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- _ (J ! / ,... '!M.-o ·/\G".....,S\l~~: !..-.ll.'I'- "\~C6..' 1'fi. : <SJUGiRO'lJ R .. C. ~ &: tY\ b'l(Ã~~fOo''1'''''. ~Lo I~~~; I VII \ O perspectivismo é uma convenção interpretativa básica da práxis indígena, mas ele vem ao primeiro plano no contexto do I xamanismo. Este último depende essencialmente da capacidade manifestada por certos indivíduos (humanos e não-humanos) de adotar a perspectiva de corporalidades alo-específicas. Sendo capazes de ver as outras espécies como estas se vêem - como humanas -, os xamãs de cada espécie desempenham o papel de diplomatas cosmopolíticos, operando em uma arena onde se defrontam os diferentes "interesses" socionaturais. Nesse sentido, a função do xarnã amazônico não difere essencialmente da função do guerreiro. Ambos são comutadores ou condutores de perspectivas; o segundo opera na zona inter- humana ou intersocietária, o primeiro na zona interespecífica. Essas zonas se superpõem intensivamente, mais que se dispõem extensivamente em relação de adjacência (horizontal) ou de - englobamento (vertical). O xamanismo amazônico, como já se disse, é a continuação da guerra por outros meios. Isso, porém, nada tem a ver com a violência em si mesma, mas com a comu- nicação - uma comunicação transversal entre incomunicáveis, um confronto de perspectiva onde a posição de humano está em perpétua disputa. Quem é o humano aqui? - essa é sempre a questão que se põe quando um indivíduo confronta um foco alógeno de agência, seja ele um animal ou uma pessoa estranha na floresta, um parente há muito ausente que retoma à aldeia, a imagem de alguém morto que aparece em um sonho. Somos ambos humanos, somos congêneres? Ou somos, eu presa, você predador, ou vice-versa? A humanidade universal dos seres - a humanidade cósmica de fundo que faz de toda espécie de ser um gênero reflexivamente humano - está sujeita ao princípio da complementaridade, isto é, ela se define pela impossibilidade de que duas espécies diferentes, necessariamente humanas para si mesmas, não possam jamais sê-lo simultaneamente, isto é, uma para a outra. Seria igualmente correto dizer que a guerra é a continuação do xamanismo por outros meios; na Amazônia, o xamanismo é violento tanto quanto a guerra é sobrenatural. Ambos guardam uma referência importante à caça enquanto modelo prático (modelo, não matriz causal) de agonismo perspectiva, configurando 96 c, um etograma trans-humano imantado por uma atração metafísica pelo perigo" e pela convicção profunda de que toda atividade vital é uma forma de expansão predatória. Viver, como disse o caboclo Tatarana, é muito perigoso." Nos termos do contraste lévi-straussiano, o xamanismo está localizado do lado do sacrifício. É certo que a atividade xamânica consiste no estabelecimento de correlações ou traduções entre os mundos respectivos de cada espécie natural, com a busca de homologias e equivalências ativas entre os diferentes pontos de vista em confronto." Mas o xarnã ele próprio é um "relator" real, não um "correlator" formal: é preciso que ele passe de um ponto de vista a outro, que se transforme em animal para que possa transformar o animal em humano e reciprocamente. O xamã utiliza - substancia e encama, relaciona e relata - as diferenças de potencial inerentes às divergências de perspectivas que cons- tituem o cosmos: seu poder, e os limites de seu poder, derivam dessas diferenças. E é aqui qúe podemos começar a extrair um rendimento significativo da teoria maussiana. Imagine-se, então, o esquema sacrificial como constituindo uma estrutura mediativa saturada ou completa, conectando a polaridade entre o sacrificante e o destinatário pela dupla ínterrnedíação do sacrificador e da vítima." Imaginem-se, então, as duas figuras "sacrificiais" amazônicas, o canibalismo ritual e o xamanismo, como reduções ou dege- nerações do esquema maussiano, no mesmo sentido em que Lévi-Strauss dizia que a troca restrita (entre dois) é um caso mate- maticamente degenerado da troca generalizada (entre três). Uma característica distintiva do xamanismo (amazônico, pelo menos) é que o xarnã é ao mesmo tempo o oficiante e o veículo do sacrifício. É nele que se realiza o "déficit de contigüidade" - o vácuo criado pela separação entre corpo e alma, por exemplo; a externalízação subtrativa de partes da pessoa - capaz de fazer passar de modo não-destrutivo o fluxo semiótico entre humanos e não-humanos. É o próprio xamã quem atravessa para o outro lado do espelho; ele não manda delegados ou representantes sob a forma de vítimas. Ele é a própria vítima: um morto ante- cipado, talo xarnã dos Araweté que, em suas viagens ao céu, é interpelado pelas divindades canibais desse povo como "nossa futura comida" - a mesma expressão com que, 500 anos atrás, os Tupinambá chamavam jocosamente seus cativos de guerra. 97

