com-preenso da variedade e da singularidade das transformaes da linguagem literria no sculo XX. Voc pode acessar o endereo http://www.dossie_deleuze.blogger.com.br/ para obter informa-es sobre este importante filsofo francs. Nessa mesma pgina de Internet, h outros links interessantes que possibilitam a leitura de textos e cursos de Gilles Deleuze. No se preocupe em entender tudo logo de incio, o conhecimento algo que se faz de forma pro-gressiva e sempre com perseverana e curiosidade. Consulte um bom dicionrio e sites com credibilidade para elaborar para voc mesmo um conhecimento sempre mais detalhado e nuanado so-bre os conceitos tericos.

    Figura 1 - Gilles Deleuze

  • O literrio e os conceitos de Afeco e Durao

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    Captulo 01

    tindo como relaes sensrias dinmicas com uma idia de arte com-partilhada socialmente e corporalmente, vale dizer, que so vivenciadas no jogo de nossa subjetividade e de nossa coletividade.

    Ora, essas vivncias subjetivas e coletivas a um s tempo e que di-zem respeito arte moderna e contempornea, incluindo a a literatura, so a prpria experincia corprea da arte. So a experincia afectiva proporcionada aos corpos que vivenciam a arte como espectadores e atores dessa mesma situao artstica, se assim podemos dizer. Os cor-pos, os nossos corpos, afetam e so afetados pelas afeces proporciona-das pela situao artstica da obra de arte.

    Nesse sentido contemporneo de uma teoria da arte, a prpria obra de arte deixa de ser apenas um objeto artstico a ser interpretado pelo espectador ou leitor, para ser pensada como coexistncia junto ao es-pectador ou leitor, fazendo parte de um complexo de fatores que influi e influenciado como situao ou performao artstica. A arte passa a ser percebida e mesmo afetada e no apenas a significar simbolicamen-te. Ou seja, a partir dessa noo de afeco podemos pensar a arte, no apenas como objeto belo ou estranho ou diferente mas como ver-dadeira possibilidade de expor uma relao complexa de foras afectivas que transitam por todo o processo de coexistncia entre a experincia da arte e a multiplicidade das relaes scio-culturais.

    Um exemplo da operatria dessa noo de afeco pode ser ob-servado na pintura impressionista que passa a desejar captar todo o mo-vimento de transformao da luz durante o passar das horas. A partir dessa relao perceptiva-afectiva, o impressionismo tenta dar conta de uma certa performance de afeco dessa transio luminosa, enquanto interpretao dinmica entre a passagem do tempo e sua possibilidade de figurao como experincia de representao no-realista do real. O fato de se colocar o termo representao entre aspas indica justamen-te que o que se entende por representao pode ser percebido de forma afectiva, ou seja, que no trabalho de cpia de uma paisagem, essa c-pia, no ser - e nunca o foi - algo que poderia chegar a mimetizar sua origem real. Isso porque, justamente, no nunca uma cpia, mas sim

    Para saber mais sobre pin-tura impressionista, acesse a seguinte pgina: http://es.wikipedia.org/wiki/Impre-sionismo. Tambm, acesse a pgina onde voc poder ler sobre ps-impressionismo e sobre importantes pintores considerados por alguns crticos pertencentes a essa tendncia, tais como Vincent Van Gogh e Paul Gauguin: http://es.wikipedia.org/wiki/Postimpresionismo e http://www.monografias.com/traba-jos/impresionismo/impresio-nismo.shtml

  • Literatura Ocidental II

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    um processo que performa toda uma situao artstica. sempre um complexo de relaes que acontece numa multiplicidade de opes e escolhas. Por exemplo: o movimento da luz sobre os objetos, a mudana da aparncia da paisagem em funo do jogo de sombras que ai se pro-duz, a escolha das cores e sua vacilao como ato na tela, as interrupes de todo tipo exteriores ao trabalho do pintor, etc.

    O trabalho do pintor passa da preocupao com um tipo de mode-lo representativo para o exerccio de outra forma de experincia plstica do real. As artes plsticas tendem, a partir desse momento, situado a partir da segunda metade do sculo XIX e incio do sculo XX, a um processo dinmico e intrinsecamente vinculado a uma nova atitude perceptiva e de concepo do real. Nesse sentido, sujeito pintor e objeto de pintura se confundem e no representam mais plos absolutamente opostos do ponto de vista fsico e filosfico.

    O momento histrico de emergncia do impressionismo nas artes plsticas se d concomitantemente ao desenvolvimento da fotogra-fia como tcnica cada vez mais elaborada de reproduo de ima-gens, tornando possvel toda uma nova experincia de reproduo pictrica do real. As particularidades tcnicas e o efeito realista da fotografia influenciam diretamente na transformao dos modelos de representao das artes plsticas. Uma nova revoluo indus-trial surgia instituindo formas inovadoras de leitura do mundo. A questo tecnolgica, exemplificada pela reproduo tcnica em s-rie, (fordismo na indstria automobilstica e fotografia e cinema nas artes) ser um elemento importante de transformao do mun-do. Vale lembrar que o contexto histrico do fim do sculo XIX e comeo do sculo XX mostra a emergncia de correntes de pen-samento econmico e social, como o comunismo e o socialismo, baseadas na leitura de Marx e as ideologias nacionalistas de cunho fascista. Nesse contexto de transformao radical dos meios de produo h todo um efervecimento das questes ideolgicas que se transformam a si prprias ao atravessarem as relaes sociais. Essas tenses sociais e polticas de um novo mundo maquinizado,

  • O literrio e os conceitos de Afeco e Durao

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    Captulo 01

    Dentre outras correntes estticas, o impressionismo se contraporia a um modelo de pintura realista que se configuraria a partir de certas regras de perspectiva, de enquadramento, de uso das cores e de toda uma herana figurativa. O impressionismo surge como outro modelo de re-presentao pictrica, alicerado por outros elementos perspectivos e fi-gurativos que se elaboraro como alternativa na pintura: a busca de uma relao de representao dinmica da luz, a necessidade de uma libe-rao do realismo da pintura pr-moderna, influencia a transformao advinda do surgimento da tcnica fotogrfica no contexto mais amplo de toda a revoluo das tcnicas do comeo do sc. XX.

    Dessa contextualizao geral das transformaes polticas, sociais, tcnicas e estticas ocorridas na passagem do sc. XIX ao sc. XX e que im-plicam uma transformao profunda nos modos de interpretao figura-tiva da realidade, poderamos dizer que do mesmo modo como existiram modelos estticos especficos nas artes plsticas e que foram radicalmente contestados na virada do sculo a partir das diversas vanguardas artsticas como, por exemplo, o impressionismo, o cubismo, o expressionismo, o dadasmo e o surrealismo - tambm um certo modelo esttico do roman-ce do sc. XIX e que se tornou, diramos, hegemnico, ser contestado e superado de forma crescente e contundente durante todo o sc. XX.

    Nesse sentido, em contraponto ao modelo preponderante do ro-mance do sculo XIX, calcado em um narrador em terceira pessoa - modelo desenvolvido e levado a um grau de elaborao altssimo por grandes escritores franceses como Victor Hugo, Balzac, Flaubert e ou-tros e que almejava, como entidade narrativa, desaparecer para o lei-

    tanto produtor de ideologias socialistas quanto nacionalistas que se encrudeleceram como o stalinismo ou nazismo de Hitler, numa Europa que passara pelas duas maiores guerras da histria recente, de 1914 a 1918 e de 1937 a 1945, constituem o panorama histrico complexo e multifacetado do que podemos, a principio, entender por Literatura Ocidental do sculo XX.

    Mais sobre stalinismo em: http://www.portalplanetased-na.com.ar/regimen_stalin.htm

    Mais sobre nazismo em: http://www.lablaa.org/blaavir-tual/ayudadetareas/poli/poli9.htm

  • Literatura Ocidental II

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    tor por trs de uma espcie de iluso retrica criada a partir das min-cias detalhistas de um narrador onisciente, Marcel Proust, no comeo do sculo XX, colocar em prtica outro modelo esttico, baseado em diferentes procedimentos narrativos.

    De fato, Proust no ir estabelecer algo absolutamente indito ao passar a narrar em primeira pessoa a histria de sua obra mestra, La Re-cherche du temps perdu, traduzida para o portugus como Em busca do tempo perdido. Nesse movimento de passagem da narrativa em terceira pessoa para uma narrativa em primeira pessoa, h muito mais do que um gesto autobiogrfico. Em outras palavras, poderamos dizer que com a en-trada desse Eu que conta a histria h toda uma construo estratgica da narrativa que envolver uma nova relao com a descrio do tempo e do espao na histria.

    Para Proust, fora fundamental conseguir contar a histria da busca de uma experincia de suas memrias de vida, ou seja, para o escritor Proust, a busca de um tempo perdido, passado, escoado ou finalmente vivenciado enquanto lembrana exposta pela escritura e pela experincia literria seria a busca de um tipo de narrativa que superasse um certo modelo narrativo denominado mimtico.

    Esse modelo, justamente por se caracterizar por uma idia de repre-sentao ou de imitao fidedigna do real (mimesis um vocbulo latino mimsis - que vem do grego - , mimeisis - e significa imitao), ser o padro cannico de descrio narrativa em termos literrios no sc. XIX. Vale lembrar que, do mesmo modo como nas artes plsticas h toda uma transformao dos modos de representao da realidade e dos objetos do mundo, o modo mimtico de descrio narrativa um modo especfico organizado e determinado historicamente a partir do uso de certas formas e estratgias narrativas consagradas no sc. XIX.

