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LIVRO XXII Trépidos gamos na carreira os Teucros À sombra dos merlões se refrigeram Do suor e da sede, e os inimigos De escudo sobre os ombros se aproximam. Como atado em grilhões a Heitor a Parca Demora às portas Ceias, e ao Pelides Fala Apolo: Por que te afanas tanto? Cego de fúria, em mim não vês um nume? Olha que és transviado, e os fugitivos Dentro em seguro: um deus matar pretendes?Turvo o herói: Crudelíssimo de todos, Que assim me distraíste! O pó teriam Muitos mordido: a glória me roubaste Salvando aqueles vis, sem me temeres; Mas de ti, se pudesse, eu me vingara.Então voa à cidade, e os passos move Qual vencedor ginete, que soberbo Árdego pelo campo o coche leva. Já nele avista Príamo essa estrela Cão de Órion nomeada, que, nascida No outono, os astros vence em noite bruna Por grande e resplendente, e agoura morbos Contra os homens calores dardejando: Na rapidez seu peito lampejava. Bate o velho na testa, eleva as palmas, Soluça, roga ao filho, que ante as portas Só por Aquiles brama: Heitor, que fazes? Sem auxílio a tal monstro não te oponhas; Longe em forças te excede, e vai matar-te. Oh! Quanto a mim fosse ele aos deuses grato, Que, sendo em breve a cães e abutres cevo, Este meu coração consolaria! Trucidando ou vendendo em longes terras Filhos tantos e tais, privou-me deles; Nem Licaon enxergo e Polidoro, Que Laotoe me pariu formosa e casta: Se estão nos arraiais, com ouro e bronze, De Altes famoso à filha inteiro dote, Os remiremos; se a Plutão baixaram,

LIVRO XXII - Ilíada

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  • LIVRO XXII Trpidos gamos na carreira os Teucros sombra dos merles se refrigeram Do suor e da sede, e os inimigos De escudo sobre os ombros se aproximam. Como atado em grilhes a Heitor a Parca Demora s portas Ceias, e ao Pelides Fala Apolo: Por que te afanas tanto? Cego de fria, em mim no vs um nume? Olha que s transviado, e os fugitivos Dentro em seguro: um deus matar pretendes? Turvo o heri: Crudelssimo de todos, Que assim me distraste! O p teriam Muitos mordido: a glria me roubaste Salvando aqueles vis, sem me temeres; Mas de ti, se pudesse, eu me vingara. Ento voa cidade, e os passos move Qual vencedor ginete, que soberbo rdego pelo campo o coche leva. J nele avista Pramo essa estrela Co de rion nomeada, que, nascida No outono, os astros vence em noite bruna Por grande e resplendente, e agoura morbos Contra os homens calores dardejando: Na rapidez seu peito lampejava. Bate o velho na testa, eleva as palmas, Solua, roga ao filho, que ante as portas S por Aquiles brama: Heitor, que fazes? Sem auxlio a tal monstro no te oponhas; Longe em foras te excede, e vai matar-te. Oh! Quanto a mim fosse ele aos deuses grato, Que, sendo em breve a ces e abutres cevo, Este meu corao consolaria! Trucidando ou vendendo em longes terras Filhos tantos e tais, privou-me deles; Nem Licaon enxergo e Polidoro, Que Laotoe me pariu formosa e casta: Se esto nos arraiais, com ouro e bronze, De Altes famoso filha inteiro dote, Os remiremos; se a Pluto baixaram,

  • Dor minha e da me que os procriamos; Ser breve a do povo, se de Aquiles No te prostra o furor. Entra, meu filho, No lhe ds glria tanta; para esteio De Tria te reserva e das Troianas. Pena h de mim que, so de mente ainda, Sinto no cabo da velhice males Por Jove amontoados: filhos mortos, Filhas cativas, tlamos corruptos, No tropel a esmagarem-se crianas, Noras de rojo em brutas mos profanas, Qui, de alma arrancada a brnzeo fio, Ces ao portal em peas me devorem, Guardas que minha mesa eu nutri mesmo, E em meu sangue apagando a raiva e a gana, Se espojem no vestbulo! Em batalha Jazendo um moo, lhe aparece tudo Ndio e composto; mas, defunto um velho, J de cabea branca e branca barba, De vergonhas mostra, o lacerarem Torpes ces... Oh! Misria das misrias! Ele carpe-se e rasga-se ululando, Sem demover-se Heitor. Hcuba em pranto, Lastimosa do seio a mama tira: Esta respeita, caro, com que eu meiga Teu vagir mitigava; a me to implora, Asila-te, meu filho, desse monstro, A ss no brigues. A matar-te a fera, Nem eu que te gerei, nem tua esposa, No leito funeral te choraremos: Sers perante as naus de ces pastura. A lagrimar os velhos ambos rogam: Mas Heitor inconcusso espera Aquiles, Que agigantado assoma. Ao viandante Se pascida em m grama espreita a cobra, Fica assanhada e a vista acende horrvel A enrolar-se na toca: Heitor no menos, Quedo e fogoso, torre proeminente O escudo apia flgido, e sentido Fala em sua alma grande: Ai! Se entro agora, Mo exprobrar primeiro Polidamas,