ll.'I'- ! / , 1'fi. : I~~~; R.. C. ~ &: ~Lo I VII · teriomórfico ou dendromórfico, o "outro" do xamanismo vertical \\ tende a assumir as feições antropomórficas do Ancestral

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"\~C6..' 1'fi. : <SJUGiRO'lJ R.. C. ~ &:tY\ b'l(Ã~~fOo''1'''''. ~Lo I~~~; I

VII

\

O perspectivismo é uma convenção interpretativa básica dapráxis indígena, mas ele vem ao primeiro plano no contexto do

I xamanismo. Este último depende essencialmente da capacidademanifestada por certos indivíduos (humanos e não-humanos)de adotar a perspectiva de corporalidades alo-específicas. Sendocapazes de ver as outras espécies como estas se vêem - comohumanas -, os xamãs de cada espécie desempenham o papelde diplomatas cosmopolíticos, operando em uma arena onde sedefrontam os diferentes "interesses" socionaturais.

Nesse sentido, a função do xarnã amazônico não difereessencialmente da função do guerreiro. Ambos são comutadoresou condutores de perspectivas; o segundo opera na zona inter-humana ou intersocietária, o primeiro na zona interespecífica.Essas zonas se superpõem intensivamente, mais que se dispõemextensivamente em relação de adjacência (horizontal) ou de

- englobamento (vertical). O xamanismo amazônico, como já sedisse, é a continuação da guerra por outros meios. Isso, porém,nada tem a ver com a violência em si mesma, mas com a comu-nicação - uma comunicação transversal entre incomunicáveis,um confronto de perspectiva onde a posição de humano estáem perpétua disputa. Quem é o humano aqui? - essa é semprea questão que se põe quando um indivíduo confronta um focoalógeno de agência, seja ele um animal ou uma pessoa estranhana floresta, um parente há muito ausente que retoma à aldeia,a imagem de alguém morto que aparece em um sonho. Somosambos humanos, somos congêneres? Ou somos, eu presa, vocêpredador, ou vice-versa? A humanidade universal dos seres - ahumanidade cósmica de fundo que faz de toda espécie de serum gênero reflexivamente humano - está sujeita ao princípio dacomplementaridade, isto é, ela se define pela impossibilidade deque duas espécies diferentes, necessariamente humanas para simesmas, não possam jamais sê-lo simultaneamente, isto é, umapara a outra.

Seria igualmente correto dizer que a guerra é a continuaçãodo xamanismo por outros meios; na Amazônia, o xamanismo éviolento tanto quanto a guerra é sobrenatural. Ambos guardamuma referência importante à caça enquanto modelo prático(modelo, não matriz causal) de agonismo perspectiva, configurando

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c ,

um etograma trans-humano imantado por uma atração metafísicapelo perigo" e pela convicção profunda de que toda atividadevital é uma forma de expansão predatória. Viver, como disse ocaboclo Tatarana, é muito perigoso."

