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  • Foto : Dorinha Porto

    CEPLAR

    Rua Conselheiro Henriques, 159

    Joo Pessoa - Paraba

  • Aos nossos filhos:

    Nathalie

    Amrico

    Gustavo

  • SUMRIO

    Agradecimentos Prefcio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Ao leitor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Introduo . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1. A CEPLAR, fruto de uma vivncia coletiva Uma realidade questionada . . Antecedentes: A busca de um grupo da JUC da Faculdade de Filosofia Cincias e Letras da Paraba. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A criao da CEPLAR . . . . . . . . . . CEPLAR, rgo do governo ou entidade independente? . . . . . . . . . . . . . . . .

    11 13 18

    21

    33 35

    42

    2. A primeira rea de atuao: a povoao ndio Piragibe A mobilizao das lideranas e a criao de ncleos de debate. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A redinamizao do Grupo Escolar Raul Machado para a educao de crianas . . . Os primeiros passos para a alfabetizao de adultos . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    47

    53

    60 3. A Alfabetizao de Adultos pelo Mtodo Paulo Freire O encontro com Paulo Freire . . . . . . . As primeiras experincias com o Mtodo ................

    62 66

  • 4. A CEPLAR e o Programa Educacional de Emergncia do Ministro Darcy Ribeiro A integrao no Programa de Emergncia. . . A alfabetizao e a formao poltica de adultos O desenvolvimento do setor de cultura popular A CEPLAR cresce e se modifica . . . . . . . . . .

    73 76 88 99

    5. A CEPLAR e o Plano Nacional de Alfabetizao do Ministro Paulo de Tarso A integrao no Plano Nacional de Alfabetizao e as posies da Campanha. . . . . . . . . . . . . O lanamento do Plano em Joo Pessoa e o seu impacto na capital e cidades perifricas . . . . A extenso dos ncleos de alfabetizao s cidades do interior e ao meio rural . . . . . .

    105

    109

    117

    6. A Destruio da CEPLAR O clima em que se atuava . . . . . . . . . . . A surpresa do golpe. . . . . . . . . . . . . . Os processos n. 70/64 e n. CCG 1469/64 . .

    127 145 153

    7. Elementos de anlise sobre a CEPLAR A luta ideolgica interna . . . . . . . . . . . Reflexo crtica sobre o trabalho . . . . . . .

    167 181

    Concluso e depoimentos . . . . . . . . . . .

    195

    Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201

    Anexos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 210 Mapa do Estado da Paraiba . . . . . . . . . . 211 Siglas utilizadas . . . . . . . . . . . . . . . . . 212 Dados sobre as autoras . . . . . . . . . . . . .

    213

  • AGRADECIMENTOS

    Esta histria da CEPLAR no poderia ter sido escrita sem o trabalho de pesquisa realizado por Everaldo Soares Junior, hoje mdico paraibano, h trinta anos jovem membro da CEPLAR, a quem somos profundamente gratas.

    Agradecemos tambm:

    * A todos aqueles que contriburam com suas entrevistas, que nos forneceram ou facilitaram acesso a material, que leram com interesse os primeiros escritos nos ajudando, assim, com suas observaes.

    * A Lenita Peixoto, Helosa H. Cavalcanti e Lourdes do Valle Navarro que colaboraram na coleta de informaes.

    * A Tarcsio Lage e Jos de Menezes Porto que nos deram apoio integral quando dos nossos encontros de trabalho na Holanda ou na Frana, e a Joo Bosco Feres que leu os originais em suas vrias fases e, como os dois acima mencionados, contribuiu com suas crticas para a redao final.

    9

  • 12

  • AO LEITOR

    Uma das consequncias do golpe militar de estado de 1964 foi a disperso dos membros da CEPLAR, Campanha de Educao Popular. Muitos no Brasil, outros em pases da Amrica Latina, outros ainda na Europa. Porm, um denominador comum unia alguns deles: o desejo de que um dia a histria dessa instituio, experincia marcante para muitos, fosse registrada. Quando no final da dcada de setenta Everaldo Soares Junior nos falou do seu projeto de escrev-la dentro do quadro de seus estudos, acolhemos a iniciativa com simpatia. Imediatamente, espontaneamente, a troca de idias, a expresso das nossas lem-branas e as primeiras gravaes sobre o que aconteceu na Campanha comearam a enriquecer o capital que, naquele momento, Everaldo Junior j ia acumulando para formalizar sua futura pesquisa. Cedemos-lhe a palavra, atravs da carta que nos enviou, para que ele mesmo explique at onde foi no seu traba-lho e a maneira como procedeu para realiz-lo:

    "Dorinha e Iveline, A histria da CEPLAR no estava no es-quecimento. Apesar das foras repressivas de 1964, que interromperam as experincias e os trabalhos de Educao e Cultura realizados pela Campanha e, da dificuldade de rememorao daqueles que viveram e participaram da realizao de um ideal de transformao e justia social, nada estava apagado. Era preciso falar sobre esse assunto e registr-lo numa procura de resgate histrico dos acontecimentos.

    Comecei com minhas prprias dificuldades de lembrar a CEPLAR, minha primeira experincia no campo da Cultura e Educao Popular. No primeiro momento foi um esforo de memria tentando reconstruir uma histria livremente, fato por fato, acontecimento por acontecimento.

    Em 1980 eu era mestrando em Educao de Adultos na Universidade Federal da Paraba, realizava pesquisas e estudava novamente a problemtica da Educao em nosso pas e em nossa regio. A histria da CEPLAR me acompanhava o tempo todo. Incentivado pelos colegas, professores e, em especial, Paulo Freire, debrucei-me sobre a reconstruo da histria da CEPLAR como a experincia que avanava, no incio dos anos 60, em criatividade e em ideais de mudanas.

    Era preciso uma instrumentao cientfica para esse trabalho de Histria e Educao. Procurei, sob a orientao das professoras Vera Esther J. da Costa Ireland e Rosa Maria Godoy Silveira, resgatar o que

  • fosse possvel da CEPLAR e sua poca. Os jornais desse perodo, os poucos documentos que restaram, alm das conversas com pessoas que participaram da experincia da Campanha, com participantes das lutas sociais e polticas da poca e com intelectuais que hoje se interessam pelo tema, foram o ponto de partida na construo de um roteiro para as entrevistas.

    Depois de alguns meses, j de posse desse material, redigi um roteiro cronolgico de toda a Campanha, que tinha a finalidade de ordenar os dados em uma primeira verso, como tambm facilitar a todos os entrevistados a possibilidade de rememorao. Dividi esse roteiro em 12 tens, definindo cada fase da Campanha, desde as origens e primeiras aes, as fases de expanso, at o seu fechamento com o golpe militar. As respostas dos entrevistados se constituram em uma valiosa con-tribuio documental.

    J tendo iniciado a redao deste relato, os meus interesses profissionais tomaram novos rumos com a Psicanlise, me absorvendo totalmente em trabalho e tempo. Todo o material estava comigo e no era justo que assim permanecesse. Entreguei-o a vocs que, com certeza, levariam adiante o projeto de registrar historicamente a CEPLAR.

    Hoje a histria est contada e o seu conhecimento passa a fazer parte da histria da educao e da cultura popular no Brasil.

    Um abrao afetuoso do companheiro Everaldo Soares Junior. Joo Pessoa, 28 de novembro de 1993."

    Aceitar a proposta de Everaldo Junior significava enfrentar obstculos importantes: os imperativos de nossa vida profissional e a no proximidade das fontes de documentao, pelo fato de residirmos no exterior. Mas essas dificuldades, comparadas com a importncia do empreendimento, foram relativizadas. Trs razes determinaram a nossa deciso de escrever essa histria:

    * A constatao de uma lacuna nos escritos e palavras que ten-tam reconstituir a histria dos Movimentos de Educao Popular dos anos 1960-1964. O trabalho realizado na Paraba, pela CE-PLAR, pouco conhecido. Os estudos que a ele se referem vo raramente alm das informaes contidas nos artigos de Paulo Freire e de Jarbas Maciel, publicados pela revista Estudos Uni-versitrios do Servio de Extenso Cultural da Universidade (SEC) do Recife.

    * A redescoberta, aps estudo do resultado da pesquisa realizada por Everaldo Soares Junior, de que a CEPLAR foi muito mais do que o que restou na memria de cada um de ns, muito mais do

  • que o nosso consciente no censurou depois da priso, do processo que a acompanhou e dos muitos anos j decorridos.

    * A confiana depositada por Everaldo Junior ao nos pedir que escrevssemos sobre a CEPLAR, entregando os elementos de sua pesquisa.

    De posse do seu material : sete das nove entrevistas por ele realizadas, a importante pesquisa de jornais, o roteiro de entrevistas e o relatrio de quinze pginas por ele redigido para a Universidade, elaboramos um quadro sinptico composto de 16 tens, nos quais se incluam os atos e aes do governo federal, do governo estadual, a ao da Igreja, das entidades estudantis, das organizaes sindicais operrias e dos proprie-trios rurais da Paraba, alm de dez tens referentes CEPLAR. Este trabalho, importante para entrarmos novamente naquela histria, nos permitiu restabelecer a cronologia dos fatos e a rela-o existente entre eles. Ao fazermos esta sistematizao, sen-timos a necessidade de completar informaes, obter novos dados, novos documentos. Por isso, por ocasio de nossas idas ao Brasil, entrevistamos 30 das pessoas que trabalharam na Campanha ou com ela colaboraram, completamos a pesquisa de jornais sobre o que se passou de significativo na Paraba do ponto de vista poltico naquele perodo, conseguimos outros do-cumentos oficiais, inclusive os relativos ao Inqurito Policial Militar da CEPLAR, iniciado aps o golpe de 1964.

    O resgate da experincia, objeto deste livro, foi baseado em todo esse material, alm, claro, da nossa prpria memria.

    Na medida em que entrvamos naquele passado atravs das vo-zes dos protagonistas daquela histria, da leitura dos documentos; na medida em que fatos, atos emergiam do sub-consciente e se encaixavam no contar dos outros, enriqueciam ou explicitavam a memria de outros e a nossa prpria memria; na medida em que se iam completando dados, explicando aconte-cimentos, estabelecendo ligaes, colocando nos devidos lugares as diferentes peas do quebra-cabea, a CEPLAR nos apareceu tal qual ela existiu : uma exploso criativa; uma construo coletiva; um investimento intelectual, psicolgico, fsico, afetivo de jovens e adultos de vrias camadas sociais da cidade e do campo; uma concentrao das foras mais diversas; um questionamento quotidiano; uma militncia poltica; uma resposta a um ideal de justia social.

    Conclumos que essa histria no merecia ficar no esquecimento da Histria. Por isso aceitamos escrev-la.

  • Citar ou no nomes foi uma questo que nos colocamos. Opta-mos pelos daqueles que tiveram funes na CEPLAR. Os outros nomes citados so os de entrevistados que no decorrer do traba-lho, para comprovar ou explicitar idias, fatos, nos pareceu im-portante mencion-los.

    Esperamos que aqueles que viveram a experincia se reconheam neste livro e que os demais achem sua leitura estimulante.

    Hilversum, Holanda Paris, Frana

    Iveline Lucena da C.Lage Dorinha de Oliveira Porto

    N.B. : As citaes dos jornais e documentos da poca foram transcritas no livro respeitando a grafia original.

