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Autorização concedida ao Repositório da Universidade de Brasília (RIUnB) pelos autores em 24 de janeiro de 2014 e 17 de fevereiro de 2014, com as seguintes condições: disponível sob Licença Creative Commons 3.0, que permite copiar, distribuir e transmitir o trabalho, desde que seja citado o autor e licenciante. Não permite o uso para fins comerciais nem a adaptação desta. Authorization granted to the Repository of the University of Brasília (RIUnB) by the authors, at January, 24, 2014, and February, 17, 2014, with the following conditions: available under Creative Commons License 3.0, that allows you to copy, distribute and transmit the work, provided the author and the licensor is cited. Does not allow the use for commercial purposes nor adaptation. CABRERA, Julio; DI SANTIS, Thiago Lenharo. Porque te amo não nascerás! = Nascituri te salutant. Brasilia: LGE Editora, 2009. 245 p.

LIVRO_PorqueTeAmonao nasceras

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  • Autorizao concedida ao Repositrio da Universidade de Braslia (RIUnB) pelos autores em 24 de janeiro de 2014 e 17 de fevereiro de 2014, com as seguintes condies: disponvel sob Licena Creative Commons 3.0, que permite copiar, distribuir e transmitir o trabalho, desde que seja citado o autor e licenciante. No permite o uso para fins comerciais nem a adaptao desta. Authorization granted to the Repository of the University of Braslia (RIUnB) by the authors, at January, 24, 2014, and February, 17, 2014, with the following conditions: available under Creative Commons License 3.0, that allows you to copy, distribute and transmit the work, provided the author and the licensor is cited. Does not allow the use for commercial purposes nor adaptation. CABRERA, Julio; DI SANTIS, Thiago Lenharo. Porque te amo no nascers! = Nascituri te salutant. Brasilia: LGE Editora, 2009. 245 p.

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    E s t e livro pode ser visto de m ltiplas formas, inclusive com o uma proposta ou um desafio para aqueles que estiverem dispostos a amar seus futuros filhos acima de tudo, am-los antecipadam ente com toda a generosidade e proteo possveis, com um amor to grande que seja capaz de colocar o inocente no lugar privilegiado e seguro do no ser. Amor que se afasta do egosm o e da manipulao e encontra, na considerao e afeio pelo outro, toda a compaixo e o respeito que pode merecer um ser hum ano. Um aMoR MoRal.

    Sabe-se que na Roma antiga os gladiadores cumprimentavam o Imperador com o dizer M orituri te salu tan t, os que vo morrer (para teu divertimento) te sadam. Assim, do m esm o modo, N ascitu ri te sa lu tan t diz: os que vo nascer (para teu divertimento) te sadam . E, melhor ainda, os que no vo nascer te agradecem.

    Para conferir comentrios, crticas e observaes sobre o livro e seus autores, acesse o site:

    h ttp ://w w w .porqueteam onaonasceras .com .br/.

  • Porque te amo, NO NASCERS!

    N A S C I T U R I T E S A L U T A N T

  • Julio Cabrera Thiago Lenharo di Santis

    Porque te amo, NO NASCERS!

    N A S C I T U R I T E S A L U T A N T

    L G EE D I T O R A

    B rasilia , 2009

  • Copyright Julio Cabrera/Thiago Lenharo di Sands 2009

    LGE Editora Ltda.SIA Trecho 03 Lote 1.760

    Tel.: (61) 3362-0008 - Fax: (61) 3233-3771 [email protected]

    www.lgeeditora.com.br

    E d ito r Antonio Carlos Navarro

    A u to resJulio Cabrera e Thiago Lenharo di Santis

    P ro jeto g r fico Marcus P o lo R o ch a Duarte

    E d it o ra o e le t r n ica Samuel Tabosa de Castro

    F o to d a capa Richard Sweet

    Im pre ss o e a ca ba m en to LGE Editora Ltda.

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    Cabrera, Julio. Thiago Lenharo di Santis.Porque te amo, NO nascers! / Julio Cabrera e Thiago Lenharo di Santis

    Braslia : LGE Editora, 2009.247 p. .

    ISBN 978-85-7238-408-7

    1. Literatura. 2. Filosofia. I. Ttulo.

    CDU 82.96

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicao pode ser fotocopiada, gravada, reproduzida ou armazenada num sistema de recuperao ou transmitida sob qualquer forma ou por qualquer meio eletrnico ou mecnico sem autorizao por escrito do autor.

    Impresso no Brasil

  • Os autores dedicam esta obra a seus amados filhos.

    Que seu no nascimento seja a prova mais sublime desse amor.

  • Sumrio

    17

    81

    151

    Captulo 1Acerca do nascer e do procriar: se "tira r a vida" coloca problemas morais, por que "dar a vida" no os colocaria?(Julio Cabrera, sob o pseudnimo de Julio Cabrera).

    Captulo 2Consideraes sobre a deciso de gerar um novo ser(Do ponto de vista dele)

    (Thiago Lenharo di Santis, sob o pseudnimo de Thiago di Diabolis).

    Captulo 3Cartas da absteno (Nascer ou no nascer, eis a questo)(A breve e abrupta correspondncia entre o jovem filsofo negativo Thiago di Diabolis e o austero professor Julius von Kabra, possvel descendente de Julio Cabrera).

  • PALAVRAS PRVIAS

    Este livro, acerca do problema moral da procriao e do nascimento (tema impopular e quase no tratado ao longo da histria da filosofia), nasceu da confluncia natural e no planejada de duas reflexes, a de um jovem que est entrando na filosofia e a de um velho pensador que est saindo dela. Essa confluncia no significa concordncia ou acordo em cada tema ou resoluo, mas afinidade intelectual e afetiva acerca do assunto, e escndalo moral partilhado diante da frieza e distanciamento com que milhares de humanos so diariamente despejados no planeta Terra apenas para a nossa distrao ou como produto involuntrio dela.

    A obra adota propositalmente um tom intermedirio entre a argumentao filosfica e a narrativa literria. Os dois primeiros captulos so expositivos e apresentam os textos bsicos sobre o problema; o terceiro um recurso literrio (um inesperado intercmbio de cartas) capaz de propiciar uma discusso sobre o tema de predileo dos autores. Os estilos do livro so, pois, variados, desde o exerccio do aforismo (captulo 1), do ensaio (captulo 2) e do estilo epistolar (captulo 3).

    As ilustraes contribuem para que o livro seja visto, de certa forma, como um produto de filosofia pop , ou de popular

    J u l i o C a b r e r a e T h i a g o L e n h a r o d i S a n t i s

  • philosophy (na expresso de William James), no sentido de ser acessvel e interessante no apenas para filsofos profissionais amplos e tolerantes (supomos otimistamente que eles existam), mas tambm para qualquer pessoa reflexiva e preocupada com o que acontece ao redor. Em termos brasileiros, poderia ser visto, de maneira aproximada, como a tentativa de escrever um texto filosfico Pau Brasil: No caso dos livros de estrias de Alice... no se trata de ilustraes decorativas, mas de figuras intrinsecamente vinculadas ao processo informativo do texto, fornecendo assim uma co-informao no nvel visual, solidria mensagem verbal desse mesmo texto. O livro de poemas tal como o concebe Oswald... integra-se nessa tradio (Haroldo de Campos, Uma potica da radicalidade. Em Andrade Oswald De, Pau Brasil. Editora Globo, So Paulo, 2003, 2a edio, p. 48/9).

    No apenas nesse seu aspecto concreto ou fsico o presente livro seria oswaldiano. Tambm na sua opo pelo aforismo, o texto curto e brusco, os freqentes cortes, os pargrafos contundentes, os desenhos, fotos e notas interrompendo constantemente o fluir tradicional da leitura. A nossa experincia, entretanto, no pretende ser potica, mas filosfica, no sentido de uma vontade explcita de reflexo, de dizer como o mundo ou parece ser (O mundo como nascimento e procriao). Mas, nesse sentido, tambm a poesia de Oswald de Andrade filosfica.

    Outra referncia filosfico-literria de Nascituri Kierkegaard (especialmente o do Post-Scriptum Final No-Cientfico s Migalhas Filosficas), escritor que utilizou exaustivamente o infernal recurso da remisso perptua e multi-conducente para tentar veicular sua singular filosofia da singularidade, que seria rejeitada por qualquer tentativa de exposio tradicional. O mesmo acontece com o nosso assunto.

    P o r q u e t e a m o , N O n a s c e r s !

  • Apesar do prefcio que o leitor encontrar a seguir, o livro no est ainda em segunda edio. Trata-se apenas, como se ver, de um recurso literrio. Mas esperamos que, em breve, essa fico se torne realidade. Isso, no plano formal. No plano das idias, talvez os autores almejem exatamente o contrrio: que o que hoje realidade (a exploso procriadora irresponsvel) se torne, em sculos vindouros, apenas uma inverossmil fico.

    Julio Cabrera e Thiago Lenharo di Santis.

    J u l i o C a b r e r a e T h i a g o L e n h a r o d i S a n t i s

  • PREFCIO DA S E G U N D A EDIO

    Os seguintes papis esparsos (escritos ainda em plena poca dos computadores eletrnicos) foram encontrados na casa do filsofo Julio Cabrera aps seu suicdio (acontecido em incios do sculo passado), junto com seus numerosos inditos. Esses textos contm seus escritos sobre o tema proibido do nascimento e da procriao. J em seu Dirio de um filsofo no Brasil, Cabrera tinha propositalmente escamoteado esses textos, na seo onde ele expunha as linhas mestras de seu pensamento tico-negativo, por consider-los inassimilveis para mentes ordinrias e preconceituosas.

    Seus testamenteiros acharam o nome de meu av, Santiago di Diabolis (tambm suicidado, em 2042), escrito na capa de uma das pastas de inditos de Cabrera e de imediato entraram em contato com ele. Era o desejo do filsofo morto que meu av se ocupasse com a edio destes papis malditos. Ao que parece Santiago tinha sido aluno presencial de alguns dos

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  • cursos de tica de Cabrera no incio do sculo XXI, e at parece que juntos planejavam escrever um livro. Por algum motivo difcil de descobrir, passado tanto tempo, nem meu av nem meu pai honraram o pedido de Cabrera. Agora eu me proponho faz-lo, aps geraes de indiferena e adiamentos.

    O texto principal de Cabrera e o mais organizado de todos (eu dispensei muitos outros) se chama. ACERCA DONASCERE DO PROCRIAR: SE TIRARA VIDA COLOCA PROBLEMAS MORAIS, POR QUE DAR A VIDA NO OS COLOCARIA?. Ele apresenta basicamente a linha que seguira em um curso de tica negativa oferecido para estudantes da desaparecida Universidade de Goinia, nos longnquos anos de 2006, no incio do sculo passado. Este texto, inspirado obsessivamente pela intuio primordial acerca da desvalia da vida humana (chama primordial de todo o pensamento tico-metafsico de Cabrera), apresenta o que ele considerava os trs problemas morais da procriao.

    Estes textos me tocaram de imediato. Desde que tenho memria, sou inteiramente simptico idia de no nascer, e a considero como a idia mais revolucionria de toda a filosofia prtica. Jamais poderemos fazer nada de positivo que se possa colocar altura da radicalidade do ato da recusa.

