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DIREITOS HUMANOS: capacitao de educadoresvolume 1 Fundamentos histrico-loscos e poltico-jurdicos da Educao em Direitos Humanos

Presidncia da Repblica Ministrio da Educao Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade Copyright: MEC/UFPB 2008 A reproduo do todo ou parte deste documento permitida somente com a autorizao prvia e ocial do MEC. UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA Reitor Rmulo Soares Polari Vice-reitora Maria Yara Campos Matos EDITORA UNIVERSITRIA Diretor Jos Luiz da Silva Vice-diretor Jos Augusto dos Santos Filho Capa: Emmanuel Luna Editorao Eletrnica: Emmanuel Luna Reviso: Ivaldo Medeiros da Nbrega Tiragem desta edio: 8.000 exemplares Impresso no Brasil Dados Internacionais de catalogao na Publicao

D598

Direitos Humanos: capacitao de educadores / Maria de Nazar Tavares Zenaide, et al. Joo Pessoa: Editora Universitria/UFPB, 2008. 2.V. + 1 Cd-rom (material complementar) Contedo: V.1: Fundamentos histrico-loscos e poltico-jurdicos da Educao em Direitos Humanos. 148p. ISBN: 978-85-7745-246-0 1. Educao 2. Direitos Humanos. I. Zenaide, Maria de Nazar Tavares(Org.). II. Ferreira, Lcia de Ftima Guerra (Org.). III. Nder, Alexandre Antonio Gili (Org.). IV. Ttulo.

UFPB/BC O contedo dos artigos de inteira responsabilidade dos autores.

CDU: 37

Maria de Nazar Tavares Zenaide Lcia de Ftima Guerra Ferreira Alexandre Antonio Gili NderOrganizadores

DIREITOS HUMANOS: capacitao de educadores

volume 1 Fundamentos histrico-loscos e poltico-jurdicos da Educao em Direitos Humanos

Editora Universitria da UFPB Joo Pessoa 2008

CAPACITAO DE EDUCADORES DA REDE BSICA EM EDUCAO EM DIREITOS HUMANOS REDH BRASIL

UNIVERSIDADES UNIFAP Universidade Federal do Amap UFAC Universidade Federal do Acre UFAM Universidade Federal do Amazonas UFPA Universidade Federal do Par UFPB Universidade Federal da Paraba UFAL Universidade Federal de Alagoas UFS Universidade Federal de Sergipe UFBA Universidade Federal da Bahia UFES Universidade Federal do Esprito Santo UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro UFVJM Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri UNB Universidade de Braslia UFG Universidade Federal de Gois UFMS Universidade Federal do Mato Grosso do Sul UFPR Universidade Federal do Paran FURG Fundao Universidade Federal do Rio Grande

EQUIPECoordenao Nacional: Maria de Nazar Tavares Zenaide Sub-coordenadoras: Rosa Maria Godoy Silveira Lcia de Ftima Guerra Ferreira Adelaide Alves Dias Coordenaes Estaduais: UNIFAP Steve Wanderson Calheiros de Arajo UFAC Eurenice Oliveira de Lima UFAM Iraildes Caldas Torres UFPA Raimundo Alberto de Figueiredo Damasceno UFAL Mara Rejane Alves Nunes Ribeiro UFS Maria Cristina Martins UFBA Clia Maria Cordeiro UFES Maria Lina Rodrigues de Jesus UFRJ Vanessa de Oliveira Batista UFVJM Ana Catarina Perez Dias UNB Regina Lcia Sucupira Pedroza UFG Ricardo Barbosa de Lima UFMS Antonio Hilario Aguilera Urquiza UFPR Tania Stoltz FURG Sheila Stolz Supervisores dos Mdulos (UFPB) Lcia de Ftima Guerra Ferreira (Mdulo I) Alexandre Antonio Gili Nader (Mdulo II) Rosa Maria Godoy Silveira (Mdulo III) Adelaide Alves Dias (Mdulo IV) Apoio para Material Instrucional (UFPB) Carmlio Reynaldo Ferreira Alberto Ricussi Luiz Enok Junior Slvia Helena Soares Schwab (UFPR) Supervisores Regionais (UFPB) Norte Jailton Pereira dos Santos Nordeste Jlio Cesar de Macedo Sudeste Ednalva Carneiro da Cunha Santos Centro-Oeste Denise Vanderley Morais Sul Iraci Pereira de Arajo Ferreira Estagirios (UFPB) Fernanda Ribeiro Barbosa Francisco de Assis Soares Matos Guanambi Tavares de Luna Kaliandra Oliveira de Andrade Wndia Oliveira de Andrade

ApresentaoO Ministrio da Educao, por meio da Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade, promove polticas pblicas voltadas para a Educao em Direitos Humanos, tendo como referncia o Plano Nacional de Educao em Direitos Humanos (PNEDH), elaborado em 2003 e revisado em 2006 pelo MEC, Ministrio da Justia e pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos. A educao um direito fundamental de todos/as e instrumento para assegurar outros direitos. Mais especicamente, a Educao em Direitos Humanos enseja a construo de conhecimentos e contribui para o exerccio da cidadania. Por isso, o PNEDH tornou-se uma das principais referncias da poltica educacional voltada para promoo da cultura dos direitos humanos, do qual destacam-se a preocupao com a formao de prossionais da educao e de outras reas e a valorizao da escola como espao privilegiado para a formao em direitos humanos. A Secad, sobretudo a partir de 2006, tem oferecido apoio tcnico e nanceiro a projetos que visem a atender a formao continuada de prossionais da educao, a elaborao de conceitos e metodologias, bem como o aprimoramento dos currculos da educao bsica, com vistas a promover o respeito e o reconhecimento da diversidade e dos direitos humanos. Fomentar a EDH implica no apenas informar e formar sobre direitos humanos e suas relaes com os contextos sociais em que vivemos como tambm possibilita a discusso sobre o papel da escola, a reexo sobre suas prticas e suas rotinas, o desenvolvimento de processos metodolgicos participativos e de construo coletiva da aprendizagem, utilizando linguagens e materiais didticos contextualizados que respeitem e valorizem as diferenas e enfrentem as desigualdades. Polticas amplas de educao em direitos humanos que pautem o respeito e a valorizao da diversidade em suas vrias formas constituem um desao para o campo da educao no Brasil. Neste contexto, o projeto Capacitao de Educadores da Rede Bsica em Educao em Direitos Humanos, desenvolvido pela Universidade Federal da Paraba, representa uma atividade estratgica para a construo de uma poltica de Estado que tenha como eixo central a promoo e defesa dos direitos humanos para a consolidao da democracia. O Projeto tem como objetivo principal desencadear processos permanentes de EDH nos quais diversas instituies pblicas de ensino superior so chamadas para exercer o papel de irradiadoras de saberes e de novas prticas, assumindo o compromisso com a formao crtica, a criao de um pensamento autnomo, a descoberta do novo e a emancipao poltica. Resultado deste Projeto, o livro Direitos Humanos: Capacitao de Educadores um instrumento valioso na contribuio para a formao de educadores/as e constitui um importante material para disseminao das temticas de Educao em Direitos Humanos.

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Estamos convencidos/as que esta obra contribuir para o desenvolvimento de prticas de ensino-aprendizagem permeadas pelos valores de igualdade, dignidade e respeito s diversidades, ensejando o desenvolvimento de educandos/ as e para a ressignicao contnua da prxis do/a educador/a.

Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade do Ministrio da Educao

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IntroduoOs textos e atividades que so apresentados nesta publicao constituem suporte didtico-pedaggico do Projeto Capacitao de Educadores da Rede Bsica em Educao em Direitos Humanos, desenvolvido com apoio da Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade, do Ministrio da Educao, coordenado pela Universidade Federal da Paraba em regime de colaborao com as Universidades Federais do Amap, do Acre, do Amazonas, do Par, de Alagoas, de Sergipe, da Bahia, do Esprito Santo, do Rio de Janeiro, dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, de Braslia, de Gois, do Mato Grosso do Sul, do Paran e do Rio Grande. Este Projeto visa desenvolver aes para a implementao de uma cultura de Direitos Humanos nos sistemas de ensino e na sociedade, por meio da capacitao e desenvolvimento de atividades em educao em direitos humanos para e com a comunidade escolar (educadores, tcnicos e gestores) da rede de educao bsica, lideranas, prossionais das cinco reas do Plano Nacional de Educao em Direitos Humanos. A presente publicao Direitos Humanos: capacitao de educadores consta de dois volumes, com materiais referentes aos quatro mdulos do Projeto. Os Mdulos I e II Fundamentos histrico-loscos e poltico-jurdicos da Educao em Direitos Humanos constituem o volume 1. Os Mdulos III e IV Fundamentos culturais e educacionais da Educao em Direitos Humanos constituem o volume 2. No presente volume, o Mdulo I aborda os Fundamentos histricoloscos da Educao em Direitos Humanos. No que tange historicidade dos Direitos Humanos, abrange: a relao entre memria, verdade e educao em DH; a histria da Cidadania no pas e a histria da Educao em Direitos Humanos, com um enfoque sobre a Amrica Latina e o Brasil. No segmento dos contedos tico-loscos, so tratados os temas da construo do sujeito, da relao entre Moral e tica, e dos fundamentos loscos da Educao em Direitos Humanos. Neste mdulo, busca-se tambm contribuir com o mapeamento das iniciativas na rea da Educao em Direitos Humanos, em consonncia com a pesquisa realizada pela Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade, do MEC, e a Secretaria Especial dos Direitos Humanos, da Presidncia da Repblica. J o Mdulo II contempla os Fundamentos polticos e jurdicos da Educao em Direitos Humanos, assim distribudos: a relao entre Estado, Democracia e Direitos Humanos, os instrumentos de proteo dos Direitos Humanos, os marcos internacionais e a importncia da EDH na dimenso dos seus fundamentos jurdicos e polticos. Ainda, neste mdulo, apresentam-se fundamentos para a elaborao de planos de ao em e para a Educao em Direitos Humanos. Os textos que acompanham cada mdulo do Curso buscam oferecer subsdios tericos e prticos aos (s) participantes, no seu processo de capacitao na Educao em Direitos Humanos.