  • INTRODUO

    Trinta anos depois do golpe militar de estado de 1964, as novas geraes ainda no tiveram acesso a todas as informaes sobre o que se fez e o que se viveu no Brasil dos anos 1960 a 1964. Nesse curto perodo, a crena na construo de uma sociedade mais justa polarizou a vida de milhes de brasileiros. O Brasil, com riquezas naturais considerveis era, na poca, dominado por um sistema econmico, poltico e social que condenava cerca de 60% da populao fome, misria e ao analfabetismo, alm de gerar importantes desnveis econmicos regionais. A convic-o de que se poderia transformar as estruturas do pas pela fora poltica das massas explica a criatividade, o entusiasmo, a ao e as lutas que marcaram aquele momento brasileiro. A CEPLAR, Campanha de Educao Popular, na Paraba, fez parte dos empreendimentos de ento ao lado de muitos outros movimentos de educao popular que existiram em todo o Brasil.

    O resgate dessa experincia de educao participativa e conscientizadora, feito aqui dentro de uma reconstruo histrica do processo no qual ela se inseriu. Para isso, apre-sentamos, sucintamente, o quadro geral da situao do Brasil na poca, procurando deixar transparecer o clima em que se vivia e os ideais pelos quais se lutava.

    Ressaltamos o fato de que no pretendemos discorrer sobre a fundamentao terica da educao popular nem sobre as questes scio-econmicas, culturais e polticas do Brasil dos anos 60. Pretendemos todavia destacar as idias-fora que emergiram desses setores de atividades, e que estiveram na base do trabalho da CEPLAR e da sua dinmica.

    Descrevemos a vivncia e a prtica coletivas dessa entidade que comeou em Joo Pessoa, capital do Estado da Paraba, com um grupo reduzido de estudantes universitrios e que terminou com centenas de pessoas de classes, nveis e extratos sociais os mais diversos, atuando em nove cidades do Estado.

    Relatamos e analisamos os fatos que constituram a trama da sua existncia, fatos de carter poltico ou no que marcaram a sua histria, ligados a pessoas, grupos, entidades pblicas e

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  • privadas, que participaram da sua construo e alguns tambm da sua destruio.

    Procuramos mostrar como os problemas levantados pela experincia foram enfrentados e como o contexto social e poltico a ela reagiu.

    Com o recuo que a distncia no tempo nos permite, propomos alguns elementos de reflexo crtica sobre a experincia e, em funo dela, tentamos levantar questes, ao nosso ver, ainda hoje atuais.

    Enfim, damos testemunho sobre uma instituio que teve sua importncia num determinado momento da vida do Estado da Paraba, e que merece figurar como parte integrante da histria desse Estado.

    E mais ainda. Ao ler-se a histria da humanidade pode-se constatar que vivendo grandes utopias, grandes ideais que um povo se afirma em sua dimenso histrica. S o resgate das experincias vividas permite integr-las ao patrimnio cultural e histrico do povo. essa a razo fundamental da existncia deste livro.

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  • 1. A CEPLAR, FRUTO DE UMA

    VIVNCIA COLETIVA

    UMA REALIDADE QUESTIONADA

    A CEPLAR nasceu num momento de acirramento das lutas pelas mudanas estruturais da sociedade brasileira. Uma das metas dos que governaram o Brasil dos anos 1930 a 1964 era industrializar e desenvolver economicamente o pas, eminentemente agrcola at ento, e dominado pelas oligarquias originrias dos grandes latifndios. O regime populista que se instalou nesse perodo, ao procurar o apoio das massas, no campo e na cidade, levantou importantes bandeiras de luta: dar direitos e formas legais de defesa s massas trabalhadoras, elevar o seu nvel cultural, favorecer a sua organizao. Em muitas ocasies o movimento das massas em busca da construo de um pas moderno, com um sistema econmico e social mais justo foi alm das propostas do populismo gerando, com isso, a exacerbao dos conflitos com as foras de oposio e, s vezes, com o prprio regime populista.

    Alguns dados sobre o Brasil do final da dcada de 50 e do incio da de 60, apresentados por pesquisadores das vrias questes, so significativos da situao em que vivia a maioria do povo brasileiro e explicam, em grande parte, a tomada de conscincia da necessidade de agir para mud-la.

    O sistema de distribuio da propriedade da terra estava na base das contradies do Brasil da poca, como o demonstram as estatsticas a seguir:

    "11% dos estabelecimentos rurais possuem 79,8% da terra agriculturvel, enquanto 45% do total dos estabelecimentos tm apenas 13,3% da terra."1

    "Os latifndios de mais de 500 hectares (ha) ocupam 62,1% da superfcie do pas. Pouco mais de 1.600 proprietrios possuem terras superiores a 10.000 ha, dentre estes, 60, cujas terras ultrapassam 100.000 ha. Por outro lado, os estabelecimentos agrcolas de menos de 5 ha, cujo nmero estimado em 408.424, utilizam somente 0,49% da superfcie cultivvel."2

    1 Jaguaribe, Hlio. Brasil: Estabilidade social pelo Colonial-Fascismo? Brasil: Tempos Modernos. Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra 1968, p.29. 2 Bailby,douard. Brsil pays clef du Tiers Monde.Paris, Calmann-Lvy, 1964, p.148.

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  • "50% da populao composta de camponeses analfabetos, que participam apenas em 15% da renda nacional."3 "Representam no entanto, 70% da populao ativa embora s recebam 30% da renda do pas."4

    Por outro lado, mais de 50% da populao brasileira era excluda da vida poltica nacional por ser analfabeta e, por esta razo, no tinha direito a voto. O sistema elitista de educao em vigor, contribua para reforar as contradies. Os dados a seguir so um exemplo: "Numa populao de 75 milhes de habitantes, 1 milho chega ao fim do curso secundrio e apenas 160.000 terminam o curso universitrio. De 8 milhes de crianas em idade escolar apenas 4 milhes vo escola e, dentre estas, s 460.000 terminam o curso primrio."5

    "O nmero de analfabetos adultos no eleitores,(18 milhes), representava 1/3 a mais do que o nmero de eleitores."6

    O desenvolvimento industrial projetado no se deu de maneira homognea. Concentrou-se essencialmente no Centro-Sul do pas, mais particularmente no tringulo So Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, favorecido pela determinao poltica das foras locais de criar um plo industrial cujo desenvolvimento se acelerou, sobretudo, a partir dos anos 50.

    O Nordeste, que abrange uma rea de 1.500.000 km2, representando 18% da superfcie total do pas, no acompanhou esse desenvolvimento e se marginalizou. No tanto por razes climticas ou pela ausncia de recursos mas, essencialmente, pela escolha poltica de uma oligarquia, dominante na regio, preocupada, sobretudo, em manter a estrutura agrria baseada no latifndio e em defender o "status-quo" para manter seus privilgios.

    Na redistribuio dos papis a nvel da economia o Nordeste, exportador de acar para o exterior, passou a exportar, priori-tariamente, para o sul e a viver em funo da economia sulista importando produtos para seu prprio consumo e fornecendo mo de obra barata.

    Na segunda metade da dcada de 50, o Centro-Sul estava com uma estrutura industrial bem assentada, com um mercado de consumo interno em pleno desenvolvimento e o Nordeste cada vez mais dependente da demanda do Sul. Como consequncia, enraizou-se economicamente num sistema de monocultura, diminuram sensivelmente as reas reservadas a produtos de subsistncia, concentrou-se ainda mais a propriedade nas mos de uma porcentagem reduzida de latifundirios, aumentou a massa de trabalhadores rurais semi-assalariados e assalariados, mas com um nvel maior de explorao.

    3 Jaguaribe, Hlio. Op.cit.,p.29. 4 Fac Rui. Brasil, sculo XX. Ed.Vitria,1960. 5 Bailby ,Edouard. Op.cit. pp.148-149 . 6UNE, Cadernos de Coordenao Universitria, 2, Resolues do 1 Encontro Nacional de Alfabetizao e Cultura Popular, 15 a 21 de setembro de 1963.

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  • Enquanto isso, emerge no Sul uma burguesia industrial poderosa mas no monoltica, pois o desenvolvimento industrial do Sul no se apoiou s no capital nacional. Apoiou-se tambm em investimentos estrangeiros, particularmente de grupos americanos, que passaram a ser bastante influentes em setores essenciais da economia, chegando a provocar divergncias no prprio seio dessa burguesia.

    Os benefcios da industrializao favoreceram uma parte da classe mdia elevando seu nvel de vida e, especialmente, a alta burguesia nacional e os trustes internacionais. "O privilgio ilimitado da acumulao de benefcios sobre o capital", declarava o Presidente Joo Goulart em outubro de 1963, "permitia transferncias ao estrangeiro superiores a 1.000 % do capital efetivamente investido no pas."

    A regio Nordeste, que representava 15,7% da populao global, apre-sentava contrastes flagrantes com a regio Sul:

    A quase totalidade das terras agricultveis estavam nas mos de uma minoria de proprietrios, "deixando massa da populao uma reduzida sobra em que ela angustiosamente se comprime."7 A ttulo de exemplo, na Paraba, na zona do agreste e caatinga litornea (onde a CEPLAR atuou) 6,2% dos proprietrios de 200 hectares e mais, detinham 68,7% das terras cultivveis. Nas zonas do litoral e mata, a proporo era de 7,9% de proprietrios ocupando 84,1% das terras.8 Enquanto isso, no Sul, a distribuio das terras entre pequenas, mdias e grandes propriedades era mais equilibrada, embora ao latifndio pertencessem 52%.

    O trabalhador agrcola nordestino vivia em condies semelhantes s encontradas na poca do feudalismo. Praticava-se o cambo, a sujeio, termos que significavam a obrigao, para o campons, de prestar servio gratuito ao latifundirio, razo de dois, trs ou mais dias por semana.

    O poder aquisitivo do povo do Nordeste era muito mais baixo do que o do Sul, para um custo de vida at mais elevado. "A renda per capita da regio era inferior a 100 dlares, correspondendo a cerca de 30% da do habitante do Centro-Sul"9 e "o custo de vida do operrio de Recife, por exemplo, era de 25% mais caro do que para o operrio de So Paulo."10

    A nvel da populao global do Nordeste, "a esperana de vida [...] era de vinte e oito anos para os homens e de trinta e dois anos para as mulheres. A metade da populao morria antes de trinta anos."11 "Em cada 42 segundos uma criana morria de fome. Em cada 1.000 crianas, 350 a 400 morriam antes de um ano,"12 enquanto que no Sul, nenhuma estatstica indicava

    7 Junior, Caio Prado. Questo Agrria. So Paulo, Ed.Brasiliense,1987, p.47. 8 Dados do recenseamento agrcola de 1950. 9 Furtado, Celso. A Fantasia Desfeita. Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 1989, p. 53. 10 Vinhas, M. Problemas Agrrio-Camponeses do Brasil. Rio de Janeiro, Ed.Civilizao Brasileira, 1972, p. 163. 11 Castro, Josu de. Une zone explosive, le Nordeste du Brsil. Paris, Ed.Seuil, 1965, p.154. 12 Julio Francisco. Cambo. Paris, Ed.Franois Maspero, 1968, p. 88. (Dados tirados do livro de Franklin de Oliveira)

  • dados to alarmantes. O ndice de analfabetismo, segundo a estimativa dos Censos demogrficos e anurios estatsticos, era de 66% no Nordeste e de 32,2% no Sul.

