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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO LÍNGUA E PERCEPÇÃO: O Processamento dos clíticos com referência ao interlocutor no Português Brasileiro Thiago Laurentino de Oliveira 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

LÍNGUA E PERCEPÇÃO:

O Processamento dos clíticos com referência ao interlocutor

no Português Brasileiro

Thiago Laurentino de Oliveira

2018

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LÍNGUA E PERCEPÇÃO:

O Processamento dos clíticos com referência ao interlocutor

no Português Brasileiro

Thiago Laurentino de Oliveira

Tese de Doutorado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Letras

Vernáculas da Universidade Federal do Rio

de Janeiro, como requisito para a obtenção

do Título de Doutor em Letras Vernáculas

(Língua Portuguesa).

Orientadora: Profª. Dr.ª Célia Regina dos

Santos Lopes

Co-orientador: Prof. Dr. Eduardo Kenedy

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2018

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LÍNGUA E PERCEPÇÃO:

O Processamento dos clíticos com referência ao interlocutor

no Português Brasileiro

Thiago Laurentino de Oliveira

Orientadora: Célia Regina do Santos Lopes

Co-orientador: Eduardo Kenedy

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos

requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras

Vernáculas (Língua Portuguesa).

Examinada por:

_____________________________________________________________________

Orientadora, Profa. Dra. Célia Regina dos Santos Lopes (UFRJ)

___________________________________________________________________________ Prof. Dr. Eduardo Kenedy (co-orientador – UFF)

___________________________________________________________________________ Profa. Dra. Livia Oushiro (UNICAMP)

___________________________________________________________________________ Profa. Dra. Márcia Cristina de Brito Rumeu (UFMG)

___________________________________________________________________________ Prof. Dr. Marcus Antonio Rezende Maia (UFRJ)

___________________________________________________________________________

Profa. Dra. Silvia Rodrigues Vieira (UFRJ) Suplentes:

___________________________________________________________________________ Profa. Dra. Juliana Barbosa de Segadas Vianna (UFRRJ)

___________________________________________________________________________

Profa. Dra. Deise Cristina de Moraes Pinto (UFRJ)

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2018

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Oliveira, Thiago Laurentino de.

Língua e Percepção: O Processamento dos clíticos com referência ao

interlocutor no Português Brasileiro / Thiago Laurentino de Oliveira. – Rio

de Janeiro: UFRJ/FL, 2018.

Orientadora: Célia Regina dos Santos Lopes

Co-orientador: Eduardo Kenedy

Tese (doutorado) – UFRJ / Faculdade de Letras / Programa de Pós-

Graduação em Letras Vernáculas, 2018.

Referências bibliográficas:

1. Clíticos de 2ª pessoa. 2. Processamento linguístico. 3. Linguística

Experimental.

I. Lopes, Célia Regina dos Santos. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,

Pós-graduação em Letras Vernáculas. III. Língua e Percepção: O

Processamento dos clíticos com referência ao interlocutor no Português

Brasileiro.

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OLIVEIRA, Thiago Laurentino de. Língua e Percepção: O Processamento dos

clíticos com referência ao interlocutor no Português Brasileiro. Tese de

Doutorado em Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/UFRJ,

2018.

RESUMO

Neste estudo, analisamos as formas pronominais clíticas que atuam ou podem

atuar na referência à 2ª pessoa do singular (2SG) em posição de complemento.

Como objetivo principal, desejamos observar como os falantes do Português

Brasileiro (PB) percebem os itens te, lhe e o/a. Estudos diacrônicos e

sincrônicos, a partir da análise de corpora, revelam que, mesmo após a

inserção da forma você no sistema pronominal do PB, o clítico te (vinculado

ao paradigma do pronome tu) se mantém como uma estratégia frequente.

Sendo assim, investigamos, através de uma abordagem experimental, o

processamento dos clíticos de 2SG dentro de certos contextos linguísticos.

Para tanto, construímos três experimentos que fossem capazes de focalizar

diferentes aspectos relativos ao processamento da informação de 2SG.

Assumimos como hipótese central que a alta frequência de uso do clítico te ao

longo do tempo desencadeou um processo de gramaticalização desse item no

PB. Especificamente, a forma te teria se convertido em um afixo flexional

marcador da informação de 2SG. A afixação de te explicaria, em termos

cognitivos, a alta eficácia desse item para acessar a informação de 2SG a partir

de um baixo custo de processamento. Ancoramos essa explicação nos

postulados teóricos que discutem os processos de gramaticalização por um

viés funcional (HOPPER, 1991; HOPPER; TRAUGOTT, 2003; HEINE; KUTEVA,

2007; BYBEE, 2016[2010]). Os dados obtidos através dos testes vão ao

encontro da hipótese mencionada e mostram que a abordagem experimental

constitui um método profícuo para a análise da representação da 2SG,

fornecendo uma compreensão mais completa do tema ao possibilitar uma

correlação entre dados de uso e dados de percepção.

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OLIVEIRA, Thiago Laurentino de. Língua e Percepção: O Processamento dos

clíticos com referência ao interlocutor no Português Brasileiro. Tese de

Doutorado em Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/UFRJ,

2018.

ABSTRACT

In this study, I analyze the clitic pronominal forms that act or can act in the

reference to the second person singular (2SG) in the complement position. As main objective, I wish to observe how the speakers of Brazilian Portuguese (BP) perceive the items te, lhe and o/a. From the analysis of corpora,

diachronic and synchronic studies show that even after the insertion of the você form in the pronominal system of BP, the te clitic (linked to the tu

pronoun paradigm) remains as a productive strategy. Thus, I investigate, through an experimental approach, how the speakers process the clitics of 2SG within certain linguistic contexts. To do so, I constructed three

experiments that were able to focus on several aspects related to the processing of 2SG information. I assume as central hypothesis that high

frequency of use of te-clitic over time triggered a process of grammaticalization of this item in BP. Specifically, te-clitic would have become an inflectional affix,

which marks 2SG information. This process would explain, in cognitive terms, the high efficiency of te to access the information of 2SG from a low processing cost. I anchor this explanation in the theoretical postulates that discuss the

processes of grammaticalization by a functional view (HOPPER, 1991; HOPPER; TRAUGOTT, 2003; HEINE; KUTEVA, 2007; BYBEE, 2016[2010]).

The data obtained through the tests meet the mentioned hypotheses and show that experimental approach constitutes a useful method for the analysis of the representation of the 2SG, providing a more complete understanding of the

subject by allowing a correlation between use data and perception data.

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Esta pesquisa foi integralmente financiada por uma bolsa do CNPq.

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“(...) em nossos raciocínios acerca das questões de fato, há todos os graus imagináveis de certeza (...). Um homem sábio, portanto, torna sua crença proporcional à evidência”.

David Hume, An Enquiry concerning Human

Understanding (1748)

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Dedico este trabalho a todas as pessoas

voluntárias que, gentilmente, me cederam preciosos minutos de suas rotinas para

participarem dos experimentos. Sem a contribuição de vocês, essa pesquisa não existiria.

Aos meus avós, ontem, hoje e sempre!

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AGRADECIMENTOS

À querida amiga, professora e orientadora Célia Lopes, pelos anos de

caminhada na vida acadêmica. Obrigado pela atenção, zelo e respeito com que

sempre me orientou. Obrigado por apostar tão alto em mim e me fazer

acreditar que era possível.

Ao professor e amigo Eduardo Kenedy, por ter aceitado o convite para

ser meu co-orientador. Nossos encontros e conversas foram extremamente

valiosos para a realização deste trabalho.

Aos professores Marcus Maia e Livia Oushiro, por participarem do

exame de qualificação com valiosas críticas e sugestões e contribuírem

diretamente para a realização desta tese. À Professora Livia, obrigado por

pacientemente me orientar nas questões estatísticas, sobretudo no uso da

plataforma R. Ao professor Marcus, obrigado por gentilmente abrir as portas

do LAPEX e me auxiliar na construção do experimento com o rastreador

ocular. Agradeço ainda o aceite de ambos para integrar a banca da defesa.

Às professoras Márcia Rumeu, Silvia Rodrigues, Juliana Segadas e

Deise Moraes, agradeço por também aceitarem o convite para a banca da

defesa.

Aos professores dos Departamentos de Letras Vernáculas e de

Linguística e Filologia da UFRJ, pelos ensinamentos, discussões e debates.

Em 10 anos de casa, a atuação de vocês foi decisiva para o meu

amadurecimento profissional e humano.

Aos professores de outras instituições universitárias, obrigado por,

durante o doutorado, me receberem de portas abertas e fazerem considerações

pertinentes e importantes acerca da minha pesquisa.

Aos peregrinos da F-316, pela injeção de ânimo e alegria contagiante.

Agradeço a cada um que me acompanhou nessa trajetória.

Às minhas “irmãs acadêmicas” Bruna Brasil, Dailane Guedes e Thaíssa

Frota, pela amizade sincera que vai além dos muros da Faculdade de Letras.

À minha família, pelo apoio e preocupação de sempre. Obrigado pela fé,

confiança e torcida. Conseguimos mais uma vez!

Ao Alerson Godoy, pelo carinho e paciência, mesmo nas horas em que

eu estive absurdamente estressado e rabugento. Dividir o mesmo teto com um

doutorando não é para qualquer um!

Aos meus amigos, por sempre acreditarem no meu potencial e estarem

sempre me incentivando a continuar.

Ao CNPq, pelo auxílio financeiro durante os quatro anos de doutorado.

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Sumário

1 INTRODUZINDO QUESTÕES ................................................................................................. 13

2 PANORAMA DOS ESTUDOS SOBRE OS CLÍTICOS DE 2ª PESSOA NO

PORTUGUÊS BRASILEIRO ......................................................................................................... 23

2.1 A representação da 2SG em posição de complemento: dados, evidências

e resultados .................................................................................................................................. 23

2.1.1 Estudos diacrônicos ..................................................................................................... 26

2.1.2 Estudos sincrônicos ...................................................................................................... 46

2.2 A preservação do clítico te: algumas hipóteses ................................................... 67

2.2.1 Motivações sociopragmáticas .................................................................................... 67

2.2.2 Motivações morfossintáticas ...................................................................................... 71

2.2.3 Motivações cognitivo-funcionais ................................................................................ 76

2.3 Conclusão ............................................................................................................................. 79

3 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E METODOLOGIA ........................................................... 81

3.1 Gramaticalização ............................................................................................................... 81

3.1.1 Princípios, parâmetros e mecanismos de gramaticalização ............................. 83

3.1.2 A trajetória clítico > afixo ............................................................................................ 93

3.1.3 Gramaticalização de pronomes pessoais ............................................................... 99

3.2 Gramaticalização e Processamento......................................................................... 106

3.3 Metodologia experimental em Linguística ........................................................... 112

3.3.1 Metodologias em linguística ..................................................................................... 113

3.3.2 A realidade psicológica dos fenômenos gramaticais ........................................ 118

3.3.3 Protocolo da abordagem experimental .................................................................. 122

3.4 Conclusão do capítulo .................................................................................................. 131

4 EXPERIMENTO 1: JULGAMENTO DE CENAS LEGENDADAS ............................... 133

4.1 Desenho do experimento ............................................................................................. 133

4.2 Hipóteses e previsões .................................................................................................... 138

4.3 Variáveis e condições .................................................................................................... 140

4.4 Participantes ..................................................................................................................... 144

4.5 Materiais ............................................................................................................................. 144

4.6 Procedimentos .................................................................................................................. 149

4.7 Resultados .......................................................................................................................... 150

4.8 Discussão ............................................................................................................................ 162

4.9 Conclusão do capítulo ................................................................................................... 164

5 EXPERIMENTO 2: LEITURA AUTOMONITORADA ..................................................... 166

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5.1 Desenho do experimento ............................................................................................. 166

5.2 Hipóteses e previsões .................................................................................................... 172

5.3 Variáveis e condições .................................................................................................... 174

5.4 Participantes ..................................................................................................................... 176

5.5 Materiais ............................................................................................................................. 176

5.6 Procedimentos .................................................................................................................. 180

5.7 Resultados .......................................................................................................................... 182

5.7.1 Respostas às perguntas interpretativas ............................................................... 183

5.7.2 Médias de tempo de leitura das sentenças com o clítico ................................. 185

5.7.3 Médias de tempo de leitura das perguntas interpretativas ............................ 188

5.8. Discussão ........................................................................................................................... 191

5.9 Conclusão do capítulo ................................................................................................... 196

6 EXPERIMENTO 3: LEITURA DE FRASES COM RASTREAMENTO OCULAR ... 199

6.1 Desenho do experimento ............................................................................................. 199

6.2 Hipóteses e previsões .................................................................................................... 208

6.3 Variáveis e condições .................................................................................................... 209

6.4 Participantes ..................................................................................................................... 212

6.5 Materiais ............................................................................................................................. 212

6.6 Procedimentos .................................................................................................................. 215

6.7 Resultados .......................................................................................................................... 218

6.7.1 Respostas às perguntas interpretativas ............................................................... 218

6.7.2 Médias de duração dos tempos de fixação do olhar ......................................... 219

6.7.3 O número de fixações do olhar ................................................................................ 223

6.8 Discussão ............................................................................................................................ 227

6.9 Conclusão do capítulo ................................................................................................... 231

7 CONCLUSÕES ............................................................................................................................ 233

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................................ 241

ANEXOS ........................................................................................................................................... 251

I. Diálogos construídos para as legendas das cenas experimentais

(Experimento 1): ...................................................................................................................... 251

II. Frases experimentais utilizadas para os Experimentos 2 e 3: ...................... 255

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1 INTRODUZINDO QUESTÕES

Na presente tese, investigamos, a partir de uma perspectiva

experimental, as formas pronominais átonas que atuam ou podem atuar na

referência à 2ª pessoa do singular (2SG) na posição de complemento verbal.

Especificamente, analisamos os clíticos pronominais te, lhe e o/a,

relacionados a verbos transitivos que selecionam argumentos acusativos (p.

ex., ver, esperar, amar) ou dativos (p. ex., dar, pedir, enviar). Nosso objetivo

central é observar, do ponto de vista da compreensão linguística, como os

falantes do português brasileiro (doravante, PB) processam a informação de

2SG em enunciados como os exemplificados em (01):

(01)

a. A Maria disse que te encontrou ontem no mercado.

b. A Maria disse que lhe encontrou ontem no mercado.

c. A Maria disse que o/a encontrou ontem no mercado.

A possibilidade de que essas três formas clíticas atuem como referentes

do interlocutor é fruto de um extenso e complexo processo de mudança que o

quadro pronominal do PB vem sofrendo ao longo do tempo, sobretudo desde

a emergência e posterior difusão da forma você (< Vossa Mercê). Para que se

tornem compreensíveis os propósitos gerais desta tese, urge que façamos uma

breve, porém necessária, retrospectiva histórica de alguns fatos relativos à

origem dessas formas clíticas no sistema de referência à 2SG do português,

principiando do latim.

Faria (1958), em sua Gramática Superior da Língua Latina, descreve que,

na língua latina, os pronomes pessoais apresentavam flexões morfológicas que

serviam para marcar o caso (nominativo, acusativo, dativo etc.) que a forma

recebia na oração. Desse modo, a forma Tū, que indicava em latim a referência

ao interlocutor (2SG), flexionava-se em tē, quando funcionava como acusativo

(p. ex., o objeto direto de um verbo), e em tibī, quando funcionava como dativo

(p. ex., o objeto indireto de um verbo).

Conforme ressalta Faria (1958), os ditos pronomes pessoais “do caso

reto” do português vieram das antigas formas latinas de nominativo (como,

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por ex., tu); já os pronomes pessoais átonos “do caso oblíquo” (me, te, nos, se)

são oriundos das antigas formas acusativas do latim. Das formas dativas

latinas (mihi, tibi, sibi), originaram-se os chamados “pronomes oblíquos

tônicos” (mim, ti, si), que, em português, são obrigatoriamente encabeçados

por uma preposição.

As evidentes correspondências, todavia, podem ofuscar a existência de

diferenças significativas entre os sistemas pronominais latino e português.

Camara Jr. (1985, p. 96) observa que o sistema pronominal do português está

“muito longe do sistema de casos latinos, em que o caso dependia da função

do nome ou do pronome na frase”. Na mesma linha, Williams (1994, p. 148)

afirma que o quadro pronominal do português não deve ser visto como uma

cópia fiel dos pronomes latinos, “já que algumas formas de acusativo são

usadas como dativo e algumas de nominativo e dativo são usadas como objeto

de preposições”.

O clítico te é um bom exemplo do que os referidos autores comentam.

Camara Jr. (1985) e Williams (1994) ressaltam que as formas idênticas de

acusativo e dativo encontradas hoje no português são oriundas de tē, forma

latina flexionada no acusativo: “Me, te, se (...) são reflexos do acusativo-

ablativo mē, tē, sē. Mas em português os clíticos adverbais indicam o objeto

direto ou indireto, isto é, equivalem a um acusativo-dativo (...)” (CAMARA JR,

1985, p. 97); “Essas formas eram do acusativo em latim clássico, mas vieram

a ser usadas como dativo e acusativo em português” (WILLIAMS, 1994, p.

154).

Apesar das alterações destacadas, sabemos que o português herdou do

latim a distinção tu (nominativo-sujeito) e te (acusativo/dativo-objeto). Esse

resquício da flexão casual latina até hoje se mantém e, durante uma boa parte

da história da língua, o emprego te podia ser diretamente associado ao

paradigma de tu, analisado como uma flexão dessa forma.

O pronome tu, por sua vez, sendo uma estratégia de referência ao

interlocutor, tinha uso restrito, em termos pragmáticos, ao plano da

informalidade/proximidade em latim. No plano da

formalidade/distanciamento, a forma pronominal empregada era vos (vós).

Sendo assim, a língua latina deixa de herança ao português e às demais

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línguas românicas dos primeiros séculos (XII, XIII e XIV) um sistema de

tratamento de 2SG baseado na oposição entre forma de proximidade (T) e

forma de distanciamento (V), consoante Brown e Gilman (1960).

Em fins do período medieval, porém, esse sistema de referência ao

interlocutor viria a se complexificar, principalmente após a emergência de

construções nominais no plano da formalidade/distanciamento (cf. FARACO,

1996). Dentre elas, destacamos Vossa Mercê, originalmente um sintagma

nominal, marcado como 3SG, que é reinterpretado como uma forma de

tratamento de 2SG (cf. MARCOTULIO, 2014). Embora tenha surgido como

uma estratégia de formalidade/distanciamento (V), Vossa Mercê passa,

durante os séculos XV e XVI, por um acelerado processo de desbotamento

semântico, que influenciou diretamente a extensão de uso dessa forma.

A expansão no uso de Vossa Mercê desencadeou um acelerado desgaste

fonético, de modo que, em textos remanescentes a partir do século XVII, já são

registradas ocorrências da forma gramaticalizada você (cf. FARACO, 1996;

RUMEU, 2013). Pragmaticamente, contudo, você atuava como uma estratégia

polifuncional, que preservava ainda alguns traços de

formalidade/distanciamento (V). Essa forma passou a ocupar isoladamente o

plano da formalidade em detrimento de vós, que entrou em desuso como forma

arcaizante por volta do século XVIII (cf. CINTRA, 1972; FARACO, 1996).

Durante as modificações ocorridas no plano da formalidade, a forma tu

permaneceu como estratégia de referência a 2SG no plano da

informalidade/proximidade.

No português brasileiro, em particular, a partir das primeiras décadas

do século XX, outras mudanças afetaram o quadro pronominal de 2SG. Como

alguns estudos têm demonstrado (cf. MACHADO, 2011) a forma você sofreu

um processo de gramaticalização mais acentuado no Brasil, em confronto com

o que se pode verificar em Portugal. Como consequência disso, há um

deslocamento desse pronome do plano da formalidade/distanciamento para o

plano da informalidade/proximidade no PB (cf. RUMEU, 2013). É importante

destacar, contudo, que a “migração” de você do eixo (V) para o eixo (T) não

levou ao total desaparecimento do pronome tu; em vez disso, essa mudança

desencadeou a coexistência entre as formas, que envolve diferentes aspectos

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16

geográficos (uma vez que existem localidades em que uma das formas

prevalece ou é exclusiva), sociolinguísticos e pragmáticos.

Devido às alterações linguísticas sinteticamente descritas acima, as

formas clíticas lhe e o/a passaram a poder referir também a 2SG,

acompanhando a emergência de você. Conforme dissemos anteriormente, você

deriva de Vossa Mercê, construção de origem nominal e, por essa razão,

formalmente marcada como 3SG. Embora tenha adquirido semanticamente o

traço de 2SG, a forma gramaticalizada você não perdeu os traços formais da

sua origem nominal, o que faz com que siga o paradigma verbal e pronominal

dos pronomes de 3SG.

Pensando nas demais relações sintáticas que os pronomes pessoais

podem apresentar, teríamos, no português, os seguintes paradigmas de

formas de tratamento envolvendo os pronomes tu e você:

Nominativo

(Sujeito) Acusativo

(Objeto direto) Dativo

(Objeto indireto) Oblíquo

(Compl. prep.)

Tu te te, a/para ti prep. + ti, contigo

Você o/a, você lhe, a/para você Preposição + você

Quadro 1.1 As formas de tratamento tu e você e seus paradigmas.

O quadro anterior ilustra a simetria entre as formas nominativas tu e

você e as demais formas a elas correspondentes em contextos sintáticos de

complementação verbal (isto é, em função acusativa, dativa e oblíqua). De um

lado, vemos a série de pronomes herdados do latim, em que subsistem os

resquícios da flexão casual (te e ti, principalmente, funcionam como alomorfes

de tu). De outro, temos a série de pronomes forjada a partir da emergência de

você, da qual destacamos a presença dos clíticos originalmente de 3SG o/a e

lhe. Ressaltamos, ainda, o fato de que, contrariamente ao pronome tu, a forma

você pode ocorrer nas diferentes funções sintáticas sem sofrer alterações

morfológicas.

Essa simetria é bastante representativa do sistema de tratamento de

fases anteriores do português (entre os séculos XVII e XIX) e ainda o é para o

português europeu. Em relação ao PB, no entanto, embora quadros como esse

ainda possam ser encontrados em gramáticas prescritivas e livros didáticos,

ele reflete muito pouco daquilo que os falantes efetivamente usam na

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17

atualidade. Mesmo que você tenha se expandido no PB, especialmente na

posição de sujeito, em grande parte do território brasileiro (cf. SCHERRE et al,

2015), suplantando em muitos casos o uso de tu, em outros contextos

sintáticos esse avanço de você não ocorreu na mesma medida. Em outras

palavras, as formas do paradigma de tu não desapareceram totalmente e são

produtivas em contextos específicos, sobretudo nas funções acusativa e

dativa. Assim, em diversas variedades do PB a simetria é rompida e cede lugar

para um amálgama entre formas pronominais de ambos os paradigmas. Não

raro, podemos encontrar enunciados como os de (02) no PB:

(02)

a. Você sabe que eu te amo.

b. Você leu a mensagem que eu te enviei?

Nos exemplos, vemos a ocorrência, dentro da mesma frase, da forma

gramaticalizada você, na posição de sujeito, e da forma clítica te – acusativo

em (a) e dativo em (b). Intuitivamente, como falantes do PB, sabemos que esse

tipo de combinação é possível, relativamente comum e não gera qualquer

estigma social sobre aqueles que a utilizam. Pesquisas realizadas nos últimos

anos (OLIVEIRA, 2014; SOUZA, 2014; dentre outras), com base na análise de

corpora diacrônicos e sincrônicos, têm constatado a permanência de te mesmo

após a difusão de você, evidenciando a referida coexistência de formas de

paradigmas distintos. Essa constatação torna-se ainda mais interessante se

restringirmos o nosso olhar para as formas clíticas: diferentes estudiosos têm

sinalizado para o fato de que, dentre os clíticos que estabelecem referência à

2SG, te é o mais frequentemente utilizado frente a lhe e o/a (cf. Capítulo 2).

Diante disso, colocamos a questão central desta pesquisa: por que o

clítico te é a forma mais frequentemente utilizada pelos falantes do PB, mesmo

nas variedades em que a forma você se difundiu fortemente? Dito de outro

modo: por que um clítico pertencente ao paradigma de um pronome em

processo de desaparecimento (na posição de sujeito), como é o caso de tu em

diversos dialetos do PB, é preservado no sistema de tratamento ao lado da

forma inovadora (você), combinando-se produtivamente com esta? E ainda:

por que os clíticos lhe e o/a, que seriam teoricamente as formas favorecidas

pela difusão de você – dado o processo de gramaticalização dessa forma –, não

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18

registram uma produtividade de uso tão expressiva quanto a que se verifica

para te?

Em uma primeira tentativa de responder a esses questionamentos

(todos eles imbricados entre si), afirmamos que existem diferenças

importantes na funcionalidade desses clíticos que, por hipótese, interferem

diretamente na utilização dos mesmos pelos falantes para referir a 2SG. De

uma perspectiva histórica, temos que a forma te é, dentre as três opções, a

única que sempre atuou como uma marca de referência ao interlocutor, visto

que era, no latim, a forma flexionada de tu para o caso acusativo. Durante

todo o processo de gramaticalização Vossa Mercê > você ocorrido na história

do português, ainda no plano da formalidade, o clítico te continuou a ser

amplamente utilizado como única estratégia do plano da intimidade, o que

reforçou a sua funcionalidade de marcar 2SG. Além disso, a neutralização

formal resultante das alterações fonéticas que ocorreram na passagem do

latim ao português (cf. CAMARA Jr., 1985; WILLIANS, 1994) fez com que um

mesmo output fonético atuasse, em português, em duas funções de

complemento verbal: acusativo (objeto direto) e dativo (objeto indireto).

Os clíticos lhe e o/a, em contrapartida, têm uma trajetória relativamente

mais recente no âmbito da representação da 2SG. Sendo estratégias que

originalmente representavam a 3ª pessoa do singular, essas formas

estenderam sua funcionalidade também para a 2ª pessoa em função da

reanálise de Vossa Mercê como uma forma de tratamento (cf. MARCOTULIO,

2015). Além disso, por questões relacionadas às suas origens (cf. CAMARA Jr.,

1985), esses clíticos atuam (ao menos, em boa parte da história do português

e até hoje, na variedade europeia) em posições sintáticas específicas: o/a como

acusativo e lhe como dativo1. Junte-se a isso, o fato de que, conforme apontam

trabalhos como o de Duarte (1986) e Freire (2000; 2005), os clíticos o/a e lhe,

no âmbito da 3SG, estariam em vias de extinção, principalmente na

modalidade falada do PB, o que tem reduzido de maneira relevante a

frequência de uso dessas formas na variedade brasileira.

1 No português brasileiro, sobretudo nos dialetos nordestinos, o clítico lhe tem sua utilização

estendida para a posição acusativa. Sobre isso, comentaremos com maiores detalhes no capítulo 2 desta tese, durante a revisão do tema.

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19

Diante desses aspectos mais gerais e partindo da diacronia para a

sincronia atual, outras questões acerca do tema emergem: (i) Como os falantes

do PB interpretam/processam, em termos cognitivos, a informação gramatical

de 2SG a partir dos clíticos te, lhe e o/a? (ii) As diferenças pragmáticas,

relativas aos planos da formalidade e proximidade, interferem atualmente na

compreensão desses itens do mesmo modo como interferiam no passado? (iii)

Fatores de ordem diatópica interferem na percepção dos falantes do PB? (iv)

Qual é a forma clítica mais eficaz na ativação da referência à 2SG? (v) Seria

possível correlacionar positivamente os índices de frequência de uso dos

clíticos, registrados em análises de corpora, e o esforço cognitivo necessário

para o processamento da informação de 2SG (a forma mais frequente na

produção linguística seria também a forma mais rápida e eficaz de ser

decodificada na compreensão)?

Conjecturamos, para essas perguntas, as seguintes hipóteses, na

mesma ordem: (i) os falantes do PB não interpretam/processam a informação

de 2SG a partir dos clíticos em análise do mesmo modo, visto que existem

diferenças funcionais entre eles que interferem diretamente na compreensão;

(ii) As diferenças pragmáticas interferem, em alguma medida, na compreensão

de o/a e principalmente de lhe, mas não interferem no processamento de te;

(iii) Dentre os três clíticos, apenas lhe seria passível de sofrer interferência do

fator diatópico, visto que constitui uma marca dialetal no PB de algumas

localidades; (iv) a forma te é a marca de representação da referência à 2SG por

excelência, haja vista os aspectos históricos relacionados a ele; (v) no que

tange às formas clíticas de 2SG, há uma forte correlação entre uso e

percepção, de modo que a forma te, largamente utilizada pelos falantes do PB,

é também a estratégia mais eficaz no processamento da informação de 2SG.

Unindo as breves considerações feitas anteriormente, retomamos a

questão central, agora procurando redimensioná-la para o viés da

compreensão linguística: por que o clítico te é, segundo as hipóteses

levantadas nos parágrafos precedentes, a estratégia mais eficaz para o

processamento da informação da 2SG? Por que te, e não lhe ou o/a, não sofre

interferência dos fatores pragmáticos e diatópicos, conforme postulamos

acima? E, em último caso, por que te é a marca de representação da 2SG por

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excelência (na posição de complemento) dentro de um sistema em que a forma

você emergiu e se difundiu? Por que os clíticos que acompanharam o

deslocamento de você para o âmbito da referência ao interlocutor não foram

capazes de “banir” a forma te do sistema de tratamento, como ocorreu com tu

e prep.+ti nas localidades em que você se implementou?

Essas indagações nos conduzem à hipótese central, que será defendida

neste trabalho: a alta produtividade do clítico te frente aos outros clíticos

pronominais, historicamente atestada, desencadeou um processo de

gramaticalização desse item no PB, que o converteu em uma espécie de afixo

flexional, marcador da informação de 2SG. Do ponto de vista do uso, certos

aspectos parecem evidenciar tal processo: a extensão pragmática desse item

na atualidade, visto que te não está mais restrito ao plano da intimidade, e a

sua alta e regular frequência de uso, típica de construções gramaticalizadas,

mesmo nos contextos em que coexiste com você na posição de sujeito.

Acreditamos, todavia, que de um ponto de vista do processamento, a mudança

por que passou essa forma se evidenciará de maneira mais notória.

Com o intuito de capturar diferentes aspectos relacionados com as

questões anteriores e de recolher evidências que demonstrem empiricamente

a pertinência da nossa hipótese, construímos três experimentos linguísticos

de compreensão, aplicados aos falantes do português brasileiro. Para tanto,

adotamos a metodologia da Psicolinguística voltada para a descrição de fatos

gramaticais (KENEDY, 2015). Sendo assim, a presente tese busca estabelecer

uma interface entre a teoria linguística, relacionada à explicação das

diferenças existentes entre os clíticos de 2SG, e a metodologia experimental,

que permitirá testar as hipóteses levantadas a partir do comportamento dos

indivíduos participantes nas tarefas experimentais construídas para a análise

do fenômeno.

Como referencial teórico, seguiremos alguns pressupostos

funcionalistas que discutem a gramaticalização nas línguas naturais,

sobretudo os princípios, parâmetros e mecanismos que a caracterizam e a

descrevem (HOPPER, 1991; HOPPER; TRAUGOTT, 2003; HEINE, 2002, 2003;

HEINE; KUTEVA, 2007; HEINE; SONG, 2011; BYBEE, 2003, 2016 [2010]).

Além desses, recorremos, ainda, à proposta de Hawkins (2004; 2014) que visa

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a relacionar os resultados de pesquisas baseadas em análises de corpus

(dentre elas, as pesquisas em gramaticalização) com os resultados de

pesquisas experimentais, que exploram o processamento de estruturas

linguísticas.

Para cumprir os propósitos gerais desta pesquisa, estruturamos a

presente tese em sete capítulos. Além desta introdução (capítulo 1),

apresentamos, no capítulo 2, a revisão sobre o tema. Nele, discutimos diversos

resultados de pesquisas anteriores, baseadas principalmente em dados de

uso, tanto na perspectiva sincrônica quanto na perspectiva diacrônica. Na

revisão, reunimos estudos que focalizam as regiões sudeste e nordeste do

Brasil, ainda hoje áreas do país com a maior concentração populacional (cf.

LOPES; MARCOTULIO; OLIVEIRA, no prelo). Terminamos esse capítulo

sintetizando as principais explicações que costumam ser dadas acerca da

dinâmica de variação dos clíticos de 2SG no PB, principalmente aquelas que

tentam esclarecer por que o clítico te é preservado no sistema pronominal do

PB.

No Capítulo 3, descrevemos os pressupostos teóricos e as orientações

metodológicas gerais da tese. Destacamos, neste capítulo, os princípios,

parâmetros e mecanismos que regem a gramaticalização de formas

linguísticas, com atenção especial para a extensão pragmática, a

especialização semântica, a decategorização morfossintática e os efeitos da

frequência de uso na mudança linguística. Em seguida, fazemos uma

discussão mais relacionada ao fenômeno de gramaticalização defendido no

trabalho (clítico > afixo), salientando os aspectos que diferenciam, segundo os

estudiosos, a categoria dos clíticos da categoria dos afixos. Comentamos,

ainda, a respeito das particularidades relacionadas à gramaticalização dos

pronomes pessoais, ainda pouco explorada pelos estudiosos, em comparação

com outras categorias linguísticas.

A fim de evidenciar a pertinência de um estudo que aproxime a

gramaticalização da abordagem experimental, apresentamos, também no

capítulo 3, a perspectiva de Hawkins (2014), segundo a qual os estudos de

gramaticalização podem e devem analisar seus fenômenos por um viés

experimental, visto que as estruturas mais frequentes que se

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convencionalizam na língua possuem uma contraparte cognitiva que favorece,

em termos de processamento, a sua gramaticalização. Encerramos o capítulo

3 com a descrição da metodologia experimental adotada. Ressaltamos as

vantagens dessa abordagem, suas limitações e particularidades, bem como

apresentamos o protocolo de pesquisa da metodologia experimental que deve

ser seguido.

Nos Capítulos 4, 5 e 6, descrevemos minuciosamente os experimentos

desenvolvidos para a pesquisa. Apresentamos os objetivos envolvidos em cada

teste, as hipóteses e previsões, as variáveis controladas, o perfil dos

participantes, os materiais criados e os procedimentos adotados em cada um.

Logo em seguida, reportamos os resultados obtidos através dos gráficos e

tabelas que sintetizam o conjunto de medidas capturadas nos testes. Ao final

de cada um desses capítulos, reservamos um espaço para a discussão dos

dados e propomos uma interpretação dos resultados compatível com as

hipóteses assumidas.

Reunimos as principais conclusões da pesquisa no capítulo 7.

Retomamos o tema central da tese, resgatamos as hipóteses de trabalho e as

confrontamos com os resultados encontrados nos experimentos. Ainda nesse

capítulo, sinalizamos as lacunas não preenchidas por este estudo, apontando

para alguns aspectos que precisarão ser investigados por pesquisas futuras.

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23

2 PANORAMA DOS ESTUDOS SOBRE OS CLÍTICOS DE 2ª PESSOA NO

PORTUGUÊS BRASILEIRO

Neste capítulo, apresentamos uma revisão panorâmica dos estudos que

investigaram, direta ou indiretamente, a representação da 2ª pessoa do

singular em posição de complemento, focalizando com maior interesse os

resultados, descrições e hipóteses atinentes às formas clíticas te, lhe e o/a,

para as quais dispensamos atenção especial nesta tese. Contemplamos

trabalhos tanto de natureza sincrônica quanto diacrônica. Os dados extraídos

dessas análises adotam como corpus de análise textos escritos e orais

representativos de diferentes variedades brasileiras. Após a apreciação desses

resultados, revisitamos algumas hipóteses de autores que se propuseram a

explicar a dinâmica dos clíticos de 2SG no PB, particularmente aqueles que

tratam da preservação do clítico te mesmo após a implementação de você.

2.1 A representação da 2SG em posição de complemento: dados,

evidências e resultados

Ao compararmos, em termos quantitativos, a produção de artigos, teses,

dissertações e trabalhos acadêmicos de natureza diversa acerca da

representação da 2SG no PB quanto ao contexto morfossintático, percebemos

um descompasso existente entre os estudos que focalizam a posição de sujeito

(mais numerosos) e aqueles que tratam de outras posições sintáticas da

sentença. Podemos dizer que existe, atualmente, uma descrição bastante

representativa – ao menos em perspectiva sincrônica – para a expressão de 2ª

pessoa na posição de sujeito em território brasileiro. A compilação de dezenas

de estudos sobre o tema feita em Scherre et al. (2015) é bastante ilustrativa

dessa ampla literatura e revela que há, mesmo que em caráter preliminar,

registros de investigações linguísticas sobre a variação/mudança da

expressão de 2SG envolvendo as formas nominativas tu, você e outras

variantes (p. ex., ocê e cê)2.

2 Não exploraremos em detalhes a bibliografia relacionada à posição de sujeito, uma vez que

nosso foco central é a posição de complemento verbal. Para maiores informações, remetemos

os leitores ao trabalho de Scherre et al. (2015), que oferece uma apresentação bastante ampla dos estudos sobre o tema.

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No que tange à representação da 2SG em outras posições sintáticas,

observamos uma quantidade relativamente menor de descrições e análises

realizadas. Dentre os trabalhos disponíveis, boa parte não analisa

especificamente uma posição sintática diferente do sujeito, mas interpreta as

manifestações de 2SG nas posições de objeto, possessivo, imperativo etc. como

desdobramentos do que ocorre na posição de sujeito. Embora sejam

compreensíveis as razões (na maioria das vezes, metodológicas) que levam os

pesquisadores a adotar tal postura, é inevitável reconhecer que, através desse

modelo de análise, muitas informações preciosas acerca do tema deixam de

ser discutidas. Além disso, nem sempre o paradigma de 2SG adotado na

posição de sujeito pelos informantes está em correlação com as formas de 2SG

utilizadas em outras posições sintáticas, conforme relatam alguns estudos

que apresentaremos mais adiante.

Cientes das referidas limitações, elencamos vinte e três trabalhos

produzidos na última década por pesquisadores de diferentes instituições

brasileiras. Ainda que alguns deles não forneçam um conjunto de dados

quantitativamente expressivo, esses estudos fornecem um interessante

retrato do fenômeno em questão, visto que há análises sincrônicas e

diacrônicas, baseadas em dados de fala e de escrita, obtidos a partir de

informantes oriundos das regiões Sudeste e Nordeste do Brasil3. Soma-se a

isso o fato de essas produções serem, quase que exclusivamente, investigações

sociolinguísticas que controlam fatores importantes para o entendimento da

dinâmica dos clíticos de 2SG, tais como grau de escolarização, faixa etária,

período de tempo e tipo de relação/interação. No Quadro 2.1, expomos os

estudos revisitados:

3 O enfoque nas análises produzidas com base em dados das duas regiões brasileiras

mencionadas não é aleatório. Em consonância com Lopes, Marcotulio e Oliveira, no prelo,

acreditamos que “as áreas selecionadas são representativas por concentrarem, no intervalo de mais de um século, a maior parte da população do país”.

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Região Estudos Diacrônicos Estudos Sincrônicos

Sudeste Machado (2011), Rumeu (2013),

Oliveira (2014), Souza (2014),

Cardoso (2017) e Cruz (2017)

Modesto (2006), Camargo Jr. (2007),

Mota (2008), Pimienta (2013) e

Carvalho e Pinto (2014)

Nordeste Almeida e Deus (2011), Moura

(2013), Gomes e Lopes (2014) e

Araújo e Carvalho (2015)

Dantas (2007), Brito (2010), Alves

(2015) e Almeida (2016)

Inter-

regional

Lopes et al., no prelo Herênio (2006), Arruda (2006) e Lessa

(2014)

Quadro 2.1 – Estudos sobre a representação da 2SG na posição de complemento revisitados

Como podemos verificar, a maior parte dos trabalhos publicados é

representativa da região Sudeste (onze estudos, ao todo). A metade desses

estudos, por sua vez, tem como referência a variedade carioca/fluminense. A

região Nordeste conta com oito investigações, representativas dos estados da

Bahia, Ceará, Maranhão, Rio Grande do Norte e Pernambuco. As quatro

produções identificadas como “inter-regionais” consistem em trabalhos que

utilizam como corpus de análise dados provenientes de regiões brasileiras

diferentes.

Quanto ao recorte cronológico, temos certo equilíbrio entre os estudos

elencados: onze análises diacrônicas versus doze sincrônicas. Enquanto as

primeiras se baseiam em corpora de cartas pessoais e/ou peças de teatro, as

últimas utilizam, principalmente, dados obtidos a partir de entrevistas

sociolinguísticas. Ainda a respeito das investigações diacrônicas, todas elas

focalizam o século XIX e/ou o século XX, períodos em que teriam se acentuado

as mudanças no sistema pronominal de 2SG do PB e que desencadearam a

difusão de você na posição de sujeito (cf. LOPES, 2008; MACHADO, 2011;

RUMEU, 2013).

Optamos por agrupar a apresentação dos estudos mencionados em

duas subseções, segundo a perspectiva metodológica adotada (diacrônica ou

sincrônica). Ambas, por sua vez, subdividem-se quanto à região brasileira

analisada (Sudeste, Nordeste ou inter-regional). Priorizamos, nos parágrafos

subsequentes, a apreciação dos resultados (gerais e específicos), sem grandes

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preocupações com as questões mais específicas de cada estudo que,

eventualmente, extrapolam os limites da nossa investigação. Sempre que for

pertinente, apresentaremos as observações e interpretações feitas pelos

autores, a fim de oferecer um entendimento mais preciso e coerente dos dados.

Comecemos pelos trabalhos diacrônicos.

2.1.1 Estudos diacrônicos

- Região Sudeste

São representativos da região Sudeste os estudos de Machado (2011), Rumeu

(2013), Oliveira (2014), Souza (2014), Cardoso (2017) e Cruz (2017). À exceção

de Machado (2011), que analisou peças teatrais, todos os demais trabalhos

adotam como corpus de análise amostras de cartas pessoais. Apresentaremos

os estudos e seus respectivos resultados de acordo com a ordem cronológica

de publicação.

O trabalho de Machado (2011) acerca de peças teatrais brasileiras e

portuguesas analisou o comportamento das formas de tratamento ao

interlocutor e as transformações por que passaram o sistema pronominal de

ambas as variedades no decorrer dos séculos XIX e XX. Embora o foco

principal seja a dinâmica na posição de sujeito, a autora registrou as

ocorrências de 2SG verificadas em diversos contextos morfossintáticos, dentre

eles as posições de complemento verbal. Das vinte e nove peças teatrais

analisadas, quatorze eram representativas do PB e ambientadas no Rio de

Janeiro. Para a posição de complemento, foram obtidos 1052 dados

pronominais, que se dividem tal como apresentamos na Tabela 2.1:

VARIANTE TE TI O/A LHE SE/SI VOCÊ PREP.+VOCÊ VOS TOTAL

Oco. 328 34 127 297 115 21 120 10 1052

% 31% 3% 12% 28% 11% 2% 11% 1%

Tabela 2.1 – Distribuição das formas pronominais de 2SG em posição de complemento

verbal em peças teatrais brasileiras dos séculos XIX e XX

(adaptado de Machado, 2011, p. 152)

Observando os índices gerais da amostra, vemos que a variante clítica

te foi a mais frequente, correspondendo a 328 dados (isto é, 31% das

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ocorrências totais para a posição de complemento verbal). Em segundo lugar,

aparece o clítico lhe, com 297 dados (28% de frequência), um índice bem

próximo de te. Além disso, notamos que as três variantes clíticas de 2SG (te,

lhe e o/a), se somadas, correspondem a cerca de 70% dos dados de

complemento. Ao dividirmos as ocorrências dessas variantes pela diacronia

investigada por Machado (2011), encontramos a distribuição exposta na

Tabela 2.2:

TE LHE O/A TOTAL

XIX/2 180/335

54%

113/335

34%

42/335

12%

335

XX/1 75/246

30%

117/246

47%

54/246

23%

246

XX/2 73/171

43%

67/171

39%

31/171

18%

171

Tabela 2.2 – Distribuição das formas clíticas de 2SG ao longo do tempo

em amostra de peças teatrais brasileiras (adaptado de Machado, 2011, p. 152)

Como é possível perceber, as formas clíticas te e lhe concorrem

diretamente ao longo do período em questão: até fins do século XIX,

predomina te (54%), ainda motivado pela prevalência do paradigma do

pronome tu sobre a forma você nesse período; na primeira metade do século

XX, é o clítico lhe quem prevalece (47%), possivelmente motivado pela difusão

de você na posição de sujeito, relatada por diversos estudos; na segunda

metade do século XX, entretanto, temos uma situação diferente, visto que o

clítico te é majoritário novamente (43%), mesmo após o avanço de você na

posição de sujeito. Diante desse quadro, Machado (2011, p. 224) afirma que

O alçamento de você à posição de principal e, em alguns momentos,

única estratégia pronominal de referência à segunda pessoa do

discurso gera um aumento nos índices de usos dos pronomes oblíquos

e possessivos de 3ª pessoa. Todavia, mesmo com o “desaparecimento” em algumas décadas do século XX, de tu na função de sujeito,

observa-se a permanência, principalmente, do pronome oblíquo átono

te (...). Tal fato ilustra a conservação das formas de P2 e a possível

associação destas a você para a designação de um mesmo interlocutor

por um determinado falante.