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As atividades constituem um conjunto de sugestes didtico-pedaggicas relacionadas aos textos, que docentes podero desenvolver em suas salas de aula e, tambm, ser utilizadas na capacitao de grupos comunitrios. Procurou-se, para isso, apresentar atividades factveis aos mais diversos contextos escolares/ educacionais do pas. Espera-se, com estes materiais, colaborar com o trabalho de docentes e demais agentes multiplicadores da Educao e Cultura em Direitos Humanos, para que esta se fortalea na Escola e, de modo mais abrangente, na sociedade brasileira, em suas diferentes regies, e se subjetive nas mentes de educadore(a)s e educando(a)s segundo uma nova mentalidade, direcionada pela vontade poltica de maior igualdade e justia social para uma convivncia fraterna e de paz. A Coordenao

SUMRIO

APRESENTAO ................................................................................................ 5 INTRODUO..................................................................................................... 7

MDULO I: FUNDAMENTOS HISTRICO-FILOSFICOS DOS DIREITOS HUMANOSO que so Direitos Humanos? ....................................................................... 13 Eduardo R. Rabenhorst O fundamento dos Direitos Humanos ............................................................ 23 Marconi Pequeno O sujeito dos Direitos Humanos. ................................................................... 29 Marconi Pequeno tica, Educao e Direitos Humanos ............................................................. 35 Marconi Pequeno Liberdade, igualdade e fraternidade na construo dos Direitos Humanos .... 41 Giuseppe Tosi O signicado e as conseqncias da Declarao Universal de 1948 ............. 49 Giuseppe Tosi Direitos Humanos, consideraes sobre fundamento e validade de um projeto poltico luz do desenvolvimento. .................................................... 57 Marcelo Gustavo Coelho da Costa Direitos Humanos e Memrias........................................................................ 67 Lcia de Ftima Guerra Ferreira Ocina: Direitos Humanos - Justicativa ...................................................... 77 Paulo Csar Carbonari

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MDULO II: FUNDAMENTOS POLTICOS E JURDICOS DA EDUCAO EM DIREITOS HUMANOSViver a Democracia: uma breve anlise sobre Democracia, Direitos Humanos e Cidadania ....................................................................... 83 Fbio F. B. de Freitas PNDH E PNEDH ............................................................................................... 93 Alexandre Antonio Gili Nder Plano de Ao em Educao em e para Direitos Humanos na Educao Bsica.. 101 Margarida Snia Marinho do Monte Silva, Maria de Nazar Tavares Zenaide Fundamentos Constitucionais e Marcos Jurdicos Internacionais dos DH do Trabalhador ................................................................................................... 111 Maria Luiza P. de A. M. Feitosa Atividade 1 Reexo e debate sobre cotas na educao superior pblica .... 119 Ana V. de Almeida, Fernanda Ribeiro Barbosa, Helma Janielle Souza de Oliveira, Kaliandra de Oliveira Andrade Atividade 2 Possibilidades da Interdisciplinaridade ................................. 125 Ana V. de Almeida, Fernanda Ribeiro Barbosa, Helma Janielle Souza de Oliveira, Kaliandra de Oliveira Andrade Atividade 3 Ampliao do repertrio didtico-pedaggico dos professores/educadores-cursistas ................................................................ 127 Ana V. de Almeida, Fernanda Ribeiro Barbosa, Helma Janielle Souza de Oliveira, Kaliandra de Oliveira Andrade ANEXOS Planejamento do Mdulo I ............................................................................... 137 Planejamento do Mdulo II .............................................................................. 138 Direitos Humanos no Brasil: Linha do Tempo........................................................ 139 Cadastro Institucional em Educao em Direitos Humanos............................. 143

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Mdulo IFUNDAMENTOS HISTRICO-FILOSFICOS DOS DIREITOS HUMANOS

O QUE SO DIREITOS HUMANOS?Eduardo R. Rabenhorst*

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Doutor em Filosoa pela Universite de Strasbourg I (1996), Diretor do Centro de Cincias Jurdicas e Professor do Programa de Ps-Graduao em Cincias Jurdicas rea de concentrao em Direitos Humanos, da Universidade Federal da Paraba.

Eduardo R. Rabenhorst INTRODUO Uma das caractersticas mais marcantes da nossa vida social e poltica que estamos sempre a falar sobre direitos. De fato, raros so os dias em que no dizemos ou ouvimos algum dizer frases do tipo Voc no tem o direito de fazer isso comigo!; Eu tenho o direito de ser feliz!; Temos o direito de ir e vir livremente, e assim por diante. Viver em um mundo no qual as pessoas so vistas como detentoras de direitos uma grande conquista, seno vejamos. Durante sculos, milhes de seres humanos, nos mais diversos lugares do mundo, inclusive no nosso pas, foram reduzidos condio de escravos e submetidos aos tratamentos mais cruis e degradantes que podemos imaginar. At bem pouco tempo, a violncia contra a mulher e o abuso sexual de crianas despertavam apenas indignao moral. Hoje acarretam punies jurdicas. H duas dcadas, os trabalhadores que no pagavam contribuies previdencirias em nosso pas eram tratados como indigentes nos hospitais ou postos de sade. Hoje dispomos de um Sistema nico de Sade que, apesar de todas as diculdades, presta servios a todos os cidados brasileiros. bem verdade que o mundo continua sendo profundamente perverso e injusto, sobretudo com relao aos mais vulnerveis. No Brasil, parte signicativa da populao sofre com a falta de emprego, sade, alimentao, gua potvel etc. Mas ao menos diante destes absurdos, hoje podemos dizer: isso no est direito! E mais importante, podemos nos dirigir ao Estado como cidados e exigir que nossas demandas sejam atendidas, no a ttulo de favor, mas exatamente porque elas so direitos! 1- AREVOLUO DOS DIREITOS

Na sua origem, a palavra direito signica exatamente aquilo que reto, correto ou justo. Da a idia de que um homem honesto um homem direito. Por outro lado, o termo direito se ope ao que torto, avesso ou injusto. De onde que, diante de uma injustia, sempre podemos dizer: isso no est direito!. No dia 8 de maro de 1857, por exemplo, na cidade norte-americana de Nova Iorque, operrias tecels zeram uma greve, ocupando a fbrica de tecidos na qual trabalhavam. Reivindicavam melhores condies de trabalho e a equiparao de salrios com os homens, que ganhavam trs vezes mais pelo mesmo trabalho. A manifestao foi reprimida com uma brutal violncia. As mulheres foram trancadas dentro da fbrica, que foi incendiada. Cerca de 130 tecels morreram carbonizadas. O que podemos pensar sobre este ato brbaro? Falar de direitos, portanto, , em primeiro lugar, falar do desejo e da necessidade que possumos de viver em um mundo justo. Contudo, direitos no so apenas demandas por justia. Eles so, tambm, o reconhecimento de que algo nos devido. Neste sentido, como j dissemos anteriormente, direitos no so favores, splicas ou gentilezas. Se existe um direito, porque h um dbito e uma obrigao correlata. Por conseguinte, no se pede um direito, luta-se por ele. Quando reivindicamos algo que nos devido, no estamos rogando um favor, mas exigindo que justia seja feita, que o nosso direito seja reconhecido. Mdulo Ifundamentos histrico-loscos dos direitos humanos DIREITOS HUMANOS: capacitao de educadores

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O que so direitos humanos? As 130 tecels de Nova Iorque no morreram por nada. Se as mulheres possuem, atualmente, uma srie de direitos fundamentais, isso se deve ao sacrifcio dessas heronas e luta de tantas outras. bem verdade que as mulheres continuam a ser discriminadas e tratadas com profunda injustia. Contudo, hoje elas dispem de um conjunto de instrumentos e de instituies voltadas para a defesa e promoo de sua dignidade. Poder se ver como sujeito de direitos. Poder exigir que tais direitos sejam respeitados. Poder lutar para ter novos direitos. Eis uma transformao que afetou radicalmente a maneira como ns nos percebemos como pessoas e cidados. Uma verdadeira revoluo, como bem disse o lsofo canadense Michael Ignatieff. 2- OQUE SIGNIFICA

TER

UM DIREITO?

Se vamos falar sobre direitos, bom que tenhamos uma noo um pouco mais precisa do que signica ter um direito. Um direito, de forma muito geral, a possibilidade de agir ou o poder de exigir uma conduta dos outros, tanto uma ao quanto uma omisso. Por exemplo, a Constituio Federal, em seu artigo 5, diz que todo brasileiro tem direito liberdade de expresso. Isso signica que temos a possibilidade de expressar livremente nossas convices religiosas, mas tambm que podemos exigir que os outros, principalmente o Estado ou os membros de outras religies, no criem obstculos nossa liberdade de culto. Observe, por conseguinte, que a cada direito corresponde um dever. Na realidade, quando digo, por exemplo, que tenho direito vida, estou exigindo o direito de no morrer injustamente, o que signica que os outros tm o dever de respeitar a minha vida. Ter um direito, por conseguinte, ser benecirio de um dever correlativo por parte de outras pessoas ou do prprio Estado. Para cada classe de direitos existentes, h pessoas ou instituies com deveres correlatos. Se, como diz a Constituio Federal, temos direito educao, isso signica que o Poder Pblico (governos e prefeituras) tem a obrigao de construir escolas e assegurar que o ensino pblico e gratuito seja oferecido a todas as pessoas. Dizer que existe um dever correspondente a um direito no signica que os direitos possuam necessariamente eccia, isto , que eles sempre consigam produzir efeitos concretos na realidade. possvel que eu tenha um direito com um dever correspondente, mas que, por alguma razo, no seja observado. Se procuro um hospital pblico e no consigo ser atendido, por exemplo, o Estado est deixando de cumprir seu dever. Por conseguinte, meu direito sade no est tendo a devida eccia. Ora, o que devemos fazer para que os deveres correspondentes aos nossos direitos sejam observados? Para que os direitos no sejam apenas frases escritas em um pedao de papel, mas se convertam em obrigaes plenamente realizadas, faz-se necessria a existncia de dois grandes instrumentos. Em primeiro lugar, os instrumentos jurdicos, que so as leis, no sentido mais amplo da palavra (Declaraes, Tratados, Pactos, Convenes, Constituies etc.), e as instituies responsveis por sua aplicao. Em seguida, os instrumentos extra-jurdicos resultantes doDIREITOS HUMANOS: capacitao de educadores

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Eduardo R. Rabenhorst poder social, isto , da nossa prpria capacidade de organizao e de reivindicao (movimentos sociais, associaes de moradores, partidos polticos, sindicatos etc.). Em suma, os direitos dependem da existncia de leis, juzes, advogados etc. Porm, muito dicilmente eles sero observados se no tivermos conscincia e capacidade de organizao para lutar por eles. 3- DEONDE VM OS DIREITOS?