    Eu, pessoalmente, no gosto de ter nascido, apesar de minha vida ser muito prazerosa tanto em termos afetivos e erticos quanto intelectuais e econmicos, modestos, porm suficientes. Na verdade, bem antes da leitura dos textos de Cabrera, eu tinha escrito as minhas prprias reflexes sobre o assunto, em um texto chamado CONSIDERAES SOBRE A DECISO DE GERAR UM NOVO SER A coincidncia com alguns dos pontos levantados por Cabrera surpreendente, como se, de alguma forma, tivssemos nos influenciado mutuamente atravs dos tempos, pela mediao (ou pela omisso) do meu atrapalhado av.

    P o r q u e t e a m o , NO n a s c e r s i

  • A partir dessa crua constatao, decidi publicar juntos os dois textos, o dele e o meu, na medida das minhas possibilidades econmicas (pois temo muito que estas publicaes tenham de ser auto-financiadas, em decorrncia de seu carter irritante e absurdo para a sensibilidade filosfica comum).

    A primeira edio do livro foi lanada alguns meses atrs. Neste ponto aconteceu algo muito estranho. Logo em seguida publicao do material, comecei a receber cartas de um enigmtico correspondente, ao mesmo tempo fascinado e revoltado com as nossas idias, e que se insinuara, escandalosamente, como uma espcie de descendente do autor do Projeto de Etica Negativa. As cartas no paravam de chegar na minha caixa de correios, contendo ricos comentrios acerca do meu texto. Isso me obrigou, de maneira quase compulsiva (pelo carter abertamente polmico da correspondncia), a responder s mensagens com novas reflexes sobre nascimento e procriao, e temas correlatos. O misterioso autor das missivas nunca se apresentou, e com o andar do tempo, comecei a duvidar de sua mera existncia, como se ele fosse uma projeo do meu prprio ego atormentado. Ele era casado e com dois filhos e tive oportunidade de conhecer a sua mulher, muito fugazmente.

    Um bom dia, as cartas pararam de chegar e o nosso dilogo se interrompeu sem qualquer explicao, da mesma maneira abrupta como tinha comeado. Apesar das muitas manifestaes a respeito, o professor Julius von Kabra (assim ele assinava) nunca enviou seu endereo nem fez qualquer movimento no sentido de facilitar nosso encontro. De qualquer forma, nas edies sucessivas, decidi publicar tudo junto, o texto clssico de Cabrera, o meu texto, as cartas do prof. von Kabra e as minhas rplicas. O leitor notar algumas lacunas nesse epistolrio porque vrias cartas minhas e dele se extraviaram ou foram por mim destrudas em acessos

    J u l i o C a b r e r a e T h i a g o L e n h a r o d i S a n t i s

  • de ira. Esqueci de dizer que o professor von Kabra acrescentou tambm algumas notas de rodap ao texto de Cabrera, que conservei na ntegra, apesar de algumas serem pedantes e agressivas. Quanto aos desenhos, eles foram feitos (segundo declarao do prprio professor Kabra) pela sua filha Erika.

    Espero de corao que a leitura deste curioso material possa ser de proveito para todos, mas em especial que sirva para convencer as pessoas boas e esclarecidas deste mundo que o melhor que podem fazer pelos seus filhos possveis mant-los indefinidamente como possveis. Que a mera promessa de filhos sirva para suportar o sofrimento de ser, sem que precisemos, para isso, gerar mais sofrimento e mais ser. Que o fato de meu av e meu pai no terem se abstido de procriar (e de eu ter me abstido, at hoje, de me matar) sirva pelo menos para que este mal-sucedido descendente consiga livrar algum, por meio do efeito da literatura negativa, do infortnio de nascer.

    Thiago di Diabolis, Septubro de 2121.

    Observao: Ao ler os textos de Cabrera, o leitor do sculo XXII poder estranhar algumas dataes. E bom lembrar que no sculo XX, na poca em que Cabrera escreveu sua obra, existiam apenas 12 meses (janeiro, fevereiro, maro, abril, maio, junho, julho, agosto, setembro, outubro, novembro e dezembro). Ele no conheceu as modificaes calendricas, que se deram em decorrncia das espantosas descobertas astronmicas de meados do sculo XXI, que obrigaram a acrescentar os novos trs meses que hoje conhecemos (mabril, julhosto e septubro).

    P o r q u e t e a m o , N O n a s c e r s !

  • CAPTULO 1

    ACERCA DO NASCER E DO PROCRIAR(SE "TIRAR A V ID A " COLOCA P R O B L E M A S MORAIS ,

    POR QUE "D A R A V ID A " N O OS COLOCARIA?)

    Julio Cabrera, 2006

    Aqui se desenvolve uma idia da procriao que j se encontra em Sneca, o clssico da tica negativa. So transitadas trs linhas de problema- tizao moral do nascimento: a inconvenincia de dar algo de m qualidade a quem no pode recus-lo; a possibilidade de uma manipulao que poderia ter sido evitada; e o desrespeito da autonomia reconstruda do nascituro. Mas apenas o caminho tico est bloqueado: existem muitas outras justificativas para procriar. E para matar.

    J u l i o C a b r e r a e T h i a g o L e n h a r o d i S a n t i s

  • INTRODUO

    A cerca da imensa e incontornvel seriedade do problem a m oral da procriao

    Ora, ora, vamos... o problema moral de nascer! O que isso? Voc deve estar brincando! (...) Como que nascer pode ser julgado moralmente?. E, no obstante, disso se trata, meus amigos, de julgar a vida moralmente, ainda que pese a Nietzsche.

    Meu pensamento (que teve de abrir caminho no final do preconceituoso sculo XX, em uma poca em que temas como eutansia e suicdio ainda eram tabus) visa mostrar, mediante argies (no se trata apenas de umpthos individual, ou de uma frivolidade literria), que a base ltima da nossa vida (e da nossa moralidade) no pode ser moral, que ela , pelo menos, amoral e, muitas vezes, anti-moral; que viver no algo que se possa justificar moralmente.

    (Foi difcil, neste sculo ruidosamente anti-metafsico, voltar a falar em base ltima, mas acredito que essa fuga unnime de qualquer tipo de fundamentalismo configure uma das manobras afirmativas mais escandalosas deste sculo medocre e sem densidade em que tive a desgraa de viver).

    Na verdade, o escndalo do filsofo moral diante deste assunto j deveria explodir no meio do cotidiano mais banal. Pois as pessoas costumam desenvolver na nossa frente dilogos como o seguinte:

    Quantos filhos vocs esto pensando em ter? Ah, muitos, todos os que pudermos, dentro das nossas

    possibilidades. Todos os que Deus mandar. Um lar cheio de filhos sempre uma festa, e eu devo isso para minha mulher, que j passou por tantas ansiedades e sofrimentos.

    P o r q u e t e a m o , N O n a s c e r s !

  • Felizes de vocs, que podem ter todos os filhos que quiserem. Eu tenho problemas de esterilidade, mas estamos tentando resolver; tambm queremos ter muitos filhos, se for possvel.

    E prossegue: At agora no quisemos ter, no achamos que fosse o

    melhor momento, pois educar um filho custa caro, mas fizemos os nossos clculos e agora acreditamos estarmos em boas condies para t-los.

    bom ponderar e ver se os filhos no vo exigir uma diminuio muito grande do nosso nvel de vida, ou significar um incmodo em nossas profisses e projetos, em lugar de um benefcio.

    Eu gostaria de ter um casalzinho, mas se forem dois do mesmo sexo, tudo bem.

    Hoje em dia, mediante ultra-sonografia, possvel conhecer muito sobre o beb antes de ele nascer. Inclusive, em muitos pases, voc pode comprar pequenos filmes mostrando os movimentos do seu beb.

    Se o leitor (ou leitora) no se estremecer diante destes tipos de intercmbios de frases, achando-os perfeitamente normais, ele (ou ela) no ser ainda um leitor adequado para o presente texto. A leviandade, descontrao e at frivolidade com que se fala em ter filhos, de quantos e como vo ser, do que se vai fazer com eles e do que deles se espera, e at de como podem ser exibidos j desde antes de nascerem, aponta para uma manipulao aberta e pblica que mostra como essas atitudes so aceitas e celebradas pela sociedade mundial. Ningum se estremece, todo mundo no apenas acha bom, mas louva as pessoas que assim se exprimem e que agem em conseqncia.

    J u l i o C a b r e r a e T h i a g o L e n h a r o d i S a n t i s

  • Mas, precisamente, o seguinte texto filosfico porque se estremece ali onde ningum mais o faz, analisa e critica ali onde ningum analisa nem critica, como sempre foi a tarefa radical da filosofia (e por mais que ela perca diariamente essa sua radicalidade na assim cham ada f i l osof ia p r o f is s io n a l).

    Pois o dilogo anterior poderia ser gmeo d o seguinte: Quantos carros vocs esto pensando em comprar? Ah, muitos, todos os que pudermos, dentro das nossas

    possibilidades. Todos os que Deus permitir. Uma casa com muitos carros sempre algo muito bom, e eu devo isso para minha mulher, que j teve que utilizar o transporte pblico durante muito tempo, passando por ansiedades e sofrimentos.

    Felizes de vocs, que podem comprar todos os carros que quiserem. Eu tenho problemas com meu crdito bancrio, mas estamos tentando resolver; tambm queremos ter mais de um carro, se for possvel.

    E prossegue: At agora no quisemos ter, pois no achamos que fosse

    o melhor momento; pois manter um carro custa caro; fizemos os nossos clculos e agora acreditamos estar em boas condies para t-lo.

    E bom ponderar e ver se ter mais de um carro no vai causar uma diminuio muito grande do nosso nvel de vida, ou significar um incmodo em nossas profisses e projetos, em lugar de um benefcio.

    Eu gostaria de ter dois carros, um de mais qualidade (talvez importado) e outro para o dia-a-dia, mas se forem dois carros econmicos, tudo bem.

    Agora, em vrios sites da Internet, possvel conhecer muito sobre um carro inclusive antes de ele ser lanado no mercado. Em

    P o r q u e t e a m o , N O n a s c e r s !

  • muitos pases, voc pode assistir pequenos filmes mostrando as caractersticas de seu carro em movimento.

    A espantosa naturalidade com que estes dois discursos podem ser postos em paralelo mostra at que ponto se chegou em uma atitude fortemente manipulativa e objetivadora na questo da procriao. Mas o pior no isso, e sim o fato de ningum achar o menor problema nisso, nessa manipulao ter-se banalizado totalmente at o ponto de se ver o escndalo e o estremecimento diante dela como algo de anormal e de incabvel.

    No primeiro dilogo, inclusive, notamos algo como uma preocupao responsvel por parte dos futuros pais: que bom que eles se preocupam, que no tm seus filhos de improviso e de maneira irrefietida, que calculam o melhor momento e o nmero de filhos que querem ter, para que possam prover as mnimas condies de sustento. Mas em nenhum momento se toma conscincia do total pragmatismo com que esses clculos responsveis so encaminhados, como se se tratasse da compra de peas de moblia. Uma curiosa responsabilidade utilitria e funcional, onde a distino entre coisas e seres humanos tende a diluir-se.

    Esse vis utilitrio e funcional se deixa ver claramente nas polticas pblicas da procriao. Os governos se preocupam muito com a diminuio de sua populao economicamente ativa, e se assustam diante de uma populao crescente de velhos aposentados e improdutivos. Alm dos discursos vazios sobre as maravilhas da vida, procriar pessoas parte de um negcio internacional, parte do processo de produo de mercadoria til e eficiente, um tipo de produo sujeita a clculos e previses como outro qualquer.