    Na Paraba, Estado com uma superfcie de 56.556 km2, (o que representa 0,66% do territrio nacional) e uma populao de 2.000.851 habitantes em 1960, as contradies eram das mais acentuadas.

    Em geral, no Brasil, "a rea destinada lavoura representava 12% das reas ocupadas e, na proporo em que aumenta a propriedade diminui o espao ocupado pela lavoura. Na Paraba", era de "menos de 1%" nos grandes latifndios.13 Um nmero reduzido de famlias se apropriava da quase totalidade das terras cultivveis, as quais eram reservadas monocultura (cana de aucar, algodo e sisal) para a exportao. Uma s famlia, constituda em Grupo, "controla cinco das oito usinas da Paraba."14 A fome e a misria atingiam cerca de 60% da populao do Estado e o ndice de analfabetismo era de 64%, 75% em certas reas do interior.

    Esses desequilbrios repercutiram em vrios segmentos da sociedade. Na esfera poltica facilitaram a eleio, no Nordeste, de governadores de tendncia populista. Nos meios religiosos, setores da Igreja Catlica passaram a tomar posies e a agir a favor da justia social. Entre os trabalhadores rurais, com o aumento das tenses, muitos comearam a se congregar em "Ligas Camponesas" que se transformaram em instrumento de luta para reivindicar seus direitos. Nas cidades, os sindicatos tornaram-se cada vez mais combativos. Na rea estudantil, universitrios e secundaristas, ao aprofundarem a conscincia dos seus privilgios, passaram a defender a unio operrio-estudantil-camponesa.

    Nesse perodo, o Brasil viveu um momento de grande criatividade. Parte da intelectualidade brasileira da poca pensava o Brasil como um todo, analisava suas estruturas, seus males ancestrais, seus desnveis sociais e regionais gritantes. Tornava-se urgente encontrar solues para os problemas brasileiros. Os "slogans" utilizados para exprimir a contestao de muitos, no eram mais vividos como queixas, eram estimulantes para atuar em instituies que colocavam como metas agir sobre a situao de misria do povo.

    O presidente Juscelino Kubitschek (1955 a 1960) preconisou reformas estruturais de base para o Brasil, no "Plano de Metas" do seu Governo. Estimulou e viabilizou projetos de desenvolvimento favorecendo, em todo o pas, a discusso dos grandes temas nacionais. Estes eram reu-nidos no debate em torno das reformas de base: administrativa, banc-ria, tributria, agrria, eleitoral; no questionamento das condies de participao do capital estrangeiro no desenvolvimento nacional; nas discusses sobre os desnveis regionais.

    13 Vinhas M. Op.cit.,p.168. 14 Correia de Andrade, Manuel. A Terra e o Homem no Nordeste. So Paulo, Ed. Atlas, 1986, p. 53.

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  • Uma situao de misria, em si nada nova, passou a fazer parte do debate poltico, a ser assunto da imprensa diria, constituir tema de discusso generalizada. Houve uma divulgao, uma "popularizao" das informaes sobre os problemas brasileiros e, no Nordeste em especial, sobre as disparidades regionais e a situao de misria do campo.

    Os rumos que a situao tomava na regio levou o governo federal, em 1958, a decidir aplicar uma nova poltica de desenvolvimento para o Nordeste, concretizada, inicialmente, na "Operao Nordeste", elaborada e dirigida pelo economista Celso Furtado, e que resultou, em dezembro de 1959, na criao da Sudene (Superintendncia do Desenvolvimento do Nordeste), rgo visto, na poca, como um es-foro srio para desenvolver economicamente o Nordeste e inseri-lo na era industrial.

    A criao da Sudene foi ocasio para que os problemas nordestinos fossem amplamente discutidos. Ronald de Queiroz Fernandes, economista paraibano e, na poca, secretrio executivo do Conselho Estadual de Desenvolvimento da Paraba que representava o pensamento da Sudene no Estado, refere-se a esse momento de criatividade em busca de solues para os problemas do Nordeste: "Comeou-se a pensar em projetos para uma infraestrutura industrial, um sistema econmico com uma relativa autonomia. O capital seria oriundo de transferncias compensatrias por parte do Governo, porque na poca, o Nordeste recebia um alto saldo nas suas exportaes e no estava sendo utilizado [...] ento, caberia ao Governo da Unio adotar uma poltica de com-pensaes que transferisse recursos para o Nordeste, para fomentar a formao de capital ao nvel das indstrias que fossem sendo concebidas pelo planejamento. Ento chegou-se a pensar em siderurgia no Nordeste, chegou-se a pensar em projetos de uma infraestrutura industrial que poderia terminar, no futuro, numa indstria relativamente autnoma, at mesmo naquele grau de economia indispensvel a uma etapa de desenvolvimento que afeta sobretudo o setor manufatureiro, metalrgico, que era realmente o ncleo da atividade industrial. [...] Quando ns pensvamos numa autonomia da regio, ns queriamos no somente estimular as indstrias fundamentais, assim para um processo de gerao de capacidade auto-sustentadora, como tambm, comear a substituir as importaes do Centro-Sul, a diminuir os desnveis internos na regio."

    Vale a pena ressaltar que a prpria discusso dos desnveis regionais era feita dentro de uma conscincia que se poderia chamar unitria. Antes de tudo era a sociedade brasileira, em seu conjunto, que estava sendo questionada. E havia uma exigncia de modificao, um grito por solues a curto prazo. Deu-se, no Brasil de ento, fenmeno que ousaramos dizer nico em sua histria, at agora, e que mereceria estudo cuidadoso. Milhes de brasileiros, num corte transversal que reuniu as vrias camadas sociais, dos chamados burgueses (os bons burgueses, como se dizia um tanto ironicamente!) at operrios e camponeses, acreditaram na possibilidade de se criar uma sociedade mais justa e lutaram durante anos por ela. Milhes de brasileiros, de norte a sul, de leste a oeste do pas mobilizaram-se, tentaram

  • organizar-se, discutiram estratgias, projetaram uma sociedade alternativa, enfrentaram lutas entre si e com os "inimigos da mudana" num trabalho incansvel que lhes pedia "24" horas do seu dia. Trabalho que lhes sugaria toda a energia se no constitusse um grande estimulante maximizao do criar, sonhar e agir, se no acreditassem que a sociedade pela qual se empenhavam era uma realidade atingvel e no distante no tempo. As mais diversas tendncias procuravam organizar e dirigir a luta pela construo desta sociedade nova. O governo concretizava sua viso do futuro convocando tcnicos que o ajudavam a empreender aes consideradas necessrias para o desenvolvimento (criao de Braslia), gerar instituies de real impacto na sociedade (Sudene)15. Movimentos de Educao Popular emergiam, a exemplo do MEB (Movimento de Educao de Base pelo rdio), criado pela CNBB (Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil); do MCP (Movimento de Cultura Popular) do Recife, Estado de Pernambuco, na gesto do prefeito Miguel Arraes.

    Todo esse esforo, claro, no se dava num clima de harmonia, num clima idlico; se havia ajuda, dilogo, havia tambm desconfiana mtua, luta pelo poder. Projetos, campanhas eram acusados de reformistas, de barrarem as mudanas estruturais. Os acusados res-pondiam com outras acusaes: essas crticas seriam fruto de uma viso imatura, irresponsvel e utpica da sociedade. Conflitos dentro e fora das instituies governamentais eram constantes, mas todos estavam empenhados em buscar solues para os problemas brasileiros e, para isto, houve espao dentro e fora do governo. Os rgos pblicos propunham e encontravam eco na sociedade. Os particulares apresentavam projetos ao governo e eram ouvidos. Os conflitos que com a radicalizao do processo levavam a enfrentamentos diretos, muitos dos quais sangrentos, assimilados dentro de uma perspectiva de mudana no muito distante, no abala-vam o entusiasmo, nem arrefeciam o desejo de lutar. Nenhuma frente de luta era perigosa demais para ser enfrentada, nenhuma tarefa impossvel. Vivia-se um clima de otimismo e confiana. Os problemas so grandes? No importa. Aqui estamos para resolv-los. A mquina estatal at agora no contribuiu para a soluo dos problemas nacionais? No importa, criaremos instituies alternativas que funcionaro livres dos entraves burocrticos, ou obedecedendo a novas regras. At parecia que governo e povo estavam juntos, empenhados na construo de uma sociedade nova.

    Esta nsia de mudana crescia e se ampliava. Durante o governo do presidente Joo Goulart (1961 a 1964) o tema da participao das massas populares no processo de mudana social tornou-se central. A participao dessas massas era a garantia de que a mudana da sociedade brasileira se daria no sentido da justia social, da criao de uma sociedade socialista, igualitria. A quem interessava a mudana? s massas desfavorecidas e marginalizadas polticamente. Onde

    15 No anexo 3, as siglas e a sua correspondncia por extenso.

  • buscar os aliados para a luta transformadora? Nesta massa. Algumas palavras de ordem importantes da luta da poca se transformaram em metas governamentais: "Extenso do voto para o analfabeto." "Distribuio de terras para os camponeses." Joo Goulart estimulou a organizao do campesinato como fora poltica, promovendo a sindicalizao rural. Escolheu tambm a erradicao do analfabetismo como uma das metas de seu governo. Mobilizao e organizao popular foram as respostas dos que se consideravam foras progressistas, trabalhando no sentido da Histria e com a "Fora da Histria", s chamadas foras reacionrias. Porque estas existiam, claro, mas seriam vencidas. O futuro estava conosco. Os Movimentos de Cultura Popular espalharam-se rapidamente por todo o pas. As Ligas Camponesas, seguindo o exemplo de Pernambuco, alastraram-se, sobretudo, pelo Nordeste.

    Visto com a tica de agora, dir-se-ia que os brasileiros de ento foram atacados pelo "vrus" da ingenuidade. Como no ter conscincia da fragilidade de sua organizao para enfrentar bases de poder seculares? No se deve esquecer, entretanto, que nos anos 60 o bloco socialista parecia uma experincia solidificada. Cuba, bem prxima, era outra prova de que mudanas eram possveis. Era o socialismo implantando-se na Amrica Latina. A pergunta no era se ocorreria a mudana das estruturas sociais injustas da sociedade brasileira. A pergunta era como esta se efetuaria. Pela via pacfica ou revolu-cionria? Entre aqueles que participaram da luta pela transformao do Brasil havia muita divergncia poltica e ideolgica, mas estavam unidos por alguns pontos "inquestionveis": as estruturas injustas tinham que ser modificadas; o curso da Histria indicava que a mudana se daria; a fora motriz desta mudana eram as massas populares. Os dois primeiros "inquestionveis" explicam a grande liberao de energia, o clima de esperana, a imensa capacidade de luta que demonstraram milhes de brasileiros, simultaneamente, durante anos. O terceiro, a crena nas massas, foi responsvel pela escolha do campo de ao, da busca dos aliados na luta.

    Neste clima nasceu e atuou a CEPLAR na Paraba.