Direitos, como acabamos de ver, so uma razo para agir ou o poder de exigir dos outros um determinado comportamento. primeira vista, tal possibilidade decorre das normas jurdicas existentes na sociedade ou dos acordos que rmamos com os outros. Por exemplo, temos o direito liberdade religiosa porque a Constituio Federal assim estabeleceu em seu artigo 5. Por outro lado, temos o direito de cobrar o cumprimento de uma promessa feita, simplesmente porque algum aceitou voluntariamente tal compromisso. Contudo, muitos lsofos acreditam que os direitos guardam relao com a forma como pensamos o que o ser humano e como deve ser sua relao com os outros seres humanos. No h uma nica maneira de se pensar tais assuntos, mas ao menos, no caso da cultura ocidental, por razes que veremos mais adiante, predomina a idia de que os seres humanos so detentores de determinados direitos em razo de sua dignidade, isto , do valor absoluto que eles possuem. Conforme observou o lsofo alemo Immanuel Kant, podemos avaliar as coisas pelo preo ou pela dignidade. Tudo aquilo que pode ser substitudo por algo equivalente, tem um preo. Um objeto, um produto, um servio, tudo isso pode receber um preo econmico ou um valor afetivo. Contudo, existe algo que no pode ser substitudo por nada de equivalente e que a prpria vida humana. Cada ser humano nico e irrepetvel. Por isso mesmo, ao contrrio das coisas, os seres humanos no tm preo ou valor, mas possuem dignidade, isto , um valor incondicionado e absoluto que ultrapassa todos os valores. Diferentemente das coisas, os seres humanos so pessoas, termo jurdico que designa exatamente o detentor de direitos. Por isso mesmo, os seres humanos devem ser sempre tratados com respeito, isto , como um m em si mesmo. Cada vez que usamos algum como coisa, isto , como instrumento para a obteno de algo, estamos a violar a sua dignidade e, conseqentemente, a desrespeitar seus direitos fundamentais. 4- OSDIREITOS HUMANOS

O que se convencionou chamar direitos humanos, so exatamente os direitos correspondentes dignidade dos seres humanos. So direitos que possumos no porque o Estado assim decidiu, atravs de suas leis, ou porque ns mesmos assim o zemos, por intermdio dos nossos acordos. Direitos humanos, por mais pleonstico que isso possa parecer, so direitos que possumos pelo simples fato de que somos humanos. Essa uma idia profundamente revolucionria, como j dissemos, e muitos sacrifcios foram necessrios para que chegssemos at ela. A histria da maldade Mdulo Ifundamentos histrico-loscos dos direitos humanos

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O que so direitos humanos? humana longa e assustadora, e a lista dos mortos sempre ultrapassou a casa dos milhes. Milhes de negros africanos capturados, tracados e transformados em escravos por toda a Amrica. Milhes de ndios dizimados por guerras e doenas trazidas pelos colonizadores. Milhes de judeus mortos pelos nazistas em campos de concentrao. Foi contra essas deplorveis barbries que construmos o consenso de que os seres humanos devem ser reconhecidos como detentores de direitos inatos, ainda que losocamente tal idia venha a ensejar grandes controvrsias. Por isso mesmo, podemos dizer que os direitos humanos guardam relao com valores e interesses que julgamos ser fundamentais e que no podem ser barganhados por outros valores ou interesses secundrios. Da porque um jurista norte-americano, Ronald Dworkin, concebe os direitos humanos como coringas, isto , como aquelas cartas do jogo de baralhos que possuem um valor especial, podendo ganhar para quaisquer outras. Por exemplo, o Estado poderia desejar matar todos os suspeitos de cometerem delitos em nome da reduo da criminalidade. Contudo, caso isso viesse a acontecer, poderamos evocar em nossa defesa a existncia de valores mais importantes, tais como a vida e a integridade fsica dos seres humanos. Na metfora de um jogo que estaramos a jogar contra o Estado, tais valores funcionariam como trunfos ou coringas. Obviamente, isso no signica que todos os direitos sejam absolutos, no sentido de que devam ser observados de forma incondicional. Anal, o direito que tenho liberdade de expresso no me autoriza a sair por a ofendendo as outras pessoas, pois estas tambm tm direito honra e vida privada. Na verdade, todo direito precisa ser ponderado, de modo que possamos avaliar seu peso ou importncia, bem como sua compatibilidade com o interesse coletivo. 5- SUJEITOSE OBJETOS DOS DIREITOS HUMANOS

Quem dispe de um direito, chamado de sujeito de direito. Por outra parte, matria ou assunto do qual o direito trata, recebe o nome de objeto de direito. O direito liberdade religiosa, por exemplo, tem como sujeito os indivduos ou grupos que desejam expressar uma convico religiosa. O objeto deste direito, por sua vez, tambm chamado de bem jurdico protegido, a prpria liberdade em questo. Os sujeitos de direitos podem ser individuais ou coletivos. O direito de votar e ser votado, por exemplo, um direito individual. O direito de greve, em contrapartida, um direito coletivo. Com efeito, a histria dos direitos humanos pode ser vista como um processo de expanso dos sujeitos de direitos e dos objetos correspondentes. Os primeiros direitos humanos, que surgiram no sculo XVIII, so os chamados direitos civis e polticos. Os sujeitos destes direitos so os indivduos; objetos sobre os quais eles versam, por sua vez, so as liberdades individuais (liberdade de ir e vir, liberdade de expresso, liberdade de crena etc.). Por isso mesmo, os direitos civis e polticos so tambm conhecidos como direitosliberdade. No sculo XIX, por sua vez, apareceram os direitos sociais, econmicos e culturais, cujos sujeitos so tambm os indivduos, s que agora consideradosDIREITOS HUMANOS: capacitao de educadores

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Eduardo R. Rabenhorst do ponto de vista coletivo e no plano da distribuio dos recursos sociais. So os chamados direitos-prestao, posto que exigem uma interveno por parte do Estado de maneira a suprir as necessidades mais bsicas dos indivduos e a propiciar o prprio exerccio das liberdades individuais. A diferena entre um direito-liberdade e um direito-prestao pode ser compreendida a partir do seguinte exemplo: de acordo com a Constituio Federal brasileira, temos o direito de ir e vir livremente, porm tal direito nunca poder ser plenamente exercido se no dispomos de transporte pblico, no temos dinheiro para comprar a passagem, ou caso sejamos portadores de uma necessidade especial, se no existem rampas para a cadeira de rodas que utilizamos. O sculo XX foi o mais rico do ponto de vista da expanso dos direitos humanos. Nele surgiram os direitos difusos, assim denominados porque no tm um sujeito especco, mas interessam humanidade como um todo (direito ao desenvolvimento, direito paz, direito ao meio ambiente protegido etc.). Posteriormente, o mesmo sculo deu lugar a direitos mais exticos que tratam dos animais, da natureza e dos embries, por exemplo. Pode-se dizer que os sujeitos dos direitos humanos conheceram, ao longo da histria, no apenas uma expanso, mas tambm um interessante processo de especicao. Os direitos humanos clssicos no valorizavam os elementos de diferenciao de um indivduo com relao ao outro (gnero, etnia, idade, opo sexual etc.), mas concebiam seus titulares de forma genrica e abstrata (o homem, o cidado etc.). Na contemporaneidade, ao contrrio, os direitos humanos tendem a vislumbrar os sujeitos de forma concreta e particular, isto , como indivduos historicamente situados, inseridos numa estrutura social, e portadores de necessidades especcas. Da falarmos de direitos das mulheres, direitos das crianas, direitos dos portadores de decincia e direitos dos homossexuais, dentre outros. 6- DIREITOSHUMANOS: CRTICAS

Conforme foi dito no inicio deste texto, certamente uma grande vantagem viver em uma sociedade onde as pessoas, apesar de todas as diferenas, tm os mesmos direitos bsicos. Contudo, no so poucos os autores que, por razes as mais diversas, criticam a idia de direitos humanos. Alguns crem absurda a tese de que o homem detentor de direitos inatos. Direitos, dizem tais pessoas, so criaes humanas e no algo espontneo, isto , proveniente da natureza ou de Deus. Outros acusam os direitos humanos de serem uma criao arbitrria da cultura ocidental, uma cultura profundamente individualista e egosta, na qual os indivduos se vem como clulas circundadas por direitos, e no como membros que fazem parte de um todo e que tm deveres com relao ao mesmo. Por m, alguns estimam que a idia de direitos humanos exerceria o papel ideolgico de manuteno da ordem dominante, impedindo reformas polticas e sociais. Anal, do que adianta dizer que brancos e negros, homens e mulheres, e assim por diante, tm o mesmo direito, se as desigualdades sociais e econmicas, que dividem a sociedade, teimam em persistir? Mdulo Ifundamentos histrico-loscos dos direitos humanos DIREITOS HUMANOS: capacitao de educadores

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O que so direitos humanos? Tais crticas so instigantes, mas elas suscitam respostas razoveis por parte dos defensores dos direitos humanos. certo que a idia de dignidade humana como fundamento dos direitos humanos losocamente questionvel. De fato, o que poderia justicar, fora de uma perspectiva religiosa ou dogmtica, a indistinta atribuio aos seres humanos de um mesmo valor? No entanto, podemos argumentar contra esta crtica dizendo que a dignidade o valor que atribumos aos seres humanos em funo das nossas crenas sobre o modo como os mesmos devem ser tratados. Vimos tantas injustias e tantos atos brbaros serem cometidos contra a humanidade, que fomos levados a formar a convico de que os homens precisam ser reconhecidos como titulares de direitos bsicos. A crtica de que os direitos humanos representam um ponto de vista de uma cultura ocidental de trao profundamente egosta pode ser rebatida a partir de vrios argumentos. Em primeiro lugar, no est provado que os direitos humanos sejam produto genuno da cultura ocidental ou algo incompatvel com determinadas culturas. Em seguida, mesmo que esta crtica esteja fundada, isso signica apenas que os direitos humanos no so universais, e no que eles no poderiam ser universalizados de forma democrtica e respeitadora da diversidade cultural. Por m, bem verdade que uma boa parcela dos direitos humanos guarda relao com liberdades individuais, o que parece ser tpico de uma sociedade individualista, mas no podemos esquecer os vrios direitos que acentuam uma vida solidria, tais como os direitos sociais, por exemplo. A ltima crtica, por sua vez, pode ser respondida a partir da idia de que os direitos humanos, mesmo no questionando as bases de uma sociedade capitalista, podem servir como um instrumento construo de uma sociedade justa e solidria. Em outras palavras, os direitos humanos no so uma panacia contra todos os males sociais e econmicos, mas sem eles, dicilmente, poderemos aspirar por um mundo decente e eqitativo. 7- DIREITOSHUMANOS NA SOCIEDADE BRASILEIRA.

GUISA DE CONCLUSO

A histria dos direitos humanos no Brasil pode ser vista como obra de todos aqueles que, atravs de insurreies, rebelies e revoltas, lutaram contra uma estrutura de dominao que vigorou em nosso pas durante sculos e que ainda persiste em muitos aspectos, principalmente no que concerne s desigualdades sociais. Por isso mesmo, a idia de direitos humanos em nosso pas permanece sendo vista como algo subversivo e transgressor. Nas ltimas dcadas, as classes populares e os movimentos sociais tm feito um uso intenso dos direitos humanos como instrumento de transformao da ordem dominante, o que explica a ao enrgica de determinados grupos conservadores, no sentido de tentar associar a causa dos direitos humanos mera defesa das pessoas que cometeram um delito. Da acusaes falsas do tipo: direitos humanos coisa de bandido ou onde esto os direitos das vtimas?. Estas acusaes no procedem. Anal, os direitos humanos, como vimos, ultrapassam largamente a esfera penal. Certo, muitas organizaes, como a Anistia Internacional, lutam pelos direitos das pessoas encarceradas. MasDIREITOS HUMANOS: capacitao de educadores