    Esse modelo mimtico, consagrado pelas obras de escritores como Balzac e Flaubert, ser, ento, aos poucos transgredido de modo que a prpria experincia do tempo possa ser tematizada e elaborada em sua relao paradoxal com a memria, a rememorao e o entroncamento

  • O literrio e os conceitos de Afeco e Durao

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    Captulo 01

    dessas relaes com o espao. Trata-se de toda a discusso terica que atravessa a problemtica da literatura como representao especfica da experincia do homem no mundo na forma do relato ficcional ou teste-munhal. Para um quadro geral histrico de uma evoluo da represen-tao da realidade na Literatura Ocidental, ver o filsofo Erich Auerbach.

    Auerbach escreveu um livro importante, Mimesis: A representao da realidade na literatura ocidental) traduzido para o portugus em 1953 e para o espanhol em 1951.

    1.3 O conceito de durao

    Seria necessrio, agora, remetermo-nos importncia que tiveram as pesquisas de Bergson nas vrias transformaes dos modelos artsticos e li-terrios do comeo do sculo XX. O filsofo francs Henry Bergson, nasci-do em Paris em 1859 e morto na mesma cidade ,em 1941, teve sua produo intelectual preponderante no comeo do sculo XX. Bergson desenvolveu uma reflexo filosfica sobre a durao (dure) do tempo enquanto fluxo de conscincia em contraposio ao tempo enquanto varivel cientfica. Para ele, o tempo vivido da conscincia outra coisa que o tempo relaciona-do ao espao em funo de uma compreenso cientfica. O tempo vivido da conscincia, a durao, tem outro sentido que o tempo calculado como funo do espao. O tempo enquanto conceito cientfico est relacionado a uma medida de deslocamento de um corpo no espao segundo o tempo de seu intervalo. Esse intervalo para Bergson pode ser pensado como tempo cientfico ou como durao de um fluxo de conscincia. Para a conscincia, o que importa justamente o que escorre entre as bordas da abstrao matemtica que opera a cincia em relao ao tempo.

    Bergson influenciou muito a construo de outros modelos de descri-o narrativa do tempo da histria, como o que ocorre na obra de Marcel Proust, Em Busca do tempo perdido. Veremos que toda uma relao da descrio do tempo em relao ao espao na literatura do sculo XX est relacionada s pesquisas sobre a durao enquanto conceito de fluxo de conscincia do tempo. Da complexidade das descries sensrias de um

    http://www.panfletonegro.com/treintaydos/libros.shtml

    Figura 2 - Henry Bergson

  • Literatura Ocidental II

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    narrador que conta a histria de sua vida como romance de si mesmo, como em Proust, desfigurao e despersonalizao do narrador que se refere a um mundo onde as fronteiras do inteligvel e do sensvel j no so mais to discernveis, como nas narrativas do Nouveau roman que estu-daremos mais tarde, observa-se um denso processo de transformao do discurso narrativo.

    O historiador da literatura, Henri Godard, identifica na obra mestra de Proust, para alm do uso da narrao em primeira pessoa e das compli-caes autobiogrficas que da emergem, uma srie de estratgias discursi-vas que vo criar toda a complexidade do trabalho romanesco proustiano sobre a questo da memria e da possibilidade de construo de outro mo-delo narrativo. Em seu livro Le roman modes demploi, que poderamos tra-duzir por O Romance: modos de uso, ou Romance: manual prtico, Henri Godard apresenta a tese de um certo desenvolvimento esttico do romance no sculo XX na Frana, como uma srie de experimentaes narrativas, tendendo todas crtica e mesmo ao rechao do modelo de representao mimtica do romance do sc XIX, exemplificado, principalmente, por Bal-zac e Flaubert, dentre outros escritores cannicos no sc. XIX.

    O conceito de cnone diz respeito a uma determinada norma de gosto e de importncia de escritores que teriam uma certa pre-ponderncia por suas regras de estilo e pela amplitude de sua qualidade esttica. H toda uma discusso muito calorosa sobre este assunto e sobre a validade terica de um conceito desse tipo. a discusso mesma que abre nosso livro didtico nos termos de uma reflexo sobre a quantidade e a qualidade da produo literria no sculo XX ocidental. Procuraremos desenvolver uma discusso sobre esse tema, indicando e elaborando durante a apresentao um panorama histrico-crtico que possa susten-tar algumas linhas gerais de explicao para a escolha dos auto-res que sero trabalhados nas Unidades dedicadas aos escritores escolhidos e que, possivelmente, podero ser enquadrados na acepo do termo Cnone no sculo. XX.

  • O literrio e os conceitos de Afeco e Durao

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    Captulo 01

    A idia de modo de uso ou de manual prtico que se pode ler a partir do ttulo do livro de Godard, aponta para o tema do desenvolvi-mento do romance na Frana, no sentido de se pensar o romance como um verdadeiro aparelho de linguagem, como mquina de linguagem ou mquina narrativa. Podemos perceber que essa mquina de linguagem que o romance ou, num sentido mais amplo, o texto narrativo ou o re-lato ficcional no sculo XX passa a ter como motivao e interesse funda-mental o questionamento da prpria linguagem enquanto possibilidade de representao do real em toda a sua complexidade, ou seja, do real pensado e experienciado como texto, naturalmente, possvel de ser lido e, consequentemente, aberto a uma multiplicidade interpretativa.

  • A narrao em primeira pessoa

    21

    Captulo 02

    2 A narrao em primeira pessoa

    Neste captulo estudaremos a passagem da estrutura da iluso retrica e referencial de um narrador em 3 pessoa prtica narrativa em 1 pessoa. Estudaremos que a literatura no sculo XX ,de um modo ou de outro, far--se- escritura de campos de subjetividade por meio de uma abordagem ficcional, porm cada vez mais impulsionada por um desejo autobiogrfi-co que, em ltima instncia, no revelar jamais um Eu verdadeiro do escritor, mas uma gama enorme de relaes ou de construes subjetivas.

    2. 1 A passagem da narrao em terceira pessoa narrao em primeira pessoa

    Em outras palavras, a literatura no sculo XX marcada pela con-figurao de uma ruptura entre um modo de representao mimtico do real, assentado numa estrutura narrativa em 3 pessoa e na iluso retrica de um sutil desaparecimento referencial desse narrador e o sur-gimento de uma experincia narrativa calcada no uso da 1 pessoa pelo narrador personagem, sendo que este pode, em alguns casos, ser repre-sentado como o escritor ficcional do mesmo texto que o narra.

    O sculo XX observar a emergncia de uma complicao e aden-samento da instncia de um narrador-personagem, no sentido que a passagem da estrutura da iluso retrica e referencial de um narrador em 3 pessoa prtica narrativa em 1 pessoa pressupe, em sua con-textualizao e emergncia esttica, nada mais nem nada menos do que toda a caudalosa complexidade das transformaes polticas, tcnicas e culturais que a histria do sculo XX dificilmente poder esgotar.

    A literatura do sc. XX pode ser lida enquanto espao ou territrio de experincia afectiva e cognitiva onde se renem os elementos absolu-tamente interseccionados de uma experincia histrica e esttica da rea-lidade. O pensamento do criador da psicanlise, Sigmund Freud, influen-

    Para saber mais sobre o pai da psicanlise, acesse as seguintes pginas: http://www.biografiasyvidas.com/monografia/freud/ e http://es.wikipedia.org/wiki/Sig-mund_Freud

  • Literatura Ocidental II

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    ciou fortemente para o advento do tipo de literatura que no sculo XX adquiriria um tom mais intimista e estratgias de fluxo de conscincia.

    a partir do conhecimento de um determinado esquema ou con-figurao das foras afectivas desenvolvidas desde o nascimento que se pode estabelecer um conhecimento entre um certo quadro psquico do indivduo e um nvel de conscincia ou de linguagem capaz de compreen-der seu prprio desenvolvimento. Naturalmente, essa produo de conhe-cimento est tambm atravessada por uma multiplicidade de fatores que poderamos chamar, em grandes linhas, fatores psico-socio-econmicos.

    Existiriam estruturas desse desenvolvimento que estariam mais ou menos fadadas a um certo esquecimento traumtico como forma de de-fesa da prpria significao de um determinado evento na constituio da personalidade do indivduo. Toda uma dimenso de conhecimento sobre os modos de operao entre inconscincia e conscincia a partir da configurao psquica do individuo, passa a fazer parte do conhecimento psicolgico. Na verdade, o que Freud desenvolve um conhecimento so-bre a possibilidade de desmascarar certos efeitos de foras afectivas no desenvolvimento psquico de certos indivduos. A esse mtodo de investi-

    Freud estabelecera, na passagem do sc. XIX ao sc. XX, as bases para o conhecimento do inconsciente entendido como verdadeira dimenso das relaes de afeco no homem. O conhecimento so-bre o desenvolvimento psquico humano estaria da em diante atre-lado a toda uma pesquisa contnua da funo do desenvolvimento da sexualidade junto aos ritmos afetivos que o ser humano desen-volveria desde seu nascimento. Como uma espcie de escritura afectiva dimensionada a partir do inconsciente e funcionalizada na construo de modos de comportamento mais ou menos condizen-tes com certas estruturas afectivas dadas a partir de processos ou fa-ses do desenvolvimento psquico, Freud desenvolve uma verdadeira revoluo no conhecimento a partir de uma leitura do inconsciente interpretado enquanto estrutura arquetpica fundamental.