  • Que a recolher a gente aconselhou-me, A noite em que aziago alou-se Aquiles. Fora melhor; a pertincia minha Danou do povo a causa! Os nossos temo E as Troianas de peplos roagantes; Ouo em roda: Ei-lo Heitor, que temerrio O exrcito perdeu! Di-lo-o por certo. Mais vale ou triunfar do imano Aquiles, Ou morrer pela ptria em luta honrosa. E se elmo e escudo e lana ao muro encosto, E indo encontr-lo, dar prometo Helena, Motivo desta guerra, e o que Alexandre Nos trouxe em cavas naus, para os Atridas, Para os outros Aqueus o que lio encerra; Que de ancio com firmeza os Teucros jurem Nada ocultar, e dividir ao meio Quanta riqueza esconde a gr cidade... Qu! Deliras, minha alma? Eu suplicante! Sem mais d nem resguardo, a mim sem armas, Qual imbele mulher, h-de imolar-me. Do rochedo e carvalho no tempo De lhe ir falar como donzela e moo, Quando moo e donzela entre si falam. Combater, investir: saiba-se, e presto, A quem o Olmpio agora entrega a palma. Entanto, igual a Marte, avana Aquiles De elmo a nutar, e destra o lenho ingente, O arns brilha em seu peito semelhana De vivo ardente fogo ou sol no eoo. Trmulo Heitor, ao v-lo, as portas larga, Deita a correr; em ps fiado Aquiles, No encalo voa: aor monts imita, Ave a mais lesta, que, ao fugir de esguelha Tmida pomba, acerca-se guinchando Faminto presa, a redobrados chofres. Precipita-se Aquiles, e o Primeo Em susto move rpido os joelhos. Vo, pela estrada ao longo da muralha, Da atalaia ventosa baforeira, E s claras fontes chegam donde bolha O frvido Escamandro: uma flui quente,

  • Como um lar acendido fumegando; No vero mesmo a outra sempre fria, Tanto quanto a saraiva ou neve ou gelo. Ali, na paz que os Dnaos perturbaram, De pedra em largas elegantes pias Cnjuges Teucras e engraadas virgens Roupa e vestes lous lavar soam. Transpem-nas ambos: o que foge bravo, mais bravo o que o segue: no bovina Vtima ou pele, da carreira prmios, Do heri Primeo se disputa a vida. Qual circulando a meta os corredores, Para ganhar-se ou trpode ou cativa, geis galopam nos funreos jogos; Os dois assim de Pramo ante os muros Giram trs vezes. Contemplando-os Jove, Aos mais deuses discursa: Ah! vem meus olhos, Com pesadume, a voltear aflito Varo que, em Prgamo ou cabeos do Ida, Muitas coxas de bois me queima pio, E atrs o Velocpede! Salv-lo Deliberemos se nos cumpre, numes, Ou se antes convir que o dome Aquiles. A Olhicerlea exclama: Onipotente Senhor do raio, Parca j fadado Livras um mortal! Seja; mas todos No to aprovamos. Respondeu-lhe o Padre: Inda em nada assentei, sossega, filha, Quero aprazer-te, ampla licena tenhas. Isto, por si disputa, incita a Palas, Que do Olimpo se arroja, enquanto Aquiles Urge tenaz a Heitor. Se, em monte ou vale, Do covil a cervato ergue o sabujo, A estremecer na moita ele se oculta, E o sabujo o rasteja at que o acha; Tal na trilha de Heitor ia o Pelides. Sempre que s torres e s Dardnias portas, Cujos tiros de cima o socorressem, Pende Heitor, ele aos muros mais vizinho, Lhe vem de frente, para o campo o arreda. Como em sonhos no pode ao fugitivo