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Eduardo R. Rabenhorst outras entidades, como o Greenpeace, por exemplo, existem para a defesa do meio ambiente. Na verdade, para cada direito humano reconhecido no processo de expanso tratado no item 5 deste texto, existem dezenas ou centenas de organizaes militantes. O mesmo ocorre com relao s vtimas de delitos. O GAJOPE (Grupo de Apoio Jurdico s Organizaes Populares), por exemplo, uma entidade brasileira que presta assistncia deste tipo. Contudo, sempre bom lembrar que, mesmo as pessoas que cometeram delitos graves, tm direitos bsicos que devem ser respeitados. Quem comete um delito, pode perder sua liberdade (em alguns pases at a vida), mas nunca sua dignidade. Assim como a amizade e o amor, os direitos precisam ser cultivados, pois no existe qualquer garantia de que este importante patrimnio moral da humanidade permanea intocado. Recebemos todos os dias, de diversas partes do mundo, notcias sobre graves violaes e ameaas aos direitos humanos. De onde a importncia da educao em direitos humanos, concebida no como a simples introduo de um contedo temtico sobre tais direitos nos programas escolares ou universitrios, mas essencialmente como um meio capaz de proporcionar a construo de uma cidadania ativa em nosso pas. Este o desao que se impe ao conjunto da sociedade brasileira, principalmente aos mais jovens. REFERNCIAS COMENTADAS 1- BIELEFELDT, Heiner. Filosoa dos direitos humanos. So Leopoldo: Unisinos, 2000. Abordagem bastante completa do debate sobre as crticas endereadas aos direitos humanos, principalmente aquelas concernentes ao suposto carter ocidental dos mesmos. 2- BOBBIO, Norberto. A Era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. Este livro do clebre lsofo italiano do direito e da poltica ainda hoje uma das melhores introdues, em lngua portuguesa, ao tema dos direitos humanos. Outra tima opo o livro de IGNATIEFF, Michael. The Rights Revolution, publicado no Canad pela House of Hanansi Press, em 2000, porm sem traduo em portugus. 3- EDMUNDSON, William. Uma introduo aos direitos. So Paulo: Martins Fontes, 2006. Trata-se de outra excelente abordagem introdutria ao tema, no entanto, um pouco mais losca do que aquela encontrada no texto de Bobbio. 4- LOPES, Jos Reinaldo de Lima. Direitos sociais. So Paulo: Mtodo, 2006. Argumentos instigantes sobre as razes da resistncia idia de direitos humanos em nosso pas, nas ltimas dcadas. 5- PECE-BABA MARTINEZ, Gregrio. Curso de derechos fundamentales. Madrid: Universidad Carlos Magno, 1999. Os que lem em espanhol, encontro aqui um exame bastante completo do processo de expanso dos sujeitos dos direitos humanos e dos bens jurdicos correspondentes. 6- RABENHORST, Eduardo. Dignidade humana e moralidade democrtica. Braslia: Braslia Jurdica, 2001. Sobre a idia de dignidade humana, tomamos a Mdulo Ifundamentos histrico-loscos dos direitos humanos DIREITOS HUMANOS: capacitao de educadores

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O que so direitos humanos? liberdade de sugerir a leitura de trabalho de nossa autoria, por julgarmos que se trata de texto bastante introdutrio. 7- TRINDADE Jos Damio de Lima. Histria social dos direitos humanos. So Paulo: Petrpolis, 2002. Um dos raros textos sobre histria dos direitos humanos publicados em nosso pas, na perspectiva da chamada histria social. Existe tambm, em uma linha semelhante, o livro de PINSKY, Jaime e Carla PINSKY, Histria da cidadania. So Paulo: Contexto, 2003. 8- VIEIRA, Oscar Vilhena. Direitos Fundamentais. So Paulo: Direito GV/ Malheiros, 2006. Um timo texto sobre o que signica ter um direito pode ser encontrado no primeiro captulo deste livro.

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O FUNDAMENTO DOS DIREITOS HUMANOSMarconi Pequeno*

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Ps-doutor em Filosoa pela Universidade de Montreal (Canad). Docente do Programa de Ps-Graduao em Filosoa e membro do Ncleo de Cidadania e Direitos Humanos da Uni-versidade Federal da Paraba.

Marconi Pequeno Em nossa poca, muito se fala sobre os direitos fundamentais da pessoa humana, porm tal expresso exige que saibamos explicar em que consistem tais direitos, por que so essenciais e em que se baseiam esses direitos considerados fundamentais. Ora, sabemos que o contedo e a importncia dos direitos humanos nem sempre esto xados na conscincia das pessoas. No evidente a todos os indivduos que eles possuem determinados direitos, nem, tampouco, que estes devem ser respeitados. Por isso, precisamos primeiramente entender o que signica a expresso direitos humanos. Os direitos humanos so aqueles princpios ou valores que permitem a uma pessoa armar sua condio humana e participar plenamente da vida. Tais direitos fazem com que o indivduo possa vivenciar plenamente sua condio biolgica, psicolgica, econmica, social cultural e poltica. Os direitos humanos se aplicam a todos os homens e servem para proteger a pessoa de tudo que possa negar sua condio humana. Com isso, eles aparecem como um instrumento de proteo do sujeito contra todo tipo de violncia. Pretende-se, com isso, armar que eles tm, pelo menos teoricamente, um valor universal, ou seja, devem ser reconhecidos e respeitados por todos os homens, em todos os tempos e sociedades. Os direitos humanos servem, assim, para assegurar ao homem o exerccio da liberdade, a preservao da dignidade e a proteo da sua existncia. Tratase, portanto, daqueles direitos considerados fundamentais, que tornam os homens iguais, independentemente do sexo, nacionalidade, etnia, classe social, prosso, opo poltica, crena religiosa ou convico moral. Eles so essenciais conquista de uma vida digna, da serem considerados fundamentais nossa existncia. Uma vez que j sabemos o que so os direitos humanos fundamentais, cabe-nos agora encontrar o sentido daquilo que chamamos de fundamento de tais direitos. Quando falamos em fundamento dos direitos humanos, estamos nos referindo sua natureza ou ainda sua razo de ser. Mas qual a razo de ser desses direitos? Uma resposta possvel seria: eles existem para zelar, proteger ou promover a humanidade que h em todos ns, fazendo com que o ser humano no seja reduzido a uma coisa, a um objeto qualquer do mundo. O fundamento pode tambm ser concebido como fonte ou origem de algo. Nesse sentido, a idia de fundamento serve, tambm, para justicar a importncia, o valor e a necessidade desses direitos. Ainda que no se possa armar a existncia de um fundamento absoluto que possa garantir a efetivao dos direitos humanos j que a noo do que vem a ser dignidade pode mudar no tempo e no espao possvel considerar que haver sempre uma idia, um valor ou um princpio que servir para denir a natureza prpria do homem. Uma vez que o fundamento , como vimos, aquilo que representa a causa ou razo de ser de um fato, situao ou fenmeno, podese considerar o fundamento dos direitos humanos como a essncia que torna humano o nosso ser. certo que o problema do fundamento dos direitos humanos no parece ser algo prioritrio nas discusses e estudos elaborados sobre o tema. Alguns autores consideram at mesmo impossvel que a denio de um fundamento nico seja capaz de nos fazer superar os desaos representados pela diversidade de culturas, hbitos, costumes, convenes e comportamentos prprios s Mdulo Ifundamentos histrico-loscos dos direitos humanos DIREITOS HUMANOS: capacitao de educadores

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O fundamento dos direitos humanos inmeras sociedades. Alm do que, a determinao de apenas um fundamento seria incapaz de reetir as mltiplas noes do que vem a ser o homem, sua natureza e constituio. Nesse caso, teramos que reconhecer que cada cultura poderia denir, a partir de seus prprios valores ou hbitos, aquilo que melhor pode denir a essncia do homem. Com isso, poderamos pensar como Bobbio (1982, p. 25) para quem o problema grave do nosso tempo, com relao aos direitos humanos, no mais o de fundament-los e sim o de proteg-los. Talvez seja correto considerar que a grande questo que nos desaa, no de carter losco, histrico ou jurdico, mas sim poltico. O problema poltico se revela do seguinte modo: como evitar que os direitos humanos sejam violados, negados, ignorados? Ora, os direitos humanos somente adquirem existncia efetiva quando so vivenciados. Eis por que precisamos criar os meios que tornem possvel a sua realizao. Anal, quando falamos na necessidade de que esses direitos sejam praticados, isso j supe que os mesmos tm uma causa ou razo de ser. Mas ser que o problema referente fundamentao dos direitos humanos est mesmo resolvido? Trata-se de uma questo com a qual ns no deveramos mais nos preocupar? A resposta : nem o problema foi resolvido, nem essa questo deixou de ter importncia, como indicam as mltiplas concepes do tema ao longo do tempo. No transcorrer da histria do pensamento, muitas foram as tentativas de justicar a existncia dos direitos humanos e de fundament-los. Uma delas j se anuncia no sculo XVII, com a idia de que o homem naturalmente tem direito vida e igualdade de oportunidades (LOCKE, 1978). Este preceito seguido pela noo de que todos os homens nascem livres e iguais (ROUSSEAU, 1985) ou ainda pela armao de que os indivduos possuem direitos inatos e indispensveis preservao de sua existncia. Os homens teriam, assim, direitos decorrentes de sua prpria natureza. A atribuio de direitos naturais ao indivduo se inspira na idia de que o homem um ser provido de sensibilidade e razo, capaz de se relacionar com o seu semelhante e de constituir as bases do seu prprio viver. Alm disso, ele tambm caracterizado pela sua tendncia sociabilidade, autonomia da vontade, capacidade de dominar os instintos e de seguir normas de conduta moral. Todos esses elementos caracterizam a sua humanidade e servem para justicar aquilo que marca a sua essncia fundamental: a dignidade. O fundamento dos direitos humanos est baseado na idia de dignidade. A dignidade a qualidade que dene a essncia da pessoa humana, ou ainda o valor que confere humanidade ao sujeito. Trata-se daquilo que existe no ser humano pelo simples fato de ele ser humano. Cada homem traz consigo a forma inteira da condio humana, armava o lsofo francs Montaigne (2000), ao se referir a esse elemento que nos dene em nossa condio prpria de ser. A idia de dignidade deve, pois, garantir a liberdade e a autonomia do sujeito. Tal noo nos permite armar que todo ser humano tem um valor primordial, independentemente de sua vida particular ou de sua posio social. Eis por que o homem deve ser considerado como um m em si mesmo, jamais como um meio ou instrumento para a realizao de algo (KANT, 1980). O homem um ser cuja existncia constitui um valor absoluto, ou seja, nada do que existe no mundo lhe superior ou equivalente.DIREITOS HUMANOS: capacitao de educadores

