Livro+DNA+o+Segredo+Da+Vida+ +James+D.+Watson

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I

JAMES D. WATSON com Andrew Berry

DNAA

O segredo da vida

Traduo

Carlos Afonso MalferrariCopyright 2003 by DNA Show LLC Publicado originalmente nos Estados Unidos e no Canad. Traduo publicada mediante acordo com Alfred A. Knopf, uma diviso da Random Hous, Inc.

Ttulo original

dna: the secret of life

Capa

Baseada no projeto original de Gabriele Wilson

Foto de capa

Will & Deni Mclntyre / Photoresearcher (dna)

e John R. Bracegirdle / Getty Images (abelha)

Preparao Leny Cordeiro

Reviso

Felice Morabito

Agnaldo Alves

ndice remissivo

Maria Cludia Carvalho Mattos

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (cip) Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil

Watson, James D., 1928-

dna : o segredo da vida / James D. Watson com Andrew Berry ; traduo Carlos Afonso Malferrari. So Paulo : Companhia das Letras, 2005.

Ttulo original: dna : the secret of life

Bibliografia.

ISBN 85-359-0716-5

1. Biologia molecular - Histria 2. dna - Obras de divulgao 3. Engenharia gentica - Histria 4. Genrica - Obras de divulgao I. Berry, Andrew. n.Trulo.

ndice para catlogo sistemtico:1. dna : Cincias da vida 572.86

[2005]

Todos os direitos desta edio reservados

EDITORA SCHWARCZ LTDA.

Rua Bandeira Paulista 702 cj. 3204532-002 So Paulo sp

Telefone (11) 3707 3500 Fax (11) 3707 3501 www.companhiadasletras.com.br

Para Francis CrickSumrio

Nota dos autores 9

Introduo: O segredo da vida 11

1. Os primrdios da gentica: De Mendel a Hitler 15

2. A dupla-hlice: A vida isto 47

3. A leitura do cdigo: Como o dna se torna vida 75

4. Bancando Deus: Molculas de dna personalizadas 100

5. dna, dlares e drogas: Biotecnologia 127

6. Tempestade numa caixa de cereais: A agricultura transgnica 151

7. O genoma humano: O roteiro da vida 182

8. Leitura de genomas: A evoluo em marcha 214

9. A descendncia da frica: O dna e o passado do homem 249

10. Identificao genmica: O dna forense 283

11. Caadores de genes: A gentica das doenas humanas 316

12. A nova luta da medicina: Tratamento e preveno de doenas

genticas 347

13. Quem somos? Herana vs. ambiente 386

Coda: Nossos genes e nosso futuro 423

Notas 435

Leitura adicional 443

Agradecimentos 449

Crditos das ilustraes 451

ndice remissivo 4531953: Francis Crick ( direita) e eu junto ao nosso modelo da dupla lice.

Nota dos autores

dna: o segredo da vida foi concebido durante um jantar em 1999. Estvamos discutindo como melhor marcar o qinquagsimo aniversrio da descoberta da dupla-hlice. O editor Neil Patterson juntou-se a um de ns, James D. Watson, para idealizar um projeto multifacetado que incluiria este livro, uma srie para televiso e outros projetos de cunho mais ostensivamente didtico. A presena de Neil no foi acidental: em 1965, ele publicara o primeiro livro de Watson, The molecular biology of the gene, e desde ento tem pairado como um anjo tutelar por sobre os projetos literrios de Watson. Doron Weber, da Fundao Alfred P. Sloan, garantiu a verba inicial para transformar a idia em algo mais concreto. Andrew Berry foi convocado em 2000 para produzir um esboo detalhado para uma srie de tv e, desde ento, no parou mais de viajar entre seu QG em Cambridge, Massachusetts, e o laboratrio Cold Spring Harbor, de James Watson, no litoral norte de Long Island, perto de Nova York.

Desde o incio, nosso objetivo era ir alm de uma mera narrativa dos eventos dos ltimos cinqenta anos. O dna deixou de ser uma molcula esotrica, interessante apenas para um punhado de cientistas, e tornou-se o cerne de uma tecnologia que est transformando muitos aspectos do modo como vivemos. Com essa transformao surgiu uma srie de perguntas difceis acerca do seu impacto prtico, social e tico. Tomando o qinquagsimo aniversrio como uma oportunidade de parar e efetuar um balano da situao em que nos encontramos, no temos vergonha em apresentar aqui uma viso estritamente pessoal da histria e seus desdobramentos. Alm disso, sendo esta a viso pessoal de James Watson, foi escrita na primeira pessoa do singular. A dupla-hlice j tinha dez anos de idade quando o dna comeou a realizar sua magia in utero num Andrew Berry ainda em estado fetal.Procuramos escrever para um pblico amplo; nossa inteno que algum com conhecimento zero de biologia seja capaz de compreender cada palavra. Todo termo tcnico explicado ao ser introduzido pela primeira vez. Caso o leitor precise refrescar a memria acerca de algum termo ao deparar-se com ele mais adiante, basta procurar no ndice, onde essas expresses aparecem em negrito para facilitar sua localizao (um nmero de pgina em negrito indica o local em que a palavra definida). Evidentemente, tivemos de restringir diversos detalhes tcnicos; por isso, recomendamos ao leitor interessado em se aprofundar no assunto que acesse www.dnai.org, dna Interactive, o site do projeto multimdia que acompanha este livro, destinado a estudantes do segundo grau e jovens universitrios. O site oferece vrias animaes que explicam os processos bsicos, e um longo arquivo de entrevistas com os cientistas envolvidos. Alm disso, a seo Leitura Adicional indica livros relevantes a cada captulo. Sempre que possvel, evitamos citar literatura tcnica, mas os ttulos listados permitem uma explorao mais aprofundada de tpicos especficos do que a deste volume. Nos Agradecimentos, no final do livro, expressamos nosso reconhecimento s inmeras pessoas que de algum modo contriburam generosamente para este projeto. Mas quatro indivduos merecem uma meno especial. George Andreou, nosso editor na Knopf, dotado de uma pacincia sobrenatural e que redigiu mais trechos deste livro os melhores do que gostaramos de admitir. Kiryn Haslinger, nossa assistente excepcionalmente eficiente no laboratrio Cold Spring Harbor, que adulou, provocou, editou, pesquisou, espicaou, pormenorizou, interveio e escreveu tudo praticamente na mesma proporo. O livro simplesmente no teria acontecido sem ela. Jan Witkowski, tambm do laboratrio Cold Spring l harbor, realizou um trabalho extraordinrio ao montar os captulos 10, 11 e 12 em tempo recorde, e ofereceu indispensveis conselhos durante todo o projeto. E Maureen Berejka, assistente de Watson, que prestou um servio inestimvel, como sempre, sendo a nica habitante do planeta Terra capaz de decifrar a letra de Watson.

James D. Watson Cold Spring Harbor, Nova York

Andrew Berry Cambridge, Massachusetts

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Introduo

O segredo da vida

Como geralmente acontecia aos sbados de manh, comecei a trabalhar no laboratrio Cavendish, da Universidade de Cambridge, antes de Francis Crickno dia 28 de fevereiro de 1953. Eu tinha bons motivos para levantar cedo. Sabia que estvamos perto embora no imaginasse o quanto de decifrar a estrutura de uma molcula quase desconhecida na poca chamada cido desoxirribonuclico (dna). Mas essa no era uma molcula qualquer: o dna, como Crick e eu estvamos cientes, contm a chave da natureza das coisas vivas, armazenando as informaes hereditrias que so passadas de uma gerao a outra e orquestrando o mundo inacreditavelmente complexo da clula. Se decifrssemos sua estrutura tridimensional, a arquitetura da molcula, teramos um vislumbre do que Crick entre srio e brincalho chamava de o segredo da vida.

J sabamos que as molculas de dna consistem em mltiplas cpias de uma nica unidade bsica, o nudeotdeo, que ocorre em quatro formas: adenina (a), timina (t), guanina (g) e citosina (c). Eu passara a tarde anterior preparando recortes de papelo desses diversos componentes e agora, na calma daquela tranqila manh de sbado, podia ficar embaralhando vontade as peas do quebra-cabea tridimensional. Como elas se encaixavam? Logo percebi que um padro simples de emparelhamento funcionava excepcionalmente bem: a encaixava-se perfeitamente com t, e g com c. Seria isso? Ser que a molcula consistia em duas cadeias unidas pelos pares a-t e g-c? Era algo to simples, to sucinto, que tinha de estar certo ou quase. Eu j me equivocara no passado e, antes de me empolgar demais, essa estrutura de pares teria de passar pelo crivo do olho crtico de Crick. Foi uma espera ansiosa, mas eu no precisava ter me preocupado. Crick logo percebeu que a minha idia de pares implicava uma estrutura de dupla-hlice, com duas cadeias moleculares avanando

em direes opostas. Tudo o que se sabia sobre o dna e suas propriedades os fatos com os quais vnhamos nos debatendo ao tentar elucidar o problema fazia sentido luz dessas delicadas guinadas complementares. Mais importante, porm, que o modo como a molcula se organizava sugeria de imediato soluo para dois dos mistrios mais antigos da biologia: como as informaes hereditrias so armazenadas e como ocorre sua replicao. Apesar disso, a fanfarrice de Crick no Eagle, o pub onde costumvamos almoar, declarando que havamos descoberto o segredo da vida, pareceu-me um tanto imodesta, ainda mais na Inglaterra, onde a discrio um estilo de vida.

Crick, no entanto, estava certo. Nossa descoberta ps fim a uma discusso to antiga quanto a espcie humana: ser que a vida possui alguma essncia mgica ou mstica? Ou ser que, como qualquer outra reao qumica realizada em laboratrio, produto de processos fsicos e qumicos normais? Existe algo divino no mago da clula, que lhe d vida? A dupla-hlice respondia a essa ltima pergunta com um no definitivo.

A teoria da evoluo de Charles Darwin, mostrando que todas as formas de vida so inter-relacionadas, foi um enorme avano no nosso entendimento do mundo em termos materialistas, isto , fsico-qumicos. As descobertas dos bilogos Theodor Schwann e Louis Pasteur na segunda metade do sculo xix tambm representaram um importante passo adiante. A carne putrefata no gera vermes espontaneamente; pelo contrrio, agentes e processos biolgicos conhecidos so responsveis neste caso, moscas que pem ovos. A idia de gerao espontnea foi desacreditada.

A despeito desse progresso, diversas formas de vitalismo a crena de que mecanismos fsico-qumicos no podem explicar a vida e seus processos subsistiram. Muitos bilogos, relutando em aceitar a seleo natural como o nico fator determinante do destino das linhagens evolutivas, invocaram uma indefinida e imprecisa fora espiritual para justificar a adaptao. Os fsicos, mais acostumados a lidar com um mundo simples e parcimonioso algumas poucas partculas, algumas poucas foras julgavam desnorteante essa desalinhada complexidade da biologia e sugeriram que os processos no interior das clulas, aqueles que regem os fundamentos da vida, talvez fossem alm das leis conhecidas da fsica e da qumica.

Por isso a dupla-hlice foi to importante: trouxe a revoluo do pensamento materialista do Iluminismo para o mbito da clula. A jornada intelec-

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tual, que comeara com Coprnico retirando os seres humanos do centro do universo e prosseguiu com Darwin insistindo que os seres humanos so meros macacos modificados, finalmente chegara prpria essncia da vida. No havia nada de especial nela. A dupla-hlice uma estrutura sucinta, mas sua mensagem no poderia ser mais prosaica: a vida uma simples questo de qumica.