Nos termos do contraste lévi-straussiano, o xamanismo estálocalizado do lado do sacrifício. É certo que a atividade xamânicaconsiste no estabelecimento de correlações ou traduções entreos mundos respectivos de cada espécie natural, com a busca dehomologias e equivalências ativas entre os diferentes pontos devista em confronto." Mas o xarnã ele próprio é um "relator" real,não um "correlator" formal: é preciso que ele passe de um pontode vista a outro, que se transforme em animal para que possatransformar o animal em humano e reciprocamente. O xamãutiliza - substancia e encama, relaciona e relata - as diferençasde potencial inerentes às divergências de perspectivas que cons-tituem o cosmos: seu poder, e os limites de seu poder, derivamdessas diferenças.

E é aqui qúe podemos começar a extrair um rendimentosignificativo da teoria maussiana. Imagine-se, então, o esquemasacrificial como constituindo uma estrutura mediativa saturadaou completa, conectando a polaridade entre o sacrificante e odestinatário pela dupla ínterrnedíação do sacrificador e da vítima."Imaginem-se, então, as duas figuras "sacrificiais" amazônicas,o canibalismo ritual e o xamanismo, como reduções ou dege-nerações do esquema maussiano, no mesmo sentido em queLévi-Strauss dizia que a troca restrita (entre dois) é um caso mate-maticamente degenerado da troca generalizada (entre três).

Uma característica distintiva do xamanismo (amazônico, pelomenos) é que o xarnã é ao mesmo tempo o oficiante e o veículodo sacrifício. É nele que se realiza o "déficit de contigüidade" - ovácuo criado pela separação entre corpo e alma, por exemplo;a externalízação subtrativa de partes da pessoa - capaz de fazerpassar de modo não-destrutivo o fluxo semiótico entre humanose não-humanos. É o próprio xamã quem atravessa para o outrolado do espelho; ele não manda delegados ou representantessob a forma de vítimas. Ele é a própria vítima: um morto ante-cipado, talo xarnã dos Araweté que, em suas viagens ao céu, éinterpelado pelas divindades canibais desse povo como "nossafutura comida" - a mesma expressão com que, 500 anos atrás,os Tupinambá chamavam jocosamente seus cativos de guerra.

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E, assim, do xamanismo chegamos de volta ao canibalismo,redução ainda mais dramática do esquema sacrificial, ondenão só o sacrificador-executor se identifica com a vítima (luto,morte simbólica, interdito de manducação do inimigo), comoo sacrificante, isto é, o grupo dos devoradores, coincide como destinatário do sacrifício. Ao mesmo tempo, em uma torçãocaracterística, o esquema se desdobra, e o grupo de onde provémo inimigo, obrigado à vingança ritual, torna-se, por um lado, umaespécie de co-sacrificante, aquele que "oferece" a vítima, e, poroutro lado, define-se como um destinatário futuro, o titular davingança guerreira que fatalmente exercerá contra o grupo dosdevoradores atuais.

Mas voltemos ao xamanismo. Parece-me que estamos crucial-mente no umbral de um outro regime sociocósmico, quando oxamã começa a se tornar o sacrificador de outrem: quando passa,por exemplo, a ser o executor de vítimas humanas, o adminis-trador de sacrifícios alheios, o sancionador de movimentos queele não executa, apenas supervisiona. Essa me parece ser uma

,--diferença diacrítica entre ~s figuras do xamã e do sacer~º!e.Não se trata, decerto, de uma oposição absoluta. O que se

designa em geral como "xamanismo", na Amazônia indígena,abriga uma diferença interna importante, aquela a que aludi noinício da palestra, proposta por S. Hugh-Iones, entre um xama-nismo "horizontal" e um "vertical". Tal contraste é especialmentesaliente em povos como os Bororo do Brasil central ou os Tukanoe Aruak do Rio Negro, onde há duas categorias bem distintasde mediadores místicos. Os xamãs que Hugh-Iones classifica de"horizontais" são especialistas cujos poderes derivam da inspi-ração e do carisma, e cuja atuação, voltada para o exterior dosocius, não está isenta de agressividade e de ambigüidade moral;seus interlocutores por excelência são os espíritos animais causa-dores de doenças (as quais são freqüentemente concebidas comocasos de vingança canibal por parte dos animais consumidos). Acategoria dos xamãs "verticais", por sua vez, compreende o quese costuma chamar de mestres cerimoniais, guardiães pacíficos deum conhecimento esotérico precioso, especialistas na condução,a bom termo, dos processos de reprodução das relações internasao grupo (iniciação, nominação, funerais).