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Embora a autora não apresente uma análise quantitativa detalhada da

correlação entre as formas de 2SG utilizadas em posição de sujeito e

complemento verbal nas peças teatrais, ela afirma que “(...) tais resultados

permitem inferir que um mesmo interlocutor pode ter sido tratado, ao mesmo

tempo (...) por você e uma forma pronominal de 2ª pessoa como te”

(MACHADO, 2011, p.151).

Com enfoque similar ao de Machado (2011), Rumeu (2013) também se

atém, em sua investigação, à variação de 2SG na posição de sujeito, com

atenção especial para a implementação da forma você no sistema pronominal

do PB. A análise da autora ancora-se em uma amostra de cento e setenta

cartas pessoais cariocas trocadas entre membros de uma mesma família, das

últimas décadas do século XIX até meados do século XX. Rumeu (2013)

controlou as ocorrências de pronomes de 2SG em diversos contextos

morfossintáticos, dentre os quais a posição de objeto, referida em seu trabalho

como “Pronome complemento sem preposição”. Reproduzimos, na Tabela 2.3,

a sistematização dos dados relacionados ao paradigma de tu, fornecida pela

autora:

Tabela 2.3 – A produtividade das formas de P2 (Tu) e P3 (Você) em relação às categorias

gramaticais (pronomes/verbos) na amostra de cartas da família Pedreira Ferraz – Magalhães.

Valor de aplicação: Tu (P2).

(Fonte: RUMEU, 2013, p.139)

Destacamos, na Tabela 2.3, as ocorrências de pronome complemento

sem preposição que, evidentemente, correspondem ao clítico te: 90 dados

dentre os 135 que constituem o contexto morfossintático mencionado (67%).

Na análise de peso relativo, vemos que esse mesmo contexto foi o maior

favorecedor de ocorrências de formas do paradigma de tu (P.R.: .65) dentre os

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29

que foram rastreados pela pesquisadora. Uma vez que o interesse central era

analisar o nível de implementação da forma você em diferentes contextos, a

autora não apresenta um detalhamento maior quanto às ocorrências das

formas clíticas ao longo da diacronia considerada.

Há, no entanto, uma apreciação interessante no que se refere à

possibilidade de combinação de você em posição de sujeito com formas do

paradigma de tu em outras posições sintáticas. Rumeu (2013, p. 135) controla

sistematicamente essa possibilidade e observa que “as formas de P2 (Tu),

apesar de se manterem preferencialmente combinadas com a segunda pessoa

formal, em 90% dos dados (.68), se mostram, mesmo que timidamente,

combinadas com a terceira pessoa formal, em 20% dos dados (.19) (...)”. Sendo

assim, no entendimento da pesquisadora, o controle dessa possibilidade de

combinação entre formas de diferentes paradigmas permite-nos verificar

“como o novo quadro pronominal do PB foi se reestruturando a partir da fusão

dos paradigmas de Tu e Você ou mesmo da formação de um quadro de

pronomes supletivo” (p.137-138).

Nas investigações de Souza (2014) e Oliveira (2014), encontramos um

enfoque direcionado para a posição de complemento. Ambos os trabalhos

também têm como referência a variedade carioca. Souza (2014) mapeou todas

as variantes de 2SG na função de acusativo/objeto direto. A autora analisou

um corpus de 504 cartas pessoais escritas entre as décadas de 1880 e 1980.

De um total de 433 dados, contabilizou 337 ocorrências de te (77,8%), 40 de

o/a (9,2%), 29 de você (6,7%), 17 de lhe (4%) e 10 de objeto nulo (2,3%). Esse

resultado evidenciou a preferência pela forma te, típica da variedade carioca

(e da região sudeste). Analisando a distribuição desses dados na diacronia

investigada, observamos que o clítico te prevalece em todos os períodos, como

ilustra a Figura 2.1:

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30

Figura 2.1 – Distribuição das formas acusativas de 2SG ao longo de um século na escrita

epistolar carioca (adaptado de SOUZA, 2014, p. 110)

O clítico te registra um percentual de frequência sempre superior a 50%

em cada fase da amostra, o que parece indiciar a preservação dessa forma na

variedade carioca. Souza (2014) controlou, também, a correlação entre as

formas de 2SG empregadas na posição de sujeito e de acusativo, a fim de

verificar se a variante adotada pelos escreventes naquele contexto exerceria

alguma influência sobre a variante adotada neste. Reportamos na Tabela 2.44

os resultados da autora:

TE O/A VOCÊ LHE NULO TOTAL

TU

EXCLUSIVO

168/178

94,4%

02/178

1,1%

04/178

2,2%

01/178

0,6%

03/178

1,7%

178/422

42,2%

VOCÊ

EXCLUSIVO

60/118

50,8%

26/118

22%

19/118

16,1%

10/118

8,5%

03/118

2,5%

118/422

28%

ALTERNÂNCIA

TU~VOCÊ

103/126

81,7%

07/126

5,6%

06/126

4,8%

06/126

4,8%

04/126

3,2%

126/422

29,8%

TOTAL 331/422 35/422 29/422 17/422 10/422 422

Tabela 2.4 – Correlação entre o tratamento na posição de sujeito e as estratégias utilizadas

como complemento acusativo na escrita epistolar carioca (adaptado de SOUZA, 2014, p. 96)

Consoante os índices replicados do trabalho de Souza (2014),

verificamos que quase a metade dos dados foi obtida de cartas cuja forma

4 Na reprodução dos dados de Souza (2014), desconsideramos 4 ocorrências registradas em

cartas com uso exclusivo da forma O Senhor/A Senhora e 7 ocorrências de cartas sem

referência explícita na posição de sujeito. Procedemos de tal forma com o intuito de focalizar,

especificamente, os dados de objeto que ocorriam em cartas com a utilização de Tu e/ou Você na posição de sujeito.

96%

73%

90%

56%

0% 2%6%

25%

2%

15%

3%

12%

0%6%

1%7%

0%

20%

40%

60%

80%

100%

1880-1905 1906-1930 1931-1955 1956-1980

TE

VOCÊ

O/A

LHE

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31

pronominal na posição de sujeito era tu, o que justifica parcialmente a alta

frequência de te. Cumpre salientar, contudo, que esse contexto não foi o único

em que te registrou uma produtividade relevante, visto que, dentre as

variantes encontradas na amostra, ele também foi a forma mais frequente em

cartas com alternância tu/você na posição de sujeito (81,7%) e mesmo nas

cartas com uso exclusivo de você (50,8%), superando inclusive, em termos

percentuais, as variantes do paradigma original da forma você (o/a, você e

lhe). Conjugando as informações constantes na Figura 2.1 com os índices da

Tabela 2.4, podemos depreender que o clítico te se desvincula do paradigma

do pronome tu e passa a se combinar também com a forma você, à medida

que esta se implementa no sistema; essa possibilidade de recombinação é que

parece garantir a sobrevivência de te em um paradigma em processo de

reestruturação.

Seguindo um viés de análise semelhante, Oliveira (2014) investigou as

formas variantes de dativo de 2SG, a partir de um corpus de 318 cartas

pessoais produzidas dentro do mesmo recorte temporal de Souza (2014). Das

811 ocorrências computadas de dativos de 2SG, foram encontrados 464 dados

do clítico te (57,2%), 92 dados do clítico lhe (11,3%), 181 de objeto nulo

(22,3%), 25 de sintagmas preposicionados a/para ti (3,1%) e 49 de sintagmas

preposicionados a/para você (6%). Os resultados de Oliveira (2014) apontam

o clítico te como a estratégia preferida para a referência à 2SG também na

função dativa. Essa preferência se evidencia na diacronia analisada. A Figura

2.2 ilustra a distribuição dos dados nas fases consideradas pelo autor:

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32

Figura 2.2 – Distribuição das formas dativas de 2SG ao longo de um século na escrita

epistolar carioca (Adaptado de OLIVEIRA, 2014, p. 132)

Em três quartos da diacronia analisada, notamos que o clítico te

prevaleceu sobre as demais variantes da amostra, registrando índices

superiores a 50%. Nos documentos do período mais recente, há um declínio

de frequência dessa variante em favor do aumento nos índices do clítico lhe e

dos sintagmas preposicionados relacionados a você. De todo modo, é coerente

dizer que o uso de te é preservado também na função dativa, ainda que haja

um maior equilíbrio entre as formas variantes nos dados de finais do século

XX. Oliveira (2014) analisou a correlação entre as formas empregadas na

posição de sujeito e de dativo, também com o intuito de verificar se haveria

influência da forma do sujeito sobre a forma dativa. Os resultados obtidos

seguem na Tabela 2.55:

TE LHE NULO A/PARA TI A/PARA

VOCÊ

TOTAL

TU EXCLUSIVO 194/247

78,5%

01/247

0,4%

35/247

14,2%

14/247

5,7%

03/247

1,2%

247/785

31,6%

VOCÊ

EXCLUSIVO

85/275

30,9%

75/275

27,3%

80/275

29,1%

01/275

0,4%

34/275

12,3%

275/785

35%

ALTERNÂNCIA

TU~VOCÊ

184/262

70,2%

07/262

2,8%

50/262

19%

10/262

3,8%

11/262

4,2%

262/785

33,4%

TOTAL 463/784 83/784 165/784 25/784 48/784 784

Tabela 2.5 – Correlação entre o tratamento na posição de sujeito e as estratégias utilizadas como complemento dativo na escrita epistolar carioca

(adaptado de OLIVEIRA, 2014, p. 108)

5 Foram desconsiderados, nesta tabela, 27 dados de formas dativas de 2SG extraídos de cartas

em que não se utilizava tu e/ou você na posição de sujeito.

70%

60%

68%

30%

10% 10%

1%

25%

15%

26%

17%

33%

4% 1%8%

0%1% 4%7%

13%

0%

20%

40%

60%

80%

100%

1880-1905 1906-1930 1931-1955 1956-1980

TE

LHE

NULO

A/PARA TI

A/PARA VOCÊ

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33

Ao abordarmos os índices da Tabela 2.5, percebemos um quadro

destoante daquele verificado no trabalho de Souza (2014) no que diz respeito

à forma utilizada na posição de sujeito: a maioria dos dados de dativo foi

obtida a partir de cartas com uso exclusivo de você em posição de sujeito

(35%), ainda que esse percentual não se distancie tanto daqueles observados

para os demais contextos (33,4% em cartas com alternância tu/você e 31,6%

em cartas com uso exclusivo de tu). Dentre esses contextos, podemos dizer

que o clítico te predomina em seu contexto original (tu-exclusivo; 78,5%) e no

contexto de variação (alternância tu/você; 70,2%). No contexto em que,

teoricamente, te não é previsto de ocorrer, isto é, em cartas com você-exclusivo

na posição de sujeito, essa variante não apenas foi registrada como também

figura em pé de igualdade com outras estratégias (o clítico lhe e o objeto nulo),

contabilizando um percentual ligeiramente superior (30,9% de te frente a

27,3% de lhe e 29,1% de objeto nulo).

Confrontando os resultados da Figura 2.2 e da Tabela 2.5, vemos que,

na função dativa, o clítico te sofreu uma queda de frequência de uso nas cartas

pessoais ao longo do tempo, possivelmente causada pela emergência de outras

variantes relacionadas ao paradigma de você. Embora apresente índices mais

expressivos na função acusativa, nos parece plausível afirmar que também o

clítico te em função dativa se desvincula do paradigma de tu e passa a

associar-se à forma você, ainda que em menor grau, nos dados analisados.

Cardoso (2017) e Cruz (2017) analisam a variedade mineira

documentada em cartas pessoais escritas por falantes cultos entre os séculos

XIX e XX. Em seu estudo, Cardoso (2017) empreende uma minuciosa

investigação das formas dativas de 2SG, baseando-se no trabalho de Oliveira

(2014). A autora examinou 224 missivas particulares e obteve um total de 582

ocorrências, dentre as quais registrou 251 dados do clítico lhe (43%), 155 do

clítico te (27%), 134 de objeto nulo (23%), 34 de sintagmas preposicionados

a/para você (5,7%) e 05 do sintagma preposicionado a ti (0,8%). De imediato,

notamos uma diferença na distribuição geral das variantes entre as cartas

cariocas analisadas por Oliveira (2014) e as cartas mineiras estudadas por

Cardoso (2017): nestas, predomina o clítico lhe, que alterna com o clítico te

em certos momentos da diacronia considerada, tal como sugere a Tabela 2.6:

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34

TE LHE NULO A TI A/PARA

VOCÊ

TOTAL

1860-1899 13

25,5%

14

27,4%

22

43,1%

00

0%

02

4%

51

1900-1929 119

67,2%

22

12,4%

29

16,4%

04

2,2%

03

1,8%

177

1930-1959 19

8%

140

58,8%

56

23,5%

01

0,5%

22

9,2%

238

1960-1989 00

0%

68

75,5%

15

16,6%

00

0%

07

7,9%

90

Tabela 2.6 – Distribuição das formas dativas de 2SG ao longo de um século

na escrita epistolar mineira (Adaptado de CARDOSO, 2017)

Observamos que há três momentos bastante distintos na diacronia das

cartas mineiras no que se refere à distribuição das variantes dativas. No

período mais antigo, correspondente à segunda metade do século XIX, o objeto

nulo é a estratégia mais frequente (43,1% - 22/51 dados), e os clíticos te e lhe

apresentam índices bem próximos entre si (25,5% - 13/51 dados para te

versus 27,4% - 14/51 dados para lhe). Já nas cartas escritas nas primeiras

décadas do século XX, a forma te é majoritária (67,2% - 119/177 dados),

seguida do objeto nulo (16,4% - 29/177 dados) e do clítico lhe (12,4% - 22/177

dados). Nas missivas das décadas subsequentes, posteriores a 1930,

prevalece, com larga diferença percentual, o clítico lhe (58,8% entre 1930 e

1959, e 75,5% entre 1960 e 1989), enquanto as taxas de ocorrência do clítico

te decrescem até chegarem a zero na documentação mais recente.

A hipótese aventada por Cardoso (2017) para justificar tal quadro de

variação está associada à implementação da forma você na posição de sujeito.

Para embasar essa explicação, a autora apresentou dados quantitativos da

correlação entre a forma empregada na posição de sujeito e as variantes

dativas nas cartas mineiras, que reproduzimos na Tabela 2.76:

6 Recalculamos os percentuais apresentados por Cardoso (2017) devido à exclusão de 160

dados de dativos presentes em cartas cujo autor adotava tratamento diferente de tu e/ou você.

Além disso, retiramos três ocorrências de o/a dativo que constam da tabela original da autora.

As modificações têm como propósito tornar os dados das cartas mineiras comparáveis com os das cartas cariocas.

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35

TE LHE NULO A TI A/PARA

VOCÊ

TOTAL

TU EXCLUSIVO 120/155

77,4%

02/155

1,3%

27/155

17,4%

05/155

3,2%

01/155

0,7%

155/420

36,9%

VOCÊ

EXCLUSIVO 12/238

5,1%

149/238

62,6%

52/238

21,8%

- 25/238

10,5%

238/420

56,6%

ALTERNÂNCIA

TU~VOCÊ 14/27

51,8%

01/27

3,8%

12/27

44,4%

- - 27/420

6,5%

TOTAL 146/420 152/420 91/420 05/420 26/420 420

Tabela 2.7 – Correlação entre o tratamento na posição de sujeito e as estratégias utilizadas como complemento dativo na escrita epistolar mineira

(adaptado de CARDOSO, 2017, p. 108)

Observamos que os dados do clítico lhe pertencem quase

exclusivamente às cartas em que o missivista utilizava apenas você na posição

de sujeito. Nas cartas cuja forma de tratamento era tu, prevaleceu o uso da

variante te, assim como nas cartas em que havia alternância entre tu e você.

Cardoso (2017) interpreta a reduzida produtividade do clítico te nas cartas

com você-exclusivo no sujeito como evidência de formalidade por parte dos

escreventes cultos. Segundo ela, a predominância de lhe nas cartas de você-

sujeito “(...) não só evidenciou tal clítico como uma produtiva estratégia de

referência à 2SG na função dativa, mas também expôs o acentuado grau de

formalidade impresso nas relações entre os missivistas mineiros” (CARDOSO,

2017, p.147). Apesar disso, a autora não ignora o fato de terem ocorrido, na

amostra, 12 dados do clítico te em correlação com você-sujeito e conclui que

isso “parece apontar para a fusão entre os paradigmas de 2ª e 3ª pessoas do

Discurso” (CARDOSO, 2017, p. 148) já nas sincronias passadas.

Com uma abordagem voltada para os ambientes sintáticos pelos quais

você penetra no sistema pronominal (para além da posição de sujeito), o

estudo de Cruz (2017) explorou a representação da 2SG nos contextos de

complementação e adjunção verbais e nominais. A partir de 234 cartas

pessoais mineiras, produzidas entre as décadas de 1860 e 1980, a autora

reuniu 690 dados, dentre os quais 190 (28%) são formas relacionadas ao

paradigma de tu (te, a ti e prep.+ti), 446 (64%) são formas relacionadas ao

paradigma de você (lhe, o/a, você, a/para você e prep.+você), além de 54

ocorrências de objetos nulos (8%).

No que tange à complementação verbal, os resultados da pesquisadora

apontam na mesma direção de Cardoso (2017): uma alta produtividade das

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36

formas relacionadas a você, sobretudo do clítico lhe. Essas formas variantes

são mais frequentes nas cartas com uso exclusivo de você na posição de

sujeito. Este é o caso do clítico acusativo o/a, que, embora tenha sido

registrado em todos os contextos, contabiliza maior índice neste tipo de carta

(31 dados com você-exclusivo contra 02 dados em cada um dos outros dois

contextos – com tu-exclusivo e com alternância tu/você). Cruz (2017) também

atribui a considerável produtividade das variantes lhe e o/a ao perfil social

dos informantes:

(...) acredita-se que o altíssimo grau de escolaridade dos missivistas

(escritores, professores, políticos) possa justificar a produtividade do

lhe em contexto de cartas pessoais estruturadas pelo você-sujeito na

escrita mineira (...), apontando para um perfil de conservadorismo linguístico. (CARDOSO, 2017, p.113)

Passemos, a seguir, aos trabalhos diacrônicos relativos a localidades da

região Nordeste.

- Região Nordeste

Revisamos, nos próximos parágrafos, os trabalhos de Almeida e Deus

(2011), Moura (2013), Lopes e Gomes (2014) e Araújo e Carvalho (2015). Todos

eles se baseiam em dados extraídos de cartas particulares e, com exceção de

Almeida e Deus (2011), focalizam principalmente o século XX. Na apreciação

desses trabalhos, daremos maior ênfase à questão do clítico lhe como variante

de 2SG, haja vista que esse uso costuma ser correlacionado com as variedades

nordestinas.

O estudo de Almeida e Deus (2011) é representativo da variedade

baiana. As autoras analisaram 60 cartas particulares trocadas entre amigos e

familiares entre os anos de 1809 e 1904. Um aspecto diferencial do trabalho

é o controle do grau de escolaridade dos remetentes das cartas, uma vez que

“trinta foram escritas por falantes cultos, nascidos e/ou educados em regiões

urbanas, em geral ocupantes de altos cargos – ministros, senadores,

diplomatas – ou com títulos de nobreza, e as demais escritas por falantes

semicultos, nascidos ou radicados no interior.” (ALMEIDA E DEUS, 2011, p.

5).

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37

No que se refere às formas de complemento verbal de 2SG, as autoras

apresentam apenas os dados de lhe encontrados no corpus e discutem os usos

observados desse clítico nas cartas analisadas. Reproduzimos na Tabela 2.8

a distribuição encontrada pelas pesquisadoras:

ESCOLARIDADE DATIVO ACUSATIVO

TOTAL 2SG 3SG 2SG 3SG

CULTO 26/60

43,3%

33/60

55%

– 01/60

1,7%

60/116

SEMICULTO 32/56

57,1%

11/56

19,6%

10/56

17,9%

03/56

5,4%

56/100

TOTAL 58/116

50%

44/116

37,9%

10/116

8,6%

04/116

3,5%

116

Tabela 2.8 – Uso da forma lhe no corpus de cartas baianas segundo o nível de escolaridade

dos remetentes. (Adaptado de Almeida e Deus, 2011, p. 11)

Quanto aos dados presentes na tabela, podemos destacar, em primeiro

lugar, o uso do clítico lhe. Desde o século XIX, essa forma já era utilizada, na

escrita, para referir-se mais à 2SG do que à 3SG. Esse uso viria a se consolidar

no PB ao longo do século XX, diferenciando-se significativamente da variedade

europeia, na qual lhe é majoritariamente um pronome de 3SG (cf. DANTAS,

2007). Além disso, percebemos também indícios da reanálise de lhe,

originalmente uma forma dativa que expande seu domínio funcional para a

função acusativa.

Em relação à variável grau de escolaridade, vemos que ela parece atuar

sobre os usos do clítico lhe. Os remetentes cultos o utilizam mais segundo a

norma prescrita nas gramáticas normativas, visto que, das 60 ocorrências

registradas, 33 são de lhe dativo com referência à 3SG. Se levarmos em

consideração a função sintática, notamos que os escreventes cultos

praticamente não usaram lhe acusativo (houve apenas uma única ocorrência).

Já os dados das cartas dos remetentes semicultos se aproximam mais da

norma de uso vigente no PB atual: 42 das 56 ocorrências se referem à 2SG,

dentre as quais 10 em função acusativa – vale destacar que nenhum

remetente culto utilizou lhe de 2SG nessa função. Nesse sentido, concordamos

com Almeida e Deus (2011, p. 14) quando comentam que, pelos dados

analisados, “ficam evidentes os indícios da reestruturação do quadro

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38

pronominal do PB em decorrência de fatores internos e, principalmente,

externos à língua, destacando-se aqui o fator escolaridade.”.

As cartas baianas do século XIX nos oferecem, ainda, algumas pistas

que podem explicar o cenário atual verificado no PB quanto ao uso recorrente

de lhe em estados da região nordeste, como Bahia e Ceará, em detrimento de

te. Almeida e Deus (2011) registram que, na posição de sujeito, enquanto os

missivistas cultos utilizam expressivamente tu (88/169 dados – 52%) e, em

menor escala, você (07/169 dados – 4,1%), os missivistas semicultos

apresentam um uso bastante reduzido de tu (04/111 dados – 3,6%) e não

utilizam você. Em vez disso, os semicultos optam pelo emprego de outras

formas de tratamento, como Vossa Excelência (69/111 – 62,1%) e Vosmicê

(28/111 – 25,2%).

O que esses índices querem dizer? Parece que os informantes semicultos

– nascidos ou radicados no interior – tentam, em alguma medida, se aproximar

linguisticamente dos indivíduos cultos da cidade (ou daquilo que eles deviam

conceber como “fala urbana”, “fala culta”). Nesse esforço para se adequar à

“norma culta” da época, parecem tentar evitar certas formas (tu, te),

reforçando a utilização de outras, provavelmente percebidas como “mais

cultas”. Nessa linha de raciocínio, podemos pensar hipoteticamente que: (i) a

difusão de lhe de 2SG pode ter sido uma mudança impulsionada pelos

indivíduos semicultos numa tentativa de adotar uma “norma urbana culta”;

(ii) nesse processo de adesão a um uso percebido como “culto”, os indivíduos

de escolaridade mediana podem ter difundido o emprego de lhe de 2SG em

função acusativa, visto que tal emprego não ocorre entre remetentes cultos do

século XIX.

Dessa forma, é plausível pensar que a propagação de lhe de 2SG (dativo

e acusativo) nas variedades nordestinas teria trilhado um caminho similar ao

da forma você na história do português. Uma evidência disso seria a perda

relativa do traço sociopragmático de [+formalidade] da variante lhe na fala

nordestina. Conforme discutiremos em outros momentos desta tese, não

parece coerente afirmar que os falantes da região Nordeste percebem o uso de

lhe como marca de formalidade, tal qual alguns estudos apontam para as

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39

variedades da região Sudeste. Retomaremos essa discussão mais adiante.

Passemos, agora, ao próximo estudo.

O trabalho de Moura (2013) centra-se na descrição e análise do processo

de variação e mudança pronominal relativa às formas tu e você na escrita

epistolar de remetentes nascidos no Rio Grande do Norte. A autora analisou

146 cartas produzidas em três períodos distintos do século XX: 1916 a 1925

(65 documentos), 1946 a 1972 (51 documentos) e 1992 a 1994 (30

documentos). Interessada principalmente em observar a difusão de você na

escrita norte-rio-grandense, Moura (2013) controlou como variável

independente o “contexto morfossintático” de ocorrência dos pronomes de

2SG. Os dados levantados nas posições de objeto são identificados pela função

sintática – acusativo ou dativo. A Tabela 2.9, elaborada com base nos dados

fornecidos pela autora, reúne as ocorrências registradas para as funções de

acusativo e dativo7 em cada recorte cronológico analisado:

1916-1925 1946-1972 1992-1994

ACUSATIVO DATIVO ACUSATIVO DATIVO ACUSATIVO DATIVO

FORMAS DE

TU

00/04

0%

00/52

0%

40/41

97,5%

32/36

88,9%

114/181

63%

33/83

39,8

FORMAS DE

VOCÊ

04/04

100%

52/52

100%

01/41

2,5%

04/36

11,1%

67/181

37%

50/83

60,2%

Tabela 2.9 – Frequência de uso das formas de tu e de você pelos contextos morfossintáticos

– acusativo e dativo – nas cartas norte-rio-grandenses ao longo do século XX. (Adaptado de

Moura, 2013, p. 75, 80 e 86)

Visualizamos, na distribuição diacrônica, três momentos distintos

quanto ao uso de formas acusativas e dativas relacionadas a tu ou a você: no

período que compreende o início do século XX, aparecem apenas formas do

paradigma de você (04 acusativos e 52 dativos); já no segundo período,

correspondente às décadas de 1940 a 1970, o quadro se reverte, com o

predomínio das formas do paradigma de tu (40 acusativos e 32 dativos); no

terceiro período considerado, representativo das décadas finais do século XX,

7 Como a autora agrupou diferentes formas (p. ex. lhe, você etc) sob o rótulo de “formas do paradigma de você”, não discriminando o número de ocorrências específico para cada forma,

faremos referência aos resultados utilizando a divisão (“formas de tu” e “formas de você”).

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40

há um quadro de variação menos polarizado, com as formas de tu

prevalecendo na função acusativa (114 dados) e as formas de você na função

dativa (50 dados).

Essa distribuição parece sugerir, principalmente no último recorte

temporal analisado, a existência de um sistema alternante na variedade norte-

rio-grandense entre formas de tu e você nas posições de complemento, sendo

que o acusativo favorece mais a ocorrência de uma forma de tu do que o

dativo8. Moura (2013) não examina pormenorizadamente os tipos de

complemento de 2SG em sua amostra nem trata da correlação entre formas

na posição de sujeito e de objeto, limitando-se a afirmar que o contexto

morfossintático de “complemento verbal não preposicionado” constitui um

ambiente de resistência à inserção das formas de você na variedade norte-rio-

grandense, comparativamente a outros contextos, tal qual já foi verificado em

outras pesquisas para outras variedades do PB.

A variedade pernambucana é mais uma do cenário nordestino que já foi

objeto de investigação sobre o tema. Gomes e Lopes (2014) analisaram 123

cartas particulares produzidas entre 1869 e 1969 por indivíduos cultos

nascidos no estado. As autoras controlaram o tipo de pronome que ocorria

nas missivas, a função sintática e a forma tratamental adotada na posição de

sujeito. Ao todo, foram levantadas 261 ocorrências de 2SG na posição de

complemento verbal (sendo 45 na função acusativa e 216 na função dativa).

Dessas, selecionamos, na Tabela 2.10, aquelas relacionadas às formas tu e/ou

você na posição de sujeito:

8 Apesar da diferença nos percentuais de frequência, Moura (2013, p.86) mostra que, segundo a análise de peso relativo, ambas as funções sintáticas são altamente desfavorecedoras da

ocorrência de formas de você (acusativo – P.R.: 0.03; dativo – P.R.: 0.08)

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41

ACUSATIVO DATIVO

TE O/A LHE VOCÊ TOTAL TE LHE A/PARA

TI

A/PARA

VOCÊ

TOTAL

TU

EXCLUSIVO

12/12

100%

-- -- -- 12/42

28,6%

22/29

76%

-- 07/29

24%

-- 29/198

14,6%

VOCÊ

EXCLUSIVO

01/29

3,5%

17/29

58,6%

06/29

20,7%

05/29

17,2%

29/42

69%

-- 134/149

90%

-- 13/149

10%

149/198

75,2%

ALTERNÂNCIA

TU~VOCÊ

-- 01/01

100%

-- -- 01/42

2,4%

05/20

25%

14/20

70%

-- 01/20

5%

20/198

10,2%

TOTAL 13/42 18/42 06/42 05/42 42 27/198 148/198 07/198 14/198 198

Tabela 2.10 – Correlação entre o tratamento na posição de sujeito e as formas acusativas e

dativas na escrita epistolar pernambucana

(adaptado de GOMES E LOPES, 2014, p. 30; 35)

À primeira vista, percebemos que “o alto grau de escolaridade e de

experiência com a prática escrita da maioria dos missivistas fez valer a

predominância da simetria das formas tratamentais” (LOPES E GOMES,

2014, p. 30), como sinalizam as células vazias na tabela. Podemos notar que,

nas cartas em que os escreventes adotavam apenas tu como sujeito das

orações, as formas de complemento relacionadas a você foram

categoricamente bloqueadas; já nas cartas em que utilizavam apenas você, o

cenário se revertia em favor deste, tendo passado pela “filtragem pronominal”

dos missivistas uma única ocorrência de te em função acusativa. Nas cartas

que apresentavam alternância entre tu e você, prevaleceram as formas de

complemento relacionadas a você.

Apesar da forte simetria presente no tratamento utilizado pelos

remetentes cultos pernambucanos, podemos utilizar a única ocorrência do

clítico te em uma carta com uso exclusivo de você-sujeito como indicativa de

que a possibilidade dessa combinação já estava presente na variedade em

questão no início do século XX, período ao qual pertence o referido exemplo,

reproduzido em (03):

(03) “ [...] Perguntam-me todos por você papai, mamãe e meuos irmãos prometendo-[rasurado]

no vir visitar-me aqui. [...] Adeus minha mãesinha receba um affetuoso abraço de quem te

estima muito Waldemar Preciso muito de sellos”. (Carta WO 05, 19/01/1916) (GOMES E

LOPES, 2014, p. 32)

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42

Partindo de Pernambuco para Ceará, temos o trabalho de Araújo e

Carvalho (2015), que aborda especificamente a alternância entre os clíticos te

e lhe em função acusativa na escrita epistolar cearense. A partir da análise de

186 cartas, produzidas entre as décadas de 1940 e 1990, os pesquisadores

obtiveram 149 dados, sendo 90 da forma te (60%) e 59 da forma lhe (40%).

Ao distribuírem as ocorrências dos clíticos de 2SG ao longo da diacronia

considerada, Araújo e Carvalho (2015) observam que o clítico lhe prevalece

nas cartas do final da primeira metade do século XX (1940-50), com um

percentual de 56% (09/16 oco.), frente a 44% (07/16 oco.) do clítico te; já nas

primeiras décadas da segunda metade do século XX (1960-70), essa

distribuição se inverte em favor de te, com 54% de frequência (34/63 oco.)

contra 46% (29/63 oco.) de lhe; em fins do século XX (1980-90), a diferença

entre lhe e te aumenta, registrando-se 70% de frequência (49/70 oco.) para

este frente a 30% (21/70 oco.) para aquele. Esses resultados são ilustrados

na Figura 2.3:

Figura 2.3 – Frequência de te e lhe acusativos por décadas do século XX na escrita epistolar

cearense. (Adaptado de ARAÚJO E CARVALHO, 2015, p.76)

Apesar de representar uma distribuição interessante, pois, de certa

forma, vai de encontro ao que os estudos costumam relatar para as variedades

nordestinas (além do fato de se tratar de dados de língua escrita), a

investigação dos autores deixa em aberto uma lacuna importante: as formas

pronominais de 2SG utilizadas na posição de sujeito (tu ou você) não foram

controladas, de maneira que não podemos afirmar se o aumento nos índices

44%

54%

70%

56%

46%

30%

0%

20%

40%

60%

80%

100%

1940-50 1960-70 1980-90

TE

LHE

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43

de te estão relacionados à adoção de formas do paradigma de tu ou se

representam evidências da combinação você-sujeito e te-acusativo (algo que

seria relevante para a nossa discussão sobre a preservação desse clítico). Há,

todavia, dois exemplos de Araújo e Carvalho (2015) que sugerem a ocorrência

da combinação você-sujeito e te-acusativo no corpus por eles analisado.

Reportamos esses exemplos em (04) e (05) a seguir:

(04) “Você não imagina como lhe esperei na agência [...] Não sei bem o que eu faria se algum

dia eu te reencontrasse” [C058] (ARAÚJO E CARVALHO, 2015, p. 66)

(05) “queria poder estar aí e até ser uma pessoa em que pudesse fazer você esquecer quem

tanto te magoou (...) O que eu puder fazer para ti ajudar eu estou aqui (...) um dia você irá

encontrar alguém que realmente te ama (...) quero lhe mostrar que não devemos nos

desesperar (...) estou aqui para te ajudar. Te Adoro meu amigo” [C170] (ARAÚJO E

CARVALHO, 2015, p. 77)

Para finalizarmos a revisão dos estudos diacrônicos acerca dos

complementos verbais de 2SG, cotejamos a análise inter-regional feita por

Lopes, Marcotulio e Oliveira, no prelo.

- Análise inter-regional diacrônica

Com o intuito de discutir a reorganização do sistema pronominal de 2SG

no PB, seguindo uma perspectiva diatópico-diacrônica, Lopes, Marcotulio e

Oliveira, no prelo, analisam as repercussões gramaticais ocasionadas pela

inserção da forma você na posição de sujeito em diferentes contextos

morfossintáticos. Como material de análise, os autores reuniram dados de

1332 cartas pessoais escritas por brasileiros pertencentes a diferentes

grupamentos sociais entre os séculos XIX e XX. Boa parte dessas cartas foi

extraída de estudos parciais anteriores e reexaminada na tentativa de mapear

cronologicamente o processo de implementação de você, rastreando os pontos

de avanço e retrocesso da mudança pronominal em curso no PB.

Adotando uma visão panorâmica, os autores compararam dados de três

localidades da região Sudeste (Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo) e três

da região Nordeste (Bahia, Pernambuco e Rio Grande do Norte), a fim de

observar aspectos convergentes e divergentes entre elas. Das várias funções

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44

sintáticas contempladas, destacamos as de acusativo e dativo. A Tabela 2.119

apresenta as ocorrências e percentuais encontrados para as formas variantes

de ambas as funções. Os dados são referentes apenas às cartas com uso

exclusivo de você na posição de sujeito, uma vez que o interesse era analisar

quais formas são registradas em um sistema “voceante”, em que a forma

inovadora você já estaria implementada.

ACUSATIVO DATIVO

TE O/A LHE VOCÊ TOTAL TE LHE A/PARA

TI

A/PARA

VOCÊ

TOTAL

SUDESTE

76/147

51,7%

36/147

24,5%

10/147

6,8%

25/147

17%

147 111/303

36,6%

144/303

47,5%

01/303

0,4%

47/303

15,5%

303

NORDESTE

03/79

3,9%

37/79

46,8%

33/79

41,7%

06/79

7,6%

79 04/371

1,1%

340/371

91,6%

--

--

27/371

7,3%

371

TOTAL 79/226 73/226 43/226 31/226 226 115/674 484/674 01/674 74/674 674

Tabela 2.11 – Distribuição das variantes acusativas e dativas em cartas de você sujeito

divididas por regiões brasileiras (séculos XIX-XX) (adaptado de LOPES; MARCOTULIO; OLIVEIRA, no prelo, p. 16; 19)

Os resultados visualizados na tabela sugerem que há, de fato, um efeito

diatópico sobre as formas de 2SG nas posições de complemento. O clítico te

apresenta uma frequência considerável dentre as variantes adotadas pelos

remetentes da região Sudeste, principalmente na função acusativa, que

corresponde a mais da metade dos dados, sobrepondo-se às demais formas

relacionadas a você. Em contrapartida, esse mesmo clítico figura de maneira

muito ínfima nos dados de missivistas da região Nordeste, registrando

percentuais inferiores a 5%. Nas ocorrências dessa região, as variantes mais

produtivas são os clíticos o/a e lhe para a função acusativa e apenas lhe para

a função dativa. Nos dados da região Sudeste, especialmente na função dativa,

também verificamos uma ocorrência expressiva de lhe, que, nesse caso,

9 Para melhor adequar os referidos dados à nossa exposição, optamos por (i) juntar o número

de ocorrências de cada região e recalcular os percentuais, uma vez que na tabela original

essas informações aparecem divididas pelos estados analisados, e (ii) desconsiderar 129

dados de objeto nulo, registrados na função acusativa entre as ocorrências do Rio de Janeiro

(03) e na função dativa entre as ocorrências do Rio de Janeiro (80), Minas Gerais (15) e Bahia (31).

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supera em índices percentuais a variante te. Cabe esclarecer que grande parte

desses dados ocorreu em cartas de Minas Gerais, que, geograficamente,

conecta os estados das duas regiões em questão. Tal fato pode, por hipótese

explicar as ocorrências, uma vez que esse estado estaria em uma zona de

“fronteira dialetal” te-lhe.

Os índices comentados são bastante informativos, já que sustentam a

ideia de que o uso da forma lhe de 2SG constitui um traço regional

característico dos dialetos nordestinos. Não podemos perder de vista, contudo,

alguns aspectos que, de certa forma, condicionam os resultados verificados.

Em primeiro lugar, devemos lembrar que se trata de dados de língua escrita,

produzidos, em sua maior parte, por brasileiros cultos, com elevado grau de

instrução e que reproduzem em seus textos, em alguma medida, as

prescrições normativas presentes nas gramáticas tradicionais. Além disso, a

própria natureza do corpus histórico produz certas lacunas que nem sempre

podem ser eliminadas, principalmente em relação ao perfil dos informantes

(em sua maioria homens de uma determinada faixa etária, pertencentes a

categorias sociais mais abastadas e residentes das zonas centrais das cidades

investigadas).

Cientes disso, nos parece que a postura mais coerente seja rastrear,

nesse material, indícios do processo de variação/mudança pronominal que já

devia ocorrer na língua falada a fim de tentarmos compreender a configuração

do sistema atual. Nesse sentido, o estudo de Lopes, Marcotulio e Oliveira, no

prelo, cumpre essa tarefa, pois podemos vislumbrar nos dados indícios do

sistema “misto” que encontramos no PB contemporâneo, em especial, nas

variedades da região Sudeste: um uso majoritário (ou mesmo exclusivo) da

forma você na posição de sujeito combinado, na maioria das vezes, com o

emprego do clítico te (acusativo e dativo) na posição de complemento verbal.

Outra evidência é o descompasso no ritmo de consolidação desse paradigma

“misto”, que parece estar mais adiantado na região sudeste do que na região

nordeste. Essa constatação sincrônica está em consonância com as evidências

diacrônicas.

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46

Para resumir os principais pontos revisados nos trabalhos da

perspectiva diacrônica, podemos destacar que: (i) a implementação de você no

sistema de 2SG do PB não se dá de maneira ampla e regular, uma vez que as

formas do paradigma de tu não desapareceram por completo; (ii) as posições

de complemento verbal (acusativo e dativo), objeto central desta tese, são

recorrentemente referidas como contextos morfossintáticos de resistência à

implementação de você, já que a forma te se mantém fortemente nesta posição,

ao longo do tempo e em diversas áreas; (iii) variáveis extralinguísticas como

área geográfica, período e grau de instrução/nível de escolarização atuam

significativamente no condicionamento de uso das formas relacionadas a tu e

a você; (iv) a possibilidade de combinação entre você-sujeito e te-complemento

verbal, ainda que apresente uma frequência mínima, já pode ser verificada em

registros escritos desde, pelo menos, fins do século XIX e início do século XX.

Passemos, na subseção a seguir, aos estudos de perspectiva sincrônica.

2.1.2 Estudos sincrônicos

- Sudeste

Dentre os trabalhos que abordam sincronias recentes, elencamos como

representantes da região Sudeste as investigações de Modesto (2006),

Camargo Jr. (2007), Mota (2008), Pimienta (2013) e Carvalho e Pinto (2014).

Há entre esses estudos certa pluralidade metodológica, haja vista que são

utilizadas como corpus de análise desde as tradicionais entrevistas

sociolinguísticas até gravações secretas e testes de percepção e atitude

linguística. Em relação ao parâmetro diatópico, temos resultados ilustrativos

dos três estados comentados em 2.1.1. (São Paulo, Rio de Janeiro e Minas

Gerais). O critério cronológico continuará norteando a exposição dos trabalhos

revisados.

Com base em 20 inquéritos de textos conversacionais, entre gravações

conscientes e secretas, Modesto (2006) descreve a utilização das formas tu e

você na cidade de Santos, situada na região litorânea do estado de São Paulo.

Tal localidade tem como aspecto particular o fato de que, na região da Baixada

Santista, os falantes utilizam a forma tu na posição de sujeito em variação

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com você (diferentemente do que se verifica na capital e cidades do interior

paulista, onde há o emprego exclusivo de você – cf. SCHERRE et al., 2015). O

autor analisou, dentre os fatores controlados, a função sintática em que ocorre

o pronome de referência à 2SG e chegou ao seguinte resultado, reproduzido

na Tabela 2.12:

FORMA FUNÇÃO FREQUÊNCIA PESO RELATIVO

TU Subjetiva 177/617 = 28% 0.45

Objetiva 55/91 = 60% 0.77

VOCÊ Subjetiva 440/617 = 71% 0.54

Objetiva 36/91 = 39% 0.23

Tabela 2.12 – Frequência e peso relativo do uso das formas tu e você quanto à função

sintática em textos conversacionais de falantes da cidade de Santos (SP)

(Extraído de MODESTO, 2006, p. 99)

Nos dados de Modesto (2006), encontramos um resultado que se

aproxima bastante do que verificamos nos dados diacrônicos concernentes à

região Sudeste: de um lado, o processo de implementação da forma você na

posição de sujeito bastante acentuado; de outro, uma notável preservação de

tu – isto é, da forma te – na posição de complemento verbal. Destacamos, na

Tabela 2.12, o peso relativo encontrado pelo autor para a forma tu na função

objetiva: 0.77. Ao comentar esse resultado, Modesto (2006, p. 99) afirma que

“A alta probabilidade de uso da forma te na cidade de Santos evidencia uma

situação que ocorre em outras regiões do Brasil: a sobrevivência da forma

objetiva do pronome de segunda pessoa do singular”. Acrescentamos a isso

outro fato relatado pelo pesquisador: não houve nenhuma ocorrência da forma

lhe de 2SG no corpus analisado. Tal informação parece reforçar a ideia de que,

em muitas variedades do PB contemporâneo, a forma te é a estratégia

majoritária de 2SG, independentemente da forma adotada para a posição de

sujeito.

Tendo em vista que o enfoque de Modesto (2006) não eram as formas de

complemento verbal de 2SG, ele não correlaciona esses dados às variáveis

sociais controladas em sua pesquisa (escolaridade, gênero e faixa etária). O

autor apresenta, contudo, cruzamentos entre a função sintática e fatores

discursivos (monitoramento da fala, expressividade e referenciação). Dentre

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48

estes, reportamos os dados referentes ao cruzamento com a variável

monitoramento, ilustrado na Tabela 2.13:

MONITORAMENTO FUNÇÃO

SUBJETIVA OBJETIVA

[ - ] 134/318 = 42% 40/57 = 70%

[+] 43/299 = 14% 15/34 = 44%

Tabela 2.13 – Frequência de uso da forma tu em correlação com a função sintática e o

monitoramento em textos conversacionais de falantes da cidade de Santos (SP) (Extraído de

MODESTO, 2006. p. 102)

Embora Modesto (2006, p. 102) tenha assinalado que “é notável que em

contextos menos monitorados, o uso da forma objetiva de tu apresente a

frequência de 70%”, chamamos a atenção para dois aspectos, correlacionados

entre si: em primeiro lugar, vemos que os contextos menos monitorados

também favoreceram o aumento de frequência da forma subjetiva de tu (42%,

frente a 14% nos contextos mais monitorados); além disso, a diferença

percentual em relação a tu objetivo menos e mais monitorado é praticamente

a mesma verificada para tu subjetivo (26% para o primeiro e 28% para o

último).