Crick e eu logo compreendemos o significado intelectual de nossa descoberta, mas no havia como prever o impacto explosivo da dupla-hlice na cincia e na sociedade. Contida nas curvas graciosas da molcula estava a chave da biologia molecular, uma nova cincia cujos avanos nos cinqenta anos subseqentes foram espantosos. Ela no s gerou uma gama impressionante de novas concepes dos processos biolgicos fundamentais como vem tendo um impacto cada vez mais profundo na medicina, na agricultura e no direito. O dna no mais algo de interesse apenas para cientistas de avental branco em obscuros laboratrios das universidades; ele afeta todos ns.

Em meados dos anos 1960, j havamos decifrado a mecnica bsica da clula e sabamos, graas ao cdigo gentico, de que maneira o alfabeto de quatro letras da seqncia de dna se traduzia no alfabeto de vinte letras das protenas. O lance seguinte ocorreu na dcada de 1970, com a introduo de tcnicas para manipular o dna e ler sua seqncia de pares de bases. No estvamos mais fadados a observar dos bastidores a natureza; podamos agora efetivamente intervir no dna dos organismos vivos e ler a histria bsica da vida. Novas e extraordinrias perspectivas cientficas se abriram: enfrentar doenas genticas, da fibrose cstica ao cncer; revolucionar a justia criminal com novos mtodos de identificao gentica, determinando a impresso digital mais ntima de cada ser; revisar a fundo nossas idias sobre as origens humanas quem somos e de onde viemos , estudando a pr-histria sob a nova tica do dna; e aperfeioar espcies agrcolas importantes com uma eficcia nunca antes sonhada.

Mas o clmax dos primeiros cinqenta anos da revoluo do dna ocorreu em 26 de junho de 2000, com o anncio pelo presidente Bill Clinton da concluso da primeira minuta da seqncia completa do genoma humano: Estamos hoje conhecendo a linguagem com a qual Deus criou vida. De posse desse profundo conhecimento, a humanidade est no limiar de adquirir um novo e imenso poder de cura. O Projeto Genoma Humano foi um rito de passagem da biologia molecular para a maioridade; ela se tornou uma cincia adulta, com oramentos e resultados de gente grande. O projeto foi no s uma extraordi-

13nria faanha tecnolgica a quantidade de informaes extradas do complemento humano de 23 pares de cromossomos assombrosa como tambm um marco notvel em nossa noo do que significa ser homem. o nosso dna que nos distingue das demais espcies e nos torna as criaturas criativas, conscientes, dominantes e destrutivas que somos. E l estava, em toda sua plenitude, tudo o que o dna o manual de instrues da espcie humana.

O dna percorreu uma longa trajetria desde aquela manh de sbado em Cambridge. Mas igualmente claro que a cincia da biologia molecular o que o dna pode fazer por ns ainda tem um longo caminho a percorrer. Resta descobrir a cura do cncer; terapias gnicas eficazes para doenas genticas ainda esto por ser desenvolvidas; engenharia gentica ainda cabe compreender suas extraordinrias possibilidades de melhorar nossos alimentos. Mas tudo isso acontecer no devido tempo. Os primeiros cinqenta anos da revoluo do dna testemunharam um enorme progresso cientfico e tambm as primeiras aplicaes desse progresso a problemas humanos. O futuro ver muitos outros avanos cientficos, mas, cada vez mais, o foco ser o impacto crescente do dna em nossa maneira de viver.

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1. Os primrdios da gentica: De Mendel a Hitler

Minha me, Bonnie Jean, acreditava em genes. Ela se orgulhava das origens escocesas de seu pai e via nele as tradicionais virtudes escocesas de honestidade, trabalho e frugalidade. Tambm ela possua essas qualidades e sentia que haviam sido transmitidas por ele. A morte trgica e prematura de meu av significou que o nico legado no-gentico que deixou a minha me foi um conjunto de pequenos kilts femininos que ele encomendara em Glasgow. No chega a surpreender, pois, que ela valorizasse a herana biolgica de seu pai mais que seu esplio material.

Desde que me lembro, eu tinha discusses infindveis com minha me sobre os papis relativos da herana [nature] e do ambiente [nurture] em nossa formao. Ao defender a preponderncia dos aspectos adquiridos sobre os

Acima: A chave do triunfo de Mendel: variaes genticas em ervilhas.

155i Eu, aos onze anos de idade, com minha | irm Elizabeth e meu pai, James.

inatos, eu na realidade assumia a convico de que podemos nos tornar aquilo que queremos ser. Eu no queria aceitar que meus genes tivessem muita importncia, preferindo atribuir a obesidade da vov Watson ao fato de ela haver comido demais. Se a constituio dela fosse um produto de seus genes, ento eu tambm poderia vir a ser um futuro rechonchudo. Por outro lado, mesmo na adolescncia, eu no contestava os fundamentos bsicos evidentes da hereditariedade, a saber, que semelhantes geram semelhantes. As discusses com minha me eram sobre questes mais complexas, como os vrios aspectos da personalidade, e no sobre atributos simples que mesmo um jovem obstinado como eu podia ver que eram transmitidos de gerao a gerao, resultando na semelhana entre parentes. Meu nariz o de minha me e agora pertence tambm a meu filho Duncan.

s vezes, as caractersticas surgem e desaparecem em poucas geraes; outras vezes, porm, persistem por muito tempo. Um dos exemplos mais famosos de traos duradouros o chamado lbio dos Habsburgo. O prognatismo mandibular e a languidez do lbio inferior dessa famlia foram transmitidos intactos ao longo de no mnimo 23 geraes, e tornaram os monarcas da Casa de Habsburgo um verdadeiro pesadelo para geraes e geraes de retratistas cortesos.

Os Habsburgo contriburam para o seu prprio infortnio gentico casando-se entre si. Os casamentos arranjados entre os diferentes ramos do cl dos Habsburgo e, muitas vezes, entre parentes prximos podiam fazer sentido poltico, pois estabeleciam alianas e asseguravam a sucesso dinstica, mas eram uma insensatez em termos genticos. Esse tipo de endogamia pode resultar em doenas genticas, como os Habsburgo viriam a descobrir a duras penas.

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Carlos ii o ltimo monarca Habsburgo na Espanha, no s ostentava um exemplo triunfal do lbio familiar (ele no era sequer capaz de mastigar sua prpria comida) como era tambm totalmente invlido e, apesar de casar-se duas vezes, foi incapaz de gerar filhos.

As doenas genticas assolam a humanidade desde longa data. Em alguns casos, como o de Carlos II, tiveram um impacto direto na histria. Diagnsticos retrospectivos sugerem que Jorge III, o rei ingls cuja principal faanha o fato de haver perdido as colnias americanas na revoluo de 1776, sofria de um mal hereditrio porfiria que provoca acessos peridicos de loucura. Certos historiadores, em particular os britnicos, argumentam que foi a obsesso provocada pela doena de Jorge III que permitiu aos futuros americanos um sucesso militar contra todas as expectativas. Embora a maioria das doenas hereditrias no tenha esse tipo de impacto geopoltico, as conseqncias so brutais e freqentemente trgicas para as famlias afetadas, prolongando-se muitas vezes por vrias geraes. Entender a gentica significa no apenas entender por que somos parecidos com nossos pais, mas tambm diz respeito a enfrentar alguns dos mais antigos inimigos da humanidade: as falhas em nossos genes que causam doenas genticas.

Nossos antepassados devem ter comeado a se indagar sobre os mecanismos da hereditariedade to logo a evoluo os dotou com crebros capazes de formular o tipo certo de pergunta. Um princpio que salta aos olhos parentes prximos tendem a ser parecidos entre si pode ser extremamente instrutivo se, como nossos ancestrais, nosso interesse por gentica aplicada limitar-se a questes prticas, tais como melhorar animais domesticados (para, digamos, aumentar a produo de leite das vacas) ou plantas (para obter frutos maiores, por exemplo). Geraes de meticulosa seleo de reproduo controlada para, inicialmente, domesticar as espcies apropriadas e, em seguida, para criar apenas as vacas mais produtivas ou as rvores com os maiores frutos resultaram em animais e plantas feitos sob medida para propsitos humanos. Subjacente a esse enorme esforo, do qual no temos registro algum, est uma regra emprica elementar: as vacas mais produtivas iro gerar a prole mais produtiva e das sementes de rvores com os maiores frutos iro germinar rvores de frutos grandes. Portanto, a despeito dos avanos extraordinrios dos ltimos cento e poucos anos, os sculos xx e xxi no detm, de modo algum, o monoplio do

17entendimento gentico. Embora somente em 1909 o bilogo britnico WiUiam Bateson tenha dado um nome gentica cincia da hereditariedade e embora a revoluo do Dna tenha descortinado um novo e surpreendente panorama do progresso possvel, na realidade a maior aplicao da gentica ao bem estar humano ocorreu milnios atrs e foi obra de agricultores annimos desse passado longnquo. Quase tudo o que comemos cereais, frutas, carne, laticnios um legado dessa primeira e mais radical aplicao de manipulaes genticas a problemas humanos.

Mas entender o mecanismo efetivo da gentica revelou-se uma tarefa bem mais rdua. Gregor Mendel (1822-1884) publicou seu famoso estudo em 1866, que permaneceu ignorado pela comunidade cientfica por mais 34 anos. Por que tanto tempo? Afinal, a hereditariedade um dos aspectos mais relevantes do mundo natural e, talvez mais importante, algo fcil e universalmente observvel: o dono de um co logo v o que acontece com o cruzamento de um cachorro marrom e um preto, e todo pai e toda me, consciente ou inconscientemente, percebem o aparecimento de suas prprias caractersticas nos filhos. Um motivo bsico que, na verdade, os mecanismos genticos acabam se revelando complexos. A soluo de Mendel para o problema no intuitiva nem bvia: afinal, as crianas no so uma simples mistura das caractersticas de seus genitores. Mais importante, no entanto, que os primeiros bilogos talvez no tenham conseguido distinguir dois processos fundamentalmente diferentes: hereditariedade e desenvolvimento. Hoje sabemos que um ovo fertilizado contm informaes genticas e que essas informaes, provenientes de ambos os genitores, determinaro se algum sofrer ou no de porfiria, por exemplo. Isso hereditariedade. O processo subseqente, o desenvolvimento de um novo indivduo a partir desse ponto de partida singelo uma nica clula, o ovo fertilizado -, diz respeito implementao dessas informaes. Como disciplinas acadmicas, dizemos que a gentica est voltada para as informaes e a biologia do desenvolvimento se atem ao uso dessas informaes. Os antigos cientistas, que viam a hereditariedade e o desenvolvimento como um nico fenmeno, no tinham como fazer as perguntas que talvez os tivessem direcionado ao segredo da hereditariedade. Seja como for, essa manipulao gentica algo que se tem empreendido de alguma forma desde a aurora da histria ocidental.