  • Este alcanar, nem se livrar aquele: Heitor assim de Aquiles no se livra, Nem Aquiles o alcana. E Heitor o golpe Evitara fatal, se ao lado Apolo No lhe aumentasse a fora e a ligeireza? Acena Aquiles de cabea s tropas, Que a dardos no o ajudem, nem lhe tirem Ferir primeiro e s. No quarto giro Juntos eles s fontes, ala o Padre urea balana; numa concha o eterno Sono libra de Heitor, noutra o de Aquiles: Grave de Heitor a sorte a Pluto baixa, E Febo o deixa. A dia olhicerlea Se avizinha ao Pelides: Ora espero, caro a Jove, encher de glria os Dnaos, Heitor aqui rendermos. De combates O insacivel escapar no conte, Nem que aos ps do Tonante o implore Febo. Tu quieto resfolga, e entanto eu mesma Vou suadi-lo a pelejar contigo. Ele contente ao freixo de rea choupa Se encosta; e Palas a Deifobo o vulto E a voz toma indefessa: Heitor, gritou-lhe, Fogoso ante a muralha o fero Aquiles, divo irmo, te acossa; alto faamos Firmes a receb-lo. E Heitor: Prezado Me eras, Deifobo, sobre quantos filhos De Hcuba teve Pramo: hoje em dobro Te prezo, irmo, que, ao veres meu perigo, Vens sustentar-me, e dentro os mais se ficam. Ento Minerva: Nossos pais augustos E os scios, caro irmo, de medo frios, De joelhos, no sair me suplicavam; Mas dor interna o corao pungiu-me. Lutemos dardo a dardo e rosto a rosto, Sem pouparmos fadiga; s naus vejamos Se ele nos leva o esplio sanguinoso, Ou se desse teu pique hoje domado. Ei-la dolosa avana, e ambos j perto, O galeato heri primeiro fala: Ante a cidade vezes trs, Pelides,

  • Sem te suster girei; no mais te fujo; Agora a te arrostar me fora o brio, Ou vencer ou morrer. Porm guardemos Pacto que os deuses testemunhem todos: Se da vida privar-te eles me outorgam, Teu corpo restituo inteiro e puro, E s das pulcras armas despojado; Igual favor Pelides, me assegures. E ele feroz: Um pacto ousas propor-me, Acerbssimo Heitor! Pacto h sincero Entre homem e leo, lobo e cordeiro? dio nutrem recproco e perptuo. No, tratados jamais; de um de ns ceve O sangue esparso ao belicoso Marte. O valor todo envida; ora te cumpre Nhasta acrrimo ser e audaz guerreiro. No tens refgio, pune-te Minerva Por minha destra; as agonias vingo Dos meus que trucidaste. E aqui dispara: Furta-se Heitor; Minerva s escondidas Da areia arranca o pique, ao dono o entrega. Diz o Dardnio: Erraste, heri divino. De Jove, gabas-te, o meu fado sabes. So dolos teus pra remeter-me susto E embotar-me o valor. Se o quer um nume, No de costas, no seio a ponta anea Me cravars. Evita agora a minha, Que em teu corpo oxal se enterre toda. Ser, tu morto, nosso af mais leve; s o maior flagelo dos Troianos. E desferida a lana, ao meio acerta; O escudo a repulsou. Do bote intil Sentido o heri, demisso o rosto, enfia Por no ter outra lana, e a gritos pede Uma a Deifobo de alvo abroquelado; Este ali no se achava, e conhecendo A iluso, clama Heitor: Ai! morte os numes Me aprestam j! Deifobo ao lado eu cria; Mas ele dentro, e me enganou Minerva. A Parca se apropinqua inelutvel: De longe o quis o Padre e o filho archeiro,