/' O xamã que qualifiquei de "sacrificador-vitima" é o xamãhorizontal. Esse especialista, observa Hugh-Iones, é típico dassociedades amazônicas de estilo mais igualitário e belicoso; o

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xamã vertical, presente em sociedades mais hierarquizadas epacíficas, aproximar-se-ia da figura do sacerdote. O contraste deHugh-jones é feito em termos de tipos ideais. Não há sociedadeamazônica onde existam apenas xamãs verticais; e ali onde sóhá um tipo reconhecido de xamã, este tende a acumular asfunções dos dois xamãs dos Bororo ou Tukano. Mas nada dissotira da distinção entre os xamanismos "horizontal" e "vertical"sua pertinência analítica, a meu ver completamente justificadapela etnografia.

Essa divisão do trabalho de mediação cosmopolítica evocaas duplicações ou desdobramentos mediativos listados porLévi-Strauss em "A estrutura dos mitos", com a série: "messias>Dióscuros > trickster > ser bissexuado > germanos cruzados >casal ... > tríade''." E com efeito, o messianismo é um elementocentral do problema que Hugh-Iones equaciona a partir dadistinção dos dois xamãs. Os numerosos movimentos proféticosmilenaristas ocorridos na região do noroeste amazônico a partirde meados do século XIXforam todos, sublinha o autor, coman-dados por xarnãs de tipo "horizontal". Isso me leva a sugerirque a distinção a fazer não seria tanto entre dois tipos de xamã,o xamã "propriamente dito" (horizontal) e o "xamã-sacerdote"(vertical), mas enQe-..9uas trajetórias possíveis da função xamâ-nica: a transformação sâcerdota1~e- a- transformação profética.O profeiismo seria, nesse caso, o resultado de um processo de"aquecimento" histórico do xamanismo, ao passo que a emer-gência de uma função sacerdotal bem definida seria o resultadode seu "resfriamento" político, isto é, sua subsunção pelo podersocial. Imagine-se, alternativamente, a emergência da figura doprofeta como um estado do modelo sacrificial onde o xamã, emlugar de encarnar o sacrificador e a vítima, passa a encarnar osacrificador e a divindade, ao passo que o grupo passa a encarnarao mesmo tempo a função de sacrificante e de vítima.49

Outro modo de formular a hipótese seria dizer que a "transfor-mação sacerdotal", sua diferenciação a partir da função xamânicade base, está associada a um processo de constituição de umainterioridade social, isto é, ao surgimento de valores, como aancestralidade, que enfatizam a continuidade diacrônica entren'-=ai eTrrort~ e, co~ a h~!:9...uia, que enfatizam as desconti-nuidades sincrônicas entre os vivos. Com efeito, se o "outro"arquetípico com quem se confronta o xarnã horizontal é

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teriomórfico ou dendromórfico, o "outro" do xamanismo vertical \\tende a assumir as feições antropomórficas do Ancestral. I

O xamanismo horizontal supõe uma economia cosmológicaem que a diferença entre humanos vivos e humanos mortos épelo menos tão grande quanto a semelhança entre humanosmortos e não-humanos vivos. Não há animais no mundo dosmortos, observou Beth Conklin (2001) sobre a escatologia dosWari da Amazônia ocidental. E não os há porque os mortos sãoeles mesmos animais - são os animais mesmos, em sua versão-caça: são porcos selvagens, a epítome da carne e da comida;outros mortos, de outros povos, serão jaguares, o outro póloda animalidade, a versão-caçador ou canibal." Assim como osanimais eram humanos no começo de tudo, os humanos serãoanimais no fim de cada um: a escatologia da (des)individuaçãoreencontra a mitologia da (pré- )especiação. Os espectros dosmortos estão, na ordem da ontogênese, como os animais na ordemda filogênese: "no começo, todos os animais eram gente ... ". Nãoé de surpreender, portanto, que, enquanto imagens definidaspor sua disjunção relativamente a um corpo humano, os mortossejam atraídos pelos corpos animais; é por isso que, na Amazônia,morrer é transformar-se em um animal: se as almas dos animaissão concebidas como tendo uma forma corporal humana prístina,é lógico que as almas dos humanos sejam concebidas como tendoum corpo animal póstumo, ou como entrando em um corpoanimal que será eventualmente morto e comido pelos viventes.