Os gregos, Hipcrates entre eles, refletiram sobre a hereditariedade e conceberam uma teoria de pangnese, segundo a qual a atividade sexual implica-

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va a transferncia de miniaturas dos rgos do corpo: Plos, unhas, veias, artrias tendes e ossos, ainda que invisveis, pois suas partculas so diminutas, vo crescendo e pouco a pouco se separando umas das outras. Essa idia gozou de um breve renascimento quando Charles Darwin, ansioso para dar respaldo sua teoria da evoluo por seleo natural com alguma hiptese vivel de hereditariedade, lanou uma verso modificada de pangnese na segunda metade do sculo xix. Na concepo de Darwin, cada rgo olhos, rins, ossos produziria gmulas que se acumulariam nos rgos sexuais e seriam transmitidas no curso da reproduo sexuada. Como, em tese, essas gmulas eram produzidas ao longo de toda a vida de um organismo, Darwin argumentou que qualquer mudana ocorrida no indivduo aps o nascimento como o longo pescoo da girafa, que decorreria do fato de se esticar para alcanar as folhas mais altas poderia ser transmitida para a gerao seguinte. irnico que, a fim de escorar sua teoria de seleo natural, Darwin tenha

defendido aspectos da teoria da hereditariedade de caracteres adquiridos de Jean-Baptiste Lamarcka mesma teoria que as idias evolucionistas tanto fizeram para desacreditar. Darwin, contudo, recorreu unicamente teoria da hereditariedade de Ihry Lamarck; ele continuou acreditando que a seleo natural era a fora motriz da evoluo, mas sups que a seleo natural agisse sobre variaes produzidas por pangnese. Se Darwin tivesse conhecido o trabalho de Mendel (embora Mendel tenha publicado seus resultados pouco depois do lanamento de A origem das espcies, Darwin no chegou a tomar cincia deles), poderia ter se poupado o embarao de, no final de sua carreira, haver endossado algumas das idias de Lamarck. Enquanto a pangnese supe que os embries so formados a partir de um conjunto de componentes microscpicos, uma outra abordagem, o pr-formismo, evita por completo essa etapa de montagem do indivduo e postula que o vulo ou o espermatozide (no se sabe exatamente qual; a questo permaneceu sempre polmica) contm um indivduo completo pr-formado chamado homnculo. O desenvolvimento seria ento apenas o crescimento do homnculo at se tornar

A gentica antes de Mendel: um homnculo, um ser pr-formado em miniatura que se acreditava existir na cabea do espermatozde.

19oena gentica era

um ser totalmente formado. O que hoje conhecemos como doena gentica era interpretado de diversas maneiras na poca do pr-formismo: ora como manifestao da ira de Deus ou de artimanhas de demnios e diabos, ora como resultado de algum excesso ou escassez na semente paterna, ora como resultado dos maus pensamentos da me durante a gravidez. Com base na premissa de que frustrar os desejos de uma grvida, deixando-a estressada e frustrada, pode levar malformao do feto, Napoleo promulgou um decreto inocentando gestantes que efetuassem pequenos furtos emlojas. Nenhuma dessas noes, desnecessrio dizer, contribuiu para promover nosso entendimento das doenas genticas.

No incio do sculo xix, o surgimento de microscpios mais aperfeioados desbancou o pr-formismo. Por mais que olhemos, jamais veremos um minsculo homnculo retorcido dentro do espermatozide ou do vulo. A pangnese, embora mais antiga, foi um equvoco que perdurou, pois persistiu a argumentao de que as gmulas eram simplesmente pequenas demais para ser visualizadas. Mas, claro, foi enfim descartada por August Weismann, que afirmou que a hereditariedade dependia da continuidade do germoplasma de gerao a gerao e, portanto, que as mudanas em um corpo ao longo da vida de um indivduo no poderiam ser transmitidas a geraes subseqentes. Seu experimento, bastante simples, consistiu em cortar o rabo de algumas geraes de ratos. De acordo com a pangnese darwiniana, os ratos sem cauda deveriam produzir gmulas que sinalizassem ausncia de rabo, de tal modo que sua prole desenvolveria um coto bastante atrofiado ou mesmo nenhum apndice. Quandd Weismann demonstrou que o rabo continuava reaparecendo aps vrias geraes de ratos mutilados, a pangnese ruiu por terra.

O mecanismo s seria compreendido por Gregor Mendel que, sob qualquer critrio, era um candidato improvvel ao estrelato cientfico. Mendel nasceu numa famlia de fazendeiros, na atual Repblica Tcheca, e sobressaiu-se nos estudos na escola do seu vilarejo. Aos 21 anos, entrou para o mosteiro agostiniano de Brnn. Depois de revelar-se um desastre como proco sua reao ao sacerdcio foi um colapso nervoso , tentou lecionar. Segundo todos os relatos, foi um bom professor, mas, a fim de qualificar-se para ensinar um currculo completo, precisava prestar um exame, no qual no foi aprovado. Seu

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superior, o abade Napp, despachou-o ento para a Universidade de Viena, onde deveria se preparar em tempo integral para prestar novamente o exame. Apesar de aparentemente ter se sado bem em fsica, Mendel foi mais uma vez reprovado e desse modo, nunca ascendeu acima do posto de professor substituto.

Por volta de 1856, seguindo uma sugesto do abade Napp, realizou alguns experimentos cientficos sobre hereditariedade. Ele decidira estudar certas caractersticas das ervilhas que cultivava em seu prprio canteiro no jardim do mosteiro. Em 1865, proferiu duas palestras na sociedade de histria natural local, quando apresentou seus resultados, e, um ano depois, publicou suas concluses no peridico da sociedade. Seu trabalho foi um verdadeiro tour de force, com experimentos concebidos de maneira brilhante e executados com esmero, e uma anlise sagaz e profunda dos resultados. Talvez seu conhecimento de fsica tenha contribudo para suas descobertas, pois, ao contrrio de outros bilogos de seu tempo, Mendel abordou o problema sob uma tica quantitativa. Em vez de simplesmente constatar que o cruzamento de flores vermelhas e brancas resulta em alguns descendentes brancos e outros vermelhos, Mendel efetuou uma contagem rigorosa, intuindo que a proporo entre flores vermelhas e brancas talvez fosse importante como de fato . Apesar de ter enviado cpias de seu trabalho para diversos cientistas eminentes, permaneceu totalmente ignorado pela comunidade cientfica. Uma das tentativas de atrair ateno para seus resultados saiu pela culatra. Escreveu para o nico contato que tinha entre os principais cientistas da poca, o botnico Karl Ngeli, de Munique, pedindolhe que reproduzisse os experimentos. Para tanto, enviou 140 envelopes cuidadosamente etiquetados de sementes. Mas no precisaria ter se dado ao trabalho. Nageli acreditava que esse monge obscuro deveria estar a seu servio, no o contrrio, e enviou a Mendel sementes de sua planta favorita, Hiemcium, uma variedade de chicria, desafiando o monge a reproduzir seus resultados com uma espcie diferente. Lamentavelmente, por uma srie de motivos, essa no uma planta apropriada para o tipo de cruzamento que Mendel realizara com ervilhas. A tentativa foi um total desperdcio de tempo.

A discreta existncia de Mendel como monge-professor-pesquisador chegou subitamente ao fim em 1868, com a morte de Napp e sua eleio para abade do mosteiro. Embora continuasse suas pesquisas com abelhas e meteorologia, em especial , as responsabilidades administrativas eram um fardo pesado, ainda mais que o mosteiro se envolveu num imbrglio acerca de imps-tos em aberto. Mas outros fatores tambm o prejudicaram como cientista. Sua corpulncia acabou por impedi-lo de realizar trabalhos de campo: como escreveu, subir e descer morros tornara-se dificlimo para mim num mundo regido pela gravitao universal. Seus mdicos receitaram tabaco para controlar o peso e ele os atendeu fumando vinte charutos por dia, tantos quanto Wnston Churchill. Mas no foram os pulmes que falharam: em 1884, aos 61 anos, Mendel sucumbiu a uma combinao de doena renal e cardaca.

No s os resultados de suas pesquisas permaneceram enterrados num peridico obscuro como teriam sido ininteligveis para a maioria dos cientistas da poca. Mendel estava muito frente do seu tempo com sua combinao de experimentao meticulosa e anlise quantitativa sofisticada. No de admirar, portanto, que somente em 1900 a comunidade cientfica o tenha alcanado. A redescoberta do trabalho de Mendel por trs geneticistas botnicos interessados em problemas similares provocou uma revoluo na biologia. O mundo cientfico estava enfim pronto para as ervilhas do monge.

Mendel percebeu que existem fatores especficos mais tarde denominados genes que so transmitidos pelos pais prole. Constatou que esses fatores ocorrem em pares e que os descendentes recebem um de cada genitor. Como existem ervilhas de duas cores distintas verdes e amarelas , ele deduziu que tambm existem dois fatores, ou duas verses, do gene responsvel pela cor da vagem. Uma ervilha precisa ter duas cpias da verso v para tornar-se verde; nesse caso, dizemos que o gene que condiciona sua cor w e, portanto, deve ter recebido um gene v de cada um dos genitores. As ervilhas amarelas, por sua vez, resultam tanto de combinaes aa como de av. Basta apenas uma cpia da verso a para produzir ervilhas amarelas, a prevalece sobre v. Como na situao av o sinal a predomina sobre o sinal v, dizemos que a dominante. A verso subordinada do gene de cor v dita recessiva.

Cada planta genitora possui duas cpias do gene que condiciona a cor da ervilha, mas s contribuir com uma cpia para cada descendente a outra ser fornecida pela outra planta genitora. Nas plantas, os grnulos de plen contm clulas espermticas a contribuio masculina gerao seguinte e cada clula espermtica contm apenas uma cpia do gene condicionante da

O cromossomo X humano,

visto por um microscpio eletrnico.

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cor. Uma planta-me de ervilha com uma combinao av produzir sementes que contm uma verso a ou uma verso v. Mendel descobriu que esse processo aleatrio: 50% das sementes produzidas por essa planta tero o fator a e 50% tero o fator v.

Da noite para o dia, muitos mistrios da hereditariedade passaram a fazer sentido. Caractersticas transmitidas de gerao a gerao com um alto grau de probabilidade (50%, para ser mais exato) so dominantes, como acontecia com o lbio dos Habsburgo. Outras caractersticas que surgem mais esporadicamente numa rvore genealgica, muitas vezes pulando uma ou mais geraes, podem ser recessivas. Se um gene recessivo, o indivduo precisa ter duas cpias para que o trao correspondente seja manifesto. Aqueles que tiverem apenas uma cpia do gene sero portadores, isto , eles prprios no apresentaro a caracterstica mas sero capaz de transmitir o gene adiante. O albinismo (a condio em que o corpo no consegue produzir pigmento, de tal modo que a pele e o cabelo so drasticamente brancos) um exemplo de caracterstica recessiva transmitida dessa maneira. Ou seja, para algum ser albino, precisa portar duas cpias do gene, uma de cada genitor. (Foi o caso do reverendo Wliam Archibald Spooner o qual, talvez por mera coincidncia, tambm era propenso a uma forma peculiar de confuso lingstica, batizada de spoonerismo em sua homenagem, e que consiste em trocar as slabas de duas ou mais palavras, como bola de gude por gula de bode.) Mas nossos pais no precisam ter manifestado nenhum sinal desse gene. Se cada um possui apenas uma cpia, como costuma acontecer, ento, embora ambos sejam portadores, o trao pulou no mnimo essa gerao.

Os resultados de Mendel indicavam que coisas objetos materiais eram transmitidas de gerao a gerao. Qual seria a natureza dessas coisas?