    Saiba mais sobre o conceito de arqutipo visitando a p-gina http://es.wikipedia.org/

    wiki/Arquetipo

  • A narrao em primeira pessoa

    23

    Captulo 02

    gao e de interpretao das configuraes subjetivas dadas na relao do inconsciente e do consciente se nomeara de psicanlise.

    As anotaes que acabamos de fazer sobre Freud procuram apenas situar o acontecimento cientfico das investigaes freudianas no plano de configurao da Literatura Ocidental do sculo XX. Diversos sero os herdeiros e crticos da obra de Freud como, por exemplo, para citar apenas dois nomes, Carl Jung e Jacques Lacan, este ltimo sendo aquele que desenvolve a idia de um inconsciente estruturado como linguagem.

    Na verdade, a obra de Freud, por sua vasta dimenso e alcance epistemolgico atravessar como um todo praticamente todas as re-as do conhecimento humano. A literatura jamais ser a mesma aps o advento da psicanlise, pois de algum modo a escritura literria pode ser pensada como verdadeiro trabalho de interpenetrao e desdobra-mento da linguagem pensada, a partir desse momento, como dimenso de exposio e retraimento de foras tanto afectivas quanto perceptivas da realidade. A literatura no sculo XX, de um modo ou de outro, se far escritura de campos de subjetividade por meio de uma abordagem ficcional, porm cada vez mais impulsionada por um desejo autobio-grfico que, em ltima instncia, no revelar jamais um Eu verda-deiro do escritor, mas uma gama enorme de relaes ou de construes subjetivas que partem da subjetivizao ou ficcionalizao desse Eu destinao figurativa, descritiva e narrativa de um Ele. Este ser a instncia de diferena absoluta encarnada como Outro, como o fora de mim, aquele que no sou, ou seja, dimenso de negatividade ou de con-traponto com a possibilidade de construo de identidade do sujeito.

    Para saber mais sobre Carl Jung acesse: http://www.psicomundo.org/jung/

    O site http://es.wikipedia.org/wiki/Jacques_Lacan lhe ajuda-r a obter mais informao sobre Jacques Lacan

    A propsito dessa aparente fora identitria, a litera-tura do sc. XX ir pouco a pouco e de forma sutil, a um s tempo temtica e semanticamente elaborada, mostrar que ao mesmo tem-po em que um Eu fictcio atravessado por questes autobiogrficas, ele se re-mete a si mesmo ou aos ou-tros a sua volta a partir da explorao dos meandros muitas vezes caticos de sua subjetividade. Essa sub-jetividade j no ser a de um sujeito determinado por uma analogia biogrfica, mas declarar a verdadeira complexidade de um mundo atravessado por questes to densas quanto a prpria dimenso do inconsciente em sua relao indissocivel com o que entendemos por conscincia. nesse ponto brumoso, onde se cruzam as questes filosficas, ti-cas e estticas, que nosso tempo procura estabelecer os nexos possveis de enten-dimento e onde procuramos observar, tambm, como a literatura ai se apresenta.

  • Unidade BA dessacralizao da obra de arte

    Walter Benjamin

  • A dessacralizao da obra de arte

    27

    Captulo 03

    3 A dessacralizao da obra de arte

    Neste capitulo, veremos como a arte, no estando mais associada valora-o de um carter nico e sagrado, passa a ser considerada em relao ao seu valor de comrcio, de exposio, de troca e de uso. As transformaes tcnicas e materiais que passam a re-fundar a prpria compreenso do mundo esto tambm relacionadas com uma transformao da signifi-cao simblica e sociolgica que a arte traduz como meio singular de interpretao histrica.

    3.1 Retomando algumas questes da unidade anterior

    Tentaremos, agora, resumir o que delineamos at aqui como eixo crtico para se pensar o complexo e amplo tema de nossa disciplina: Literatura Ocidental do sculo XX. No se poderia deixar de observar a complexidade quantitativa e qualitativa de um corpus que compreen-de um sculo absolutamente conturbado por sua variedade de fatos e a emergncia de toda uma indstria de reproduo tcnica que transfor-ma e multiplica vertiginosamente a obra de arte e a prpria produo literria. Lembremos o papel da fotografia e do cinema como funda-mentais em relao s influncias tcnicas e estticas que tero sobre a literatura. Lembremos, tambm, a complexidade do contexto histrico e poltico da passagem do sc. XIX ao sc. XX, marcado por rduas lutas sociais e a formao das ideologias social nacionalistas que, junto ao acontecimento traumtico das duas grandes guerras, na primeira meta-de do sculo XX, puseram a nu uma srie de outras problemticas hist-ricas e culturais profundas que sero tematizadas a partir de configura-es estticas variadas nas obras literrias que trataremos mais adiante.

    A noo de corpus se refere ao material documental e bi-bliogrfico relacionado a um determinado tema de pesqui-sa e que corresponde sempre a uma escolha metodolgica que exige a delimitao de uma hiptese de trabalho cujo desenvolvimento tenta responder a determinadas questes.

  • Literatura Ocidental II

    28

    Verificada a amplitude do corpus literrio do sculo XX, determi-namos, ento, como eixo organizador de anlise da Literatura Ocidental desse sculo, a passagem de uma estrutura narrativa mimtica baseada no uso da 3 pessoa pelo narrador, s estruturas e modos de descrio narrativa em 1 pessoa. Esse fenmeno estabelece uma experincia de explorao subjetiva do narrador que poderamos compreender como a entrada em uma dimenso subjetivante e uma valorizao da cena autobiogrfica da literatura do sc. XX.

    Em ltima anlise, essa dimenso autobiogrfica da literatura ser tambm a abertura da narrativa a um desenvolvimento maior de suas prprias possibilidades formais e temticas de contextualizao crti-ca, esttica e histrica do sculo XX. O desdobramento da investigao subjetiva elaborada pelo narrador em 1 pessoa no significa de forma alguma - e preciso que isso fique claro - a eliminao do uso discursi-vo de um narrador em 3 pessoa no desenvolvimento da literatura, mas sim o deslocamento do foco narrativo a uma instncia de subjetivizao que passa a elaborar de outro modo a complexidade das questes que atravessam de forma indita a literatura no sc. XX.

    Observado esse quadro de desenvolvimento esttico-formal da li-teratura, configura-se na modernidade.

    Para saber mais sobre o con-ceito de Modernidade, voc pode consultar as seguintes pginas: http://www.merca-

    ba.org/DicPC/M/modernidad.htm e http://es.wikipedia.org/

    wiki/Modernidad

    O conceito de modernidade chave para a compreenso da Lite-ratura Ocidental do sc. XX. Em linhas muitas gerais, poderamos marcar alguns traos descritivos do que se poderia chamar moder-nidade: A) Momento histrico mais ou menos delimitado entre a revoluo francesa e a primeira metade do sculo XX. B) Essa cir-cunscrio histrica e cronolgica deve servir apenas para delimi-tar um espao de anlise que se relaciona, em ltima instncia, historia do conhecimento ocidental situado entre o advento do iluminismo e a continuidade da revoluo industrial de fins do s-culo XIX, tambm chamada pelos historiadores segunda e terceira revolues industriais. C) Em termos filosficos, a modernidade se caracteriza como um amplo movimento de idias que elabora uma

  • A dessacralizao da obra de arte

    29

    Captulo 03

    crtica dos modos de pensamento moderno e antigo e que tem como eixo de anlise um entendimento da natureza poltico-social do ho-mem fundado na razo como controladora da sociedade em toda sua extenso. Nesse sentido, a razo antes de crtica dos modos de pensamento moderno e antigo e que tem como eixo de anlise um entendimento da natureza poltico-social do homem fundado na razo como controladora da sociedade em toda sua extenso. Nes-se sentido, a razo antes de tudo, passa a ser imposta como norma fundamental da sociedade. D) A modernidade carrega um sentido particular de crise dos parmetros tericos e histricos, pois em seu sentido mais geral o perodo no qual se desenvolve um pensamen-to que ao mesmo tempo em que situa a razo como guia do homem em direo aos ideais do iluminismo, estampados nos lemas da re-voluo francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade, enfrenta-se com os problemas inerentes ao desenvolvimento histrico e social do prprio mundo ocidental, quando a razo e a tcnica no pude-ram superar inteiramente os desafios de uma sociedade mais justa, ou quando a cincia e as tcnicas que surgem a partir do trabalho da razo como baluarte de uma emancipao social se tornam elas mes-mas, a cincia e a tcnica, formas de dominao e de explorao do homem. Vale lembrar a crtica marxista-socialista da opresso das classes trabalhadoras, do colonialismo e do imperialismo sobre os pases alheios hegemonia capitalista europia. E) No que concerne teoria literria propriamente dita, a questo da modernidade est vinculada, em seu espectro conceitual, produo e ao desenvolvi-mento da literatura do sculo XX como experimentao de modos e de estratgias narrativas e estticas que dem conta da dupla relao complexa de construo da subjetividade desse homem moderno e suas relaes intrnsecas exterioridade do mundo social e pol-tico do qual ele faz parte. Esse movimento apresenta os meios e os temas que a prpria modernidade no deixa de continuar a elaborar como sua singular fora histrica e filosfica, uma postura literria de ficcionalizao do Eu que operar um verdadeiro cruzamento entre as preocupaes estticas e filosficas que engendram enquan-to crise de paradigmas a cena do pensamento contemporneo.