Dessa maneira, parece-nos mais coerente analisar os resultados como

uma evidência da atuação da função sintática, visto que o monitoramento não

parece ter favorecido a forma de uma das funções em detrimento da outra. Há

certa proporcionalidade quanto ao monitoramento: quanto maior for o grau

de monitoramento, menores são os índices de formas relacionadas a tu

registrados; essa proporcionalidade do monitoramento não altera o efeito da

função sintática, uma vez que as formas de objeto são comparativamente mais

frequentes do que as formas de sujeito, em contextos mais ou menos

monitorados.

Sobre a questão da possibilidade de associação entre você-sujeito e te-

objeto nos dados, Modesto (2006) não realizou um controle quantitativo

específico, porém menciona a existência dessa associação no corpus

analisado. Refere-se a ela por “intercambialidade de pronomes”, adotando a

nomenclatura utilizada por Monteiro (1991). Em (06), reproduzimos um

exemplo que ilustra tal possibilidade na fala santista contemporânea:

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49

(06) F1: ...ai se você começar a atirar ele começa a te metralhar... (l.01,GS). (MODESTO, 2006,

p. 86)

Outro estudo com referência à variedade paulista é o de Camargo Jr.

(2007). O autor explorou a posição de complemento verbal acusativo de 2SG,

com o objetivo de traçar um paralelo com os estudos de acusativo de 3SG.

Como corpus, utilizou produções textuais de alunos do segundo segmento do

ensino fundamental de um colégio da rede privada da cidade de São Paulo. As

produções eram resultado de uma tarefa especificamente criada para a

investigação (a redação de uma carta) e visava a estimular a ocorrência de

complementos acusativos de 2SG pelos alunos. O autor subdividiu a tarefa

em duas modalidades discursivas – formal e informal –, a fim de verificar

“como o indivíduo inserido no processo de escolarização preenche a posição

de objeto de verbos em contextos de formalidade (distância) e informalidade

(intimidade)”. (CAMARGO Jr., 2007, p. 27).

O pesquisador obteve 1.524 ocorrências de objeto direto de 2SG, sendo

595 dados provenientes da modalidade formal (39%) e 929, da modalidade

informal (61%). Quanto às estratégias de manifestação do acusativo, Camargo

Jr. (2007) verificou a ocorrência, em ambas as modalidades, de formas clíticas,

pronomes tônicos, sintagmas nominais e de objeto nulo. A distribuição em

termos de frequência, no entanto, se altera expressivamente na comparação

entre as modalidades: nas produções formais, prevaleceram os SNs (46,1%),

seguidos dos clíticos (41,5%), pronomes tônicos (9,1%) e objetos nulos (3,3%);

já nas produções informais, os clíticos são majoritários (83,2%), seguidos dos

pronomes tônicos (12,2%), objetos nulos (3,2%) e SNs (1,4%).

Com relação aos dados de clítico, interessa-nos observar a atuação das

variáveis modalidade discursiva e série escolar. Apresentamos, na Tabela

2.14, a distribuição encontrada pelo autor:

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50

MODALIDADE SÉRIE ESCOLAR TE O/A LHE

FORMAL

5ª SÉRIE 12/57 – 21% 24/57 – 42,1% 21/57 – 36,9%

6ª SÉRIE 19/61 – 31,1% 34/61 – 55,7% 08/61 – 13,2%

7ª SÉRIE 20/82 – 24,4% 57/82 – 69,5% 05/82 – 6,1%

8ª SÉRIE 05/47 – 10,6% 37/47 – 78,8% 05/47 – 10,6%

INFORMAL

5ª SÉRIE 146/179 – 81,5% 22/179 – 12,4% 11/179 – 6,1%

6ª SÉRIE 141/162 – 87% 18/162 – 11,2% 03/162 – 1,8%

7ª SÉRIE 175/219 – 80% 31/219 – 14,1% 13/219 – 5,9%

8ª SÉRIE 190/212 – 89,7% 16/212 – 7,5% 06/212 – 2,8%

Tabela 2.14 – A distribuição das formas clíticas acusativas de 2SG em correlação com a modalidade discursiva e a série escolar em textos de alunos do Ensino Fundamental II da

cidade de São Paulo (SP). (Adaptado de CAMARGO Jr., 2007, p. 50; 65)

No que diz respeito à modalidade discursiva, percebemos que

predominam formas distintas, independentemente da série escolar: nas

produções formais, os alunos empregam recorrentemente a variante o/a,

enquanto que, nas produções informais, eles preferem utilizar o clítico te. A

variante lhe não é a mais frequente nos dados de nenhuma série escolar,

independentemente da modalidade observada. Nos dados dos alunos das 6ª e

7ª séries, lhe é, inclusive, a forma menos frequente da modalidade formal

(13,2% e 6,1%, respectivamente), ficando atrás de te (31,1% e 24,4%, na

mesma ordem). Com relação às séries escolares, um fato chama a atenção: o

aumento gradativo de utilização da variante o/a nos textos formais. Os índices

dessa variante crescem, de uma série para outra, em uma proporção média

de 12%, alcançando um percentual de 78,8% na oitava série (frente aos 42,1%

da quinta série).

Os resultados sugerem que a escolarização cumpre um papel

importante na aquisição/aprendizagem dos clíticos pelas crianças e jovens,

principalmente do clítico o/a. Notamos, todavia, um fato curioso: o registro de

ocorrências do clítico te na modalidade formal. Mesmo que a frequência não

seja tão expressiva (22,7%, o que traduz 56 das 247 ocorrências de clítico na

modalidade formal), esse fato evidencia a “força” dessa variante nas variedades

do Sudeste, capaz de ser preservada mesmo em um contexto desfavorável:

uma tarefa de produção escrita escolar segundo a modalidade formal.

Em relação à variedade mineira, temos o estudo sincrônico de Mota

(2008) acerca da variação entre tu e você na cidade de São João da Ponte, no

norte do estado de Minas Gerais. A autora investigou se haveria tendências de

mudança pronominal no dialeto falado na referida cidade, eminentemente

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51

rural, e quais seriam as razões de ordem sócio-histórica que poderiam explicar

o tratamento a ser encontrado na localidade. Para fins de análise, Mota (2008)

elaborou uma amostra formada por entrevistas sociolinguísticas e testes de

produção linguística. Todos os 24 informantes possuíam ensino fundamental

e foram estratificados quanto ao sexo e à faixa etária.

No que tange à posição de complemento verbal, Mota (2008) controlou

a função sintática – sujeito ou objeto – exercida pela forma pronominal de

2SG, tanto nos dados das entrevistas quanto nos testes de produção. Para os

primeiros, a pesquisadora encontrou um índice de 48% (28 de 58 ocorrências)

de formas relacionadas a tu na função de objeto10, frente a 4% (19 de 411

ocorrências) de tu na função de sujeito. Essa diferença mostrou-se

significativa na etapa de análise de peso relativo, tendo o pronome tu

registrado um valor de 0.91 como objeto e 0.41 como sujeito. Segundo Mota

(2008, p. 65), “Na posição objeto, a variante preferida é o ‘te’. O uso da forma

átona não constitui uma especificidade da fala do município de São João da

Ponte, pois outros municípios mineiros também a usam”.

Os resultados do teste de produção se assemelham bastante aos dados

das entrevistas. Na função de sujeito, Mota (2008) registrou 21% (33 de 153

ocorrências) da forma tu, ao passo que, na função de objeto, esse índice é de

75% (6 das 8 ocorrências). Novamente, os pesos relativos indicam haver um

efeito significativo da variável sobre o pronome tu: 0.45 para a função de

sujeito e 0.95 para a função de objeto. Embora haja muitos dados da forma

você em posição de sujeito, a autora não teceu qualquer comentário acerca da

possibilidade de combinação entre você-sujeito e te-complemento na

comunidade de fala investigada.

Quanto à variedade carioca, mencionamos os trabalhos de Pimienta

(2013) e de Carvalho e Pinto (2014), iniciando pelo primeiro. Com foco na

função de objeto direto, Pimienta (2013) analisa as variantes pronominais de

2SG utilizadas por falantes do Rio de Janeiro em situações espontâneas e

10 Pelo texto da autora, inferimos que não ocorre apenas a variante te, razão pela qual optamos

por falar em “formas relacionadas”. A autora não detalha quais foram as variantes

encontradas na amostra, mas sabemos, pelo menos, que, além do clítico te, houve ocorrências

da forma tônica tu em posição de complemento como em “Eu vô jogá tu dend’água. (E 11 p. 38)”.

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52

semiespontâneas. Para tanto, a pesquisadora analisou diferentes corpora,

explorando entrevistas sociolinguísticas, conversas instantâneas de um site

de relacionamento e testes de atitude linguística. A variedade de amostras

analisadas deve-se ao fato de que, segundo a autora, “o objeto de estudo desta

investigação apresenta baixa frequência de uso na maioria das situações de

conversação”11 (PIMIENTA, 2013, p. 65). Na abordagem dos dados, ela

subdividiu as ocorrências entre “segunda pessoa apelativa” e “segunda pessoa

não apelativa”, que correspondem, respectivamente, a formas pronominais

com referência definida e arbitrária. Nesta revisão, interessam-nos os dados

atinentes à segunda pessoa apelativa. Outro parâmetro utilizado foi a

predicação da oração em que ocorria o pronome, se simples (envolvendo um

único núcleo verbal) ou complexa (mais de um núcleo verbal).

Em termos gerais, as análises das entrevistas sociolinguísticas e das

conversas espontâneas revelaram que o clítico te é a variante mais frequente

nas orações simples, com um índice de 80,8% (109 de 135 ocorrências),

seguida da forma tônica você (11,9% - 16/135 dados), do objeto nulo (4,4% -

6/135), da forma tu (2,2% - 3/135) e da forma o senhor (0,7% - 1/135). Não

foram registradas ocorrências dos clíticos o/a e lhe nas amostras citadas, o

que parece indicar certa restrição de uso dessas variantes no dialeto carioca,

ao menos nas interações espontâneas e menos formais.

No contexto de orações complexas, os dados do clítico te foram bem

menos frequentes em relação às orações simples: 40% (8 das 20 ocorrências

de objeto direto registradas nesse contexto sintático). Com um número

ligeiramente superior, aparece a forma você, com 45% (9 das 20 ocorrências).

Houve ainda o registro de dois dados da variante o senhor/a senhora e um

dado da forma tu. A redução nos índices de te deve-se, de acordo com Pimienta

(2013), a uma restrição de natureza estrutural, uma vez que, em certos

ambientes sintáticos de articulação de orações, o objeto direto da oração

matriz funciona como sujeito da subordinada; essa possibilidade bloqueia a

ocorrência do clítico te, já que ele é uma forma casualmente marcada.

11 Essa e as demais citações feitas acerca deste trabalho constituem traduções nossas, haja

vista que o texto original foi escrito em espanhol. O trecho mencionado no original: “El objeto

de estudio de esta investigación presenta una baja frecuencia de uso en la mayoría de las situaciones de conversaciones.”.

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53

Em relação ao teste de atitude linguística, Pimienta (2013) apresentou

aos falantes nativos da cidade do Rio de Janeiro questionários compostos de

três páginas, cada uma com sete frases. Destas, cinco apresentavam um

objeto direto de 2SG em uma predicação simples e as outras duas atuavam

como distratoras. Em cada página, a autora utilizou as mesmas frases,

alterando apenas a ordem e a variante pronominal empregada na função de

objeto. O objetivo desse teste era avaliar o status das variantes te, você e tu na

função de objeto direto, especialmente da forma tônica você, devido à sua

baixa frequência de uso nos corpora analisados. Pimienta (2013) pretendia

verificar se a baixa frequência de você como objeto direto estaria relacionada

a uma rejeição de uso por parte dos falantes.

Os resultados revelaram certa semelhança na avaliação e aceitação das

variantes te e você, que foram muito bem avaliadas e amplamente aceitas.

Destacamos as avaliações dadas para as frases na Figura 2.4, em que

podemos verificar o efeito da combinação do pronome você na posição de

sujeito com o clítico te em posição de complemento:

Figura 2.4 – Avaliações dos informantes acerca de frases que combinam você-sujeito com as

formas te e você na posição de objeto direto. (Extraído de PIMIENTA, 2013, p.122)

O percentual de participantes que atribuíram a resposta “natural” para

as frases com as duas variantes é bastante alto. Em todos os níveis de

escolarização, essa opção de resposta obteve um índice superior a 70%, o que

parece traduzir uma alta aceitação de ambas as variantes. Ressaltamos,

ainda, o fato de que na frase com o clítico te os percentuais são um pouco

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mais elevados do que na frase com você em três dos quatro grupos analisados

(“9º ano do ensino fundamental”, “2º ano do ensino médio” e “Universitários

diversos”). Essa diferença é mais expressiva entre os universitários diversos

(100% para te contra 80% para você). Ao discutir esses resultados em

consonância com os dados de corpora, Pimienta (2013, p. 146) observa que

“embora ambas as variantes tenham demonstrado altos níveis de aceitação

nos questionários de atitude linguística, os resultados quantitativos nos

corpora analisados demonstraram um alto uso da forma te e o baixo uso da

forma você” 12.

Como hipótese, a autora atribui esse resultado a diferentes graus de

formalidade envolvendo as variantes, uma vez que a forma você poderia ser

considerada como mais formal em contraste com a variante te. Colocamos,

entretanto, esse argumento em xeque. É possível que a autora tenha se

pautado na variação que ocorre semelhantemente no espanhol, em que a

forma usted (equivalente a você) é uma estratégia formal. No caso do PB,

contudo, não parece coerente afirmar que você seja mais formal do que te;

uma evidência disso seria o próprio resultado do teste de aceitação que

Pimienta (2013) encontrou para as frases que combinavam você (sujeito) e te

(complemento).

A utilização do clítico te como variante de 2SG é tão expressiva que

chega a figurar nas falas de personagens em roteiros de seriados televisivos.

É o que sugere o trabalho de Carvalho e Pinto (2014). As autoras analisaram

a representação pronominal da 2SG em episódios dos seriados A Diarista e

Sexo Frágil, veiculados pela Rede Globo. Em termos quantitativos, as

pesquisadoras notaram que o pronome você era a forma pronominal mais

frequente na posição de sujeito – 70% dos dados de Sexo Frágil (116/166

ocorrências) e 35% de A Diarista (68/197 ocorrências) –, enquanto que o clítico

te prevalecera nas posições de complemento acusativo e dativo, como mostra

a Tabela 2.15:

12 “mientras ambas variantes mostraron altos niveles de aceptación en los cuestionarios de actitudes lingüísticas, los resultados cuantitativos en los corpora analizados mostraron un

alto uso de la forma te y el bajo uso de la forma você.”

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ACUSATIVO DATIVO

TE O/A LHE VOCÊ SENHOR TE LHE A/PARA

VOCÊ

A/PARA O

SENHOR

A

DIARISTA

16/26

61,5%

02/26

7,7%

--

--

01/26

3,8%

07/26

27%%

06/11

54,5%

01/11

9,1%

04/11

36,4%

--

--

SEXO

FRÁGIL

09/21

42,8%

--

--

02/21

9,6%

06/21

28,6%

04/21

19%

06/13

46,1%

03/13

23,1%

02/13

15,4%

02/13

15,4%

TOTAL 25/47 02/47 02/47 07/47 11/47 12/24 04/24 06/24 02/24

Tabela 2.15 – Distribuição das variantes acusativas e dativas de 2SG em roteiros de

seriados televisivos (adaptado de CARVALHO E PINTO, 2014)

Mesmo o conjunto de dados sendo bastante reduzido, percebemos que

o clítico te constitui sempre a variante mais frequente nos roteiros dos dois

seriados e nas duas posições de complemento. Além disso, na função

acusativa, as formas tônicas você e senhor também registram certa

produtividade. Em função dativa, a segunda variante mais produtiva, depois

de te, são os sintagmas preposicionados a/para você. O clítico lhe foi

registrado na amostra em apenas 2 ocorrências de acusativo e 4 de dativo.

Dentre as variantes contabilizadas, as 2 ocorrências do clítico o/a são

bastante curiosas, haja vista que essa forma não representa uma estratégia

frequente no PB atual, principalmente na modalidade falada, o que fez com

que as pesquisadoras tenham interpretado esses dados como um

artificialismo dos roteiristas.

Uma vez que os roteiros são textos escritos com objetivo de serem

oralizados pelos atores e, como sabemos, os atores possuem certa liberdade

para alterar as falas dos personagens, na tentativa de torná-los mais

verossímeis em relação à história representada, Carvalho e Pinto (2014)

decidiram contrapor, qualitativamente, alguns dados levantados no roteiro

escrito com o que efetivamente foi produzido pelos atores em cena. Dentre as

substituições identificadas a partir dos vídeos dos episódios, destacam-se

duas modificações feitas pelos atores em favor do uso do clítico te.

Transcrevemos em (07-08) os referidos trechos:

(07) Roteiro: “Diaba loira. Deus a leve e o demônio a carregue. Vou tratar é de eliminar as

provas fajutas.” (A Diarista)

Gravação na TV: “Diaba ruiva. Vai! Vai com Deus e o demônio que te carregue. Vou tirar

essas provas daqui.” (A Diarista)

(08) Roteiro: “Edu: Ele não vai ficar bravo comigo? / Priscila: Relax. Ele adora você.” (Sexo

Frágil)

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Gravação na TV: “Edu: Não conte pra Fred não, Fred vai ficar puto. / Priscila: Relaxe, relaxe,

o Fred te adora.” (Sexo Frágil)

Em (07), a atriz modificou a passagem na qual havia as duas ocorrências

do clítico a como 2SG, substituindo-as em uma única ocorrência do clítico te.

Percebemos que, apesar de a passagem ter feições de uma construção

cristalizada (um provérbio popular), ainda assim a atriz alterou o clítico

previsto no roteiro pela forma te. Também em (08) ocorre uma modificação,

nesse caso, envolvendo a forma você. Esse exemplo ilustra a discussão de

Pimienta (2013), revisitada em parágrafos anteriores: a forma você em posição

de complemento, mesmo sendo bem aceita pelos falantes do Rio de Janeiro,

não apresenta a mesma frequência de uso observada para o clítico te; em

outras palavras, parece que você-complemento é possível e aceitável, mas não

é a forma preferível. De forma geral, não haveria problemas se o ator

mantivesse a forma do roteiro; no entanto, ele a substitui por te, possivelmente

até em uma atitude inconsciente.

Para darmos prosseguimento à revisão dos estudos sincrônicos,

exploramos, na sequência, as investigações realizadas acerca das variedades

do Nordeste.

- Nordeste

Para a revisão dos estudos sincrônicos que tratam direta ou

indiretamente da questão da 2SG pronominal em posição de complemento nos

dialetos nordestinos, resenhamos os trabalhos de Dantas (2007), Brito (2010),

Alves (2015) e Almeida (2016). Em geral, os dados analisados foram obtidos a

partir de amostras de fala, em sua maioria seguindo o modelo de entrevista

sociolinguística. Quanto aos estados que figuram nesses estudos, há

resultados referentes ao Ceará, Maranhão e Bahia, com destaque para este

último, no qual foram realizadas investigações em diferentes cidades

(Salvador, Santo Antônio de Jesus e Caém). As análises sincrônicas dialogam

com os resultados diacrônicos no que se refere à produtividade do clítico lhe

nas variedades nordestinas, apesar de a maioria dos estudos salientar a

existência de índices relevantes do clítico te.

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Com o intuito de realizar um estudo contrastivo entre as variedades

brasileira e europeia do português, Dantas (2007) investigou as estratégias de

dativo de terceira pessoa do singular (3SG) em dados de falantes cultos do

Brasil (inquéritos do corpus Porcufort) e de Portugal (inquéritos do corpus

CRPC). Como representante da variedade brasileira, a autora escolheu o

dialeto fortalezense (CE). Ao contemplar as ocorrências do clítico dativo lhe,

ela analisou a pessoa do discurso ao qual pertencia o pronome, isto é, se os

dados de lhe estabeleciam referência com a 2SG ou 3SG. Os resultados

obtidos são os que seguem na Tabela 2.16:

Variedade 2SG 3SG Total

PB 40/43

93%

03/43

7%

43/171

25%

PE 05/128

4%

123/128

96%

128/171

75%

Tabela 2.16 – Ocorrências do uso do clítico lhe em relação às pessoas do discurso nas duas

variedades do português (adaptado de DANTAS, 2007, p. 113; 163)

Os dados mostram que o emprego do clítico lhe no PB está fortemente

vinculado à representação da 2SG, diferentemente do que se verifica para o

PE, em que essa forma atua significativamente com referência à 3SG. Embora

os dados do clítico na amostra lusitana sejam o triplo da quantidade

encontrada na amostra brasileira, a distribuição geral em relação às pessoas

do discurso é inversamente proporcional. Os resultados de Dantas (2007)

dialogam com os dados de Almeida e Deus (2011) a partir de cartas baianas

do século XIX: conforme discutimos em 2.1.1, a documentação remanescente

de remetentes semicultos dos oitocentos evidencia a mudança no estatuto

gramatical do clítico lhe no PB, que é sincronicamente demonstrado por

Dantas (2007).

A autora relaciona a maciça utilização de lhe com referência à 2SG na

variedade cearense à presença do pronome você no sistema de tratamento

familiar. Segundo ela, no corpus de Fortaleza, “o uso do clítico lhe foi

privilegiado em detrimento do te. Parece existir certa rejeição em se usar o

pronome te concordando com você, optando-se pelo uso do lhe, numa sintaxe

próxima da lusitana”. (DANTAS, 2007, p. 114). No nosso entendimento, há

dois problemas na argumentação da autora quanto à hipótese de prevalência

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de lhe sobre te na variedade cearense: (i) não cabe associar os usos

pronominais de você e lhe verificados no Brasil aos usos que se verificam na

variedade lusitana, uma vez que, como os próprios dados da pesquisadora

revelaram, a referência de lhe no PE é bem distinta da referência no PB; (ii)

não são fornecidos, no trabalho, os índices de ocorrência do clítico te na

amostra, de modo a evidenciar a prevalência de lhe mencionada.

Em relação à variedade baiana, temos o estudo de Brito (2010) acerca

da realização do objeto direto nas três pessoas gramaticais. A partir de uma

amostra de fala da comunidade rural de Piabas (Caém-BA), a autora

investigou os fatores internos e externos que condicionam a representação do

objeto direto, observando, principalmente, a correlação entre nível de

escolaridade e utilização de clíticos pronominais. Os dados foram obtidos de

12 informantes analfabetos e semianalfabetos, divididos por faixas etárias.

No que tange à 2SG, Brito (2010) obteve apenas 11 dados. Como formas

variantes na amostra, ela detectou a presença do clítico te (03 oco.), clítico lhe

(04 oco.) e do pronome lexical você (1 oco.), além do objeto nulo (03 oco.).

Quanto à variável faixa etária, a autora observou que as variantes clíticas se

fazem presentes na fala tanto dos jovens quanto dos idosos da comunidade.

Os mais jovens não utilizaram objeto nulo de 2SG, ao passo que os mais velhos

não empregaram o pronome lexical. Sobre a correlação entre escolaridade e

uso de clíticos, a autora relata que a hipótese inicial previa maior frequência

de uso do pronome lexical, haja vista o baixo grau de escolarização dos

informantes. Contudo, ela conclui que “no que diz respeito a clíticos de 2a

pessoa em posição de objeto seu uso não pode ser atribuído à escolarização”

(BRITO, 2010, p. 74). A autora não tece nenhuma consideração acerca das

formas pronominais utilizadas na posição de sujeito e, por essa razão, não há

dados ou comentários relativos à correlação entre você e te.

No trabalho de Alves (2015), que toma como base a variedade de São

Luís (MA), o foco central é a variação da segunda pessoa e a configuração do

sistema de tratamento da localidade, a partir da fala de indivíduos

escolarizados. A autora controlou, de maneira ampla, as variantes

identificadas em diferentes contextos morfossintáticos, ainda que o interesse

principal fosse a posição de sujeito. No corpus, predominaram formas do

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paradigma de tu, fato que a autora associa à identificação que as pessoas

costumam fazer entre o dialeto ludovicense e o uso de tu-sujeito com

concordância. No entanto, ao referir-se às formas verificadas em outras

posições sintáticas, Alves (2015, p. 84) destaca que “tamanha é a

produtividade das formas te, ti, contigo que, em nosso corpus, o você foi

registrado em sua maioria na função de sujeito”.

Efetivamente, a pesquisadora contabilizou 55 ocorrências do clítico te,

12 da forma contigo e ainda 7 de Prep+ti. Das formas relacionáveis ao

paradigma de você, constam apenas 4 dados de Prep+você. No que diz respeito

ao clítico lhe, Alves (2015) observa que essa variante, na amostra analisada,

constitui uma marca de formalidade/distanciamento entre os interlocutores e

só apareceu em correlação com a forma senhor/a na posição de sujeito:

(...) convém dizer que o também peculiar uso da forma lhe entre os

falantes ludovicenses está associado ao nível de formalidade da situação e/ou distância entre os falantes. O percentual de 15,4% de

lhe relacionado à forma senhor/a marca a própria natureza da relação

social entre os interlocutores. (ALVES, 2015, p. 85)

A autora fornece alguns exemplos ilustrativos desse valor pragmático

assumido pelo lhe. Observamos, em (09-10), que essa variante é empregada

em relações marcadamente assimétricas – professor e aluno, pai e filho –, o

que sinaliza a marca de distanciamento entre os indivíduos.

(09) Professora, deixa só eu lhe mostrar se tem alguma coisa que é pra gente concluir logo.

(10) Oh papai, eu vou lhe dar um tablet. Tá ouvindo? (ALVES, 2015, p. 85).

Quanto à possibilidade de correlação entre você-sujeito e te-

complemento, a pesquisadora afirma que “(...) já se nota a coexistência do

clítico te junto ao você (...) visto que o sistema oferece várias possibilidades de

uso, em situações concretas de fala (...)” (ALVES, 2015). Todavia, não

apresenta, em seu trabalho, índices quantitativos ou exemplos dessa

combinação detectados no corpus.

Retornando à variedade baiana, temos o trabalho de Almeida (2016),

fruto de estudos anteriores realizados pela própria autora (ALMEIDA, 2009;

2014). A pesquisadora investiga o uso dos pronomes de 2SG em posição de

objeto no sistema de tratamento de duas localidades baianas: Salvador e

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Santo Antônio de Jesus. Assume, como hipótese, que o emprego do clítico lhe,

bastante produtivo na fala de ambas as cidades estudadas, relaciona-se com

as variáveis extralinguísticas faixa etária, sexo/gênero e o tipo de relação

estabelecida. Como corpus de análise, Almeida (2016) utilizou amostras de fala

provenientes de 24 informantes (12 de cada uma das cidades), divididos

equanimemente de acordo com o sexo/gênero, faixa etária (25 a 35, 45 a 55 e

65 a 85 anos) e nível de escolaridade (fundamental e superior).

Por meio de questionários construídos para eliciar a produção de formas

pronominais de 2SG durante a entrevista, a autora conseguiu obter 516

ocorrências de objeto direto com referência à segunda pessoa do singular (218

dados de Salvador e 298 dados de Santo Antônio de Jesus). A Figura 2.5

ilustra as variantes encontradas e seus percentuais de frequência:

Figura 2.5 – Distribuição das formas de representação do objeto direto de 2SG

em Salvador e Santo Antônio de Jesus (BA) (extraído de Almeida, 2016, p. 127)

Verificamos que as formas lhe e te apresentam índices bem próximos,

que, se somados, respondem a mais de 70% dos dados da amostra. Na capital

da Bahia, Salvador, são 91 ocorrências de lhe ao lado de 83 de te. Em Santo

Antônio de Jesus, são 122 ocorrências daquele frente a 92 deste. Se, por um

lado, esses dados reafirmam a identificação das variedades nordestinas com

o uso de lhe de 2SG, especialmente em função acusativa, por outro, revelam

a necessidade de relativizar a ideia de que te não ocorre ou não é produtivo

nas mesmas.

É inegável que o clítico lhe seja uma estratégia muito produtiva no

dialeto baiano, se compararmos aos usos de falantes da região sudeste, por

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exemplo. Contudo, o fato de haver uma produtividade maior de lhe não

significa que não haja uma produtividade considerável de te. Desse modo, a

hipótese defendida nesta tese, segundo a qual teríamos no PB a preservação

de te após a difusão de você, também encontra respaldo nas variedades em

que te compete diretamente com lhe; não temos notícia, até então, de nenhum

estudo que aponte alguma localidade brasileira onde te não seja utilizado

dentre as formas de 2SG.

O controle da variável faixa etária oferece-nos resultados coerentes com

o posicionamento defendido nas linhas anteriores. Almeida (2016) postulou,

como hipótese para essa variável, que o clítico lhe seria empregado

preferencialmente pelos indivíduos da faixa 3 (acima de 65 anos de idade),

uma vez que, segundo ela, “o comportamento mais conservador atribuído a

esse grupo o faria optar por uma forma com traço [+respeito/cortesia]”

(ALMEIDA, 2016, p. 129). Na Figura 2.6, reproduzimos a atuação da faixa

etária sobre os usos do objeto direto de 2SG:

Figura 2.6 – A atuação da variável faixa etária sobre os clíticos de 2SG

em Salvador e Santo Antônio de Jesus (BA) (extraído de Almeida, 2016, p. 130)

Como podemos observar, a hipótese proposta por Almeida (2016)

encontra respaldo nos dados. Valendo-se dos índices de peso relativo, a

pesquisadora demonstra que os falantes mais idosos favorecem o uso da

forma lhe (.800). Entre os falantes da faixa 2, o favorecimento ao uso de lhe

permanece, porém com um índice menor (.600). Já os indivíduos da faixa 1,

os mais jovens da amostra, apresentam um padrão oposto, uma vez que

favorecem a ocorrência de te (.800). Se olharmos para esse resultado como um

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estudo de tempo aparente (cf. LABOV, 1994), temos, então, um prognóstico

de mudança na variedade baiana: a preferência de te pelos mais jovens em

detrimento de lhe pode ser indicativa de que aquele pronome poderá se

generalizar na posição de complemento combinando-se com você-sujeito,

assim como já se verifica em outras regiões brasileiras.

Além da questão etária, outro resultado interessante diz respeito ao tipo

de relação entre os interlocutores. Reconhecendo que as formas variantes

podem assumir valores sociopragmáticos distintos – tais como solidariedade,

cortesia, deferência, informalidade etc –, Almeida (2016) observou em que tipo

de interação ocorriam as variantes de 2SG. Sua hipótese era que o uso de lhe

seria favorecido em relações assimétricas ascendentes (isto é, de inferior para

superior, como funcionário e patrão, aluno e professor etc), visto que essa

variante resguardaria certo valor de cortesia e polidez linguística. O percentual

de frequência (78% - 28 de 36 dado) e o peso relativo (.800) sustentaram a

hipótese, indicando que “quando o falante dirige-se a um interlocutor com

quem mantém certo distanciamento ou quando deseja demonstrar deferência,

dá preferência ao clítico lhe” (ALMEIDA, 2016, p.133).

A fim de concluir o panorama dos estudos sincrônicos, trataremos, na

sequência, de estudos que exploraram comparativamente mais de uma

cidade/região brasileira ao analisarem as formas de complemento verbal de

2SG.

- Análises inter-regionais sincrônicas

As análises sincrônicas consideradas como inter-regionais focalizam os

estados das regiões Sudeste e Nordeste e oferecem um retrato, ainda que

incompleto, da configuração diatópica atual da representação de 2SG.

Apreciamos, nos parágrafos subsequentes, os estudos de Herênio (2006),

Arruda (2006) e Lessa (2014).

Com base em 43 entrevistas sociolinguísticas realizadas com 90

informantes, Herênio (2006) analisa a variação pronominal entre tu e você nas

cidades de Uberlândia (MG) e Imperatriz (MA). O trabalho visava a explorar a

expressão da 2SG na posição de sujeito, porém a autora analisou também as

formas de objeto em correlação com a forma na posição de sujeito e com a

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localidade. Em relação ao sujeito, Herênio (2006) verificou a existência de dois

padrões, articulados à questão diatópica: enquanto os informantes de

Uberlândia utilizam exclusivamente você, os informantes de Imperatriz

apresentam um padrão variável entre você (73%) e tu (27%).

Ao analisar as formas de complemento verbal, Herênio (2006) verifica

que as formas relacionadas ao paradigma de tu (te, ti)13 foram registradas em

ambas as localidades. Dos 64 dados levantados, 30 ocorreram na amostra

mineira (46,8%) e 34 na amostra maranhense. Nesta última, 14 dos 34 dados

(21,8%) ocorreram em correferência com o pronome tu, enquanto 20 dados

(31,2%) estavam em correferência com a forma você. Ao verificar a existência

da combinação você-sujeito e te/ti-complemento nas localidades investigadas,

a pesquisadora destaca que “(...) o emprego do pronome ‘você’ utilizando em

maior frequência correferentes como ‘te’ e ‘ti’, mostram que além da

importância da segunda pessoa na comunicação, por isso sua grande

frequência, está a diversificação na combinação pronominal (...)” (HERÊNIO,

2006, p.72).

Cabe ressaltar que a autora não relata se registrou a ocorrência de

outras variantes na posição de complemento, principalmente em relação ao

lhe. Apenas informa, na apresentação das variáveis controladas (p.60-61), que

analisou os pronomes oblíquos te, ti e contigo. Dessa forma, não é possível

saber se houve ocorrências de outras variantes e qual foi a distribuição no

corpus analisado.

O estudo de Arruda (2006) analisou, a partir de entrevistas

sociolinguísticas do projeto NURC – Norma Urbana Culta –, as formas

variantes de objeto direto de todas as pessoas do discurso. Dada a natureza

do corpus, a autora pôde comparar dados das capitais de cinco estados

brasileiros: Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Pernambuco e Rio Grande do

Sul. No entanto, devido ao modelo de entrevista do projeto NURC, em que

prevalecem sequências textuais narrativas, o número de ocorrências obtido

por Arruda (2006) para a 2ª pessoa foi baixíssimo (apenas 22 dados), se

13 A autora não separou, em sua análise, a forma clítica (te) da forma preposicionada (prep.+ti).

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comparado às ocorrências da 1ª e 3ª pessoas (92 e 1.683 dados,

respectivamente).

Das localidades investigadas, a pesquisadora não registrou nenhuma

ocorrência de 2SG para a cidade de Salvador (BA), de maneira que os 22 dados

se subdividem pelas outras cidades: 12 ocorrências entre os informantes de

Recife (PE), 5 entre os de Porto Alegre (RS), 3 entre os de São Paulo (SP) e 2

entre os do Rio de Janeiro (RJ). Quanto às formas variantes empregadas,

Arruda (2006) contabiliza 10 ocorrências do clítico lhe (das quais, 5 são de PE,

4 do RS e 1 de SP), 4 do clítico te (sendo 2 do RJ, 1 do RS e de PE), 4 da forma

tônica você (todos de PE) e 2 da forma a senhora (registrados nos dados de

SP).

Diante das rarefatas ocorrências de objeto direto de 2SG na amostra,

Arruda (2006) limita-se a comentar o quadro variável de formas que atendem

a essa pessoa do discurso; mesmo tendo contabilizado poucos dados, foi

possível atestar a ocorrência de 4 variantes, dentre elas 2 formas clíticas. Além

disso, a autora salienta o uso da variante lhe – a mais frequente – como objeto

direto, evidenciando a ausência da forma o/a, que, teoricamente, deveria

atuar nesta função sintática. Quanto à possibilidade de associação entre você-

sujeito e te-objeto, Arruda (2006) não tece nenhum comentário; constatamos,

todavia, em um exemplo apresentado no trabalho, dentre os dados do Rio de

Janeiro, a ocorrência dessa associação, reproduzida em (11). O exemplo é

indicativo de que, mesmo na fala culta, é possível detectar a combinação entre

as formas em destaque:

(11) “tem pra cama aquela que você bota e no dia seguinte a empregada te olha assim com

uma cara de que você é assim a própria megera” (NURC – Rio de Janeiro / DID-012)

(ARRUDA, 2006, p. 62)

Além das pesquisas feitas a partir de entrevistas, mencionamos o

trabalho de Lessa (2014), que analisou a configuração das formas de

tratamento em diferentes contextos morfossintáticos com base nos roteiros do

seriado da Rede Globo As Brasileiras. Aproveitando o mote da atração

televisiva, que tenta reconstruir na ficção um quadro da sociedade brasileira

em diferentes localidades, a autora selecionou cinco episódios ambientados

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em diferentes cidades (Porto Alegre, Belo Horizonte, São Paulo, Salvador e

Olinda). Essa seleção não foi aleatória, uma vez que,

Parte-se da hipótese de que em Porto Alegre na região sul do Brasil

predomina o paradigma de tu. Em Belo Horizonte e São Paulo,

representantes da região sudeste, teríamos o uso produtivo de você.

Para a região nordeste, há Salvador em que prevalece você ao passo

que em Olinda a variação entre as duas formas é recorrente. (LESSA, 2014, p. 7)

No que concerne às formas de complemento verbal, a pesquisadora

controlou as variantes de 2SG de acordo com a função sintática (acusativo,

dativo ou oblíquo). Na função acusativa, foram detectadas ocorrências das

formas te, lhe, o/a e você, além do objeto nulo. Quanto às localidades, os

roteiros dos episódios ambientados em Belo Horizonte, São Paulo e Olinda

apresentaram dados de acusativo. O clítico te foi a variante mais frequente14

no roteiro das três cidades – 100% das ocorrências de Belo Horizonte, 65% de

São Paulo e cerca de 70% de Olinda. Além de te, no episódio de Olinda,

registrou-se pouco mais de 30% de dados de você. No roteiro paulistano,

houve 12% de objeto nulo e de o/a, e cerca de 6% de você e lhe. A respeito dos

resultados deste último roteiro, Lessa (2014, p. 33) associa a presença de

determinadas formas, como os clíticos lhe e o/a, à construção de estereótipo

de alguns personagens: “Por apresentar personagens membros da elite

paulistana, em situações nas quais têm por objetivo mostrar seu alto grau de

instrução, o roteiro de São Paulo apresenta falas estereotipadas relacionadas

a tal classe social”. Ilustramos, em (12-14), alguns exemplos elencados pela

autora contendo as formas lhe e o/a:

(12) “Os meus funcionários conseguiram lhe ajudar?”

(13) “Pena que eu não possa recebê-la”

(14) “Eu adoraria ajudá-la”

Para a função dativa, Lessa (2014) encontrou ocorrências nos roteiros

de todos os episódios analisados. O clítico te foi a variante mais frequente nos

dados de Porto Alegre (80%), Belo Horizonte (80%) e Salvador (56%). Dentre

os dados de Olinda, predominou a variante para você (62,5%) seguida do

14 Ao longo do trabalho, Lessa (2014) fornece apenas os índices percentuais das variantes, não informando os números de ocorrências.

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clítico te (37,5%). Já nos dados de São Paulo, o clítico lhe prevaleceu (66,7%)

sobre o clítico te (33,3%). A forma lhe também foi registrada entre as

ocorrências de Porto Alegre (10%). O objeto nulo foi detectado entre os dativos

de Salvador (33%) e Porto Alegre (10%). A autora relaciona as ocorrências do

clítico lhe na função dativa a uma motivação pragmática (assim como propõe

para o acusativo): os exemplos reproduzidos em (15-17) remetem a cenas

marcadas por assimetria entre os personagens, sendo lhe utilizado para

marcar distanciamento entre os interlocutores. Uma dessas ocorrências,

inclusive, aparece em correferência com a forma de tratamento o senhor:

(15) “Eu não sei se lhe ocorreu que eu comprei o vestido antes” [“A venenosa de Sampa”]

(16) “Eu lhe digo o que há de errado” [“A venenosa de Sampa”]

(17) “Eu gostaria de lhe perguntar se o senhor sabe quem foi que (...)” [“A fofoqueira de Porto

Alegre”]

De maneira geral, Lessa (2014) ressalta o fato, já verificado em outros

estudos, de que os roteiros evidenciam a preservação de uso do clítico te:

“apesar da forma você ser mais produtiva em posição de sujeito, o clítico te foi

predominante tanto em posição acusativa quanto dativa” (p. 39). Tal

constatação reforça a possibilidade de combinação entre a forma emergente

você, na posição de sujeito, e a forma remanescente te, na posição de

complemento. Ainda que não tenha analisado quantitativamente essa

combinação, Lessa (2014) fornece exemplos dessa possibilidade, expostos em

(18-19):

(18) “Se eu te chamar pelo nome, você fica mais inteligente?” [A venenosa de Sampa]

(19) “Eu sei que você só me deu notícias boas, mas eu preciso te dar uma que não sei se você

vai gostar” [A culpada de BH]

Para encerrar a revisão dos trabalhos sincrônicos, podemos assinalar

como pontos principais observados nas investigações que: (i) a alta frequência

das formas te e lhe mostra que, diferentemente da 3SG, a representação da

2SG no PB é estabelecida principalmente por clíticos pronominais; (ii) há,

sincronicamente, nos diferentes dialetos do PB, um conjunto relativamente

numeroso de formas de referência à 2SG para a posição de complemento

verbal (as formas clíticas te, lhe e – mais raramente – o/a; as formas tônicas

você e o senhor; as formas preposicionadas a/para você e a/para ti; e o objeto

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nulo); (iii) a variante lhe parece ser fortemente condicionada por fatores de

ordem extralinguística, tais como região de origem do falante, faixa etária e

tipo de relação entre os interlocutores; (iv) As diferentes amostras de análise

evidenciam a preservação da forma te (em maior ou menor escala) nas diversas

variedades estudadas, combinando-se, em muitos casos, com a forma

inovadora você na posição de sujeito.

Após o panorama apresentado, algumas questões permanecem: como

explicar a preservação da forma te no sistema pronominal do PB,

principalmente nas variedades em que você, praticamente, já se

implementou? O que favorece esse item remanescente do paradigma do antigo

pronome tu, do qual parece ter se desvinculado, garantindo sua

sobrevivência? E, principalmente: como os linguistas tentam explicar a

preservação de te?

2.2 A preservação do clítico te: algumas hipóteses

Embora a possibilidade de associação entre o clítico te e a forma você

na posição de sujeito seja recorrentemente descrita na literatura linguística

(como verificamos em 2.1), poucos são os estudiosos que se arriscam a propor

uma explicação para o fenômeno. Dentre esses trabalhos que abordam a

questão em alguma medida, identificamos três linhas gerais de argumentação:

(i) a primeira baseada em motivações (sócio)pragmáticas (CAMARA Jr., 1970;

MONTEIRO, 1991; MENON, 1995; NEVES, 2011); (ii) a segunda pautada em

aspectos morfossintáticos (BRITO, 2001; GALVES et al. 2016; OTHERO E

CARDOZO, 2017); (iii) a terceira fundamentada nos postulados teóricos da

gramaticalização (CASTILHO, 2010; LOPES; SOUZA; OLIVEIRA, 2013).

Revisaremos, a seguir, alguns estudos representativos dessas perspectivas.

2.2.1 Motivações sociopragmáticas

Os pesquisadores que explicam a possibilidade de combinação entre

você-sujeito e te-objeto no PB segundo motivações de ordem (sócio)pragmática

associam isso, de maneira geral, ao traço [+intimidade] presente no clítico,

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herdado do paradigma do pronome tu. Uma vez que as formas átonas previstas

para co-ocorrer com você seriam o/a (acusativo) e lhe (dativo), a ausência

dessa realidade no PB – principalmente na fala, como os autores salientam –

deve-se ao fato de que você é uma forma da intimidade (equivalente a tu) e,

por isso, “atrairia” te em diferentes dialetos do país.

Essa interpretação do fenômeno é sugerida, por exemplo, em Camara Jr

(1970). O autor afirma que “Na área do Rio de Janeiro (...) e alhures, no

português do Brasil, a adoção de você como tratamento de intimidade, num

registro informal, introduz a forma adverbal te ao lado de o, a ou lhe, e assim

aquela forma fica intercambiável com estas duas.” (CAMARA Jr., 1970, p.

120). Percebemos que o linguista reconhece a possibilidade da combinação

em diferentes dialetos do PB, mas a atribui ao registro informal. Como vimos

na seção anterior deste capítulo, essa atribuição não procede, pois em cartas

dos séculos XIX, produzidas por indivíduos com alto domínio dos modelos de

escrita, a combinação já se fazia presente.

Monteiro (1991) é outro autor que adota a mesma linha argumentativa.

Ele apresenta, ao começar a tratar da questão, aspectos diacrônicos que

afetaram o quadro dos pronomes pessoais, ressaltando a emergência de novas

formas pronominais (você(s) e a gente):

O sistema teve então que entrar num processo de reorganização. E a

consequência imediata foi a quebra da uniformidade pessoal nas

relações sintáticas, de tal modo que se criaram novas

correspondências para as formas originalmente privativas de certas funções. Daí resultou a possibilidade de uma série de associações

sintáticas (...). (MONTEIRO, 1991, p. 250)

De um ponto de vista estrutural, o autor relaciona a combinação entre

você e te “à extinção gradual dos pronomes átonos o e a, de emprego às vezes

ambíguo” (MONTEIRO, 1991, p. 251), diferentemente de Camara Jr, que

propõe a possibilidade de alternância entre os três clíticos (o/a, lhe e te). Em

relação à oposição te e lhe, o autor menciona a explicação de Moreira Silva

(1983, p. 12 apud MONTEIRO, 1991, p. 252), segundo a qual “(...) os clíticos

te e lhe(s) perderam a oposição acusativo x dativo, passando a ter uma nova

distribuição, tendo em vista a possibilidade de que o tratamento seja familiar

(te se associa a você) ou deferencial (lhe corresponde à expressão o senhor)”.