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Marconi Pequeno A dignidade um valor incondicional (ela deve existir independentemente de qualquer coisa), incomensurvel (no se pode medir ou avaliar sua extenso), insubstituvel (nada pode ocupar seu lugar de importncia na nossa vida), e no admite equivalente (ela est acima de qualquer outro princpio ou idia). Trata-se de algo que possui uma dimenso qualitativa, jamais quantitativa. A dignidade possui um valor intrnseco, por isso uma pessoa no pode ter mais dignidade do que outra. Apesar de sua indiscutvel importncia, parece claro que nem sempre podemos dizer com segurana o que signica essa noo. No fcil denir de maneira ampla, satisfatria e inquestionvel, o que vem a ser dignidade humana. Assim como tambm acontece com alguns fenmenos como o tempo, o amor ou a felicidade, por exemplo, podemos at saber o que signica a dignidade, porm nem sempre somos capazes de explic-la. Todavia, ainda que esta noo parea confusa, complexa ou imprecisa, sempre possvel perceber quando ela, a dignidade, negada, violada, esquecida. De fato, no precisamos saber denir dignidade humana para reconhecer que ela existe como uma marca fundamental do sujeito. Por isso, no necessrio compreender o que este termo signica para proteger os que tm sua dignidade ameaada. Defender, zelar, promover a dignidade do homem j parece ser o bastante para tornar nossa vida social menos injusta e violenta. Portanto, mesmo que esse termo se revele pouco claro ou mesmo indenvel, parece evidente que somos capazes de reconhecer um comportamento ou uma situao em que a dignidade atingida. Assim, o que acontece, por exemplo, quando constatamos o sofrimento de pacientes em las de hospitais pblicos, a condio de excluso a que so submetidos os mendigos e crianas em situao de risco, o drama dos desempregados e outros marginalizados sociais. Quando defendemos os direitos desses indivduos, ns o fazemos sempre em nome de uma dignidade que foi negada, esquecida, violada. Desse modo, os direitos humanos so considerados fundamentais porque so indispensveis para que a pessoa possa viver com dignidade. Mas, convm saber em que se baseia essa idia de dignidade. Durante muito tempo a idia de dignidade estava baseada exclusivamente na crena da criao divina, isto , na armao de que a essncia do homem residia no fato de ele ter sido criado imagem e semelhana de Deus. Ainda que essa noo continue a ser defendida por muitos, h ainda os que concebem a dignidade no como produto da ordem divina, mas da natureza racional do homem. O homem seria detentor de uma faculdade superior que o torna essencialmente nico e, portanto, diferente dos demais seres. Assim, de posse da razo, o homem teria criado o mundo da cultura, o universo da moral e do direito e at mesmo a idia de dignidade que lhe serve de fundamento. Assim, enquanto atributo essencial do homem, a dignidade frequentemente justicada pelo fato de que o homem goza de uma qualidade especial que o difere dos demais seres: a razo. esta faculdade que funda a autonomia da sua vontade e a liberdade que orienta sua ao no mundo. Mas sabemos que a dignidade do ser humano no pode ser denida apenas pela racionalidade que caracteriza o sujeito. O homem um ser dotado de razo, mas tambm de emoo, isto , de sensaes que lhe permitem se indignar, sentir vergonha, remorso, compaixo, culpa. O homem no seria um animal racional Mdulo Ifundamentos histrico-loscos dos direitos humanos DIREITOS HUMANOS: capacitao de educadores

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O fundamento dos direitos humanos se ele tambm no fosse um animal afetivo. Pode-se armar que nos tornamos diferentes dos outros animais porque, dentre outras capacidades, usamos nossos sentimentos em prol dos nossos semelhantes e da conquista de uma vida social mais justa e harmoniosa. Portanto, o ser humano tambm tem sua dignidade extrada desses elementos que o tornam capaz de agir com autonomia, liberdade e responsabilidade. O homem concebido como o nico ser dotado de vontade, ou seja, ele capaz de agir de forma livre e de controlar os apetites, desejos e inclinaes determinados pelos seus instintos. Essa capacidade de escolher e de elaborar suas prprias normas de conduta faz com que o homem se diferencie dos outros animais. Com isso, ele constri as bases do mundo social com base nos valores de bem e mal, justia e injustia, vcio e virtude. O homem um ser moral e poltico e essas caractersticas revelam que ele no um simples produto das foras da natureza. Ele constri seu prprio viver a partir de suas decises e escolhas, de modo que as suas criaes culturais fazem com que ele no seja apenas determinado por fatores genticos ou hereditrios. Por isso, ningum nasce bom, mau, justo ou injusto. A pessoa se torna injusta ou bondosa, egosta ou generosa, por fora de suas aes, por isso que sua existncia sempre produto de suas escolhas, decises, condutas. Apesar de ser denido como um animal racional, possvel armar que o homem jamais est livre de agir movido por inclinaes naturais. H, na conduta humana, comportamentos ora ditados pela liberdade, ora determinados pelos instintos. A concluso de que todos os seres humanos so dotados da mesma dignidade, no evita que os homens continuem a sofrer violncias e discriminaes por motivos sociais, culturais, polticos, tnicos, religiosos, dentre outros. Por isso, falar em dignidade universal pode parecer uma idia vaga, j que uma vida verdadeiramente digna reservada apenas a certas classes de indivduos, ou seja, queles que pertencem a determinados grupos sociais. O respeito, a garantia e a promoo da dignidade um processo que envolve avanos e conquistas, mas tambm est sujeito a recuos e fracassos. Por isso, necessrio que o tema da dignidade humana esteja sempre presente no cotidiano das pessoas, seja como objeto de reexo e discusso, seja como motivo para uma prtica de respeito ao direito alheio. O homem um ser em construo que pode ser melhorado. Sua existncia resultado dessa busca de aperfeioamento e da sua capacidade de superar os instintos egostas e nocivos vida em sociedade. Por isso, possvel defender e promover a dignidade do indivduo mediante meios educativos apropriados, como o caso de uma educao voltada para os direitos humanos. Esta deve, pois, preparar o sujeito para o exerccio da cidadania e, sobretudo, para o reconhecimento da dignidade que dene sua natureza e condio. O processo educacional pode fornecer ao homem os instrumentos necessrios para que ele possa constituir as bases de um viver compartilhado e baseado nos valores de solidariedade, justia, respeito mtuo, liberdade e responsabilidade. A realizao desses valores o torna mais apto a viver com dignidade. Porm, sem eles o homem se revela destitudo de sua essncia fundamental, ou seja, ele perde aquilo que dene o seu ser: a sua humanidade. A educao em direitos humanos , pois, uma forma de o sujeito reconhecer a importncia da dignidade e, sobretudo, agir visando a conquista, a preservao e a promoo de uma vida digna.DIREITOS HUMANOS: capacitao de educadores

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Marconi Pequeno REFERNCIAS ARISTTELES. tica a Nicmacos. Braslia: Editora da UnB, 1992. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. CRANSTON, Maurice. O que so os direitos humanos? Rio de Janeiro: DIFEL, 1979. HOBBES, Thomas. O Leviat ou Matria, Forma e Poder de um Estado Eclesistico e Civil. So Paulo: Nova Cultura, 1998 (Coleo Os Pensadores), KANT, Immanuel. Fundamentao da metafsica dos costumes. So Paulo: Abril, 1980 (Coleo Os Pensadores). _______________. Crtica da Razo Prtica. Lisboa, Edies 70, 1994. LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil. So Paulo: Abril Cultural, 1978 (Coleo Os Pensadores). MONTAIGNE, Michel de. Os ensaios. Livro II. So Paulo: Martins Fontes, 2000. PEQUENO, Marconi. tica, direitos humanos e cidadania. In Curso de Formao de Educadores em Direitos Humanos. Joo Pessoa: Editora Universitria/UFPB, 2001. RABENHORST, Eduardo. Dignidade humana e moralidade democrtica. Braslia: Braslia Jurdica, 2001. RICOEUR, Paul. Fundamentos loscos de los derechos humanos: una sintesis. In: Los Fundamentos loscos de los derechos humanos. Barcelona: Serbal (UNESCO), 1985. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato Social. So Paulo: Abril Cultural, 1985, (Coleo Os Pensadores).

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O SUJEITO DOS DIREITOS HUMANOSMarconi Pequeno*

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Ps-doutor em Filosoa pela Universidade de Montreal (Canad). Docente do Programa de Ps-Graduao em Filosoa e membro do Ncleo de Cidadania e Direitos Humanos da Universidade Federal da Paraba.

Marconi Pequeno A noo de sujeito surge com a losoa moderna. Trata-se de uma das noes fundadoras do humanismo e de alguns dos principais valores do mundo ocidental. Ela aparece, inicialmente, com o lsofo francs Ren Descartes (1596-1650), que concebe o sujeito como um ser dotado de conscincia e razo, instrumentos que lhe permitem conhecer o mundo e a si mesmo. O sujeito funda o conhecimento a partir da faculdade que lhe superior: o pensamento. O pensamento ou o uso da razo destina-se no apenas a fazer o sujeito chegar ao conhecimento, mas tambm impede que ele seja dominado por suas paixes e desejos. O sujeito existe, primeiramente, como um ser dotado de pensamento e sua existncia decorre do fato de ele pensar. Descartes o autor da famosa frase: penso, logo existo. Aos poucos, essa noo ser enriquecida pela idia de que o sujeito no apenas pensa, mas tambm tem sua existncia determinada por sentimentos e emoes. Cada um de ns ser, ento, denido pelo modo como sente, pensa, decide, escolhe, imagina e percebe as coisas e situaes que fazem parte da sua vida. Mas esta conscincia no se dene apenas a partir de sua relao com o mundo. Ela tambm est situada em um espao onde existem outras conscincias. O sujeito est, assim, relacionado ao outro. A convivncia com o prximo dene tambm uma parte do que somos. Ao viver em um mundo tambm habitado por outros indivduos, o sujeito obrigado a respeitar os direitos alheios e cumprir os deveres necessrios vida em sociedade. Surge, com isso, a necessidade de o homem seguir valores e regras morais, pois somente dessa maneira ele poder conviver de forma justa, livre e solidria com o prximo. O sujeito passa a, tambm, se denir pelos padres compartilhados de comportamento e pelas obrigaes que regulam sua existncia com os outros membros da sociedade. Trata-se aqui do indivduo capaz de viver em companhia dos demais, de denir os rumos de sua prpria histria e, nalmente, de decidir ou escolher, com base em regras, valores e princpios morais, aquilo que melhor para si e para a comunidade qual pertence. Ora, sabemos que, no campo da moral, o sujeito nunca est s. Nesse universo, ele precisa fazer com que suas vontades e seus interesses estejam de acordo com as normas que existem no interior do seu grupo ou do meio social em que vive. O sujeito moral, portanto, no pode ser governado apenas pelo simples querer, pois o cumprimento do dever aparece como base de sua existncia social. Portanto, a moralidade diz algo sobre o carter do sujeito, mas tambm revela o modo como o eu se relaciona com o outro. A moral, por m, diz como eu devo agir em relao aos demais seres humanos e que ser livre no fazer o que se quer, mas sim o que se deve. O sujeito , pois, concebido como uma pessoa que existe no tempo e no espao, e que possui pensamentos, percepes, sentimentos, desejos e motivaes, cuja existncia encontra na convivncia com o outro a sua plena realizao. Trata-se de um ser complexo formado por diversas esferas como a biolgica, a psicolgica, a cultural, a moral e a poltica, sendo que o desenvolvimento dessas dimenses determinou o progresso e os rumos da nossa civilizao. De fato, a idia de sujeito revela uma parte da histria das conquistas humanas nos campos da moral, da cidadania e dos direitos humanos. Isso porque o sujeito no apenas um ser capaz de agir moralmente, j que ele Mdulo Ifundamentos histrico-loscos dos direitos humanos DIREITOS HUMANOS: capacitao de educadores