  • Literatura Ocidental II

    30

    3.2 As contribuies tericas de Walter Benjamin

    No poderamos deixar de comentar em alguns pargrafos a im-portncia do ensaio A obra de arte na era da reprodutibilidade tcnica de Walter Benjamim. De fato, esse ensaio tem uma importncia muito grande por trazer uma reflexo acurada sobre as relaes sociolgicas e simblicas que atravessam, na modernidade, o sentido da obra de arte na passagem do sculo XIX ao sculo XX. Vimos anteriormente como a fotografia e o cinema representaram uma transformao importante nas formas de representao das artes plsticas e como, j antes, o mo-vimento impressionista passara a representar o real a partir de outros modos de interpretao da luz e do movimento.

    Benjamim, em seu ensaio, observa que com o advento de novas tecnologias e o surgimento de uma cultura baseada na reproduo tc-nica de produtos e bens de consumo, ocorrer uma transformao no conceito de obra de arte. A dia central do ensaio uma crtica a uma determinada evoluo e derrocada do conceito de aura na obra de arte. Com efeito, para Benjamim, a obra de arte operaria uma significao profunda relacionada com a idia do sagrado e do divino desde a pr--histria. Uma certa aura pairaria sobre a obra de arte, implicando nes-ta uma relao especfica de poder vinculada s classes dominantes e aos modos como certas funes simblicas so operadas na relao do artista com a obra e com o meio poltico e econmico que envolve a produo artstica. O carter nico da obra de arte remeteria a um certo ideal de poder das classes que poderiam ter acesso ou proximidade s obras que em sua caracterizao profunda continuavam a emitir uma espcie de aura sagrada. Com o advento dos meios de reproduo de massa como na indstria maquinizada e a produo de imagens em s-rie como ocorre com a tcnica fotogrfica, esse carter de unicidade da obra se torna relativo.

    Essas relaes de reproduo tcnica a partir do fim do sculo XIX tero papel fundamental na queda de uma idia sagrada da obra de arte que Benjamim desenvolve junto obra de Charles Baudelaire,

    Para saber sobre Walter Benjamin, acesse: http://www.epdlp.com/escritor.

    php?id=1461 e http://www.infoamerica.org/teoria/benja-

    min1.htm

    Para saber sobre este impor-tante poeta e crtico francs, acesse: http://www.baudelai-

    re.galeon.com/

  • A dessacralizao da obra de arte

    31

    Captulo 03

    notadamente em relao ao poema La perte daureole (A perda da aura) publicado originalmente em Spleen de Paris, em 1862, no qual o poe-ta francs descreve as transformaes do meio urbano na cidade como ressonncias incontornveis de transformaes no prprio trabalho de interpretao potica elaborado pelo artista.

    Em resumo, para Benjamim, uma certa idia de arte enquanto por-tadora de uma aura simblica transformada em sua significao his-trica a partir do momento em que a arte no estando mais associada valorao de um carter nico e sagrado, passa a ser considerada em relao ao seu valor de comrcio, de exposio, de troca e de uso. As transformaes tcnicas e materiais que passam a re-fundar a prpria compreenso do mundo esto tambm relacionadas com uma transfor-mao da significao simblica e sociolgica que a arte traduz como meio singular de interpretao histrica.

    Em ltima anlise, poderemos, ento, pensar o tema da Literatura Ocidental no sculo XX a partir da leitura desse fundamental ensaio de Walter Benjamin, A obra de arte na era da reprodutibilidade tcnica.

    Diramos, para finalizar, que o ensaio de Benjamin pode ser lido como uma reflexo tributria de uma analtica dos meios de produo tcnicos e econmicos associada a uma profunda compreenso sociol-gica da arte enquanto atividade material e simblica a um s tempo e que informa por sua experincia representativa e performativa da realidade, a possibilidade de uma compreenso dinmica do desenvolvimento his-trico do ocidente, contextualizando um verdadeiro impasse poltico e cultural, representado pelo advento das duas grandes guerras mundiais e que marcam, de forma peremptria, todo o sculo XX. O ensaio de Benjamin trata, essencialmente, a discusso crtica do que poderamos chamar anlise histrico-sociolgica do advento da cultura de massas.

    Finalmente, do contexto do surgimento das massas populares proletrias e da constituio das multides, ou seja, do contexto de emergncia de uma dimenso do anonimato e do controle estatstico da populao pelo estado, que emerge como advento de uma nova etapa

    Figura 3 - Charles Baudelaire

    Voc poder ler a ntegra deste ensaio de Benjamin em espanhol na pgina eletrni-ca que segue e que tambm contm, em formato eletr-nico, alm de outros textos do filsofo, outros importan-tes textos de vrios outros filsofos e crticos reconhe-cidos historicamente neste tema fascinante da arte e de suas relaes com a hist-ria, a sociedade, a filosofia e a cultura no sculo XX: http://tijuana-artes.blogspot.com/2005/03/el-arte-en-la--era-de-la-reproduccion.html

  • Literatura Ocidental II

    32

    de industrializao e da constituio de ideologias de mercado voltadas para a produo e o controle do consumo (qualquer consumo, inclusive o consumo esttico) pelas multides, de que trata, em ltima anlise, o ensaio de Benjamin.

    Podemos perceber, nesse sentido, a partir da reflexo benjaminia-na, o grau de importncia que se estabelece entre uma compreenso sociolgica do contexto poltico e econmico, na primeira metade do sculo XX e o tema do estudo da literatura nesse incio de sculo. A constituio de modos diferentes de composio narrativa que se desen-volve de forma diversificada na literatura desse perodo se relaciona no apenas com uma vontade de inovao estilstica ou esttica por parte dos autores e artistas, mas, sobretudo, impe-se, gradativamente, como verdadeira necessidade crtica perante um mundo que emerge pleno de contradies de ordem poltica e econmica.

    3. 3 O narrador

    Ao lado de A obra de arte na era de sua reprodutibilidade tcnica, podemos situar um outro importante ensaio de Benjamin: O narrador. De fato, esse ensaio escrito no mesmo ano (1936) que o ensaio sobre a obra de arte, uma reflexo que tem como mrito estabelecer nexos profundos entre a atividade narrativa e as transformaes polticas, tc-nicas e sociais que passam a descrever o mundo no sculo XX. Esses nexos so fundamentais para podermos pensar os modos de construo de estratgias narrativas cada vez mais focadas numa fragmentao do sujeito enquanto entidade de papel, que elabora seu prprio papel fic-cional como narrador, a meio caminho entre a ficcionalidade que o real empreende ao ser recortado em sua complexidade e a realidade da fico enquanto processo de experimentao esttica.

    Para Benjamin, h uma relao muito estreita entre a atividade de narrar enquanto fato imemorial e uma perda da experincia dessa mesma atividade no seio da sociedade moderna. Na verdade, Benjamin coloca essa perda de experincia como perda da capacidade de troca

    A leitura de O narrador fun-damental para a compreen-

    so das sutilezas e dos desen-volvimentos de uma reflexo

    sobre o papel da estrutura da narrao e de suas funes na histria da literatura do sculo XX. Voc encontrar

    o ensaio na seguinte pgina: http://tijuana-artes.blogspot.

    com/2005/03/el-narrador.html

  • A dessacralizao da obra de arte

    33

    Captulo 03

    ou intercmbio de experincias. Essa perda da capacidade de troca de experincia resultado de um desenvolvimento da tcnica e da estru-tura econmica capitalista bem como, num sentido mais particular, re-sultado do verdadeiro trauma (individual e coletivo) que a experincia de guerra mundial, apoiada por tcnicas militares avassaladoras (uso do avio, de novos explosivos, de bombas qumicas, etc), deixara como herana. Por outro lado, a antiga tica dos combates militares passa a ser substituda por uma estratgica e ttica de guerra que transforma a prpria lgica do combate que existia at ento.

    O homem que retornava da guerra, em lugar de ter muitas experi-ncias para contar, retornava emudecido e traumatizado. A radicaliza-o das transformaes que os avanos e o desenvolvimento da tcnica - que se mostram de forma traumtica j na 1 guerra mundial trou-xeram, transformar a atividade narrativa que se conhecia at ento. A experincia da narrativa oral, ou seja, da capacidade de narrar que se desenvolvia a partir do dizer e da fala entre os indivduos de uma comunidade e da consequente transmisso de conhecimentos, conse-lhos e experincias entre eles passa por uma profunda transformao e desvalorizao. Pois, como afirma Benjamin:

    En todos los casos, el que narra es un hombre que tiene consejos

    para el que escucha. Y aunque hoy el saber dar consejo nos suene

    pasado de moda, eso se debe a la circunstancia de una menguan-

    te comunicabilidad de la experiencia. Consecuentemente, estamos

    desasistidos de consejo tanto en lo que nos concierne a nosotros

    mismos como a los dems. El consejo no es tanto la respuesta a

    una cuestin como una propuesta referida a la continuacin de una

    historia en curso. Para procurrnoslo, sera ante todo necesario ser

    capaces de narrarla. (Sin contar con que el ser humano slo se abre

    a un consejo en la medida en que es capaz de articular su situacin

    en palabras.) (Benjamin: 1936, IV Cf hiperlink)

    Essa mudana que passa a ser percebida na experincia de narrar no se remete de forma nenhuma a uma decadncia da atividade nar-rativa e no se limita a ser pensada como fenmeno moderno, ela faz

  • Literatura Ocidental II

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    parte de toda uma srie de transformaes materiais profundas que po-dem ser situadas historicamente e que tem nessa mesma historicidade sua capacidade de ser pensada como complexo de relaes tanto mate-riais e tcnicas como simblicas e ideolgicas. Essas transformaes em ltima instncia iro deslocar a experincia da narrao oral para ou-tras formas de narrar, seja a partir de suas mudana em nvel simblico seja a partir das novas tecnologias materiais de reproduo que advm dos novos processos produtivos baseados na reprodutibilidade tcnica - lembremos do desenvolvimento da fotografia e do cinema como ver-dadeiros baluartes da nova industrializao.