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Baseando-se nesse viés interpretativo, Monteiro (1991, p. 252) defende, então,

que “(...) as modalidades de tratamento se misturam em função de fatores

pragmáticos”.

Ao desenvolver essa perspectiva de análise, o linguista reconhece que a

intercambialidade das formas é reflexo da instabilidade do sistema, relativa

aos processos de mudança diacrônicos, porém afirma que as motivações

discursivo-pragmáticas desempenham um papel decisivo no fenômeno: “A

alternância ou mistura dos itens pronominais sugere, pois, indícios de

flutuação no comportamento dos interlocutores e marca a própria natureza

da relação social. Associar te com você conota talvez maior intuito de

aproximação ou intimidade do que lhe com você” (MONTEIRO, 1991, p. 253).

Em outro parágrafo, o autor chega a desconsiderar a atuação de fatores

morfossintáticos sobre a intercambialidade:

Em nossa visão, o que preside à seleção e combinação de formas

pronominais é menos um conjunto de regras de estruturação sintática

do que os tipos de relação social e as inferências intersubjetivas,

mutáveis de instante a instante. À proporção que varia o modelo desses relacionamentos, tenta acomodar-se também, como se

estivesse girando em sua órbita, todo o sistema dos pronomes

pessoais. (MONTEIRO, 1991, p. 254).

Todavia, Monteiro (1991, p. 253) opta por relativizar esse ponto de vista,

justificando que “só um estudo mais aprofundado nos daria o verdadeiro

alcance e a comprovação dessa hipótese” (p.253). Embora não discordemos da

interferência dos fatores discursivo-pragmáticos no condicionamento do

fenômeno, não assumiremos, como o faz Monteiro (1991), que esta dimensão

da língua se sobreponha às demais. Conforme argumentaremos no próximo

capítulo, parece-nos mais coerente defender que a motivação sociopragmática

é uma das forças que explicarão tanto a preservação de te quanto a

combinação deste com você. Cabe-nos, ainda, mencionar mais dois trabalhos

que seguem o raciocínio de Monteiro.

Menon (1995) assume a mesma explicação teórica apresentada. A

linguista, em um evidente discurso combativo à artificialidade da gramática

tradicional, que defende a “uniformidade de tratamento” (i.e., tu-te-ti-contigo

vs. você-o/a-lhe-se-si-consigo), afirma que “o uso de lhe/te complementos de

verbos transitivos com o pronome você não pode e não deve ser considerado

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erro. Há que se analisar em que condições ocorrem as utilizações de lhe/te,

pois elas não são aleatórias.” (MENON, 1995, p. 100). Ela reconhece a

existência de várias possibilidades de combinação nas diferentes variedades

brasileiras e interpreta isso como um dos “efeitos da introdução de você no

paradigma dos PSUJ no PB”.

Aliando a hipótese sociopragmática ao processo de gramaticalização da

forma você, Menon (1995) postula que a combinação das formas de

paradigmas distintos seria motivada pelo valor de intimidade presente no

clítico te e adquirido por você. A forma lhe, que teoricamente deveria ocorrer

com você, ficaria restrita às situações não íntimas. Um dado interessante na

explicação da pesquisadora diz respeito à proposta de correlacionar o

preenchimento da posição de sujeito com a forma na posição de objeto, como

mostramos em (20-21):

(20) Eu te dou o que você quiser

Eu lhe dou o que 0 quiser.

(21) Eu te faço companhia no aeroporto quando você for viajar

Eu lhe faço companhia no aeroporto quando 0 for viajar” (MENON, 1995, p. 101)

A explicação, contudo, se restringe ao plano teórico, visto que a autora

não chega a mencionar qualquer trabalho que tenha atestado empiricamente

tal correlação. Cabe destacar ainda que, dentre os estudos revisados, nenhum

deles mencionava o controle dessa variável ou mesmo a verificação da mesma

como uma hipótese explicativa para a distribuição das variantes nos corpora.

Neves (2011) é mais uma autora a fundamentar sua explicação da

possibilidade de correlação entre você e te em fatores pragmáticos. Ela associa,

de maneira enfática, essa ocorrência à modalidade falada da língua:

O emprego de VOCÊ é muito mais difundido do que o emprego de TU,

para referência ao interlocutor. Além disso, ocorre frequentemente

(embora mais especialmente na língua falada), que se usem formas de segunda pessoa em enunciados em que se emprega o tratamento

VOCÊ, de tal modo que se misturam formas de referência pessoal de

segunda e de terceira pessoa (NEVES, 2011, p. 458)

Novamente, enfatizamos que a tese de que a combinação entre você e te

seja algo estritamente vinculado à língua falada não se sustenta, visto que

formas interlocutivas de tratamento são estruturas da língua falada por

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excelência; dificilmente elas aparecerão em textos escritos porque cumprem

uma função fortemente vinculada a uma interação verbal face a face. As

exceções são justamente os gêneros textuais que visam a reproduzir ou

idealizar situações comunicativas face a face, tais como cartas pessoais e

peças de teatro. Além disso, a explicação também peca ao dizer que “se

misturam formas de referência pessoal de segunda e de terceira pessoa”.

Sabemos que, na realidade, a dita “mistura” ocorre apenas do ponto de vista

formal, visto que, semanticamente, ambas as formas se referem à 2SG. A

autora não menciona explicitamente a questão do grau de intimidade entre os

interlocutores, mas destaca o caráter dialógico do fenômeno, não colocado

pelos autores mencionados anteriormente: “esse uso ocorre especialmente na

conversação espontânea, e são abundantes os exemplos nos diálogos de peças

teatrais” (NEVES, 2011, p. 458).

2.2.2 Motivações morfossintáticas

Assumindo uma perspectiva mais “gramatical” para explicar a

associação de você-sujeito e te-objeto, outros autores elaboram hipóteses

alicerçadas em diferentes aspectos morfossintáticos. Esses pesquisadores

tentam articular a inovação do sistema pronominal a outras transformações

que têm ocorrido na variedade brasileira desde, pelo menos, o século XIX. De

acordo com essa lógica, a preservação de te frente à difusão da forma você (ao

menos na função de sujeito) seria um dos reflexos do processo de

reestruturação por que passa a gramática do PB.

No trabalho de Brito (2001), vamos encontrar esse viés de análise. A

autora adota como objeto de investigação o problema da uniformidade de

tratamento, com foco central na possibilidade de combinação de que estamos

tratando. Uma vez que as ocorrências de enunciados contendo você na posição

de sujeito e te na posição de objeto são numerosas na amostra que analisa,

Brito (2001) dedica-se a explicar quais fatores estruturais são decisivos no

licenciamento dessa combinação. Segundo ela,

(...) o uso não-uniforme do pronome de 2a pessoa em função de objeto

é condicionado (...) por diferentes variáveis, e, hoje, o falante faz esse

uso como reflexo de outras mudanças ocorridas no PB, mais

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especificamente a mudança na forma de tratamento, na direção de cliticização e no uso do objeto nulo.” (BRITO, 2001, p. 172)

[grifos nossos]

A primeira mudança estrutural que Brito (2001) destaca é a emergência

da forma você, que cria uma instabilidade no sistema de pronomes, pois “(...)

o falante deve levar verbos e pronomes para a 3ª pessoa, (...) mas, do ponto de

vista nocional, você é um pronome que se refere à 2a pessoa do discurso, a

pessoa ‘com quem se fala’ (...)” (p.169). Dessa forma, a pesquisadora procura

justificar que, do ponto de vista semântico, não cabe falar em “mistura” de

tratamento, tal como apregoam algumas gramáticas tradicionais. Estas, ao

defender a simetria de paradigmas – tu-te-ti-contigo versus você-o/a-lhe-se-si-

consigo –, levam em consideração apenas a dimensão morfossintática dos

pronomes, ignorando a dimensão semântica que, na realidade, parece se

sobrepor às diferenças formais.

Além disso, Brito (2001) aponta, como vimos, outros condicionamentos

linguísticos que seriam responsáveis pela preservação de te nos ambientes

sintáticos em que você atua. A mudança na direção de cliticização do PB – que

deixou de ser da direita para a esquerda (o que favorecia a ênclise) e passou a

ser da esquerda para a direita (favorecendo a próclise) – repercute diretamente

na realização das formas átonas, visto que “o onset da sílaba do clítico

acusativo o/a deixa de ser licenciado” (BRITO, 2001, p. 170). Essa modificação

impede que o clítico seja utilizado em diferentes padrões de sentença do PB.

A partir disso, de acordo com a autora, os traços semânticos animacidade,

especificidade e referencialidade é que passam a determinar a possibilidade

de ocorrência de clíticos: de um lado, as formas marcadas como

[+específicas/referenciais] e [-animadas] cedem espaço para a implementação

do objeto nulo; de outro lado, objetos [-específicos/referenciais] e/ou

[+animados] tendem a ser preenchidos por uma forma tônica/lexical.

Desse modo, Brito (2001, p. 171) propõe que, “quando o falante emprega

a forma de tratamento você para seu interlocutor, um antecedente [+

animado], preenche a posição de objeto pelo pronome lexical você, ou emprega

o clítico te, já que os clíticos o/a tornaram-se formas obsoletas”. E a explicação

não cessa por aí: para a pesquisadora, te constitui uma das possibilidades de

preenchimento – em muitos contextos, sobrepondo a você-objeto – porque

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“torna-se um afixo que reflete a concordância existente no sintagma objeto:

te, portanto, reflete a concordância com a pessoa com quem se fala, tratada

atualmente por você” (p. 172).

No trabalho de Galves et al. (2016), as causas formais que podem

explicar o rearranjo das formas de 2SG também são salientadas. Os autores

não atribuem, contudo, as mudanças sofridas pelas formas de complemento

e de outras posições sintáticas às outras transformações gramaticais

ocorridas, mas sim às mudanças ocorridas dentro do próprio sistema

pronominal. O eixo principal da explicação proposta gira em torno da

mudança observada para a posição de sujeito:

(...) como a forma você passa a ser especificada para o traço de pessoa

(2P), a preferência se dará por formas de complemento e possessivo

que também sejam especificadas para o mesmo traço de 2P. As formas

de 3ª pessoa, por sua vez, por não serem especificadas morfologicamente para o traço de pessoa, serão preteridas” (GALVES

et al., 2016, p. 134)

Dito de outro modo, o fator determinante para a preservação ou

emergência de formas pronominais de 2SG seria a especificação de traços que

cada variante apresenta. Sendo assim, “(...) a manutenção das formas

originais de tu como acusativo (te), dativo (te) e genitivo (teu) se justifica pela

ausência do traço de pessoa nas formas originais do paradigma de você, como

as formas de 3ª pessoa de acusativo o/a, dativo lhe e genitivo seu” (p. 134). A

seguir, reproduzimos o quadro que os autores apresentam com o intuito de

sistematizar a explicação proposta:

Quadro 2.2 – A reorganização no quadro pronominal da 2P: formas de você e de tu

(Extraído de Galves et al., 2016, p. 134) Do lado esquerdo do Quadro 2.2, estão as formas que, teoricamente,

deveriam compor o paradigma de você, haja vista que esse pronome é a forma

gramaticalizada de uma expressão nominal (Vossa Mercê). No entanto,

conforme destacam os autores, nenhuma delas é especificada

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morfologicamente para o traço de 2SG, o que explicaria a preservação de te.

Além disso, os pesquisadores chamam a atenção para o fato de que, através

da hipótese de especificação de traços, é possível explicar o licenciamento

(ainda que restrito) de algumas formas de 3SG, tais como o clítico lhe e o

possessivo seu: a restrição gramatical estaria relacionada não só ao traço de

2SG mas também ao traço [+humano]: “somente as formas que apresentam

ao menos um dos traços mencionados passam a compor o paradigma de você;

nos demais casos, observamos a manutenção das formas originais do

paradigma de tu” (GALVES et al., 2016, p. 136).

Outra investigação que merece ser referida é a de Othero e Cardozo

(2017). Embora os autores não se dediquem ao problema da combinação entre

você e te, eles apresentam uma sistematização interessante de ser observada.

Fundamentados nos pressupostos da Teoria da Otimalidade, discutem de que

maneira a emergência de novas formas pronominais no paradigma do PB

contribui para o processo de reestabelecimento da ordem canônica do

português (Sujeito-Verbo-Objeto), que é violada pelo emprego proclítico de

alguns pronomes. No Quadro 2.3, reportamos a distinção feita pelos autores

entre os pronomes que compõem atualmente o sistema do PB:

Quadro 2.3 – Comparação entre as duas classes de pronomes

(Extraído de OTHERO; CARDOZO, 2017, p. XX)

Segundo as características arroladas no Quadro 2.3, o clítico te é, na

proposta dos autores, um “pronome de fato”, ao passo que você é um “pronome

com características nominais”. Soma-se a isso o fato de que Othero e Cardozo

(2017) propõem a existência de dois dialetos no PB quanto ao uso de pronomes

em posição de objeto (direto): o dialeto 1, em que a ocorrência de formas

clíticas é restrita ou inexistente e se verifica o uso irrestrito de formas tônicas

em posição de objeto (quer dos pronomes de fato, quer dos pronomes com

características nominais); e o dialeto 2, em que ocorrem formas clíticas e

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apenas os pronomes com características nominais podem ocorrer na posição

de objeto, isto é, “o dialeto 2 aceita pronomes tônicos com características

nominais em posição pós-verbal, mas não aceita que isso aconteça com

pronomes de fato” (OTHERO; CARDOZO, 2017, p. 1728).

Dentre diversos aspectos levantados pelos pesquisadores, elencamos

aquele que mais se relaciona com nosso objeto de estudo: a preservação de

formas como te no dialeto 2. Em outras palavras: por que frases como “A Maria

disse que te viu ontem”15 são licenciadas e produtivas no dialeto 2 – em

comparação com outras possibilidades, como “A Maria disse que viu tu/você

ontem”, não licenciadas ou de produtividade restrita –, se, do ponto de vista

sintático, o uso do clítico viola a ordem canônica SVO (haja vista a tendência

à próclise do PB)? A resposta oferecida pauta-se numa restrição morfológica

que, consoante os autores, “reflete a condição de Elsewhere ou ‘princípio de

Pānini’ (ANDERSON, 1969; KIPARSKY, 1973; ARONOFF, 1976). Ou seja: o uso

de uma forma mais específica se aplica antes de uma forma mais genérica”

(OTHERO; CARDOZO, 2017, p. 1728).

Pela condição apontada pelos autores, o preenchimento da função de

objeto vai se restringir às formas morfologicamente especificadas para essa

função:

(...) se a língua (o dialeto 2, no caso) dispõe de uma forma pronominal

marcada com caso acusativo, e se há uma função que exige um pronome especializado nessa forma, esse pronome deve ser favorecido,

em detrimento de uma forma pronominal mais “geral” (ou menos

específica). (...) o emprego de pronome não marcado morfologicamente

em função acusativa acarreta obrigatoriamente uma violação.

(OTHERO; CARDOZO, 2017, p. 1728)

Essa interpretação nos permite, conforme desenvolveremos no próximo

capítulo, defender a ideia de independência, ou melhor, de autonomia do

clítico te para a representação de 2SG na posição de objeto. Se a especificação

morfológica de pessoa e função sintática se sobrepõe às restrições sintáticas,

tais como a preservação da ordem direta dos constituintes da sentença, é

plausível pensar que te não está vinculado ao paradigma de nenhum pronome,

15 Frase utilizada como exemplo pelos autores.

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76

mas constitui, ele próprio, uma construção independente na língua,

especializada para se referir à 2SG em posição de objeto.

Quanto ao dialeto 1 proposto pelos pesquisadores, não nos parece

pertinente afirmar que os falantes que produzem/aceitam frases como “A

Maria disse que viu tu ontem” (com pronome de fato e tônico em posição de

objeto) não produzem/aceitam frases como “A Maria disse que te viu ontem”

(com pronome de fato e clítico). Consideramos sem sentido a contundente

afirmação de que “para os falantes do dialeto 1, os pronomes clíticos não fazem

parte de seu vernáculo e não participam de regras produtivas na língua”

(OTHERO; CARDOZO, 2017, p. 1730), haja vista que diversos trabalhos têm

mostrado a produtividade de formas clíticas de 1ª e 2ª pessoas do singular, de

maneira que a afirmação só faz sentido se pensarmos nos clíticos de 3SG e

3PL.

Nosso posicionamento, quanto a isso, é o de que, se existem realmente

dois dialetos no PB atual, no que se refere ao uso dos pronomes pessoais, eles

se diferenciariam apenas quanto ao licenciamento ou aceitabilidade de frases

do tipo “A Maria disse que viu tu ontem”. Esse problema, entretanto, extrapola

os limites da investigação desta tese e necessitaria de uma análise acurada do

emprego de formas nominativas em posição de objeto no PB, tópico que foge

ao alcance dos nossos objetivos. Por ora, são apenas especulações.

2.2.3 Motivações cognitivo-funcionais

A terceira via de análise da preservação de te no paradigma de 2SG em

que prevalece você baseia-se no processo de gramaticalização. Essa hipótese

tem sido sugerida por diferentes trabalhos nas últimas décadas, mas ainda foi

pouco desenvolvida e articulada. Brito (2001), por exemplo, destaca que o

clítico te em posição pré-verbal passa a funcionar como um prefixo de

concordância, porém não fornece maiores detalhes para essa explicação.

Destacaremos aqui dois estudos que trabalham com a hipótese de

gramaticalização. Rotulamos essa subseção como sendo a das motivações

cognitivo-funcionais pelo fato de os autores citados recorrerem, mesmo que

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indiretamente, a fatores relacionados ao uso e à cognição para explicar o

fenômeno.

Castilho (2010) é um dos principais representantes da hipótese de

gramaticalização. Ao tratar das formas pronominais, o autor afirma que “(...)

onde o tu bateu com as botas, ele e seus derivados ressuscitam, quando se

quer afetar distanciamento (...)” (CASTILHO, 2010, p. 479). Sem fornecer

aprofundamentos explanatórios, o linguista fala em um processo de

transformação progressiva dos pronomes pessoais no que denomina

“morfemas prefixais de pessoa”. Segundo ele, esses morfemas seriam mais

frequentes no PB popular e culto coloquial. O Quadro 2.4 ilustra a proposta

apresentada, em que verificamos a extensão dessa análise também para

outras pessoas do discurso:

Pessoas

Prefixos em função de

sujeito no PB não

padrão

Prefixos em função de

complemento no PB

não padrão

Sufixos em função

de sujeito no PB

padrão

P1

{e-}: Eu vou > Evô

{noi-}: Nós vamos >

noivamo

Me encontrou >

Mincontrô

{-o}: falo

{-mos}: falamos

P2

{ce-}: Você vai > Cevai

{ceis-}: Vocês vão >

ceisvão

Te encontrou >

Tincontrô

{-s}: falas

{-ys}: falais

P3

{ey-}: Ele vai > Eivai

{eys-/es-}: Eles vão >

eisvão/esvão

Se encontrou >

Sincontrô

{-Ø}: fala

{-ãw/-ĩ}:

falam/falim

Quadro 2.4 – Transformação dos pronomes pessoais em morfemas verbais número-pessoais

no PB informal. (Extraído de CASTILHO, 2010, p. 482)

Ressaltamos, do Quadro 2.4, a associação direta que o autor faz entre

você em função de sujeito e te em função de complemento. Além disso, vemos

que a morfologização dos pronomes pessoais estaria ocorrendo também, para

Castilho (2010), na posição de sujeito. Ele associa, ainda, essa inovação no

paradigma pronominal a um processo geral do PB, que consistiria em antepor

certas informações procedurais/gramaticais às informações lexicais:

(...) o surgimento dos prefixos pronominais agrega uma evidência a

mais ao movimento de anteposição das marcas gramaticais no PB, fato

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que vem ocorrendo na indicação (i) do plural ozóme, essas coisarada bonito (Amaral, 1922/1977: 48); (ii) do tempo futuro vofalá; (iii) do aspecto imperfectivo e perfectivo tafalano, tafalado; (iv) do modo

verbal popará, quepará; (v) da modalização sentencial asseverativa

disque vai chover; (vi) da modalização sentencial dubitativa áxki vai chover etc. (CASTILHO, 2010, p. 483)

Outro estudo que defende o processo de afixação do clítico te no PB é o

de Lopes, Souza e Oliveira (2013). Ancorados em diversos resultados de

pesquisas baseadas em corpora, os autores argumentam que “(...) a alta

frequência de uso do referido clítico frente a outras formas utilizadas para a

posição de complemento pronominal favoreceu uma automação da

estrutura/construção como marca de segunda pessoa do singular” (LOPES;

SOUZA; OLIVEIRA, 2013, p. 377).

Salientando o impacto da frequência de uso sobre a cognição e, mais

especificamente, sobre a língua, os pesquisadores procuram demonstrar a

existência de uma relação direta entre a alta frequência de te, reportada em

diferentes trabalhos, e a recodificação do mesmo como um afixo. A primeira

evidência destacada diz respeito ao fato da limitada implementação das

formas do paradigma de você na posição de complemento, que estaria ligada

à forte presença de te. Em outras palavras, a forma gramaticalizada você não

ocupa efetivamente o contexto morfossintático de objeto, em seu processo de

difusão, devido à forte presença de te, que a bloqueia. Sendo assim, na posição

de complemento “a forma conservadora (te) se manteve com o apoio estrutural

da sua posição proclítica de adjacência ao verbo e por seu caráter

eminentemente dêitico” (LOPES; SOUZA; OLIVEIRA, 2013, p. 393). Nesse

domínio funcional, de acordo com os autores, te teria se convertido em um

afixo, passando a atuar como um marcador morfológico de 2SG.

Outro aspecto, de caráter estrutural, envolve a homonímia formal de te,

que tem impacto direto no acesso à informação da 2SG na mente dos falantes:

(...) o acusativo e o dativo de 2ª pessoa apresentam o mesmo output fonético: eu te vi (acusativo) e eu te enviei Ø (dativo); isso pode ter

motivado a automação da sequência estrutural (te-Verbo) como uma

única unidade de processamento. Teríamos assim a ritualização de

um tipo de construção muito frequente e mais integrada na língua.

(LOPES; SOUZA; OLIVEIRA, 2013, p. 393)

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Essa proposta de análise vai ao encontro dos princípios e conceituações

que adotaremos nos pressupostos desta investigação. Concordamos que: por

um lado, a alta frequência de uso delineou o processamento cognitivo de te na

mente dos falantes do PB; por outro lado, esse item parece ser a estratégia

preferida pelos falantes na representação da 2SG em posição de complemento

– mesmo para aqueles que não usam tu na posição de sujeito (conforme temos

exaustivamente salientado) –, o que se traduz em uma alta frequência de uso.

Urge buscar, contudo, maiores detalhes para sustentar a hipótese de

motivação cognitivo-funcional. Devemos evitar uma explicação tautológica,

isto é, algo como “o clítico te se gramaticalizou porque era muito frequente e

é, hoje, muito frequente porque se gramaticalizou”. Existem outros fatores de

base cognitiva que atuam a favor da preservação de te dentro da gramática e

que precisam ser explorados. Além disso, não descartamos as análises de viés

(socio)pragmático e morfossintático, pois elas fornecem dados importantes

que podem esclarecer fatos relacionados ao processamento dos clíticos.

Acreditamos, portanto, que o entendimento mais completo acerca da

preservação de te na gramática do PB só será possível se lançarmos luzes

sobre as diferentes faces – gramatical, pragmática e cognitiva – da

representação de 2SG.

2.3 Conclusão

Neste capítulo, revisamos alguns trabalhos já realizados no PB que se

ocuparam, direta ou indiretamente, da representação pronominal de 2SG na

posição de complemento verbal. Através do panorama proposto, tentamos

demonstrar a complexidade do fenômeno, que tem raízes diacrônicas e

manifestações multivariadas, a depender de diversos fatores (localização

geográfica, faixa etária, grau de escolaridade e tipo de interação etc). Mesmo

sendo reconhecida e relatada por vários pesquisadores, a possibilidade de

combinação entre você-sujeito e te-objeto ainda não recebeu um estudo que

buscasse explicar as causas/motivações dessa associação. A partir das

especulações levantadas pelos estudiosos, procuramos ressaltar as razões que

nos levam a defender a motivação cognitivo-funcional do fenômeno, a ser

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testada experimentalmente. Caberá, antes disso, formalizar os princípios

teóricos e a metodologia de pesquisa que nos orientam, algo que será feito no

próximo capítulo.

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3 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E METODOLOGIA

Neste capítulo, apresentamos os pressupostos teóricos em que se

baseiam as hipóteses desta tese e que nortearão as análises dos resultados.

Descrevemos, também, o paradigma da metodologia experimental, adotada

para a investigação empírica do fenômeno em estudo. O capítulo está

estruturado em três partes gerais: na primeira parte, sistematizamos as

definições, premissas, conceitos e princípios concernentes à teoria da

gramaticalização; na segunda parte, discutimos acerca da necessidade de

articulação dos estudos em gramaticalização com questões de base cognitiva,

especificamente o processamento das formas gramaticalizadas; na terceira e

última parte, descrevemos os aspectos metodológicos da abordagem

experimental.

3.1 Gramaticalização

Argumentamos, nesta tese, que a variação dos clíticos pronominais de

2SG verificada nos dados de uso analisados por diversos pesquisadores é

reflexo de um processo de gramaticalização no âmbito da referência ao

interlocutor, especificamente relacionado à pronominalização da construção

Vossa Mercê > você na história do português (principalmente na variedade

brasileira). A repercussão mais latente desse processo de mudança linguística

é, a nosso ver, a preservação do clítico te, variante flexional do antigo pronome

tu em posição de complemento verbal não preposicionado. Embora seja um

fato menos evidente (e, em alguma medida, “invisível” aos olhos dos usuários

da língua), acreditamos que a notável produtividade de te, em um sistema no

qual as formas relacionadas a tu possuem utilização reduzida, restrita e

altamente marcada, se deva também a um processo de gramaticalização

envolvendo esse item e seu verbo predicador.

Antes de adentrarmos, contudo, nas questões mais específicas dessa

hipótese, cumpre esclarecer alguns aspectos importantes, relacionados à

adoção da perspectiva de gramaticalização como pressuposto teórico. O

primeiro deles diz respeito à própria definição do termo, isto é, o que

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entendemos por gramaticalização. Recuperando a conceituação mais antiga,

tradicionalmente atribuída a Antoine Meillet, temos que gramaticalização

seria, grosso modo, o processo através do qual formas mais lexicais se

convertem em formas mais gramaticais. Em seu célebre artigo “A evolução das

formas gramaticais” (fr. “L’évolution des formes grammaticales”), publicado

em 1912, o autor procura explicar alguns fenômenos na história das línguas

indoeuropeias recorrendo à noção de gramaticalização. Meillet postula a

existência de três grandes classes de palavras: as palavras principais,

acessórias e gramaticais. Entre elas, haveria uma transição gradual. Nos

termos do autor,

O enfraquecimento do significado e o enfraquecimento da forma das

palavras acessórias andam de mãos dadas; quando ambos estão bastante avançados, a palavra acessória pode acabar por não ser mais

do que um elemento privado de significado próprio, anexado a uma

palavra principal para marcar seu papel gramatical. A mudança de

uma palavra para um elemento gramatical é realizada16. (MEILLET,

1912, p. 139 apud LEHMANN, 1995, p. 4).

Tempos mais tarde, essa definição viria a ser ampliada por Jerzy

Kurylowicz, outro notável estudioso de mudanças linguísticas envolvendo

gramaticalização. No famoso artigo “A evolução das categorias gramaticais”

(ing. “The evolution of gramatical categories”), publicado em 1965, o autor

propõe uma definição “revisada” para gramaticalização, a partir de seus

estudos acerca do desenvolvimento de categorias gramaticais do indoeuropeu:

“Gramaticalização consiste no aumento de alcance de um morfema que

avança de um status lexical para um gramatical ou de um status menos

gramatical para um mais gramatical (...)17” (KURYLOWICZ, 1965, p. 69). O

estudioso insere na definição de Meillet a possibilidade de que um item que já

possui certo caráter gramatical (como, por exemplo, um afixo derivacional) se

torne ainda mais gramatical (por exemplo, um afixo flexional). A título de

16 No original, em francês: “L'affaiblissement du sens et l'affaiblissement de la forme des mots

accessoires vont de pair; quand l'un et l'autre sont assez avancés, le mot accessoire peut finir

par ne plus être qu'un élément privé de sens propre, joint à un mot principal pour en marquer

le rôle grammatical. Le changement d'un mot en élément grammatical est accompli”. 17 Do original, em inglês: “Grammaticalization consists in the increase of the range of a

morpheme advancing from a lexical to a grammatical or from a less grammatical to a more grammatical status (...)”

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ilustração, Kurylowicz menciona os casos em que um afixo derivacional que

denotava coletividade se converteu em um afixo flexional de número (plural).

A segunda parte dessa definição é de grande importância para nós, uma

vez que estamos lidando com formas que desempenham indiscutivelmente

funções gramaticais na língua. Em outras palavras, para darmos conta do

nosso objeto de estudo, sublinhamos, na definição clássica, o fato de que uma

construção já gramatical pode adquirir uma função ainda mais gramatical.

Sendo te um clítico, a nossa argumentação será, então, no sentido de defender

a existência de um processo de afixação/morfologização (HOPPER;

TRAUGOTT, 2003). Procuraremos, pois, sustentar teoricamente essa hipótese

recorrendo a alguns princípios e postulados de orientação cognitivo-funcional

e aludindo a estudos em outras línguas nas quais se considera que pronomes

pessoais se converteram em afixos.

3.1.1 Princípios, parâmetros e mecanismos de gramaticalização

Proporcionalmente à diversidade de estudos e descrições já realizados

acerca da gramaticalização, desde a década de 1980 até os tempos atuais (cf.

NARROG; HEINE, 2011), verificamos uma vasta quantidade de princípios,

parâmetros e mecanismos propostos para explicar tal fenômeno. Antes de

serem opostos entre si, muitos desses postulados são, em vez disso,

complementares uns aos outros. Essa multiplicidade também parece estar

intimamente relacionada com a variedade de categorias linguísticas que

passam por gramaticalização nas línguas naturais investigadas, o que, por

vezes, exige a necessidade de serem salientados certos aspectos em detrimento

de outros.

Nesta explanação, não fugiremos a tal tendência. Nos parágrafos que

seguem, destacaremos os conceitos que, de acordo com a hipótese defendida,

melhor se coadunam com a interpretação do fenômeno de gramaticalização

que pretendemos apresentar. Especificamente, abordaremos o parâmetro da

extensão (pragmática), os princípios de especialização e decategorização, além

dos efeitos da frequência de uso sobre as estruturas em processo de

gramaticalização.

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Nos estudos sobre mudança linguística via gramaticalização, é ponto

pacífico entre os autores que os processos tendem a iniciar no discurso, que,

grosso modo, pode ser referido como o contexto pragmático no qual as

construções são empregadas. Por essa razão, Heine e Song (2011) apontam a

extensão, parâmetro essencialmente pragmático, como o primeiro indicativo

de um processo gramaticalização em curso. A extensão ocorre “quando

expressões linguísticas são estendidas para novos contextos que provocam o

aumento de funções gramaticais” (HEINE; SONG, 2011, p. 591). Em outras

palavras, a frequente utilização de uma determinada construção linguística

em contextos incomuns pode vir a estender a aplicabilidade da mesma, fato

que poderá desencadear outras alterações na construção, tais como erosão

fonética, perdas morfossintáticas e desbotamento semântico (cf. HEINE, 2003,

p. 579).

Ainda sobre a importância contextual, Heine e Song (2011) retomam o

modelo pragmático de reinterpretação induzida pelo contexto de Heine (2002)

para descrever as características mais notáveis da extensão. De acordo com

esse modelo, uma construção linguística que passa por extensão pragmática

atravessaria três estágios de reinterpretação, para além do estágio inicial (isto

é, seu contexto de atuação original): o contexto-ponte (II), o contexto de

mudança (III) e a convencionalização (IV). No estágio II, a construção pode, via

inferência sugerida, codificar um novo significado dentro de um contexto

específico. Caso esse novo significado se regularize na língua, perdendo seu

caráter “inovador”, a construção, então, atinge o estágio III, tornando-se

produtivas em novos contextos, incompatíveis com seu significado original.

Com o gradativo aumento da frequência de uso, a construção pode alcançar o

estágio IV, convencionalizando-se com o novo significado que adquiriu no

estágio II e figurando em contextos bastante distintos daqueles em ocorria

originalmente.

No Quadro 3.1, abaixo, reproduzimos as características pragmáticas da

extensão que podem ser verificadas nas construções linguísticas em

gramaticalização, descritas por Heine e Song (2011). Note-se a clara correlação

que os autores estabelecem entre a extensão, o contexto e a frequência de uso,

sobre a qual falaremos mais adiante:

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Estágio Contexto Frequência Características de

uso

II

Contexto-ponte

Altamente restrito Baixa Opcional

III

Contexto de

mudança

Conjunto mais

amplo de contextos

Alta Regular

IV

Convencionalização

Generalizado Muito alta Obrigatório

Quadro 3.1 – Algumas características pragmáticas da extensão em gramaticalização.

(Extraído de HEINE; SONG, 2011, p. 624)

Podemos compreender facilmente a atuação da extensão sobre as

formas tratamento se correlacionarmos o contexto no qual elas ocorrem com

certos traços sociopragmáticos, tais como simetria/assimetria das relações

interpessoais, grau de intimidade e familiaridade entre os interlocutores e

ainda grau de cortesia entre os mesmos. Consoante já assinalamos na

introdução desta tese, diferentes estudos apontam, na história do português,

para a existência de dois eixos de tratamento: um eixo da formalidade

(constituído de formas que marcavam/marcam deferência, distanciamento

e/ou assimetria entre os falantes) e um eixo da informalidade (composto de

formas que marcavam/marcam intimidade, proximidade e/ou simetria entre

os falantes). Nesse sentido, um dos indícios recorrentemente destacado pelos

estudiosos do tema na descrição do processo de gramaticalização de formas

de tratamento é justamente a constatação, nos textos remanescentes, da

ocorrência de uma dada forma em um eixo pragmático diferente daquele ao

qual ela originalmente pertencia.

Esse é o caso do célebre exemplo da pronominalização da construção

Vossa Mercê em português, atualmente você. Tal como relatam diversos

trabalhos (p. ex., FARACO, 1996, entre outros), a construção Vossa Mercê era

uma forma de tratamento exclusiva para o rei no século XV (contexto original,

estágio I, segundo a proposta de Heine). Verificou-se, entretanto, um intenso

e relativamente acelerado processo de extensão dessa forma, de modo que já

no século XVI há registros de seu uso para referir a pessoas comuns, sem

qualquer título de nobreza, como um mero tratamento respeitoso (estágio II,

contexto-ponte). Nos tempos mais recentes, principalmente no Brasil do século

XX, o uso de você (já bastante modificado em termos fonéticos,

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morfossintáticos e semânticos) estendeu-se a tal ponto que passou a ser

empregado como expressão do eixo da intimidade (estágio III, contexto de

mudança), ocupando, em muitos dialetos, o lugar do pronome tu,

historicamente relacionado a tal eixo (estágio IV, convencionalização) (vide

levantamento de Scherre et al., 2015).

Em dados mais recentes do PB, verificamos um novo movimento de

extensão envolvendo outra forma pronominal: o clítico te. Esse item,

empregado com função acusativa e/ou dativa, é originalmente relacionado ao

pronome tu e, por isso mesmo, esteve, em boa parte da história do português,

restrito ao eixo da intimidade. Todavia, a partir da segunda metade do século

XX, já encontramos dados que ilustram a extensão de te em contextos de

menor intimidade e proximidade entre os interlocutores. Na atualidade, não é

raro ouvir, por exemplo, de um operador de telemarketing uma frase como “O

senhor pode informar o melhor horário para eu estar te ligando?”, ou mesmo

de um funcionário do banco algo do tipo “A senhora pode aguardar sentada

que o gerente já vai te atender”. Exemplos como esse ilustram a extensão

contextual que ocorre em relação ao uso do clítico te.

Relacionado à extensão, temos o princípio da especialização, proposto

por Hopper (1991), segundo o qual o processo de gramaticalização envolve “o

estreitamento de opções para se codificar determinada função, à medida que

uma dessas opções começa a ocupar mais espaço porque mais

gramaticalizada” (GONÇALVES; CARVALHO, 2007, p. 82). Dito de outro modo,

a extensão contextual por que passa uma construção em vias de

gramaticalização reduz, gradativamente, a sua opcionalidade, isto é, o seu

emprego eventual e “criativo”, encaminhando-a para o que Lehmann (1985)

rotula como obrigatoriedade. Hopper (1991), entretanto, destaca que a

especialização “corresponde mais especificamente ao processo envolvido, já

que é somente nos estágios finais de gramaticalização que o uso de uma forma

se torna obrigatório” (p. 25).

A gramaticalização das formas de tratamento no português parece

envolver a especialização das construções em jogo na marcação da referência

ao interlocutor, isto é, na codificação das informações procedurais de pessoa

(2ª) e número (singular). Se analisarmos as formas de tratamento stricto

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sensu, perceberemos que elas codificam informações para além dos traços de

pessoa e número, na maioria dos casos relacionadas às funções socioculturais

dos seres referidos (p. ex., Vossa Majestade para reis e rainhas, Vossa

Eminência para cardeais, Vossa Magnificência para reitores de universidades

etc). Por outro lado, vemos que a forma gramaticalizada você não veicula

outras informações (ao menos na maioria dos dialetos brasileiros) além de

2SG18.

Fato semelhante (talvez menos evidente do que o exemplo anterior)

parece ocorrer com o clítico te. Embora esse item nunca tenha veiculado

informações tão específicas quanto aquelas observadas diacronicamente para

você, ele esteve restrito, na maior parte da história da língua, a situações

comunicativas marcadas pela intimidade ou proximidade entre os

interlocutores. Sendo assim, podemos pensar que, em outras fases da língua,

a sua ocorrência veiculava mais do que simplesmente a referência de 2SG,

pois sinalizava também maior contato ou familiaridade entre os falantes. Nos

usos mais recentes, contudo, essa informação não parece ser mais totalmente

verdadeira, haja vista que te pode ocorrer em contextos com maior

distanciamento e menor intimidade entre os interlocutores (o que, cabe

destacar, não parece despertar qualquer incômodo no interlocutor tratado por

te), o que tomamos como evidência da especialização desse item na codificação

da informação de 2SG, à semelhança dos marcadores gramaticais de

concordância.

Outro princípio essencial para os estudos de gramaticalização é o da

decategorização. Tal princípio, explorado por diversos autores como Hopper

(1991) e Heine (2003), “remete à perda, por parte da forma em processo de

gramaticalização, dos marcadores opcionais de categorialidade e de

autonomia discursiva” (GONÇALVES; CARVALHO, 2007, p. 84). Uma

determinada forma ou construção decategoriza quando perde ou neutraliza

marcas morfológicas e traços sintáticos, típicos das categorias mais lexicais

18 Nesse caso, estamos nos referindo especificamente aos contextos de referência definida,

nos quais o interlocutor é claramente identificado. Descartamos, portanto, os contextos em

que você pode ser um sujeito indeterminado, semelhantemente a um pronome expletivo. É no

âmbito da referência definida que você teria assumido um caráter generalizante, veiculando a informação de 2SG mais ampla, pouco marcada, diferentemente das outras formas de

tratamento stricto sensu, que são específicas para determinados interlocutores.

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(como nomes e verbos). É nesse sentido que Heine (2003, p. 579) caracteriza

decategorização como a “perda de propriedades morfossintáticas

características das formas-fonte”. No quadro 3.2, reproduzimos as

propriedades morfossintáticas que, segundo Heine e Song (2011), são

perdidas pelas construções em gramaticalização/gramaticalizadas:

PROPRIEDADES SALIENTES DA DECATEGORIZAÇÃO

(a) Perda da habilidade de ser flexionado

(b) Perda da habilidade de admitir morfologia derivacional

(c) Perda da habilidade de receber modificadores

(d) Perda de independência como uma forma autônoma, aumento de dependência de

alguma outra forma

(e) Perda de liberdade sintática (por exemplo, da habilidade de se mover dentro da sentença)

(f) Perda da possibilidade de ser retomado anaforicamente

(g) Perda de membros pertencentes à mesma classe gramatical

Quadro 3.2 – Propriedades salientes da decategorização verificadas em construções

em gramaticalização/ gramaticalizadas. (Adaptado de HEINE; SONG, 2011, p. 593)

Embora, à primeira vista, o princípio da decategorização pareça envolver

tão somente perdas estruturais nas construções analisadas, o mais coerente

seria interpretá-lo como um processo de neutralização de marcas

morfossintáticas da categoria-fonte e adoção de propriedades da categoria-

alvo. Em outras palavras, trata-se de um princípio que lida com a transição

das construções entre as categorias linguísticas, conforme ilustram os

conhecidos clines, representações esquemáticas da trajetória percorrida pelas

construções em gramaticalização na língua. A partir das propriedades

morfossintáticas que identificamos como pertencentes às categorias X ou Y é

que falamos em decategorização, numa espécie de “sistema de perdas e

ganhos”.

No que diz respeito à decategorização das formas de tratamento no

português, Lopes (2008) avalia a aplicação desse princípio na gramaticalização

de Vossa Mercê > você:

(...) não houve perda completa dos traços categorias originais

(expressão nominal de tratamento) e muito menos a assunção

definitiva de propriedades da nova classe (pronome de 2ª pessoa) da qual você passou a fazer parte. Criaram-se assim algumas

incompatibilidades entre as propriedades formais e as semântico-

discursivas. Com a inserção de você no quadro pronominal do

português, percebe-se a persistência da especificação original de 3a

pessoa, embora a interpretação semântico-discursiva passe a ser de

2a pessoa [-EU]. (LOPES, 2008, p. 57).

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89

De fato, se focalizarmos os aspectos estritamente morfossintáticos da

decategorização, poucas propriedades foram perdidas na passagem de Vossa

Mercê a você. Este último, ainda hoje, admite flexão de número (vocês) e goza

de relativa liberdade sintática. Cumpre ressaltar, todavia, que certas

propriedades típicas dos sintagmas nominais foram perdidas com a

“cristalização” da construção Vossa Mercê, dentre as quais destacamos a

perda de referencialidade (isto é, da capacidade dos nomes de denotar seres

do mundo biossocial). Além disso, as alterações estruturais que envolvem a

gramaticalização de pronomes nem sempre são tão visíveis como aquelas que

se verificam para outras categorias linguísticas. Trataremos dessa questão na

subseção 3.1.3.

Se as modificações morfossintáticas em torno da forma você já não se

fazem tão nítidas, um quadro ainda mais complexo e menos perceptível pode

ser observado com relação à gramaticalização do clítico te em afixo. Consoante

discutiremos na próxima subseção, as diferenças entre clíticos e afixos são

extremamente tênues, haja vista que ambos representam categorias bastante

gramaticais. Em geral, os estudiosos de gramaticalização costumam

mencionar como principal critério de diferenciação a mobilidade sintática, já

que os clíticos podem ocorrer em posições variáveis em relação ao item com o

qual se relaciona, ao passo que os afixos ocorrem sempre na mesma posição.

Essa é uma das evidências apontadas por Lopes, Souza e Oliveira (2013) no

que se refere ao clítico te. Os autores observam que esse item “se manteve com

o apoio estrutural da sua posição proclítica de adjacência ao verbo e por seu

caráter eminentemente dêitico” (p. 393), o que promoveu a sua fixação e fez

com que ele passasse a “funcionar como um afixo marcador da 2ª pessoa”.

Outra evidência discutida por Lopes, Souza e Oliveira (2013) é a

ocorrência de construções de redobro, como as exemplificadas em (22-24)19.

Os pesquisadores fazem menção ao trabalho de Machado Rocha (2011), que

salienta o fato de que “A coocorrência da forma te com o pronome você indica

que o antigo clítico não possui mais o estatuto de argumento e que, por isso,

é interpretado de outra maneira” (p. 119).

19 Exemplos adaptados de Machado Rocha (2011).

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(22) Eu vou te levar você lá.

(23) Deixa eu te perguntar pra você um negócio.

(24) Eu vou te falar com você uma coisa.

Como destaca o autor, seria ilógico pensar que, nessas construções, um

mesmo verbo predicador (levar, perguntar e falar, nos exemplos anteriores)

seleciona dois complementos com a mesma função sintática (acusativo, dativo

e oblíquo, nesta ordem, para os exemplos dados). Diante disso, Machado

Rocha (2011) propõe a hipótese de que a forma te recebe uma interpretação

de prefixo de concordância, codificando o traço de [+destinatário]. As

construções com redobro ilustram, portanto, outra propriedade das formas

clíticas (ao menos as pronominais) que é perdida quando as mesmas se

tornam afixos: a capacidade de marcar caso/função sintática.