    Muitos pases, que pouco se importam com o carter sagrado da vida humana em outros setores, j esto encorajando as pessoas a terem mais bebs. Na Frana, existe um incentivo para

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  • as famlias gerarem uma terceira criana (alm das duas regulamentares), por meio de uma recompensa mensal de 960 euros, desde a gestao at a adolescncia, para que o problema econmico no seja obstculo.

    Alm, pois, da manipulao direta dos genitores, h um clculo social, econmico e poltico em andamento, em nvel planetrio, visando que a produtividade no diminua para aqum dos limites tolerveis ao mercado de vidas. Os discursos filosficos acerca da sacralidade da vida e das suas maravilhas chegam apenas para fechar o crculo mercantil e utilitrio da produo de vida humana no planeta, como se aquilo que faz falta comercialmente tivesse que ser mostrado tambm como sendo bom.

    Mas no bom! Na primeira das trs linhas argumentativas sobre moralidade da procriao que desenvolvo neste texto, tento mostrar como a vida humana sombria e tenebrosa, incrivelmente violenta e profundamente imoral. (Na verdade, mostra o que trivial e todo mundo sabe, mas que se tornou importante apontar e formular, dado o extraordinrio poder da ocultao). Como bvio, este aspecto da minha filosofia caminha no sentido contrrio ao negcio planetrio de criao indiscriminada de vida, num pensamento claramente anti-econmico. Curiosamente, o sculo XX celebrou ruidosamente a queda dos referenciais metafsicos e teolgicos do pensamento, mas continua falando do valor da vida humana, um conceito que era claro luz daquele referencial, mas que agora se tornou difuso e incompreensvel.

    A reproduo daquelas falas utilitrias sobre filhos e carros aponta para uma segunda linha argumentativa sobre moralidade da procriao, a da manipulao. Assim como na primeira linha argumento no sentido de ser moralmente indefensvel impor algo que no tem qualidade sensvel nem moral, nesta outra linha

    P o r q u e t e a m o , NO n a s c e r s !

  • argumento no sentido de ser moralmente indefensvel tratar o outro como meio para finalidades e propsitos extrnsecos, familiares ou estatais (Eis aqui, claro, o cerne da segunda formulao kantiana do imperativo categrico).

    A minha terceira linha tenta mostrar que moralmente indefensvel supor que se o no-nascido pudesse autonomamente opinar acerca de seu prprio nascim ento (numa argumentao retroativa, muito utilizada, por exemplo, na bio- tica contempornea, especialmente na questo do aborto), ele certamente diria que sim, que deseja nascer, sem qualquer sombra de dvida, e estaria sempre contra qualquer obstculo que se colocasse a seu nascimento, se ele visse que teria chances de levar uma vida sadia e normal. Creio que esta suposio temerria e vai logicamente alm do que os dados disponveis o permitem, pois o experimento retroadvo construdo de maneira parcial e tendenciosa, o que no permite a um hipottico agente racional tomar uma deciso ponderada.

    Para facilitar a leitura do seguinte texto apresento aqui um breve resumo das trs linhas: (1) Contestar a idia usual de que, ao fazer nascer algum, lhe estamos dando algo de valioso; (2) Apontar para a inevitvel manipulao do ato mesmo de procriar; (3) Problematizar a idia de que, se algum pudesse opinar, pediria que lhe fizessem nascer. Cada uma das trs sees de meu trabalho trata de uma destas linhas. Nelas j vislumbramos o que poderemos entender aqui por moralidade, segundo a qual

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  • no correto: (1) dar a algum algo que consideramos desvalioso; (2) manipul-lo; (3) desrespeitar a sua autonomia. Creio que estas trs coisas acontecem quando procriamos. Este resultado filosfico pode conduzir muitas pessoas ou a estenderem seus escrpulos morais alm do usual, ou a exporem claramente e sem hipocrisias quo pouco escrupulosas esto dispostas a ser, ou poderia levar a uma refutao pelo absurdo do prprio ponto de vista moral sobre o mundo.

    As minhas trs linhas de argumentao so filosficas e estruturais. Isto quer dizer que elas no devem ser confundidas com outras linhas anti-procriao baseadas em motivos intra-mundanos e empricos. Alguns dos motivos apresentados por essas outras tendncias so, por exemplo, os seguintes. Deveria desistir-se de ter filhos porque: (a) eles introduzem limitaes em nossa vida, nos tiram tempo, impedem o pleno desenvolvimento de nossas vocaes e interesses; (b) eles exigem uma grande quantidade de investimento econmico para poder mant-los dignamente; (c) eles criam distanciamentos no casal, introduzem perturbaes afetivas (o homem preterido, etc.); (d) eles representam um grave problema ecolgico; os nascimentos acontecem sem qualquer tipo de controle sobre as possibilidades efetivas do planeta.

    Em nenhuma destas linhas o sofrimento humano, a desvalia da vida ou a manipulao do outro desempenham qualquer papel; pelo contrrio, como foi visto, se trata de argies fortemente utilitrias, onde parece que a vida humana boa, to boa que os filhos poderiam (se gerados em momentos inoportunos) prejudic- la, trazer problemas aos indivduos ou espcie. A vida boa, so os filhos que no so bons. A minha linha aqui exatamente a contrria: no h nada de errado nos filhos, mas h algo de profundamente errado na vida humana, que leva convenincia

    P o r q u e t e a m o , NO n a s c e r s i

  • moral de poup-los do que sabemos ser desagradvel para eles, por mais que isso estrague o nosso prprio prazer e satisfao.

    Aparentemente, as nossas sociedades afirmativas e suas teorias morais se preocupam muito com a manipulao de seres humanos. Mas a preocupao pela manipulao parece unilateral, pois ela veementemente denunciada no caso do suicdio (j Kant falava que, no suicdio, a pessoa utiliza seu prprio corpo como meio), um pouco menos veementemente no caso do homicdio (pois as sociedades afirmativas aceitam inmeras excees do manipular a vida do outro, baseadas nas ideologias da legtima defesa e da segurana), e jamais menciona a bvia e evidente manipulao da procriao. De maneira que no parece ser a manipulao stricto sensn o que preocupa as sociedades afirmativas: tanto se dispe do prprio corpo como meio quando se decide acabar com a vida como quando se decide continu-la. e tanto se dispe do corpo dos outros como meio quando se decide acabar com sua vida como (e mais ainda) quando se decide procri-la.

    As pessoas proclamam que a experincia da paternidade (e maternidade) extraordinria e a recomendam a todos (e denigrem aqueles que no passaram por ela). Mas eu me pergunto: extraordinria para quem?. certamente extraordinria para os genitores. Quando estes dizem que no apenas eles sero felizes e realizados com a experincia, mas tambm seus filhos, eles no percebem a insondvel assimetria e descompasso entre essas duas experincias, a experincia de gerar e a de ser gerado. O gerado est obrigado a aceitar a experincia, a torn-la boa e interessante (e inclusive extraordinria); qual outra sada teria? Esta obrigao no est presente nos genitores, onde o carter extraordinrio da experincia parte de um projeto envolvente e unilateral. As situaes de ambas as partes so incomparveis.

    J u l i o C a b r e r a e T h i a g o L e n h a r o d i S a n t i s

  • Assim, quando alguns replicam: No tem sentido voc querer mostrar que a vida m; voc no pode decidir pelo seu filho; talvez ele goste de viver, o que isso quer dizer? Claro! Em certo sentido, ele obrigado a gostar! Mas esse gostar ser sempre j um desesperado aceitar. O gerado no est em condies de, realmente, gostar. Poderia gostar se tivesse realmente escolhido. Diante do fato consumado, ele obrigado a agarrar-se desesperadamente vida. Ou gosta ou destrudo (por uma doena nervosa, ou pela sevcia dos outros).

    Destas questes jamais colocadas trata o presente texto, at hoje mantido indito por temor a represlias e vinganas afirmativas, tanto crists quanto nietzschianas (no fundo, muito parecidas).

    Precisamente, comecei dizendo que a minha linha reflexiva era anti-nietzschiana. Quero acabar esta introduo esclarecendo o porqu, se isso j no for evidente1. Pois do que aqui se trata da tentativa de uma ponderao moral-racional da procriao, do fato de, como se diz, dar a vida, embora seja obscuro o tal dar. Deixar de ver a procriao como exploso vital que se justifica por si mesma. Gritos nos ensurdecem, mas, depois de repostos, perguntamo-nos por sua razo de ser. Tudo isso para dizer que, como questo metodolgica, no se tomar aqui a vida como tribunal de ltima instncia. Estou lhes convidando a indagarmos juntos sobre uma possvel justificao moral do ter filhos.

    1 As duas referncias a Kant e este final anti-nietzscheano mostram at que ponto o pensamento tico de Cabrera se movimentara sempre dentro do ambiente reflexivo destes dois filsofos. Ele precisa imperiosamente da noo kantiana de moralidade para construir seu edifcio terico. Sem ela, tudo cai por terra. Para entender melhor estes cruzamentos Kant/Nietzsche, consultar Cabrera Julio, Para uma defesa nietzscheana da tica de Kant ( procura do super-homem moral). Uma reflexo semntica Cadernos Nietzsche, nmero 6, So Paulo, 1999. (Nota de v. Kabra).

    P o r q u e t e a m o , NO n a s c e r s i

  • Diz-se que ter filhos algo de natural. Mas muitas coisas moralmente condenadas (como a violncia, por exemplo) so naturais. Ao longo da histria da tica, cansamos de escutar os moralistas dizendo que temos de resistir aos nossos impulsos naturais (a gula, o lcool, as drogas, os excessos sensveis em geral) para sermos virtuosos. O impulso de reproduzir-se pode ser colocado no mesmo nvel natural que os impulsos alimentares e os impulsos agressivos. Por que se deveria resistir a estes em nome da virtude moral, e ao primeiro no? Por outro lado, muitas vezes condenou- se as condutas homossexuais por serem antinaturais. O discurso moral, de acordo com os ventos que correm, parece pr-se do lado da natureza ou contra ela. Afinal de contas, parece que a noo de natureza utilizada de maneira falaciosa e unilateral.

    Neste meu texto, eu estarei sempre preocupado com moralidade, no com o que ou no natural. Segundo o pensamento aqui desenvolvido, algo natural pode ser moralmente condenvel, e algo anti-natural, moralmente defensvel.

    Nietzsche disse: S h vida. No h nada externo vida que possa julg-la. Mas a vida criou um animal de crebro grande e sexualidade insacivel (combinao pouco feliz!) capaz de julgar moralmente... a prpria vida. Agora tarde para dizer: S h vida. Pois no meio dessa vida toda, h tambm vida julgadora. No absurdo julgar a vida a partir de uma forma de vida suficientemente desenvolvida para faz-lo. O ser humano aparece na idade madura da vida, a idade em que ela j pode suicidar-se, encontrar seu prprio julgamento final por meio de uma de suas prprias produes, de maneira que a vida se suicida por meio de uma forma de vida, precisamente a humana.

    Esta a parte decididamente impopular de meu pensamento tico-negativo, aquela em que preciso ter toda a cautela. Portanto,

    J u l i o C a b r e r a e T h i a g o L e n h a r o d i S a n t i s

  • as pginas que seguem devem apenas murmurar meu pensamento, com o explcito intuito de no ser escutado por milhares. Quem quiser aprend-lo ter de forar os ouvidos. O tema desagradvel, tanto de escrever quanto, mais ainda, de ler, de maneira que o leitor frvolo ou muito sensitivo poder deixar o livro e pegar outro livro meu (por exemplo, O Cinema Pensa, que muito mais convidativo)2. Para quem quiser continuar, desejo-lhe boa sorte e sentidos aguados para ouvir sussurros e ler letras pequenas.