    Essa mudana no estatuto da narrao no comeo do sculo XX no implica uma destituio total das formas tradicionais de narrao, mas sim numa mudana de suas formas, de seus modos e de suas estra-tgias narrativas. o caso do surgimento do romance, que Benjamin coloca como exemplo.

    De fato, o romance depende, em certa medida, do desenvolvi-mento de uma imprensa baseada na reprodutibilidade e de exigncias materiais, ou de suporte, muito diferentes daquelas que sustentam a existncia do gnero pico e que se apresenta, como vimos, atrelado s formas de intercmbio do patrimnio de uma experincia de oralidade na forma do conselho.

    Na verdade, o romance moderno representa a passagem de uma forma de narrao baseada na experincia de intercmbio das prticas narrativas coletivas, experincia narrativa baseada na segregao do in-divduo. O narrador do romance narra experincias em sua origem base-adas em sua compreenso j apartada do sentido de narrao fundada na oralidade e na prtica de uma experincia compartilhada como oralidade.

    A anlise de Benjamin em O narrador a respeito das transforma-es da experincia narrativa , sem dvida, uma das melhores reflexes sobre um tema que abarca, para alm dos temas relacionados literatu-ra do sc. XX, a amplitude de uma teoria geral da comunicao. Nesse sentido, o que devemos reter a partir dessa importante reflexo se refere

  • A dessacralizao da obra de arte

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    Captulo 03

    ao relacionado ao paradigma de uma passagem de uma estrutura nar-rativa calcada em um narrador em 3 pessoa, estabelecida no romance mimtico do sc. XIX, aos desenvolvimentos diversificados por todo o sc. XX de outras estruturas narrativas baseadas numa introspeco e numa transformao muitas vezes radical do modelo mimtico.

    Nesse sentido, ressaltaremos aqui, em relao ao ensaio de Benja-min, sua aguda percepo sobre a mudana da forma de articulao de uma narrativa pica, baseada na oralidade e uma narrativa que migra na modernidade, chegando, j no sculo XX, explorao de uma di-menso psicolgica e explicativa sobre os fatos ou os ncleos de sen-tido da narrativa. Desse modo, aquilo que marca a contundncia de uma narrativa baseada numa experincia de oralidade sua estrutura bsica subtrada de toda especulao explicativa e ou psicologizante. Como afirma Benjamin:

    Nada puede encomendar las historias a la memoria con mayor insisten-

    cia, que la continente concisin que las sustrae del anlisis psicolgico.

    Y cuanto ms natural sea esa renuncia a matizaciones psicolgicas por

    parte del narrador, tanto mayor la expectativa de aqulla de encontrar

    un lugar en la memoria del oyente, y con mayor gusto, tarde o tempra-

    no, ste la volver, a su vez, a narrar. (Benjamin: 1936, VIII, Cf hiperlink)

    O narrador que emerge na literatura do sculo XX a figura que corresponde ao contraponto mais expressivo do narrador oral. Para Ben-jamin, uma das garantias da transmissibilidade das histrias narradas es-taria fundamentada na subtrao de desdobramentos psicolgicos, o que, contrariamente, elevado mxima potncia pelo narrador em 1 pessoa.

    Esses fatos evocados na reflexo de Benjamin serviro para situar o contexto no qual se insere nossa reflexo sobre a Literatura Ocidental no sculo XX. Veremos como cada vez mais haver uma preocupao, por parte dos escritores do sculo XX, de aceder a outras formas e modos de se remeter ao tema da experincia narrativa e que em muitos casos, ao in-vs de ocorrer a narrao de acontecimentos ao modo de uma narrativa tradicional, essa nova fase literria e ficcional (muitas vezes autobiogr-

  • Literatura Ocidental II

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    fica ou que toma como referncia operaes textuais da autobiografia), passa a construir universos literrios onde ocorre uma experincia de fragmentao e despersonalizao do sujeito encarnado na figura mvel e paradoxal do narrador presente na literatura desse sculo.

  • Unidade CEm busca de uma nova temporalidade ficcional

  • A experimentao narrativa

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    Captulo 04

    4 A experimentao narrativa

    Neste captulo, observaremos que o monlogo interior seria a marca da prpria emergncia de uma estratgia de valorizao da experincia tem-poral subjetiva. Essa conduo verticalizante da narrativa em torno a um Eu que busca narrar o mundo do ponto de vista de sua experincia singular, opera em contraponto horizontalidade da experincia de su-cesso temporal da histria narrada, a qual levada a cabo pelo romance mimtico durante o sculo XIX.

    4.1 Em busca de uma nova temporalidade ficcional

    Devemos ter em mente, quanto ao estatuto da narrativa do sculo XX e especificamente, quanto s transformaes na estrutura narrativa do romance nesse sculo, que a passagem de uma narrao da 3 pessoa para a 1 pessoa carrega consigo, como lei geral da narrativa romanesca, a questo do tempo e do espao como categorias fundamentais.

    Poderamos dizer que a temporalidade de uma narrativa passa ne-cessariamente pela conjugao das dimenses de Tempo e de Espao modalizadas por estratgias narrativas que comporo a histria narrada.

    Pode-se observar, em alguns casos, que a histria narrada - vale dizer, o assunto contado numa sucesso de acontecimentos no interior do ro-mance sofre, pouco a pouco, um processo de perda de sua fora ao ser diluda pela prpria experincia narrativa, concentrada muitas vezes numa experincia de subjetivao do narrador e levada a cabo por uma preocu-pao em narrar em 1 pessoa. A histria a ser contada, ento, passa a ser relativizada por outras preocupaes que passam a ocupar um papel pri-vilegiado entre os narradores do sculo XX tais como a temtica e a forma daquilo que ser narrado. Desse modo, tambm uma nova temporalidade necessariamente se propaga como condio da experincia narrativa.

  • Literatura Ocidental II

    40

    Muitos crticos concordam em afirmar que o monlogo interior, que surge de forma elaborada em obras como as de James Joyce e de Virginia Woolf, dentre outros, a marca da prpria emergncia de uma estratgia de valorizao da experincia temporal subjetiva. Essa conduo verti-calizante da narrativa em torno a um Eu que busca narrar o mundo do ponto de vista de sua experincia singular, opera em contraponto horizontalidade da experincia de sucesso temporal da histria narra-da, a qual levada a cabo pelo romance mimtico durante o sculo XIX.

    O monlogo interior, ou seja, os momentos da narrativa que surgem com a elaborao, no sculo XX, de estratgias de narrao em primeira pessoa, pode ser pensado como espao prprio ao desenvolvimento do tempo em sua multiplicidade no linear.

    A experincia temporal que temos em nossa vida cotidiana mar-cada por uma certa abstrao em relao a uma linha do tempo. Pode-mos nos lembrar de experincias que vivemos ontem ao mesmo tem-po em que projetamos e esperamos as experincias para amanh. Esse posicionamento, hoje, numa presena mais ou menos estvel e nunca absoluta o que, entretanto, faz-me conceber a possibilidade da lem-brana das experincias passadas e a esperana da continuidade dessas experincias no amanh. Podemos nos esforar para retraar cronolo-gicamente as experincias que tivemos no passado, mas sabemos que de algum modo h uma srie de intercalaes ou intruses de outras experincias entre as aes que rememoramos a partir de um presente que no deixa de se mover. Inclusive, todas as esperanas que temos no futuro e que so projetadas a partir de nossos desejos momentneos atravessam essa experincia de rememorao. Essa posio nunca es-ttica do presente o que caracterizaria a complexidade da experincia temporal em nossa vida cotidiana. No entanto, a experincia de tem-poralidade ficcional oferecida pela literatura deve ser entendida como uma estruturao estratgica de construo de linguagem diferente de nossa experincia cotidiana, pelo fato de que sua elaborao se d fora do encadeamento temporal que nos atravessa em tempo real. Mas, de algum modo, a relativizao do tempo enquanto flecha abstrata perma-nece atravessando a construo ficcional.

  • A experimentao narrativa

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    Captulo 04

    Poderamos afirmar, junto a Henri Godard, que de um modo geral a experincia narrativa do sculo XX procura encontrar uma certa ex-perincia do presente. Essa experincia do presente se refere ao que di-zamos acima sobre a abstrao e o sentido de temporalidade em nossa vida cotidiana. Aquele espao onde nos posicionamos sempre mais ou menos em relao lembrana ou ao desejo e aos projetos futuros, na verdade entre essas duas direes que de algum modo so irredutveis a esse mesmo presente que escoa entre os instantes.