Por volta da poca da morte de Mendel, em 1884, os cientistas, usando recursos pticos cada vez melhores para estudar a arquitetura diminuta das clu-

23Ias, cunharam o termo cromossomo para descrever os corpos finos e compridos existentes no ncleo celular. Mas somente em 1902 algum associaria Mendel aos cromossomos.

Um estudante de medicina da Universidade Columbia, Walter Sutton, percebeu que os cromossomos tinham muito em comum com os misteriosos fatores de Mendel. Ao estudar os cromossomos de gafanhotos, percebeu que quase todos eram duplos como os fatores emparelhados de Mendel. Mas Sutton tambm identificou um tipo de clula em que os cromossomos no apareciam aos pares: as clulas sexuais. O espermatozide do gafanhoto possui apenas um conjunto de cromossomos, no dois. Isso era idntico ao que Mendel observara nas clulas espermticas das ervilhas, que tambm s portavam uma cpia de cada um dos fatores. Estava claro que os fatores de Mendel, agora denominados genes, tinham de estar nos cromossomos.

Na Alemanha, por vias independentes, Theodor Boveri chegou s mesmas concluses que Sutton, e a revoluo biolgica que o trabalho de ambos precipitou veio a ser conhecida como teoria cromossmica da hereditariedade de Sutton-Boveri. De repente, os genes se tornaram algo muito real: estavam nos cromossomos, que podiam ser vistos ao microscpio.

Nem todos aceitaram a teoria de Sutton-Boveri. Um dos que manifestaram ceticismo foi Thomas Hunt Morgan, tambm da Columbia. Ao examinar no microscpio os delgados cromossomos, no viu como poderiam explicar todas as mudanas que ocorrem de uma gerao para outra. Se todos os genes se organizam em torno dos cromossomos e se todos os cromossomos so transmitidos intactos de uma gerao seguinte, ento certamente muitas caractersticas seriam herdadas juntas. Todavia, os dados empricos mostravam que isso no ocorria, de modo que a teoria cromossmica parecia insuficiente para explicar a variao observada na natureza. Sendo um experimentalista sagaz, Morgan teve uma idia de como resolver tais discrepncias. Ele se voltou para a mosca-das-frutas, Drosophila melanogaster, um insetozinho prosaico que, desde Morgan, tem sido a menina-dos-olhos dos geneticistas.

Na realidade, Morgan no foi o primeiro a usar a mosca-das-frutas para estudar cruzamentos; essa distino pertence ao laboratrio da Harvard, que ps a mosquinha para trabalhar em 1901, embora tenha sido Morgan que a24

Clebre por evitar cmeras, T. H. Morgan foi

secretamente fotografado enquanto

trabalhava na sala das moscas.

trouxe para o tablado da cincia. As drosfilas so uma boa escolha para experimentos genticos. So fceis de achar ( s olhar para um cacho de bananas maduras durante o vero), fceis de criar (elas se alimentam de banana) e centenas delas podem ser acomodadas numa garrafa de vidro. (Os alunos de Morgan no tinham dificuldade para achar garrafas, pois saam de madrugada para surrupiar garrafas de leite deixadas na soleira das portas da sua vizinhana em Manhattan.) Alm disso, elas se reproduzem e se reproduzem e se reproduzem (uma gerao completa leva cerca de dez dias, sendo que cada fmea pe vrias centenas de ovos). Em 1907, num laboratrio srdido, infestado de baratas e fedendo a banana que viria a ser conhecido como sala das moscas, Morgan e seus alunos (os garotos de Morgan, como eram chamados) puseram-se a trabalhar com as moscas-das-frutas.

Ao contrrio de Mendel, que pde contar com linhagens variantes isoladas ao longo dos anos por agricultores e jardineiros ervilhas amarelas em oposio a verdes, cascas enrugadas em oposio a cascas lisas , Morgan no dispunha de um menu das diferenas genticas estabelecidas nas moscas-das-frutas. E no possvel trabalhar em gentica enquanto no se isolarem algumas caractersticas distintas que possam ser acompanhadas de gerao a gerao. Portanto, a primeira meta de Morgan foi encontrar mutantes, o equivalente entre as moscas-das-frutas s ervilhas amarelas ou rugosas. Ou seja, ele buscou alguma novidade gentica, alguma variao aleatria que, de algum modo, houvesse simplesmente surgido numa populao.

25Um dos primeiros mutantes observados por Morgan revelou-se um dos mais instrutivos. Conquanto as moscas-das-frutas normais tenham olhos vermelhos, esses mutantes tinham olhos brancos. Alm disso, essas moscas de olhos brancos eram, via de regra, machos. J se sabia que os cromossomos determinam o sexo das moscas-das-frutas (e, claro, tambm dos seres humanos): as fmeas tm duas cpias do cro X HjHI mossomo x, ao passo que os machos tm uma cpia do x e

/ B* uma cpia do cromossomo y, cujo comprimento bem s*f V Bt menor. luz de tais informaes, os olhos brancos subita- mente fizeram sentido: o gene da cor do olho est localiza-

do no cromossomo x e a mutao do olho branco, B, recessiva. Como os machos s tm um cromossomo x, at mesmo os genes recessivos manifestam-se automaticamente na ausncia de um gene equivalente dominante que os suprima. Fmeas de olho branco eram relativamente raras porque, normalmente, tendo apenas uma cpia de b [branco], elas manifestam a cor de olho dominante: vermelho. Assim, a despeito de suas reservas iniciais, ao correlacionar um gene (o responsvel pela cor dos olhos) a um cromossomo N./8HH (o x), Morgan comprovou para todos os efeitos a teoria de Sutton-Boveri. E tambm encontrou um exemplo de vinculao ao sexo [sex-linkage, ou herana ligada ao sexo], pela qual uma determinada caracterstica est desproporcionalmente * representada num dos sexos.

Assim como as moscas-das-frutas de Morgan, a rainha Vitria outro exemplo famoso de vinculao ao sexo. Em um de seus cromossomos x, ela possua um gene mutante de hemofilia, que provoca problemas na coagulao do sangue e, portanto, o grave risco de sangramento. Como o gene da hemofilia recessivo e a sua outra cpia era normal, ela mesma no padecia do mal. Mas era portadora. Suas filhas tambm no contraram a doena; evidentemente, cada uma tambm possua pelo menos uma cpia da verso normal do gene. Mas seus filhos no tiveram a mesma sorte. Como todos os machos (incluindo os das moscas-das-frutas), eles tinham apenas um cromossomo x, necessariamente proveniente da me (o cromossomo y s poderia provir do prncipe Albert, marido de Vitria). Como a rainha Vitria tinha uma cpia mutante e uma cpia normal, cada filho tinha 50% de chance de ter a doena. O prncipe26

noldo foi o premiado; ele sofria de hemofilia e faleceu aos 31 anos de idade,

ando ate a morte aps uma pequena queda. Duas filhas de Vitria, as prin-

Alice e Beatriz, tambm foram portadoras, tendo herdado o gene mutan-

da me, e ambas geraram filhas portadoras e filhos hemoflicos. Alexis, neto

d Alice herdeiro do trono russo, era hemoflico e certamente teria morrido

iovem se os bolcheviques no houvessem feito o servio primeiro.

As moscas de Morgan tinham outros segredos a revelar. Ao estudarem os genes localizados num mesmo cromossomo, ele e seus alunos verificaram que, na verdade, os cromossomos se rompem e voltam a se juntar durante a produo do espermatozide e do vulo. Isso significava que as objees originais de Morgan teoria de Sutton-Boveri eram injustificadas: o rompimento e o reajuntamento recombinao, no jargo gentico moderno embaralham cpias do gene entre os dois cromossomos de um par. Isso significa que, por exemplo, a cpia do cromossomo 12 que recebi de minha me (a outra, claro, veio de meu pai) , na realidade, uma mistura das duas cpias de seu cromossomo 12, uma das quais ela recebeu de minha av materna e a outra de meu av materno. Seus dois cromossomos 12 recombinaram-se isto , intercambiaram material entre si durante a produo do vulo que se transformaria em mim. Assim, o cromossomo 12 que recebi de minha me pode ser visto como um mosaico dos cromossomos 12 de meus avs maternos. E, claro, o cromossomo 12 que minha me recebeu de minha av era tambm um mosaico dos cromossomos 12 de meus bisavs, e assim por diante.

A recombinao permitiu que Morgan e seus alunos mapeassem as posies de genes especficos em um dado cromossomo. Recombinao implica o rompimento (e o reajuntamento) de cromossomos; como os genes esto dispostos como contas ao longo de um colar cromossmico, estatisticamente muito mais provvel que o rompimento ocorra entre dois genes distantes um do outro (ou seja, com mais pontos possveis de ruptura entre si) do que entre dois genes prximos. Portanto, se constatarmos um alto grau de reordenao ou reembaralhamento [reshuffling] de dois genes quaisquer num cromossomo, podemos concluir que esto longe um do outro: quanto mais rara for essa reordenao, maior a probabilidade de os genes estarem prximos. Esse princpio bsico, mas extremamente poderoso, subjaz a todo mapeamento gentico, e, portanto, um dos instrumentos primordiais dos cientistas envolvidos no Projeto Genoma Humano e dos pesquisadores na vanguarda da batalha contra as doenas gen-

27ticas foi desenvolvido muitos e muitos anos atrs na imunda e atulhada sala das moscas da Universidade Columbia. Cada nova manchete na seo de cincias dos jornais anunciando que Gene de Algo Foi Localizado um tributo ao trabalho pioneiro de Morgan e seus garotos.

A redescoberta do trabalho de Mendel e os avanos cientficos decorrentes provocaram um surto de interesse nas implicaes sociais da gentica. Enquanto os cientistas se engalfinhavam com os mecanismos precisos da hereditariedade durante os sculos xvm e xix, aumentava a preocupao pblica com o fardo sobre a sociedade representado pelas classes degeneradas, como viriam a ser chamadas: os moradores de abrigos, aslos e hospcios. O que fazer com essa gente? Esta permaneceu uma questo controvertida. Ser que deveriam ser tratados de maneira caridosa? (No, respondiam aqueles de ndole menos caridosa, pois isso s serviria para assegurar que tal gente nunca iria agir por conta prpria e, por conseguinte, permaneceria para sempre dependente das benesses do Estado ou de instituies privadas.) Ou ser que deveriam simplesmente ser ignorados? (No, respondiam aqueles de ndole caridosa, pois isso apenas perpetuaria a incapacidade desses infelizes de se libertar das circunstncias desventuradas em que se encontravam.)

A publicao, em 1859, de A origem das espcies, de Darwin, tornou essas questes mais prementes. Embora Darwin houvesse cuidadosamente omitido qualquer meno evoluo humana, temendo que isso s inflamaria uma controvrsia j acalorada, no era preciso nenhum grande salto da imaginao para aplicar sua idia de seleo natural aos seres humanos. A seleo natural a fora que determina o destino de todas as variaes genticas na natureza: mutaes como a que Morgan constatou no gene da cor dos olhos da moscadas-frutas, mas tambm talvez diferenas na capacidade dos indivduos de prover sua prpria subsistncia.