    David GlasielHighlight

  • ANTECEDENTES: A BUSCA DE UM GRUPO

    DA JUC DA FACULDADE DE FILOSOFIA

    DA PARABA

    Um grupo de estudantes da Faculdade de Filosofia Cincias e Letras da Universidade Federal da Paraba, o qual integrvamos, consciente de seu compromisso junto sociedade, participava da Juventude Universitria Catlica (JUC) no momento em que esta, como se dizia na poca, voltava-se para o social. Vrias palavras de ordem funcionaram como instantneos da realidade e foram importantes na mobilizao das energias para o passar do sentir ao agir. Eis uma que marcou os membros da JUC: "Apenas 1% da populao escolar chega Universidade". "Vocs, universitrios, so mantidos com o dinheiro dos impostos pagos pelo povo. Tm obrigao, portanto, para com este povo."

    "Ver, Julgar, Agir" era o mtodo de ao da Ao Catlica. E procurou-se ver, julgar e agir. A misria dos bairros pobres passou a ser campo de ao. Levavam-se remdios para os doentes, encaminhavam-se crianas para as escolas, apoiavam-se os esforos do professor da Faculdade de Filosofia, Jos Rafael de Menezes, em sua campanha de construo de casas.

    A JUC, sobretudo no seu 10 encontro anual no Rio de Janeiro, em janeiro de 1960, fez a crtica do assistencialismo e paternalismo de sua interveno social e comeou a procurar novos rumos. Assumiu posies de vanguarda para a Igreja, explicitadas num documento intitulado "Bases mnimas para o ideal histrico do povo brasileiro", onde deixava clara a necessidade de integrar a dimenso poltica na ao militante junto ao povo, dentro de uma ideologia de mudana social. Estudavam-se as encclicas Rerum Novarum e Mater et Magistra. Organizavam-se congressos para debater os problemas nacionais. Imergia-se, enfim, na ebulio social em que vivia o Brasil, atravs de seminrios, conferncias, manifestaes, projetos, onde se levantavam as bandeiras das reformas de base, onde se questionava o papel do profissional. Ser mdico no era apenas clinicar; advogado, advogar; professor, ensinar. O profissional no era s o especialista de uma rea do conhecimento. Atravs de sua profisso era tambm e, sobretudo, um agente de transformao da sociedade.

    Em Joo Pessoa, a JUC orientou sua ao no sentido de estimular cada faculdade a se engajar no social de acordo com sua especialidade. Essa orientao visava dois objetivos: aprofundar o conhecimento dos estudantes sobre a situao existente no pas; lev-los a um contato direto com a populao, a fim de encoraj-la a uma participao consciente no processo de mudanas da sociedade. Essas duas idias concretizaram-se em pesquisas realizadas nos bairros, como parte dos

  • estudos desenvolvidos no mbito da Universidade. O grupo da Fa-culdade de Filosofia, orientado pelo professor Pedro Nicodemus, da cadeira de sociologia, realizou uma pesquisa no campo da educao, no bairro do Rger. O mesmo acontecia com outros trabalhos de pes-quisa, feitos por outros grupos, outras faculdades. Eis a forma como iam tomando corpo as inquietaes, buscas que no eram apenas de um grupo. Eram as primeiras tentativas de encontrar respostas locais, ecoando lutas e questionamentos de todo o pas, e para elas contri-buindo.

    A CRIAO DA CEPLAR

    Do questionamento da sociedade brasileira, das propostas de solues aos problemas nos vrios setores e, particularmente, no educacional, tambm participavam, como no podia deixar de ser, a juventude, intelectuais e autoridades paraibanas. O governador Pedro Moreno Gondim, participava do esforo de desenvolvimento da regio atravs da "Operao Nordeste", "Meta" n 31 do plano do presidente Juscelino Kubitschek. Sensvel a essa viso desenvolvimentista e consciente da necessidade de integrao das massas analfabetas no processo de desenvolvimento do pas, o governador colocou como um dos objetivos de seu plano para o quinqunio 1961-1965, a educao popular. Em janeiro de 1961, o jornal O Norte publicou um artigo sob o ttulo "Na programao da Paraba, sntese do plano de realizaes do Governo Pedro Gondim", onde se l: "A programao da Paraba [...] visa a aplicao de 10 bilhes de cruzeiros em cinco anos, com trs objetivos principais : 1. valorizao rural, incluindo aplicaes na infra-estrutura; 2. desenvolvimento dos municpios, incluindo aplicaes na industrializao, 3. educao popular,* incluindo aplicaes nos setores de Sade, Justia, Segurana, Aperfeioamento de Pessoal, etc."16

    O ambiente no poderia ser mais propcio criao de uma instituio que se dedicasse educao popular. Extratos de jornais da poca confirmam, na Paraba, este clima: "A Secretaria de Educao do Estado [...] promove cursos de alfabetizao pelo rdio, [...] a Feira de Livros, a instalao do II Salo de Artes Plsticas, a exibio de filmes educacionais e a instalao de novas bibliotecas pblicas."17

    * Negrito das autoras. 16 O Norte de 10.01.1961. 17 O Norte de 15.10.1961.

  • "A UEEP (Unio dos Estudantes do Estado da Paraba) vai, em colaborao com a Secretaria de Educao, fomentar o desenvolvimento, em nosso Estado, da cultura popular."18

    "Com a federalizao da Universidade, os estudantes universitrios paraibanos esto cogitando de manter gestes junto ao reitor para que seja inaugurada uma nova era cultural em nosso Estado, o que s viria beneficiar a cultura do nosso povo."19

    Havia no grupo da JUC da Faculdade de Filosofia pessoas pertencen-tes ao quadro oficial do Estado. Estas viram a possibilidade de conseguir, junto ao governo, meios para desenvolver um trabalho de educao que correspondesse aos ideais do grupo. Discutida em equipe, essa idia foi tomando forma e o que era busca tornou-se, um dia, realidade.

    A CEPLAR surgiu, assim, no ano de 1961, da juno de dois fatores:

    * a procura, por um grupo de pessoas da Faculdade de Filosofia, membros da JUC, de uma estrutura de base para um trabalho em educao popular;

    * o projeto do Governo do Estado de lanar, na Paraba, um movimento de educao popular.

    "Bolsas de estudo foram concedidas a jovens paraibanos para cursos intensivos na Sudene e no Movimento de Cultura Popular do Recife, (MCP) a fim de estudarem o problema da educao popular. A dois dentre eles," Jos Rodrigues Lustosa e Maria das Dores de Oliveira (Dorinha),20 "foi confiada a misso de organizarem, ao voltar, um movimento de educao po-pular, concretizado na CEPLAR, CAMPANHA DE EDUCAO POPU-LAR"21 com a finalidade de, atravs da educao e da cultura, elevar o nvel das massas populares e integr-las no processo de desenvolvimento do pas. A imprensa local relata este acontecimento em nota publicada pelo jornal A Unio: "Dentro de mais alguns dias, estar sendo lanado, em Joo Pessoa, com apoio decidido de amplos setores da opinio pblica paraibana, o Movimento de Cultura Popular, j lanado em Recife, com timos resultados. O grupo de interessados paraibanos, responsvel pelo Movimento est em Joo Pessoa desde ontem vindo de Recife, onde se submeteu a estgio especial na Superintendncia do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE)."22

    Formou-se uma equipe de base para assumir os trabalhos composta por Jos Lustosa e Dorinha de Oliveira (colocados disposio da Campanha com dedicao exclusiva) e por Iveline Lucena da Costa e

    18 Correio da Paraba de 02.03.61. 19 Correio da Paraiba de 18.06.1961. 20 Na poca, Jos Lustosa, licenciado em Filosofia e funcionrio do Palcio do Governo; Dorinha de Oliveira, licenciada em Pedagogia e Orientadora Educacional do Centro de Orientao e Pesquisas Educacionais (COPE)

    da Secretaria de Educao do Estado. 21 Extrato do documento de defesa de quatro membros da CEPLAR, apresentado Comisso Estadual de Investigao (Processo de n CCG/1469/64) a que foram submetidas aps o golpe de estado de 1964. 22 A Unio de 09.11.1961.

  • Lgia das Mercs Macedo,23 (ambas funcionando a tempo parcial num primeiro perodo e com dedicao exclusiva em seguida). A primeira tarefa foi a implantao e institucionalizao da entidade nascente: escolha de uma rea de atuao, elaborao de um projeto piloto de educao e cultura popular, elaborao dos estatutos e criao de uma estrutura de apoio externo. Essa equipe contou, na reflexo diria, com a participao do Pe. Juarez Bencio Xavier, assistente da JUC.24 Pessoas da JUC participaram, de modo mais informal, das reunies desse ncleo inicial, dentre as quais, Wilson Guedes Marinho, que mais tarde assumiu o cargo de vice-presidente. Esse grupo logo foi acrescido por aqueles que, pouco a pouco, durante o primeiro ano, se engajaram no trabalho: Lialva S.R.Lustosa, Rosilda Cartaxo, Marion Navarro de Mesquita, Denise de Gad Negcio, Lenita Peixoto de Vasconcelos, Maria das Neves Arruda, Maurcio Montenegro, Everaldo Soares Junior, Isa Quintans Guerra, Artur Amrico Siqueira Campos Cantalice e, seguramente, outros cujos nomes, por terem atuado mais informalmente, no constam dos documentos recuperados.

    Os estatutos, datados do dia 13 de janeiro de 1962, representavam a oficializao da entidade em termos jurdicos e consequente possibilidade de obter recursos. Ao elabor-lo, definiu-se com ele a estrutura organizacional e as bases de funcionamento da Campanha. Um Conselho Deliberativo, rgo mximo, representativo das entidades polticas e culturais da Capital e uma diretoria, compunham suas instncias dirigentes. Atravs do Conselho Deliberativo, elegeu-se a primeira diretoria da CEPLAR: Secretrio Geral, Jos Lustosa; Diretora do Departamento de Formao da Cultura, Dorinha de Oliveira; Diretora do Departamento de Difuso da Cultura, Iveline Lucena; Diretora do Departamento de Documentao e Informao, Lgia Macedo; e um Servio de Administrao, sob a responsabilidade de Rosilda Cartaxo. Na diviso natural de tarefas, decorrente da disponibilidade e dos postos assumidos, ficaram mais especialmente cargo das duas primeiras pessoas citadas, a gesto financeira e as negociaes com os poderes pblicos estadual e federal para obteno de recursos financeiros, em pessoal e em material. Esta foi a primeira estrutura organizacional da CEPLAR, que deveria estar subordinada a seu objetivo fundamental: contribuir para a formao de adultos conscientes que participassem do processo de mudanas no pas.

    Quatro idias constituram a base de funcionamento da entidade:

    * Em relao equipe: favorecer o mesmo nvel de responsabilidade, o mesmo poder de deciso e os mesmos direitos, isto , um trabalho de equipe. Se havia uma distribuio de tarefas, todas as atividades, sem exceo, eram discutidas e decididas em comum. Esta caracterstica foi um fator de coeso para aqueles que conduziram a Campanha, no quotidiano, at o fim.

    23 Iveline Lucena e Lgia Macedo, licenciadas em Letras neolatinas, professoras do ensino secundrio. 24 Outras pessoas ligadas Igreja, como o Pe.Everaldo Peixoto, apoiaram a Campanha at o final, inclusive materialmente.

  • * Em relao ao trabalho: instrumentalizar-se para uma ao no campo da educao e da cultura popular, a nvel terico e prtico, situando esta ao na perspectiva das lutas sociais. Isto se concretizou na organizao de grupos de estudo para aprofundar e ampliar conhecimentos25 e para adquirir mtodos de anlise da realidade. Concretizou-se tambm na criao de uma dinmica ao-reflexo e consequente desenvolvimento do esprito crtico e de pesquisa.