    Henri Godard afirmar, antes de descrever a evoluo das estratgias de temporalidade do romance, que a questo bsica da temporalidade li-near do romance mimtico no sculo XIX foi a de se criar um tempo outro que aquele que ns vivemos (GODARD: 2006, p. 248), mas o qual estava relacionado necessidade da narrativa de se submeter ela mesma prpria lei do tempo que a sucesso (GODARD: 2006, p. 248).

    Ora, a construo de outro tempo ficcional pressupe a renncia ao tempo prprio de vivncia cotidiana, este tempo que tambm se ba-seia numa abstrao mais ou menos eficiente sobre sua sucesso, visto que somos atravessados por lembranas e esperanas oriundas de uma temporalidade complexa que pomos a prova cotidianamente, seja em relao ao passado ou ao futuro.

    O romance mimtico do sculo XIX forjara uma concepo de temporalidade que se estabelecera com a fora de uma evidncia. Coube s experincias narrativas modernistas e contemporneas o pa-pel de experimentao e de aguda crtica a esse modelo bem sucedido de temporalidade, baseado na construo de uma iluso retrica de um narrador onisciente que acabara por se camuflar em seu prprio modelo perspectivo e em suas estratgias descritivas baseadas numa temporalidade linear e sucessiva.

    O efeito de temporalidade que experimentamos numa obra como Em busca do tempo perdido de Proust pode ser pensado como o de-sencadeamento de novas experincias ficcionais postas em prtica pelo romance no sculo XX.

  • Literatura Ocidental II

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    Proust dar um passo fundamental para uma nova experincia de temporalidade da narrativa ocidental ao iniciar seu grande romance a partir da construo de sries temporais que iriam ser relacionadas umas s outras durante a prpria experincia de narrativa que ele colo-cava em prtica. Assim, essas sries, que so, por exemplo, as experin-cias de sono, a descrio do espao do quarto e os momentos em que o narrador desperta e rememora cenas e experincias passadas se repetem durante o romance, criando uma rede de relaes retrospectivas que servem para a elaborao de uma outra temporalidade diferente da su-cesso lgica e linear dos romances mimticos do sculo XIX.

    Na obra de Proust, h uma relao lgica, mas no necessariamente linear entre as sries e que pode ser conectada em diferentes momentos da longa narrativa. A experincia do tempo na obra de Proust pode ser pensada como uma verdadeira rede de conexes entre imagens ou sries de significantes, que se reportam umas s outras a partir de seus elemen-tos dispersos pelo romance. Os quartos por onde passa o narrador prous-tiano, sero os espaos onde uma temporalidade no linear pode entrar em jogo e onde a experincia do sono e do despertar exercem uma relao direta na construo de outra estratgia de sucesso temporal da histria.

    Depois de Proust haver muitas outras experincias de construo ficcional de temporalidades que se preocuparo de uma forma ou de outra em superar os modelos de temporalidade mimtica estabelecidos durante o sculo XIX. Na Frana, mesmo a inovadora narrativa prous-tiana ser alvo de crticas, notadamente e a principio, dos surrealistas, como Andr Breton, Michel Leiris, Antonin Artaud, Paul Eluard, Jo-seph Delteil, Louis Aragon, Philippe Soupault, dentre outros que radi-calizariam a experincia literria de narrao atravs da construo de narradores que cada vez mais transgrediriam os modos de constitui-o do tempo da histria bem como relativizariam sua prpria posio identitria como sujeito.

    Assistiremos cada vez mais - depois dos marcos de surgimento da narrativa de Proust, bem como das consagradas obras em lngua inglesa de James Joyce e de Virginia Woolf - ao surgimento de experimentaes

    Voc poder saber mais so-bre esses autores na seguin-te pgina: http://ar.geocities.com/vanguardiasliterarias/autoressurrealismo.htm

  • A experimentao narrativa

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    Captulo 04

    narrativas que levaro a uma radicalizao da experincia do tempo e do espao que faro do narrador um paradoxal protagonista da experi-ncia narrativa, justamente por tornar-se uma presena cada vez mais forte em sua posio discursiva, porm, fragmentado e cindido.

    O monlogo interior, como brevemente exposto e que James Joyce e Virginia Woolf desenvolvem magistralmente, no incio do sculo XX, tornar-se- - a partir do desdobramento esttico que possibilitam as vanguardas artsticas (dadasmo, surrealismo, etc.) uma estratgia fundamental de contestao do romance mimtico do sculo XIX. Isso porque no monlogo interior que se cruza uma srie de questes de ordem filosfica e esttica.

    A respeito da constituio de uma nova temporalidade ficcional na literatura do sculo XX - ressaltando a quantidade, a pluralidade e a singularidade de suas experincias literrias - poderamos dizer que na construo de uma temporalidade constituda como descrio intersubjetiva de estados de percepo hbridos, sugestivos, deliran-tes, hipnticos, angustiosos ou onricos que uma experincia limite de existncia (esttica ou existencial) pode ter lugar num sculo marca-do pelas duas grandes guerras mundiais. Essa experincia limite seria fruto da prpria realidade material, tcnica e poltica que o tipo de conhecimento acumulado nos ltimos 150 anos pde fazer emergir como verdadeiro abismo de contradies e paradoxos, os quais o scu-lo XX narra como experincia histrica e literria. Trata-se no apenas de uma experincia de importantes avanos tcnicos e cientficos e de grandes descobertas, mas tambm, da traumtica vivncia de suas guerras e genocdios.

    A representao de um narrador sensvel s conturbaes exis-tenciais, s angustias, s inseguranas e desestabilizao emocional decorrentes desse momento histrico e que advm, tambm, de uma longa transformao histrica, material e ideolgica da literatura pode ser percebida como emergncia j no fim do sculo XIX. No final desse sculo, j podemos observar diversas estratgias discursivas que se con-trapem figura estvel de um narrador em 3 pessoa, exemplificado

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    aqui na forma paradigmtica de uma literatura mimtica. A literatura de escritores como Balzac e Flaubert, entre outros, exemplo dessa mu-dana. Podemos entrever na literatura do sculo XX o desdobramento de uma conscincia histrica e esttica que passa a aceder, atravs da experincia literria de um narrador em 1 pessoa, a modos narrativos que exploram o carter anacrnico da experincia de durao do tem-po (uma verticalizao de uma experincia subjetiva do tempo). Tal experincia relativiza a estabilidade concebida por teses que defendem um desenvolvimento linear e regular da histria nos moldes de uma narrao mimtica que procurou, durante todo o seu perodo de rei-nado, pelo menos durante todo o sculo XIX, afirmar a iluso retrica de uma histria e de uma vida dos personagens descolada da vida e da temporalidade ftica.

    Foi do que falamos at agora, em relao s diversas estratgias nar-rativas inauguradas no comeo do sculo XX e que deslocam o discurso do narrador a uma construo da histria e dos personagens que pe em cheque a iluso retrica mimtica operada pelo paradigma narrati-vo do sculo XIX. Mais importante que a percepo concreta do uso da primeira pessoa pelo narrador da Literatura Ocidental do sculo XX, ser a compreenso da representao do narrador como centro da re-flexo da prpria atividade literria e das relaes que essa experincia especfica tece com a reflexo existencial e filosfica.

    Veremos que em Samuel Beckett, por exemplo, que produz desde a dcada de 1930 uma literatura sobre a qual muitos crticos concordam em destacar a sua densidade experimental, psicolgica e filosfica como literatura limite em sua experincia esttica, haver o uso da 3 pessoa pelo narrador. Em Bande e Sarabande e Murph, textos iniciais de sua obra, o narrador penetra de tal modo irnico e com tal intensidade de erudio filosfica em questes existenciais que, ao invs dessa narrati-va estabelecer uma iluso mimtica da histria e dos personagens, ela desperta uma grande desconfiana no leitor a respeito da histria e dos personagens que a se apresentam e que praticamente so manipulados como meras marionetes pelo narrador.

  • A experimentao narrativa

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    Captulo 04

    Devemos entender que se bem destacamos o tratamento privile-giado que recebeu o uso da 1a pessoa no discurso do narrador no per-odo literrio em estudo, no devemos pensar que o uso da 3a pessoa foi totalmente esquecido. O destaque dado passagem da 3a pessoa para a 1a pessoa se entende como um dos paradigmas que nos permite orga-nizar as informaes com fins didticos. O paradigma da passagem de estratgias narrativas mimticas do sculo XIX a uma experincia de temporalidade e de subjetivizao da experincia vivida do narrador no sculo XX, deve ser observado, fundamentalmente, porque se trata de um narrador que permite a representao da instabilidade, da descon-fiana, da perplexidade e das atribulaes existncias do homem desse sculo conflitos que esse narrador passa a performar.

    Utiliza-se o termo performar no sentido de um narrador que expe suas crises, atribulaes e conflitos dentro de uma perspectiva de ex-plorao existencial, de indagao e busca pelo sentido no somente de sua vida singular, mas tambm do ser. Nesse procedimento, tal prtica narrativa convoca um leitor quase cmplice, participante, junto com ele, de sua crise existencial. De fato, o narrador que passamos a constatar se caracteriza por um tipo de crise que poderamos afirmar sendo de ordem ontolgica e fenomenolgica.