  • Meus custdios outrora. Urge-me o fado: Sequer no morro imbele; a glria minha V ressoar grandiosa nos vindouros. Da espada aqui puxou, que lhe pendia Grande e fornida e aguda, e rui coberto, Bem como guia altaneira entre nublados Sobre tmida lebre ou tenra ovelha. Iracundo e ferino investe Aquiles: O escudo aos peitos brilha artificioso; No elmo de quatro cores relumbrante ureo ondeia o penacho, que Vulcano Pela cimeira derramou. Qual Vsper, A mais donosa estrela em fusca noite, Fulge na destra a lana a Heitor funesta; Busca a jeito empreg-la, que a Ptroclo O arns belo despido ao belo corpo Todo guarnece, e a crava em mortal stio, Onde o pescoo ao ombro se articula; Mas no lhe ofende a jugular o bronze, Nem tronca a voz. No p rola o vencido; O outro blasona: Impune, Heitor, cuidavas Ptroclo despojar? No vias, louco, Naquelas naus um vingador mais forte, Que vim hoje esses membros dissolver-te? Corvos te ho-de roer e torpes gozos, E ele ter pomposo enterramento. Balbuciante o heri: Por teus joelhos E por teus genitores, eu te obsecro, No deixes animal dilacerar-me: Bronze e ouro aceites que meu pai te oferte E minha augusta me; Teucros e Teucras Ah! dem meu corpo fnebre fogueira. Torvo o Pelides: Nem por meus joelhos, Nem por meus genitores, co, me implores. Autor cru do meu mal, tivesse eu foras De tragar-te essas carnes palpitantes! No tens remdio algum: de tais presentes Nem que o dcuplo e em dobro se me oferte Com promessa de mais, nem que te pese Pramo a ouro, tua me augusta H-de em leito feral chorar seu filho;

  • S pasto e jogo de animais famintos. E a vasquejar Heitor: Previ que os rogos, frreo corao, baldados eram: Talvez que esta impiedade irrite os numes, Quando, embora valente, s mos cares De Febo e de Alexandre s portas Ceias. A morte a voz lhe embarga; a Pluto baixa A alma dos membros solta, a lament-lo Murcho em flreo vigor da mocidade. No vive mais, e o vencedor o insulta: Morre, venham meus fados quando Jove E os outros imortais cumpri-los queiram. Ento lhe puxa a lana e a pe de parte, Despe-lhe o arns sangento. Em roda enxame De Argeus acode, que de Heitor pasmados, Admiram-lhe a estatura e gentileza; Vem cada qual feri-lo, e entre si dizem: Hui! Como Heitor brando e mais tratvel Que ao deitar fogo s naus! Com tais motetes, Lhe ia o tropel o corpo vulnerando. O esplio toma, e aos Gregos fala Aquiles: Chefes e amigos, por favor celeste, Jaz o varo, que os Teucros todos juntos Mais nocivo: cidade arremetamos; Toca saber se abandon-la tentam, Ou contrastar-nos, bem que Heitor perdessem... Mas que resolvo? Est Ptroclo morto Ante as naus, insepulto e no chorado; De quem, mova eu na terra estes joelhos, Nunca me esquecerei, nem se no inferno Memria desta vida se consente. O pe entoai, mancebos Dnaos, E s naus frio o cadver transportemos; Imensa glria sobre Heitor ganhamos Que era dos Troas como um deus honrado. Logo, para ultraj-lo, aos ps lhe fura Do calcanhar ao tornozelo as fibras, Bovinos loro mete, ao carro o prende, Cabea a rastos: com o esplio monta, Sacode o aoute, os corredores voam. Rojado, o p levanta, e o p lhe afeia

  • A coma negra, o vulto, que era h pouco To belo e nobre: Jpiter a injrias Hostis o vota nos paternos campos! Da cena atroz vista, a me coitada Se carpe e rasga, o vu ntido expele, E ulula e geme; triste o pai lamenta; Pela cidade o miserando povo Solua em pranto, qual se Tria em peso Do excelso cume em chamas desabasse. O velho mal continham de sair-se Pelas Dardnias portas; e ele a todos, Rolando-se na lama, suplicava, A chamar um por um: Ir s deixai-me, De mim no se vos d, perante a frota Ao cruel matador prostrado, amigos, Implorar, comover: talvez respeite Em mim o eqevo de Peleu, que o teve E o nutriu para excio dos Troianos. Mormente a mim me cumulou de angstias: Quantos filhos em flor me tem roubado! Porm, dos que pranteio, um s de todos Me di mais e me arrasta ao centro escuro Heitor... Oh! Se em meus braos expirasse! Em lgrimas eu mesmo, em ais e em luto, Com a me que mo gerou desafogara. Gemente o chora o povo; entre as mulheres Hcuba rompe em lgubres suspiros: Morreste, filho, e eu vivo! Dia e noite Eras o meu orgulho e amparo dlio, Eras um deus aos Teucros e s Troianas J foste nossa glria, e s um cadver! Entanto, aviso Andrmaca nem tinha De que o marido s restasse fora. Em cima e no interior, tecia tela Dplice e esplndida, em folhagem vria; E s servas ordenara emadeixadas Um banho em ampla trpode aquecessem, Para quando voltasse da batalha. Nscia! De banhos longe, a gzea Palas Domado o havia pelas mos de Aquiles. Mas da parte da torre ouviu lamentos