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O sujeito dos direitos humanos tambm se apresenta como um portador de direitos e deveres, ou seja, ela capaz de alcanar e assumir a condio de cidado. O sujeito-cidado se dene a partir de sua relao com as leis, instituies e esferas de poder. Aqui ele encontra os meios para a atuao social e a manifestao da sua conscincia poltica. O sujeito, como j mostramos, determinado por sua individualidade e, da mesma maneira, por suas relaes e experincias compartilhadas. Suas aes cotidianas so orientadas por princpios legais e valores morais. isso, alis, que dene sua condio de sujeito de direitos. OSUJEITO DE DIREITOS

Sabemos que a idia de sujeito no apenas revela nossa capacidade de pensar, agir e se relacionar com o mundo fsico e social, como tambm dene nossa condio de portadores de direitos. Mas o que signica ter um direito e a que tipo de direito nos referimos ao armar nossa condio de sujeito de direitos? A idia de direito possui vrios sentidos. Sua signicao tanto pode estar relacionada noo de natureza humana, fundamento de alguns direitos, como o direito vida, liberdade, proteo, mas tambm pode estar ligada ao mundo da poltica e esfera do Estado, sob a forma de princpios legais destinados a garantir e defender nossa dignidade. Aqui o homem obrigado a seguir leis e a reconhecer no outro as mesmas qualidades que denem a sua humanidade (KANT, 1980). Alm de ser conhecido pela necessidade de viver em sociedade, o sujeito dotado da capacidade de reetir e de agir de forma autnoma, do poder de dominar os instintos e de criar normas de conduta fundadas na razo. A emergncia do sujeito de direitos uma das mais importantes conquistas da modernidade. Com esta noo, tambm surgem alguns dos princpios fundamentais da vida social, como a denio do direito como uma qualidade moral e a caracterizao do indivduo como uma pessoa detentora de dignidade. O termo pessoa nos conduz idia de um sujeito moral dotado de autonomia, liberdade e responsabilidade. A pessoa humana tambm o sujeito central dos direitos humanos. O sujeito, ao ser apresentado sob a forma pessoa humana, ter agora um instrumento privilegiado de defesa, promoo e realizao de sua dignidade: os direitos humanos. Ao sujeito de direitos, acrescenta-se agora o fato de ele ser, igualmente, um sujeito de direitos humanos. OSUJEITO DOS DIREITOS HUMANOS

Os direitos humanos esto alicerados na idia de dignidade. Esta noo representa aquilo que dene a essncia da pessoa humana, ou ainda indica o valor que confere humanidade ao sujeito. Portanto, a dignidade refere-se a uma qualidade diretamente ligada essncia do homem, sua natureza fundamental. Trata-se daquilo que existe no ser humano pelo simples fato de ele ser humano (RICOEUR, 1985). A noo de dignidade serve, ainda, para orientar o agir, o sentir e o pensar do homem em suas relaes sociais. Agir, sentir e pensar que no apenas denem o carter prprio do ser sujeito, mas tambm nos permitem compreender a sua natureza e o alcance de sua autonomia no mundo moral.DIREITOS HUMANOS: capacitao de educadores

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Marconi Pequeno Ora, sabemos que o surgimento da moral foi um fato crucial para o progresso da humanidade, pois ela serviu para garantir a preservao da espcie humana. A moral existe para que possamos melhor agir no mundo, uma vez que ela nos indica o que devemos fazer para fugir da dor e da destruio s quais estamos sujeitos. No h, pois, vida humana sem normas de comportamento que possam guiar aes e condutas. Elaboramos regras que devem ser seguidas pelos outros, mas tambm por ns mesmos, como uma maneira de ampliar nossas chances de sobrevivncia, atingir o prazer e fugir do sofrimento. A moral, por isso, se revela como um instrumento essencial preservao da nossa natureza, mas tambm evoluo da nossa cultura. A existncia humana, por mais que o sujeito preserve seus desejos, impulsos e inclinaes, tambm vivida num ambiente determinado por valores culturais. Para alguns autores, a autonomia do sujeito decorre do exerccio de uma vontade guiada pela razo (KANT, 1980). A autonomia se manifesta quando o indivduo cumpre a obrigao imposta pela lei moral. Essa valorizao da razo acabou por desconsiderar o valor da vida afetiva do sujeito (paixes, emoes, afetos, sentimentos, pulses), na medida em que esta passou a ser considerada como um obstculo sua ao livre e consciente. Porm, nenhum sujeito pode ser denido apenas por sua capacidade de usar a razo. O homo sapiens, mas, antes disso, ele sempre foi sentiens. Apesar de ser denido pela sua racionalidade, o sujeito tambm se constitui a partir do modo como enfrenta ou foge das situaes emocionais. De fato, as emoes, muitas vezes, determinam a maneira como agimos no mundo onde vivemos, j que, freqentemente, elas nos fazem responder a um desao, resolver um problema ou elimin-lo da nossa vida. Alm disso, ns atribumos uma importncia a um fato de acordo com sua capacidade de nos provocar emoo. Nossas sensaes (emoes, paixes, afetos) podem nos fornecer uma compreenso mais profunda do ser humano. At porque, do ponto de vista da nossa origem natural, o sentimento antecede todas as nossas demais faculdades, incluindo aqui o pensamento, por exemplo. As emoes participam do processo de tomada de deciso, estando, ainda, presentes na maior parte dos comportamentos humanos. Tais sensaes revelam tanto aquilo que temos de biolgico ou primitivo quanto o que em ns determinado pelo universo cultural. As experincias emocionais indicam que o homem nem um anjo destitudo de desejos e apetites, nem, tampouco, um animal-mquina incapaz de conter as suas foras instintivas. Assim, antes de ser um signo de sua animalidade, a emoo representa aquilo que confere ao homem um carter de humanidade. At porque podemos imaginar um indivduo destitudo de racionalidade, porm certamente impossvel que um sujeito desprovido de emoo possa ser chamado de humano. certo que a experincia de viver e compartilhar emoes constitui um dos elementos fundamentais da nossa existncia. A ausncia de afetos levaria o homem ao tdio, debilidade orgnica e ao vazio espiritual, uma vez que a falta de emoes o tornaria insensvel aos fatos e situaes do mundo. Signica dizer que, sem a afetividade, no apenas seria impossvel viver uma existncia satisfatria, como essa ausncia tornaria invivel qualquer vida humana. As emoes contribuem, em muitas situaes, para a formao dos nossos pensamentos e aes. Assim, ao nos colocarem em interao com os valores, nossos estados afetivos tornam-se tambm capazes de revelar nossas crenas e Mdulo Ifundamentos histrico-loscos dos direitos humanos DIREITOS HUMANOS: capacitao de educadores

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O sujeito dos direitos humanos julgamentos. Por isso, pode-se falar de uma relao ntima entre as emoes e a moral, na medida que muitas sensaes so capazes de orientar o julgamento e de determinar a conduta do sujeito. Parece evidente que as emoes inuenciam decisivamente nossas decises, porm elas nem sempre so sucientes para explicar o motivo pelo qual ns obedecemos normas, compartilhamos valores e elaboramos princpios morais. Portanto, longe de ser escravo de suas emoes ou paixes, o homem se constri a partir delas. A autonomia moral do sujeito antes de se fazer contra as emoes, faz-se, na verdade, com elas. Apesar disso, sabemos que nossas condutas esto longe de ser o simples resultado de uma conjuno entre estmulo e resposta. Ao contrrio, elas traduzem um encadeamento complexo de disposies, cujas sensaes afetivas so apenas um dos fatores causadores dos nossos comportamentos. Portanto, nem tudo que fazemos pode ser explicado pelos nossos sentimentos, at porque as emoes esto ausentes em muitas das nossas decises e condutas morais. certo que devemos sempre procurar o que h de racional nas aes do sujeito, pois a sensibilidade emocional nem sempre capaz de explicar o sentido das nossas atitudes morais. Alm do que, como j mencionamos, a correspondncia entre motivao afetiva e atitude moral nada nos diz acerca do que signica uma ao justa e responsvel. As sensaes, dicilmente, so sucientes para explicar porque os princpios ticos determinam a conduta do sujeito. verdade que certas reaes emocionais exprimem tambm o sentimento moral do agente (como o caso da culpa, vergonha, indignao, compaixo), porm, tais sensaes so vividas num contexto social onde existem inmeras pessoas. Alm do que, o julgamento moral exige quase sempre um princpio que ultrapasse o seu simples uso e que se revele legtimo, que seja racionalmente justicado. Isto nos permite considerar a existncia de uma cooperao entre razo e emotividade na determinao da conduta do sujeito. Pode-se, com isso, armar que a autonomia do sujeito moral se tornaria cega se sua vontade fosse guiada apenas pelas emoes, porm, ela, certamente, seria vazia se eliminasse totalmente do seu interior a inuncia decisiva de tais sensaes. O sujeito dos direitos humanos deve ser valorizado em seus aspectos racionais e emocionais. preciso, pois, no apenas cultivar a capacidade de o homem usar o intelecto para bem agir. fundamental, sobretudo, prepar-lo para se colocar no lugar do outro e sentir tambm a sua dor. REFERNCIAS ARISTTELES. tica a Nicmacos. Braslia: Editora da UnB, 1992. CRANSTON, Maurice. O que so os direitos humanos? Rio de Janeiro: DIFEL, 1979. DECLARAO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Organizao das Naes Unidas (ONU), 1948. DESCARTES, Ren. Meditaes Metafsicas. So Paulo: Martins Fontes, 2000.

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Marconi Pequeno HOBBES, Thomas. O Leviat ou Matria, Forma e Poder de um Estado Eclesistico e Civil. So Paulo: Nova Cultura, 1998, (Coleo Os Pensadores). HUME, David. Tratado da natureza humana. So Paulo: UNESP, 2001. KANT, Immanuel. Fundamentao da metafsica dos costumes. So Paulo: Abril, 1980 (Coleo Os Pensadores). _______________. Crtica da Razo Prtica. Lisboa: Edies 70, 1994. LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil. So Paulo: Abril Cultural, 1978 (Coleo Os Pensadores). MONTAIGNE, Michel de. Os ensaios. Livro II. So Paulo: Martins Fontes, 2000. RICOUER, Paul. Los fundamentos loscos de los derechos humanos. Barcelona: Serbal/UNESCO, 1985. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato Social. So Paulo: Abril Cultural, 1985 (Coleo Os Pensadores).

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TICA, EDUCAO E CIDADANIAMarconi Pequeno*

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Ps-doutor em Filosoa pela Universidade de Montreal (Canad). Docente do Programa de Ps-Graduao em Filosoa e membro do Ncleo de Cida-dania e Direitos Humanos da Universidade Federal da Paraba.