    Essas estratgias mimticas se constituam nas formas de descrio do espao e do tempo e que tendiam a naturalizar a maneira de repre-sentao do ambiente romanesco baseada na constituio do espao e do

    Leia sobre Ontologia em: http://es.wikipedia.org/wiki/Ontologia e sobre Fenomenologia em: http://es.wikipedia.org/wiki/Fenomenolog%C3%Ada.

    Vimos que o desenvolvimento do romance durante o sculo XX est marcado por intensas experimentaes formais e temticas na construo dos relatos e que, de um modo ou de outro, essas construes se debatiam vigorosamente contra um modelo de re-presentao que valorizava uma certa tomada de perspectiva e de posio por parte do narrador, que tendia a se esconder atrs da prpria iluso de representatividade, fruto dessa prpria estratgia.

  • Literatura Ocidental II

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    tempo prprios para serem experimentados e usufrudos pelos persona-gens. Pois bem, veremos que esse narrador onipotente, quase divino cria-dor do espao e do tempo da histria, passa a participar mais ativamente e introspectivamente da histria, questionando o mundo em que vive e, muitas vezes, o prprio procedimento ficcional que o torna possvel. O questionamento dos procedimentos do relato dentro do relato uma das caractersticas de certas experincias narrativas do sculo XX.

    Essa entrada na cena literria por parte desse narrador ferido e traumatizado pelas intensas transformaes do sculo XX, faz-se como performao de estados psquicos e de crises existenciais construdas por meio de estratgias narrativas que expem tais estados como di-logos cruzados, transgresso da ordem temporal, ambiguidade e at contradio naquilo que se narra, etc.

    De uma intensa produo de iluso de representao da realidade no sculo XIX, baseada na descrio realista, passamos a uma verda-deira construo performtica de experincias subjetivas e de um agudo questionamento existencial. Mesmo que em muitas narrativas observe-mos a representao de um narrador em 3a pessoa, poderemos observar, tambm, que este tipo de narrador, por momentos, cede a voz narrativa a personagens que a assumiro, expondo sua subjetividade, certo caos emocional, narrando fatos de modo ambguo, desrespeitando a ordem temporal, etc. Mas com o surgimento desse narrador contemporneo que de forma contundente se institui uma voz hbrida e indiscernvel, lugar opaco e ambguo entre o autor e sua performance literria. Da que a morte do autor que ser proferida por crticos da importncia de Ro-land Barthes e Michel Foucault passar a ser tema dos mais controversos por sua ousadia e pertinncia. O autor passa a ser uma entidade que se funde na ficcionalidade desses personagens narradores contemporneos, atravessados pelas incertezas de um mundo que chega a plurais plats crticos e onde a cincia, a filosofia e a crtica de um modo geral devem se defrontar com as marcas que o desenvolvimento tcnico e as crises polticas e ideolgicas ajudaram a construir.

    Entre aspas obrigatoriamen-te, pois se trata de apenas

    mais um modelo de constru-o representativa do real

    pela linguagem

  • A experimentao narrativa

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    Captulo 04

    As transformaes de ordem material, tcnica e ideolgica do sculo XX sero decisivas para a construo de uma literatura questionadora, crtica e voltada para os paradoxos que constituem a complexidade obje-tiva e subjetiva do homem contemporneo, o que para muitos crticos, e no sem controvrsia, marcaria a passagem para outro perodo histrico, caracterizado por uma certa falncia de toda certeza ideolgica ou de toda possibilidade de constituio de sistemas fortes e coesos de pensamento. Esse momento marca na comunidade acadmica uma srie de debates tericos muito intensos e calorosos e batizado de ps-modernidade.

  • Unidade DAlguns representantes da literatura ocidental do sculo XX

  • A experincia figurativa do tempo e do espao ficcionais

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    Captulo 05

    Introduo

    O quadro geral de uma passagem de um tipo de narrador mimtico ao narrador de algum modo autobiogrfico que passa a relativizar e a fragmen-tar a prpria estrutura narrativa dada no romance, deve apenas constituir uma perspectiva geral de um quadro de desenvolvimento literrio mltiplo e plural que se caracteriza justamente por sua diversificada qualidade esttica.

    Os autores que sero estudados individualmente, na sequncia, nesta disciplina introdutria Literatura Ocidental do sculo XX, re-presentaro apenas uma parte de uma vasta experincia literria a partir do quadro de uma escolha cannica, ou seja, resultado de uma valo-rao esttica e representativa modulada a partir do impacto e de uma certa importncia dada pela fortuna crtica a seus trabalhos.

    De um quadro que comporta um corpus literrio enorme e que ul-trapassaria de longe o espao destinado a nossa disciplina, impe-se a necessidade da escolha de determinados autores e obras que possam representar a Literatura Ocidental do sc. XX. Nesse sentido, neces-srio percebermos que uma histria complexa atravessa tanto os mo-dos quanto a expressividade das formas estticas e retricas de que a literatura se serve ao mesmo tempo em que se desenvolve simblica e materialmente. No outra a mensagem dos dois brilhantes ensaios j estudados de Walter Benjamin: A obra de arte na era da reprodutibili-dade tcnica e O narrador. claro que a sutileza de argumentao e a densidade das observaes do crtico alemo evocam a singular com-plexidade que o estudo da literatura impe, justamente no sentido desta literatura elaborar como verdadeira mquina de linguagem o que, de algum modo, representa a prpria possibilidade material e simblica de uma expresso da cultura no sentido mais amplo do termo.

    Da que para um estudo aprofundado da Literatura Ocidental do sc. XX seja necessrio estar atento a outras disciplinas como a histria, a filosofia e o estudo das artes em geral. A literatura est em dilogo constante com todos os ramos do conhecimento e est justamente nisso sua riqueza e fonte inesgotvel de interesse.

  • Literatura Ocidental II

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    Procurar-se- dar uma introduo ao estudo de cada um dos auto-res selecionados a seguir, abrindo a possibilidade para outras pesquisas individuais que possam ser feitas utilizando materiais, documentos, te-orias e escolas crticas diferentes, para aceder a compreenses cada vez mais elaboradas de pontos de vista diversos sobre a importncia, a qua-lidade esttica ou mesmo o impacto que uma determinada obra possa vir a exercer no mundo da cultura. Alm do mais, no poderemos nos esquecer, como foi dito acima, que esses autores exemplificam uma pos-sibilidade de escolha que neste momento procura criar um certo qua-dro representativo possvel da vasta experincia literria do sc. XX. H muitos outros autores to importantes quanto os que convidamos vocs a conhecer em linhas gerais e que devem ser lidos com tanto interesse quanto os que lhes propomos a seguir.

    Desejamos a todos uma tima leitura e relembramos que uma lei-tura crtica se faz junto com a produo de fichamentos de leitura, o que possibilita tanto o exerccio da escrita compreensiva, ou seja, da construo de uma retrica ou de um estilo pessoal de escritura, quanto um registro de trabalho que possibilite o recurso do retorno a idias e hipteses de trabalho sobre os textos que se deseje analisar criticamente.

    Enfim, o movimento crtico se estabelece justamente no cruzamen-to das leituras tericas e no desenvolvimento de habilidades compreen-sivas que s podem ter xito quando associadas ao conhecimento cada vez mais elaborado de uma experincia de leitura do corpus literrio, este, to vasto quanto o prprio conhecimento humano acumulado no percurso da histria.

  • A experincia figurativa do tempo e do espao ficcionais

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    Captulo 05

    5 A experincia figurativa do tempo e do espao ficcionais

    Neste captulo, voc estudar uma introduo biografia e produo li-terria de Marcel Proust um dos escritores mais representativos da Litera-tura Ocidental do sculo XX. Procurar-se- dar uma introduo ao estudo de sua obra, abrindo a possibilidade para outras pesquisas individuais que possam ser feitas utilizando materiais, documentos, teorias e escolas crticas diferentes, para aceder a compreenses cada vez mais elaboradas de pontos de vista diversos sobre a importncia, a qualidade esttica ou mesmo o im-pacto que uma determinada obra possa vir a exercer no mundo da cultura.

    5. 1 Marcel Proust

    Valentin Louis Georges Eugne Marcel Proust, mais conhecido como Marcel Proust, foi um dos escritores que tendo vivenciado a pas-sagem do sculo XIX para o sculo XX - com a prosperidade e o gla-mour da belle poque, a nostalgia do fin de sicle e a exploso e renovao cultural das vanguardas europias, mais tarde, influenciou fortemente a literatura do sc. XX. Marcel Proust nasceu em Paris, em 10 de Julho de 1871 e faleceu em 18 de novembro de 1922, na mesma cidade. Sua obra principal, la recherche du temps perdu, traduzida para o portugus como Em busca do tempo perdido, composta de sete romances, con-siderada por muitos crticos como uma das obras mais importantes da Literatura Ocidental de todos os tempos.

    Muitos bigrafos narram que Marcel Proust sofreu de asma desde a infncia e que aos nove anos de idade teve uma forte crise respiratria que deixaria marcas profundas em toda a sua vida. Isto porque, com a chegada da primavera e com o ciclo biolgico natural de polinizao das plantas, Proust passaria a viver com o fantasma das crises asmticas pro-vocadas por reaes alrgicas ao plen. Muitas biografias tambm se re

    Para voc poder entender melhor o contexto histrico e cultural que deu as condi-es de possibilidade para que a literatura do sculo XX tivesse as caractersticas que teve, de grande importn-cia dedicar algum tempo pesquisa dos trs momentos culturais que mencionamos como marcos histricos que no podem se desconhecer: a belle poque, o fin de sicle e o surgimento das vanguar-das na Europa.