As populaes naturais tm um enorme potencial reprodutivo. o caso, por exemplo, das moscas-das-frutas, cujo ciclo de gerao de apenas dez dias e cujas fmeas produzem cerca de trezentos vulos (metade dos quais ser de fmeas): se comearmos com um nico casal de mosca-das-frutas, aps um ms (i.e., trs geraes depois) teremos 150 x 150 x 150 moscas-das-frutas em nossas mos ou seja, mais de 3 milhes de moscas, todas elas provenientes de ape-

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par e em apenas um ms. Darwin esclareceu a questo referindo-se a a espcie que est no extremo oposto do espectro reprodutivo:

De todos os animais conhecidos, o elefante, assim se julga, o que se reproduz mais lentamente. Fiz alguns clculos para avaliar qual seria provavelmente o valor mnimo do seu aumento em nmero. Pode-se, sem temor de errar, admitir que comea a reproduzir-se na idade de trinta anos, e que continua at os noventa; nesse intervalo, produz seis filhos, e vive por si mesmo at a idade de cem anos. Ora, admitindo esses nmeros, em 740 ou 750 anos haveria 19 milhes de elefantes vivos, todos descendentes do primeiro casal*

Esses clculos pressupem que todas as mosquinhas-das-frutas e todos os elefantinhos chegaro idade adulta. Em teoria, portanto, precisaria haver um suprimento infinitamente grande de gua e comida para sustentar esse gnero de furor reprodutivo. Na realidade, claro, tais recursos so limitados e nem todas as mosquinhas e elefantinhos chegam l. Existe competio entre os indivduos de uma mesma espcie por tais recursos. Quem vencer a luta para obter acesso a gua e alimentos? Darwin insiste que a variao gentica implica que alguns indivduos gozam de vantagens no que chamou de luta pela existncia. Tomando o seu famoso exemplo dos tentilhes das ilhas Galpagos, indivduos com vantagens genticas tais como o tamanho certo de bico para comer as sementes mais abundantes tero mais chances de sobreviver e se reproduzir. Assim, essa variante gentica vantajosa bico do tamanho certo tender a ser transmitida para a gerao seguinte. Como resultado, a seleo natural enriquece a gerao seguinte com a mutao benfica, at que, por fim, ao longo de um nmero suficiente de geraes, todos os membros da espcie acabam

possuindo essa caracterstica.

Os homens da era vitoriana aplicaram a mesma lgica aos seres humanos. Olharam ao seu redor e ficaram alarmados com o que viram. A taxa de reproduo da classe mdia decente, moral, trabalhadora estava muito aqum da reproduo desmedida da classe baixa suja, imoral, indolente. Os vitoria-

* Traduo de Joaquim da Mesquita Paul para Lello & Irmo Editores. No original, a citao de Watson alude a cinco sculos e 15 milhes de elefantes, mas os nmeros mencionados por Darwin so os reproduzidos acima. (N. T.)

29nos supuseram que as virtudes da decncia, moralidade e labor eram transmitidas em famlia tanto quanto os vcios da imundcie, licenciosidade e preguia. Logo, tais caractersticas deviam ser hereditrias. Portanto, para os vitorianos, moralidade e imoralidade eram apenas duas dentre as variantes gnicas de Darwin. E, se a ral se reproduzia mais do que as classes respeitveis, ento a proporo de genes ruins estaria aumentando na populao humana. A espcie estava condenada! Pouco a pouco, medida que o gene da imoralidade se disseminasse, os seres humanos iriam se tornando mais depravados.

Francis Galton tinha bons motivos para prestar uma ateno especial ao livro de Darwin, pois o autor era seu primo e amigo. Darwin, cerca de treze anos mais velho, fora seu conselheiro durante a temporada um tanto tortuosa que passou na faculdade. Mas foi A origem das espcies que inspirou Galton a iniciar a cruzada social e gentica cujas conseqncias acabariam sendo desastrosas. Em 1883, um ano aps a morte do primo, Galton daria ao movimento um nome: eugenia.

A eugenia era apenas um dos muitos interesses de Galton. Seus partidrios referem-se a ele como um polmata; seus detratores, como um diletante. Na verdade, ele deixou importantes contribuies em geografia, antropologia, psicologia, gentica, meteorologia, estatstica e, por fundamentar a anlise datiloscpica em slidas bases cientficas, em criminologia. Galton nasceu em 1822, filho de uma prspera famlia. Sua educao parte em medicina, parte em matemtica foi, no geral, uma crnica de expectativas frustradas. A morte do pai, quando ele tinha 21 anos, simultaneamente libertou-o dos grilhes paternos e rendeu-lhe uma bela herana: o jovem Galton tirou bom proveito de ambos os fatos. Mas, depois de seis anos inteiros como um bon vivant fiducirio, Galton resolveu se assentar e tornar-se um membro produtivo da sociedade vitoriana. Ficou conhecido ao chefiar em 1850-52 uma expedio at uma regio pouco conhecida no sudoeste da frica. no relato de suas exploraes que encontramos a primeira manifestao do fio que une todos os seus mltiplos interesses: sua paixo por contar e medir tudo. Galton s se sentia feliz quando podia reduzir um fenmeno a uma srie de nmeros.

Num posto de missionrios, ele se deparou com um espcime notvel de esteatopigia ndegas extremamente protuberantes, uma condio comum

No sculo XIX, uma viso exagerada de uma mulher nama.

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entre as mulheres namas, nativas da regio e percebeu que aquela mulher era naturalmente dotada da silhueta que estava na moda na Europa. A nica diferena era que o visual cobiado pelas europias custava caro e exigia grande talento e engenho da parte dos costureiros.

Considero-me um homem de cincia, de modo que estava bastante ansioso para obter medidas precisas do seu contorno. Mas havia uma dificuldade. Eu no sabia uma s palavra de hotentote [o nome holands para o nama] e, portanto, no tinha como explicar quela senhora o objetivo da minha fita de medir. E no ousaria pedir a meu ilustre anfitrio missionrio que servisse de intrprete. Vi-me, pois, diante de um dilema, ao observar sua figura, o dom de uma natureza prdiga para uma raa favorecida, que nenhum fabricante de manteau, por mais crinolina e enchimento que usasse, poderia pretender mais do que arremedar. O objeto de minha admirao estava em p sob uma rvore e se voltava para todos os pontos cardeais, como damas que querem ser admiradas costumam fazer. De repente, meu olhar pousou num sextante e veio-me uma idia brilhante. Pus-me a realizar uma srie de observaes de sua figura, em cada direo, para cima e para baixo, na transversal, diagonalmente, e fui registrando tudo com cuidado num esboo a fim de no cometer nenhum erro. Em seguida, atrevi-me a pegar uma trena e medir a distncia que nos

31separava. Assim, de posse tanto do vrtice como dos ngulos, calculei os resultados por trigonometria e logaritmos.

A paixo de Galton pela quantificao levou-o a desenvolver muitos dos princpios fundamentais da estatstica moderna. Foi tambm autor de algumas observaes sagazes. Ele testou, por exemplo, a eficcia da orao. Sua hiptese de trabalho era que, caso a orao produzisse resultados, aqueles por quem mais se rezava estariam em posio de vantagem. Para test-la, estudou a longevidade dos monarcas britnicos. Todos os domingos, as congregaes da Igreja Anglicana que adotam o Livro de oraes habituais [pea-chave da liturgia anglicana, de 1549] suplicavam a Deus: Dotai com abundncia o rei/rainha de dons celestiais; concedei-lhe sade e riqueza e longo viver. Por certo, raciocinou Galton, o efeito cumulativo de todas essas oraes deveria ser benfico. Mas logo constatou que as rezas pareciam ser ineficazes e que, em mdia, os monarcas morriam at um pouco mais jovens do que outros membros da aristocracia britnica.

Por causa da sua ligao com Darwin o av de ambos, Erasmus Darwin, foi tambm um dos gigantes intelectuais de seu tempo , Galton era particularmente sensvel ao modo como certas linhagens pareciam gerar um nmero desproporcionalmente grande de pessoas proeminentes e bem-sucedidas. Em1869, publicou o que se tornaria o esteio de todas as suas idias sobre eugenia, um tratado intitulado Hereditary genius: an inquiry into s laws and consequences, no qual pretendeu mostrar que o talento, maneira de qualquer outro trao gentico simples como o lbio dos Habsburgo, tambm se transmite em famlia, mencionando algumas famlias que haviam produzido gerao aps gerao de juizes. No geral, suas anlises no chegam a considerar o efeito do meio ambiente: afinal, o filho de um juiz proeminente tem uma maior tendncia de tornar-se juiz (se no for por nenhum outro motivo, ao menos em virtude das ligaes profissionais de seu pai) do que o filho de um fazendeiro sem terra. Mas ele no relegou por completo o efeito do meio ambiente e foi o primeiro a referir-se dcotomia herana/ambiente, possivelmente numa referncia ao irredimvel vilo de Shakespeare, Calib, um demnio, um demnio de nascena em cuja natureza, herdada jamais pde atuar o ambiente [a devil, a bom devil, on whose nature, Nurture can never stick],

Mas, para Galton, os resultados de sua anlise no deixaram dvida:32

No tenho pacincia com a hiptese ocasionalmente aventada, e muitas vezes insi-nuada particularmente em narrativas escritas para ensinar as crianas a se comportarem bem, que os bebs, ao nascer, so basicamente iguais e que os nicosagentes que produzem diferenas entre um menino e outro e entre um homem eoutro so a dedicao constante e o esforo moral. de modo cabal que recusoqualquer pretenso de igualdade natural.

Como corolrio da sua certeza de que tais traos so determinados geneticamente, Galton argumentava que seria possvel aprimorar a estirpe humana mediante a procriao preferencial dos indivduos dotados e impedindo os menos dotados de se reproduzir.

fcil [...] obter por cuidadosa seleo uma raa permanente de ces ou cavalos dotados de capacidade especial para a corrida, ou para qualquer outra coisa. Seria, pois, bastante exeqvel produzir, por meio de casamentos judiciosos ao longo de vrias geraes consecutivas, uma raa de homens extremamente dotados.

Galton introduziu o termo eugenia (literalmente, de boa origem) para descrever a aplicao a seres humanos do princpio bsico da propagao agrcola. Com o tempo, eugenia passou a denotar evoluo humana autocontrolada: os eugenistas acreditavam que, tomando decises conscientes sobre quem deve ou no ter filhos, eles seriam capazes de impedir a erupo da crise eugnica, precipitada na imaginao vitoriana pela alta taxa de reproduo da ral inferior associada s famlias caracteristicamente menores das classes mdias superiores.

Hoje em dia, eugenia uma palavra malvista, associada a racistas e nazistas, e traz mente uma fase da histria da gentica que talvez fosse melhor esquecer. Contudo, importante reconhecer que, nos ltimos anos do sculo xix e no incio do sculo xx, ela no era tida como infame; pelo contrrio, muitos viam a eugenia como uma possibilidade genuna para melhorar no apenas a sociedade como um todo mas tambm a sorte dos indivduos dentro da sociedade. A eugenia foi aclamada com entusiasmo especial por aqueles que hoje designaramos como esquerda liberal. Os socialistas fabianistas, que incluam alguns dos pensadores mais progressistas da poca, acorreram a defender a causa entre eles,

33A eugenia, tal como concebida na primeira metade do sculo XX: uma oportunidade para os seres humanos controlarem seu prprio destino evolutivo.