Antes de encerrar a presente subseção, cabe comentar ainda o papel

primordial da repetição, ou melhor, da frequência de uso nos processos de

gramaticalização. A grande autoridade nesse assunto, no âmbito dos estudos

de gramaticalização, é, sem dúvida, Joan Bybee. A linguista registra uma

vasta bibliografia acerca da importância da frequência para os fenômenos de

gramaticalização. Bybee (2003) defende que “a frequência não é apenas um

resultado da gramaticalização, mas é também um contributo primário do

processo, um princípio ativo que instiga as mudanças que ocorrem em

gramaticalização.”20 (p. 602). Dentro dessa ótica, Bybee considera que a

frequente repetição de uma forma ou construção da língua exerce um papel

central nas mudanças relacionadas à gramaticalização, tais como: (i)

enfraquecimento do conteúdo semântico, (ii) mudanças fonológicas, reduções

e fusões fonéticas e (iii) aumento de autonomia da construção.

A autora destaca, também, o fato de que as formas e construções mais

gramaticais costumam registrar uma frequência extremamente alta, em

comparação com as formas e construções mais lexicais. A partir dessa

observação, Bybee comenta que um fator marcante nos fenômenos de

gramaticalização é justamente o aumento drástico na frequência de uso.

20 Do original, em inglês: “Frequency is not just a result of grammaticization, it is also a

primary contributor to the process, an active force in instigating the changes that occur in grammaticization”.

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Assume-se, pois, que a elevação significativa nos índices de ocorrência de uma

determinada construção pode ser indício de um processo de gramaticalização

em curso.

Além de atuar significativamente sobre os processos de mudança, Bybee

afirma ainda que a frequência de uso é responsável pela reestruturação

constante da gramática. De acordo com o seu ponto de vista, “(...) a alta

frequência de uso leva à convencionalização e à posterior elaboração,

enquanto a frequência de uso muito baixa leva à inaceitabilidade e à perda

eventual.” (BYBEE, 2016 [2010], p. 330). Seguindo essa linha de raciocínio,

os efeitos da frequência, segundo a autora, repercutiriam também no

processamento linguístico dos falantes. Para ela, a frequência de ocorrência

de construções na língua seria capaz de explicar, por exemplo, os resultados

de experimentos psicolinguísticos envolvendo julgamentos de aceitabilidade:

(...) julgamentos de aceitabilidade em uma língua são baseados na

familiaridade, a qual se apoia em dois fatores: a frequência de uma

palavra, construção ou sintagma específico, e semelhança com palavras, construções ou sintagmas existentes. Itens serão julgados

como aceitáveis na medida em que são frequentes na experiência do

sujeito ou semelhantes a itens frequentes. (BYBEE, 2016 [2010], p.

330).

Dentre os estudos sobre as formas de tratamento do português, em

particular naqueles que exploram a pronominalização da forma você, o papel

da frequência de uso é visto como fundamental. Lopes (2009), por exemplo,

sublinha a importância da repetição para a gramaticalização de Vossa Mercê

> você, uma vez que a alta frequência de uso impulsionou diversas mudanças

nessa construção, como a erosão fonética e o “desbotamento semântico”,

possibilitando a sua generalização como expressão pronominal recorrente: “a

frequência de uso desgasta obviamente o propósito comunicativo inicial de

cortesia, de tratamento ao rei, de deferência. Nesse processo de mudança, os

itens ou construções lexicais (possessivo+nome abstrato) perdem algumas

propriedades originais e assumem outras (...)” (LOPES, 2009, p. 52).

A mesma relevância é dada à frequência de uso por Lopes, Souza e

Oliveira (2013) ao proporem que o clítico te teria se tornado, no PB, um afixo.

Aliás, a hipótese dos autores fundamenta-se justamente na alta recorrência

desse item em diferentes corpora: “a alta frequência de uso do referido clítico

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frente a outras formas utilizadas para a posição de complemento pronominal

favoreceu a uma automação da estrutura/construção como marca de segunda

pessoa do singular.” (LOPES; SOUZA; OLIVEIRA, 2013, p. 377). Após

resenharem resultados de pesquisas diacrônicas e sincrônicas, que

evidenciam a alta frequência do padrão te+verbo, o autores ratificam a forte

correlação entre frequência e o processo de gramaticalização de te em afixo:

Defendemos (...) que existe uma relação direta entre frequência de uso de formas ou construções e gramaticalização, por assumir que a

gramática codifica o que os falantes mais empregam. (...) A alta

frequência do te em posição proclítica, mesmo na produção escrita de

brasileiros ao longo dos séculos XIX e XX, foi o gatilho da

decategorização de um clítico que se fixa em determinada posição

perdendo, assim, sua liberdade morfossintática. (LOPES; SOUZA; OLIVEIRA, 2013, p. 392)

Em síntese, procuramos destacar nesta subseção os princípios teóricos

(na atualidade, já considerados “clássicos”) que geralmente são mencionados

nas descrições dos fenômenos em gramaticalização. Para o tema específico da

presente tese, na qual defendemos que a forma te se encontra em um estágio

de gramaticalização mais avançado do que os outros clíticos que podem atuar

na referência à 2SG (lhe e o/a), acreditamos que os conceitos de extensão,

especialização e decategorização são os mais pertinentes para analisarmos e

explicarmos teoricamente os resultados obtidos a partir da aplicação dos

experimentos desenvolvidos. Embora não seja um parâmetro diretamente

aplicável aos nossos dados, assumimos que a frequência de uso também seja

capaz de justificar o comportamento dos participantes diante de sentenças

que tragam, por exemplo, o clítico o/a como estratégia de referência a 2SG,

algo raríssimo no PB, principalmente na modalidade falada.

Um ponto, entretanto, ainda precisa ser esclarecido: que traços –

morfológicos, sintáticos, semânticos, discursivo-pragmáticos – diferenciam os

elementos linguísticos rotulados como clíticos daqueles que são interpretados

como afixos? Quais são critérios utilizados pelos estudos de gramaticalização

para diferenciar duas categorias tão próximas entre si? Como evidenciar as

propriedades perdidas/adquiridas por um item já gramatical que se torna

ainda mais gramatical? Discutimos alguns aspectos relativos a esse problema

na próxima subseção.

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3.1.2 A trajetória clítico > afixo

Apesar de ser amplamente mencionada por diversos estudos de

gramaticalização, a trajetória de decategorização clítico > afixo é pouco

explorada e efetivamente discutida nos trabalhos sobre o tema. O fato de essas

categorias linguísticas representarem estágios altamente avançados de

gramaticalização certamente dificulta a identificação de fatores que auxiliem

a caracterização das construções gramaticais como [+clíticas] ou [+afixais].

Alguns linguistas, como Givón (2001), salientam que “a diferença

existente entre marcas flexionais, afixos e clíticos é essencialmente diacrônica,

tendo a ver com a idade do morfema” (p. 54). Segundo essa perspectiva, o

primeiro estágio no surgimento de um morfema a partir de uma palavra lexical

seria a cliticização, através da qual o novo morfema perde sua tonicidade e se

vincula a uma forma lexical adjacente dentro da construção em que ele

emerge. Na continuação desse processo evolutivo, o clítico pode se tornar um

afixo. Segundo Givón, “isso ocorre quando sua posição deixa de ser definida

em termos de uma construção e se estabiliza em um tipo de palavra particular

(nome, verbo, adjetivo, advérbio). E, além disso, ele aparece agora em uma

ordem fixa com outros morfemas vinculados a essa palavra. (GIVÓN, 2001, p.

55).

Hopper e Traugott (2003) também admitem que, nos estágios mais

avançados de gramaticalização, as formas clíticas tenderiam a se tornar

afixos. Em uma “excessiva simplificação”, os autores sugerem o cline

reproduzido em (25) e denominam esse acentuado estágio da gramaticalização

de morfologização. Eles reconhecem, ainda, que os clíticos têm um papel

central no estabelecimento dos tipos de estruturas que passam por

morfologização e destacam que “é a colocação sintática frequente de uma

classe de palavras particular (...) com um tipo de clítico particular (...) que

mais comumente leva à morfologização” (HOPPER; TRAUGOTT, 2003, p. 142).

(25) item lexical em um contexto sintático específico > clítico > afixo

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Heine e Kuteva (2007) se aliam a essa mesma visão, observando que as

formas morfológicas descritas como marcadores de concordância, via de regra,

resultam de processos em que categorias funcionais com função menos lexical

ou gramatical são dessemantizadas (passam a sinalizar relações sintáticas

entre palavras e sintagmas) e decategorizadas, “perdendo seu status

independente e tornando-se clíticos ou afixos” (p. 95). O exemplo mencionado

pelos autores é justamente o de pronomes pessoais que se tornam clíticos ou

afixos verbais obrigatórios. No caso da gramaticalização de pronomes-sujeito,

eles analisam que

Os pronomes pessoais existentes podem ser substituídos por um conjunto de novos pronomes pessoais, mas sobrevivem como clíticos

ou afixos verbais, embora não tenham mais função distintiva, uma vez

que as distinções de dêixis pessoal passam a ser expressas pelo novo

conjunto de pronomes pessoais. A única função que os antigos

pronomes podem ter é de expressar correferência com o sujeito

pronominal ou nominal, isto é, marcar concordância entre o sujeito e o verbo. (HEINE; KUTEVA, 2007, p. 96).

Sobre a ocorrência do mesmo fenômeno envolvendo os pronomes-objeto,

os pesquisadores destacam que “embora seja menos comum, praticamente o

mesmo processo também pode levar à concordância de objeto, na qual os

pronomes em função de objeto tornam-se marcadores verbais obrigatórios” (p.

97). Acerca da distinção categorial entre clíticos e afixos, os autores nada

mencionam.

Em se tratando especificamente dos clíticos, os autores afirmam que

essa palavra tem sido empregada para se referir “a um conjunto de formas

átonas que tendem a estar vinculadas a uma forma acentuada (conhecida

como “hospedeiro”)” (HOPPER; TRAUGOTT, 2003, p. 142). Em termos

funcionais, os clíticos apresentam duas características consistentes com seu

status de unidades parcialmente gramaticalizadas: a dependência contextual

e a significado mais genérico. “Frequentemente, eles têm funções cujos

homólogos mais próximos em outras línguas são claramente gramaticais, tais

como aspecto, modalidade, caso e referência a participantes (p. ex., pessoa e

número).” (HOPPER; TRAUGOTT, 2003, p. 143).

No que tange aos critérios para a diferenciação entre clíticos e afixos, já

mencionamos anteriormente que a perda da mobilidade da construção é um

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parâmetro básico. Ainda que disponham de uma liberdade sintática bastante

restrita, os clíticos costumam apresentar um posicionamento variável em

relação ao seu hospedeiro. Por outro lado, considera-se que afixos são

elementos mais rígidos sintaticamente, e, por isso, ocorrem sempre na mesma

posição em relação à palavra de que dependem.

Outros parâmetros podem ser mencionados, principalmente se

levarmos em conta a natureza pronominal das formas que analisamos (os

clíticos de 2SG). A seletividade categorial costuma ser bastante citada pelos

estudiosos do assunto. Segundo Siewierska (2004, p. 27) “enquanto que

formas presas se vinculam somente a um tipo particular de palavra (...),

clíticos não são restritos dessa forma. Eles se vinculam não só a um radical

particular, mas também a sintagmas e/ou posições sintáticas especializadas”.

Esse é, inclusive, um critério definitivo para a autora mencionada. Enrique-

Arias (2003) também faz menção a esse critério, afirmando que afixos são mais

especializados e integrados à estrutura morfológica de certas classes lexicais.

Além desse parâmetro, Enrique-Arias (2003) assinala outros com o

propósito de evidenciar que as formas átonas pessoais de objeto no espanhol

“estão mais próximas do que translinguisticamente se entende por afixo que

do que se entende por clítico” (GARCÍA SALIDO, 2011, p. 109). Reportaremos

aqui dois desses critérios que, segundo a nossa perspectiva, dialogam melhor

com o fenômeno do PB. São eles: (i) a impossibilidade de inserir elementos

entre um afixo e o tema verbal e (ii) a neutralidade dos afixos em relação a

aspectos discursivos e sintáticos da oração em que ocorrem. A seguir,

exibimos alguns comentários do autor acerca da aplicabilidade desses

critérios à língua espanhola e procuraremos traçar um paralelo da mesma

com o português.

Sobre a inserção de itens linguísticos entre as marcas pessoais de objeto

e o verbo no espanhol contemporâneo, Enrique-Arias (2003) ressalta que

nenhum outro elemento pode intermediá-los nos casos de anteposição (ou

seja, Clítico-verbo), e apenas outros afixos flexionais podem ocorrer entre

ambos nos casos de posposição (Verbo-clítico). O autor destaca que as

referidas restrições evidenciam o alto grau de dependência dessas formas em

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relação ao tema verbal, afirmando ainda que o mesmo não se sucede em

outras línguas ou em outras etapas da história da língua espanhola.

Tal restrição aproxima a língua portuguesa da língua espanhola. No

português atual, não se verifica o fenômeno da interpolação, isto é, a não-

contiguidade entre o clítico e o verbo ocasionada pela presença de um

elemento interveniente (“interpolado”). De acordo com Lopes et al. (2017, p.

257), “o português medieval permitia a interpolação de constituintes de

diversas naturezas entre o clítico e o verbo, como o sujeito, o advérbio de

negação não, elementos de natureza adverbial, e, mais raramente,

complementos verbais”. Por volta do século XV, a possibilidade de interpolação

de constituintes desaparece, tendo permanecido apenas para o advérbio de

negação não. A interpolação de não persiste até hoje apenas na variedade

europeia do português. Sendo assim, parece plausível pensar, a partir do

respectivo critério, que houve um aumento, ao longo da história do português,

na dependência estrutural dos clíticos pronominais, tal como Enrique-Arias

descreve para o espanhol, o que reforçaria uma interpretação desses itens

como [+afixais].

O outro critério mencionado por Enrique-Arias (2003) a ser destacado é

o da neutralidade das marcas pessoais quanto a certos aspectos discursivos

e sintáticos da oração em que ocorrem. Segundo o autor, em espanhol a

distribuição das marcas pessoais de objeto depende exclusivamente de

aspectos morfológicos relacionados ao verbo com o qual se ligam, a saber: se

o verbo está na forma infinitiva ou finita e, neste último caso, se a forma é

imperativa ou não. Ele comenta que as marcas pessoais equivalentes em

outras línguas, como o galego e o português europeu (ou ainda, no espanhol

antigo) dependem da natureza sintático-discursiva da oração em que ocorrem

(se ela é subordinada, se é introduzida por um pronome indefinido, se o

constituinte inicial é um elemento focalizado etc).

Novamente, temos um ponto de contato entre espanhol e português

(neste caso, o português brasileiro). Conforme já mencionamos em outros

momentos do presente trabalho, diferentes pesquisadores assinalam a

predominância da próclise verbal como um traço característico do PB. Lopes

et al. (2017) comentam que

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A partir do século XVI, os colonizadores portugueses trouxeram

possivelmente para cá a variação clítico-verbo e verbo-clítico, com

tendência à próclise típica do português clássico. Aqui a ordem

proclítica parece ter se fixado e generalizado, tornando-se dominante nos contextos que são de ênclise obrigatória no português europeu, como é o caso de verbo em posição inicial absoluta. (LOPES et al., 2017, p. 258) [grifos nossos]

Destacamos da citação anterior um aspecto bastante relevante para o

critério em discussão. Embora saibamos que a colocação pronominal no PB é

uma questão bastante complexa, é digno de nota que a próclise prevaleça,

nesta variedade, em contextos sintático-discursivos tão marcados, como é o

caso do início absoluto de oração/período. Dito de outro modo, podemos

pensar que, no PB, as marcas pessoais de objeto seriam indiferentes a certas

propriedades estruturais da oração em que ocorrem. Independentemente da

configuração sintático-discursiva da sentença, a colocação da forma clítica

será anteposta ao verbo.

Para além dos critérios descritos, comentaremos ainda duas

propriedades típicas dos afixos, em específico dos prefixos, apontadas por

Gonçalves (2012). Apesar de o enfoque do autor recair sobre os afixos

derivacionais, julgamos ser possível uma aproximação entre as unidades

morfológicas analisadas como prefixos formadores de palavras e o clítico te

(interpretado como um afixo flexional) no que se refere a certos aspectos

semânticos e pragmáticos. Em primeiro lugar, Gonçalves (2012, p. 156) afirma

que prefixos “atualizam significados mais largos (têm menor densidade

semântica)” e, nesse aspecto, diferem substancialmente dos sufixos, que

podem veicular conteúdos semanticamente mais densos. Noções como

“ausência, negação”, “intensidade” e “repetição” são, portanto, típicas dos

formativos prefixais. Ao apreciarmos o comportamento do pronome te no PB,

verificamos que, após sofrer extensão pragmática (deixando de marcar

nuances mais específicas como [+intimidade] e [+simetria]), esse item passou

a veicular uma noção gramatical bastante geral e recorrente (2SG), à

semelhança dos prefixos propriamente ditos.

Outra propriedade mencionada por Gonçalves (2012) e pertinente para

a nossa hipótese é a reduzida capacidade dos prefixos para exercer finalidades

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expressivas ou, nas palavras de Basílio (1987), desempenhar função

discursiva: “a sufixação pode servir como veículo para o falante exteriorizar

sua impressão a respeito de algo ou alguém; a prefixação, ao contrário, quase

nunca é utilizada com essa finalidade.” (GONÇALVES, 2012, p. 151-152).

Tendo em vista que a prefixação costuma acionar sentidos mais gramaticais,

ela “dificilmente revela o impacto pragmático do falante em relação ao

enunciado, ao referente ou ao interlocutor (...)” (p. 152). Tal qual os prefixos

legítimos, defendemos que a forma te é neutra do ponto de vista expressivo,

uma vez que não marca aspectos mais pragmáticos relativos à oposição

informalidade x formalidade, como procuraremos mostrar.

De um modo geral, é preciso salientar que os critérios comumente

utilizados para distinguir clíticos de afixos (mencionamos aqui aqueles que

julgamos ser os principais) estão longe de ser suficientes e decisivos.

Explorando especificamente os clíticos pronominais do português,

percebemos que alguns critérios são pouco informativos e esclarecedores,

como é o caso da mobilidade sintática e da impossibilidade de interpolação:

sabemos que, no PB, nenhum clítico admite interpolação e a maioria deles

ocorre preferencialmente anteposta ao verbo.

Diante desse quadro, aumenta a necessidade de uma investigação

experimental, posto que, se admitimos que existem diferenças estruturais

entre duas categorias, é plausível pensar que essas diferenças se reflitam na

percepção dos falantes, em termos de processamento. Será para esse aspecto

mais cognitivo, até então praticamente inexplorado nos estudos referentes ao

PB, que daremos maior ênfase nas análises desenvolvidas no âmbito desta

tese.

Antes de dedicarmos algumas linhas deste capítulo para essa questão,

trataremos ainda de mais alguns pontos atinentes à gramaticalização.

Apresentamos, na sequência, certas particularidades relacionadas à

gramaticalização de pronomes pessoais.

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3.1.3 Gramaticalização de pronomes pessoais

Aos revisarmos os inúmeros estudos já realizados acerca dos fenômenos

de gramaticalização, observamos um fato assinalado por Heine e Song (2011,

p. 587): “ao contrário da maioria dos outros domínios gramaticais, o [domínio]

dos pronomes pessoais é claramente subestimado nos trabalhos sobre

gramaticalização”. Essa observação é verdadeira sobretudo em relação às

investigações que exploram trajetórias de mudança do tipo “pronome pessoal

> forma mais gramatical”, destacadamente na língua portuguesa.

Os referidos autores salientam três razões que explicam essa

“subestimação”. A primeira delas diz respeito à relativa estabilidade diacrônica

dessa categoria linguística: os marcadores da dêixis pessoal pertencem às

partes mais conservadoras da gramática, o que faz com que sejam menos

instáveis diacronicamente. A possibilidade de rastreamento etimológico

dessas formas, em muitos casos, ilustra esse caráter [+conservador] da classe.

A segunda razão está relacionada com a própria semântica veiculada pelos

pronomes pessoais; eles exprimem “um significado esquemático que pode ser

descrito de forma bastante exaustiva em termos de algumas distinções

conceituais elementares, sobretudo relativas à dêixis pessoal e ao número”

(HEINE; SONG, 2011, p. 589). Em outras palavras, os pronomes pessoais

constituem, por natureza, uma categoria “dessemantizada”, com baixa

densidade semântica. A terceira razão relaciona-se com o fato de os pronomes

pessoais terem um potencial categorial mais restrito que outras categorias

mais lexicais, não sendo facilmente combinados, por exemplo, com elementos

modificadores ou afixos (flexionais e derivacionais).

Em outras palavras, o domínio dos pronomes pessoais seria menos

estudado segundo os pressupostos da gramaticalização porque são formas

que sofrem menos alterações ao longo do tempo, uma vez que possuem

propriedades que os identificam mais com o âmbito da gramática do que com

o âmbito do léxico. Parâmetros mais tradicionais nos estudos de

gramaticalização, como a dessemantização e a decategorização, se mostram

pouco informativos, já que, como apontam Heine e Song (2011), pronomes

pessoais naturalmente veiculam significados mais gramaticais e apresentam

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uma série de limitações morfossintáticas. Sendo assim, o referido domínio

funcional parece, à primeira vista, pouco interessante e atrativo para se

desenvolver uma análise pelo viés da gramaticalização.

Essa impressão é, contudo, ilusória. O fato de parâmetros

“consagrados” serem pouco informativos não significa que uma análise pela

ótica da gramaticalização seja inviável (talvez seja mais coerente revisar tais

parâmetros ou mesmo formular outros novos, que explorem outros aspectos,

tais como o processamento cognitivo); afinal, consta da definição tradicional,

desde Kurylowicz, que “formas já gramaticais podem se tornar ainda mais

gramaticais”. Por essa razão, mencionaremos a seguir dois estudos (um deles

considerado, atualmente, clássico) que exploraram a trajetória pronomes

pessoais > afixos em outras línguas românicas. Em seguida, destacaremos a

importância dos fatores sociopragmáticos para o estudo da gramaticalização

de formas de tratamento.

- A gramaticalização de pronomes pessoais em francês

Em seu clássico estudo, Lehmann (1985), ao analisar a gramaticalização

da referência pronominal, propõe o continuum reproduzido na Figura 3.1.

Segundo a proposta do autor, as formas pronominais situadas à esquerda do

polo são menos gramaticalizadas e funcionam como anáforas textuais; as

formas localizadas no meio da escala tendem a atuar como anáforas

sintáticas; por fim, as formas que se encontram mais à direita do continuum

funcionam, em geral, como marcadores de concordância, “principalmente

entre o verbo e seus actantes” (LEHMANN, 1985, p. 309).

nome

esvaziado

lexicalmente

>

pronome

pessoal

livre

>

pronome

pessoal

clítico

>

afixo

pessoal

aglutinativo

>

afixo

pessoal

fusional

1 2 3 4 5

Figura 3.1 – Gramaticalização da referência pronominal: proposta de continuum (Adaptado de LEHMANN, 1985, p.309)

Lehmann (1985) demonstra a aplicabilidade do referido continuum ao

analisar a evolução observável do latim para as línguas românicas quanto ao

quadro de pronomes pessoais. Conforme ele destaca, havia na língua latina

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101

pronomes pessoais livres (posição 2) e sufixos pessoais (entre as posições 4 e

5), ilustrados pelos exemplos em (26a) e (26b), respectivamente21:

(26) a. ego, tu, is (“eu, tu, ele”)

b. vide-o/-s/-t (“eu vejo/ tu vês/ ele vê”)

O autor ressalta que “o conjunto de pronomes pessoais [herdados do

latim] (...) tem perdido sua autonomia, em diferentes línguas e em diferentes

graus” (LEHMANN, 1985, p. 310). A título de exemplificação, menciona

especificamente o caso do francês, língua em que, segundo o mesmo, os

pronomes pessoais se converteram em afixos pessoais aglutinativos do verbo,

atuando de maneira semelhante à dos prefixos:

(27) je vois, tu vois, Il voit (“eu vejo, você vê, ele vê”)

(28) moi, toi, lui (“eu, você, ele”)

Dentro dessa linha de análise, os antigos sufixos pessoais latinos teriam

se reduzido em maior grau em francês, “onde eles estão além do estágio 5 e à

beira de extinção” (LEHMANN, 1985, p. 310). Paralelamente a esse processo,

o autor destaca, ainda, o fato de o francês contemporâneo ter criado um novo

conjunto de pronomes pessoais livres a partir do reforço fonológico de certas

formas herdadas do latim, exemplificadas em (28). Desse modo,

Isto significa que a distribuição de dispositivos na escala (...) que havia

em latim está sendo restaurada em francês: embora as formas

estruturais herdadas tenham se gramaticalizado, novamente temos pronomes pessoais livres e afixos pessoais, como se tinha em latim.

(LEHMANN, 1985, p.310)

O caso apresentado por Lehmann, resumidamente descrito acima,

representa um exemplo concreto da trajetória de mudança postulada por

Heine e Kuteva (2007) acerca das formas pronominais, mencionada na

subseção anterior. Trata-se, evidentemente, de um caso que envolve a função

de sujeito, contexto em que, segundo os autores, esse tipo de gramaticalização

é mais passível de acontecer. Encontramos um exemplo que segue a mesma

trajetória, porém envolvendo pronomes-objeto, no espanhol, o qual passamos

a descrever na sequência.

21 Os exemplos (26)-(28) foram extraídos de Lehmann (1985, p. 309-310). Os grifos são nossos.

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102

- A gramaticalização de pronomes pessoais em espanhol

Company (2010), ao observar diacronicamente o objeto indireto no

espanhol, constata que, inicialmente, o clítico dativo le(s) – que integra a

construção de “redobro” ou “duplicação de objeto” – consistia em uma

estratégia pragmática através da qual uma entidade já conhecida, mas

importante dentro do discurso, era reinserida na predicação da oração.

Segundo a autora, a força anafórica de le(s) foi enfraquecida devido à

proximidade sintagmática entre o clítico e o objeto indireto dentro da mesma

construção e à dupla menção ao mesmo referente na sentença. Esses fatores

teriam convertido o clítico em uma “anáfora fraca” (COMPANY, 2010, p. 50).

O processo de gramaticalização tem lugar, pois, a partir desse contexto. Nas

palavras da autora,

A constante coocorrência do clítico dativo e do objeto indireto na

ordem não marcada V-OI desgastou o caráter pragmático-discursivo

original da duplicação e a tornou uma estratégia gramatical para

indicar simplesmente que um determinado verbo leva, em uma

determinada oração, um argumento OI. O clítico le(s) é uma marca que anuncia ao falante-ouvinte que deve encontrar ou decodificar um

OI na estrutural argumental. (COMPANY, 2010, p. 51-52)

Company (2010) ressalta ainda o fato de que o objeto indireto plural

duplicado pode aparecer ou não com a marca de número no espanhol atual,

conforme ilustra o exemplo em (2922). Na interpretação da pesquisadora, “é

uma regra do espanhol que o pronome deva concordar em número com seu

referente (...), se não concorda, o clítico já não tem (...) status de pronome”

(COMPANY, 2010, p. 55):

(29) “Les dijeron a las mujeres que era imposible encontrar los cuerpos”.

“El contrato es inexistente y en ninguma forma puede darle validez a los contratos

posteriores de compraventa”.

A perda da flexão de número seria indicativa, para Company, do

processo de despronominalização do clítico; por seu turno, a

despronominalização indicaria que se operou a decategorização do pronome,

nos termos de Hopper (1991) e Heine (2003), visto que o clítico dativo

22 Exemplos em (29) foram extraídos de Company (2010, p. 55). Os grifos são da autora.

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103

duplicador adquire o status de “um morfema de concordância objetiva do

verbo, uma espécie de conjugação objetiva afixada ao verbo que antecipa a

ocorrência de um OI” (COMPANY, 2010, p. 55). No referido estudo, Company

(2010) pontua, ainda, algumas alterações importantes ocorridas no processo

de gramaticalização da estrutura duplicada do objeto indireto em espanhol.

Dentre elas, destacamos: discursivo > gramatical, pronome > não pronome,

anáfora forte > anáfora quase fraca > anáfora fraca > marca de concordância

objetiva. Todas essas alterações exemplificam a atuação dos princípios e

mecanismos já comentados neste capítulo, a saber: extensão, especialização

e decategorização.

Verificamos, assim, através desses trabalhos citados, que não é inviável

analisar pronomes pessoais segundo a perspectiva da gramaticalização. Tanto

em francês como em espanhol, a decategorização marcas pessoais > afixos dos

antigos pronomes latinos encontra-se em estágio avançado, o que acreditamos

que torne mais evidente a ocorrência de gramaticalização. Não nos parece

impossível pensar que o clítico te esteja passando por um processo

semelhante, ainda em um estágio menos avançado do que o observado nas

línguas românicas destacadas.

- A gramaticalização de pronomes pessoais com referência ao interlocutor

Ao comentarem o processo de gramaticalização pronominal consoante

as pessoas do discurso, Heine e Song (2011, p. 600) afirmam que “os

pronomes de segunda pessoa do singular pertencem às partes

diacronicamente mais estáveis da gramática”. Todavia, destacam o comentário

de Hagège (1993) segundo o qual “presumivelmente na maioria das línguas do

mundo existe uma ou mais formas alternativas para eles”. (p. 600).

Consideramos essa afirmativa pertinente, uma vez que ela pode ser facilmente

verificada através de diferentes línguas, dentre as quais o português, em que

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104

temos, contemporaneamente, pelo menos duas formas pronominais básicas23

de 2SG: tu e você.

A existência de formas alternativas para expressar a referência ao

interlocutor – na maioria dos casos, oriunda de processos de gramaticalização

– está intimamente relacionada, a nosso ver, com o que Sousa (2015)

denomina de função socializante da linguagem. Ao resgatar a proposta de

caracterização das funções da linguagem de Nuyts (1993), a autora ressalta

que “a linguagem permite ao usuário adequar-se a regras e normas existentes

para o relacionamento interpessoal e social com seu parceiro na interação”.

(SOUSA, 2015, p. 91). Nessa perspectiva, o relacionamento social entre os

participantes consiste em um fator relacionado

(...) às possibilidades e restrições determinadas pelos padrões sociais

e interpessoais que envolvem a situação comunicativa. Envolve um

complexo de normas, fixadas em parte por padrões estabelecidos socioculturalmente, em parte por padrões determinados pelo

relacionamento intersubjetivo dos participantes da interação, e que

são, em geral, relativos a polidez e deferência, poder, solidariedade,

prestígio, “face” dos interlocutores (...) etc. (SOUSA, 2015, p. 91)

Desse modo, os pronomes pessoais de 2ª pessoa, na medida em que

atuam discursivamente como formas de tratamento ao interlocutor, se

enquadram na referida função socializante. Isso pode ser visto como uma

importante motivação para que as línguas, em geral, apresentem (quase

sempre) mais de uma construção linguística que sirva para se referir à 2SG.

Assim, torna-se evidente a necessidade de analisar os aspectos

sociopragmáticos que marcam as formas de tratamento. Essa análise tem sido

a espinha dorsal dos estudos que procuram demonstrar o status [+gramatical]

de você no PB (cf. MACHADO, 2011; RUMEU, 2013), visto que quanto menos

condicionados os usos dessa forma estiverem aos aspectos sociopragmáticos

da construção original Vossa Mercê, mais gramaticalizado, portanto, ela

estaria.

Adotamos o mesmo raciocínio na apreciação das formas clíticas

pronominais com referência à 2SG, objeto de estudo da presente tese.

23 Essa enumeração é reducionista e se presta tão somente a exemplificar o que comentaremos

a seguir. Sabemos que, na prática, existe uma quantidade maior de formas variantes que estabelecem referência ao interlocutor no PB.

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Defendemos que o clítico te, diferentemente dos clíticos lhe e o/a, converteu-

se em um afixo flexional no PB. A maior evidência que temos em relação a

essa gramaticalização, até então, – a partir do que podem nos informar os

dados de corpora – é justamente a “neutralidade” de te às “restrições

determinadas pelos padrões sociais e interpessoais que envolvem a situação

comunicativa”. Como já apontamos em parágrafos precedentes, esse item era

originalmente restrito a contextos de proximidade ou simetria entre os

interlocutores, denotando [+intimidade] entre os mesmos. No PB,

principalmente entre os séculos XIX e XX, observa-se uma extensão

pragmática desse pronome que vai ocasionar que, já em fins do século XX, ele

possa ocorrer em situações comunicativas pragmaticamente mais marcadas,

como interações comerciais e com relativo grau de formalidade (por exemplo,

a aula acadêmica).

Por esse motivo, o primeiro experimento elaborado durante o

desenvolvimento desta pesquisa envolveu justamente a observação dos

aspectos sociopragmáticos (cf. capítulo 4). Tendo em vista que essa dimensão

da língua possui estreita relação com as formas de tratamento propriamente

ditas e que a inobservância da atuação desses aspectos reforçaria a hipótese

de afixação de te, escolhemos iniciar nossas análises experimentais por esse

viés.

Para finalizar esta seção, salientamos que nosso objetivo, ao expor os

pressupostos gerais relativos aos estudos de gramaticalização, foi o de mostrar

de onde parte e em que princípios se baseia a hipótese central defendida na

presente tese. Embora não tenha recebido um espaço de destaque entre as

investigações da área, vimos que a possibilidade de analisar como

gramaticalização as alterações estruturais e semânticas sofridas por itens já

gramaticais, que os tornam ainda mais gramaticais, está presente na definição

do conceito há muito tempo. Pontuamos, ainda, que o trajeto evolutivo clítico

> afixo é amplamente referido dentre os estudiosos. Ainda carecemos,

contudo, de critérios capazes de ilustrar com clareza as propriedades

perdidas/adquiridas por uma dada forma linguística que deixa de ser

interpretada como clítico e passa a ser vista como afixo, apesar da existência

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106

de trabalhos em outras línguas românicas que tenham identificado esse tipo

de mudança em relação aos pronomes pessoais, haja vista o estágio bastante

avançado de gramaticalização verificada nas mesmas. Diante disso, insistimos

na importância de os estudos de gramaticalização enveredarem pelo campo

da linguística experimental, a fim de obter dados de processamento que

auxiliem na análise de certos processos de mudança tão granulares, como é o

caso da mudança clítico > afixo. Discutiremos a respeito da viabilidade dessa

aproximação na próxima seção.

3.2 Gramaticalização e Processamento

Nos últimos anos, temos observado uma clara tentativa de aproximação

entre os estudos de gramaticalização e o processamento linguístico. Apesar de

os aspectos cognitivos sempre terem estado presentes dentre as motivações

que desencadeiam os fenômenos de mudança, somente na última década eles

passaram a ser mais explicitamente mencionados e discutidos pelos

estudiosos de gramaticalização. Um bom exemplo dessa tendência é a obra

Language, usage and cognition (2010), de Joan Bybee, traduzida recentemente

para o português com o título Língua, uso e cognição (2016). Neste livro, a

autora argumenta, dentre outras coisas, que existem processos cognitivos (de

domínio geral) que regulam os fenômenos estruturais observados na

gramática das línguas humanas:

Os processos a serem considerados entram em jogo em todos os casos

de uso da língua; é o uso repetitivo desses processos que tem impacto sobre a representação cognitiva da linguagem e, portanto, na língua

tal como ela se manifesta explicitamente. Neste livro, então, fatos

sobre uso, processamento cognitivo e mudança linguística são

articulados a fim de fornecer explicações a respeito das propriedades

observadas em estruturas linguísticas. (BYBEE, 2016 [2010], p. 18)

No trecho supracitado, percebemos a utilização das expressões

“representação cognitiva” e “processamento cognitivo”, indicativas da

aproximação que a autora pretende realizar na obra entre os fenômenos de

mudança e sua manifestação na cognição. Na mesma obra, no capítulo em

que trata especificamente da gramaticalização, Bybee (2016 [2010]) reafirma

que “com a repetição, a instância particular da construção se torna um chunk”

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e que “como resultado de chunking, as unidades internas da expressão sob

gramaticalização se tornam menos transparentemente analisáveis e mais

independentes de outras instâncias das mesmas unidades” (p. 171). Em

páginas precedentes, a autora fornece uma definição para chunking como

(...) o processo pelo qual sequências de unidades que são usadas

juntas se combinam para formar unidades mais complexas. (...) Na

linguagem, chunking é básico para a formação de unidades

sequenciais expressas como construções, constituintes e expressões

formulaicas. Sequências repetidas de palavras (ou morfemas) são

embaladas juntas na cognição de modo que a sequência possa ser acessada como uma unidade simples. (BYBEE, 2016 [2010], p. 26).

Vemos, novamente, o emprego de noções associadas ao processamento,

tais como “cognição” e acesso a unidades na memória. Em outros termos,

percebemos um esforço da autora em associar diferentes aspectos relativos à

gramaticalização de expressões linguísticas – como redução fonética, aumento

de frequência, dessemantização, extensão de uso etc – a processos cognitivos,

como no caso do chunking. Em outro ponto, Bybee chega, inclusive, a definir

o termo “processamento” utilizado em sua obra:

Por “processamento” me refiro às atividades envolvidas tanto na produção da mensagem como em sua decodificação. Assim, a

discussão inclui, em princípio, o conjunto de mecanismos ou

atividades cognitivas e neuromotores que são acionados na

comunicação on-line e no armazenamento mental da língua. (BYBEE,

2016 [2010], p. 63)

Os trechos destacados são, pois, ilustrativos da crescente preocupação,

no plano teórico, com a questão do processamento cognitivo por parte dos

trabalhos de gramaticalização. Contudo, percebemos também que a

exploração do processamento, em termos empíricos, ainda é bastante

incipiente. A própria Bybee, no livro mencionado, faz menção a apenas dois

experimentos linguísticos (um teste de priming lexical e estrutural com

crianças, envolvendo construções ativas e passivas, e um julgamento de

aceitabilidade acerca de construções progressivas no espanhol). A

apresentação desses experimentos é muito breve e sutil. O foco principal da

obra recai sobre a parte interpretativa dos dados de corpora, a partir dos quais

são embasadas as teorizações.

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108

No último capítulo de Língua, uso e cognição, Bybee reúne, de modo

mais sistemático, um conjunto de hipóteses extraídas de diferentes estudos

que salientam a interação entre o uso linguístico (principalmente quanto à

frequência) e a cognição. Ao tratar da convencionalização de fenômenos

altamente frequentes na língua, a autora destaca a Hipótese de

Correspondência Desempenho-Gramática, proposta por John Hawkins,

segundo a qual “as gramáticas convencionalizaram estruturas sintáticas na

proporção de seu grau de preferência na performance, conforme evidenciado

por padrões de seleção em corpora e por facilidade de processamento em

experimentos psicolinguísticos. (HAWKINS, 2004, p. 3 apud BYBEE, 2016

[2010], p. 331).

A hipótese de Hawkins, que não é exatamente um estudioso de

gramaticalização, associa o famigerado parâmetro da frequência de uso, há

décadas preconizado por diferentes pesquisadores de gramaticalização, ao

processamento cognitivo das estruturas linguísticas. Nessa linha de

raciocínio, o autor afirma que a alta ou baixa frequência de uso reflete a

facilidade ou dificuldade de processamento. Em outras palavras, o uso estaria

condicionado ao grau de eficiência das construções linguísticas, em termos de

processamento da informação.

A ideia de conceber a frequência de ocorrência das formas linguísticas

como um reflexo da eficiência das mesmas no processamento cognitivo é

bastante valiosa e interessante para os propósitos desta tese. De fato, um dos

nossos objetivos centrais ao submeter à experimentação as formas clíticas

com referência à 2SG que podem atuar no PB é, sem dúvidas, compreender a

contraparte cognitiva do fenômeno frente aos dados de corpora das pesquisas

já realizadas.

Diferentes trabalhos apontam que te sempre registrou uma alta

produtividade no PB e que essa produtividade praticamente não foi afetada

pela difusão da forma gramaticalizada você no sistema de representação da

2SG. Por outro lado, como mostramos na introdução, as formas clíticas lhe e

o/a, que, poderiam ter acompanhado o movimento de difusão de você, não

apresentam regularidade quanto à frequência de uso e sua atestação nas

amostras quase sempre está articulada com fatores de ordem extralinguística.

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109

Sendo assim, ficam as questões: que diferenças devem existir,

cognitivamente falando, entre esses elementos, para que tenhamos

distribuições tão desiguais em relação ao uso desses clíticos? A hipótese de

Hawkins (2004) explicaria esse fenômeno do PB? Seria possível relacionarmos

isso à análise pelo viés da gramaticalização?

Assumimos, nesta tese, que existem diferenças no processamento

cognitivo das formas clíticas e que tais diferenças se enquadram positivamente

dentro da hipótese de Hawkins. Além disso, como já apresentamos na seção

anterior, defendemos que as diferenças no processamento são reflexo de um

processo de gramaticalização, que afetou te, mas não afetou outros clíticos

com referência a 2SG (lhe e o/a). Para aliar as duas perspectivas de análise,

gramaticalização e processamento, recorremos novamente a Hawkins.

Em sua obra mais recente, Cross-linguistic Variation and Efficiency

(“Variação Translinguística e Eficiência”), Hawkins (2014) reserva um capítulo

inteiro para discutir a relação entre a Hipótese da Correspondência

Desempenho-Gramática com os estudos de mudança linguística.

Sugestivamente intitulado de “The conventionalization of processing

efficiency” (“A convencionalização da eficiência de processamento”), o capítulo

faz um rápido resgate da tradição de estudos em gramaticalização e ressalta

que a maioria das pesquisas realizadas nesse campo tem se dedicado a traçar

as trajetórias (clines) de mudança e analisar as diferentes relações entre os

estágios de implementação da mudança, sobretudo os mecanismos sintáticos

e semânticos. O autor assevera, contudo, que “também há um aspecto de

desempenho e processamento para a gramaticalização” (HAWKINS, 2014, p.

74).

Ao apreciar os pressupostos gerais em que se baseiam os estudos de

gramaticalização a partir da perspectiva do processamento linguístico,

Hawkins (2014) afirma que existem pelo menos três questões emergentes para

as quais “o processamento pode contribuir para sua resolução” (p. 75): (i) Por

que encontramos tanto reduções formais quanto expansões de propriedades

nas formas gramaticalizadas, em comparação com as formas/propriedades de

origem? Por que não há apenas expansões sem reduções formais? Por que não

existem aumentos na complexidade formal concomitantes com a expansão de

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propriedades? (ii) Podemos prever e delimitar o conjunto de trajetórias de

gramaticalização regulares para os quais encontramos evidências na história

da língua? (iii) Por que os clines de gramaticalização ocorrem em algumas

línguas e não em outras, ou ocorrem em algum estágio da língua e não em

outro?

Das três questões anteriores, iremos nos ater apenas na primeira, haja

vista que esta tem uma relação maior com os propósitos da nossa pesquisa.

Para explicar por que ocorrem reduções estruturais e expansão de

propriedades (que aqui atribuiremos aos níveis semânticos, pragmáticos e

discursivos) nas formas gramaticalizadas frente às formas que as originaram,

Hawkins (2014) nos remete a um dos seus princípios gerais de eficiência: o

princípio Minimizar Formas (do ing. “Minimize Forms”). Nas palavras do autor:

O processador humano prefere minimizar a complexidade formal de

cada forma linguística F (seu fonema, morfema, palavra ou unidades

sintagmáticas) e o número de formas com atribuições de propriedades

convencionalizadas únicas, atribuindo, assim, mais propriedades a menos formas. Essas minimizações aplicam-se proporcionalmente à facilidade com que uma determinada propriedade P pode ser atribuída no processamento para uma determinada forma F. (HAWKINS, 2014,

p. 15) [grifos nossos]

A explicação do autor, eminentemente de base cognitiva, se coaduna, a

nosso ver, com os princípios teóricos da gramaticalização discutidos na seção

anterior do presente capítulo. Em primeiro lugar, é possível correlacionar o

princípio da extensão contextual com a ideia de “mais propriedades a menos

formas”; em essência, é isso que encontramos nas formas em

gramaticalização, se interpretarmos as “propriedades” segundo uma

perspectiva semântico-pragmática. Além disso, podemos pensar, ainda, que

as perdas de propriedades semânticas (dessemantização) e morfossintáticas

(decategorização) sofridas pelas construções afetam diretamente a “facilidade

com que uma determinada propriedade P pode ser atribuída no

processamento”.