    Eu gostaria de ter uma previso da repercusso das minhas idias nos sculos vindouros (digamos, nos anos 2100 ou 2200), pois do sculo XX nada posso esperar. Mas tambm me alegra estar j perto de meu suicdio e no ter de enfrentar as iras ou simpatias de meus futuros leitores. Gostaria que este texto falasse por si mesmo, e que as pessoas percebessem que no se trata de brincadeira literria ou de suprema frivolidade. A vida humana algo terrvel, e fazer que algum nasa um dos atos mais carregados de responsabilidades e conseqncias que eu consigo imaginar.

    2 muito curioso este desdobramento na obra de Cabrera: por um lado, seu crepuscular ponto de vista tico-negativo, com a sua desagradvel metafsica da vida; por outro, seus festivos estudos sobre logopatia, conceitos-imagem e filosofia do cinema, em seus livros O Cinema pensa (Rocco, Rio de Janeiro, 2006) e De Hitchcock a Greenaway pela histria da filosofia (Nankin, So Paulo, 2007). Parecem trabalhos de dois autores diferentes, o que talvez aponte inequivocamente para o carter esquizide da obra do nosso filsofo (e talvez do prprio filsofo).

    P o r q u e t e a m o , N O n a s c e r s !

  • I. SE FORES A SIRACUSA..."(Primeiro argumento moral contra a procriao)

    1. Do sentido do ser ao valor do ser

    Heidegger se indaga sobre o sentido do ser, fazendo questo de no se pronunciar acerca de seu valor. Pelo contrrio, o valor do ser o que aqui me interessa especialmente. Creio, inclusive, enfrentando as iras de Heidegger e os heideggerianos, que pouco poderemos saber sobre o sentido do ser sem passar pela questo de seu valor, que no visualizamos a ontologia a no ser valorizando.

    Pois o ser humano um ser valorizador, que em seu pisar o mundo vai fazendo (em um dizer sartriano) buracos valorativos. E este ser valorizador, esburacante, que se pergunta pelo sendo do ser. Poder ele dizer o sentido do ser, a no ser por intermdio de seu compulsivo e inevitvel esburacar?

    Mas ao colocar o problema do sentido do ser, Heidegger nos convida a pensar a diferena ontolgica, a diferena entre ser e ente, e a este convite eu respondo de bom grado, pois dessa diferena eu tambm preciso para refletir sobre o valor do ser. Esta diferena crucial para uma tica existencial, e especificamente para a questo do valor da vida humana (a nica de que me ocuparei aqui: no falarei nada sobre o valor da vida das girafas).

    Pois tudo o que habitualmente dito acerca do valor da vida se diz, me parece, acerca de entes intramundanos, e no acerca do seu ser mesmo. As habituais idias da vida boa referem-se a elementos nticos (dos entes) das vidas, todo o valioso de uma vida humana est situado na dimenso ntica.

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  • Tentarei lev-los alegremente para a idia de que, ontologi- camente (no que se refere ao ser) a vida no boa. Tambm a fechar as portas para seu amigo, o agnstico, que proclama que a vida humana no nem boa nem m.

    2. Pequeno enigma moderno

    Durante muito tempo pensou-se que a vida humana era boa em seu prprio ser. Mas esta idia tornou-se enigmtica uma vez cados os referenciais religiosos e metafsicos que a sustentavam. Podemos sempre determinar o valor de um humano em relao a algo determinado: como professor, como dentista, como soldado. Mas no fazemos idia do que seja v-lo como valioso em si mesmo, pelo fato de ser humano.

    claro que os seres humanos do muito valor a si mesmos em seu prprio ser, alm do fato de serem professores ou soldados, e inclusive alm de serem bons professores ou bons soldados. Mas assassinos, mentirosos e traidores tambm do valor a si mesmos. fcil dar valor a si mesmo. Ser que o nosso valor em si provm somente de nossa prpria autovalorao? (E no poder ser este supervalor que nos damos reflexo da profunda conscincia de um grande desvalor fundamental? Pois por que deveramos dar valor para algo que j o tem?).

    Se quando as pessoas dizem que a vida valiosa elas querem dizer que ns a tornamos valiosa por meio de nossas valoraes esburacantes, bom, ento, estamos de acordo. Mas parece filosoficamente relevante notar que as valoraes podem estar fortemente induzidas por uma desvalia bsica e fundamental, um desvalor do qual procuramos nos afastar por meio de nossas valoraes. Com o que elas, ento, estariam provando precisamente o contrrio de

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  • um valor da vida em si mesma, em seu prprio ser, na medida em que ela precisa de nossos esforos para se tornar valiosa.

    O que os propagandistas de A vida boa deveriam ento dizer : sempre possvel tornar a vida boa, mesmo ela no sendo boa em si mesma. Devem-se incluir os esforos humanos na valora- o. Mas as minhas trs linhas tendem a colocar um vu de suspeita nesta possibilidade. Penso que a vida no boa em si mesma, e que ela no se torna boa sem que se paguem altos preos.

    Normalmente (como veremos em seguida) no percebemos quanta dor e imoralidade so necessrias para poder levar adiante essa luta. Pois nela devo dar (sou obrigado a dar) um enorme valor a mim mesmo em detrimento de outros. O valor desmesurado dado a mim mesmo uma espcie de compensao do desvalor estrutural que me foi dado ao nascer.

    3. Desesperados por viver

    Tambm se diz que o valor da vida se prova na intensidade com que cada um de ns procura conserv-la. Mas o anseio por agarrar-se a alguma coisa no prova que esta coisa seja valiosa em si. Mais do que amor pela vida como algo valioso, a existncia parece mais uma imensa sede de viver, algo cujo valor duvidoso (a sede valiosa?), e que talvez seja almejado ansiosamente por total falta de alternadvas. Talvez at um desespero de viver, algo que desespera, no algo que possamos amar. Os argumentos em favor do amor pela vida, baseados no fato de que as pessoas se agarram desesperadamente vida, parecem argumentos do desespero, no argumentos do amor.

    Na verdade, no se gosta da vida, mas de si mesmo na vida, do desafio e da luta contra a reconhecida m qualidade da vida.

    J u l i o C a b r e r a e T h i a g o L e n h a r o d i S a n t i s

  • a luta e o possvel predomnio sobre essa m qualidade da vida o que resulta, afinal de contas, atrativo e interessante, como um jogo desafiador. No a vida o belo, mas ns mesmos lutando contra a sua feira.

    Tem-se que entender este paradoxo: porque a vida profundamente desvaliosa, trata-se de viv-la intensamente; porque ela desesperadora, trata-se de viv-la desesperadamente, de querer desesperadamente viver. Estar desesperado por viver no significa que a vida tenha valor: ao contrrio, no vale muito aquilo que nos obriga a uma aceitao desesperada.

    Vive-se no desespero de viver, e no no belo, no gozo ou no amor. Somente algo que no pode ser livremente amado precisa exigir essa adeso compulsiva e incondicional. Viver intensamente ocultar desesperadamente o desvalor da vida.

    4. A diferena ontolgica em registro negativo

    Os filsofos tm feito uma distino entre dois tipos de valor da vida, um valor sensvel e um valor moral. Algo poderia ter valor sensvel e no ter valor moral, ou algo poderia no ter valor sensvel, mas merecer valor moral. Na tarefa de ponderar o valor da vida humana, devemos indag-la, pois, neste duplo registro. Mas, ao mesmo tempo, esta indagao dever ser perpassada pela diferena ontolgica: a vida humana tem valor sensvel ou moral em seu prprio ser (em seu surgir), ou apenas em suas caractersticas intramundanas?

    Diferenciando ser e ente, aceitamos o aparente absurdo de poder dizer que a vida humana tem valor sensvel e moral no plano dos entes, sem conceder-lhe esse valor em seu prprio ser, ou vice-versa. (Ver, mais tarde, o texto A diferena gentica). (Para

    P o r q u e t e a m o , NO n a s c e r s :

  • um filosofar analtico, para o qual o ser reduzido a um conjunto extensional de entes, nada disto faz o menor sentido. J se sabe que o que diferencia e ope filosofias analticas e no-analticas o reconhecimento ou no da diferena ontolgica.).

    Muitas pessoas e muitos filsofos (como William James) j falaram que a vida boa em seu ser apesar de desgraas particulares3. Por que no podemos inverter isto e dizer que a vida pode ser m em seu ser apesar de alegrias particulares?

    5. S se morre duas vezes

    Para avaliar o ser mesmo da vida, no ser indispensvel introduzirmos a questo de sua mortalidade? Mas ateno: distingo entre morte e mortalidade, precisamente uma maneira de fazer a diferena ontolgica (que eu chamo a diferena tanti- ca). Distingo entre morte pontual (MP) e morte estrutural (ME). A primeira a morte que acontecer a todos algum dia (ou alguma noite); a segunda, a morte que j comeou a caminhar desde o nosso nascimento, o decair, o finar, o terminar. (Por isto, mais recentemente, estou chamando terminalidade ao que aqui apresento como mortalidade). Segundo a ME, vida e morte esto, pois, internamente vinculadas ou, terminalmente vinculadas, pois a MP seria a simples consumao do que foi dado ao nascer. A esta vinculao interna chamo de mortalidade, para distingui-la da mera morte (MP).

    3 possvel que a referncia seja ao livro The Will to Believe, de William James, e especialmente ao artigo titulado Is Life worth living?, includo nesta obra. Existem poucas aluses a este filsofo nos textos de Cabrera, que ele considerava o mais existencial dos filsofos pragmatistas. H mais afinidades da filosofia negativa com os sombrios romances de Henry James, como Uma volta do parafuso e Os papis de Aspem, do que com a filosofia de seu irmo William.

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  • A mortalidade est mais vinculada com nascimento do que com morte. Muitos escritores antigos j tiveram a intuio da diferena tantica, entre eles talvez o mais claro e atual seja Sneca (em obras como Consolao a Marda, Consolao a Polibio e Epstolas a Lucio).

    O ser da vida humana ter-surgido-mortal, decair, definhar, falecer. Todas as aes humanas parecem movimentar-se, no plano ntico, na direo contrria a esse definhar. Os valores esburacantes parecem demorar e adiar interminavelmente o surgimento-mortal do ser em sua consumao final. O ser da vida humana ter surgido como uma fora contrria a terminalidade interna do ser: o ser humano decai, definha e falece no sentido de fazer tudo isso de maneira opositiva, reativa, fugitiva, como se o ser que lhe foi dado no pudesse ser vivido em sua positividade, mas sempre negativamente, reativamente, criativamente. Mas a terminalidade do ser acabar ocupando todo o espao criativo, engolindo o ser-mortal que decai, definha e falece. Em seu lugar aparecer ento o buraco que o constitua desde sempre, e que s agora se tornou evidente.

    Aqui se perfila j um possvel julgamento do valor da vida humana em seu ser: uma vida de definhamento, diante da qual somos compulsivamente obrigados a defendermo-nos, em um jogo que sabemos que vamos perder, pode ser vista como sensivelmente m para um ser humano, apesar dos valores produzidos intramundanamente serem bons, precisamente no sentido de eles serem o adiamento de algo vivido primordialmente como mau. Assim, a vida no vista como m por conter estes ou aqueles males intramundanos, mas em seu prprio surgir-mortal vivido na fuga e na derrota.