A emergência do xamanismo vertical me parece crucialmenteassociada à separação entre essas duas posições de alteridade,os mortos e os animais. A partir de algum momento - cujadeterminação confesso me escapar por completo; mas semprese pode remetê-Ia a alguma mutação nas "condições materiaisde existência" -, os mortos humanos passam a ser vistos maiscomo humanos que como mortos, o que tem por conseqüênciaa possibilidade simétrica de uma "objetivação" mais acabadados não-humanos. Em suma, a separação entre humanos e não-humanos, a projeção de uma figura genérica animal como Outroda humanidade, é função da prévia separação entre mortos eanimais, com a projeção de uma figura genérica da humanidadena forma dó ancestral. O fato escatológico de base, a sab~<que os mortos viravam animais, era algo que ao mesmo tempohumanizava os animais e alterava os mortos; com o divórcio entre

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tmortos e animais, os primeiros permanecem humanos, ou mesmopassam a ser sobre-humanos, e os segundos começam a deixarde sê-Ia, derivando para a sub ou anti-humanidade.

Para resumir os vários aspectos do contraste examinadospor Hugh-]ones, podemos dizer que o xamanismo horizontalé exoprático, o vertical, endoprático. Minha tese é que, naAmazônia indígena, a exopraxis é anterior - lógica, cronológica ecosmologicamente - à endopraxis, e que ela permanece sempreoperativa, mesmo naquelas formações de tipo mais hierárquicocomo as do noroeste amazônico, ao modo de um resíduo quebloqueia a constituição de chefaturas ou Estados dotados deuma interioridade metafísica acabada. Os mortos nunca deixamde ser parcialmente animais, pois todo morto gera um espectro,na medida em que tem um corpo; e nessa medida, se alguémpode nascer aristocrata, ninguém morre imediatamente ancestral;não há puros ancestrais exceto no tempo pré-cosmológico e pré-corporal do mito - mas ali humanos e animais se comunicavamdiretamente. De outro lado, os animais, plantas e outras categoriasamazônicas de seres jamais deixam de ser inteiramente humanos;sua transformação pós-mítica em animais etc. contra-efetua umahumanidade originária, fundamento da dialogia xamanística comos seus representantes atuais. Todo morto continua um poucobicho; todo bicho continua um pouco gente. A humanidadepermanece imanente, reabsorvendo uma boa maioria dos focosde transcendência que emergem incessantemente por toda partedo vasto tecido do socius amazônico.

Meu argumento, enfim, é que o xamã horizontal amazônicomarca, em sua onipresença na região, a impossibilidade decoincidência perfeita entre poder político e potência cósmica,dificultando, assim, a elaboração de um sistema sacrificial de tipoclássico. A instituição do sacrifício assinala a captura do xama-nismo pelo Estado. O fim da bricolagem cosmológica do xamã,o começo da engenharia teológica do sacerdote."

A palestra deveria se encerrar aqui. Mas consegui espremer,nos poucos minutos que me restavam (a "cultura do seminário"britânica possui regras estritas), alguns pontos rápidos paraposterior elaboração. A dita elaboração apenas começa, nosparágrafos abaixo.

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VIII

A oposição entre xamanismos de tipo "vertical" e "horizontal"foi algumas vezes associada a um contraste entre transcendênciae ímanêncía." O xamanismo amazônico, como o perspectivismoque lhe serve de pano de fundo, é efetivamente uma práticada imanência. Observo apenas que isso não implica nenhumaigualdade de poderes ou estatutos entre os humanos e os extra-humanos conectados pelo xamanísmo, muito pelo contrário. Mas,tampouco, há hierarquia de pontos de vista entre os seres. O pers-pectivismo amazônico não é interpretável nem como uma escalade perspectivas em relação de inclusão progressiva, conformeuma cadeia de dignidade ontológica," nem muito menos comoprojetando algum "ponto de vista do todo". As diferenças depotencial transformativo entre os seres são a razão de ser doxamanismo, mas nenhum ponto de vista contém nenhum outro demodo unilateràl.Todo ponto de vista é "total"; 'e nenhum pontode vista é equivalente a nenhum outro: o xamanismo horizontal