A partir do raciocínio segundo o qual há uma importante dimensão

cognitiva nos processos de gramaticalização a ser analisada, Hawkins (2014)

reforça a necessidade de se incluir a questão do processamento nos estudos

de gramaticalização. A investigação de construções gramaticalizadas ou em

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111

processo de gramaticalização a partir de experimentos linguísticos pode ser

um modo interessante de pôr à prova as assunções teóricas feitas em relação

aos mecanismos que regulam a mudança. Ao averiguar quais propriedades

perdidas e/ou adquiridas por uma construção gramaticalizada a tornam mais

eficiente (nos termos de Hawkins), estaremos encontrando importantes

evidências de ordem cognitiva para sustentar a premissa de que a

gramaticalização causa um aumento na frequência de uso da construção.

Além disso, se as mudanças, de fato, ocorrem no processamento on-line da

informação pelos falantes, conforme afirma Bybee (2016 [2010]), é mais do

que necessário que se comece a investigar o modo como esses falantes

processam as construções linguísticas, ainda que seja em uma situação de

laboratório.

Assim, o processamento, ou melhor, a eficiência do processamento

poderá vir a ser incluída dentre os “fatores extra e intralinguísticos que são

rotineiramente reconhecidos e investigados em linguística histórica e

sociolinguística, para nos dar um modelo mais completo de mudança,

variação e sincretismo linguísticos.” (HAWKINS, 2014, p. 89). É isso que

almejamos realizar, ainda que sejam apenas os primeiros passos de uma

extensa agenda de pesquisa, com relação às formas clíticas de 2SG e à

hipótese de gramaticalização/afixação do clítico te no PB. No plano teórico,

argumentamos que a forma te não desaparece (como ocorreu com a forma tu

em muitas localidades brasileiras) do sistema pronominal a partir da

emergência de você porque tornou-se um afixo marcador da informação mais

geral de 2SG, tendo perdido restrições sociopragmáticas de formalidade ou

intimidade (que garantiram a sua expansão para mais e mais contextos de

uso). No plano empírico, embasados pela argumentação de Hawkins (2004,

2014), esperamos que os falantes apresentem maior facilidade para processar

as frases que contiverem a forma te, frente às demais formas, o/a e lhe. Além

de encontrar uma razão para a sua alta frequência de uso, esse resultado

empírico nos forneceria a evidência de que o clítico te é a forma cognitivamente

mais eficiente para expressar a informação gramatical de 2SG na posição de

complemento.

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112

A fim de que essa investigação fosse viável, acolhemos como abordagem

metodológica a linguística experimental. Contudo, para o desenvolvimento e a

realização dos experimentos que fossem capazes de testar nossas hipóteses e

previsões, foi necessário explorar e conhecer como se estrutura uma pesquisa

pelo viés da experimentação. Há uma série de parâmetros e exigências que

precisaram ser observados, conforme apresentaremos panoramicamente na

próxima seção.

3.3 Metodologia experimental em Linguística

Para desenvolvermos a análise dos clíticos pronominais com referência

a 2SG no PB, adotamos o paradigma metodológico da Linguística

Experimental. Por Linguística Experimental ou Psicolinguística na descrição

gramatical, entendemos “a inserção da pesquisa em gramática nos cânones

metodológicos das ciências experimentais maduras, como a Psicologia

Cognitiva e a Neurociência.” (KENEDY, 2015, p. 143). Fruto da interface cada

vez mais latente entre Psicolinguística e Linguística, a metodologia

experimental aplicada a fenômenos gramaticais possibilita a elaboração e

testagem de previsões comportamentais relacionadas com alguma hipótese ou

algum modelo teórico específico.

Nesta seção, oferecemos um panorama geral acerca da abordagem

experimental adotada nesta tese. Iniciaremos com um confronto entre a

metodologia experimental e outros métodos geralmente utilizados nas

pesquisas linguísticas, procurando apontar as vantagens e limitações de cada

um deles. Em seguida, discutiremos alguns requisitos essenciais que devem

ser observados pelos pesquisadores que desejam adotar o paradigma

experimental, definindo alguns conceitos importantes como cognição,

percepção e processamento. Na última parte desta seção, descrevemos

sucintamente o protocolo metodológico que as pesquisas experimentais devem

seguir, caracterizando algumas partes importantes que auxiliarão na

compreensão dos próximos capítulos, relativos aos experimentos. A título de

exemplificação dos conceitos e etapas da abordagem experimental,

utilizaremos, sempre que possível, o nosso objeto de estudo, complementando,

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113

em alguns casos, com exemplos de pesquisas já realizadas segundo o mesmo

paradigma metodológico.

3.3.1 Metodologias em linguística

Segundo Kenedy (2015), existem, pelo menos, duas grandes abordagens

metodológicas mais largamente empregadas nos estudos linguísticos: o

método introspectivo, essencialmente calcado na intuição, e o método

etnográfico, baseado na prática de análise de corpus. No que diz respeito à

metodologia introspeccionista, esta fundamenta-se na apreciação dos

julgamentos metalinguísticos emitidos por uma pessoa específica, com o

propósito de verificar as impressões (de naturalidade ou de estranhamento)

que um certo conjunto de enunciados podem causar. Dentro dessa

abordagem, correlacionam-se as reações dos falantes expostos aos

enunciados com a gramaticalidade ou agramaticalidade de certas estruturas

linguísticas.

Trata-se, pois, de uma metodologia que lida, segundo a proposta de

Chafe (1994), com dados manipulados (i. e., conjunto de enunciados

fabricados pelo pesquisador interessado em um fenômeno em particular) e

não-públicos, haja vista o acentuado grau de subjetividade relacionado às

respostas emitidas pelos falantes investigados (que, não raro, podem ser os

próprios pesquisadores). Além disso, verifica-se uma forte vinculação com o

método dedutivo, uma vez que leis e teorias gerais acerca dos fatos gramaticais

são elaboradas teoricamente pelo pesquisador e posteriormente aplicadas

para prever e/ou explicar os dados colhidos da intuição dos falantes nativos.

Na linguística, a vertente teórica que se notabilizou por utilizar a metodologia

introspeccionista, principalmente nas primeiras décadas de desenvolvimento,

foi a da sintaxe gerativa, embora, na realidade, a intuição linguística perpasse

todas as vertentes teóricas, em diferentes graus.

Podemos identificar como vantagens relacionadas à adoção da

metodologia introspeccionista: o seu baixo custo, posto que não carece de

nenhum aparato tecnológico específico; o vasto conjunto de fenômenos que

podem ser estudados, já que, em princípio, qualquer fato que chame a atenção

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dos pesquisadores seria passível de gerar impressões dos falantes; a abertura

de insights para aspectos linguísticos, até então, não estudados. Junte-se a

isso o fato de a intuição ser indiscutivelmente uma rica fonte para a

formulação de teorias e hipóteses. Em contrapartida, as principais limitações

dessa metodologia são: (i) a intensa variabilidade de intuições, tanto entre

falantes diferentes quanto entre um mesmo falante analisado em momentos

distintos, o que pode ocasionar que um mesmo enunciado seja julgado como

aceitável e estranho; (ii) a ausência de controle sistemático das variáveis que

podem influenciar a intuição linguística de cada falante, além daquelas que

são de interesse do pesquisador. Tais fatores fazem com que haja muita

controvérsia, entre os estudiosos, acerca da capacidade de generalização

empírica da metodologia introspeccionista.

Já a metodologia etnográfica centra-se especificamente na análise de

dados linguísticos coletados em situações de interação mais próximas do uso

corrente da língua. Com base nesses dados, o pesquisador busca identificar

padrões gerais de comportamento e propor hipóteses descritivas para o

fenômeno investigado. O método é, portanto, fundamentalmente indutivo e

lida, novamente consoante a proposta de Chafe (1994) com dados não-

manipulados (visto que os enunciados analisados são produzidos

“naturalmente” pelos falantes) e públicos, pois costumeiramente as coleções

utilizadas como corpus são acessíveis à comunidade científica em geral.

Embora possamos dizer que essa metodologia tem sido a mais utilizada por

diferentes vertentes da linguística, ela costuma ser lembrada principalmente

pelos trabalhos no campo da sociolinguística de orientação laboviana.

Uma pesquisa pautada em análise de corpora tem como vantagens (i) o

baixo custo envolvido, visto que o linguista pode construir seu próprio corpus

de trabalho através da realização de entrevistas gravadas, da reprodução de

documentos conservados em acervos, ou mesmo utilizar amostras de dados

disponibilizadas na internet por diversas instituições; (ii) a validade ecológica,

isto é, “os dados empíricos utilizados pelo linguista referem-se a algo que

efetivamente existe no mundo real e não pode ser apenas um artefato criado

pelo próprio pesquisador” (KENEDY, 2015, p. 144); (iii) o conhecimento real

do vernáculo, no sentido de detectar o que efetivamente os falantes produzem.

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Acrescente-se, ainda, o fato de a abordagem etnográfica ser uma rica fonte de

dados para fenômenos linguísticos abundantes.

Cabe apontar, entretanto, algumas limitações: assim como se registra

uma grande variabilidade de intuições entre sujeitos, também se verifica alta

variabilidade entre corpora, de modo que, a depender da amostra estudada, o

linguista pode encontrar padrões de comportamento conflitantes acerca de

um mesmo fenômeno24; além disso, análises a partir de corpora estão restritas

a investigar – na maioria dos casos – dados de produção da linguagem

(impossibilitando, pois, o estudo da compreensão); os dados de produção

advindos de corpora, por sua vez, retratam apenas o produto final da produção

linguística, impedindo que o pesquisador possa fazer considerações acerca

dos processos cognitivos e sociointeracionais envolvidos na produção; por fim,

é preciso lembrar que certos fenômenos linguísticos pouco produtivos na

língua podem registrar baixa frequência ou mesmo não aparecer em

ambientes não manipulados.

Como uma terceira via metodológica, alternativa e complementar às

abordagens introspeccionista e etnográfica, temos a abordagem experimental.

Através da experimentação, os linguistas têm encontrado meios de suplantar

as principais limitações das outras metodologias. Nessa abordagem, o

pesquisador lida com dados manipulados (assim como na introspecção), mas

públicos (como na etnografia) – cf. Chafe (1994) –, uma vez que a formulação

dos experimentos segue um rigoroso protocolo que permite, dentre outras

coisas, a replicação por outros estudiosos, de maneira que os resultados são

passíveis de verificação e refutação. A pesquisa experimental segue o método

hipotético-dedutivo, que pode ser ilustrado pela seguinte rotina de trabalho

(cf. Figura 3.2): ao levantar problemas acerca de um determinado fenômeno

linguístico, o pesquisador, amparado por uma perspectiva teórica específica,

formula hipóteses que expliquem o fenômeno em questão. Dessas hipóteses,

derivam previsões, que são, grosso modo, os comportamentos que os falantes

irão assumir a partir da exposição a certos estímulos. As hipóteses e previsões

24 Na tentativa de amenizar o impacto dessa variabilidade, os pesquisadores geralmente

tentam delimitar rigorosamente um perfil sociocultural para a adoção de um corpus de

análise. Em outros casos, o tipo de corpus pode se tornar, ainda, mais uma variável controlada na análise.

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são postas à prova através da experimentação, na qual o pesquisador criará

uma tarefa específica para que os seus participantes sejam expostos ao

fenômeno em análise. Em seguida, ele deve analisar os resultados obtidos e

averiguar se as respostas dos participantes ao fenômeno confirmam suas

previsões e respaldam suas hipóteses. Comumente, esse ciclo é

retroalimentar, ou seja, dos resultados de uma experimentação surgem novos

problemas para os quais o pesquisador deverá formular novas hipóteses,

previsões experimentações etc.

Figura 3.2 – O ciclo da pesquisa experimental. (Baseado em KENEDY, 2015)

Há um conjunto significativo de vantagens que notabilizam a abordagem

experimental no âmbito científico. A principal delas talvez seja o fato de que,

por meio da experimentação, é possível investigar os processos cognitivos que

subjazem a produção e a compreensão de diferentes fenômenos linguísticos.

O controle prévio e sistemático de variáveis que podem interferir na percepção

dos falantes também é outra importante vantagem: durante a elaboração do

experimento, o pesquisador dedica grande tempo e esforço para formular

maneiras de atenuar ou reduzir a influência de variáveis irrelevantes aos

propósitos da sua pesquisa, a fim de que possa atribuir com mais fiabilidade

os resultados obtidos com as variáveis controladas. Além disso, a

experimentação pode ser a única maneira de estudar certos fenômenos raros

ou inexistentes em corpora. Por último, destacamos que a abordagem

experimental é, dentre as três metodologias mais praticadas em linguística, a

que mais permite ao pesquisador fazer generalizações causais, e não apenas

correlacionais. Nas palavras de Kenedy,

(...) tanto a metodologia etnográfica quanto a introspeccionista

caracterizam-se como pesquisas correlacionais, ou seja, possuem o

poder de relacionar fenômenos, mas são abordagens de limitado poder

explanatório, isto é, pouco podem dizer com segurança sobre as

causas dos fenômenos que investigam. (KENEDY, 2015, p. 145)

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Frente a essas vantagens, verificamos algumas limitações na

metodologia experimental. Primeiramente, destacamos a dependência de

programas e equipamentos especializados e, por vezes caros, que podem exigir

do pesquisador conhecimentos avançados de informática e eletrônica para

serem manuseados durante a aplicação dos experimentos e/ou das análises

estatísticas dos resultados. Soma-se a isso a questão da validade ecológica,

visto que o pesquisador fabrica os estímulos linguísticos, não utilizando

obrigatoriamente enunciados extraídos de dados reais de uso.

No Quadro 3.3, abaixo, sintetizamos as três abordagens comentadas

anteriormente, destacando a natureza dos dados manuseados por cada uma

bem como o método que as rege, seguindo a proposta de Chafe (1994):

ABORDAGEM DADOS MÉTODO

Introspeccionista Manipulados e não-públicos Dedutivo

Etnográfica Não-manipulados e públicos Indutivo

Experimental Manipulados e públicos Hipotético-dedutivo

Quadro 3.3 – Abordagens metodológicas: natureza dos dados e método envolvido.

(Baseado em Chafe, 1994)

Vale ressaltar que esses modi operandi nos estudos linguísticos não são

excludentes entre si. Em outras palavras, os dados oriundos da pesquisa

experimental não descartam os dados advindos das pesquisas baseadas em

corpora ou em análises introspectivas. Como acertadamente salienta Kenedy

(2015, p. 146), “o progresso científico da Descrição Gramatical depende

crucialmente da convergência das informações advindas de cada uma dessas

três abordagens metodológicas complementares”.

A título de ilustração dessa convergência metodológica em pesquisas

sobre fenômenos linguísticos, citamos o artigo de Kenedy (2009), intitulado

“Análise de corpus, a intuição do linguista e metodologia experimental na

pesquisa sobre as orações relativas do PB e do PE”. Como o próprio título

sugere, neste trabalho, o autor reúne resultados de pesquisas realizadas a

partir das três abordagens metodológicas em torno do fenômeno da

relativização em língua portuguesa. Especificamente, discute se a

presença/ausência da estratégia de relativização preposicionada (“relativa

padrão”, p. ex., “A pessoa [com quem eu conversei] ficou doente”) em

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variedades do português seria uma questão paramétrica, nos termos de

Tarallo (1983). O artigo é um interessante exemplo de como a abordagem

experimental pode contribuir significativamente na descrição de fatos

gramaticais por vezes controversos nas análises baseadas em corpus e na

intuição.

3.3.2 A realidade psicológica dos fenômenos gramaticais

Graças às principais vantagens mencionadas anteriormente, o interesse

pela abordagem experimental vem crescendo entre os pesquisadores do Brasil

e de outras partes do mundo. As recentes inovações tecnológicas, que têm

criado ou refinado diversos aparelhos e programas úteis para os mais variados

tipos de experimentação, certamente também contribuem para esse

crescimento. Um linguista pode, atualmente, aplicar um teste de julgamento

a vários sujeitos, de localidades distintas, a partir de uma plataforma on-line

que coleta e organiza automaticamente as respostas emitidas. Em alguns

laboratórios de pesquisa no Brasil, é possível, por exemplo, aplicar tarefas com

leitura de enunciados nas quais um aparelho monitora e registra o número de

vezes que os participantes fixaram o olhar em uma mesma área da frase e por

quanto tempo ele se deteve nessa área (o famoso eye tracker).

Esses breves exemplos revelam algumas das infinitas possibilidades de

pesquisa que o campo da experimentação pode proporcionar aos estudiosos.

Diante disso, levantamos as seguintes questões: está “na moda” fazer pesquisa

experimental em linguística? Adotar o referido método é sinônimo de pesquisa

arrojada e “moderna”? Todo e qualquer pesquisador que venha a desenvolver

uma pesquisa linguística futuramente pode (e deve) recorrer à

experimentação?

Para todas os questionamentos anteriores, a resposta é não. É um

equívoco associar a abordagem experimental a uma questão de “moda”, isto

é, uma tendência do momento a qual todos devem adotar

indiscriminadamente. Segundo Kenedy (2015, p. 146), “o recurso à

experimentação em linguística não deve ser compreendido como um modismo,

tampouco pode ser adotado de maneira improvisada ou exógena na pesquisa

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gramatical”. Antes de definir a abordagem experimental como opção

metodológica a ser seguida, o pesquisador deve compreender “para que

propósitos científicos são úteis os dados experimentais e quais tipos de

problema linguístico ensejam previsões comportamentais testáveis e

capturáveis por algum instrumento psicométrico.” (KENEDY, 2015, p. 146).

Em primeiro lugar, o interesse central do pesquisador deve estar

relacionado com a realidade psicológica de um determinado aspecto da língua

estudada. Dito de outro modo, o pesquisador precisa compreender para quais

“propósitos científicos são úteis os dados experimentais e quais tipos de

problema linguístico ensejam previsões comportamentais testáveis e

capturáveis por algum instrumento psicométrico” (KENEDY, 2015, p. 146).

Dentre os objetivos gerais da Psicolinguística enquanto campo de

investigação, está o de verificar a plausibilidade das afirmações teóricas acerca

do conhecimento linguístico/gramatical a partir da percepção dos

participantes registrada durante a execução das tarefas experimentais. Nesse

sentido, é importante esclarecermos o que se entende por cognição em

Psicolinguística. Segundo Field (2004, p. 61), cognição é “o uso ou a

manipulação do conhecimento; daí, (a) a faculdade que nos permite pensar e

raciocinar e (b) o processo envolvido no pensamento e no raciocínio”. Assim

sendo, a pesquisa psicolinguística se preocupa especificamente com questões

relacionadas às habilidades dos falantes quanto ao seu conhecimento

linguístico implícito (como eles utilizam a língua de maneira natural,

inconsciente, sem saber o que estão fazendo quando falam/escrevem ou

ouvem/leem diferentes enunciados). Por essa razão, afirmamos anteriormente

que é preciso haver alguma questão ou aspecto inerente à dimensão cognitiva

da linguagem para que a adoção da abordagem experimental em uma

pesquisa linguística seja coerente.

Utilizando como exemplo o tema desta tese, a escolha da abordagem

experimental para o estudo das formas clíticas com referência à 2SG no PB

torna-se pertinente na medida em que temos como propósito geral investigar

como os falantes compreendem os diferentes enunciados nos quais os clíticos

estão inseridos. Como vimos no capítulo 2, as análises de corpora apresentam

diferentes padrões de distribuição quanto ao uso dessas formas, tanto em

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perspectiva diacrônica quanto em perspectiva sincrônica. Diante disso, é de

nosso interesse procurar entender, dentre outras coisas: como os falantes

lidam cognitivamente com esses clíticos, que conhecimentos são acionados

para decodificar a referência de 2SG, que grau de complexidade em termos de

custos de processamento da informação cada forma pronominal envolve e, em

última análise, como o processamento desses clíticos pode explicar a

distribuição de uso atestada sincronicamente. Todas essas questões estão

diretamente ligadas à dimensão cognitiva do objeto de estudo em foco e,

portanto, legitimam a adoção da metodologia experimental nesta pesquisa.

A análise da dimensão cognitiva de um determinado fenômeno é feita

através de medidas indiretas, que podem ser mensuradas a partir da

percepção dos falantes. Por percepção25, entendemos “a operação de análise

de um estímulo” (FIELD, 2004, p. 204). Dentro dessa lógica, o ato de perceber

relaciona-se com o processo de decodificação da informação presente em um

dado estímulo linguístico (apresentação em uma folha de papel, na tela de um

computador ou mesmo via fones de ouvido). As reações provocadas a partir

desse estímulo são, pois, associadas ao modo como o indivíduo percebe o

estímulo. As medidas psicométricas visam, então, a tornar analisáveis as

diferentes percepções dos falantes, controlando, por exemplo, o nível de

aceitação dos sujeitos segundo uma escala numérica, o tempo despendido

para acionar uma tecla após a leitura de um determinado segmento ou

mesmo, em uma técnica mais sofisticada, o número de vezes que os indivíduos

fixaram o olhar em determinado trecho de uma frase.

A percepção que os sujeitos têm acerca de um fenômeno linguístico

geralmente é explicada segundo o modo como eles processam esse fenômeno

em suas mentes. Em sentido lato, processamento diz respeito à “análise,

classificação e interpretação de um estímulo” (FIELD, 2005, p. 224). Já em

sentido mais restrito, podemos dizer que processamento se refere “ao processo

receptivo de ouvir e ler”. No âmbito dos estudos psicolinguísticos, o termo é

25 Cumpre destacar que o conceito de percepção apresentado difere do que tem sido

frequentemente empregado em trabalhos recentes da sociolinguística. Nesses estudos, a

percepção diz respeito às inferências feitas pelos falantes a partir de certos fenômenos

variáveis da língua, que evocam significados sociais específicos. Desse modo, o conceito de percepção não abarcaria necessariamente aspectos cognitivos.

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utilizado para designar especificamente “as operações cognitivas subjacentes

(a) às quatro habilidades linguísticas (falar, ouvir, ler e escrever); (b) à

recuperação de itens lexicais; e (c) à construção de representações do

significado” (FIELD, 2004, p. 224).

Recorrendo novamente ao exemplo dos clíticos pronominais com

referência à 2SG, diríamos, quanto à percepção, que a nossa investigação

busca observar como os falantes reagem à presença de te, lhe e o/a inseridos

em diferentes tipos de enunciados. Por exemplo, ao serem solicitados para

julgar fragmentos de cenas de filmes legendadas, será que os participantes

emitirão notas diferentes para as legendas, a depender do tipo de clítico que

seja lido? Ou, ainda, será que eles acessarão mais facilmente à referência de

2SG na hora de responder uma pergunta interpretativa depois de ler uma

frase com te ou lhe? No que tange ao processamento, dois aspectos nos

interessam em particular: (i) se os clíticos favorecem, de fato, a interpretação

da referência a 2SG e (ii) quão custosa é essa interpretação a partir dos

diferentes clíticos (em termos de esforço cognitivo, demanda de atenção etc).

Para encerrar essa subseção, ressaltamos novamente a necessidade de

que os trabalhos sobre gramaticalização de formas e construções, ao menos

aqueles que dedicam maior atenção aos aspectos sincrônicos do processo,

incorporem, em alguma medida, a metodologia experimental em suas

análises. Conforme assinalamos sinteticamente na seção 3.2., há uma série

de princípios e mecanismos utilizados para explicar as trajetórias de

gramaticalização que se pautam na dimensão cognitiva do processo.

Entretanto, boa parte dessas afirmações é puramente teórica e mereceria uma

verificação empírica que a experimentação pode proporcionar. As

considerações acerca do processamento de construções mais

gramaticalizadas também vão pelo mesmo caminho e, seguramente, gozariam

de maior credibilidade se fossem verificadas experimentalmente.

Na última subseção do capítulo, descrevemos o protocolo geral da

pesquisa via experimentação. Serão brevemente apresentadas, a seguir, as

etapas que o pesquisador deve cumprir dentro dessa abordagem

metodológica.

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3.3.3 Protocolo da abordagem experimental

O protocolo metodológico que exibiremos nas próximas linhas tem por

objetivo, dentro da linguística experimental, explicitar com o máximo de

clareza o modus operandi da pesquisa empreendida. Isso assegura a

objetividade do processo de investigação científica, além de possibilitar que

um estudo específico seja replicado por outros estudiosos, que poderão propor

adaptações ao modelo criado. De modo geral, o referido protocolo apresenta

um conjunto de elementos fixos, que obrigatoriamente deverão constar no

projeto experimental do pesquisador (ainda que, na prática, haja grande

variabilidade na maneira como esses elementos serão explorados, algo

diretamente relacionado à natureza do fenômeno linguístico de interesse).

Resumidamente, os passos elementares em uma abordagem experimental são

os seguintes:

O trabalho experimental em gramática começa com a especificação

dos problemas da pesquisa. A partir desse ponto e com base em

alguma hipótese de trabalho, o pesquisador formulará alguma

previsão comportamental (...). Estabelecida sua previsão, o

pesquisador deverá dar continuidade a seu projeto experimental selecionando uma técnica de pesquisa compatível com suas previsões.

Logo depois, uma série de especificações metodológicas devem ser

cumpridas: o pesquisador definirá a tarefa experimental, delineará as

variáveis independentes e dependentes relevantes para a pesquisa,

estabelecerá as condições do experimento, formulará estímulos

experimentais, selecionará e distribuirá os participantes da tarefa experimental, aplicará o experimento e, finalmente, organizará e

interpretará os seus resultados. (KENEDY, 2015, p. 147-148).

Pontuaremos cada um dos passos mencionados a seguir, a partir das

técnicas experimentais. Como exemplificação para ilustrar os elementos

listados, usaremos os projetos experimentais criados para esta tese, com a

finalidade de analisar as formas clíticas com referência a 2SG no PB.

- Técnicas experimentais

Tendo especificado quais são os problemas bem como as hipóteses e

previsões relativas ao comportamento dos falantes de uma língua diante de

certo fenômeno gramatical, o pesquisador terá de definir uma técnica

experimental, capaz de atender satisfatoriamente às questões levantadas.

Especificamente, a técnica diz respeito ao tipo de análise psicométrica que o

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pesquisador utiliza para analisar os aspectos relacionados ao processamento

cognitivo do fenômeno investigado.

Na psicolinguística, costuma-se dividir essas técnicas em dois grupos:

as de medida on-line e as de medida off-line. Essa separação baseia-se na fase

do processamento em que as medidas são registradas. As medidas on-line são

capturadas durante o curso de processamento realizado pelos participantes

enquanto estes estão sendo expostos aos estímulos linguísticos. Já as

medidas off-line são contabilizadas após o término do processamento

linguístico, contemplando reflexões conscientes emitidas pelos participantes

do experimento. As medidas off-line podem ser subdivididas, por sua vez,

quanto à aferição cronométrica da tarefa. Em um teste off-line cronométrico,

registra-se o tempo despendido pelos participantes para executar a tarefa

proposta, enquanto que em um teste off-line não-cronométrico não há a

aferição do tempo gasto pelos participantes para completar a tarefa.

Na presente tese, adotamos técnicas experimentais on-line e off-line. A

técnica off-line (cronométrica) consiste em uma adaptação do modelo clássico

das tarefas de julgamento, na qual os nossos participantes assistiam a

fragmentos de cenas legendadas e atribuíam uma nota (dentro de uma escala

de 5 pontos) para legendas sinalizadas na cor vermelha. Essas legendas

traziam os clíticos investigados. A finalidade central da técnica era verificar o

índice de aceitação dos clíticos quando inseridos em diferentes situações

comunicativas (cf. capítulo 4). A segunda técnica, envolvendo medida on-line,

compreendia uma tarefa de leitura automonitorada: os participantes liam

duas frases, relacionadas entre si, e, ao final, tinham de responder a uma

pergunta interpretativa, relacionada à última frase lida. Nesta, havia um

clítico que retomava um referente da primeira frase (cf. capítulo 5). O objetivo

do experimento era verificar o índice de ativação da informação de 2SG na a

partir dos diferentes clíticos e registrar o tempo despendido para ler as frases

com o clítico e para responder à pergunta. A outra técnica on-line utilizada

envolvia a leitura de frases, no mesmo modelo do experimento anterior;

contudo, os movimentos oculares dos participantes, durante toda a tarefa de

leitura, foram monitorados pelo equipamento de eye tracker, fornecendo,

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assim, uma medida psicométrica capturada durante o processamento da

leitura das frases (cf. capítulo 6).

- Tarefa experimental

A tarefa experimental refere-se ao que, de fato, os indivíduos convidados

para participar do teste terão de fazer. Na maioria dos casos, os participantes

não são especialistas em linguística, de modo que a tarefa a ser executada por

eles deve ser preferencialmente simples, clara e objetiva. Do contrário, a alta

complexidade da tarefa pode comprometer os resultados, visto que crescem as

chances da maioria dos sujeitos não realizar a tarefa corretamente.

Nos experimentos elaborados para esta tese, os participantes efetuaram

as seguintes tarefas: (i) assistir a fragmentos de cenas de filmes legendadas e

julgar a adequação do texto das legendas com a situação representada nas

cenas através das teclas do computador; (ii) ler frases por inteiro, projetadas

na tela do computador de acordo com o acionamento de teclas realizado pelo

próprio participante e responder a perguntas interpretativas; e (iii) ler frases

por inteiro na tela do computador, enquanto o rastreador monitora o

comportamento ocular durante a leitura.

- Variáveis controladas

A delimitação das variáveis a serem controladas em um experimento é

uma etapa de grande importância. É nessa etapa que o pesquisador define os

fenômenos linguísticos que, consoante a sua hipótese de investigação,

provocam um determinado comportamento durante a tarefa experimental.

Nesse sentido, classificam-se as variáveis de um experimento como

independentes e dependentes. São variáveis independentes os fenômenos

estipulados como desencadeadores de certas reações dos participantes. Por

outro lado, são variáveis dependentes os dados registrados durante a tarefa,

traduzidos sob a linguagem de uma medida psicométrica. Assim, a lógica

experimental é que a presença da variável independente causa o

comportamento observado pelos participantes na forma de uma variável

dependente.

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O tipo de clítico em referência a 2SG foi definido, nesta tese, como uma

variável independente. Dentro dessa lógica, acreditamos que, a depender da

forma clítica apresentada, os participantes teriam comportamentos distintos.

No primeiro experimento, por exemplo, envolvendo o julgamento de cenas

legendadas, previmos que a presença do clítico te nos enunciados provocaria

maior aceitação das legendas analisadas pelos participantes. Através da

variável dependente nota atribuída à legenda, essa previsão pôde ser testada.

Em resumo, assumimos que os participantes julgariam as legendas com te

utilizando as notas mais altas da escala (var. dependente) porque esse clítico

teria maior aceitação entre os falantes do PB na representação da informação

de 2SG (var. independente em foco).

- Condições experimentais

Em termos psicolinguísticos, as condições são os níveis projetados pelas

variáveis independentes controladas pelo pesquisador combinadas entre si.

Assumindo que uma variável é formada por dois ou mais níveis concretos e

levando em consideração que, em geral, os estudiosos costumam controlar

duas ou mais variáveis, as condições experimentais de um teste são o produto

da multiplicação entre os níveis das variáveis em estudo.

Para exemplificar isso, vamos utilizar as variáveis independentes

controladas no teste de julgamento de cenas legendadas (cf. capítulo 4). Neste

experimento, pretendíamos observar o efeito de duas variáveis sobre o

comportamento dos participantes: o tipo de clítico de 2SG, constituído de três

níveis (clítico te, clítico lhe e clítico o/a) e o tipo de interação entre os

personagens da cena, formado por dois níveis (interações simétricas e

interações assimétricas). Conjugando os níveis das duas variáveis, nosso

experimento contava com seis condições experimentais, conforme ilustramos

no Quadro 3.4 a seguir:

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Variável “tipo de clítico” Variável “tipo de

interação”

Condições projetadas

TE ASSIMÉTRICA te-assimétrica

SIMÉTRICA te-simétrica

LHE ASSIMÉTRICA lhe-assimétrica

SIMÉTRICA lhe-simétrica

O/A ASSIMÉTRICA o/a-assimétrica

SIMÉTRICA o/a-simétrica

Quadro 3.4 – Exemplo da projeção de condições a partir dos níveis das variáveis.

Todas essas condições obrigatoriamente deverão aparecer dentre os

estímulos linguísticos construídos para o experimento, em um mesmo número

de vezes, como explicaremos na sequência.

- Estímulos e distratores

Os estímulos experimentais são a forma através da qual as condições

são apresentadas na tarefa. A natureza dos estímulos pode variar bastante,

podendo ser desde um morfema até um pequeno texto de algumas linhas,

apresentado em meio escrito ou fônico. Os estímulos também podem estar

associados a imagens. Tudo isso depende diretamente do fenômeno

investigado e da técnica escolhida pelo pesquisador. Quanto ao número de

estímulos, é uma convenção dos estudos experimentais que cada condição

ocorra durante a tarefa, no mínimo, quatro vezes, na forma de quatro

estímulos distintos. Isso é necessário para que, em termos quantitativos, seja

possível a detecção de um padrão de comportamento relacionado a cada

condição.

Todos os elementos que constituem os estímulos experimentais devem

ser cuidadosamente selecionados pelo pesquisador (p. ex., o tamanho das

palavras e frases utilizadas, a frequência de uso cotidiano das palavras que

formam o estímulo etc). Isso é necessário para que não sejam inclusas,

acidentalmente, outras variáveis independentes não controladas no

experimento. Por exemplo, nas tarefas de leitura automonitorada e de leitura

de frases com rastreamento ocular, que tinham como variável dependente o

tempo de leitura das frases e segmentos selecionados, construímos estímulos

que tinham sempre a mesma quantidade de sílabas. Caso não fosse feito esse

controle, a diferença de tamanho entre as palavras e frases dos estímulos de

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127

cada condição certamente enviesaria o resultado da medida cronométrica e,

muito provavelmente, ocultaria possíveis padrões de reação.

Outro ponto fundamental do projeto experimental é a formulação de

estímulos distratores, que consistem em itens idênticos, quanto ao formato

geral, aos itens experimentais, mas que não representam nenhuma condição

experimental do estudo. Como o nome sugere, os itens distratores servem para

despistar os participantes em relação ao fenômeno sob investigação. Isso evita

que os sujeitos criem padrões mecânicos de resposta, algo que pode ocorrer

se eles descobrirem sobre o que exatamente é o teste. Segundo o protocolo das

pesquisas psicolinguísticas, a sugestão é que haja no experimento dois terços

de itens distratores, em relação aos itens experimentais. Por exemplo, se o

teste tiver dez estímulos experimentais, o recomendado é que sejam inseridos

vinte estímulos distratores, totalizando um número de trinta estímulos a

serem apresentados aos participantes.

No que se refere à apresentação desses estímulos, é preciso que os itens

experimentais e distratores estejam misturados e sejam exibidos aos

participantes em uma ordem ou sequência aleatória (ou pseudoaleatória). O

intuito dessa randomização é, novamente, evitar a mecanização das

respostas dadas pelos sujeitos, além de dificultar a conscientização acerca do

objeto de estudo. Atualmente, muitos softwares utilizados para a

programação de experimentos já oferecem a randomização automática, o que

garante que cada participante lerá os estímulos em uma ordem diferente. O

próprio pesquisador também pode aleatorizar os itens manualmente, visto

que, em alguns casos, a randomização automática pode apresentar dois ou

três itens experimentais em sequência, ou ainda selecionar um item

experimental como primeiro estímulo a ser visto pelos participantes, fatos que

preferencialmente devem ser evitados para não comprometer o resultado. Há,

ainda, a noção de protetores nas duas extremidades da apresentação de

materiais durante a randomização: neste caso, o pesquisador estabelece que

os dois primeiros e os dois últimos itens a serem vistos pelos participantes

sejam elementos distratores.

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128

- Recrutamento de participantes

Após a confecção dos estímulos e a organização dos mesmos para a

aplicação do teste (seja através de um programa de computador, ou em meio

impresso), o pesquisador deve recrutar pessoas para executar a tarefa

experimental proposta. É preciso que haja certo controle quanto ao perfil

sociocultural dos participantes (idade, sexo, escolarização etc), para evitar que

variáveis indesejáveis sejam inseridas no experimento. Além disso, outra

exigência que deve ser cumprida é em relação ao termo de consentimento livre

e esclarecido, por meio do qual o participante toma ciência da tarefa que irá

executar, seus possíveis riscos, e autoriza, por meio de assinatura, a utilização

dos dados experimentais gerados durante a tarefa para fins de pesquisa. A

apresentação desse termo aos participantes deve preceder a execução da

tarefa.

Em algumas investigações, o tipo de participante pode representar mais

uma variável independente controlada na pesquisa. Isso acontece quando o

pesquisador, com base nas suas hipóteses e teorias, assume que o

comportamento dos participantes em relação ao fenômeno pode ser variável

segundo características intrínsecas aos próprios sujeitos. Nestes casos, fala-

se em variável grupal. No experimento de julgamento de cenas legendadas

aplicado como parte das análises desta tese, consideramos o tipo de

participante como uma variável grupal. Conforme será explicado em detalhes

no capítulo 4, esse teste foi aplicado a indivíduos naturais de quatro estados

brasileiros diferentes; sendo assim, controlamos o estado de origem dos

participantes como uma variável independente, haja vista que isso poderia

influenciar os resultados acerca de algumas condições (p. ex., as condições

com o clítico lhe, apontado pelas análises sociolinguísticas como uma marca

dialetal no PB).

No que tange à quantidade de participantes necessárias, essa ainda é

uma questão em aberto nos estudos psicolinguísticos. Tradicionalmente,

recomenda-se que sejam em torno de vinte sujeitos, podendo variar até cem.

A complexidade da tarefa bem como o número de estímulos que compõe o

experimento são parâmetros importantes na hora de definir a quantidade de

participantes.

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129

Além disso, existem ainda duas possibilidades de distribuição dos

participantes pelas condições experimentais do teste. A primeira, que consiste

em apresentar todas as condições a todos os sujeitos, é conhecida como

distribuição dentre sujeitos (do inglês, “within-subjects”). Na outra

possibilidade, o pesquisador pode preferir, por diferentes razões, dividir as

condições por grupos de participantes, de maneira que cada grupo veja uma

condição apenas (ou um grupo de condições). Esse modelo é denominado de

distribuição entre sujeitos (do inglês, “between-subjects”). Dos três

experimentos elaborados para esta pesquisa, apenas o julgamento de cenas

legendadas segue o modelo dentre sujeitos; os outros dois foram construídos

segundo o modelo entre sujeitos, conforme detalharemos nos capítulos

referentes aos mesmos.

- Aplicação do experimento

A aplicação do experimento deve ser feita em um local apropriado, no

sentido de que os participantes disponham de um conforto mínimo para a

execução da tarefa e estejam em um ambiente preferencialmente silencioso e

calmo. Isso favorece a concentração dos sujeitos na tarefa e garante que os

resultados sejam mais proveitosos, isto é, evita a perda de dados pela má

execução da tarefa. Também é comumente recomendado que, após a etapa de

instrução, o pesquisador ou quem quer que esteja aplicando o experimento se

retire do local ou se distancie suficientemente dos participantes. Isso também

serve para evitar que os sujeitos se desconcentrem durante a execução da

tarefa.

Outro procedimento fortemente recomendado pelos estudiosos de

psicolinguística é o cumprimento de uma etapa de treinamento individual com

os participantes. Após receberem as instruções, é desejável que os mesmos

simulem a execução da tarefa com três ou quatro estímulos (que não sejam

iguais a nenhum daqueles que compõem o experimento de fato), a fim de se

adaptar à dinâmica do teste, ao manuseio do teclado, dentre outras coisas.

Esse treinamento pode ser feito com a presença do pesquisador, que pode

eventualmente sanar dúvidas dos participantes durante a execução da tarefa.

Depois que o pesquisador se certificar de que o participante compreendeu

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perfeitamente a tarefa, poderá avançar, então, ao teste de verdade. Mais uma

vez, esse procedimento reduz as chances de perda de dados devido à má

execução da tarefa experimental.

- Análise estatística dos dados

Ao término da aplicação da tarefa experimental a todos os participantes

recrutados, o pesquisador pode proceder à etapa de análise dos resultados,

com o objetivo de apurar se os dados coletados são favoráveis ou contrários

às previsões da pesquisa. Para tanto, será necessária a aplicação de um

tratamento estatístico para organizar e interpretar os dados. A simples

realização de cálculos de estatística descritiva (tais como porcentagem ou

média aritmética) não é suficiente para a análise de dados experimentais, uma

vez que é preciso realizar um teste de hipóteses para verificar a significância

das diferenças obtidas entre as condições.

Em Estatística, utiliza-se o valor de probabilidade (ou p-valor), um

coeficiente encontrado a partir da aplicação de diferentes cálculos. Para que o

resultado seja considerado estatisticamente relevante, convenciona-se, para a

área das ciências humanas, de modo geral, que o p-valor deva ser igual ou

inferior a 0,05, isto é, 5%. Isso significa dizer que, inferencialmente, as

chances de o pesquisador obter certa distribuição têm de ser igual ou inferior

a cinco dentre cem, em caso de a hipótese nula ser verdadeira.

A Hipótese nula (tradicionalmente representada pela notação H0) pode

ser entendida como uma afirmativa de que não existe relação entre duas

variáveis independentes, relação esta que o pesquisador deseja demonstrar.

É, grosso modo, uma espécie de “do contra” do universo, que propõe que tudo

é randômico e anômalo. Na refutação da hipótese nula é que reside a

credibilidade da ciência. Sendo assim, o que se quer em uma análise a partir

de testes de hipótese, é refutar a hipótese nula, evitando, ainda, o que se

conhece como erros do tipo I e do tipo II, respectivamente, quando a hipótese

nula é verdadeira e o pesquisador a rejeita e quando a hipótese nula é falsa e

o pesquisador não a rejeita.

Existem diferentes tipos de testes estatísticos que podem ser utilizados

para aferir a significância dos resultados experimentais. A adoção de um teste

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específico depende de alguns fatores, tais como a variável dependente em

questão (se ela é contínua – como no caso das contagens de tempo – ou

discreta – como no caso das escalas de nota), o tipo de distribuição dos

participantes, a normalidade da distribuição dos dados coletados etc. Em

geral, os testes mais utilizados pelos psicolinguistas são o qui-quadrado, o

teste-t, a análise de variância (ANOVA) e a regressão.

Esses elementos são, em essência, aqueles com os quais o pesquisador

deverá lidar obrigatoriamente durante a montagem do seu projeto

experimental. Naturalmente, alguns pontos apresentados podem sofrer

alterações segundo o tipo de fenômeno linguístico estudado, a técnica

utilizada, o perfil dos participantes etc. Tais elementos serão retomados

detalhadamente em cada um dos capítulos de apresentação dos experimentos,

na seção de descrição dos testes que antecederá a análise dos resultados.

Eventuais modificações em algum aspecto serão sinalizadas dentro desses

capítulos. Cumpre, agora, tecer os últimos comentários com o intuito de

finalizar o presente capítulo.

3.4 Conclusão do capítulo

No terceiro capítulo desta tese, procuramos sistematizar algumas

premissas e conceitos relevantes para o estudo dos clíticos de 2SG no PB.

Primeiramente, resgatamos o conceito mais tradicional de gramaticalização, a

fim de demonstrar que a assunção de que formas já gramaticais podem se

tornar ainda mais gramaticais integra há bastante tempo a definição de

gramaticalização. Além disso, pontuamos alguns princípios, parâmetros e

mecanismos (extensão, especialização, decategorização e efeitos de frequência

de uso) que tomamos como relevantes para a nossa explicação teórica do

fenômeno e discutimos alguns problemas acerca da trajetória de mudança

clítico>afixo e da gramaticalização de pronomes pessoais no âmbito dos

estudos de gramaticalização. Com vistas a embasar a nossa proposta de

análise, dedicamos uma seção do capítulo para argumentar em favor da

viabilidade (e mesmo da necessidade) de conjugar os estudos de

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gramaticalização com os estudos de processamento, amparando-nos

principalmente na Hipótese de Correspondência Desempenho-Gramática

proposta por Hawkins (2004, 2014). Por fim, exploramos os pontos gerais,

porém cruciais, da metodologia experimental, destacando principalmente o

protocolo metodológico da experimentação. Nos próximos capítulos, relatamos

os experimentos linguísticos desenvolvidos para esta tese e as análises dos

resultados.

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4 EXPERIMENTO 1: JULGAMENTO DE CENAS LEGENDADAS

Neste capítulo, em que começamos a apreciar os resultados obtidos a

partir da aplicação de experimentos linguísticos acerca das formas clíticas de

2SG, trataremos do julgamento de cenas legendadas aplicado aos falantes do

português nascidos em diferentes estados brasileiros. Como detalharemos nos

próximos parágrafos, o principal objetivo nesse teste era analisar como os

falantes do PB reagiriam diante das formas de 2SG inseridas em diversas

situações comunicativas. Nas próximas seções, descrevemos

pormenorizadamente o projeto experimental do teste de julgamento bem como

os resultados produzidos através dele. Passemos, agora, à descrição do

experimento.

4.1 Desenho do experimento

O experimento com cenas legendadas desenvolvido para compor a

investigação das formas clíticas de 2SG consiste em uma adaptação de um

paradigma experimental bastante conhecido e adotado nas pesquisas

(psico)linguísticas: o julgamento de gramaticalidade/aceitabilidade. Em

termos práticos, o pesquisador solicita aos participantes que julguem, isto é,

relatem sua reação espontânea diante de um determinado enunciado,

informando se este é possível de ocorrer na língua. Há, evidentemente, uma

interpretação pretendida ou esperada, que o pesquisador pretende verificar,

através das respostas, se será regular e constante entre os participantes.