  • E alto alarido; a lanadeira solta, Convulsa fala: Duas me acompanhem. Que ser? Sinto a voz da augusta sogra; Tremor no corao me salta aos lbios, E os frgidos joelhos se entorpecem: Algum dano sucede aos Priamidas. Oxal que eu no oua infausto anncio! Mas temo que meu bravo Heitor sozinho Fora esteja, e o persiga o fero Aquiles; Que este lhe extinga a exicial coragem, Com que longe da turba e frente lida, Nunca a ningum cedendo em valentia... E das fmulas duas escoltada, Sai quase doida, a palpitar-lhe o peito; Sobe torre, aos guerreiros se aproxima, E olha em torno do muro: a Heitor avista, Que de rojo os corcis ante a cidade Para as naus cruelmente arrebatavam; Enoitam-se-lhe os olhos, e de costas Cai desmaiada, o esprito exalando. A laaria e fitas se lhe espalham, Coifa e toucado, e o vu de Vnus prenda Quando, com dote infindo, o esposo a trouxe Da casa paternal. Para a conterem Ansiosa de acabar, de seu marido As irms e as cunhadas a rodeiam. Enfim no corao recobra o alento, Solua e geme e chora: Heitor, ai! Triste, Com fado igual nascemos, tu nos paos Do rei Pramo em Tria, eu na Tebana Hipplaco selvosa, onde criou-me De menina Eetion para infortnios, E antes me no gerasse! Ora ao subtrreo Orco desces profundo, e em luto e nojo No vivo aposento me abandonas; Nem do nosso filhinho s mais o arrimo, Nem ele o teu ser. Da crua guerra A escapar, no se escapa desventura; Mudado o marco, o esbulharo do prdio. O pupilo no dia da orfandade Perde os jovens amigos: baixo o rosto,

  • gua nos olhos, se o do pai segura, Um pela tnica, outro pela capa, Indigente repulso; o mais piedoso Bebida num copinho lhe escanceia, Que os beios banha e o paladar no molha. O que possui os genitores ambos, Fero da mesa o expulsa, espanca e enxota: -Sai, conosco teu pai j no convive. Tal h-de vir choroso me viva O infante meu, que aos paternais joelhos Com tutanos de ovelha se nutria, E lasso de brincar, entregue ao sono, Da nutriz afagado ao brando colo, Contente em mole bero adormecia. rfo, misrias sofrer meu filho, Que Astianax os nossos denominam, Porque eras, nobre Heitor, nico apoio Destas muralhas. Ante as naus rostradas, Longe dos pais, ho-de roer-te vermes, Depois que nu te comam ces raivosos, A ti, que hs finas e elegantes vestes, Por tuas servas e por mim tecidas. J que para a mortalha nem te servem, Em honra tua ao fogo vou queim-las, Dos Teucros em presena e das Troianas. As mulheres ao pranto ecos faziam.

    NOTAS AO LIVRO XXII

    101103. Diz Heitor que no tempo de contar histrias a Aquiles, como as do rochedo e do carvalho, isto , como ento contavam moos e moas, crendo que homens antigamente nasceram dos carvalhos e dos rochedos. o mesmo que se hoje em dia dissssemos que no era tempo de falar de histrias da carouchinha. 184300. Por mais que tenham justificado esta passagem, confesso que no gosto