    P o r q u e t e a m o , N O n a s c e r s !

  • p \

    6. Meu filhinho de 65 anos

    Assim, quando geras um filho, geras um mortal. Colocas algum na mortalidade. Desse modo, contestvel que algo lhe seja dado sem que, ao mesmo tempo, algo lhe seja tirado. (Habitualmente, os genitores imaginam sua paternidade em relao a filhos pequenos e graciosos. Mas um pai de 83 poder ter um filho de 65, momento em que, talvez, visualize claramente a mortalidade de seu filho, presente desde sempre.).

    7. Se morrer mau, ento ter nascido mau

    Que a vida humana seja sensivelmente m em seu ser no pode depender de qualquer elemento intra-mundano reputado como mau. Pois os prprios bens intra- mundanos esto perpassados pela mortalidade (terminalidade) do ser (ME). Ter nascido mau, na perspectiva ontolgica, por termos sido colocados no processo da

    mortalidade, com independncia do que acontea onticamente dentro dela. (Eis um pensamento impopular que sempre me trouxe muitos problemas)4.

    4 Nunca saberemos a qu ele est aqui se referindo. Conhecemos somente a breve carta da Editora Vozes rejeitando a publicao do Projeto de tica Negativa, no final da dcada de 80 do sculo XX. Fora isso, percebe-se a poderosa auto-censura que Cabrera se fazia quando tratava desses assuntos, como se ele mesmo se desse por conta de seu carter incabvel, ou da dificuldade de defender tais idias contra todos os valores vigentes.

    J u l i o C a b r e r a e T h i a g o L e n h a r o d i S a n t i s 35

  • No existe nenhuma diferena filosfica importante entre ter nascido (ME) e ter de morrer (MP), pois o nascimento ontolo- gicamente terminal, embora seja onticamente inicial (e o que se celebra em nascimentos, um momento de mximo esquecimento do ser). E absurdo dizer que ter nascido bom, mas ter de morrer mau, porque ter nascido o mesmo que ter de morrer, j que no nos possvel nascer no mortalmente. Se morrer mau, ter nascido-mortal deve ser mau tambm.

    A vida humana no seria m pelos seus eventuais contedos intramundanos maus (que se alternam com os bons), mas pela sua relao interna com a mortalidade do surgir-mortal do ser. Tudo o que fizermos neste ambiente ser sugado pela origem mortal do ser, toda a vida que conseguirmos construir ser, inevitavelmente, mortalidade, morte adiada (na qual, nada impede, pode haver luzes e exaltaes).

    8. Morte lenta

    A mortalidade no apenas a morte, mas o roce, o atrito, a frico, o desgaste, a dor. Assim, a vida humana no sensivelmente m apenas pela MP, pois poderamos apagar-nos calmamente e a morte ser uma exaltao, uma apoteose esttica, um esfumar- se angelical, um sopro, uma brisa fresca. Mas a mortalidade se consuma constantemente na dor, a consumao to dolorosa e atritada quanto o nascimento. Morrer, afinal de contas, no to fcil (abster-se de procriar mais).

    No apenas a dor nos mantm acuados, mas a sua mera possibilidade, que sempre nos acompanha e nos assusta. Mas quando a dor j se manifestou efetivamente, o agnstico (filsofo estico frustrado) parece singularmente cruel quando afirma, por

    P o r q u e t e a m o , N O n a s c e r s i

  • exemplo, que o sofrimento insuportvel do doente terminal no nem bom nem mau.

    Que a vida humana seja sensivelmente m em seu prprio ser parece trivialmente demonstrvel (uma trivialidade que se torna, paradoxalmente, importante, devido aos mecanismos que persistentemente a ocultam).

    Um mundo onde precisamos ser esticos no parece ser um mundo bom.

    Na afirmao agnstica de que a vida no nem boa nem m, no se concede que ela m? (Pois se a vida fosse realmente boa, ainda haveria agnsticos)? (O agnosticismo como consolo).

    9. Do sensvel ao moral: a vida no bela

    Seres constitudos como os humanos no podem viver estes fatos radicais positivamente, com alegria, jbilo ou beneplcito. (Talvez apenas os personagens escatolgicos de ZOO, de Peter Greenaway)5. Eles to somente podem acostumar-se, resignar-se, sendo que no resignar-se se revela o desvalor (pois que sentido teria resignar-se a algo bom?).

    Mas os padecim entos da m ortalidade do ser no so somente sensveis ( dor), mas tambm morais, na medida em que a mortalidade carcome nossas melhores intenes de termos considerao com os outros seres humanos (e com os animais).

    A mortalidade do ser fecha os espaos de considerao moral, nos transforma em seres defensivos e agressivos, esquivos,

    5 Este foi, ao que parece, um dos diretores favoritos de Cabrera, dedicando-lhe vrios estudos no livro De Hitchcock a Greenaway..., antes mencionado. Parece que seus Greenaway favoritos eram O beb de Macom e O livro de cabeceira, o que no surpreende.

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  • desconfiados e argutos, no porque sejamos maus, mas por simples sobreviver (ou por simples infraviver). o que chamo, em meus livros, inabilitao moral. A preocupao pela existncia nos torna inseguros e mesquinhos, pouco dispostos a escutar, ansiosos e expansivos, sempre acuados pelo tempo curto e pela escassez de oportunidades. (No apenas a ansiedade, mas tambm o tdio da existncia leva inabilitao).

    H, pois, um vnculo interno entre sofrimento sensvel e inabilitao, pois o primeiro vai fechando os espaos da moralidade, at que, na dor suprema, no estamos mais em condies de termos considerao com os outros.

    Decididamente, no podemos ser morais com todos os humanos, em todas as circunstncias, em todos os tempos e momentos: at as estatsticas esto contra ns. No apenas nos grandes crimes da Humanidade, mas no nosso mais familiar cotidiano.

    Tentarmos ser honestos pode ser perigoso para nossa sobrevivncia. Certo grau de insensibilidade e desconsiderao nos exigido pura e simplesmente para continuarmos vivos.

    Os prejuzos que uns humanos podem causar a outros superam em crueldade e persistncia aqueles causados pela natureza, pelas doenas, etc.: ou seja, a maldade moral pode superar a maldade sensvel. (Lembrar o texto de Hume, no Tratado da Natureza Humana, Livro II, Parte III, seo I, onde ele sugere que um condenado morte mais poderia esperar alcanar a liberdade pela quebra do ferro ou da madeira do cadafalso, do que pela esperana de mudar a inflexvel vontade dos carrascos).

    Assim, quando os pregadores da vida boa dizem que a considerao do valor da vida humana no deve limitar-se ao dado (a nossa condio de definhar, termos sido colocados num corpo que decai vertiginosamente), mas deveria incluir tambm a inven-

    P oR Q U E TE A M O , NO NASCERS!

  • o intramundana de valores, as reaes criativas, respondo: alm de ser parte de nossa angstia o fato de sermos compulsivamente obrigados a reagir contra tudo o que, desde o nascimento, nos ameaa, com a certeza da derrota final, totalmente impossvel criar os nossos valores sem prejudicar (ou mesmo destruir) outros projetos de valorao, os de outros seres to desesperados por viver quanto ns.

    10. Inviolabilidade negativa

    Uma nuana de meu pensamento tico-negativo que nunca foi bem compreendida que o desvalor sensvel e moral da vida humana nos proporciona o que chamo uma inviolabilidade negativa: ningum tem direito de prejudicar, ofender ou eliminar a vida humana, a no ser a prpria6. O habitual preconceito afirmativo estipula que somente algo valioso pode ser inviolvel. Sendo a vida desvaliosa em seu ser, como se entende que ela seja inviolvel?

    Mas ela , realmente, inviolvel em seu prprio ser (mesmo podendo ser onticamente violvel em circunstncias especiais), na medida em que todos estamos igualmente afetados pela estrutura mortal do ser, de tal modo que nenhum de ns vale mais do que outro. Poderia se dizer que todos valemos exatamente o mesmo, ou seja: nada! Estamos igualados em zero, no num grande nmero, como cr o pensamento afirmativo. Para constituir a noo de inviolabilidade somente precisamos da noo de igualdade, e ns a temos: uma igualdade negativa. Estamos igualados pela desvalia estrutural de nosso ser.

    Por isto que, na tica negativa, no podemos matar (uma coincidncia com o declogo cristo que meus amigos

    6 Cf. Cabrera Julio, Crtica de la moral afirmativa, Parte IV, 2, p. 198.

    J u l io C a b r e r a e T h ia g o L e n h a r o d i S a n t is

  • nietzschianos no perdoam). A inviolabilidade negativa, em todo caso, boa para quem j est aqui, mas no faz sentido criar algum para que a tenha.

    11. Uns dias chove, outros bate sol

    Em geral, quando que falei de um desvalor ontolgico- estrutural da vida humana na praa do mercado (includa a praa do mercado universitrio) levantaram-se vozes iradas alegando que a vida no s dor, mas tambm prazer. E o que eu chamo de argumento vaivm (H de tudo na vida, h coisas boas e coisas ms).

    Mas isto est mal visto! No h prazer na estrutura terminal do ser. Como poderia haver prazer no decair, no finar, no terminar, no padecer, no sofrer a prpria corrupo, a decadncia fsica e mental? O que se quer dizer (e nunca o neguei) que os humanos criam no intramundo valores e gratificaes capazes de contrabalanar a estrutura mortal do ser, e nesse mbito onde surge (ou, melhor, pode surgir, se tivermos sorte) o prazer (e possivelmente s custas da dor dos outros).

    Toda vida humana uma tentativa de equilbrio entre a segura estrutura mortal do ser e os inseguros agrados e realizaes intramundanas.

    12. Delicado equilbrio

    As pessoas (includos os filsofos, sem exceo) confundem sistematicamente dois nveis de apreciao do valor da vida humana: o nvel no qual capta-se o desvalor da estrutura, e o nvel no qual vemos o possivelmente afortunado equilbrio (sempre instvel)

    P o r q u e t e a m o , N O n a s c e r s i

  • entre o desvalor da estrutura ontolgica da vida (a sua terminalidade iniciada no nascimento) e os valores (possivelmente extraordinrios, empolgantes, inebriantes, mas tambm ameaadores dos projetos de outros) criados no intramundo. Pode-se, tendo um pouco de sorte, levar adiante uma vida agradvel e realizada conseguindo equilibrar o desvalor estrutural do ser com aquilo que podemos obter do intramundo. Mas inevitvel pagar a conta, ou fazer outros pagarem.

    13. Felicidade sempre mediada

    Assim, quando algum diz: Eu sou feliz, interpreto que ele quer elipticamente dizer algo como: Consegui, por meio de procedimentos, atitudes, estratgias, ocultaes, redefinies, esquecimentos, insensibilidades, falta de escrpulos, crueldades e peas de humor, equilibrar de maneira sempre instvel a presso da estrutura mortal do meu ser com aquilo que o intramundo me oferece em termos de prazer e realizao.

    A felicidade no tem essa imediatez que habitualmente lhe atribuda: trata-se de uma complexa construo.