Marconi Pequeno A tica a morada do homem, diziam os primeiros lsofos gregos no sculo VI a.C. tica vem do grego ethos, que signica modo de ser ou carter. Para eles, o ethos representava o lugar que abrigava os indivduos-cidados, aqueles responsveis pelos destinos da plis (cidade). Nessa morada, os homens sentiamse em segurana. Isso signica que, vivendo de acordo com as leis e os costumes, os indivduos poderiam tornar a sociedade melhor e encontrar nela sua proteo, seu abrigo seguro. A tica aparece, assim, como resultado das leis determinadas pelos costumes e das virtudes e hbitos gerados pelo carter dos indivduos. Os costumes representam, ento, o conjunto de normas e regras adquiridas por hbito, enquanto a permanncia destes dene a carter virtuoso da ao do sujeito. A excelncia moral seria no apenas determinada pelas leis da cidade, mas tambm pelas decises pessoais que geram as virtudes e os bons hbitos. O ethos grego corresponde ao latim mos (mores), do qual deriva o termo moral. tica e moral so palavras que signicam, em sua origem, a mesma coisa, pois dizem respeito ao modo como os indivduos devem agir em relao ao outro no espao em que vivem. Entretanto, hoje podemos estabelecer uma diferena entre ambas, pois a tica se constitui como uma parte da losoa que trata da moral em geral, ou da moralidade de cada ser humano, em particular. A tica por muitos denida como a cincia da moral. Isso signica que a moral aparece, atualmente, como um objeto de reexo da tica. Desse modo, enquanto tica compete estudar os elementos tericos que nos permitem entender a moralidade do sujeito, a moral diz respeito esfera da conduta, do agir concreto de cada um. Pode-se resumir tais diferenas da seguinte forma: a tica revela-se como reexo (theoria), j a moral diz respeito ao (prxis). O mundo do ethos envolve a individualidade (subjetividade) e a coletividade (intersubjetividade) dos seres humanos dotados de sentimento (pathos) e razo (logos). Nesse sentido, a prtica do bem ou da justia estaria ligada ao respeito s leis da plis (heteronomia) e inteno individual (autonomia) de cada sujeito. Isso signica que existem fatores externos (a lei, os costumes) e internos (as convices, os hbitos) que determinam o comportamento dos cidados. Nesse sentido, a moral, denida como um conjunto de regras, princpios e valores que determinam a conduta do indivduo, teria sua origem nas virtudes ou ainda na obrigao de o sujeito seguir as normas que disciplinam o seu comportamento. Todavia, a boa conduta poderia tambm ser determinada pela educao (Paidia), na medida em que o processo educacional forneceria as regras e ensinamentos capazes de orientar os julgamentos e decises dos indivduos no seio de sua comunidade. Desde os gregos, portanto, a educao se congura como um elemento fundamental para a constituio da sociabilidade. Assim, enquanto os costumes determinam as normas e valores a serem seguidos ou transmitidos pelos sujeitos morais, a educao se impe como um importante instrumento para o desenvolvimento moral do indivduo. Isso porque, no universo da plis, as virtudes que determinam a excelncia moral dos agentes sociais, poderiam ser transmitidas pelos ensinamentos. A educao estaria, por conseguinte, na base do esforo para fazer do indivduo um homem bom e do sujeito, um cidado exemplar. A formao moral serve tambm de auxlio formao do indivduo em sua dimenso poltica. Assim, o ethos no apenas representa o instrumento Mdulo Ifundamentos histrico-loscos dos direitos humanos DIREITOS HUMANOS: capacitao de educadores

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tica, educao e cidadania fundamental para a instaurao de um viver em conjunto, como serve de alicerce construo do espao da poltica. Disso se conclui que tica e poltica so atividades que se relacionam e se complementam. A necessidade que impe a cada ser humano o dever de respeitar os costumes e as normas da sociedade, revela a importncia que o ethos, ou aquilo que hoje chamamos de moral, assume em nossas vidas. Como o homem, em seu agir moral, , ao mesmo tempo, produto da natureza e da cultura, o ethos (ou moral), segundo alguns pensadores gregos (Plato, Aristteles, Epicuro), serviria para regular os apetites humanos e controlar as suas inclinaes e instintos mediante o uso da razo (logos). Eis por que ela surge quando o homem supera sua natureza instintiva e se torna membro de uma coletividade regida por leis racionais. Ora, vimos que, para tais lsofos, nenhuma comunidade humana pode sobreviver sem o mnimo de regras ou padres de comportamento, ou seja, sem um cdigo de condutas. O referido cdigo normativo representa os ensinamentos que orientam nossas aes diante do mundo e, sobretudo, em face do outro. A tica, com efeito, trata do comportamento do homem, da relao entre a sua vontade e a obrigao de seguir uma norma, do bem e do mal, do que justo e injusto, da liberdade e da necessidade de respeitar o prximo. A tica, enquanto campo de estudo e reexo, revela que nossas aes tm efeitos na sociedade e que cada homem deve ser livre e responsvel por suas atitudes. De fato, a responsabilidade se constitui como elemento essencial vida moral do indivduo. Alis, o homem s pode ser moralmente responsvel pelos atos cuja natureza conhece e cujas conseqncias ele capaz de prever. Alm disso, para que ele possa ser responsvel por algo, necessrio que sua ao se realize livre de ameaa ou presso externa. A responsabilidade moral exige, pois, a necessidade de o homem decidir e agir de forma livre e autnoma. Mas o problema da responsabilidade moral depende tambm dos elementos naturais que determinam o comportamento humano (impulsos, desejos, paixes) e da livre vontade de cada um. Outro elemento importante do problema diz respeito s variaes que se processam nos costumes e nas concepes do homem sobre o que certo e errado em termos de conduta. Com efeito, o contedo (normas, valores, princpios) da moral varia historicamente, adquirindo inmeras feies ao longo do processo civilizatrio. Por isso, pode-se dizer que cada moral lha do seu tempo ou, ento, que a concepo que temos do que bom justo e correto, pode variar ao longo da nossa existncia. As transformaes socioeconmicas, bem como as mudanas que acontecem no interior de uma cultura, impem desaos ao sujeito moral, uma vez que fazem surgir o problema referente oposio entre o relativismo (os valores de cada comunidade) e o universalismo (os valores que so compartilhados por todos os homens). Tal oposio nos conduz s seguintes indagaes: como uma norma moral pode adquirir validade universal? Por que os princpios morais variam nas mais diferentes sociedades? Vinculado a essas questes, encontra-se tambm o conito entre a objetividade das normas (as leis escritas) e a subjetividade das convices (as crenas de cada um). A adequao entre os domnios do particular e do geral constitui-se como um dos maiores desaos enfrentados pela tica, compreendida aqui como reexo sobre como devemos agir em relao aos outros.DIREITOS HUMANOS: capacitao de educadores

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Marconi Pequeno Ora, vimos que a tica investiga o modo pelo qual a responsabilidade moral se relaciona com a liberdade e com o determinismo natural (fora dos instintos) aos quais nossos atos esto sujeitos. A tica a teoria acerca do comportamento moral dos homens em sociedade, isto , ela trata dos fundamentos e da natureza das nossas atitudes normativas. Compreender a relao entre vontade e obrigao constitui-se, portanto, como uma tarefa fundamental da tica. Reetir sobre a liberdade de decidir e a obrigao de seguir o que nos imposto pelos ordenamentos sociais, tambm uma de suas mais importantes funes. Eis porque cabe tica o papel de denir o alcance e as diculdades que envolvem a relao entre direitos e deveres. A obrigao moral supe a liberdade de escolha (direitos) e, ao mesmo tempo, a limitao dessa liberdade (deveres). Nesse sentido, a construo do mundo moral depende no apenas do interesse coletivo, mas igualmente da vontade de cada um. A harmonia entre tais fatores que torna possvel a vida em sociedade. Esta, por sua vez, constitui-se mediante a inuncia das instncias fundamentais (religio, poltica, direito, economia, cincias) criadas pelos sujeitos histricos. Cada uma delas contribui para a constituio, consolidao e ampliao dos direitos fundamentais e de cidadania. A conquista de tais direitos reete avano da humanidade ao longo do que chamamos progresso da civilizao. Civilizao esta que no poderia se erguer sem realizar os valores de liberdade, responsabilidade, justia, solidariedade, respeito e entendimento mtuos, essenciais vida em sociedade. O ethos a condio de existncia de tais valores. Tais valores so a condio de possibilidade da cidadania. Mas o que signica ser cidado e como este pode exercer plenamente sua cidadania? comum se armar que ser cidado signica possuir direito ao voto, liberdade de expresso, sade, educao, ao trabalho, locomoo, alimentao, habitao, justia, paz, a um meio-ambiente saudvel, felicidade, dentre outros. A cidadania a condio social que confere a uma pessoa o usufruto de direitos que lhe permitem participar da vida poltica e social da comunidade no interior da qual est inserida. A esse indivduo que pode vivenciar tais direitos, chamamos de cidado. Ser cidado, nessa perspectiva, respeitar e participar das decises coletivas a m de melhorar sua vida e a da sua comunidade. O desrespeito a tais direitos por parte do Estado, de Instituies ou pessoas, gera excluso, marginalizao e violncia. A violncia surge quando o homem tratado como uma coisa, como algo supruo ou sem importncia. Ela, a violncia, pode ser determinada ou inuenciada por fatores como a desigualdade social, a excluso e o desencantamento do sujeito diante do mundo, ainda que estes fenmenos no sejam sucientes para explicar todos os aspectos e dimenses do problema da violncia. Nessa perspectiva, somente quando cada homem tiver seus direitos efetivados e sua dignidade reconhecida e protegida que poderemos dizer que vivemos numa sociedade justa. At porque, sem o princpio de justia, no pode haver sociedade, pois nela deixariam de existir a conana e o respeito mtuo entre os indivduos. A justia a maneira de se reconhecer que todos so iguais perante a lei (igualdade) e que todos devem receber de acordo com seus mritos, qualidades e realizaes (eqidade). A justia , desse modo, representada pelos princpios de igualdade e eqidade. Assim, quando a sociedade se revela justa, Mdulo Ifundamentos histrico-loscos dos direitos humanos DIREITOS HUMANOS: capacitao de educadores

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tica, educao e cidadania torna-se possvel instituir um clima de conana nas Instituies e de liberdade entre os indivduos. A justia a condio de um viver solidrio, responsvel, fraterno. Quando a mesma deixa de ser praticada, os indivduos cam sujeitos ao arbtrio, violncia, barbrie. A justia , antes de tudo, um valor moral, podendo ainda ser concebida como o principal fundamento da vida em sociedade. Portanto, uma virtude que deve ser praticada por todo sujeito moral, j que sem ela torna-se impossvel o exerccio dos direitos fundamentais e de cidadania. Por m, podemos compreender a moral como a instncia que pode garantir a constituio de uma sociedade justa, civilizada e pacicada. REFERNCIAS ARISTTELES. tica a Nicmacos. Braslia: Editora da UnB, 1992. BERTI, Enrico. As razes de Aristteles. Traduo de Dion Davi Macedo. So Paulo: Loyola, 1998. BITTAR, Eduardo C. B. A justia em Aristteles. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1999. FRANKENA, William. tica. Rio de Janeiro: Zahar, 1969. HUME, David. Tratado da natureza humana. So Paulo: UNESP, 2001. PLATO. Repblica. So Paulo: Abril, 2000 (Coleo Os Pensadores). RAWLS, John. Uma teoria da justia. So Paulo: Martins Fontes, 2000. VAZ, Henrique Cludio de Lima. Escritos de losoa. II. tica e cultura. So Paulo: Loyola, 1993. VAZQUEZ, Adolfo Sanchez, tica. So Paulo: tica, 1986.