\ não é, portanto, "horizontal", mas transversal. A relação entrepontos de vista (a relação que é o ponto de vista enquanto multi-plicidade) é de síntese disjuntiva ou exclusão imanente, não deinclusão transcendente. Em suma, o sistema perspectivista estáem "desequilíbrio perpétuo", para recordarmos a expressão queLévi-Strauss (991) aplicou às cosmologias ameríndias.

Mas se é assim, então minha interpretação do xamanismoamazônico (horizontal) como uma redução estrutural do esquemamaussiano mostra-se, no final das contas, inadequada. Todo sacri-fício é "vertical" ou transcendente, e a ausência daquela distinçãoentre sacrificante e vítima que define a função sacerdotal é mortalpara essa transcendência. Isto sugere que o xamanismo escapaà partição que se imaginava exaustiva entre lógica totêmica eprática sacrificial. O xamã não é um sacerdote larvar ou incoativo;o xamanismo é, antes, um profetismo de baixa intensidade - umprofetismo por assim dizer subclínico - que uma religião quase-sacerdotal. As operações xamânicas, se não se deixam reduzira um jogo simbólico de classificações totêmicas, tampouco sãoda mesma espécie que o contínuo fusional perseguido pelasinterserialidades imaginárias do sacrifício. Elas exemplificam umaterceira forma de relação, a comunicação entre termos heterogê-neos que constitui multiplicidades pré-individuais, intensivas ou

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rizomáticas: o sangue-cerveja implicado em todo devir-jaguar,para recordarmos nosso exemplo.

IX

Estamos falando do conceito de devir. Esse conceito provém,como é mais que sabido, da obra de Deleuze, onde aparece desdeos primeiros estudos sobre Bergson e Nietzsche. Mas é no livrinhoassinado com Guattari sobre Kafka, e, sobretudo, no capítulo 10de Mil Platôs.r' que o devir emergirá como uma alternativa explí-cita, longa mente argumentada, à dicotomia estruturalista entre aidentificação sacrificial humano-animal-divindade e a correlaçãototêmica de diferenças socionaturais. Deleuze e Guattari dispõemde través a esta dicotomia o motivo bergsoniano do devir, umtipo de relação irredutível tanto às semelhanças seriais como àscorrespondências estruturais. "Um devir não é uma correspon-dência entre relações. Mas tampouco é uma semelhança, umaimitação, ou, no limite, uma ídentífícação.?" O conceito de devirdesigna uma relação cuja apreensão é algo dificultosa dentro doquadro analítico tradicional do estruturalismo, onde as relaçõestendem a funcionar como objetos lógicos molares e extensivos.Um devir é uma relação molecular e intensiva que opera em umregistro outro que o da relacionalidade combinatória das estru-turas formais; ela opera nas regiões longe do equilíbrio habitadaspelas multiplicidades reais-"

Se as semelhanças seriais são imaginárias e as correlaçõesestruturais, simbólicas, os devires são, então, reais. Nem metáforanem metamorfose; um devir é um movimento que desterritorializaambos os termos da relação que ele estabelece, extraindo-os dasrelações que os definiam para associá-l os através de uma nova"conexão parcial". O verbo devir, neste sentido, não designauma operação predicativa ou uma ação transitiva: estar impli-cado em um devir-jaguar não é a mesma coisa que virar umjaguar. O jaguar "totêrnico" em que um homem se transforma"sacrificialmente" é imaginário: mas a transformação é real. É odevir ele próprio que é felino; o jaguar é um aspecto do verbodevir, não seu "objeto", pois devir é um verbo intransitivo (einfinitivo). E tão logo o homem se torna um jaguar, o jaguar nãoestá mais lá. Como dizem os autores, citando, significativamente,

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