    14. Pouco para oferecer

    luz da idia tradicional de um valor da vida humana, fazer nascer pessoas costuma justificar-se em termos do desfrutar dos bens intramundanos, mesmo reconhecendo-se a existncia de males intra-mundanos (o argumento vaivm). Isso rapidamente confundido com uma apreciao do ser mesmo da vida. Justifica-se moralmente o procriar mediante a idia de ser moralmente bom dar a algum a possibilidade de desfrutar de

    J u l io C a b r e r a e T h ia g o L e n h a r o d i S a n t is

  • algo que se reputa valioso. Disto se seguiria, conseqentemente, a problematicidade moral da absteno, j que se estaria privando algum de algo que sabemos ser um bem.

    O carter problemtico destas crenas fica abafado pelo bombardeio ntico a que submetemos o ser da vida desde a nossa esforada trincheira intramundana. O clculo racional da procriao , para dizer o mnimo, delicado. Temos, na verdade, pouco para oferecer quele que nasce (nasturi te salutanfy. o frgil equipamento para ele tentar construir os valores num mundo que se lhe ope. Vale a pena incomodar algum em seu puro nada para coloc-lo fora em tamanha tarefa?

    15. Otimista ntico, pessimista ontolgico

    Algum poderia ser intensamente feliz e realizado no intramundo (ter conseguido equilibrar a estrutura mortal do ser e a realizao intramundana de valores) e, ao mesmo tempo, considerar uma catstrofe ter nascido (ou seja, ter recebido a estrutura mortal do ser).

    16. Fao-o nascer; depois, que ele "se vire"

    De um estrito ponto de vista moral, parece pouco justificado o clculo que o procriador faz acerca do equilbrio entre bens e males intramundanos e o fato estrutural da mortalidade dando como resultado final ser melhor procriar porque, presumivelmente, aquele que nasce conseguir virar-se.

    Comparem com o seguinte clculo: Admito que enviei X para uma guerra onde certamente seria morto. Mas eu argumentei assim: at chegar ao centro mesmo do perigo, X vai viver muitas

    P o r q u e te a m o , NO n a s c e r s !

  • coisas agradveis e proveitosas, vai conhecer pessoas e coisas que lhe daro satisfaes. Eu poderia no t-lo enviado a esse lugar, e X no seria, assim, exposto a morte segura. Mas o enviei, de qualquer forma, porque me pareceu que valia a pena que ele vivesse tudo isso, ainda quando a dor e o sofrimento o esperassem ao final, e eu o soubesse. X sempre foi muito esperto e eu sabia que ele ia se virar.

    Este argumento parece moralmente problemtico. E h ainda um agravante no caso do procriar, quando comparado com esses outros casos: em todos eles a pessoa j est viva, e pelo conhecimento que temos dela, podemos presumir que se virar. Na procriao, o prprio

    ser da pessoa o que estamos constituindo, o prprio mecanismo do virar-se o que estamos manufaturando.

    17. Se fores a Siracusa...

    Na Consolao a Mrcia, Sneca j tinha utilizado a metfora da viagem problemtica para referir-se questo moral da procriao, no contexto de um discurso consolatrio dirigido a uma mulher que tinha perdido recentemente um filho: Quem nega que triste? Mas humano: para isto fomos gerados, para perder, para morrer; para esperar, para temer; para nos inquietar e aos outros, para temer e desejar a morte e, o que pior de tudo, para

    J u l i o C a b r e r a e T h i a g o L e n h a r o d i S a n t i s

  • nunca saber qual seja nossa condio (Cartas Consolatrias). E em seguida: Se algum dissesse ao que parte para Siracusa: Conhece com antecedncia todos os inconvenientes, todas as satisfaes da tua futura viagem, depois embarca. Estas so as coisas que poders admirar.

    Na continuao descreve Sneca as belezas de Siracusa, a ilha, o mar, o redemoinho Caribdis, a fonte de Aretusa, o porto, etc. Mas quando tiveres conhecido todas essas coisas, um estio pesado e nocivo destruir os benefcios do clima de inverno; l estar o tirano Dionsio, destruio da liberdade, da justia, das leis (...) A alguns queimar, a outros espancar, a outros mandar decapitar por causa de uma leve ofensa (...).

    E Sneca delinear a alternativa: Ouviste o que pode atrair- te, o que pode repelir-te; portanto, ou parte ou fica. Depois desta advertncia, se algum declarasse que queria entrar em Siracusa, poderia queixar-se com direito de algum a no ser de si mesmo, visto no ter cado em tal situao por acaso, mas ter vindo voluntria e conscientemente?.

    18. Melhor no embarcar

    Obviamente, diferena do viajante de Siracusa, no caso do nascimento o prprio viajante no tem a possibilidade de decidir se vai viajar ou no. por isso que o problema vital (ou mortal) no aqui o nascimento, mas a procriao, no um problema moral para filhos, mas para pais (ou para todos os humanos enquanto pais).

    Assim o v Sneca quando convida Mrcia a usar esta imagem para a entrada na vida em geral, imaginando que se venha a aconselhar algum no momento de nascer, mostrando-lhe primeiro as coisas elevadas, e na continuao, as nefastas: Mas nesse lugar

    P o r q u e te a m o , N O n a s c e r s i

  • estaro milhares de pragas do corpo e da alma, guerras, latrocnios, venenos, naufrgios, desequilbrio do clima e do corpo, prematuras perdas dos entes mais queridos e a morte que incerto se ser doce ou se vir em meio pena e tormento. Delibera contigo mesmo e pondera o que desejas (...) Responders que queres viver, por que no? (...) Ningum, tu me dizes, nos consultou. Sobre ns foram consultados nossos pais, que, conhecendo as condies da vida, a esta nos trouxeram (53).

    Note que as calamidades mencionadas por Sneca so todas estruturais, no sentido em que uso o termo. Todas elas so perfeitamente conhecidas pelas pessoas que procriam. O pranto dos que perdem cruelmente seus filhos , segundo Sneca, injustificado, j que, em rigor, jamais tiveram o que crem agora ter perdido.

    Pouco motivo para embarcar: melhor no ir a Siracusa!

    19. Todo mundo sabe

    Eu creio que o desvalor sensvel e moral da vida humana algo que todo o mundo, de uma ou outra forma, reconhea. Incluindo os filsofos.

    A fora das religies, a promessa sempre perseguida de outros mundos, outras vidas, vida eterna, vida sem dor; o enorme xito editorial dos livros de auto-ajuda, os consultrios psicolgicos cheios de pacientes, o uso de drogas, a criao, por meio da arte, de mundos fantsticos, povoados de heris, terras maravilhosas e sentidos... tudo isso no mostra, desde sempre, que os humanos sofrem em suas peles trmulas o desvalor da vida, apesar de agrados intramundanos, ou em contraste com eles, agrados que nunca parecem suficientes para contrabalanar a terrvel ansiedade de ser (ansiedade confundida sempre com amor vida)?

    J u l i o C a b r e r a e T h i a g o L e n h a r o d i S a n t i s

  • No mostra isso que o habitual discurso sobre bondade e beleza da vida uma construo paralela a estas vivncias primordiais do desvalor?

    20. Mortos e invlidos

    Os mortos e os invlidos tambm colocam de relevo o desvalor da vida humana. No caso dos primeiros, na rapidez e idoneidade com que os esquecemos, como se nenhum morto fosse capaz de impedir que a vida continue, que ele seja reavaliado e facilmente substitudo. Era to valioso assim aquele que no nos impede continuar, rir, fazer projetos sem ele? Se os humanos fossem realmente valiosos, no deveriam ser inesquecveis e insuperveis?

    No caso dos invlidos, o desvalor se manifesta nas expectativas da vida til que se d aos invlidos (cegos, paralticos, etc.), tentando mostrar-lhes que, afinal de contas, viver com uma deficincia no to diferente de viver sem ela. A valorizao do deficiente acaba sendo uma desvalorizao da pessoa normal. A vida sempre dura e insuficiente, parece dizer-se aos invlidos; todos somos deficientes; no tens muito para lamentar...

    21. A vida sempre como meio, nunca como fim

    Os filsofos morais admitem, muitas vezes, que no o mero viver o que valioso (o mero estar a), mas o que se faz com a vida. V-se como miservel a vida daquele que, por suas condies econmicas ou mentais, est obrigado a to somente sobreviver, viver apenas para alimentar-se, durar, continuar vivo.

    No mostra isso que o filsofo moral percebeu desde sempre que no h nenhum valor intrnseco positivo no fato de ser, j que

    P o r q u e te a m o , N O n a s c e r s !

  • todos os valores positivos provm do intramundo? E o fato de que, deixados ao mero ser, os humanos so entregues ao desgaste e corrupo, decadncia e ao malogro? No mostra que o mero ser desvalioso, que faz falta preench-lo com os valores do intramundo para que adquira algum valor positivo?

    (No sabiam isto muito bem os torturadores de Alcatraz quando simplesmente deixavam algum dentro de uma pequena cela durante semanas, sem absolutamente nada para fazer, sem nenhum objeto intramundano para distrair-se, simplesmente com seu ser? Se o puro sI fosse algo bom, por que ficar sozinho com ele constituiria a maior das torturas imaginveis?).

    22. No os deixam fracassar

    A imensa maioria da humanidade (os excludos de Enrique Dussel7) no est em condies sociais de perceber o desvalor estrutural do ser. Sua situao onticamente penosa os faz acreditar, at a morte, que seus males so sociais, eventuais, contingentes e evitveis. Em verdade, como Dussel o v bem em seus prprios termos, eles so vtimas da desconsiderao radical por parte de outros humanos, que por vicissitudes nticas se apropriaram das riquezas e do poder, e submetem imensas massas de outros humanos a seus desgnios e vontades.

    Para os excludos, o mundo ainda aparece como algo valioso, pois a partir da privao do mais elementar, o alimento, o vesturio,

    7 Interessante filsofo argentino, morando no Mxico aps atentado a bomba em seu pas de origem, criador da tica da libertao latino-americana. Manteve com Cabrera uma polmica sobre a questo do suicdio no contexto de uma discusso tico-poltica h mais de um sculo atrs. Cf. Cabrera Julio, Dussel y el suicidio. Revista Dianoia, Mxico, maio 2004.

    J u l io C a b r e r a e T h ia g o L e n h a r o d i S a n t is

  • a habitao, etc. aparecem num horizonte de desejo que os torna maravilhosos, quando, em realidade, numa situao normal e justa, se trataria simplesmente do elementar para poder continuar (no digamos para viver bem).

    Os excludos so jogados num erro de percepo do mundo, que a componente ontolgica de sua excluso e explorao. Eles so excludos da viso da estrutura mortal (terminal) do ser, preservados dela ao serem afundados no intramundo que os exige de maneira absorvente e exclusiva: famintos e sem tempo para o ser.

    como se o desvalor estrutural do ser estivesse colocado no nvel zero, enquanto os excludos so inseridos fora no nvel abaixo de zero, nos nmeros negativos desde os quais o zero visto como positivo e desejvel. Chegar ao zero a mxima aspirao dos deserdados, ou seja, da maior parte da humanidade.

    Se a vida humana sempre fracasso ontolgico, os excludos so aqueles aos que nem sequer se deixa a chance de fracassar.

    23. Justia negativa

    O pessimismo estrutural, a viso do desvalor bsico, um luxo de classe, do qual est excluda a maior parte da humanidade. Para eles, os males nticos so mais do que suficientes. Na verdade, os excludos sofrem na pele o desvalor estrutural (por exemplo, na proliferao de enfermidades, na submisso s foras policiais, etc.). Os dominantes tm as condies para colocar anteparos intramundanos entre eles e a estrutura mortal do ser, enquanto os excludos esto diretamente expostos a ela (e, em verdade, eles so parte do anteparo protetor dos dominantes). A libertao ter de incluir tambm o infortnio a que todo ser humano tem direito: no condenar o pobre a todo tipo de alegrias despojadas. No priv-lo de seu patrimnio negativo.