George Bernard Shaw, que escreveu: No h mais nenhuma desculpa razovel para nos recusarmos a enfrentar o fato de que nada, seno uma religio eugnica, pode salvar nossa civilizao. A eugenia parecia oferecer uma soluo para um dos males mais persistentes da sociedade: aquele segmento da populao que incapaz de subsistir fora, ou sem auxlio, de alguma instituio.

Se Galton pregava o que veio a ser conhecido como eugenia positiva, incentivando pessoas com genes superiores a ter filhos, o movimento eugnico americano preferiu voltar-se para a eugenia negativa, ou seja, impedir as pessoas geneticamente inferiores de procriar. O objetivo de ambos os programas era basicamente o mesmo melhorar a linhagem gentica humana , mas as duas abordagens no poderiam ser mais diferentes.

O enfoque americano de eliminar os genes ruins, em oposio a aumentar a freqncia dos genes bons, decorreu de alguns estudos influentes de degenerao [degeneration] e mente fraca feeUemindedness) dois termos caractersticos da obsesso do pas com a deteriorao gentica. Em 1875, Richard Dugdale publicou um relato sobre o cl dos Juke, do norte do estado de Nova York, que, segundo ele, inclua vrias geraes de legtimos canalhas assassinos, alcolatras, estupradores. Ao que parece, o prprio nome Juke significava vergonha na regio.

Outro estudo bastante influente foi publicado em 1912 por Henry Goddard, o psiclogo que nos legou a palavra moron [idiota], sobre o que chamou de A Famlia Kallikak, a histria de duas linhagens familiares originrias de um nico ancestral que, alm de gerar uma famlia legtima, tivera um filho fora do

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casamento enquanto servia no exrcito durante a revoluo americana). O lado ilegtimo,da linhagem Kallikak, segundo Goddard, era de arrepiar os cabelos, umaestropiada de degenerados, ao passo que o lado legtimo era composto demembros respeitveis e ntegros da comunidade. Para Goddard, esse experi-mento natural em hereditariedade era um caso exemplar de genes bons versusgenes ruins um ponto de vista refletido at no nome fictcio que escolheua a famlia: Kallikak um hbrido de duas palavras gregas, kalos (belo, deboa reputao) e kakos (ruim).Novos e rigorosos mtodos para testar o desempenho mental os primeiros testes de qi, levados da Europa para os Estados Unidos pelo mesmo Henry Goddard pareciam confirmar a impresso geral de que a espcie humana estava deslizando rapidamente ladeira gentica abaixo. Naqueles primeiros momentos dos testes de inteligncia, acreditava-se que inteligncia aguada e mente alerta inevitavelmente implicavam uma capacidade de absorver grandes quantidades de informaes. Desse modo, o tanto de informao acumulada por uma pessoa se tornava uma espcie de ndice do seu qi. Seguindo essa linha de raciocnio, os primeiros testes de Qi incluam muitas perguntas de conhecimentos gerais. Eis algumas de um teste-padro aplicado a recrutas do exrcito americano durante a Primeira Guerra:

Escolha uma das quatro:

Wyandotte um tipo de:

1) cavalo 2) ave 3) gado 4) granito

O ampere usado para medir:

1) fora do vento 2) eletricidade 3) fora da gua 4) chuva

O nmero de pernas de um zulu :1) duas 2) quatro 3) seis 4) oito

[Respostas: 2, 2, 1]

Cerca de metade dos recrutas do exrcito americano era reprovada no teste e, portanto, considerada de mente fraca. Esses resultados inflamaram o movi-

35mento eugnico nos Estados Unidos: para americanos preocupados, parecia realmente que o pool gnico [conjunto de genes] estava cada vez mais transbordante de genes de baixa inteligncia.

Os cientistas perceberam que uma poltica eugnica exigia certo entendimento da cincia gentica subjacente a caractersticas como mente fraca. Com a redescoberta do trabalho de Mendel, tudo indicava que isso seria possvel, e esse empreendimento comeou em Long Island, por iniciativa de meus predecessores na direo do laboratrio Cold Spring Harbor. Seu nome era Charles Davenport.

Em 1910, financiado por uma herdeira dos magnatas das ferrovias, Davenport fundou o Eugenics Record Office [Agncia de Registros Eugnicos] em Cold Spring Harbor, cuja misso era coletar informaes genticas bsicas genealogias sobre diversos traos, desde epilepsia at criminalidade. Tornouse o centro nervoso do movimento eugnico dos Estados Unidos. A misso do laboratrio Cold Spring Harbor continua basicamente a mesma: hoje nos esforamos para estar na vanguarda da pesquisa gentica e Davenport no tinha aspiraes menos altivas s que no seu tempo a vanguarda era a eugenia. Por outro lado, no resta dvida de que o programa de pesquisa lanado por ele tinha falhas graves desde o incio e as suas conseqncias, embora no pretendidas, acabaram sendo horrendas.

Idias eugncas permeavam tudo o que Davenport fazia. Por exemplo, ele

A equipe do Eugenics Record Office, fotografada ao lado de membros do laboratrio Cold Spring Harbor. Davenport, sentado bem ao centro, contratava funcionrios com base na sua crena de que as mulheres eram geneticamente adequadas tarefa de coletar informaes genealgicas.

Gentica fundamentada: rvore genealgica desenhada por Davenport mostrando como o albinismo herdado.

no poupou esforos em contratar mulheres como pesquisadoras de campo, pois acreditava que elas tinham melhor capacidade de observao, alm de serem mais jeitosas no trato social do que os homens. Mas, em conformidade com a meta central da eugenia, a saber, reduzir o nmero de genes ruins e aumentar o de genes bons, essas mulheres eram contratadas por no mximo trs anos. Sendo inteligentes e instrudas e, portanto, por definio, possuidoras de genes bons, no seria apropriado que o Eugenics Record Office as retivesse por muito tempo, impedindo-as assim de cumprir o seu destino legtimo de formar uma famlia e transmitir o seu tesouro gnico.

Davenport aplicou a anlise mendeliana s suas genealogias de caractersticas humanas. De incio, restringiu a ateno a alguns traos simples como o albinismo (recessivo) e a doena de Huntington (dominante) , cujos modos de transmisso ele identificou corretamente. Aps esses sucessos iniciais, mergulhou no estudo da gentica do comportamento humano. A foi um vale-tudo: bastava obter uma genealogia e algumas informaes sobre o histrico familiar

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37T~5=5

Gentica sem fundamento: rvore genealgica desenhada por Davenport mostrando como a habilidade de construir barcos herdada. Ele relegou os efeitos socioambientais: o filho de um construtor de barcos tende a seguir o oficio do pai porque foi criado nesse ambiente.

(ou seja, qual pessoa na linhagem manifestara a caracterstica em questo) para tirar concluses sobre a gentica subjacente. Quem folhear seu livro de 1911, Hereity in relation to eugenics, ver como era amplo e abrangente seu projeto. Ele apresenta as genealogias de famlias com dons musicais e literrios, e tambm o de uma famlia com habilidades mecnicas e para a inveno, particularmente no que se refere construo de barcos. (Davenport talvez estivesse rastreando a transmisso do gene da construo naval.) Ele chega a afirmar a possibilidade de associar tipos familiares distintos a diferentes sobrenomes. Por exemplo, pessoas com o sobrenome Twinings teriam as seguintes caractersticas: ombros largos, cabelos castanhos, nariz proeminente, temperamento nervoso, rritadias, no-vingativas, sobrancelhas grossas, veia humorstica, senso do ridculo, amantes da msica e de cavalos.

Esse exerccio todo no tem o menor valor. Hoje sabemos que todas as caractersticas em questo so profundamente afetadas por fatores ambientais. Davenport, como Galton, pressups, sem nenhum fundamento razovel, que a herana invariavelmente triunfa sobre o ambiente, que os traos inatos invariavelmente superam os adquiridos. Alm disso, enquanto os traos que Davenport estudara antes, albinismo e doena de Huntington, tinham uma base gentica simples eram causados por uma mutao especfica38numrica > nas caractersticas comportamentais as bases genticas so muito complexas. Tais caractersticas podem ser determinadas ao acaso existem um grande nmero de genes diferentes, cada um contribuindo comuma pequenina parcela para o resultado final. Uma situao dessas tornaimpossvel interpretar dados genealgicos como os compilados porDaven nport. E no s isso: as causas genticas de caractersticas mal definidas podem variar muito de indivduo para indivduo, demodo que qualquer tentativa de achar um princpio gentico geral subjacenteser incuo.A despeito do sucesso ou fracasso do programa cientfico de Davenport, o movimento eugnico j adquirira mpeto prprio. Sedes locais da Eugenics Society organizavam competies pblicas e ofereciam prmios a famlias aparentemente livres da mcula dos genes ruins. Exposies que antes s exibiam vacas, touros e ovelhas premiadas incluam agora concursos de Os Bebs Mais Primorosos e As Famlias Mais Aptas em seus programas. Para todos os efeitos, eram tentativas de promover a eugenia positiva, incentivando as pessoas certas a ter filhos. A eugenia tambm era presena obrigatria no incipiente movimento feminista. As paladinas do controle da natalidade Marie Stopes na Gr-Bretanha e, nos Estados Unidos, Margaret Sanger, fundadora da Planned Parenthood concebiam o controle da natalidade comoGrande famlia vencedorado concurso As Famlias MaisAptas na Exposio Estadualdo Texas {1925).

39uma forma de eugenia. Sanger resumiu sucintamente sua posio em 1919: Mais filhos dos aptos, menos dos inaptos esse o cerne do controle da natalidade.

Muito mais sinistro foi o desenvolvimento da eugenia negativa, que pretendia impedir que as pessoas erradas tivessem filhos. Em relao a isso, ocorreu um fato divisor de guas em 1889. Um jovem chamado Clawson procurou um mdico penitencirio de Indiana chamado Harry Sharp (um nome mais do que apropriado [sharp = afiado] em vista da sua predileo pelo bisturi). O problema de Clawson, tal como foi diagnosticado pelos mdicos da poca, era a masturbao compulsiva. Ele explicou que se dedicava a isso com empenho desde os doze anos. A masturbao era vista como parte de uma sndrome geral de degenerao e Sharp partilhava a opinio convencional do seu tempo (por mais bizarra que possa nos parecer hoje) de que as deficincias mentais de Clawson ele no conseguia progredir na escola eram causadas por sua compulso. A soluo? Sharp realizou uma vasectomia, um procedimento inventado pouco antes, e sub- ; seqentemente afirmaria ter curado Clawson. A conseqncia disso foi que Sharp adquiriu a sua prpria compulso: realizar vasectomias. Sharp divulgou o seu sucesso nesse tratamento (do qual, por sinal, s temos ] o relato do prprio Sharp para confirmar) como prova da eficcia desse tipo de interveno no tratamento de todos aqueles identificados como pertencentes ao tipo de Clawson, ou seja, todos os degenerados. A esterilizao tinha duas coisas a seu favor. Primeiro, era capaz de prevenir comportamentos degenerados como acontecera com Clawson, de acordo com Sharp. S isso j faria com que a 1 sociedade poupasse muitos recursos, pois todos os indivduos que precisariam 1 ser encarcerados, em prises ou em hospcios, podiam agora ser considerados 1 seguros e soltos. Segundo, impediria que tipos como Clawson transmitissem 1 seus genes inferiores, ou degenerados, s geraes subseqentes. Sharp acreditava que a esterilizao oferecia uma soluo perfeita para a crise eugnica. 1

Sharp era um lobista eficaz e, em 1907, o estado de Indiana promulgou a primeira lei de esterilizao compulsria, autorizando o procedimento em cri- minosos, idiotas, estupradores e imbecis comprovados. Foi a primeira de muitas: com o tempo, trinta estados americanos chegaram a aprovar legislao similar. Em 1941, cerca de 60 mil pessoas haviam sido esterilizadas nos Estados Unidos, metade delas na Califrnia. Essas leis, que, em termos prticos, permi- I tiram que o governo estadual decidisse quem podia e quem no podia ter filhos, i40

testadas nos tribunais. Mas, em 1927, a Suprema Corte ratificou a lei ri da Virgnia, no caso clssico de Carrie Buck. Oliver Wendell Holmes foi o redator da deciso:

Ser melhor para o mundo inteiro que, em vez de esperar para executar uma prole d generada pelos crimes que cometeu ou deix-la morrer mngua por sua imbeilidade a sociedade possa impedir os manifestamente inaptos de perpetuarem a prpria espcie [...] Trs geraes de imbecis o suficiente.A esterilizao tambm foi adotada com convico fora dos Estados Unidos e no apenas na Alemanha nazista: a Sua e os pases escandinavos promulgaram leis semelhantes.