    * Em relao s instituies: abrir a CEPLAR para o que se chamava ento "todas as foras vivas da sociedade" integrando-as no Conselho Deliberativo. A idia, naquele momento, de reunir as "foras" existentes na cidade em torno de uma ao concreta visava garantir o apoio, mais amplo possvel, ao projeto de educao que se propunha realizar. Por "foras vivas" compreendiam-se entidades e pessoas que, de uma forma ou de outra, exerciam uma ao de influncia na sociedade. Em decorrncia desta noo, possivelmente proveniente dos meios jucistas, o Conselho Deliberativo, rgo com poder de deciso, como por exemplo, eleger e depor presidentes, foi composto por pessoas e grupos defensores das mais diversas ideologias, como consta do Art. 22 dos estatutos: "Estado, Prefeitura, Universidade, Unio Estadual dos Estudantes da Paraba, Unio Pessoense dos Estudantes Secundrios, Associao Paraibana de Imprensa, Federao dos Trabalhadores na Indstria da Paraba, Ao Catlica, Arquidiocese, Federao Esprita, Maonaria, Protestantes, Federao das Sociedades Beneficentes, Legio Brasileira de Assistncia." Essa caracterstica, bem como o estabelecimento de vnculos estreitos com o governo, continham em si os germes de uma situao de conflito potencial. Mais tarde, com a radicalizao do processo poltico dentro e fora da CEPLAR, o Conselho Deliberativo foi utilizado nos conflitos internos.

    * Em relao sociedade: atuar junto s camadas mais desfavorecidas, o que deveria ser feito com elas e no para elas. Partia-se do princpio de que o povo tem um saber, tem um potencial a serem aproveitados e desenvolvidos. A atitude da CEPLAR era de valoriz-lo, de capacit-lo para ampliar seu nvel de cultura e de conscincia poltica, de mobiliz-lo para uma participao consciente nas presses sociais para o desenvolvimento.

    Duas estruturas de apoio secundaram a equipe nos seus trabalhos:

    * O Conselho Estadual de Desenvolvimento, na pessoa de seu secretrio executivo Ronald de Queiroz Fernandes, foi o elo institucional entre a CEPLAR e o governo. A ttulo de exemplo, por convenincias burocrticas, nomeaes de pessoal para a Campanha tramitavam pelo Conselho. Ronald de Queiroz, enquanto pessoa, foi para a equipe o consultor, por excelncia, para as grandes decises.

    * A Igreja, atravs de Pe.Juarez Bencio, representante da Arquidiocese na CEPLAR, teve uma participao ativa e influente em todos os momentos decisivos.

    25 Com a participao, sobretudo, de Ronald de Queiroz, Wilson Marinho, Tarcsio de Miranda Burity e, mais tarde, Adalberto de Arajo Barreto, que orientavam os grupos em filosofia e economia poltica.

  • Outras estruturas asseguraram o funcionamento da instituio:

    * O Governo do Estado, na pessoa do governador Pedro Moreno Gondim, forneceu os recursos mnimos necessrios de modo a permitir a execuo do trabalho.

    * A Secretaria de Educao do Estado, nas pessoas dos secretrios Waldo Lima do Vale e Antnio Nominando Diniz, deu-lhe apoio em vrias ocasies, no somente nomeando professoras para servi-la, como tambm defendendo-a, publicamente, quando enfrentou campanhas de difamao.

    * A Universidade, apesar de seu auxlio material ter sido de pouca monta, muito contribuiu ao aliar-se a algumas das promoes da Campanha e, por exemplo, ao ceder locais para cursos.

    * Numa segunda fase, a CEPLAR recebeu apoio do Ministrio da Educao e Cultura (MEC) quando este a convidou a participar de seus programas educacionais.

    A CEPLAR RGO DO GOVERNO OU

    ENTIDADE INDEPENDENTE?

    A vinculao da CEPLAR com o Governo do Estado a tornava vulne-rvel poltica partidria, para cujo perigo se estava atento. Comportamento ou atitudes de um ou outro de seus membros denotando interesse em promover o governo ou se promover, eram objeto de discusso explcita no seio da equipe dirigente. Possveis tendncias foram assim neutralizadas. A preocupao era de que a entidade no se transformasse num apndice do governo, embora dele recebesse ajuda, nem numa base eleitoral para quem quer que fosse. Do incio ao fim, conseguiu-se manter uma relao estreita e ao mesmo tempo de relativa independncia poltica com o governo, como tambm uma autonomia de planejamento e decises. Juarez de Paiva Macdo, segundo presidente da CEPLAR, testemunha em seu depoimento: "O relacionamento da CEPLAR com o Governo Estadual era fluido, j que no se tratava de rgo da Administrao Pblica [...] Quanto interferncia governamental na CEPLAR conheci uma - a minha indicao para a presidncia. [...] Inexistiu creio, ao menos nos poucos meses em que estive na direo, qualquer prestao de contas alusivas a recursos financeiros originrios do Governo Pedro Gondim."

    Diversos fatores contriburam para essa independncia:

  • Em primeiro lugar, as origens da CEPLAR. O fato de sua criao ter sido a confluncia de duas iniciativas, uma da "sociedade civil" (um grupo de universitrios jucistas), e outra do prprio governo, facilitou sua relao de relativa independncia com esse. O projeto da entidade no foi elaborado dentro das instituies governamentais que atuaram, sobretudo, como suporte financeiro.

    En segundo lugar, a firmeza da equipe responsvel quanto necessidade de preservar sua independncia. Ao mesmo tempo em que se procurava garantir a "entrada" o mais livre possvel junto ao governo, havia um compromisso da equipe de no fazer declaraes pblicas elogiosas ou quaisquer manifestaes que pudessem sugerir uma identificao da CEPLAR com o governo. A presena de repre-sentantes governamentais em cerimnias pblicas da Campanha, decorrncia natural dos vnculos existentes, nunca foi usada como "carto de visita" para o pblico.

    Em terceiro lugar, a prpria atitude do Governador. Em nenhum momento Pedro Gondim procurou controlar a instituio embora tenha infludo na escolha do seu segundo presidente. Isto, porm, no constituiu uma tentativa deliberada de nela imprimir uma determina-da orientao. Pelo menos no se saberia assinalar nenhum fato que demonstre o contrrio. Conhecendo-se a linha populista do seu governo, muito possivelmente, o apoio dado CEPLAR no era desinteressado. "Com a sensibilidade poltica que tinha o governador para o que era popular, para o que tinha penetrao nas massas" afirma Ronald de Queiroz em sua entrevista, "ele no ia desprezar um mecanismo como a CEPLAR como instrumento de influncia do prprio governo se fosse possvel usar." O governador mostrou-se receptivo s solicitaes da equipe, sem colocar condies, at as vsperas do golpe. No seu depoimento, o ex-governador Pedro Gondim declara: "O Governo do Estado jamais exerceu influncia decisiva na escolha da direo do rgo, nem teve qualquer interferncia no seu programa e desempenho. Contentava-se com o bom servio e resultados oferecidos comunidade."

    Em quarto lugar, a descrena na capacidade das instituies tradicionais de responder ao grande desafio da educao das massas e o decorrente estmulo para a criao de instituies alternativas. Na mensagem do governador apresentada Assemblia Legislativa do Estado da Paraba, em 1 de junho de 1962, publicada pela Unio Editora, l-se na pgina n 78: "Com o apoio do Conselho Estadual do Desenvolvimento e da Secretaria de Educao e Cultura, foi criada a Campanha de Educao Popular, que visa alfabetizar crianas e adultos, em moldes avanados, a exemplo do que vem ocorrendo em outras unidades da Federao. A CEPLAR no pretende apenas alfabetizar os alunos, mas inclui em sua programao aulas sobre Sociologia, Economia Poltica e disciplinas afins, proporcionando, desse modo, alfabetizao e conhecimentos gerais. Os processos adotados pela Campanha so verdadeiramente avanados, superando, via de regra, a rigidez dos mtodos tradicionais."

    A CEPLAR propunha respostas novas aos problemas da educao. Contava com a credibilidade, o entusiasmo e o respeito de vrios

  • setores da populao e de lderes governamentais. Isso facilitava sua ao e a criao de uma identidade prpria, reforando a sua independncia.

    O rgo do governo com o qual manteve ligaes mais estreitas foi o Conselho Estadual de Desenvolvimento, na pessoa do seu secretrio executivo. Sua participao assumiu o carter de articulao poltica no momento da substituio dos presidentes; de interpretao dos objetivos da Campanha, quando se fazia necessrio, para aplainar desconfianas de autoridades responsveis por liberao de verbas, por exemplo. Em seu depoimento, Ronald de Queiroz cita um fato que ilustra bem sua atuao: "Assis Lemos, principal articulador da poltica de Goulart aqui na Paraba, passou a dar uma contribuio nessa negociao da CEPLAR com o Ministrio de Educao para obter ajuda direta do governo federal. Ele desempenhou esse papel usando no s sua influncia junto ao presidente, mas ao assessor da presidncia que naquela poca era Arnaldo Lafayete. Eu estive algumas vezes no Catte com o Assis Lemos para falar sobre a CEPLAR, como principal interessado."26

    O relacionamento da Campanha com o Conselho no foi tambm de dependncia. Nenhum lao formal existiu entre as duas instituies. Ronald de Queiroz integrou-se nela por afinidade com o seu projeto educacional e poltico. Como tcnico ligado Sudene, instituio que tinha um projeto poltico para a regio, sua participao era um prolongamento de sua atuao de tcnico no "tecnicista". Alm disso, o Conselho de Desenvolvimento atuava com uma certa independncia em relao ao prprio governo como o afirma ainda Ronald de Queiroz: "O Conselho de Desenvolvimento no representava o pensamento do governo, representava uma ao que estava ocorrendo dentro do governo e que este comeava a estimular porque estava vendo os resultados. E, naturalmente, porque o Conselho tambm representava a manifestao, a nvel do Estado, de uma fora muito vigorosa, atuando na regio, que era a Sudene, com o respaldo do governo federal. E, entre a CEPLAR e o Conselho, havia uma reciprocidade de interesses ."

    Pode-se dizer que a CEPLAR era uma entidade independente politica-mente, com liberdade de pensamento e de ao, e respeitada como tal, porque integrada num contexto que, globalmente, visava os mesmos objetivos.

    26 Francisco de Assis Lemos de Souza, deputado estadual paraibano. O deputado federal paraibano, Jos Joffily, tambm esteve entre os que apoiaram a CEPLAR.

  • 2. A PRIMEIRA AREA DE ATUAO:

    A POVOAO NDIO PIRAGIBE

    Neste captulo, expomos as primeiras tentativas para transformar em atos a idia de trabalhar com as classes populares e de form-las para uma participao consciente no processo de mudanas do pas. Naquele momento, uma ao educacional visando resultados a longo prazo, como a educao de crianas, tambm fazia parte das opes da Campanha.

    A MOBILIZAO DAS LIDERANAS

    E A CRIAO DE NCLEOS DE DEBATE

    A primeira implantao da CEPLAR foi na Povoao ndio Pira-gibe, conhecida por Ilha do Bispo. O governo do Estado ps disposio da equipe que criou a entidade, o Grupo Escolar Raul Machado, existente naquele bairro e praticamente abandonado. Esse Grupo, com capacidade para 500 alunos, funcionava com apenas 70 matrculas e 41 presenas. Por outro lado, aquele era um dos bairros operrios mais desfavorecidos da periferia de Joo Pessoa e uma rea de tenso social.