A prática do julgamento de gramaticalidade/aceitabilidade é de longa

data no âmbito dos estudos da linguagem. De acordo com Maia (2015), esse

método constituiu a principal ferramenta de análise da Linguística Gerativa

por décadas, desde o seu surgimento na década de 1950, ainda que de

maneira essencialmente intuitiva e informal. Já em Cowart (1997),

encontramos um importante refinamento da técnica para o estudo da sintaxe.

Na obra, o autor propõe maior rigor metodológico aos testes de julgamentos

de frases, seguindo os padrões da Psicolinguística Experimental, e demonstra

que é possível identificar regularidades linguísticas significativas a partir de

experimentos construídos de maneira criteriosa e com a aplicação de análises

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estatísticas. O trabalho de Cowart (1997) foi tão decisivo para o refinamento

dos testes de julgamento que “inaugurou” uma nova área dos estudos

experimentais, a qual tem sido referida como Sintaxe Experimental (cf. MAIA,

2015).

A proposta de Cowart (1997) de aplicar a metodologia experimental aos

testes de julgamento intuitivos e informais foi bem recebida na área e se

tornou referência para o estudo de diversos temas e questões em sintaxe. No

âmbito das pesquisas brasileiras, diversos linguistas têm adotado o modelo de

julgamento de frases de acordo com o paradigma experimental da

psicolinguística, dos quais podemos citar o trabalho de Kenedy (2007) acerca

das orações relativas no português. O autor aplicou um teste de julgamento

imediato de gramaticalidade a falantes nativos do português brasileiro e do

português europeu de vários níveis de escolaridade a fim de argumentar que,

dentre outros aspectos, as variedades do português analisadas não possuem

diferenças significativas em seu sistema de relativização. Os resultados do

teste de julgamento evidenciaram essa hipótese, ao demonstrarem que os

falantes portugueses tiveram comportamentos semelhantes ao de falantes

brasileiros durante o julgamento dos diferentes tipos de relativas (cortadora e

preposicionada).

No que se refere ao nome atribuído à técnica, verificamos que há certa

flutuação na literatura experimental entre os termos “gramaticalidade” e

“aceitabilidade”. Embora muitos autores tratem ambos os termos como

sinônimos, há outros, como Schütze e Sprouse (2013) que os diferenciam

sinalizando para o fato de que, em se tratando de testes de julgamento de

frases, o mais coerente seria adotar “aceitabilidade”:

Uma vez que a gramática é um construto mental inacessível à

consciência, os falantes não podem ter impressões sobre o status de

uma sentença em relação a essa gramática; em vez disso, nos termos de Chomsky (1965), deve-se dizer que suas reações dizem respeito à

aceitabilidade, ou seja, até que ponto a sentença parece ‘boa’ ou ‘ruim’

para eles. (SCHÜTZE; SPROUSE, 2013, p. 27-28)26. [grifo dos autores]

26 Do original em inglês: “Since a grammar is a mental construct not accessible to conscious

awareness, speakers cannot have any impressions about the status of a sentence with

respect to that grammar; rather, in Chomsky’s (1965) terms, one should say their reactions

concern acceptability, that is, the extent to which the sentence sounds “good” or “bad” to them.”

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Sendo assim, para os referidos autores, a aceitabilidade é uma

percepção que emerge de modo espontâneo em resposta aos estímulos

apresentados e que, tal como outros tipos de percepção – volume,

temperatura, dor –, não pode ser medida diretamente, da forma como existe

na mente dos falantes (SCHÜTZE; SPROUSE, 2013, p. 28). O pesquisador

deve lançar mão de métodos de medição indiretos, por exemplo, utilizando

uma escala de notas. Os autores assumem, portanto, que a aceitabilidade

capturada nos julgamentos é, por si mesma, um tipo de dado sobre o

comportamento e a cognição humana a ser descrito e explicado.

Não pretendemos, neste estudo, entrar no mérito da discussão de qual

nome seria o mais adequado. Por essa razão, optamos por denominar o

experimento desenvolvido como julgamento de cenas legendadas. Na

realidade, é preciso ressaltar, inclusive, que o experimento desenvolvido não

tem como objetivo averiguar a gramaticalidade dos clíticos analisados, como

ocorre nos experimentos gerativistas no modelo mais tradicional de

julgamento (denominados, por isso mesmo, de testes de

gramaticalidade/aceitabilidade).

Em vez disso, nosso interesse central é observar como os falantes de

diversas localidades do Brasil reagem à presença dos clíticos estudados na

legenda de cenas de filmes e seriados que retratam variados tipos de interação

verbal. Sendo assim, não controlamos rigorosamente, por exemplo, os padrões

sintáticos dos estímulos, a partir da contagem de número de palavras,

utilização de sentenças subordinadas ou coordenadas etc. Os nossos

estímulos foram pensados especificamente com o intuito de parecerem

legendas reais de filmes (soaria, no mínimo, artificial, que todas as legendas

tivessem, por exemplo, a mesma configuração sintática). A partir disso,

pretendemos verificar como os participantes julgam a presença dos clíticos

nessas legendas e, principalmente, se a situação representada na cena

influencia esse julgamento.

Quanto às vantagens de utilizar essa técnica experimental,

concordamos com Schütze e Sprouse (2013) quando afirmam que os dados de

julgamento exercem um papel crucial nas pesquisas linguísticas, visto que

fornecem informações que nem sempre estão disponíveis em outros tipos de

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dados. Os linguistas mencionam quatro vantagens em se trabalhar com dados

de julgamento: (i) fornecem evidências acerca de fenômenos que ocorrem tão

raramente no uso linguístico espontâneo que seria impossível estudá-los de

outro modo; (ii) revelam, por vezes, o conhecimento linguístico dos falantes

cujo comportamento em outras tarefas não evidencia o mesmo grau de

conhecimento; (iii) evitam a inclusão, na análise dos dados, de erros de

produção (deslizes de articulação da língua ou de suportes do meio escrito)

cometidos pelos indivíduos, que poderiam ser associados a usos linguísticos

efetivos; (iv) podem ser coletados em comunidades de fala nas quais o uso de

equipamentos sofisticados seria inviável. A essas vantagens, acrescentamos,

ainda, um aspecto destacado por Derwing e De Almeida (2005), que diz

respeito à versatilidade da técnica, amplamente utilizada para fenômenos

sintáticos, mas que também é facilmente adaptável para fenômenos

fonológicos, morfológicos e semânticos.

Boa parte desses fatores foi determinante para que o teste de julgamento

fosse a primeira técnica experimental utilizada na análise das formas clíticas

de 2SG. Primeiramente, como vimos no capítulo de revisão, a distribuição dos

clíticos te, lhe e o/a nos corpora disponíveis mostra-se fortemente irregular,

visto que inúmeros fatores (principalmente extralinguísticos) podem interferir

direta ou indiretamente no uso desses pronomes na produção oral ou escrita.

Além disso, a análise das ocorrências em corpora é pouco informativa quanto

à maneira como, de fato, os indivíduos percebem os clíticos, limitando-nos a

conjecturas facilmente refutáveis. Junte-se, também, o fato de que o teste de

julgamento nos serviu de “filtro”, como mostraremos mais adiante, uma vez

que alguns aspectos até então não controlados interferiram inesperadamente

no julgamento emitido pelos participantes. Sendo assim, os dados de

julgamento possibilitaram um refinamento metodológico aplicado aos

experimentos posteriores.

Uma questão metodológica bastante relevante para a elaboração do

teste de julgamento é a escolha da variável dependente, ou seja, o meio pelo

qual os participantes reportarão seus julgamentos. Schütze e Sprouse (2013)

dividem os testes de julgamento em duas grandes categorias: tarefas não-

numéricas (ou qualitativas) e tarefas numéricas (ou quantitativas). Enquanto a

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primeira é projetada para capturar diferenças qualitativas entre as condições,

a segunda serve para fornecer informação sobre o tamanho da diferença entre

as condições. Testes de julgamento em que os participantes devem escolher a

melhor opção (escolha forçada), ou dizer se uma determinada sentença faz

parte ou não da língua (teste de “sim ou não”) são considerados não-

numéricos. Já os testes em que os participantes atribuem uma nota dentro

uma escala para exprimir seu julgamento são representativos da categoria

numérica. Todos os tipos de variável dependente oferecem vantagens e

desvantagens ao pesquisador, cabendo a ele decidir, a partir do fenômeno

estudado, aquela que atenderá mais satisfatoriamente os seus objetivos.

Para o teste de julgamento com cenas legendadas desta tese, optamos

por utilizar a tarefa numérica/quantitativa da escala Likert (LIKERT, 1932).

Dentre as razões que nos levaram a adotar o julgamento por escala,

destacamos o fato de que esta tarefa é mais sensível do que as tarefas

qualitativas no estabelecimento de estimativas numéricas com relação ao

tamanho das diferenças entre as condições (cf. SCHÜTZE; SPROUSE, 2013).

Além disso, acreditamos que um julgamento do tipo sim ou não poderia gerar

enganosamente um resultado em que não houvesse diferenças significativas

entre os níveis da variável independente. Por sua vez, uma tarefa de escolha

forçada poderia salientar a consciência metalinguística dos participantes, já

que eles seriam levados a comparar frases contendo os clíticos analisados.

Todavia, reconhecemos as limitações da tarefa numérica, visto que é

impossível garantir que todos os indivíduos utilizem corretamente a escala de

notas (e não a transforme, por exemplo, em um teste qualitativo, atribuindo,

em todas as condições, apenas a nota mais alta e a mais baixa). Diante desse

risco, vários procedimentos foram adotados a fim de minimizar a utilização

equivocada da tarefa com escala pelos participantes, conforme descreveremos

na subseção de procedimentos.

Retomando o que dissemos no início desta seção, o experimento

envolvendo dados de julgamento aplicado para fins de análise dos pronomes

clíticos de 2SG consiste, na realidade, em uma adaptação do modelo clássico

de julgamento descrito na literatura experimental. O fenômeno linguístico em

foco exigiu modificações quanto à maneira como os enunciados seriam

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exibidos para os participantes. Em geral, os pesquisadores inserem seus

objetos de investigação em frases declarativas ou pequenos parágrafos, de

modo que o próprio enunciado em si satisfaz as informações contextuais

necessárias para a leitura e o entendimento das frases. Para o estudo dos

clíticos de 2SG, contudo, esse formato seria insatisfatório, pois esses

elementos linguísticos estão fortemente vinculados às sequências textuais

dialógicas, que pressupõem uma interação discursiva direta entre dois ou

mais interlocutores.

Por essa razão, inserimos as formas clíticas estudadas em enunciados

associados a cenas de vídeo. Dito de outro modo, os participantes eram

expostos aos itens experimentais através de fragmentos de cenas de filmes e

seriados estrangeiros e liam as sentenças contendo os clíticos como se elas

fossem, na verdade, legendas das cenas. Essa solução resolve a questão da

dialogicidade associada às formas de 2SG, uma vez que os clíticos apareciam,

nas cenas, relacionados a personagens específicos, que interagiam em uma

situação comunicativa claramente identificável.

Vejamos, a seguir, quais são as hipóteses gerais da pesquisa

diretamente testadas no julgamento de cenas legendadas. Com base nessas

hipóteses, apontamos também quais são as previsões em torno da reação dos

participantes diante dos clíticos de 2SG analisados.

4.2 Hipóteses e previsões

Considerando as características específicas do teste de julgamento, as

questões levantadas nesta tese que poderiam ser diretamente observadas no

experimento são:

(i) A percepção das formas clíticas com referência à 2SG (te, lhe e o/a) é

condicionada por fatores de ordem sociopragmática, como o tipo de

interação e o grau de formalidade/intimidade?

(ii) O fator diatópico/regional interfere na percepção dos falantes do PB com

relação às formas clíticas de 2SG?

A partir dessas questões, formulamos as seguintes hipóteses:

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(i) Dentre os clíticos em estudo, a forma te é a menos condicionada por

fatores sociopragmáticos, devido ao processo de gramaticalização

identificado nos dialetos do PB; a perda de restrições contextuais licencia

a ocorrência desse item em diferentes situações comunicativas. Por

serem formas menos gramaticalizadas e mais marcadas

linguisticamente, o/a e, principalmente, lhe são condicionadas a fatores

sociopragmáticos.

(ii) O fator diatópico não interfere na percepção dos falantes em relação ao

clítico te, uma vez que o processo de gramaticalização dessa forma não

se restringe a dialetos específicos do PB. O fator diatópico, contudo, atua

sobre a percepção do clítico lhe, já que esse pronome apresenta uma forte

associação com os dialetos nordestinos.

Das referidas hipóteses, derivam as previsões acerca do experimento

listadas a seguir:

(i) Os participantes emitirão um julgamento bastante positivo para as

condições que contêm o clítico te, atribuindo as notas mais altas da

escala, independentemente dos aspectos sociopragmáticos associados ao

tipo de interação;

(ii) O julgamento das condições que apresentam os clíticos lhe e o/a estará

condicionado aos aspectos sociopragmáticos associados ao tipo de

interação, de modo que as cenas marcadas por relações mais

assimétricas e com maior grau de formalidade receberão notas mais altas

nessas condições;

(iii) Os participantes naturais do estado do Ceará emitirão um julgamento

mais positivo para as condições com o clítico lhe, atribuindo notas mais

altas da escala, em comparação com o julgamento dos participantes

naturais dos estados do Sudeste (Rio de Janeiro, São Paulo e Minas

Gerais).

Na próxima subseção, discriminamos, em detalhes, quais foram as

variáveis independentes controladas no experimento e as condições delas

derivadas. As variáveis dependentes obtidas através do teste de julgamento

também são pontuadas na sequência.

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4.3 Variáveis e condições

O experimento de julgamento de cenas legendadas foi construído

levando em consideração duas variáveis independentes, identificadas abaixo:

(a) TIPO DE CLÍTICO: te, lhe ou o/a

(b) TIPO DE INTERAÇÃO: simétrica ou assimétrica

Conjugando essas variáveis, estabelecemos seis condições

experimentais. A seguir, exemplificamos cada uma delas com uma das frases

experimentais utilizadas no teste:

(a) Condição TE-SIMÉTRICO

Ex.: “Eu te disse isso ontem.” [Grupo de amigos conversando em um bar]

(b) Condição TE-ASSIMÉTRICO

Ex.: “Deus sempre te espera por aqui.” [Freira e visitante na igreja]

(c) Condição LHE-SIMÉTRICO

Ex.: “Mas pelo visto ninguém lhe contou.” [Dois amigos conversando no trem]

(d) Condição LHE-ASSIMÉTRICO

Ex.: “Eu lhe pago qualquer preço pra sair daqui!” [Presidiário e advogado na cadeia]

(e) Condição O/A-SIMÉTRICO

Ex.: “Ele a trata como uma idiota!” [Duas amigas em um bar]

(f) Condição O/A-ASSIMÉTRICO

Ex.: “Se não falar a verdade eles o prendem.” [Advogada e detento na cadeia]

Um importante critério metodológico adotado em relação à variável tipo

de clítico no teste diz respeito à posição sintática das formas em relação ao

verbo predicador. Como ilustram os exemplos anteriores, todos os clíticos

sempre apareciam antepostos ao verbo principal (inclusive nas frases com

perífrase verbal). Entendemos que colocar os clíticos pospostos em algumas

legendas adicionaria outra variável independente no experimento – a posição

sintática do clítico em relação ao verbo –, algo não desejado para esta

investigação. Além disso, assumimos como pressuposto que a próclise é a

posição natural da maioria dos clíticos no PB (cf. PAGOTTO, 1993; GALVES,

2001; VIEIRA, 2002; inter alios) e, por isso, apresentar legendas com ênclise

aos participantes poderia interferir diretamente na nota atribuída pelo

julgamento.

Ainda sobre as frases construídas como itens experimentais, reforçamos

o que dissemos anteriormente: o padrão sintático das frases a serem julgadas

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pelos participantes não era exatamente o mesmo. Dada a natureza do teste,

seria inviável que todas as legendas apresentadas nas cenas seguissem a

mesma configuração sintática. Cientes de que essa variabilidade pode, de

alguma maneira, interferir no julgamento, analisaremos, quando for

pertinente, os aspectos sintáticos das sentenças, a fim de verificar se eles

condicionaram um determinado padrão de julgamento.

Quanto à variável tipo de interação, recorremos aos pressupostos da

Pragmática Sociocultural (BROWN; GILMAN, 1960; BRIZ, 2004), que

postulam um sistema bipartido em Poder (P) e Solidariedade (S). Para os

autores, o eixo do Poder representa relações verticais, diferenciáveis ou não

recíprocas (diferenças quanto à faixa etária, sexo/gênero ou posição

hierárquica institucional dos indivíduos). Trata-se de relações governadas pela

hierarquia estabelecida em níveis distintos: pai-filho, professor-aluno etc. De

maneira oposta, as relações horizontais ou recíprocas representam o eixo da

Solidariedade. De acordo com Briz (2004, p.80), a Solidariedade envolve

relações de proximidade e simetria entre os indivíduos que negociam e

constroem a interação, independentemente do estatuto social. Nas relações

simétricas, há igualdade funcional entre os participantes quanto ao papel

exercido e semelhança na idade, sexo/gênero ou profissão.

Outros fatores sociopragmáticos que definem as interações de maior

proximidade são aqueles segundo os quais os indivíduos partilham mais

experiências ou saberes, possuem maior grau de contato (físico ou ocular) e

compromisso afetivo. Esses elementos identificam geralmente relações

simétricas. Já nas relações assimétricas, o papel funcional, os direitos e as

obrigações dos interlocutores são, de algum modo, determinados e mais

submetidos a convenções sociais.

Como já foi dito em linhas anteriores, a questão do tipo de interação é

bastante cara ao estudo dos pronomes de 2SG, visto que diversos trabalhos

baseados em análises de corpora relatam a influência de fatores como grau de

formalidade e intimidade entre os indivíduos, faixa etária etc. Por essa razão,

para que o resultado do experimento não fosse enviesado pela utilização de

um único tipo de interação – que, eventualmente, pudesse favorecer uma das

formas em detrimento das demais –, optamos por inserir metade das frases

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experimentais em situações mais simétricas e a outra metade em situações

assimétricas. Isso se traduz, dentro do teste elaborado, em uma pluralidade

considerável de contextos comunicativos reproduzidos nas cenas dos filmes e

seriados utilizados. No Quadro 4.1, listamos todos os tipos de interação

presentes nas cenas experimentais:

Relações

simétricas

• Casal de namorados jovens

conversando

• Dois amigos conversando no

trem

• Casal discutindo em

apartamento

• Dois presidiários na cadeia

• Casal discutindo a relação na

rua

• Diálogo entre noivos no altar

do casamento

• Casal de jovens na praia

• Duas amigas em um bar

• Grupo de amigos

conversando em um bar

• Discussão entre jovens em

um bar

• Diálogo entre amigos de

trabalho no escritório

• Dois amigos conversando

numa arquibancada

Relações

asimétricas

• Rapaz e menino em casa

• Cliente e funcionária no caixa

do supermercado

• Presidiário e advogado na

cadeia

• Motorista e policial em Blitz

• Advogada e detento na cadeia

• Professora e aluna em sala de

aula

• Sequestrador e vítima em

área deserta

• Filho e pai em trilha na

montanha

• Aeromoça e passageiro no

avião

• Médico e paciente no hospital

• Freira e visitante na igreja

• Cliente e funcionária numa

lanchonete

Quadro 4.1 – Tipos de interação entre os personagens

nas cenas experimentais do teste de julgamento.

Além dessas duas variáveis independentes, que estruturam diretamente

o teste de julgamento, controlamos ainda outra variável: o estado de origem

dos participantes. Os níveis dessa variável são descritos a seguir:

(a) ESTADO DE ORIGEM: Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Ceará

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O estado de origem representa uma variável grupal, no sentido de não

estar relacionada diretamente com o desenho do experimento, mas sim com o

perfil dos participantes, suas características próprias. Sabemos que, conforme

relatam os trabalhos sociolinguísticos, vigoram subsistemas de tratamento

diferentes nas localidades consideradas. Como compilado por Scherre et al.

(2015) na posição de sujeito, os falantes de São Paulo (na maior parte do

estado) e Minas Gerais utilizam exclusivamente a forma você, enquanto os

falantes do Rio de Janeiro e Ceará apresentam um uso variável entre você e

tu. Com relação à posição de complemento verbal, em particular, os clíticos de

2SG, os falantes cearenses alternam intensamente entre o uso de te e lhe

(ARAÚJO; CARVALHO, 2015), este último típico dos dialetos nordestinos. Os

falantes paulistas, mineiros e fluminenses empregam, por sua vez, mais

expressivamente te (LOPES et al., no prelo) e, em contextos muito específicos

e com menor frequência, lhe. Levaremos em conta esses aspectos na análise

dos resultados, a fim de verificar se as particularidades de cada subsistema

de tratamento utilizado pelos participantes de diferentes estados irão interferir

no julgamento emitido por eles.

Obtivemos a informação do local de origem dos participantes por meio

de uma ficha de participação, preenchida por todos os voluntários após a

realização do teste. Nela, eles redigiam a cidade e estado onde nasceram.

Posteriormente, na etapa de organização dos dados em uma planilha, essa

informação era transcrita em uma coluna específica.

No que se refere à variável dependente, o teste de julgamento de cenas

legendadas contou com a medida de nota atribuída segundo a escala Likert

(de 5 pontos), conforme representamos abaixo:

(a) NOTA ATRIBUÍDA SEGUNDO A ESCALA LIKERT: 1, 2, 3, 4 ou 5

Na seção subsequente, expomos as informações relevantes acerca do

perfil dos participantes do experimento.

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4.4 Participantes

Participaram do experimento, ao todo, 98 sujeitos. Desse número total,

porém, desconsideramos os julgamentos emitidos por 16 indivíduos, que não

executaram a tarefa proposta corretamente27. Desse modo, foram

contabilizados, efetivamente, os julgamentos de 82 sujeitos, nativos de 4

estados brasileiros: Rio de Janeiro (20), São Paulo (18), Minas Gerais (22) e

Ceará (22). Destes, 29 eram do sexo masculino. A média de idade dos

voluntários era de, aproximadamente, 25 anos. Todos possuíam nível superior

(completo ou em andamento).

Quanto à área de formação, a maioria dos participantes fez/faz

graduação em Letras (71), havendo, também, graduandos/graduados de

Biologia (08), Filosofia (01), Farmácia (01) e Odontologia (01). Sobre a

participação de estudantes de Letras no teste, algo que costuma não ser

recomendado na Psicolinguística (pois acredita-se que eles podem ter seu

desempenho linguístico alterado devido a uma maior consciência

metalinguística e/ou maior atenção à norma culta), acreditamos que ela não

seja prejudicial ao tipo de teste utilizado. A tarefa dos participantes consistiu

em uma atividade bastante lúdica, de forma que a interferência da consciência

metalinguística ou da avaliação segundo a norma culta parece ter sido

mínima. Além disso, perguntamos aos sujeitos, no final do teste, se algo em

particular havia chamado a atenção e nenhum dos 82 participantes

considerados na análise mencionou qualquer aspecto relativo aos clíticos de

2SG.

4.5 Materiais

Para a elaboração dos itens experimentais e distratores, selecionamos

os fragmentos de cenas que seriam utilizados junto aos enunciados com os

27 Desconsideramos os julgamentos dos participantes que deram a mesma nota para todos

os itens (inclusive para os distratores ruins), que criaram um padrão próprio de julgamento

dentro da escala (p. ex., atribuíam apenas 1 e 5) e ainda os que atribuíram notas aleatoriamente (1, 2, 3, 4, 5 sequencialmente).

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clíticos de 2SG28. Todos os vídeos foram extraídos de cenas de filmes e seriados

estrangeiros disponíveis online no site do YouTube. Para capturá-los,

utilizamos o 4K Video Downloader, software gratuito e disponível na internet

e compatível com os sistemas operacionais Windows, Mac e Linux. Após a

captura das cenas, elas foram recortadas e editadas com o auxílio do iMovie,

editor de vídeos gratuito, disponível somente para Mac. Na etapa de edição,

retiramos o som original das cenas, visto que sua presença poderia

desconcentrar os participantes durante o teste. Ainda na etapa de edição,

estipulamos um tempo de duração aproximado de 15 segundos para cada

cena, com o intuito de que o tempo total de duração do experimento não

causasse um excessivo desgaste nos participantes, o que, consequentemente,

comprometeria os resultados. Ao todo, selecionamos 48 fragmentos de cenas.

Figura 4.1 – Interface do programa iMovie.

Posteriormente, elaboramos as legendas a serem adicionadas aos

fragmentos de cena. As legendas foram especialmente criadas para o

experimento, de modo que não havia qualquer correlação entre elas e o roteiro

original dos filmes ou dos seriados selecionados. Para a inserção das legendas

nos fragmentos de vídeo, utilizamos a ferramenta Movie Maker, aplicativo

gratuito e disponível apenas para Windows.

28 Agradeço imensamente o auxílio de Bruna Brasil Albuquerque de Carvalho, bolsista de Iniciação Científica pela FAPERJ, nas etapas de seleção e edição dos fragmentos de cena.

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Figura 4.2 – Interface do Movie Maker com cena recebendo legenda.

Das 48 cenas editadas, 24 traziam na legenda um dos clíticos de 2SG

(8 legendas com te, 8 legendas com lhe e 8 legendas com o/a29). As frases que

continham o pronome eram sempre as últimas a aparecer em cada vídeo,

sendo exibidas na cor vermelha. Antes delas, havia outras (5, em média),

apresentadas na cor branca, com a finalidade de criar um breve diálogo30 para

a situação representada na cena, conforme podemos visualizar na Figura 4.3:

29 Dada a natureza alternante desse clítico segundo o gênero do referente, construímos 4

legendas com o e 4 legendas com a. 30 Todos os diálogos criados para as legendas das cenas experimentais encontram-se

disponíveis nos anexos.

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Figura 4.3 – Diálogo da cena experimental “Aeromoça e passageiro no avião”.

As outras 24 cenas foram utilizadas como distratoras, inseridas com o

intuito de despistar os participantes em relação ao fenômeno investigado.

Tradicionalmente, nas pesquisas psicolinguísticas, os investigadores inserem

dois terços de itens distratores em relação ao número de itens experimentais.

No teste de julgamento de cenas legendadas, contudo, decidimos inserir o

mesmo número de cenas experimentais e distratoras, visto que as frases na

cor branca que precediam a frase em vermelho já funcionavam como

distratoras. Junte-se a isso o fato de o enunciado a ser julgado aparecer na

forma de legenda, acompanhando o vídeo, o que também funcionava, de certa

maneira, como um elemento distrator.

Nas cenas distratoras, não havia clíticos de 2SG (cf. Figura 4.4). Essas

cenas serviram, também, como parâmetro para verificar se os participantes

haviam executado a tarefa corretamente, visto que metade das distratoras

trazia problemas na legenda (o que deveria fazer com que os indivíduos

atribuíssem as notas mais baixas da escala) e a outra metade não apresentava

qualquer problema (devendo, portanto, receber as notas mais altas da escala).

Todas as frases das legendas foram escritas com fonte Segoe UI, tamanho 24.

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Figura 4.4 – Exemplo de um diálogo distrator considerado bom.

No que se refere aos itens do experimento em correlação com as

condições, temos a seguinte distribuição representada a seguir:

(a) Condição TE-SIMÉTRICO: 4 cenas

(b) Condição TE-ASSIMÉTRICO: 4 cenas

(c) Condição LHE-SIMÉTRICO: 4 cenas

(d) Condição LHE-ASSIMÉTRICO: 4 cenas

(e) Condição O/A-SIMÉTRICO: 4 cenas

(f) Condição O/A-ASSIMÉTRICO: 4 cenas

(g) Distratores bons: 12 cenas

(h) Distratores ruins: 12 cenas

Após a fase de edição e legendagem, reunimos e programamos as cenas

no Psyscope X B77 (COHEN et al., 1993), software gratuito e disponível

somente para Mac, amplamente utilizado em experimentos da área da

psicolinguística. Através do programa, as cenas foram randomizadas, de

forma que cada participante assistia às 48 cenas em sequências aleatórias.

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Esse procedimento é importante, pois evita que os resultados sejam

influenciados, por exemplo, por um possível estranhamento inicial dos

participantes em relação ao experimento – o que afetaria o julgamento das

primeiras legendas – ou pelo cansaço gerado durante a execução da tarefa –

que prejudicaria a avaliação das últimas legendas. Além de computar as notas

atribuídas pelos participantes, o Psyscope registrou também o tempo de

emissão da nota para cada cena.

Quanto à distribuição dos participantes, todos os 82 sujeitos foram

expostos a todas as condições experimentais. Sendo assim, podemos dizer

que, no teste de julgamento, adotamos uma distribuição dentre participantes

(within subjects).

Após a descrição material do experimento, vejamos, a seguir, quais

foram os procedimentos adotados durante a aplicação do teste.

4.6 Procedimentos

O teste de julgamento de cenas legendadas foi aplicado aos

participantes entre maio de 2016 e setembro de 2017, nos quatro estados

brasileiros anteriormente mencionados31. Para a aplicação, utilizamos dois

notebooks – MacBook Air, monitor de 11”, e Macbook Pro, monitor de 15”

(Apple, Macintosh). Cada participante recebia, individualmente, as instruções

para a realização do teste, feitas oralmente, em interação direta com o

pesquisador responsável, e por escrito, na tela inicial da tarefa. Antes de

começar efetivamente o teste, todos os sujeitos cumpriam uma etapa de

treinamento, na presença do pesquisador, recebendo orientações específicas

sobre a dinâmica do experimento.

Na fase de treinamento – apenas com legendas distratoras, que

apresentavam o mesmo formato do experimento real –, os participantes eram

instruídos a assistir atentamente aos vídeos (visto que não havia a

possibilidade de paralisar ou rever as cenas) e, ao final de cada um, julgar a

qualidade da frase destacada na cor vermelha, observando a coerência da

31 Rio de Janeiro: maio de 2016; São Paulo: abril de 2017; Minas Gerais: maio de 2017; Ceará: setembro de 2017.

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mesma com a situação à qual ela estava associada. O julgamento era feito

segundo uma escala numérica de 5 pontos, em que a Nota 1 deveria ser

atribuída às frases consideradas “completamente incoerentes”, e a Nota 5

deveria ser atribuída às frases consideradas “completamente coerentes” com

a situação na qual estavam inseridas. As Notas 2, 3 e 4 deveriam ser utilizadas

em consonância com a proximidade das duas extremidades da escala.

O participante só iniciava o teste real quando demonstrava ter

compreendido plenamente a tarefa. Durante a realização do experimento, os

sujeitos ficavam sozinhos ou em um campo bastante isolado dentro da sala

de aplicação, havendo isolamento acústico necessário para a concentração na

tarefa, sem que houvesse a interferência da presença do pesquisador ou de

terceiros. De modo geral, os participantes demoravam, em média, 15 minutos

para julgar todas as cenas do experimento. As notas eram acionadas através

das teclas numéricas do Macbook. O início da tarefa e de cada nova cena era

efetuado através da tecla de espaço.

Na sequência, iniciamos a apresentação dos resultados obtidos a partir

do referido experimento. Em seguida, discutimos esses resultados à luz das

hipóteses e previsões postuladas.

4.7 Resultados

Os julgamentos emitidos pelos participantes foram organizados em

planilhas do Excel e receberam tratamento estatístico através da plataforma

R. Comecemos pelos resultados globais, a fim de verificar se houve um efeito

principal envolvendo a variável tipo de pronome. A Figura 4.5 traz uma síntese

dos julgamentos atribuídos para cada forma clítica investigada (lhe, o/a, te)

por meio de boxplots (“gráfico de caixas”). Esse modelo de gráfico nos

possibilita visualizar a concentração e a dispersão de julgamentos na escala

de notas. Em um boxplot, as barras horizontais da caixa central indicam onde

se situam os limites de 25%, 50% e 75% das medições (primeiro, segundo e

terceiro quartis, respectivamente). As barras indicam, ainda, os pontos em que

há maior concentração de valores. As barras horizontais delimitando o fim das

linhas tracejadas marcam a dispersão dos dados. Vejamos:

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Figura 4.5 – Distribuição de notas atribuídas pelos participantes

na escala de julgamento segundo o tipo de clítico.

Como podemos verificar no resultado global, em que foram reunidas

as respostas dos 82 participantes, as legendas que traziam a forma te foram

as que receberam notas mais altas: a mediana (linha horizontal em negrito)

encontra-se no ponto 4 da escala (segunda maior nota) e é muito próxima da

média geral de 3,93; além disso, a posição da caixa de concentração de notas

no eixo de te entre os pontos 3 e 5 da escala também é indicativa de que as

notas atribuídas às condições com esse pronome foram consideravelmente

altas. A dispersão, marcada pela linha tracejada, estende-se até o ponto 1,

revelando que, apesar da alta concentração na parte superior da escala, houve

julgamentos entre os pontos mais baixos da mesma.

Esse padrão observado para a forma te diferencia-se visivelmente dos

padrões encontrados para o julgamento das legendas que exibiam as formas

lhe e o/a. No que diz respeito a lhe, notamos que, embora a parte superior da

caixa sinalize uma concentração das avaliações entre os pontos 3 e 5, a

mediana está situada no ponto 3 da escala e é bastante próxima da média

geral, que registra 3,29. Chamamos a atenção, ainda, para o fato de a linha

que indica o primeiro quartil estar situada no ponto 2, mostrando que houve

certa concentração de julgamentos no polo inferior da escala. Padrão similar

pode ser visto com relação ao eixo da forma o/a: os julgamentos das legendas

que continham esse clítico traduzem-se em uma concentração de notas em

torno do ponto 3 da escala, conforme sinalizam a mediana e a média (3,25) na

Figura 4.5.

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Apesar das coincidências em relação à mediana e à média, é preciso

sublinhar diferenças existentes entre a distribuição das notas dadas para as

legendas com lhe e com o/a. Analisando o posicionamento das linhas que

demarcam o terceiro quartil, vemos que a concentração de julgamentos para

lhe se estende até o ponto 5, o mais elevado da escala, enquanto que a

concentração de julgamentos para o/a se situa até, aproximadamente, o ponto

4. Isso parece mostrar que, embora as medianas sejam iguais e as médias

apresentem valores quase idênticos, de uma maneira geral, as legendas com

lhe receberam maior número de notas altas em comparação com as legendas

com o/a. Como sugere o padrão do boxplot de o/a, a nota 3 da escala parece

ser mais representativa do julgamento emitido pelos participantes acerca

desse clítico em relação aos demais.

Com o intuito de averiguar a significância das diferenças observadas

no gráfico, realizamos análises de estatística inferencial, através da aplicação

do teste de qui-quadrado (2). A partir desse teste, constatamos que as

diferenças existentes na distribuição das notas atribuídas para as legendas

com te são significativamente relevantes, tanto em contraste com as notas

dadas para lhe (2=77,0 (4), p < 0,001)32 quanto com as notas para o/a

(2=95,77 (4), p < 0,001). Em contrapartida, ao compararmos a distribuição

das notas atribuídas para as legendas com lhe e com o/a, a análise de qui-

quadrado apontou que as diferenças não são estatisticamente significativas

(2=7,64 (4), p = 0,10).

Ao contemplarmos na análise a variável tipo de interação,

relacionando-a aos clíticos em estudo, encontramos os seguintes padrões de

distribuição, ilustrados nas Figuras 4.6 e 4.7 a seguir:

32 A notação do valor de probabilidade (p-valor) indica que a chance da distribuição de notas observada para as legendas com te em comparação com a distribuição observada para as

legendas com lhe ser a mesma é menor do que 1 em 1000 (p < 0,001).

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Figura 4.6 – Distribuição das notas

atribuídas aos clíticos em cenas com relações simétricas

Figura 4.7 – Distribuição das notas

atribuídas aos clíticos em cenas com relações assimétricas

Vemos, com base nos gráficos, que as legendas que traziam a forma te

foram as mais bem julgadas no experimento, tanto nas cenas que envolviam

relações mais simétricas entre os personagens quanto nas cenas em que havia

relações com certa assimetria. No primeiro contexto, percebemos que o

terceiro quartil do boxplot se situa no ponto 5 da escala, a mediana encontra-

se no ponto 4 (novamente, bem próxima do valor da média: 4,14) e o limite

inferior de dispersão de notas vai até o ponto 3; os pontos 1 e 2 da escala

aparecem sinalizados com outliers (os pequenos círculos), indicando valores

atípicos. No segundo contexto, encontramos as mesmas marcações para o

terceiro quartil e para a mediana (confronte-se com a média: 3,72); contudo,

podemos verificar, também, que o primeiro quartil se situa no ponto 3 da

escala, e o limite superior de dispersão se estende até o ponto 5.

Essas disparidades indicam que, embora a concentração de notas, em

ambos os contextos, tenha se situado na parte superior da escala, houve

diferenças no que diz respeito aos julgamentos segundo o tipo de relação: as

legendas com te em cenas com relações assimétricas tiveram uma dispersão

entre os pontos 1 e 3 que não se verifica para as legendas com te em cenas

com relações simétricas. A análise estatística pelo teste de qui-quadrado

indicou, ainda, que essas diferenças são significativas (2=24,74 (4), p <

0,001).

Observamos, também, diferenças no padrão de boxplot do clítico lhe,

confrontando-se os dois tipos de interação estabelecidos no experimento.

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Como ilustram as Figuras 4.6 e 4.7, para as cenas em que havia interações

simétricas entre os personagens, a concentração de notas dadas pelos

participantes situa-se na parte superior da escala, em que verificamos a linha

do terceiro quartil no ponto 5 e a mediana em 4. Distanciando-se desses

valores, temos a média (3,45) e a linha do primeiro quartil no ponto 2. O limite

inferior de dispersão situa-se no ponto 1 da escala. Isso indica que houve

maior variabilidade de julgamentos emitidos, mas, ainda assim, as notas mais

elevadas são as mais frequentes. Em contrapartida, para as legendas com lhe

em cenas com interações assimétricas entre os personagens, verificamos um

padrão distinto: a concentração de notas encontra-se entre os pontos 4

(terceiro quartil) e 2 (primeiro quartil), com a mediana no ponto 3 (e média

igual a 3,14). Os limites de dispersão alcançam os pontos 5 (na parte superior)

e 1 (na parte inferior).

As diferenças nos padrões descritos anteriormente, acerca do clítico lhe,

indicam que a variável tipo de relação parece ter atuado também no

julgamento dos participantes. Enquanto no contexto de relações simétricas a

concentração de notas está na parte superior da escala, no contexto de

relações assimétricas essa concentração gira em torno do ponto 3, parte

central da escala de julgamento. Assim como no caso do pronome te, o teste

de qui-quadrado também sinalizou que as diferenças observadas no

julgamento de lhe segundo o tipo de relação são significativas ((2=11,61 (4), p

< 0,05).

Quanto aos padrões de boxplot relativos ao clítico o/a, notamos que não

houve diferenças expressivas no que se refere à concentração e à dispersão de

notas de julgamento. Independentemente do tipo de relação – simétrica ou

assimétrica –, temos o mesmo padrão: mediana no ponto 3, com o terceiro

quartil no ponto 4 e o primeiro quartil no ponto 2, limites de dispersão nos

pontos 5 (superior) e 1 (inferior). A única diferença fica a cargo da média geral

registrada: 3,33 nas relações simétricas e 3,18 nas relações assimétricas. A

análise pelo teste de qui-quadrado (2=4,33 (4), p = 0,36) corrobora a

impressão visual sugerida pelos gráficos: não há diferenças significativas no

padrão de julgamento das legendas que traziam o clítico o/a em relação ao

tipo de interação.

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Explorando ainda os dados presentes nos gráficos das Figuras 4.6 e 4.7,

verificamos, através do teste de qui-quadrado, que as diferenças perceptíveis

entre as notas dadas para as legendas com te e para as legendas com lhe e

o/a são significativas tanto nas relações simétricas (te-lhe: 2=54,67 (4), p <

0,001; te-o/a: 2=80,37 (4), p < 0,001) quanto nas relações assimétricas (te-

lhe: 2=31,52 (4), p < 0,001; te-o/a: 2=27,48 (4), p < 0,001). Já as diferenças

atestadas entre lhe e o/a novamente não se mostraram significativas em

nenhum dos dois contextos em questão (simétrico: 2=5,80 (4), p = 0,21;

assimétrico: 2=5,36 (4), p = 0,25).

Dando prosseguimento à apresentação dos resultados, abordaremos,

agora, os dados de julgamento contemplando a variável estado de origem, a

fim de analisar se os padrões de distribuição de nota e as diferenças

identificadas no resultado global se refletem nos padrões e nas diferenças dos

participantes divididos por estado. Pretendemos verificar, também, se as

diferenças dialetais existentes entre as localidades analisadas interferiram no

julgamento dos participantes, isto é, se o julgamento emitido pelos sujeitos foi

influenciado pelo sistema de tratamento utilizado em cada localidade. Nas

Figuras 4.8-4.11, temos os gráficos que apresentam a distribuição de notas

por estado:

Figura 4.8 – Distribuição de notas

atribuídas aos clíticos pelos participantes

cearenses

Figura 4.9 – Distribuição de notas

atribuídas aos clíticos pelos participantes mineiros

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156

Figura 4.10 – Distribuição de notas

atribuídas aos clíticos pelos participantes

fluminenses

Figura 4.11 – Distribuição de notas

atribuídas aos clíticos pelos participantes

paulistas

Como podemos notar, a concentração de notas altas para as legendas

com o clítico te, identificada no gráfico geral dos dados, também ocorre nos

gráficos que ilustram os resultados por estados. Em todos eles, esse foi o

pronome mais bem julgado, registrando mediana no ponto 4 da escala e

médias girando em torno desse mesmo ponto (RJ: 4,01; SP: 3,92; MG: 3,90;

CE: 3,88). Quanto ao padrão de boxplot, temos a mesma distribuição de dados

do clítico te em três estados: os julgamentos dos participantes cearenses,

mineiros e paulistas concentram-se entre os pontos 5 (terceiro quartil) e 3

(primeiro quartil); o limite de dispersão inferior alcança o ponto 1. Destoando

visivelmente da distribuição mencionada para essas três localidades,

verificamos que a concentração dos julgamentos dos participantes

fluminenses se situa entre os pontos 5 (terceiro quartil) e 4 (mediana), com o

limite de dispersão inferior atingindo o ponto 3 da escala; os pontos 2 e 1

aparecem sinalizados como valores atípicos. Desse modo, vemos que os

participantes do RJ emitiram um julgamento mais coeso, o que parece indicar

maior aceitação da forma te entre eles.

Ao efetuarmos o teste de qui-quadrado, contudo, identificamos que

nenhum dos padrões de distribuição verificados é significativamente diferente

(CE-MG: 2=1,86 (4), p = 0,76; CE-RJ: 2=7,61 (4), p = 0,10; CE-SP: 2=4,05

(4), p = 0,39; MG-RJ: 2=6,40 (4), p = 0,17; MG-SP: 2=1,46 (4), p = 0,83; RJ-

SP: 2=4,91 (4), p = 0,29). Pautando-nos nesses dados, podemos dizer que o

julgamento dos participantes acerca do pronome te não foi influenciado pelas

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diferenças existentes entre os sistemas de tratamento das localidades em

questão.

A referida semelhança na distribuição das notas para as legendas com

te entre os participantes dos quatro estados analisados não é encontrada para

as notas dadas às legendas com o clítico lhe. Na realidade, vemos quatro

padrões destoantes entre si. Os julgamentos dos participantes cearenses são

os que se concentram na parte mais superior da escala, com a linha do terceiro

quartil situada no ponto 5 e a mediana no ponto 4 (média: 3,47); a linha do

primeiro quartil encontra-se no ponto 2 e o limite de dispersão inferior no

ponto 1. Frente a esse padrão, temos os julgamentos dos participantes

mineiros, fluminenses e paulistas, que são semelhantes apenas quanto à

mediana, localizada no ponto 3 da escala. Dentre os resultados desses três

estados, vemos que os julgamentos dos participantes de MG se concentram

entre os pontos 3 e 4,5 (aproximadamente), com limites de dispersão que

atingem os pontos 1 e 5. Já os julgamentos dos participantes do RJ revelam

grande variabilidade na concentração de notas, que vão desde o ponto 5

(terceiro quartil) até o ponto 2 (primeiro quartil), com limite de dispersão

inferior situado no ponto 1. Por fim, temos os julgamentos dos participantes

paulistas, que se concentram entre os pontos 4 (terceiro quartil) e 2 (primeiro

quartil) da escala, com limites de dispersão nos pontos 5 (superior) e 1

(inferior).