Racismo no algo implcito em eugenia genes bons, aqueles que os eugenistas buscam promover, podem, em princpio, pertencer a pessoas de qualquer raa. Porm, a comear por Galton, cujo relato de sua expedio africana confirmara preconceitos sobre as raas inferiores, os praticantes mais proeminentes da eugenia tendiam a ser racistas que usavam a teoria eugnica para justificar cientificamente seus pontos de vista racistas. Henry Goddard, que se tornara clebre com sua famlia Kallikak, aplicou testes de qi aos imigrantes que desembarcavam na ilha Ellis, na baa de Nova York, em 1913, e constatou que cerca de 80% dos futuros americanos poderiam ser registrados como tendo mente fraca. Nos testes de qi que realizou para o exrcito dos Estados Unidos durante a Primeira Guerra, chegou mesma concluso: 45% dos recrutas de origem estrangeira tinham uma idade mental de menos de oito anos (apenas21% dos nascidos nos Estados Unidos se enquadravam nessa categoria). O fato de os testes serem distorcidos eram, afinal, aplicados em ingls no parecia ser relevante: os racistas tinham a munio de que precisavam e a eugenia seria arrolada a servio de sua causa.

Embora o termo supremacista branco ainda estivesse para ser cunhado, os Estados Unidos j tinham um bom nmero deles no incio do sculo xx. Os wasps [White Anglo-Saxon Protestants], tendo Theodore Roosevelt frente, temiam que a imigrao estivesse corrompendo o paraso branco, protestante e anglo-saxo ao qual, no seu modo de ver, os Estados Unidos estavam predesti-

41nados. Em 1916, Madison Grant, um nova-iorquino abastado, amigo tanto de Davenport como de Roosevelt, publicou The passing of the great race, em que afirmava que os povos nrdicos eram superiores a todos os outros, incluindo os europeus. A fim de preservar a bela herana gentica nrdica dos Estados Unidos, Grant lanou uma campanha defendendo restries a todos os imigrantes nonrdicos e exaltando polticas eugnicas racistas:

Sob as condies existentes, o mtodo mais prtico e auspicioso de aprimorar a raa atravs da eliminao dos elementos menos desejveis da nao, privandoos do poder de contribuir para geraes futuras. Como os criadores de animais bem sabem, a cor de um rebanho pode ser modificada pela destruio contnua das tonalidades inteis. Isso, claro, tambm verdade em relao a outros caracteres. As ovelhas negras, por exemplo, foram praticamente obliteradas eliminando-se, gerao aps gerao, todos os animais que apresentam essa cor.

Apesar das aparncias, o livro de Grant no foi uma obra menor de um maluco marginalizado; pelo contrrio, foi um influente best-seller. Traduzido mais tarde para o alemo, agradou bastante aos nazistas o que no chega a surpreender. Era um Grant jubiloso que afirmava ter recebido uma carta pessoal de Adolf Hitler dizendo-lhe que o livro era a sua Bblia.

Embora menos proeminente que Grant, o mais influente defensor do racismo cientfico na poca foi o brao direito de Davenport, Harry Laughlin. Filho de um pregador de Iowa, suas especialidades eram pedigrees de cavalos de corrida e criao de galinhas. Ele supervisionava o trabalho do Eugenics Record Office, mas mostrou-se mais eficaz como lobista. Em nome da eugenia, promoveu com empenho fantico medidas de esterilizao forada e restries entrada de estrangeiros geneticamente ambguos (ou seja, de europeus no-nrdicos). Particularmente importante em termos histricos foi o seu papel como testemunha perita em audincias do Congresso sobre imigrao. Laughlin deu rdeas largas aos seus preconceitos, disfarou-os como cincia e, se os dados se mostravam problemticos, ele os adulterava. Por exemplo, quando descobriu a contragosto que as crianas judias imigrantes se saam melhor nas escolas pblicas do que as crianas nativas, Laughlin alterou as categorias com que vinha trabalhando e passou a incluir indiscriminadamente os judeus nas naes de onde provinham, diluindo assim o seu desempenho superior. Em 1924, a

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Racismo cientfico: inadequao social nos Estados Unidos desmembrada por grupos nacionais (19 . Para Harry LaughUn, a expresso inadequao social um conceito-nibus que abrange uma ampa gama de defeitos, desde mente fraca at tuberculose. Com base naproporo de cada grupo na popu ao os eua, Laughlin calculou uma cota de pessoas internadas para cada um. O diagrama indica, em termos percentuais, o nmero de indivduos internados de cada grupo dividido pela cota desse grupo. Valores superiores a 100% indicam que o grupo tem mais indivduos internados do que a mdia.

aprovao da lei de imigrao Johnson-Reed, que restringiu severamente a imigrao do sul da Europa e de outras regies do mundo, foi saudada como um triunfo por pessoas como Madison Grant. Foi o momento mais glorioso Harry Laughlin. Alguns anos antes, como vice-presidente, Calvin Coolidge

43gara os americanos indgenas e desprezara a histria de imigrao dos Estados Unidos declarando que a Amrica tem de permanecer americana. Agora, como presidente, ele validou seu desejo na forma de lei.

Assim como Grant, Laughlin tinha seus fs entre os nazistas, que moldaram algumas de suas leis na legislao por ele elaborada. Em 1936, aceitou com grande entusiasmo um diploma honorrio da Universidade de Heidelberg, que decidira homenage-lo como o representante visionrio da poltica racial nos Estados Unidos. Com o passar do tempo, porm, uma forma de epilepsia tardia acabou transformando seus ltimos anos em algo particularmente irnico e pattico: durante toda a sua vida, ele defendera a esterilizao de epilpticos, afirmando que eram geneticamente degenerados.

Mein kampf, o livro de Hitler, saturado de cantilenas racistas pseudocientficas derivadas de antigas pretenses alems de superioridade racial e de alguns dos piores aspectos do movimento eugnico americano. Hitler escreveu que o Estado deve declarar imprprios para reproduo todos aqueles que, de alguma forma, estejam visivelmente doentes ou que tenham herdado uma doena e, portanto, possam transmiti-la e manifest-la. E tambm: Os que forem fsica e mentalmente doentes e indignos no devem perpetuar seu sofrimento no corpo dos filhos. Pouco depois de assumirem o poder em 1933, os nazistas aprovaram uma abrangente lei de esterilizao a lei para a preveno de prognie com defeitos hereditrios, explicitamente baseada no modelo americano. (Laughlin, cheio de orgulho, publicou uma traduo da lei.) Em trs anos, 225 mil pessoas foram esterilizadas.

A eugenia positiva, o incentivo para que as pessoas certas tenham filhos, tambm prosperou na Alemanha nazista, onde certo significava ariano. Heinrich Himmler, chefe da ss (o corpo de elite nazista), concebia sua misso em termos eugncos: os oficiais da ss deveriam assegurar o futuro gentico da Alemanha tendo o maior nmero possvel de filhos. Em 1936, ele instituiu lares maternais especiais para as esposas dos ss a fim de assegurar que recebessem os melhores cuidados durante a gravidez. Os anncios feitos no comcio de Nuremberg em 1935 incluam uma lei para proteger o sangue alemo e a honra alem, que proibia o casamento entre alemes e judeus, e at mesmo relaes sexuais extraconjugais entre judeus e cidados de sangue alemo ou

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rentado. Os nazistas eram infalivelmente meticulosos em seu esforo para evitar qualquer estratagema reprodutivo.

Tragicamente, tambm no havia brecha alguma na lei de imigrao Johnon-Reed dos Estados Unidos, qual Harry Laughlin tanto se dedicara. Para muitos judeus que fugiam da perseguio nazista, os Estados Unidos eram a primeira opo lgica de destino, mas, devido poltica imigratria restritiva e

racista do pas, muitos deles foram mandados embora. A lei de esterilizao

de Laughlin no s proporcionara a Hitler um modelo para seu programa hediondo como tambm sua influncia sobre a legislao imigratria significou que, para todos os efeitos, os Estados Unidos abandonariam os judeus alemes sua prpria sorte nas mos dos nazistas.

Em 1939, j em plena guerra, os nazistas introduziram a eutansia. Esterilizar mostrou-se complicado demais. E por que desperdiar alimentos? Os internos dos hospcios foram declarados comensais inteis. Os manicmios receberam questionrios com instrues para que comisses de especialistas indicassem com um x os pacientes cujas vidas, no seu parecer, no valiam a pena ser vividas. Esses questionrios foram devolvidos com 75 mil xx e a tecnologia do extermnio em massa a cmara de gs foi ento desenvolvida. Subseqentemente, os nazistas expandiram a definio de vida que no vale a pena ser vivida para incluir grupos tnicos inteiros entre eles os ciganos e, em particular, os judeus. O que viria a ser conhecido como Holocausto foi o pice da eugenia nazista.

A eugenia acabou se revelando uma tragdia para a humanidade. Tambm mostrou ser um desastre para a incipiente cincia da gentica, que nao conseguiu escapar da contaminao. Na realidade, porm, a despeito da proeminncia de eugenistas como Davenport, muitos cientistas tinham criticado o movimento e se dissociado dele. Alfred Russel Wallace, co-descobridor com Darwin da seleo natural, condenou a eugenia em 1912 como uma interferncia intrometida de um sacerdcio cientfico arrogante. Thomas Hunt Morgan, famoso por suas pesquisas com moscas-das-frutas, demitiu-se por motivos cientficos da diretoria cientfica do Eugenics Record Office. Raymond Pearl, da Universidade Johns Hopkins, escreveu em 1928 que eugenistas ortodoxos esto indo contra os fatos mais bem-estabelecidos da cincia gentica.

45A eugenia perdera a credibilidade na comunidade cientfica muito antes de os nazistas se apropriarem dela para seus fins repulsivos. A cincia que a escorava era fictcia e os programas sociais desenvolvidos a partir dela foram absolutamente repreensveis. No obstante, em meados do sculo xx, a gentica (a gentica humana, em particular), uma cincia perfeitamente legtima, deparavase com um grave problema de relaes pblicas. Em 1948, quando cheguei a Cold Spring Harbor, antiga sede do j defunto Eugenics Record Office, ningum ousava sequer mencionar a famigerada palavra que comeava com E e ningum se dispunha a falar sobre o passado da nossa cincia, embora exemplares antigos da Revista de Higiene Racial da Alemanha ainda pudessem ser encontrados nas estantes da biblioteca.