    O bairro da Ilha do Bispo, com uma populao de 7.000 habitantes em 1961, situado s margens do rio Sanhau e ligado Capital por uma ladeira ngreme. Ali estava instalada uma fbrica de cimento, a Cia Paraibana de Cimento Portland que, ao mesmo tempo, era fonte de trabalho para a populao e causa da debilitao de sua sade devido poeira do cimento que envolvia toda a rea habitacional. Quem descia a ladeira encontrava, s portas do bairro, um depsito pblico de lixo onde crianas e adultos catavam restos de comida e materiais diversos para sobreviver. Situao desoladora e exemplo gritante da misria em que vivia grande parte da populao.

    Paralelamente ao trabalho de redinamizao do Grupo Raul Machado, explicado mais adiante, iniciou-se uma ao conjunta com a Escola de Servio Social, para a qual a CEPLAR tornou-se

  • campo de estgio. Particularmente atravs de Marion Navarro e Denise de Gad Negcio, estagirias remuneradas pela Campanha que preparavam seu trabalho de concluso de curso, e de Dulce Maria Brito Barbosa que colaborou com a equipe, realizou-se uma pesquisa scio-cultural atingindo cerca de 70% da populao adulta. Esse estudo permitiu o levantamento da situao educacional, sanitria e habitacional da localidade. Constatou-se que 82% da populao visitada era analfabeta e a situao de sade muito precria. O relatrio de Marion Navarro sobre o resultado da pesquisa, datado de dezembro de 1962, fornece os seguintes dados:

    "75% da populao estava atingida de tuberculose; 93% era portadora de vermes; 1/3 apenas das casas do bairro possuam fossas, uma das causas de doenas infeto-parasitrias."

    O princpio definido pela CEPLAR de trabalhar com o povo e no para o povo, sem dissociar a educao e a cultura popular dos outros aspectos da vida scio-econmica e poltica, orientou a sua ao e a sua prtica na Ilha do Bispo. Lideranas locais, (Sindicato dos Trabalhadores no Cimento Cal e Gsso, Asso-ciao Beneficente dos Trabalhadores ndio Piragibe, Sociedades Recreativas: Paulista Esporte Clube, Clube dos Caadores ndio Piragibe, Maguar Esporte Clube, Praa S.P. e outras instituies), grupos de jovens e adultos e as famlias associaram-se s atividades desenvolvidas nas reas de educa-o, sade e cultura popular.

    Com base nos dados da pesquisa, dois projetos de ao foram realizados visando uma interveno nos problemas detectados e com propostas de solues concretas: campanha de construo de fossas com solicitao de ajuda ao governo do Estado e ao Deneru (Departamento Nacional de Endemias Rurais); reivindi-cao junto fbrica de cimento para utilizao de filtros permitindo, se no acabar, ao menos diminuir os estragos causa-dos pela poeira do cimento. Esses projetos foram inteiramente assumidos pela populao, sob a coordenao de lderes locais, com o apoio e a orientao da CEPLAR.

    Sobre a campanha de fossas, l-se no relatrio de Marion Na-varro: "O primeiro passo foi formar uma comisso para ir ao DENERu fazer aplo ao Diretor deste Departamento para ajudar a Povoao ndio Piragibe a dar incio campanha de fossas, obtendo dele, nesse mesmo dia, 50 conjuntos e 3000 tijolos." Verdadeiros mutires se organizaram para instalar as fossas nos fins de semana dentro de um clima de festa. Porm, uma ao como esta exigia muita perseverana. Passado o primeiro impacto, muitas idas e vindas s instituies governamentais foram necessrias para se

  • conseguir, fracionadamente, parte do material prometido. As dificuldades, a lentido burocrtica e a limitao dos resultados concretos abalavam o entusiasmo da populao, malgrado a determinao e o esprito de coeso que se criou no grupo. "Em complementao a este trabalho, prossegue Marion, combinamos trazer para a Ilha do Bispo [...] uma tcnica do DENERu, Lenita Peixoto de Vasconcelos,27 pedindo-lhe a projeo de filmes referentes a questes sanitrias. Isto para todos os habitantes da Povoao ndio Piragibe."

    Este foi o incio dos ncleos de debate que passaram a ser uma das atividades mais importantes da CEPLAR na Ilha do Bispo, garantindo a continuidade do trabalho iniciado que se prolon-gou durante meses. As dificuldades e limitaes tinham seu aspecto positivo quando ajudavam a coeso do grupo.

    Quanto s reivindicaes, vrias vezes reiteradas Fbrica de Cimento, se melhorias foram projetadas e filtros experimenta-dos, no pareceram suficientes para se poder constatar algum resultado no perodo de trs anos.

    Os ncleos de debate funcionaram como uma estrutura de apoio ao e como meio de politizao. Tinham por objetivos formar, informar, conscientizar atravs da anlise dos problemas sociais locais e nacionais. Esquetes (pequenas peas de teatro), pardias, palestras, cursos, decorrentes da ao em campo, eram formas de provocar o dilogo com os habitantes, serviam de mo-tivao para exprimirem seus problemas, questionarem sua realidade, analis-la.

    As palestras organizadas sobre temas decorrentes da realidade local (sade, alimentao, insalubridade habitacional, desempre-go), sobre temas ligados realidade regional e nacional (reformas de base) reuniam, semanalmente, nas escolas, em clu-bes e em praa pblica grande parte da populao adulta. Realizadas por especialistas de economia, nutrio, educao, tais como Ronald de Queiroz, Wilson Marinho, Lenita Peixoto, Jos Lustosa, Malaquias Batista e outros, ilustradas com suportes visuais (diapositivos, cartazes) e transmitidas por alto-falantes, quando realizadas em praa pblica, eram seguidas de debates que despertavam grande interesse e criavam uma dinmica de reflexo sobre a ao que se desenvolvia na rea.

    Os esquetes, as pardias, reproduziam situaes da vida quo-tidiana do povo, da cidade e do campo. Eram criadas e represen-tadas no bairro pela equipe da CEPLAR, reforada por

    27 Lenita Peixoto assumiu, mais tarde, o cargo de secretria geral da CEPLAR.

  • estudantes universitrios e secundaristas que descobriam a Campanha atravs destas aes. Everaldo Junior, secundarista na poca, exprime-se assim sobre a sua chegada: "Cheguei CEPLAR em maro de 62, quando estava sendo planejado um esquete que seria apresentado na Ilha do Bispo e no Varadouro [...] Discutia-se a situao do campo, do Estado. As msicas apresentadas eram pardias em que se falava do desemprego, da misria, dos problemas sociais. E o povo ouvia com muita ateno e participava dos debates. Muitas pessoas faziam perguntas. Havia muitos depoimentos a partir da prpria vida das pessoas."

    Preparar um esquete era refletir sobre o trabalho em andamento, era integrar elementos que motivassem o seu prosseguimento, era inserir na reflexo temas da problemtica local, regional ou nacional. No seu testemunho, Marion Navarro refere-se assim a essa atividade: "No sei se vocs se lembram de que, na campanha das fossas, fizemos grandes reunies, quase assemblias populares, para se tratar das fossas, mas dando-se-lhe um direcionamento scio-poltico-ideolgico. Fizemos esquetes e teatro popular nos bairros e interior, usando violo, msica etc."

    Os ncleos de debate favoreceram a participao, na Campanha, de estudantes e intelectuais ligados rea de educao e outras pessoas sensibilizadas pelas questes sociais. A presena em praa pblica de tcnicos ligados Sudene, como Ronald de Queiroz, para discutir com o povo, no era considerada como algo extraordinrio. Em sua entrevista, Ronald afirma: "Isto fazia parte de um projeto global de desenvolvimento que pretendia inclusive, mudar politicamente o Nordeste. Era uma pretenso do tcnico do Nordeste de contribuir para criar uma nova classe poltica, [...] armar, com o apoio das massas, alguma coisa que abalasse as estruturas tradicionais da representao poltica. [...] No meu caso, essa inteno se tornou muito explcita. Da minha atuao na CEPLAR." Tambm a participao de professores universitrios, intelectuais de classe mdia, nessa aproximao com o povo, no se revestia de nenhum carter extraordinrio. A maioria dos intelectuais da poca era aberta a um discurso crtico da realidade e muitos participavam do processo de conscientizao das massas. Dentro da CEPLAR, isto se dava atravs do debate, das intervenes em palestras e em seminrios .

  • REDINAMIZAO DO GRUPO ESCOLAR

    RAUL MACHADO

    A ao a nvel do ensino primrio procurou ser inovadora. No projeto de redinamizao do Grupo Raul Machado para o ensino de crianas, apresentado ao governo do Estado, propunha-se a elaborao de um programa de ensino baseado em centros de interesse ligados ao mundo ldico e imaginrio da criana e ao mundo social e de trabalho em que vivia. Propunha-se tambm a aplicao de uma pedagogia e de mtodos novos e a integrao dos pais no processo educacional.

    A realizao de um tal projeto exigia um corpo de professores com dedicao exclusiva e que ainda no tivesse sido moldado pelo tipo de ensino vigente. Os professores deveriam ser capazes de assumir tarefas pedaggicas outras que a de lecionar: pensar novas formas de trabalho, criar novos mtodos, novos documen-tos, instaurar uma dinmica de educao participativa. O projeto exigia tambm meios materiais e verbas estimadas em mais de um milho de cruzeiros. O governo do Estado supriu essas necessidades bsicas iniciais. Atravs da Secretria de Educao e Cultura, nomeou dez professoras, recm-formadas, selecionadas pela CEPLAR, com a obrigao expressa de servi-la no mnimo dois anos; autorizou a concesso de verbas; forneceu veculos e motoristas. A nota de convocao de professores publicada pelo jornal O Norte e a lei autorizando a concesso de verbas para a CEPLAR, publicada pelo Dirio Oficial, o comprovam:

    "Seleo de professores para a Campanha de Educao Popular - O Secretrio da Educao e Cultura torna pblico aos interessados que at o dia 03 de maro prximo, das 8 s 11 horas e das 13 s 17 horas, estaro abertas, no Centro de Orientao e Pesquisas Educacionais (COPE) as inscries da Campanha de Educao Popular (CEPLAR). A seleo ser realizada s 8 horas do dia 1 de maro devendo as candidatas apresentar, no ato de inscrio, Diploma do Curso Normal, devidamente legalizado. As candidaturas classificadas nos primeiros lugares sero aproveitadas como professoras da classe inicial do quadro permanente do Estado, ficando obrigadas a prestar servios na aludida campanha, pelo perodo de dois anos. Joo Pessoa, 22 de fevereiro de 1962. Waldo Lima do Vale - Secretrio."28

    28 O Norte de 28.02.1962.

  • "LEI N 2.824, DE 12 DE ABRIL DE 1962. [...]