  • de ver a deusa da sabedoria enganar a Heitor com tanta perfdia. Se Virglio assim tivesse escrito, como gritariam certos crticos Franceses e Alemes, vmente apostados em rebaixar o poeta Latino! Eles, que opinam ser bastante para enterrar a Eneida o riso malicioso de Vnus perante Juno, acham excelente este engano de Minerva! 247249. O verso 247 , com leve mudana, um de Francisco Manuel nos Mrtires. Monti omitiu a circunstncia exprimida pela palavra aleis, isto envolto ou coberto; mas esta circunstncia aumenta a justeza da comparao: quer dizer Homero que Heitor, de espada na mo, cobriu-se com seu broquel, assim como a guia, dando sobre a lebre ou a cordeira, cai envolta em negras nuvens. 316317. O primeiro um verso de Cames num dos seus mais belos sonetos; exprime aqui o original, mas com certo mavioso toque, de que me quis aproveitar. No segundo, uso da palavra pan, renovada por Francisco Manuel com muita razo; porque pan no um canto qualquer, mas o canto em honra dos deuses. J, na traduo de Virglio, mostrei que o termo vem nos dois nossos melhores dicionrios. Moraes e Constncio; e Moraes cita a Eneida Portuguesa do grande mestre da lngua Joo Franco Barreto. 361365. Monti serve-se da palavra rabesco na passagem correspondente ao meu verso 361; o que um anacronismo injustificvel: rabescos ou arabescos so, como diz Constncio, ornamentos de folhagens de flores, de figuras de arquitetura, imitados dos rabes ou Mouros, cuja lei proibe as pinturas e esculturas que representam figuras de homens e de animais; e portanto no podia Homero conhecer isto, que no era do seu tempo. Monti s pudera justificar se o termo fosse exclusivo e nico no italiano para exprimir o

  • conceito: nesse caso, prescinde-se da origem. Trpode no somente uma tripea ou assento de tres ps; tambm uma espcie de caldeira de trs longos ps, de que se serviam os Gregos para aquecer gua. No Maranho (ignoro se ainda assim) todas as casas tinham, para o cozido principalmente, um ou mais caldeires de ferro batido e fortssimo, que passavam de pais a filhos; e estes caldeires tinham trs longos ps, de sorte que, no meio mesmo de um campo, sem ajuda de fogo, podiam servir, metendo-se-lhes por baixo a lenha: era uma cousa bem semelhante ao vaso Grego, sendo este porm de certa composio de cobre, e no de ferro. M. Giguet, na passagem correspondente ao meu verso 365, em vez de longe de banhos, diz loin de ses tendres soins, referindo-se a tudo que fazia Andrmaca; mas parece-me que a repetio da palavra banhos aqui traz lembrana o estado em que se achava Heitor, ensangentado pelo p arrastado, longe da verdade do banho que lhe preparava a mulher. 393404. Monti aqui pe somente le cognate, e M. Giguet les soeurs de son poux et les femmes de ses frres: o segundo foi exato, porque verteu fielmente as palavras galo e einateres do original. O lugar de Homero correspondente aos meus versos 403 e 404, diz unicamente que nem Heitor ser mais o apoio de Astianax, nem Astianax ser o de Heitor; verte Monti que nem o pai ser o sustentculo do filho, nem o filho vingar seu pai; e eu, com outros, cinjo-me ao sentido literal. Creio que a pobre Adrmaca no fala de vingana, mas, com seu conjugal afeto, lembra-se de que o filho no ser no futuro o apoio de seu pai na velhice: isto mais terno, mais conforme ao todo do seu discurso, onde reinam sem mistura os sentimentos maternais e de consorte.

  • 418432. No quis Monti (contra a sua ordinria ousadia) traduzir o grego myelon, medula ou tutano, e disse: egli che dianzi deletti cibi si nudra. Eu usei da palavra tutanos, usada por Cames em uma das suas melhores odes, e desta maneira conservo a declarao do costume, que naqueles tempos havia, de alimentarem-se as crianas com tutanos e gorduras de ovelha; somente omiti a palavra gordura, porque em tutanos est suficientemente memorado o costume. Os meus versos 431 e 432 cuido que exprimem os do autor, posto que mais concisamente: Homero diz, por boca de Andrmaca: Irei queimar todas as vestes em fogo ardente, j que no te serviro nem jazers nelas; e eu, aclarando o pensamento, verto: J que para a mortalha nem te servem, em honra tua ao fogo vou queim-las. A negativa nem j mostra que as vestes no eram unicamente destinadas para Heitor nelas jazer ou para sua mortalha, mas tambm o eram para outros usos. Veja-se 9em em Constncio e o fim do seu artigo.