    Figura 4 - Marcel Proust

  • Literatura Ocidental II

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    ferem ao sofrimento e depresso que se seguiu morte de sua me, em 1905, aps a qual Proust praticamente se isolou da vida social, no nme-ro 102 do Boulevard Haussmann, em Paris e iniciou a escrita de sua obra cume, que seria publicada entre 1913 e 1927, Em busca do tempo perdido.

    J foi mencionada, anteriormente, a importncia que a obra de Proust teve para a literatura do sculo XX. A obra proustiana, ao de-senvolver uma narrativa no apoiada de modo preponderante na trama, privilegiou um trabalho de investigao sobre a experincia figurativa do tempo e do espao ficcionais.

    Muitos crticos concordam em afirmar que a primeira frase do clebre texto de Em busca do tempo perdido: Por muito tempo, eu fui me deitar cedo (...), ao remeter a histria primeira pessoa, mais que contar a histria de vida de um narrador que se lembra de suas experincias, inaugura, na verda-de, a possibilidade de uma nova forma de escritura narrativa desvinculada de um modelo narrativo que chamamos de mimtico. Sem a preocupao com o desenvolvimento conclusivo da intriga, no h um final nessa histria que no seja a abertura mesma de uma nova relao do leitor com essa verdadeira aventura do esprito ao relatar ficcionalmente as diversas faces da experincia dos sentidos, da memria e da reflexo esttica por meio da literatura.

    A experincia do tempo afetivo determinante no sentido de que para Proust o tempo ser descrito a partir de determinados lapsos se assim podemos dizer, momentos nos quais um certo evento, muitas vezes banal, inaugura uma linha de construo temporal que surge ou emerge da relao singularssima da imaginao, da reflexo e da experincia de escritura como elaborao formal e expressiva da memria como fico literria. Assim que se apresenta a famosa cena da Madeleine, na qual uma experincia degustativa de um pedao de bolo molhado numa colher de ch se alia atmosfera que envolve esse momento, dispositi-vando uma longa srie de acontecimentos narrados e que extrapolam completamente sua suposta origem, relacionando esteticamente um mo-mento banal de vivncia construo de toda uma srie de outras expe-rincias que, no fim das contas, sero redobradas e disseminadas sobre a experincia singular primeira, qual no retorna mais.

    Voc pode ler algumas pginas em verso digital do livro do professor Ra-fael Gmez Prez sobre a belle poque no seguinte endereo: http://tinyurl.com/6rll6e7. Sobre o fin de sicle e as vanguardas europias, voc pode ler alguns dados importan-tes nas seguintes pginas: http://es.wikipedia.org/wiki/Fin_de_si%C3%A8cle e http://es.wikipedia.org/wiki/Vanguardismo

  • A experincia figurativa do tempo e do espao ficcionais

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    Captulo 05

    Fonte sem origem determinada, verdadeiro fluxo do tempo que se revelara na distncia de uma memria construda sobre a certeza da-quela presena tnue de felicidade, o prazer indescritvel da experincia temporal produzida pela Madeleine molhada no ch, produziria uma s-rie de outras experincias temporais que, finalmente, jamais alcanariam sua cintilante e dispersiva origem, mas a relanariam adiante numa cons-tante fuga, numa estranha capacidade de descrever essa mesma impos-sibilidade, ou seja, a impossibilidade de retornar a mesma sensao, mas que produzir paradoxalmente outras tantas experincias temporais s quais somente o movimento prprio escritura literria poderia acessar.

    H nesse movimento da literatura o paradoxo que a arte e a crtica no cessaro de pr em evidncia durante todo o sculo XX. Qual seja, o momento no qual se instaura o movimento prprio de coexistncia da busca e da criao de uma experincia limite de temporalidade, ou como diz o prprio Proust, ao descrever pontualmente o teor filosfico de sua obra: Um pouco de tempo em estado puro.

    A busca dessa experincia vivida jamais ser atingida, como o me-taforiza o prprio Proust e, ao contrrio, dever coexistir no mesmo movimento que instaura e cria a experincia pela via dupla da escritura, vale dizer, representao e performao a um s tempo do tecido mvel do vivido. A experincia desse tempo em estado puro ser finalmente o que gerar sua prpria impossibilidade conclusiva ou puramente repre-sentativa. Ali onde o narrador proustiano, mais do que simplesmente representar essa oblqua temporalidade, experimentou no prprio redo-bramento do tempo, como que saltar sobre sua prpria sombra.

    Figura 5 - Reproduo da capa

    Du cte de Chez Swann

    Voc poder encontrar Por el camino de Swann na se-guinte pgina: http://www.librosgratisweb.com/html/proust-marcel/por-el-cami-no-de-swann/index.htm O trecho que reproduzimos corresponde s pginas 38 e 39 desse site, cuja leitu-ra integral recomendamos. Voc pode ter acesso a to-dos os romances que com-pem En busca del tiempo perdido em espanhol na se-guinte pgina: http://www.librosgratisweb.com/au-tores/proust-marcel.html Mas, se preferir, voc pode ter acesso totalidade da obra de Proust em fran-cs a partir do link: http://jydupuis.apinc.org/Proust/index.htm

    Propomos-lhe a leitura de um belo trecho do primeiro romance da srie Em busca do tempo perdido: Du ct de chez Swann. Esse ro-mance foi traduzido ao portugus como A caminho de Swann e ao espanhol como Por el camino de Swann. A seguir, transcrevemos o trecho que gostaramos que voc lesse prestando especial ateno ao desencadeamento da memria e do profundo prazer provocado pelo sabor da Madeleine molhada no ch:

  • Literatura Ocidental II

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    Haca ya muchos aos que no exista para m de Combray ms que el

    escenario y el drama del momento de acostarme, cuando un da de in-

    vierno, al volver a casa, mi madre, viendo que yo tena fro, me propuso

    que tomara, en contra de mi costumbre, una taza de t. Primero dije que

    no; pero luego, sin saber por qu, volv de mi acuerdo. Mand mi madre

    por uno de esos bollos, cortos y abultados, que llaman magdalenas, que

    parece que tienen por molde una valva de concha de peregrino. Y muy

    pronto, abrumado por el triste da que haba pasado y por la perspectiva

    de otro tan melanclico por venir, me llev a los labios unas cucharadas

    de t en el que haba echado un trozo de magdalena. Pero en el mismo

    instante en que aquel trago, con las miga del bollo, toc mi paladar,

    me estremec, fija mi atencin en algo extraordinario que ocurra en mi

    interior. Un placer delicioso me invadi, me aisl, sin nocin de lo que

    lo causaba. Y l me convirti las vicisitudes de la vida en indiferentes,

    sus desastres en inofensivos y su brevedad en ilusoria, todo del mismo

    modo que opera el amor, llenndose de una esencia preciosa; pero, me-

    jor dicho, esa esencia no es que estuviera en m, es que era yo mismo.

    Dej de sentirme mediocre, contingente y mortal. De dnde podra

    venirme aquella alegra tan fuerte? Me daba cuenta de que iba unida al

    sabor del t y del bollo, pero le exceda en, mucho, y no deba de ser de

    la misma naturaleza. De dnde vena y qu significaba? Cmo llegar

    a aprehenderlo? Bebo un segundo trago, que no me dice ms que el

    primero; luego un tercero, que ya me dice un poco menos. Ya es hora de

    pararse, parece que la virtud del brebaje va aminorndose. Ya se ve claro

    que la verdad que yo busco no est en l, sino en m. El brebaje la des-

    pert, pero no sabe cul es y lo nico que puede hacer es repetir inde-

    finidamente, pero cada vez con menos intensidad, ese testimonio que

    no s interpretar y que quiero volver a pedirle dentro de un instante y

    encontrar intacto a mi disposicin para llegar a una aclaracin decisiva.

    Dejo la taza y me vuelvo hacia mi alma. Ella es la que tiene que dar con la

    verdad. Pero cmo? Grave incertidumbre sta, cuando el alma se siente

    superada por s misma, cuando ella, la que busca, es juntamente el pas

    oscuro por donde ha de buscar, sin que le sirva para nada su bagaje.

    Buscar? No slo buscar, crear. Se encuentra ante una cosa que todava

    no existe y a la que ella sola puede dar realidad, y entrarla en el campo

    de su visin. Y otra vez me pregunto: Cul puede ser ese desconocido

  • A experincia figurativa do tempo e do espao ficcionais

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    Captulo 05

    estado que no trae consigo ninguna prueba lgica, sino la evidencia

    de su felicidad, y de su realidad junto a la que se desvanecen todas las

    restantes realidades? Intento hacerlo aparecer de nuevo. Vuelvo con el

    pensamiento al instante en que tom la primera cucharada de t. Y me

    encuentro con el mismo estado, sin ninguna claridad nueva. Pido a mi

    alma un esfuerzo ms; que me traiga otra vez la sensacin fugitiva. Y

    para que nada la estorbe en ese arranque con que va a probar captarla,

    aparta de m todo obstculo, toda idea extraa, y protejo mis odos y

    mi atencin contra los ruidos de la habitacin vecina. Pero como siento

    que se me cansa el alma sin lograr nada, ahora la fuerzo, por el contrario,

    a esa distraccin que antes le negaba, a pensar en otra cosa, a reponerse

    antes de la tentativa supre