    O GOVERNADOR DO ESTADO DA PARABA: Fao saber que o Poder Legislativo decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

    Art.1.- Fica o Poder Executivo autorizado a conceder um auxlio extraordinrio de Cr$ 1.000.000,00 (hum milho de cruzeiros) Campanha de Educao Popular (CEPLAR), para atendimento das despesas com a instalao dos seus diversos setores, no exerccio de 1962. Art.2.- concedida tambm autorizao ao Poder Executivo para subvencionar, anualmente, a Campanha de Educao Popular (CEPLAR) at o limite de Cr$ 1.000.000,00 (hum milho de cruzeiros) para ocorrer, parcialmente, s obrigaes de custeio de suas atividades. Art.3.- Para cumprimento ao disposto nos artigos anteriores poder o Governo do Estado decretar a abertura de crditos especiais at Cr$ 2.000.000,00 (dois milhes de cruzeiros) no exerccio de 1962 [...] Palcio do Governo do Estado da Paraba [...] PEDRO MORENO GONDIM."29

    Em que consistiu a ao inovadora no campo da educao de crianas? Tentou-se praticar uma forma de ensino onde no hou-vesse inadequao (como era o caso no sistema escolar da poca) entre a escola e o mundo em que a criana daquele meio vivia. Os trabalhos domsticos, o trabalho do menor (venda de bisca-tes, ferreiro, engraxate), o trabalho no campo, componentes de seu universo infantil, passaram a integrar os temas a partir dos quais aprendiam a ler, escrever, contar e a assimilar novos valo-res ligados a uma sociedade em transformao. Esta viso da educao primria traduziu-se, para a equipe de professoras, na aplicao de mtodos ativos que levavam a criana a abordar a leitura atravs de textos relacionados com a sua vivncia; a reali-zar pequenas pesquisas sobre temas diversos, permitindo-lhe descobrir e melhor integrar os ensinamentos que dela decorriam; a se exprimir atravs de criaes artesanais; a encontrar na vida escolar uma ligao com a sua vida familiar e seu meio social. Um dos resultados deste trabalho concretizou-se, mais tarde, na elaborao de um livro pelo conjunto das professoras, apresentado ao pblico em abril de 1963, em cerimnia espe-cial. Extrato do artigo intitulado "CEPLAR, exposio na Ilha do Bispo", publicado pelo jornal A Unio, comenta esta realizao: "Sob a responsabilidade da CEPLAR, o Grupo Escolar Raul Machado da Ilha do Bispo, realizou no dia 12 do corrente p. passado, uma exposio de material didtico preparado dentro do programa de ensino da escola primria. [...] mereceu destaque a apresentao da cartilha "Meu Livro" realizada sob a orientao da professora Maria da Felicidade Meira Costa de Souza e a responsabilidade das professoras

    29 Dirio Oficial de 13.04.1962.

  • Lenia Gomes, Irinete Souza e Genelice Bezerra. [...] Convm salientar tambm a pesquisa feita sobre produtos industriais, cultura da Paraba e apresentao de trabalhos de entrosamento da escola primria com problemas da comunidade onde se situa a unidade escolar, tais como O Servio d'gua da Ilha, Campanha da fossa, Combate a verminose e o Pequeno Pescador."30

    A pesquisa inicial realizada na Ilha havia mostrado que a ausn-cia das crianas escola estava relacionada com trs fatores: a fome; a utilizao do trabalho das crianas pelos pais; a desvalo-rizao da escola pelos pais. A ao junto s famlias levou-as no somente a enviarem as crianas escola, como tambm a participarem das reunies e a colaborarem nas atividades educa-tivas. Conjugando-se o fato de se ter conseguido a merenda esco-lar, atravs da Secretaria de Educao do Estado, a frequncia passou de 42 a 470 crianas no perodo de um semestre.31

    A ao da CEPLAR a nvel da educao infantil no se limitou ao mbito da Ilha do Bispo. Interveio tambm nos debates que se travavam na poca sobre o ensino primrio na Paraba, contri-buindo com suas anlises e propostas de soluo. Trechos do trabalho apresentado por ocasio do "I Encontro de Professores Primrios da Paraba", realizado em julho de 1962, intitulado Problemas Atuais do Ensino Primrio na Paraba, deixam trans-parecer o seu pensamento e o seu posicionamento com relao educao primria no Estado: "Vivemos um momento histrico em que a educao um dos fatores primordiais no processo de transformao social. O homem precisa assumir este momento a fim de satisfazer certas exigncias bsicas que aos poucos lhe esto sendo negadas, como sejam: alimentao, sade, trabalho, habitao, etc., alm de se fazer presente na vida nacional. Nesse sentido cresce a responsabilidade da escola primria a quem compete solidificar os primeiros alicerces de cada gerao formadora de um futuro que se prenuncia. [...] Notamos quo distante se encontra a escola primria das suas verdadeiras funes. Parte do descaso com que sempre cuidou o pas, desde o perodo colonial, do problema da educao popular. Ainda hoje nossa escola reflete o sistema de uma educao para uma minoria privilegiada. [...]

    Atualmente, quando a escola primria a nica considerada como "obrigatria para todos", como reza o Art. 168, I da Constituio Federal, quando a educao do povo um imperativo social e humano, a escola atinge apenas 50% da populao do Brasil. Veja-se o exemplo em nosso Estado, quando das 422.607 crianas em idade escolar, to somente 136.006 gozam do privilgio da educao. Destas, conseguem

    30 A Unio de 18.05.1963. 31 Ver artigo do jornal O Norte de 07.02.1962, intitulado "Campanha de Educao Popular Apresenta os Primeiros Resultados".

  • atingir a 3 srie primria cerca de 55.200, chegando a concluir o 5 ano a cifra desoladora de, aproximadamente, 11.400 crianas.

    Para cobrir o dficit escolar que avulta a 286.595 crianas em todo o Estado, faz-se necessria a criao de 3.611 unidades escolares, o que corresponde a um total de 7.165 professores.[...] Em nosso Estado a grande maioria do corpo docente composto de professsores leigos, muitos dos quais no possuem sequer o curso primrio completo. Ao lado disso considera-se a ausncia de meios que possibilitem um progressivo aperfeioamento desse mesmo pessoal.[...]

    Parte desses problemas apresentados deve-se interferncia, geralmente perniciosa, da poltica nos negcios da educao. Constate-se o interesse poltico nas nomeaes, remoes, e demisses de professores. Por conta disso, escolas existem com excesso de pessoal docente, enquanto outras carecem dele."

    A interveno na rea de educao de crianas representava algo de positivo para a comunidade da Ilha do Bispo e para a reflexo sobre os problemas do ensino na Paraba, mas no respondia diretamente ao objetivo da equipe que criara a entidade, o de contribuir formao de adultos conscientes para participar do processo de mudanas do pas.

    Em sua busca de definir, ampliar e concretizar seu trabalho com adultos, a CEPLAR agiu em vrias frentes:

    A nvel local, intensificou seus contactos com organizaes sindi-cais submetendo-lhes projetos, procurando atender a suas reivindicaes, participando de suas discusses. Expandiu suas atividades para os bairros do Varadouro, Rger e Santa Jlia, atravs da criao de ncleos de debate e contribuiu para a dis-cusso poltica na cidade, atravs da realizao de seminrios sobre realidade brasileira. J o primeiro deles lotou o auditrio da Faculdade de Direito. A nota publicada pelo jornal O Norte, indica o seu contedo: "Seminrio sobre Realidade Nordestina promovido pela CEPLAR. O programa [...] est assim organizado: Dia 12 - "A realidade scio-econmica do Nordeste" a cargo do Sr. Ronald Queiroz; Dia 13 - "A democratizao da cultura" pelo professor Paulo Freitas (do Movimento de Cultura Popular do Recife); Dia 14 - "O papel dos educadores na promoo do desenvolvimento do Nordeste" pelo Padre Antnio Nbrega ."32

    A nvel regional, procurou levantar recursos para aes especfi-cas. Elaborou projetos de ao mais abrangentes ligados no s alfabetizao e cultura popular, mas tambm ao aprendizado de artes industriais (termo da poca), para jovens e adultos.

    32 O Norte de 02.03.1962.

  • Projetos de construo de um Centro de Treinamento de pessoal e de dois Pavilhes - um para "letras" (em que se inclua a alfabetizao de adultos) e outro para "oficinas de artes industriais" - foram realizados e apresentados Sudene. Tentativa sem xito pois a Sudene s viria a ter verbas para investir em educao popular em 1963, com a reformulao do seu II Plano Diretor.33

    A nvel interno, organizou grupos de estudo e debate aos quais se integravam os responsveis, alm de estudantes e intelectuais que contribuam para o debate que se travava dentro da instituio. Esta comeava a ser, para muitas pessoas, um lugar de encontro e de reflexo sobre os problemas brasileiros.

    Simultaneamente s atividades acima citadas, a equipe dirigente mantinha-se atenta e informada sobre o que se passava no resto do Brasil, estabelecendo contatos com pessoas e organizaes, especialmente, no que dizia respeito s novas propostas educacionais.

    OS PRIMEIROS PASSOS PARA A

    ALFABETIZAO DE ADULTOS

    Uma das principais metas da CEPLAR era a alfabetizao de adultos. Assim, cursos noturnos de alfabetizao para adultos foram organizados na Ilha do Bispo, nas salas do Grupo Raul Machado. Cerca de 70 adultos participavam das aulas, a maior parte dos quais eram pais de alunos do Grupo, os demais, integrantes das equipes do bairro. Em sua entrevista, Alda Bezerra, supervisora do ensino noturno da Secretaria de Educao que colaborava com a Campanha, afirma: "Desde o incio o objetivo da CEPLAR era tambm de alfabetizar adultos mas com uma orientao bem precisa : a de esclarec-los sobre seus direitos e de com eles discutir sobre os grandes problemas da poca. Na Ilha do Bispo, havia em cada sala de aula entre 15 e 20 adultos e adolescentes. Cerca de quatro salas de aula ."

    O material destinado educao de adultos no estimulava a reflexo e a anlise da realidade do adulto analfabeto. A equipe

    33 O Norte de 07.02.1962.

  • do Departamento de Formao da Cultura questionava os m-todos de ensino vigentes e procurava solues de acordo com os seus objetivos.

    Em junho de 1962, atravs do professor Germano Coelho do MCP do Recife, entrou em contato com o professor Paulo Freire, educador pernambucano que desenvolvia experincias para a criao de um mtodo de alfabetizao de adultos. A equipe constatou que o Mtodo Paulo Freire lhe abria imensas perspectivas de criatividade e dilogo com os alunos, permitindo alfabetizar em tempo rpido. O Mtodo correspondia s suas expectativas.

    Em mbito nacional, o trabalho com as massas comeava a ser sinnimo de erradicao do analfabetismo e de sindicalizao, o que foi determinante para os rumos que a instituiao tomou. Este era o caminho que se lhe abria para atuar junto populao adulta. Verbas importantes eram previstas para o combate ao analfabetismo. Contando, pouco depois, com recursos, pessoal e um mtodo adequado, a CEPLAR passou a viver uma nova fase de sua histria, concentrando sua ao na alfabetizao de adul-tos e na cultura popular. As tentativas incipientes de profissiona-lizao foram abandonadas. A ao junto s crianas no Grupo Raul Machado foi assumida pela equipe de professoras prim-rias do Estado ficando, at o primeiro trimestre de 1963, sob a superviso da Campanha, especialmente, atravs de Jos Lustosa e Rosilda Cartaxo.