    P o r q u e t e a m o , NO n a s c e r s !

  • 24. Este mundo mau e no tem outro

    Em toda a literatura filosfica ocidental, desde, pelo menos, Os trabalhos e os dias, de Hesodo, at Schopenhauer, podemos ler com exultante prazer uma profusa e rica descrio do desvalor da vida humana. Mas isso ocorreu enquanto se tinha um outro mundo para o qual fugir (ainda em verses leigas, transcendentais ou dialticas). Quando esse outro mundo caiu, quando Deus morreu, quando todas as transcendncias foram impugnadas e o mundo se desencantou, desapareceu tambm, como em um passe de mgica, aquele discurso niilista e apareceram os discursos apreciadores do mundo (com Nietzsche encabeando): j que no h outro, teremos que aprender a apreciar este mundo.

    Mas todo o contedo niilista da filosofia tradicional e moderna me parece rigorosamente verdadeiro, com independncia de sua envoltura religiosa ou consoladora. O que se interpretou em termos de pecado, queda, perdio e redeno, acaba sendo uma descrio fiel do mundo em seu desvalor imanente. S algo muito mau poderia ser historiado e apresentado como queda, erro, expiao e culpa.

    Agora sabemos que o mundo mau, mas que no h nenhum outro, nem ningum que seja culpado disso, que no camos no mundo por algum pecado, mas que estamos, desde sempre, cados ou, melhor, que o mundo caiu em cima de ns.

    25. Dizer sim vida (como Nietzsche) no atribuir-lhe um valor

    A aceitao afirmativa da vida apesar de tudo no prova seu valor estrutural, mas to somente manifesta uma atitude vital (a de

    J u l i o C a b r e r a e T h i a g o L e n h a r o d i S a n t i s

  • Nietzsche, a aceitao da vida com todos os seus terrores) que ratifica a anlise negativa da estrutura (j nas prprias expresses apesar de tudo, terrores).

    O dizer que sim estrutura no possui, em si mesmo, nenhum elemento que prove o valor estrutural da vida. Podemos dizer que sim a qualquer coisa, incluso ao mais detestvel e aterrorizador, ao que no tem nenhum valor.

    Aqui se trata de descrio, no de atitudes. E, por outro lado, j no plo da mxima dor, no se pode continuar dizendo sim vida apesar de tudo. Pois, nesse caso, eu mesmo me transformo no pesar de viver: o aceitar a estrutura apesar de tudo transforma- se no aceit-la apesar de mim mesmo, algo que j no posso permitir-me.

    Quando o prprio Nietzsche viu-se nessas circunstncias, escolheu a loucura.

    26. Apesar de tudo: o tudo pesa

    Se, como dizem os afirmativos, a vida, apesar de tudo, boa, eles reconhecem que o tudo deve ser mau, pois algo no pode ser bom apesar de algo sem que esse algo no seja mau. Se no, seria bom em virtude de (e no apesar de). Se a vida boa apesar de tudo, significa que a vida m em virtude de tudo.

    27. Oportuna ambigidade da expresso "sem valor"

    Das vrias vezes que tentei mostrar, em escritos e conferncias, o que antes eu chamava a falta de valor da vida humana, ouvi esta surpreendente rplica: Mas falta de valor no implica desvalor; se algo carece de valor, ento no nem bom nem mau.

    P o r q u e t e a m o , N O n a s c e r s !

  • Mas claro que utilizo o termo falta de valor no sentido de desvalor, como quando digo a um estudante: Veja, seu trabalho no tem nenhum valor para significar que o trabalho muito ruim, e no que no vou avali-lo.

    Dizer que a vida humana vale zero, no significa dizer que no vamos atribuir-lhe nenhum valor, mas que lhe atribumos zero ou algum nmero abaixo de zero, o que uma avaliao negativa e no a recusa de uma avaliao. Atribuir nada no o mesmo que no atribuir.

    O desespero afirmativo aposta no delgado fio que separa um valor no de um no valor, uma negao De Re de outra De Dicto. Como se as pessoas, diante da convico da problematicidade do mundo, ainda apostassem num agnosticismo tranqilizador: do fato de o mundo no ter valor no se segue que ele tenha um valor no. Mas bvio que no ter valor significa que no vale nada, e no que se suspende o juzo.

    28. Transio para o segundo argumento

    A falta de valor estrutural da vida humana configura um claro motivo para abster-se de procriar. Mas, ao procriar, os geradores no apenas afundam seus filhos na desvalia sem qualquer escrpulo, mas tambm os utilizam como uma estratgia de ocultao da prpria desvalia. Pois gerar mais e mais seres uma maneira de sugerir a idia de que, afinal, existe algum ser para ser vivido. Algo que parece comear (e comear algo de radicalmente novo, na idia de Hannah Arendt) oculta fortemente a terminalidade constitutiva do ser. De maneira que os filhos so, ab initio, duplamente manipulados. E de manipulao vamos agora falar.

    J u l i o C a b r e r a e T h i a g o L e n h a r o d i S a n t i s

  • II. CRIANAS: MODOS DE USAR(Segundo argumento moral contra a procriao)

    29. Teus filhos? Mas, de quem?

    H uma outra linha, muito expressiva, para insistir na problematicidade moral da procriao. Ela no transita pelo desvalor da vida, mas parte da prpria articulao tica fundamental (AEF) como imperativo da considerao dos interesses do outro, alm dos meus prprios. Nisto seguindo o esprito e a letra da famosa segunda formulao do imperativo categrico kantiano. O usar os outros como meio para os prprios objetivos e propsitos talvez seja, na tradio do pensamento

    tico moderno, o prprio paradigma da desconsiderao, ainda quando no se chegue ao extremo da crua manipulao.

    O usar o outro como meio bastante claro em muitos casos de procriao: filhos para superar crises matrimoniais, ou como armas da prpria crise (filhos de pais divorciados postos em situaes de escolhas traumticas, chantagem e espionagem), ou para preencher o vazio de vidas que perderam seu sentido, cuidar dos pais na velhice, continuar algum projeto de vida, reivindicar ou provar alguma coisa para terceiros, serem herdeiros de algum trono, novos donos de uma grande empresa, ou, simplesmente, para fazer o que eu no fiz.

    30. Objetos de exibio

    Fazendo uma fenomenologia de falas e atitudes, se poder ver em qualquer caso (ainda naqueles no enquadrados nas situaes

    52 P o r q u e t e a m o , N O n a s c e r s !

  • acima descritas) comportamentos de exibio daquele que nasceu, mostrando-o com orgulho e ostentao, s vezes com crueldade (por exemplo, a mulheres que no podem ter filhos), quase sempre com festejos e exageros. No pode deixar de estremecer a leviandade com que esta objetivao do nascido levada a cabo, como se se tratasse de algo adquirido a bom preo. Nem precisaramos de elementos de tica negativa para estremecermo-nos: bastam as velhas categorias da moralidade afirmativa.

    31. Encantadoras imperfeies das crianas

    Durante os primeiros nove meses no h som algum associado a uma situao especfica, embora a euforia dos pais atribua significaes aproximadas ou caprichosas. As vezes um fonema acidental se aceita como um apelido do pequeno, que mais tarde se comenta nas confraternizaes e envergonha o destinatrio, que se v obrigado a explicar em ocasies a origem do sobrenome. Se observa nos princpios do aprendizado que embora a criana ascenda paulatinamente articulao do vocbulo ou formulao das primeiras frases, os pais descem ao nvel de linguagem da criana e falam com o pequeno imitando s vezes seus fonemas e seu tom de voz, prolongando assim certas imperfeies de linguagem em que os convidados acham graa (Thenon Jorge, h a Imagenj el Lenguaje, Editorial La Plyade, Buenos Aires, 1971, p. 81).

    32. Festa

    Todo o barulho, o entusiasmo, a euforia que rodeiam o nascimento de uma criana, a forma pela qual ele funcionalmente programado, os empenhos com que se escolhem seu nome, suas

    J u l i o C a b r e r a e T h i a g o L e n h a r o d i S a n t i s

  • pv)r 1 '

    roupas, seus horrios de comer e dormir e as maneiras em que se lhe dedica tempo e preocupaes laboriosas, e Preocupaes laboriosas,

    4 ~ a ( ^ ) ao long de Atuaes onde ___ . Vy o beb mostrado, exibido,

    onde suas graas e vacilaes causam riso e encanto, tudo isso oferece uma interessante fenome- nologia de atitudes cujo alto grau de manipulao serenamente ocultado nos rituais do recebimento, sem sentir-se a tremenda seriedade de ter colocado um ser na spera estrutura da vida.

    33. 0 nascimento entre o excesso histrico e a depresso

    Assim como podemos perguntar-nos o que que os humanos acham que perdem quando morre algum (o problema do luto), sempre podemos perguntar o que que eles acham que ganham quando algum nasce. Parece-me que se trata das duas pontas de uma mesma iluso, ou de dois setores do mesmo no-ser cuja falta, paradoxalmente, sentem os humanos. muito estranho observar as manifestaes de contentamento, os gritos, as risadas, os pulos, as chamadas telefnicas, as piadas, os comentrios exacerbados, o grande dispndio corporal, a longa viglia, tudo isso que rodeia o nascimento de um beb. A primeira idia que vem a de um estranho excesso, pois sabemos que o mundo tem apenas um valor reativo que temos que criar permanentemente, e que esse trabalho duro e inglrio. No h porque nos sentirmos felizes em nascimentos.

    Por que um evento que deveria entristecer, ou que deveramos realizar, em todo caso, como uma espcie de penosa obrigao

    5 4 P o r q u e t e a m o , N O n a s c e r s !

  • gentica, acompanhada de toda essa balbrdia ensurdecedora? Acredito que se trate de um comportamento compensatrio e defensivo, um dos lugares mais tpicos da inveno intra-mundana de valores. A histeria do nascimento deveria situar-se entre a defesa e a converso, como uma forma de manter afastadas as representaes ligadas com afetos desagradveis e, ao mesmo tempo, de teatralizar o conflito psquico em sintomas corporais diversificados, mas sempre paroxsticos. Devemos suspeitar deste barulho to curiosamente fora de lugar, to profundamente inadequado.

    Por outro lado, filhos nascidos do tropeo, no queridos nem amados, nem mesmo na hipocrisia histrica, que nascem para serem humilhados e utilizados, desprezados ou tratados com indiferena, so filhos do defeito, no do excesso, mas igualmente manipulados. H manipulao tanto no excesso histrico quanto no defeito depressivo: mes que amam demais, mes que no amam, todas manipulam, pois tambm se manipula com a indiferena, inclusive com a indiferena amorosa. Aviso para depressivas: o filho no tem nenhum dever, nenhum compromisso, dada a unilateradade da procriao. Ele no assinou nada, no deve nada, no sabe de nada. Os deveres dos genitores em relao aos filhos so absolutos e assimtricos: ao direito absoluto de procriar, to utilizado pela humanidade, corresponde um total esvaziamento de deveres da outra parte.

    34. Mistificao da Grande Me (Pensamento sussurrado)

    Em nossas sociedades afirmativas, a mulher no-me rejeitada e caluniada, mesmo em atitudes cautelosas e fingidas. A Me, pelo contrrio, celebrada, tanto no perodo de doce espera como depois do nascimento, rodeada de reverncias e atenes.