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LIBERDADE, IGUALDADE E FRATERNIDADE NA CONSTRUO DOS DIREITOS HUMANOSGiuseppe Tosi *

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Professor do Departamento de Filosoa e membro do Ncleo de Cidadania e Direitos Humanos da Universidade Federal da Paraba. Doutor em Filosoa pela Universidade de Pdua, Itlia.

Giuseppe Tosi Na formao da doutrina dos direitos humanos se juntaram vrias correntes de pensamento e de ao, entre as quais, as principais so o liberalismo, o socialismo e o cristianismo social. 1. LIBERDADE A doutrina que funda os direitos humanos, a teoria dos direitos naturais conhecida tambm como jusnaturalismo moderno, que se inicia com o lsofo ingls Thomas Hobbes nos sculos XVI/XVII. As caractersticas principais do modelo jusnaturalista (BOBBIO: 1986, p. 13-100) so as seguintes: Individualismo. Existem indivduos num estado de natureza anterior criao do Estado civil, que vivem numa condio de igualdade diante da necessidade e da morte e gozam de direitos naturais intrnsecos, tais como o direito vida, propriedade, liberdade. O Estado de natureza. o mito fundador do direito natural moderno. E uma poca real ou imaginria onde os homens viviam naturalmente, antes de formarem uma sociedade civil organizada. Segundo Hobbes, os homens no estado de natureza viviam em uma condio de guerra permanente, cada um querendo os seus direitos e se chocando com os direitos dos outros (HOBBES: 1983). Por isso, preciso sair do estado de natureza para formar o Estado civil, onde os direitos, teoricamente ilimitados, mas praticamente inviabilizados, seriam garantidos. As leis de natureza, eternas e imutveis. So os princpios racionais que indicam ao homem como sair do estado de natureza e garantir a paz. Se o homem fosse um ser somente de razo, seguiria estas leis sem preciso de ser forado a tanto, mas como ele tambm um ser de paixo, preciso que intervenha uma fora para obrig-lo a seguir essas leis. O Pacto Social. um acordo entre os indivduos livres para a formao da sociedade civil que, desta maneira, supera o estado de natureza. Atravs deste pacto ou contrato, os indivduos, que viviam como multido dispersa no estado de natureza, tornam-se um povo. O preo a pagar a perda da liberdade absoluta que cada um gozava no estado natural para entreg-la nas mos do soberano. O poder que se constitui a partir do pacto, tem sua origem no mais em Deus ou na natureza, mas no consenso entre os indivduos. Nasce a idia do povo ou da nao como origem e fundamento do poder. O Estado. Os lsofos jusnaturalistas admitem vrias formas de Estado. Hobbes defende o poder nico e monoltico do soberano, sem diviso dos poderes e com a controle da religio por parte do Estado (concepo absolutista); John Locke (1632-1704) defende o modelo da diviso dos poderes entre o Rei o e Parlamento, sendo o parlamento a fonte originria do poder, e admite a tolerncia religiosa, ou seja,l a existncia de mais religies no mesmo Estado (monarquia constitucional ou parlamentar de tipo liberal); Jean Jacques Rousseau (1712-1778) defende um modelo de Estado em que a Assemblia Geral representa diretamente a vontade geral (modelo democrtico); Immanuel Kant (1724-1804) projeta, pela primeira vez, a idia de uma federao mundial de Estados republicanos, onde sejam respeitados os direitos fundamentais e a diviso dos poderes, regidos por um direito universal ou cosmopolita (modelo republicano). Mdulo Ifundamentos histrico-loscos dos direitos humanos DIREITOS HUMANOS: capacitao de educadores

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Liberdade, igualdade e fraternidade na construo dos direitos humanos Os direitos naturais. Apesar das diferentes concepes de Estado, todos os jusnaturalistas modernos, inclusive Hobbes, armam que o Estado nasce da associao dos indivduos livres para proteger e garantir a efetiva realizao dos direitos naturais inerentes aos indivduos, que existiam antes da criao do Estado e que cabe ao Estado proteger. Para Hobbes trata-se, sobretudo, do direito vida; para Locke, do direito propriedade; para Rousseau e Kant, do nico e verdadeiro direito natural, que inclui todos os outros, isto , a liberdade entendida como autonomia do sujeito. A tolerncia. A idia de tolerncia religiosa, proposta por Locke na Carta sobre a tolerncia e divulgada pelos iluministas, muda progressivamente a relao entre Estado e Igreja, tornando a religio um assunto no mais pblico, mas privado; ao mesmo tempo, a liberdade de religio impulsiona tambm a liberdade de pensamento, de expresso, de imprensa fortalecendo, assim, a esfera privada do cidado e o mbito dos direitos civis. Revolues burguesas e histria mundial: os direitos de liberdade Essas doutrinas surgiram nos sculos XVII e XVIII, no perodo de ascenso da burguesia, que estava reivindicando uma maior representao poltica frente nobreza e ao clero. Elas forneciam uma justicativa ideolgica aos movimentos revolucionrios que levariam, progressivamente, dissoluo do mundo feudal e constituio do mundo moderno. Todas as grandes revolues liberais dos sculos XVII e XVIII proclamaram os direitos humanos: A Declarao de Direitos, de 1688/89, da Revoluo Gloriosa que concluiu o perodo da guerra civil inglesa, iniciada em 1640, levando formao de uma monarquia parlamentar; A Declarao de Direitos do Estado da Virgnia, de 1777, que foi a base da declarao da Independncia dos Estados Unidos da Amrica (em particular as primeiras 10 emendas de 1791); A Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado da Revoluo Francesa de 1789, que foi o atestado de bito do Antigo Regime e abriu caminho para a proclamao da Repblica.1 Um outro documento importante a constituio de 1791, em pleno auge da revoluo. As doutrinas jusnaturalistas possuam dois ncleos tericos fundamentais: os direitos naturais e a soberania popular, ou seja, o liberalismo e a democracia, doutrinas que encontram em Locke e Rousseau, respectivamente, os seus principais tericos. O liberalismo pregava a limitao dos poderes do Estado, cuja funo era garantir os direitos subjetivos que os cidados possuam no estado de natureza. A funo essencial do Estado garantir os direitos dos cidados. Os direitos da tradio liberal tm o seu ncleo central nos assim chamados direitos de liberdade, que so fundamentalmente os direitos do indivduo (burgus) vida, liberdade, propriedade, segurana. O Estado limitase garantia dos direitos individuais atravs da lei, sem intervir ativamente na sua promoo. Por isto, estes direitos so chamados de direitos de liberdade1 Para uma apresentao das principais declaraes comentadas, ver: COMPARATO (1999).

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Giuseppe Tosi negativa, porque tm como objetivo a no interveno do Estado na esfera dos direitos individuais. Apesar da armao de que os homens nascem e so livres e iguais, uma grande parte da humanidade permanecia excluda dos direitos. As declaraes de direitos das colnias dos Estados Unidos no consideravam os escravos como titulares de direitos. A Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado da Revoluo Francesa no considerava as mulheres como sujeitas de direitos iguais aos dos homens2, em todas estas sociedades, s podiam votar os homens adultos e ricos; as mulheres, os pobres e os analfabetos no podiam participar da vida poltica. Neste perodo, enquanto na Europa proclamavam-se os direitos universais, tomava um novo impulso o grande movimento de colonizao e de explorao dos povos extra-europeus; assim, grande parte da humanidade cava excluda do gozo dos direitos. oportuno relembrar, tambm, que a criao de um mercado mundial foi possvel graas pilhagem e drenagem de enormes recursos dos povos colonizados e reintroduo, em ampla escala, da escravido; fenmenos que contriburam para o processo histrico da acumulao primitiva do capital, que deu o grande impulso criao e expanso do sistema capitalista mundial. 2. IGUALDADE

A tradio liberal dos direitos do homem - que domina o perodo que vai do sculo XVII at a metade do sculo XIX, quando termina a era das revolues burguesas aboliu os privilgios do antigo Regime, mas criou novas desigualdades (HOBSBAWM, 1982). nessa poca, que irrompe na cena poltica o socialismo, que encontra suas razes naqueles movimentos mais radicais da Revoluo Francesa, que queriam no somente a realizao da liberdade, mas tambm da igualdade. O socialismo, sobretudo a partir dos movimentos revolucionrios de 1848 (ano em que foi publicado o Manifesto Comunista), reivindica uma srie de direitos novos e diversos daqueles da tradio liberal (MARX E ENGELS, 1991). A egalit da Revoluo Francesa era somente (e parcialmente) a igualdade dos cidados frente lei, mas o capitalismo estava criando novas e grandes desigualdades econmicas e sociais. Em relao aos direitos do homem, o movimento socialista se dividiu: uma corrente, a partir da crtica radical de Marx aos direitos humanos enquanto direitos burgueses, vai privilegiar os direitos econmicos e sociais em detrimento dos direitos civis e polticos. a corrente do marxismo-leninismo revolucionrio que se tornar ideologia ocial dos regimes comunistas do sculo XX. A outra corrente doutrinria o socialismo reformista ou social-democrtico, que procurar conciliar os direitos de liberdade com os direitos de igualdade, mantendo-se no marco do sistema capitalista e do Estado liberal de direito, aprofundando a democrtica.2 Olympe de Gouge elaborou uma Declarao dos Direitos da Mulher e da Cidad que foi rejeitada por unanimidade, pela Assemblia Nacional Francesa, em 1791. A proponente foi, posteriormente, levada guilhotina no perodo do Terror.

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Liberdade, igualdade e fraternidade na construo dos direitos humanos O movimento histrico real da classe trabalhadora dos sculos XIX e XX exigiu a universalizao dos direitos burgueses, atravs da luta pela ampliao dos direitos civis e polticos ao conjunto dos cidados. Luta que foi protagonizada pelos excludos do sistema capitalista durante todo o sculo XIX e grande parte do sculo XX, e foi inspirada pelas doutrinas socialistas reformistas que aceitaram os princpios do Estado de Direito. Tais movimentos tiveram um papel fundamental na ampliao dos direitos civis e polticos, sobretudo com o voto universal, que introduziu as massas populares no jogo poltico, fenmeno absolutamente novo na histria da humanidade. Mas os movimentos socialistas e social-democrticos no reivindicavam somente a ampliao da cidadania, introduziram tambm um novo conjunto de direitos, desconhecidos e alheios ao liberalismo: os direitos de igualdade ou econmicos e sociais, direitos eminentemente coletivos, enquanto os direitos de liberdade eram eminentemente individuais: ou seja, uma democracia no somente poltica, mas social. Na sua luta contra o absolutismo, o liberalismo considerava o Estado como um mal necessrio e mantinha uma relao de intrnseca desconana: a questo central era a garantia das liberdades individuais contra a interveno do Estado nos assuntos particulares. Agora, ao contrrio, tratava-se de obrigar o Estado a fornecer um certo nmero de servios para diminuir as desigualdades econmicas e sociais e permitir a efetiva participao de todos os cidados na vida e no bemestar social. Podemos ler este processo tambm como uma predominncia da