    No s a possibilidade de obter recursos foi determinante para a concentrao dos esforos na alfabetizao de adultos a partir do segundo semestre de 1962. Mais uma vez deu-se uma conjuno de fatores. A equipe coordenadora, no momento, era constituda sobretudo por pessoas com capacitao pedaggica. Sabe-se no haver a nenhuma coincidncia. Justamente por serem pro-fissionais da educao, haviam criado aquela instituio e com a inteno explcita de atuar junto aos adultos. Fato que gerava um efeito circular. Essa capacitao e sensibilizao para um trabalho com adultos, a tornava apta a atuar neste campo.

  • 3. A ALFABETIZAO DE ADULTOS

    PELO METODO PAULO FREIRE

    O ENCONTRO COM PAULO FREIRE

    Numa tarde de sbado do ms de junho de 1962, o encontro com Paulo Freire, em sua casa em Recife, durou algumas horas. Horas que bastaram para se decidir a ao que seria empreendida, logo depois, na rea da educao de adultos. Ao contar com entusiasmo e convico a experincia que acabara de realizar com 25 pessoas, ao apresentar as bases filosficas do seu Mtodo ainda em fase experimental e de pesquisa, Paulo Freire forneceu respostas aos questionamentos metodolgico-polticos que emergiam do trabalho de alfabetizao com os adultos da Ilha do Bispo.

    Uma literatura importante existe hoje, no Brasil e no exterior, sobre o mtodo Paulo Freire. No ser desenvolvido aqui o que outros j fizeram. Sero retomadas, todavia, as idias essenciais que levaram a equipe, de imediato, a adot-lo.

    Na concepo de Paulo Freire, educao e realidade so dois elementos indissociveis. Por um lado, a realidade fonte de contedo para a educao e, por outro lado, a educao um meio para decodific-la e analis-la nos seus aspectos sociais, econmicos e polticos. O desenvolvimento da capacidade de anlise contribui necessariamente para o desenvolvimento da conscincia crtica do adulto, levando-o a agir de modo conscien-te sobre essa realidade, modificando-a. A partir do momento em que age sobre o mundo, transformando-o, o adulto passa a ser sujeito e no objeto da sua histria. Dentro desta tica, alfabeti-zao e conscientizao so dois aspectos de uma mesma ao.

    A partir daquele primeiro encontro com Paulo Freire, elaborou-se um plano de ao que abrangia treinamento de pessoal da CE-PLAR pela equipe do Servio de Extenso Cultural da Universi-dade do Recife (SEC)34, dirigida por Paulo Freire, e aplicao de seu Mtodo pela equipe da CEPLAR. Cerca de doze pessoas se-

    34 O Servio de Extenso Cultural (SEC) foi criado em fevereiro de 1962.

  • guiram, aos sbados, durante trs meses, um curso sobre Reali-dade Brasileira e o Mtodo, no Recife. Paralelamente, a equipe do Departamento de Formao da Cultura iniciava, em Joo Pes-soa, o processo de implantao do Mtodo: escolha de um grupo, pesquisa vocabular, escolha de palavras geradoras, criao de situaes sociolgicas,35 de fichas roteiro para o coordenador, de fichas com famlias fonmicas, de fichas de cultura, atividades explicadas mais adiante.

    Para levar prtica seus princpios, Paulo Freire propunha uma nova concepo pedaggica onde o dilogo sobre a realidade concreta, sobre as situaes existenciais, passa a ser o centro do processo educativo; onde a palavra escrita, o texto, s tem senti-do dentro do contexto que lhe d significado, que lhe d conte-do; onde os educandos no so receptculos, mas "pesquisadores" crticos. Assim, para cada grupo social e profis-sional a ser atingido, a preparao pedaggica deveria partir do conhecimento da realidade scio-econmica e profissional do educando, obedecendo realizao do que se chamava "as fases do Mtodo." Paulo Freire define, assim, o significado dessas fa-ses:

    "1. Levantamento do universo vocabular dos grupos com quem se trabalhar. Este levantamento feito atravs de encontros informais com os moradores da rea a ser atingida. So escolhidos os vocbulos mais carregados de sentido existencial e, por isso, de maior contedo emocional, mas tambm os falares tpicos do povo. Suas expresses particulares, vocbulos ligados experincia dos grupos, de que a profissional parte.

    2. A segunda fase constituda pela escolha das palavras, selecionadas do universo vocabular pesquisado. Seleo a ser feita sob critrios: a - o da riqueza fonmica b - o das dificuldades fonticas (as palavras escolhidas devem responder s dificuldades fonticas da lngua, colocadas numa seqncia que v gradativamente das menores s maiores dificuldades); c - o do teor pragmtico da palavra, que implica numa maior pluralidade de engajamento da palavra numa dada realidade social, cultural, poltica, etc.

    3. A terceira fase consiste na criao de situaes existenciais, tpicas do grupo com quem se vai trabalhar. Estas situaes funcionam como desafios aos grupos. So situaes-problema, codificadas, guardando em si elementos que sero decodificados pelos grupos, com a colaborao do coordenador. O debate em torno delas ir, como o que se faz com as que nos do o conceito antropolgico de cultura, levando os grupos a se conscientizarem para que concomitantemente se alfabetizem.

    35 Os cartazes representando essas situaes foram desenhados por Maria das Neves Arruda.

  • 4. A quarta fase consiste na elaborao de fichas roteiro, que auxiliem os coordenadores de debate no seu trabalho. Essas fichas-roteiro devem ser meros subsdios para os coordenadores, jamais uma prescrio rgida a que devam obedecer e seguir.

    5. A quinta fase a elaborao de fichas com a decomposio das famlias fonmicas correspondentes aos vocbulos geradores."36

    Anteriormente a essas fases de preparao pedaggica que se repeteria cada vez que se abordasse um grupo de categoria profissional diferente, havia outra, comum a todos os grupos, onde se introduzia o conceito antropolgico de cultura. Esta etapa situava, como dizia Paulo Freire, "o papel ativo do homem em sua e com sua realidade"; situava a cultura "como acrescentamento que o homem faz ao mundo que ele no fez, como o resultado de seu trabalho, de seu esforo criador e recriador [...] como sendo a aquisio sistemtica da experincia humana"; situava o papel do homem como "sujeito e no como objeto" do mundo em que vive.37 Dez situaes apresentando a relao do homem com a natureza, chamadas "fichas de cultura", compunham essa etapa. Cada uma delas permitia no s o debate sobre temas que desenvolvessem conceitos relativos natureza, cultura, ao homem como ser criador de cultura, mas tambm permitia que se estimulasse a confiana do adulto em si mesmo, nas suas potencialidades, na sua capacidade de aprender.

    AS PRIMEIRAS EXPERINCIAS

    COM O MTODO PAULO FREIRE

    O primeiro grupo a ser alfabetizado pelo Mtodo Paulo Freire, na CEPLAR, em setembro de 1962, foi o chamado "grupo das do-msticas". Por que a escolha das domsticas? Membros da Ju-ventude Operria Catlica (JOC) estavam desenvolvendo um trabalho que muito repercutiu na classe mdia de Joo Pessoa: a sindicalizao das empregadas domsticas. Suas dirigentes, preocupadas com o fato de suas associadas no conseguirem ler as circulares, ofereceram-se para constituir um grupo de alfabetizandas. Recrutadas segundo seu grau de interesse, a

    36 Freire, Paulo. Educao Como Prtica da Liberdade. Rio de Janeiro,Ed. Paz e Terra, 1967, pp. 112 115. 37 Freire,Paulo. Conscientizao e Alfabetizao - Uma nova viso do Processo. Estudos Universitrios. Revista de Cultura da Universidade do Recife, n 4, abril-junho 1963, p.15.

  • experincia com elas realizada constituiu um verdadeiro evento dentro e fora da Campanha. Alfabetizar um adulto em 40 horas era um desafio a ganhar pois a expectativa de muitos era grande. Tendo Lgia Macedo como coordenadora (professora) do grupo, a experincia foi seguida e avaliada, diariamente, pela equipe. E, efetivamente, ao termo das 40 horas, as alfabetizandas conseguiam, embora ainda com dificuldade, decifrar o contedo de frases simples, escrever palavras e, com firmeza, seu nome. O desafio estava ganho. Referindo-se a essa experincia, Pe. Juarez Bencio relembra: "Constatei o entusiasmo das domsticas e me empolguei com seus comentrios: Toda vez, diziam elas, que a carne vem enrolada no jornal, a gente est entendendo o que diz o jornal."

    Esse grupo foi para Paulo Freire e sua equipe um terreno de ob-servao e de avaliao pois era o quarto grupo em que se apli-cava o seu Mtodo e o primeiro a ser realizado por pessoas ex-ternas sua equipe. No artigo "Conscientizao e Alfabetizao, uma nova viso do Processo", anteriormente citado, Paulo Freire, apresentando o resultado de suas primeiras experincias, refere-se ao trabalho realizado com a equipe da CEPLAR e situa o incio desse trabalho logo aps a sua experincia com o grupo de 25 pessoas: "Por outro lado, antes mesmo desta fase38 preparamos um grupo de jovens que compem a Campanha de Educao Popular de Joo Pessoa, Paraba, que aplicando naquela cidade o Mtodo, conse-guira os mesmos resultados. A CEPLAR hoje em ligao com o MEC, e o Governo da Paraba, est com 10 crculos de cultura em funciona-mento, cujo andamento observamos. E se prepara para lanar mais dez."39

    O xito da experincia estimulou a sua ampliao embora recursos especficos ainda no existissem para esse fim. Cinco novos Ncleos de Alfabetizao foram implantados em trs bairros: Ilha do Bispo, Varadouro e Torre, sobretudo, para operrios. Em funo da especificidade dos novos grupos, retomava-se o processo de preparao pedaggica das aulas, de acordo com as fases do Mtodo.

    Para ilustrar o que significava essa preparao pedaggica, segue um resumo do que foi feito em funo dos grupos de operrios dos trs bairros acima mencionados: Em seguida realizao da pesquisa vocabular, escolheram-se as palavras ge-radoras a serem utilizadas, ordenando-as em funo das dificul-dades fonmicas e de seu contedo social. Simultaneamente, projetaram-se, graficamente, as situaes sociolgicas correspondentes aos vocbulos escolhidos. Algumas dessas

    38 Por "desta fase", Paulo freire refere-se sua atuao em Recife, aps o grupo de 25 pessoas, no quadro do Programa de Emergncia do ministro Darcy Ribeiro. 39 Estudos Universitrios - Op. cit. p.19.

  • situaes, trabalhadas com os grupos durante o processo de alfabetizao, so apresentadas abaixo a ttulo de exemplo:

    1) A palavra lata, e todo o debate havido em torno dela, inspirou a reconstruo de uma cena de um operrio trabalhando na construo civil. O desenho representava um pedreiro subindo numa escada com uma lata d'gua ou de cimento na cabea.

    2) Em torno das palavras povo e fome reconstruiu-se uma feira livre.

    3) Com a palavra dinheiro criou-se uma cena em que operrios faziam fila diante de um guich para receber seu ordenado.

    4) As palavras bola e jogo eram associadas imediatamente ao fu-tebol. Assim representou-se um jogo de futebol.

    Como j foi dito, as palavras eram tambm apresentadas em fichas, parte, acompanhadas da famlia fonmica de cada uma delas. Isto permitia ao grupo criar outras palavras: lata

    la le li lo lu

    ta te ti to tu

    Este processo ia se diversificando e complicando de modo a fa-miliarizar os alfabetizandos com as