    J u l i o C a b r e r a e T h i a g o L e n h a r o d i S a n t i s

  • O beb visualizado exclusivamente em sua inegvel dimenso esttica (aquela coisa pequenina, irresistvel). O que deveria ser, em todo caso, um ato sbrio e comedido, transforma-se numa parafernlia exibicionista e histrica, onde os adultos se infantilizam e a criana objetivada.

    (Enquanto no dispusermos de mecanismos crticos para isto, a nossa moralidade estar formulada de maneira incompleta, pois nas estruturas da maternidade e da procriao so compreendidas outras atitudes sociais manipuladoras, como se aquelas proporcionassem a matriz geral de nossas relaes com os outros. No sem razo fala-se em maternalismo e paternalismo para criticar outras atitudes que no esto diretamente vinculadas com nascimento e procriao.)8.

    35. Mistificao do Grande Pai

    Quando estamos muito orgulhosos com uma obra (literria, musical, filosfica) que acabamos de finalizar ou de publicar, e manifestamos o nosso imenso orgulho diante da sociedade, somos freqentemente punidos por sermos soberbos e arrogantes. Vejam s!, eles dizem, Pensa que um gnio! No espera que os outros o elogiem; como se tivesse feito grande coisa! E uma vergonha!. Entretanto, quando algum ganha um filho e ma

    8 Neste aforismo, voltamos a encontrar aquela mesma auto-censura a que me referi em outra nota. Pensamentos sussurrados (s vezes escritos em letras muito pequenas), apontando para a indeciso de Cabrera, como se quisesse, ao mesmo tempo, ser e no ser lido. Como no caso de Schopenhauer, as relaes de Cabrera com sua prpria me so decisivas para entender seu texto to amargurado e tendencioso. Ainda, um adequado estudo psicolgico poder desvendar as razes biogrficas da tica negativa.

    P o r q u e t e a m o , NO n a s c e r s !

  • nifesta seu imenso orgulho como pai, a sociedade compreende, aplaude e apia: Olhem s, o orgulhoso pai! Tambm, quem no estaria orgulhoso com criana to linda!. Curioso e irritante que no possamos estar orgulhosos de algo que nos custou imenso trabalho realizar e que puro fruto de nossa sensibilidade mais apurada, e que nos permitam explodir de orgulho apenas por termos exercido com sucesso as nossas funes biolgicas mais elementares, funes que qualquer um capaz de exercer, mesmo quem no possui qualquer talento, mesmo quem, talvez, seja o mais desprezvel dos humanos!

    36. Toda procriao manipuladora

    O uso que fazemos do outro na procriao ontolgico e total, constitutivo, no sentido de o prprio ser da pessoa estar sendo feito, e no algum elemento intramundano. Na tradio afirmativa, se dir que isto inevitvel, j que aquele que nasce no pode ser consultado. O autoritarismo e a assimetria so incontornveis.

    Mas, o so? No existe qualquer obrigao de procriar. Sendo possvel abster-se, a procriao pode ser moralmente julgada como ao de uso do outro como meio (e inclusive de manipulao), que sempre poderia evitar-se. Se este elemento de uso como meio geral, e no aponta para caractersticas intramundanas evitveis, dado o carter evitvel da procriao, no se v como (sem reassumir algum dogma ou axioma sobre o valor sagrado da vida) se poderia evitar o julgamento moral da procriao em geral na base do imperativo kantiano da no manipulao.

    (O prprio Kant foi incoerente ao no se dar conta de at que ponto seu fanatismo moral como Nietzsche chamara - coloca em perigo a vida de maneira radical).

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  • 37. Seguir procriando, mas no por motivos morais

    Tudo isto no indicaria o cessar da reproduo e o fim da humanidade, mas a convenincia de aceitar que a gerao de pessoas acontece, de fato, sobre bases no morais. (Possivelmente pragmticas: para que a humanidade no se extinga, por exemplo. Mas a no extino da humanidade no , p er se, motivo moral; pode ser, no mximo, condio emprica do desenvolvimento da moralidade. Mas nada exclui que possamos desistir deste motivo emprico por razes morais: a humanidade poderia, em um experimento de pensamento, optar por sua desapario com base em motivos morais.).

    38. Perdido paraso

    Contra o argumento Ado e Eva: se eles tivessem exercido a tica negativa, e tivessem tido escrpulos morais para procriar, ento a humanidade no teria existido. Bom, que seja! Estou falando em moralidade, no em sobrevivncia. A moralidade poderia exigir no continuar vivendo, e a sobrevivncia poderia ser possvel somente base de imoralidade (de manipulao e desconsiderao).

    De maneira que se Ado e Eva tivessem se abstido de procriar, talvez tivessem agido moralmente, mesmo quando isso tivesse tido como conseqncia o no surgimento da humanidade (por que no pens-lo como o Grande Ato Moral Inaugural da humanidade, sombra de cuja no realizao vivemos at hoje todas as nossas misrias?).

    39. Criar o mundo para depois salv-lo?

    Na verdade, as pessoas (mesmo de diferentes classes sociais) desejam ter filhos e alimentam expectativas e desejos manipulado-

    PORQUE TE AMO, NO NASCERS!

  • res em tomo do filho que vai nascer. De maneira que os argumentos de que se est fazendo nascer algum para seu bem, para que goze dos bens intramundanos, no so demasiado convincentes diante da curiosa parafernlia em torno do acontecimento de algum que nasce.

    As classes mais baixas parecem menos hipcritas que as altas no que se refere procriao de filhos, mesmo que no menos cruis e manipuladoras. Assim como absurdo que Deus criasse um mundo para depois salv-lo (ver meu Excursus sobre Leibniz na Crtica da Moral Afirmativa), parece absurdo colocar algum na mortalidade para depois fazer de tudo para ocult-la dele.

    40. Reductio adabsurdum da moralidade

    H quem creia que se a vida mesma moralmente condenvel nestas duas linhas (desvalor estrutural da vida e manipulao), se, afinal de contas, viver imoral, isso seria uma espcie de prova ad absurdum da impossibilidade do ponto de vista moral sobre o mundo. Eu prefiro seguir as linhas de argumentao aqui propostas at as ltimas conseqncias. Talvez no seja a moralidade o que absurdo, mas a vida mesma. Por que no dizer que a moralidade a prova ad absurdum da impossibilidade da vida? Se vida e moralidade se opem, no bvio que devamos optar pela vida. Em lugar de afirmar a minha vida, posso negativizar a minha tica.

    41. 0 amor no tico

    O amor impulso vital, no motivo tico. Se se alega que se procria por amor, no se avana um passo na direo de uma justificao moral da procriao. Dizer que se decidiu por amor dizer tanto como que se agiu em virtude de um impulso natural

    J u l i o C a b r e r a e T h i a g o L e n h a r o d i S a n t i s

  • irresistvel. Mas aqui falamos em moralidade, e de uma possvel justificao moral da procriao.

    A famlia uma comunidade afetiva, vital e amorosa, no uma comunidade moral. Quando algum forma uma famlia, em certo modo se encerra em um grupo pequeno capaz de proteg- lo incondicionalmente: ele no precisa ser moral para ser amado por sua famlia.

    (No dizem as mes de assassinos, por exemplo: No me importa o que tenha feito; meu filho, e estarei sempre do seu lado? No justificam seus roubos e desvios de dinheiro pblico os funcionrios corruptos dizendo que tudo que fizeram foi por amor a minha mulher e a meus filhos?).

    42. Amor e dio

    A procriao no pode ser justificada pelo amor, assim como o heterocdio no poderia ser justificado pelo dio. Pode haver tanta manipulao no amor quanto no dio, e primariamente a manipulao o moralmente injustificvel, e no o dio. melhor deixar amor e dio fora da moralidade (inclusive porque, como Freud mostrou, eles se convertem um no outro com incrvel facilidade).

    43. Filhos matam pais, depois de serem mortos por eles

    A vida, que foi gerada assimtrica e manipuladoramente, tentar depois se constituir em estrita oposio a seu prprio processo gerador e, nesse processo, como Hegel o viu em suas conferncias de 1803/4, embora de uma outra perspectiva, os filhos se transformam na morte de seus pais. Pois um ser humano no admite eternamente ser manipulado e objetivado. To logo tenha uso de razo e iniciativa, se abrir caminho para sua prpria autonomia,

    P o r q u e t e a m o , NO n a s c e r s i

  • contra todas as previses e planos de seus pais, num projeto de reivindicao inevitvel e violento.

    estruturalmente inevitvel que os filhos tentem construir seu prprio ser autnomo sobre os restos daquilo que seus progenitores pretendiam destinar-lhes. Ser com os restos desse ser despojado que o filho far necessariamente a sua prpria formao, gerando uma verdadeira luta de morte pela autonomia, no fundo. pela autonomia que foi primitiva e originalmente ofendida no ato mesmo da procriao, na estrita medida em que ela poderia ter sido evitada.

    44. Nascendo de novo

    Desta forma, o filho parte agora para uma viagem sem retorno, onde a oposio ao ser que lhe foi imposto no pode deixar de aparecer como uma componente fundamental de sua verdadeira constituio, de seu segundo nascimento, como se quisesse liberar- se da manipulao da qual foi objeto no primeiro. Mas isso to impossvel quanto a prpria moralidade da procriao: assim como os pais no podem justificar moralmente seu ato procriador, da mesma forma os filhos ficaro infinitamente dependentes do mesmo, por mais ousadas que paream suas atitudes e gestos emancipadores e reivindicadores. Pois tudo o que fazem para opor- se a sua gestao, o faro em estrita correspondncia dependncia que crem estar superando.

    45. Contra a alegre aceitao da manipulao por parte do vitalista

    Seria possvel um vitalista fantico ver em tudo isto apenas as oscilaes perfeitamente naturais da vida. A vida cruel e

    J u l i o C a b r e r a e T h i a g o L e n h a r o d i S a n t i s

  • segundo o vitalista, devemos aceit-la plenamente, com toda a sua crueldade. Mas eu no sou vitalista. de maneira que me horrorizo diante da manipulao, mesmo quando seja natural, ou precisamente por s-lo.

    46. Amoral e imoral

    Os vitalistas dizem: a vida no pode ser julgada moralmente; ela no moral nem imoral, mas pr-moral, ou amoral. Mas isso, certamente, no se aplica a uma vida humana. Seria absurdo acusar de imorais um animal ou uma planta que se expandem inocentemente; mas essa inocncia est vedada ao homem. A procriao no tem o mesmo ndice de valorao nos animais e nos humanos. A absteno de procriar no est ao alcance dos animais, nem a significao da procriao ou do grau de manipulao que ela acarreta. (E mais vivel que animais se suicidem do que se abstenham). Se a moralidade definida como a exigncia de no-manipulao, ento a vida apia-se em imoralidades fundamentais, e no em prticas pr-morais. (Demasiado cedo para os deuses, demasiado tarde para o animal).

    47. Quando no se pode fazer nada na vida, se faz mais vida

    O ter filhos, como se diz (e atentem para este terrvel uso de ter), ao contrrio do que se pensa, a prpria patente do desvalor estrutural da vida humana. Pois os filhos so vida pura, simplesmente a continuao da vida. Apesar do que os pais programaram para eles, os filhos no so para algo, simplesmente so. Os progenitores esquecem que o que fizeram foi, simplesmente, vida, na dificuldade