Percebendo que as metas da eugenia no eram cientificamente exeqveis, os geneticistas tinham abandonado havia muito tempo a grandiosa busca dos padres hereditrios das caractersticas comportamentais humanas fosse a mente fraca de Davenport ou o gnio de Galton e agora se concentravam no gene e na sua atuao nas clulas. Nas dcadas de 1930 e 40, com o surgimento de tecnologias novas e mais eficazes para estudar molculas biolgicas em maior detalhe, chegara enfim a hora de investir contra o maior mistrio biolgico de todos: qual a natureza qumica do gene?

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2. A dupla-hlice: A vida isto

Fui cativado pelos genes no meu terceiro ano na Universidade de Chicago. At ento, eu pretendera ser um naturalista e ansiava por uma carreira bem distante da agitao urbana do South Side de Chicago, onde crescera. A mudana em minhas intenes no foi inspirada por nenhum professor inesquecvel, mas por um pequeno livro publicado em 1944, O que a vida?, escrito pelo pai da mecnica ondulatria, o austraco Erwin Schrdinger, resultado de diversas palestras que ele proferira no ano anterior no Instituto de Estudos Avanados de Dublin. O fato de esse grande fsico ter se disposto a escrever sobre biologia caiu nas minhas graas. Naquela poca, como a maioria das pessoas, eu achava que qumica e fsica eram as cincias reais e que os fsicos tericos eram os maiorais da cincia.

Schrdinger argumentava que a vida poderia ser concebida em termos da armazenagem e transmisso de informaes biolgicas. Os cromossomos seriam apenas portadores de informaes. Como cada clula teria de conter umaOfisico Erwin Schrdinger, cujo livro O que a vida? me despertou para os genes.

quantidade enorme de informaes, estas deveriam estar comprimidas em algo que Schrdinger chamou de cdigo de instrues hereditrias incorporado ao tecido molecular dos cromossomos. Portanto, se quisssemos entender a vida, teramos de identificar essas molculas e decifrar o seu cdigo. Ele chegou at a especular que compreender o que a vida e para isso seria preciso descobrir o gene poderia nos levar para alm das leis da fsica tal como a compreendamos. O livro de Schrdinger foi extraordinariamente influente. Muitos daqueles que se tornariam protagonistas importantes do Primeiro Ato da grande pea dramtica da biologia molecular (inclusive Francis Crick ele prprio um exfsico) tinham, como eu, lido O que a vida? e ficado impressionados.

Schrdinger me entusiasmou porque eu tambm estava seduzido pela essncia da vida. Uma pequena minoria de cientistas ainda acreditava que a vida depende de alguma fora vital que emana de um deus todo-poderoso. Porm, como a maioria de meus professores, eu denegava em princpio a idia de vitalismo. Se essa tal fora vital estivesse ditando as regras no jogo da natureza, havia pouca esperana de que a vida chegasse a ser um dia compreendida pelos mtodos da cincia. Por outro lado, a noo de que a vida se perpetuava graas a um livro de instrues escrito em cdigo secreto me agradava. Que tipo de cdigo molecular poderia ser to elaborado a ponto de transmitir a exuberante maravilha do mundo vivo? E que tipo de mecanismo molecular seria capaz de assegurar que o cdigo fosse copiado com absoluta exatido cada vez que um cromossomo se duplicava?

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Na poca em que Schrdinger proferiu as palestras em Dublin, a maioria bilogos acreditava que acabaramos identificando as protenas como as principais portadoras de instrues genticas. Protenas so cadeias moleculares formadas de vinte componentes bsicos diferentes, os aminocidos. Como as mutaes na ordem dos aminocidos ao longo da cadeia so quase infinitas, as protenas poderiam, em princpio, facilmente codificar as informaes que sustentam a extraordinria diversidade da vida. O dna no era considerado um candidato srio a portador das instrues em cdigo, embora estivesse localizado exclusivamente nos cromossomos e j fosse conhecido h cerca de 75 anos. Em 1869, Friedrich Miescher, um bioqumico suo que trabalhava na Alemanha, isolara, a partir de bandagens impregnadas de pus fornecidas por um hospital local, uma substncia que chamara de nuclena. Como o pus primordialmente formado por glbulos brancos que, ao contrrio dos glbulos vermelhos, possuem um ncleo e, portanto, cromossomos contendo dna , Miescher se deparara com uma boa fonte de dna. Mais tarde, quando descobriu que a nuclena s era encontrada nos cromossomos, compreendeu que sua descoberta no fora pouca coisa. Em 1893, escreveu: A hereditariedade garante, de gerao a gerao, uma continuidade de forma num nvel ainda mais profundo que o da molcula qumica. Faz parte dos grupos atmicos estruturais. Nesse sentido, sou partidrio da teoria da hereditariedade qumica.

No obstante, por vrias dcadas subseqentes, a qumica continuaria sem estar altura da tarefa de analisar a enormidade e a complexidade da molcula de dna. Somente na dcada de 1930 foi possvel mostrar que o dna era uma molcula comprida contendo quatro bases qumicas distintas: adenina (a), guanina (g), timina (t) e citosina (c). Na poca das palestras de Schrdinger, contudo, ainda no estava claro exatamente como as subunidades da molcula (chamadas desoxinucleotdeos) se ligavam quimicamente nem se sabia se as seqncias das quatro bases diferentes das molculas de dna poderiam variar. Se o dna era de fato o cdigo de instrues mencionado por Schrdinger, ento a molcula teria de ser capaz de existir numa variedade infinita de formas diferentes. Mas na poca ainda se acreditava que uma s seqncia simples como agtc poderia se repetir um sem-nmero de vezes ao longo de toda a extenso das cadeias de dna.

O dna s ganhou notoriedade gentica em 1944, quando o laboratrio de Oswald Avery, no Instituto Rockefeller de Nova York, anunciou ser possvel

49Vistos ao microscpio, glbulos vermelhos tratados com um produto qumico que tinge o DNA. Para maximizar o transporte de oxignio, os glbulos vermelhos carecem de ncleo e, portanto, de DNA. Os glbulos brancos, por outro lado, que patrulham a corrente sangnea cata de intrusos, possuem um ncleo que contm cromossomos.

modificar o envoltrio superficial das bactrias de pneumonia. Esse no era o resultado que ele e seus colegas mais jovens, Colin MacLeod e Maclyn McCarty, esperavam.

Havia mais de uma dcada seu grupo vinha estudando uma outra observao bastante inesperada feita em 1928 por Fred Griffith, um cientista do Ministrio da Sade britnico. Griffith se interessava por pneumonia e estudara a fundo o agente bacteriano da doena, o Pneumococcus. Sabia-se que havia duas cepas, designadas s [smooth = lisa] e r [rough = rugosa], de acordo com a aparncia que tinham sob o microscpio. Essas cepas diferiam no s visualmente, mas tambm quanto virulncia. Se injetarmos a bactria s num rato, este morre ao cabo de poucos dias; se injetarmos a bactria r, o animal permanece saudvel. Isso porque as clulas da bactria s possuem um envoltrio que impede o sistema imunolgico do rato de reconhecer o invasor. As clulas r no possuem esse revestimento e, portanto, so imediatamente atacadas pelas defesas imunolgicas do roedor.

Graas sua atuao em sade pblica, Griffith estava ciente de que mais de uma cepa j havia sido isolada em um mesmo paciente e ficou curioso para saber como as diferentes cepas interagiriam em seus desafortunados ratos. Ao testar uma certa combinao, fez uma descoberta surpreendente: quando injetou bactrias s mortas por calor (inofensivas) junto com bactrias r normais (tambm inofensivas), o rato morreu. Como duas formas inofensivas da bactria podiam conspirar para se tornar letais? A pista surgiu quando ele isolou a bactria Pneumococcus retirada dos ratos mortos e encontrou bactrias s vivas. Aparentemente, a bactria r viva mas incua adquirira algo da variante s morta; o que quer que fosse, permitiu que, na presena de bactrias s mortas por calor, a bactria r se transformasse numa cepa viva e mortal de bactria s. Griffith confirmou que essa mudana era real retirando do rato morto

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as s e cultivando-as ao longo de vrias geraes: as bactrias reproduziram apenas fentipos do tipo s, como qualquer cepa s normal faria. Ou uma mudana gnica havia efetivamente ocorrido nas bactrias r injetadas no rato.Embora esse fenmeno transformacional parecesse contrariar a razo e oentendimento, no incio as observaes de Griffith causaram pouca comoo no mundo cientfico. Isso se deveu, em parte, ao fato de Griffith ser uma pessoa ntensamente reservada e to avesso a multides que raras vezes comparecia a encontros de cientistas. Em certa ocasio, praticamente arrastado fora para proferir uma palestra, foi enfiado num txi e escoltado ao salo por colegas, onde fez seu discurso numa voz monocrdia, enfatizando um aspecto obscuro de seu trabalho em microbiologia sem meno alguma transformao das bactrias. Felizmente, porm, nem todos deixaram passar despercebida sua fantstica descoberta.

Oswald Avery tambm se interessara pelo envoltrio sacaride do pneumococo e resolveu reproduzir o experimento de Griffith a fim de isolar e caracterizar o que quer que tivesse transformado as clulas r em clulas s. Em1944, Avery, MacLeod e McCarty publicaram seus resultados: essa sofisticada srie de experimentos provava, sem sombra de dvida, que o dna era o princpio transformador. Cultivar bactrias num tubo de ensaio em vez de em ratos facilitou, e muito, a identificao qumica do fator transformador presente nas clulas s mortas por exposio ao calor. Um a um, Avery e seu grupo foram destruindo metodicamente os componentes bioqumicos de clulas s tratadas com calor, tentando verificar se seria possvel impedir a transformao. Primeiro, degradaram o envoltrio sacaride das bactrias s; a transformao continuou ocorrendo logo, esse revestimento no era o princpio transformador. Em seguida, usaram uma mistura de duas enzimas destruidoras de protenas tripsina e quimiotripsina para degradar quase todas as protenas nas clulas s. Para sua surpresa, a transformao continuou inalterada. Depois tentaram uma enzima (RNase) que decompe o rna (cido ribonuclico, uma segunda classe de cidos nuclicos semelhantes ao dna, possivelmente envolvidos na sntese de protenas). Mais uma vez, a transformao continuou ocorrendo. Por fim, chegaram ao dna: expuseram extratos da bactria s enzima destruidora de dna, DNase. Enfim, acertaram em cheio: a atividade indutora de s cessou por completo. O fator da transformao era o dna.

51Em parte por causa das suas implicaes explosivas, a monografia apresentada em 1944 por Avery, MacLeod e McCarty foi recebida com sentimentos ambguos. Muitos geneticistas aceitaram as concluses. Afinal, se o dna encontrado em todo cromossomo, por que no haveria de ser o material gentico por excelncia? Por sua vez, contudo, a maioria dos bioqumicos expressou dvida quanto ao dna ser uma molcula suficientemente complexa para agir como repositrio de uma quantidade to vasta de informaes biolgicas. Continuaram acreditando que as protenas, o outro componente dos cromossomos, acabariam por se revelar a substncia da hereditar