Aplicando-se o teste de qui-quadrado às quatro distribuições como um

todo, detectamos um valor de probabilidade significativo (2=24,06 (12), p =

0,01) em relação às notas atribuídas para as legendas com o clítico lhe. Na

análise por pares, todavia, a única diferença que se mostrou estatisticamente

significativa foi a existente entre a distribuição de notas dos participantes de

MG e do RJ (2=14,06 (4), p < 0,01). Nas demais comparações (CE-MG: 2=6,05

(4), p = 0,19; CE-RJ: 2=8,11 (4), p = 0,08; CE-SP: 2=5,66 (4), p = 0,22; MG-

SP: 2=6,17 (4), p = 0,18; RJ-SP: 2=6,08 (4), p = 0,19), os valores de

probabilidade não foram significativos.

No que tange às distribuições de notas dadas para as legendas com o

clítico o/a, também podemos perceber diferenças entre os padrões de

julgamento. Vemos que, nos quatro boxplots, representativos dos julgamentos

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dos participantes dos estados investigados, a linha da mediana encontra-se

no ponto 3 da escala, assim como a linha do primeiro quartil, que se situa no

ponto 2, e o limite de dispersão inferior, que atinge o ponto 1. As diferenças

restringem-se, portanto, à parte superior dos gráficos. Na representação dos

julgamentos de MG, temos o único caso em que a linha do terceiro quartil se

situa no ponto 5 de escala, indicando, pois, certa variabilidade de notas altas

(4 e 5) no que diz respeito à concentração dos julgamentos. Já na

representação dos dados do RJ, a linha do terceiro quartil situa-se entre os

pontos 4 e 5, havendo dispersão de notas até o ponto 5 (sinalizado pela linha

tracejada na parte superior). Nas representações dos julgamentos dos

participantes do CE e de SP, temos o mesmo padrão: a linha do terceiro quartil

situada no ponto 4 e o limite de dispersão superior situado no ponto 5 da

escala. De forma geral, os padrões de o/a revelam que, embora as medianas

na nota 3 ilustrem certa concordância entre os participantes dos 4 estados (e

também as médias, que são bem próximas – CE: 3,26; MG: 3,44; RJ: 3,19; SP:

3,08) no julgamento desse pronome, as linhas de concentração e dispersão

sinalizam para diferenças de comportamento quanto à atribuição de notas

maiores do que 3.

Curiosamente, os testes de qui-quadrado apontaram que há diferenças

significativas entre os padrões de notas dadas para o/a. Já na aplicação do

teste às quatro distribuições reunidas (2=26,40 (12), p < 0,01), verificamos o

valor de significância existente entre os padrões. Na aplicação do teste por

pares, em quatro deles obtivemos a relevância estatística (CE-MG: 2=11,93

(4), p < 0,05; CE-RJ: 2=9,26 (4), p = 0,05; MG-RJ: 2=17,02 (4), p < 0,01; MG-

SP: 2=12,61 (4), p < 0,05). Não foram estatisticamente significativas as

diferenças entre as notas dadas pelos participantes do CE e SP (2=2,83 (4), p

= 0,58) e do RJ e SP (2=6,49 (4), p = 0,16).

Ao compararmos a distribuição de notas para os três tipos de pronome

segundo os dados de cada localidade, verificamos que, em todas elas, houve a

mesma diferença significativa entre te e os demais pronomes (CE: te-lhe -

2=11,10 (4), p < 0,05; te-o/a - 2=23,53 (4), p < 0,001; MG: te-lhe - 2=17,63

(4), p < 0,01; te-o/a - 2=17,05 (4), p < 0,01; RJ: te-lhe - 2=31,61 (4), p < 0,001;

te-o/a - 2=43,71 (4), p < 0,001; SP: te-lhe - 2=26,55 (4), p < 0,001; te-o/a -

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2=31,43 (4), p < 0,001). Do mesmo modo, não detectamos, para nenhuma das

localidades analisadas, um valor de significância relativo às notas dadas para

lhe em contraste com as notas dadas para o/a (CE: 2=3,53 (4), p = 0,47; MG:

2=6,86 (4), p = 0,14; RJ: 2=8,13 (4), p = 0,08; SP: 2=1,40 (4), p = 0,84).

Passemos agora aos gráficos que combinam as três variáveis

comentadas até este ponto: tipo de clítico, tipo de interação e estado de origem.

As distribuições encontradas são exibidas nas Figuras 4.12-4.15 abaixo,

também na forma de boxplots:

Figura 4.12 – Distribuição de notas atribuídas aos clíticos

pelos participantes cearenses segundo o tipo de interação

Figura 4.13 – Distribuição de notas atribuídas aos clíticos

pelos participantes mineiros segundo o tipo de interação

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Figura 4.14 – Distribuição de notas atribuídas aos clíticos

pelos participantes fluminenses segundo o tipo de interação

Figura 4.15 – Distribuição de notas atribuídas aos clíticos

pelos participantes paulistas segundo o tipo de interação

Em primeiro lugar, cumpre destacar que os participantes de todas as

localidades julgaram mais positivamente o clítico te quando este aparecia em

uma situação simétrica. Isso pode ser constatado pelo posicionamento das

caixas de concentração referentes à distribuição das notas do CE, RJ e SP e

pelas médias das quatro localidades (CE: 4,08; MG: 3,94; RJ: 4,17; SP: 4,40).

Em nenhum subgrupo do conjunto de participantes, inclusive, a concentração

de notas dadas para te em interações assimétricas foi superior à concentração

de notas para esse mesmo clítico nas interações simétricas. Na distribuição

dos julgamentos emitidos por fluminenses e paulistas, chama a atenção o fato

de a mediana estar situada no ponto 5 da escala quando te era exibido em

cenas simétricas. Nos julgamentos dos participantes de MG, temos uma

distribuição idêntica para te em interações simétricas e assimétricas, desfeita

apenas pelo índice das médias registradas (te-simétrico: 3,94; te-assimétrico:

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3,86). Nos julgamentos dos sujeitos cearenses, as medianas relativas a te

coincidem no ponto 4 da escala, porém tanto o padrão das caixas de

concentração quanto os valores das médias (simétrico: 4,08; assimétrico: 3,68)

sugerem a prevalência de aceitação desse clítico nas interações simétricas.

As cenas de caráter simétrico também favoreceram a atribuição de notas

mais altas para o clítico lhe. Quer pela disposição das caixas de concentração,

quer pelas médias registradas (CE: 3,67; MG: 3,51; RJ: 3,31; SP: 3,24),

podemos verificar que as notas atribuídas pelos participantes das quatro

localidades foram ligeiramente mais altas para lhe nas situações simétricas,

frente as assimétricas. Há, entretanto, diferenças diatópicas quanto à

distribuição de lhe-simétrico. Olhando para a posição em que as medianas se

situam, vemos que, nos gráficos baseados nos julgamentos dos participantes

do CE e de MG, elas se encontram no ponto 4, enquanto que, nos gráficos do

RJ e de SP, as mesmas se posicionam no ponto 3 da escala. Aliás, os padrões

de concentração e dispersão do RJ e de SP, de um lado, e do CE e de MG, de

outro, são idênticos. As diferenças na distribuição ficam mais acentuadas em

relação a lhe-assimétrico: os participantes cearenses foram os que atribuíram

as notas mais altas em termos de concentração; já os julgamentos dos

fluminenses têm um padrão exatamente inverso ao dos cearenses,

configurando o subgrupo de participantes que atribuiu as notas mais baixas

para essa condição; os julgamentos dos mineiros e paulistas, por sua vez, são

idênticos e revelam uma concentração de notas em torno do ponto 3 da escala.

No que se refere ao clítico o/a, não notamos, através da observação dos

gráficos, nenhum efeito geral do tipo de interação sobre os participantes das

diferentes localidades, uma vez que cada estado apresenta um padrão

diferente. Os julgamentos dos cearenses e dos mineiros indicam uma

concentração de notas mais altas para o/a em situações simétricas,

perceptível pela posição das caixas (no caso de MG) e pela localização das

medianas na escala (em ambos os casos). Em contrapartida, os julgamentos

dos participantes do RJ apontam para um quadro oposto, visto que a

concentração de notas é maior quando o referido clítico aparece em interações

assimétricas (visualizada pela posição do terceiro quartil, que se situa no

ponto 5). Já em relação aos julgamentos dos participantes paulistas, não há

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diferenças de concentração quanto ao tipo de interação, e a única

dessemelhança entre as distribuições diz respeito aos valores das médias

(simétrico: 3,14; assimétrico: 3,03).

4.8 Discussão

Explorando os resultados obtidos a partir do gráfico geral, apresentado

na Figura 4.5, verificamos que a nossa previsão de que os participantes

emitiriam um julgamento bastante positivo para as legendas que contivessem

o clítico te se confirmou nos nossos dados. Das três formas em análise, esta

foi a que recebeu a maior concentração de notas altas (especialmente, a nota

5), revelando, inclusive, uma diferença significativa para a concentração de

notas atribuídas às legendas com lhe e o/a, conforme sinalizaram os testes de

qui-quadrado. Esse resultado global nos permite conjecturar que, de fato,

existe uma reação diferente, em termos de percepção linguística, por partes

dos falantes ao lerem o pronome te na legenda, reação essa que se manifesta,

nos dados de julgamento, na avaliação altamente positiva.

Essa hipótese acerca de te também encontra respaldo nos resultados

apresentados nas Figuras 4.6 e 4.7, em que cruzamos a variável tipo de clítico

com as variáveis tipo de interação e estado de origem. Tais resultados

evidenciam que a avaliação positiva observada no gráfico geral não é causada

pela atuação nem do tipo de interação – visto que te foi o clítico que recebeu

as maiores notas tanto nas cenas simétricas quanto nas cenas assimétricas –

e nem da naturalidade dos participantes – uma vez que o pronome te recebeu

as maiores notas entre os participantes dos quatro estados diferentes.

A partir disso, percebemos que os resultados experimentais sustentam

outras duas hipóteses defendidas nesta pesquisa: (i) a forma te é a menos

condicionada por fatores de ordem sociopragmática, devido ao processo de

generalização como marca de segunda pessoa por que passa nos dialetos do

PB e (ii) a percepção dos falantes em relação ao clítico te não sofre interferência

do fator diatópico. Mesmo esse item tendo sido inserido em cenas com

situações comunicativas diversas e tendo sido julgado por falantes de

diferentes localidades do país (dentre elas, MG e SP, em que não se utiliza a

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forma tu na posição de sujeito, e CE, em que se utiliza expressivamente o

clítico lhe como complemento), parece que, na maioria dos casos, sua

presença não foi percebida como inadequada ou artificial. O resultado do

Experimento 1 evidencia, portanto, o fato de que o clítico te parece ter se

tornado “imune” a pressões sociopragmáticas frente as outras duas formas

clíticas. Tomamos esse resultado como um indicativo do caráter ainda mais

gramatical que esse item teria adquirido no PB.

Se os resultados gerais foram bastante informativos em relação ao

julgamento do clítico te, o mesmo não podemos dizer acerca dos julgamentos

emitidos para as formas lhe e o/a. No gráfico geral da Figura 4.5, vimos que

as notas dos participantes para as cenas que traziam esses clíticos giraram

em torno do ponto 3 da escala, ainda que, na comparação entre ambos, lhe

tenha sido mais bem julgado do que o/a.

No que se refere à atuação da variável tipo de interação, observamos que

lhe recebeu notas mais altas quando aparecia em situações mais simétricas,

contrariando a nossa previsão. Os julgamentos para as legendas com o

pronome o/a foram praticamente idênticos nas cenas simétricas e

assimétricas, com notas próximas ao ponto 3 da escala.

Ainda sobre os clíticos lhe e o/a, nas Figuras 4.8-4.11, em que temos a

correlação com a variável grupal estado de origem, vimos padrões de

julgamento destoantes para lhe, uma vez que os participantes de cada estado

atribuiu um padrão de notas distinto para as legendas com esse clítico, com

destaque para o julgamento dos cearenses, em que as notas se concentraram

na parte mais alta da escala (embora o teste de qui-quadrado tenha apontado

que essa diferença não é estatisticamente significativa em relação às notas

dos demais participantes).

Quanto à forma o/a, com exceção dos julgamentos dos participantes

mineiros, os julgamentos emitidos apresentaram padrões similares, com notas

em torno do ponto 3 da escala, o que parece indicar incerteza na hora da

avaliação. Novamente, os testes estatísticos indicaram não haver diferenças

significativas entre as localidades investigadas.

Podemos relacionar esse padrão de julgamento observado para as

legendas com o/a a vários fatores. O principal deles talvez seja a

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artificialidade, para falantes do PB, em se fazer referência ao interlocutor

utilizando a forma o/a. Diversos estudos, desde o trabalho pioneiro de Duarte

(1986), têm recorrentemente demonstrado a baixíssima produtividade desse

clítico na variedade brasileira. Mesmo entre os indivíduos considerados cultos

e escolarizados, os índices de uso não ultrapassam 5% na escrita. Isso em

contexto de objeto anafórico, portanto, com referência a 3SG. Somos levados

a pensar, nessa linha de raciocínio, que esse quadro se torna mais complexo

ainda se pensamos em o/a com referência a 2SG.

Além disso, como o teste de julgamento discutido neste capítulo adota

uma técnica off-line (ou seja, capta as respostas dos indivíduos depois que eles

já processaram as informações dos estímulos), não temos como garantir que

os participantes interpretaram os clíticos lhe e, principalmente, o/a presentes

nas legendas como sendo de 2SG. Em outras palavras, podemos conjecturar

que o elevado índice de notas 3 talvez seja reflexo de um estranhamento dos

participantes, que tiveram dificuldades de processar os clíticos nas legendas

como 2SG (ou nem sequer os processaram dessa maneira). Como não havia

nenhum tipo de pergunta relacionada ao entendimento da legenda que

aparecia em destaque e nenhum participante relatou, após a execução da

tarefa, ter dificuldades para entender as legendas com o/a, não temos como

garantir quantos deles, de fato, fizeram uma interpretação de 2SG.

Diante desse quadro, faz-se necessária a formulação de novos

experimentos, baseados em outras técnicas, para que possamos examinar

como se dá a interpretação da informação de 2SG a partir dos clíticos lhe e

o/a. Até esse ponto, tudo que podemos afirmar é que não houve um padrão

de comportamento claramente delineado para esses clíticos no teste de

julgamento de cenas legendadas, como verificamos para as legendas que

traziam te. Encerremos, pois, este capítulo, tecendo algumas palavras de

conclusão.

4.9 Conclusão do capítulo

Nesta apresentação do primeiro experimento realizado acerca das

formas clíticas em referência a 2SG, descrevemos e analisamos o teste de

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julgamento de cenas legendadas. Inspirado no formato clássico dos testes de

julgamento de aceitabilidade, o experimento que desenvolvemos afasta-se do

modelo canônico em diversos aspectos. O primeiro deles deve-se justamente

à utilização de estímulos audiovisuais, necessários para a inserção das formas

pronominais em diferentes situações interativas. Além disso, cabe ressaltar

que o teste com legendas visava principalmente a captar as reações subjetivas,

não sendo o principal objetivo, nessa primeira etapa, questões mais

diretamente relacionadas ao processamento on-line dos clíticos. Por essa

razão, como ilustramos em alguns pontos do capítulo, não efetuamos um

controle mais rigoroso quanto ao formato dos enunciados, em termos

sintáticos, do tamanho das frases etc.

Resumidamente, verificamos, através dos dados de julgamento, que

fatores sociopragmáticos tais como tipo de interação e grau de simetria entre

os interlocutores não interferiram expressivamente sobre o julgamento do

clítico te. De modo geral, este foi o pronome mais bem avaliado em termos de

notas, registrando índices superiores aos de lhe e de o/a, tanto nas interações

simétricas quanto nas interações assimétricas. Além disso, com a comparação

de julgamentos emitidos por participantes de quatro localidades distintas do

Brasil, pudemos perceber que não houve influência da variável estado de

origem no julgamento dos participantes; em todas as localidades analisadas,

o clítico te foi o pronome mais bem julgado.

A partir do teste de julgamento, entretanto, outras questões surgiram.

Algumas lacunas ainda permanecem: como os falantes processam a

informação de 2SG a partir do clítico lhe? Que fatores de ordem cognitiva

poderiam explicar o resultado pouco elucidativo encontrado para esse

pronome no teste de julgamento? Como os falantes interpretam, de fato, o

clítico o/a? Eles conseguem acessar a referência de 2SG a partir desse clítico?

Ao compararmos os clíticos lhe e o/a, qual deles envolve o maior grau de

complexidade de processamento linguístico? Ambos serão mais custosos

cognitivamente em relação ao processamento do clítico te?

Na tentativa de responder a essas indagações, buscamos elaborar e

aplicar outros dois experimentos linguísticos, a serem descritos e analisados

nos próximos capítulos.

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5 EXPERIMENTO 2: LEITURA AUTOMONITORADA

Dando prosseguimento à apresentação, análise e discussão dos

resultados experimentais envolvendo os clíticos de 2SG no PB, abordamos, no

presente capítulo, o segundo experimento realizado: a leitura automonitorada.

Nesse teste, aplicado em dois estados brasileiros diferentes – Rio de Janeiro e

Ceará –, tínhamos como objetivo central verificar a eficácia dos clíticos

analisados na ativação da informação de 2SG na mente dos participantes. Nas

seções a seguir, apresentamos a técnica utilizada, pontuando as variáveis

envolvidas, os materiais e procedimentos adotados, e os resultados advindos

do experimento. Iniciamos esta apresentação descrevendo a lógica por detrás

da tarefa experimental em questão e revisitando alguns trabalhos ilustrativos

acerca do PB que adotaram essa técnica.

5.1 Desenho do experimento

A tarefa de leitura automonitorada consiste na exibição de um texto

fracionado em partes menores, que, a depender dos interesses do investigador,

podem ser desde palavras até sentenças completas. Os participantes são,

então, convidados a ler esses textos na tela do computador seguindo uma

rotina específica: para iniciar a tarefa, eles acionam uma tecla que chama à

tela o primeiro segmento do texto; após a leitura deste, os sujeitos devem

acionar novamente a tecla para visualizar o segundo segmento, e assim por

diante, até que eles tenham lido o texto inteiro. Desse modo, justifica-se o

rótulo de “automonitorada” dado à tarefa (tradução do inglês self-paced

reading; cf. MITCHELL, 2004; GARROD, 2006), visto que é o próprio

participante quem determina o ritmo no qual o material escrito é apresentado

na tela do experimento.

Interessa ao pesquisador analisar justamente os intervalos de tempo

registrados entre a exibição de cada segmento, a partir do ritmo de

acionamento da tecla de comando pelos participantes. A lógica que subjaz à

tarefa é que tempos de leitura mais elevados em regiões específicas do texto

podem ser indício de maior custo de processamento linguístico das unidades

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presentes no segmento em questão. Por essa razão, a leitura automonitorada

é considerada uma tarefa on-line, já que a medida psicométrica registrada pelo

pesquisador (tempo de leitura) é capturada durante o processamento

linguístico realizado pelos participantes enquanto leem os segmentos na tela

do computador.

De acordo com Mitchell (2004, p. 18), a utilização da leitura

automonitorada nas pesquisas psicolinguísticas datariam da segunda metade

da década de 1970, tendo sido introduzida de maneira independente por

diferentes pesquisadores da época (PYNTE, 1974; AARONSON;

SCARBOROUGH, 1976; MITCHELL; GREEN, 1978)33. Desde então, já foi

utilizada de diversas maneiras. O autor cita duas versões bastante difundidas

da tarefa: a moving-window e a stationary window.

Na primeira, “(...) o display se move da esquerda para a direita com os

sucessivos acionamentos de tecla para que cada segmento do texto ocupe uma

posição na tela semelhante à frase exibida como um todo” (MITCHELL, 2004,

p. 19). Nesse caso, a tarefa de leitura automonitorada pode ser cumulativa, em

que os primeiros segmentos permanecem na tela enquanto os seguintes são

adicionados (até revelar o texto inteiro), ou não-cumulativa, em que os

primeiros segmentos desaparecem da tela à medida que os seguintes são

adicionados. Ainda consoante Mitchell (2004), a versão cumulativa pode ser

problemática, pois “(...) alguns sujeitos revelam uma compreensível tendência

a pressionar a tecla rapidamente até a sentença completa estar na tela, e então

ler o material a seu gosto” (p. 19). O autor afirma, então, que a versão não-

cumulativa “evita, de alguma maneira, esse problema de dissociação entre o

acionamento da tecla e o processamento linguístico” (p. 19), que, compromete

diretamente a variável dependente controlada.

Na segunda versão de leitura automonitorada mencionada pelo autor,

identificada como stationary window, “cada segmento sucessivo se sobrepõe

ao anterior na mesma posição da tela” (MITCHELL, 2004, p. 19). Essa

modalidade pode ser problemática para os testes que optam pela exibição do

texto em palavra por palavra, uma vez que torna a tarefa de leitura ainda mais

33 Referências mencionadas por Mitchell (2004, p. 18).

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artificial para os participantes (é incomum, na prática de leitura do cotidiano,

que se leia um texto inteiro em um suporte que exibe palavra por palavra do

texto, no mesmo ponto da tela).

Quanto ao tamanho dos segmentos convencionado pelo pesquisador,

Garrod (2006) chama a atenção para o fato de que “unidades menores como

palavras tendem a ser lidas muito mais lentamente nessas tarefas” (p. 253),

em comparação com o ritmo de leitura das unidades maiores, como frases

inteiras, que “podem ser lidas em um ritmo normal durante a leitura

automonitorada”. Diante dessa observação, o autor estabelece a seguinte

correlação: “quando a técnica possui alta resolução on-line (por exemplo,

quando palavra por palavra), ela também interfere mais no processo de leitura

normal.” (p. 253).

No que se refere às vantagens de utilizada dessa técnica, os autores

costumam arrolar a ela o fato de ser uma tarefa barata e relativamente simples

de ser construída, em comparação com outras tarefas on-line existentes.

Existem, atualmente, diferentes softwares que podem ser utilizados para

programar um experimento dessa natureza (p. ex., MEL, PsyScope, E-Prime,

DMDX, dentre outros). Os experimentos envolvendo leitura automonitorada

também costumam ser de simples execução pelos participantes, que,

geralmente, os consideram fáceis de responder. Além disso, podemos destacar

ainda a possibilidade de estudar, através dessa tarefa, temas bastante amplos

e complexos dos estudos linguísticos, como a análise sintática, os processos

de compreensão discursiva e o processamento anafórico.

Como limitações, os pesquisadores costumam apontar a tendência de

aumento no tempo de processamento/leitura dos participantes, ocasionada

pela própria natureza da tarefa (isto é, a exibição de um texto em partes). Esse

modo incremental de exibição do material linguístico pode desencadear, em

alguns casos, um efeito de spillover: o processamento de um determinado

segmento não termina necessariamente quando o participante avança para o

próximo segmento, o que pode fazer com que o tempo de leitura dos segmentos

seguintes sejam afetados. Sendo assim, é comum que os investigadores

controlem não só o tempo de leitura do segmento crítico (isto é, na parte do

texto em que aparece o fenômeno linguístico em estudo), como também o

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tempo de leitura do segmento imediatamente posterior, a fim de verificar se

houve um efeito de spillover.

A tarefa de leitura automonitorada é amplamente adotada pelos

pesquisadores brasileiros, produzindo dados interessantes acerca dos mais

variados fenômenos linguísticos do PB. Embora seja relativamente antiga,

conforme apontamos acima, essa tarefa ainda é bastante utilizada nas

pesquisas envolvendo o processamento linguístico. Seria uma tentativa muito

ambiciosa (e mesmo fracassada!) tentar listar todos os estudos desenvolvidos

no Brasil a partir da leitura automonitorada, haja vista a extensa bibliografia

já produzida. Por essa razão, nos reservamos a mencionar apenas um

trabalho, a título de exemplificação.

Cabral, Leitão e Kenedy (2015) construíram dois experimentos de leitura

automonitorada a fim de analisar a influência da animacidade no

processamento de cláusulas relativas de sujeito e de objeto do PB. Pondo em

xeque a assertiva de que apenas aspectos sintáticos afetariam o

processamento de orações relativas (especificamente, a função sintática do

pronome relativo), os autores defendem que o traço semântico de animacidade

do antecedente também influenciaria a interpretação dessas cláusulas. Em

um dos experimentos criados, Cabral, Leitão e Kenedy (2015) construíram o

mesmo número de orações relativas de sujeito e de objeto, sendo que metade

delas envolvia termos animados e a outra metade, termos inanimados. Desse

modo, o experimento contava com 4 condições experimentais, ilustradas pelos

exemplos a seguir, extraídos dos autores:

(30) Cláusula Relativa de Objeto animado (CROa):

A moça / que o soldado segurou / na cena / tinha sido / sua namorada.

(31) Cláusula Relativa de Objeto inanimado (CROi):

A arma / que o soldado segurou / na cena / pertencia / à corporação policial.

(32) Cláusula Relativa de Sujeito Animado (CRSa):

A moça / que alvejou o soldado / na cena / tinha menos de / vinte anos.

(33) Cláusula Relativa de Sujeito inanimado (CRSi):

A arma / que alvejou o soldado / na cena / era considerada / inofensiva.

Conforme indicam as barras inclinadas, os pesquisadores fracionaram

as sentenças do experimento em cinco segmentos; o segundo segmento

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continha sempre um pronome relativo (que), um verbo de três sílabas na

terceira pessoa do singular e um substantivo com três sílabas determinado

por um artigo. A exibição dos segmentos na tela do computador se dava de

modo não-cumulativo. Com o intuito de atrair a atenção dos participantes

para a leitura dos segmentos, os pesquisadores inseriram perguntas do tipo

sim ou não sobre as frases lidas.

A partir dos tempos médios de leitura do segmento crítico, Cabral, Leitão

e Kenedy (2015) encontraram um efeito significativo do traço de animacidade

na tarefa de leitura automonitorada: segundo os autores, os participantes do

teste liam mais rapidamente as cláusulas relativas de objeto quando elas se

ligavam a um termo inanimado (1379ms) do que quando se ligavam a um

termo animado (1550ms). Além disso, os pesquisadores ressaltaram um fato

surpreendente: a média de tempo de leitura das cláusulas relativas de objeto

inanimado foi significativamente menor (1379ms) do que a média registrada

para as cláusulas relativas de sujeito inanimado (1519ms). Esse resultado vai

de encontro ao que geralmente é descrito na literatura sobre o tema, uma vez

que se costuma afirmar que o processamento das relativas de objeto seria

mais custoso do que o processamento das relativas de sujeito. Com esse

resultado, Cabral, Leitão e Kenedy (2015) demonstram a importância de se

levar em consideração, nos estudos sobre orações relativas, traços de natureza

semântica.

Passemos, agora, à apresentação do teste de leitura automonitorada

construído e aplicado para esta tese, cujo foco é analisar o processamento de

formas clíticas com referência à 2SG. Especificamente, pretendemos, com esse

experimento, (i) verificar se o fato de o clítico te ter sido a forma mais bem

avaliada pelos participantes no teste de julgamento de cenas legendadas tem

alguma relação com a facilidade de processamento do referente de 2SG por

esse pronome e (ii) observar como os clíticos lhe e o/a são processados quando

em referência à 2SG, visto que, no Experimento 1, os dados de julgamento

não sinalizaram claramente para uma tendência de comportamento geral

entre os participantes. Junte-se a isso o fato de que essas formas também

podem atuar como referentes de 3SG, de modo que, no experimento de leitura

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automonitorada, será possível verificar qual leitura os participantes farão

desses clíticos.

Sendo assim, almejamos testar também a eficácia dos clíticos

pronominais em questão na recuperação de um referente marcado

sintaticamente como sendo de 2SG em estruturas de subordinação completiva

de verbos dicendi. Para tanto, criamos itens experimentais que envolviam a

menção de três nomes próprios, sendo que um deles permitia a interpretação

de referente de 2SG. As frases de teste apresentavam o mesmo formato de

(34):

(34) Sônia prometeu para Aldo na companhia de Davi: Eu te ajudo com a prova.

PERGUNTA: Sônia ajuda Davi com a prova?

Na primeira sentença (a oração matriz), que contém o verbo dicendi,

temos a menção de três nomes próprios – “Sônia”, “Aldo” e “Davi”. Além de

introduzir referentes com traço [+pessoa] no estímulo, essa sentença cria uma

situação que remete o leitor a uma interação dialógica, necessária para a

inserção de uma forma pronominal de 2SG. Na segunda sentença (a oração

completiva do verbo dicendi), há o emprego de dois pronomes pessoais: “eu”,

que, na situação criada pelo estímulo, está inequivocamente em correferência

com o SN sujeito da primeira sentença (neste exemplo, o SN “Sônia”), e “te”,

que está vinculado ao SPrep dativo da primeira sentença (“para Aldo”), já que

é ele o destinatário da mensagem transferida pelo agente “Sônia”.

Após ler as sentenças que traziam os nomes próprios e o clítico – no

caso do exemplo, te, os participantes tinham de responder a uma pergunta

relacionada com o clítico, tal qual a que aparece em (34). No caso do exemplo,

a resposta esperada seria “não”, uma vez que o clítico te se refere ao

interlocutor de “Sônia”, ou seja, “Aldo”. “Davi”, nesse contexto é um referente

de 3SG, que está fora do eixo falante-ouvinte, ainda que presencie o diálogo

entre “Sônia” e “Aldo”.

Dentro desse modelo de frase, os clíticos lhe e o/a podem gerar

ambiguidade sintática. Isso porque, como vimos anteriormente, esses itens

eram, originalmente no português, formas de referência à 3SG. Após a

emergência das formas nominais de tratamento, esses clíticos passam a poder

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atuar também na referência à 2SG. Vejamos, em (35-36), a mesma frase

anterior, nas versões com lhe e com o/a:

(35) Sônia prometeu para Aldo na companhia de Davi: Eu lhe ajudo com a prova.

PERGUNTA: Sônia ajuda Davi com a prova?

(36) Sônia prometeu para Aldo na companhia de Davi: Eu o ajudo para a prova.

PERGUNTA: Sônia ajuda Davi para a prova?

Nas versões com os clíticos oriundos da 3SG, existe a possibilidade de

que o terceiro SN (“Davi”) seja interpretado como o referente desses clíticos.

Essa possibilidade é vedada para te, que, desde a sua origem, sempre

funcionou no português como pronome de 2SG (fato que pode, inclusive,

justificar a sua permanência e gramaticalização no PB). Sendo assim, a

questão que buscamos examinar é: como os falantes do PB interpretam, de

fato, os clíticos lhe e o/a em enunciados como os de (35) e (36)? Que leitura

eles atribuem preferencialmente a essas formas nesses contextos ambíguos?

Esses clíticos facilitam o processamento de um referente de 2SG durante a

leitura? Quão custosa será, em termos de tempo de processamento, a

recuperação dos SN antecedentes em relação ao clítico te?

Na próxima seção, arrolamos as hipóteses com que trabalhamos neste

experimento e que propomos como respostas às questões acima. Além disso,

descrevemos as previsões pensadas quanto ao desempenho dos participantes

na tarefa de leitura automonitorada.

5.2 Hipóteses e previsões

O experimento proposto visa a produzir dados que nos possibilitem

explorar as questões que seguem:

(i) Em que medida a presença dos clíticos te, lhe e o/a em um dado

enunciado favorece o processamento de um referente de 2SG?

(ii) Dentre essas três formas, qual delas é a mais eficiente na ativação da

informação de 2SG?

(iii) O fator diatópico/regional interfere no processamento da informação de

2SG?

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Com base nessas questões, propomos as seguintes hipóteses a serem

testadas:

(i) As formas clíticas te e lhe favorecem a interpretação de 2SG com maior

frequência do que a forma o/a. Essa diferença deve-se ao fato de, no PB,

as duas primeiras serem marcadas pelo traço de 2SG, enquanto que a

última, quando utilizada, atua na referência à 3SG;

(ii) A forma te é a mais eficiente no processamento da 2SG, sendo a estratégia

default de referência ao interlocutor. O seu alto grau de gramaticalização

no PB reflete-se em uma maior velocidade de processamento;

(iii) As diferenças dialetais envolvendo a representação da 2SG no PB não

interferem no processamento dos clíticos analisados, sobretudo do clítico

te.

A partir das hipóteses listadas, postulamos como previsões do

Experimento 2 que:

(i) Os participantes efetuarão a leitura de 2SG dos referentes assinalados

nos enunciados de maneira mais eficiente, quando nestes houver os

clíticos te e lhe;

(ii) Os participantes terão maior dificuldade para efetuar a leitura de 2SG

dos referentes assinalados nos enunciados quando nestes houver o clítico

o/a;

(iii) Em termos de custo de processamento, os enunciados contendo o clítico

te demandarão menos tempo de leitura em relação àqueles que

contiverem o clítico lhe; além disso, os enunciados contendo o clítico o/a

demandarão maior tempo de leitura em relação aos enunciados

envolvendo os clíticos te e lhe;

(iv) Não haverá diferenças significativas entre os tempos de leitura dos

enunciados por participantes nativos de regiões diferentes do Brasil (Rio

de Janeiro e Ceará), principalmente em relação a te, que perde restrições

sociopragmáticas ao passar a atuar como um marcador morfológico de

2SG.

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Apontamos, na próxima subseção, a variável independente analisada,

as condições experimentais projetadas e as variáveis dependentes fornecidas

pelo experimento de leitura automonitorada.

5.3 Variáveis e condições

Adotamos, para o experimento de leitura automonitorada, um design do

tipo 3, com a variável independente tipo de clítico, que contém três níveis:

(a) TIPO DE CLÍTICO: te, lhe ou o/a

Como detalharemos mais adiante, na subseção 5.5, a variável tipo de

interação, controlada no Experimento 1, foi neutralizada nos itens

experimentais elaborados para o Experimento 2, uma vez que os objetivos

deste experimento estão mais relacionados à funcionalidade linguística dos

clíticos. Sendo assim, cada nível da variável tipo de clítico projetou uma

condição. Exemplificamos, abaixo, essas condições com itens utilizados no

experimento:

(a) Condição CLÍTICO TE

Ex.: Rita revelou para Pedro na casa de José: eu te amava na escola.

PERGUNTA: Rita amava Pedro na escola?

(b) Condição CLÍTICO LHE

Ex.: Rita revelou para Pedro na casa de José: eu lhe amava na escola.

PERGUNTA: Rita amava Pedro na escola?

(c) Condição CLÍTICO O/A

Ex.: Rita revelou para Pedro na casa de José: eu o amava na faculdade.

PERGUNTA: Rita amava Pedro na faculdade?

É importante destacar que a presença de uma palavra diferente na

condição clítico o/a (“faculdade”, em vez de “escola”), deve-se a um recurso

metodológico de compensação, adotado para que a diferença de tamanho

existente entre o clítico o/a e os demais pronomes investigados não enviesasse

a variável dependente tempo de leitura. Detalhamos melhor essa questão na

subseção 5.6.

Controlamos também a variável grupal estado de origem. Embora não

tenha influenciado a elaboração do desenho experimental, essa variável foi

controlada a fim de verificarmos se ela atuaria, em alguma medida, sobre o

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comportamento dos participantes. No experimento de leitura automonitorada,

a variável estado de origem compreende os seguintes níveis:

(b) ESTADO DE ORIGEM: Rio de Janeiro e Ceará

Ressaltamos, ainda em relação à variável mencionada, que o seu

controle nos possibilita pôr à prova a terceira hipótese relacionada ao

Experimento 2, apontada em 5.2, a saber: diferenças regionais envolvendo a

representação da 2SG no PB não interferem no processamento dos clíticos

analisados, sobretudo do clítico te, que seria uma forma neutra às diferenças

dialetais. Como já mencionamos em outros pontos deste trabalho, para a

posição de complemento verbal, os usuários do dialeto fluminense empregam,

com alta frequência, o clítico te, ao passo que os falantes da variedade

cearense utilizam, também com frequência elevada, as formas te e lhe. Dessa

maneira, a aplicação do teste de leitura automonitorada a falantes de ambos

os estados (RJ e CE) nos permitirá analisar se a variedade utilizada por eles

interfere na realização da tarefa experimental proposta.

Quanto às variáveis dependentes, o Experimento 2 nos forneceu duas

medidas. São elas: a resposta das perguntas interpretativas e o tempo de

leitura das sentenças. Detalhamos a seguir essas medidas:

(a) RESPOSTA DAS PERGUNTAS INTERPRETATIVAS: sim ou não

(b) TEMPO DE LEITURA DAS SENTENÇAS: em milissegundos (ms)

Como veremos na sessão 5.6, a tarefa do participante consistia em ler

duas sentenças, apresentadas uma após a outra, e, em seguida, responder a

uma pergunta do tipo “sim ou não” sobre as sentenças. Levando em

consideração o formato dos enunciados experimentais, é possível associar a

resposta do participante (“sim” ou “não”) à leitura que ele efetuou dos clíticos,

que apareciam sempre na segunda sentença, como podemos visualizar em

(37), outro item experimental utilizado no teste:

(37) Paulo garantiu para Aline na frente de Ana: Eu a indiquei para o cargo.

PERGUNTA: Paulo indicou Aline para o cargo?

SIM → leitura de 2SG (referente “Aline”).

NÃO → leitura de 3SG (referente “Ana”).

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No que se refere à variável tempo de leitura, tomamos como segmentos

críticos as sentenças contendo os clíticos e a sentença que trazia a pergunta

interpretativa. Portanto, analisamos, por exemplo, o tempo que os

participantes levaram para ler o segmento “Eu a indiquei para o cargo” e a

pergunta interpretativa “Paulo indicou Aline para o cargo?”, com relação ao

item ilustrado em (37).

Na continuação do capítulo, tratamos do perfil dos participantes que

realizaram o experimento de leitura automonitorada.

5.4 Participantes

No Experimento 2, contamos com a participação de 60 sujeitos, naturais

de 2 estados brasileiros: Rio de Janeiro (30) e Ceará (30). Destes, 24 eram do

sexo masculino. Os participantes tinham, em média, 25 anos de idade. Todos

possuem ensino superior (completo ou em andamento). Quanto à área de

formação, todos são da área de Letras.

5.5 Materiais

O teste era composto por 30 enunciados experimentais, sendo 10 itens

para cada condição. Os participantes foram divididos em 3 grupos e

visualizavam 10 itens experimentais mesclados com outros 20 itens

distratores. Além disso, cada grupo era exposto a duas condições

experimentais, segundo o esquema exibido a seguir:

(a) Grupo 01: Condições CLÍTICO TE e CLÍTICO LHE - 10 experimentais + 20 distratoras

(b) Grupo 02: Condições CLÍTICO LHE e CLÍTICO O/A - 10 experimentais + 20 distratoras

(c) Grupo 03: Condições CLÍTICO TE e CLÍTICO O/A - 10 experimentais + 20 distratoras

Sendo assim, um participante do Grupo 01, por exemplo, lia 5

enunciados contendo o clítico te, 5 enunciados contendo o clítico lhe e outros

20 enunciados distratores, que, evidentemente, nunca traziam as formas

pronominais em análise. Adotamos esse formato de distribuição das condições

dentre participantes (within subjects) pelas seguintes razões: (i) possibilidade

de utilização de um número maior de itens por condição sem aumento no

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tamanho do experimento; (ii) possibilidade de apresentação do mesmo

enunciado em todas as condições experimentais; (iii) possibilidade de redução

do número de itens distratores.

No que tange aos enunciados experimentais, todos eles eram

constituídos por duas sentenças, sendo a primeira uma oração matriz e a

segunda uma oração completiva relacionada ao verbo dicendi da primeira

sentença. O enunciado, como um todo, reproduzia um discurso direto, em que

a segunda sentença representava a fala de um referente facilmente

identificável na primeira sentença. A fim de neutralizar o efeito de possíveis

variáveis não controladas no experimento, todos os enunciados experimentais

foram rigorosamente construídos conforme a seguinte configuração sintática:

NOME1 Vdicendi para NOME2 no/na SNlocativo de NOME3: eu CL V SPrep.

As palavras que preenchiam as lacunas dos nomes eram sempre nomes

próprios, utilizados uma única vez em todo o teste, de modo que o participante

não lia um mesmo nome próprio em outro enunciado, experimental ou

distrator (cf. no Quadro 5.1). Como a configuração sintática apresentada

sugere, o referente NOME2 é o interlocutor de NOME1, o que possibilita que os

participantes estabeleçam correferência entre NOME2 e a forma pronominal

inserida na lacuna de CL. A presença do constituinte oblíquo, após o

constituinte dativo que insere NOME2 no enunciado, visa a criar,

propositalmente, a possibilidade de correferência entre CL e NOME3. Como já

mencionamos anteriormente, o experimento proposto nos permitirá analisar

se os clíticos lhe e o/a – que, teoricamente, podem se referir à 2SG e à 3SG –

recuperam mais frequentemente o NOME2 ou o NOME3 na leitura dos

participantes.

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PADRÃO SINTÁTICO DOS ITENS EXPERIMENTAIS

Para as condições com te e lhe Para as condições com o/a

Rita revelou para Pedro na casa de José: Eu

lhe/te amava na escola.

Pergunta: Rita amava Pedro na escola?

Rita revelou para Pedro na casa de José: Eu

o amava na faculdade.

Pergunta: Rita amava Pedro na faculdade?

Bruna ligou para Luís no prédio de Hugo: Eu

lhe/te espero no mercado.

Pergunta: Bruna espera Hugo no mercado?

Bruna ligou para Luís no prédio de Hugo:

Eu o espero no restaurante.

Pergunta: Bruna espera Hugo no

restaurante?

Marcos propôs para Vera no celular de Laura:

Eu lhe/te encontro na estação.

Pergunta: Marcos encontra Vera na estação?

Marcos propôs para Vera no celular de

Laura: Eu a encontro no desembarque.

Pergunta: Marcos encontra Vera no

desembarque?

Lucas falou para Beth no evento de Olga: Eu

lhe/te convido para o show.

Pergunta: Lucas convida Olga para o show?

Lucas falou para Beth no evento de Olga:

Eu a convido para o baile.

Pergunta: Lucas convida Olga para o baile?

Paulo garantiu para Aline na frente de Ana:

Eu já lhe/te indiquei ao cargo.

Pergunta: Paulo já indicou Aline ao cargo?

Paulo garantiu para Aline na frente de Ana:

Eu a indiquei para o cargo.

Pergunta: Paulo indicou Aline para o

cargo?

João disse para Carla na presença de Marta:

Eu te/lhe perdoo pelos erros.

Pergunta: João perdoa Marta pelos erros?

João disse para Carla na presença de

Marta: Eu a perdoo pelas mentiras.

Pergunta: João perdoa Marta pelas

mentiras?

Rui avisou para Maria na festa de Paula: Eu

te deixarei em casa hoje.

Pergunta: Rui deixará Maria em casa hoje?

Rui avisou para Maria na festa de Paula:

Eu a deixarei em casa amanhã.

Pergunta: Rui deixará Maria em casa

amanhã?

Sônia prometeu para Aldo no carro de Davi:

Eu te/lhe ajudo com a prova.

Pergunta: Sônia ajuda Davi com a prova?

Sônia prometeu para Aldo no carro de Davi:

Eu o ajudo para a prova.

Pergunta: Sônia ajuda Davi para a prova?

Taís contou para Alex no noivado de Felipe:

Eu te/lhe conheci no colégio.

Pergunta: Taís conheceu Alex no colégio?

Taís contou para Alex no noivado de Felipe:

Eu o conheci na faculdade.

Pergunta: Taís conheceu Alex na

faculdade?

Sofia divulgou para Carlos na sala de Raul:

Eu te/lhe promovo ao emprego!

Pergunta: Sofia promove Raul ao emprego?

Sofia divulgou para Carlos na sala de Raul:

Eu o promovo para a vaga!

Pergunta: Sofia promove Raul para a vaga?

Quadro 5.1 – Itens experimentais utilizados no Experimento 2.

A estrutura de discurso direto também estava presente em todos os

itens distratores. Estes, no entanto, diferiam dos enunciados experimentais

nos seguintes aspectos: (i) não apresentavam, na primeira sentença, três

nomes próprios; (ii) o verbo da primeira sentença não era necessariamente um

verbo dicendi; (iii) não havia nenhum tipo de estratégia de 2SG na segunda

sentença. Embora não seguissem exatamente a mesma configuração sintática

dos enunciados experimentais, os distratores não destoavam, no teste, em

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relação à estrutura dialógica e nem em relação ao tamanho do enunciado. Em

(38-41), apresentamos quatro itens distratores utilizados no experimento:

(38) A professora informou aos alunos no fim da aula: Adiei a prova para julho.

PERGUNTA: A professora adiou a prova para julho?

(39) Eduarda planejou com a irmã no sofá da sala: Vamos arrumar o quarto.

PERGUNTA: Eduarda vai arrumar o quarto com a irmã?

(40) O guarda pediu ao motorista na via expressa: Coloque o cinto de segurança.

PERGUNTA: O guarda colocou o cinto de segurança?

(41) Ivan decidiu com o sócio na sala da empresa: Assinarei o contrato hoje.

PERGUNTA: Ivan recusará o contrato com o sócio?

Em cada um dos três grupos de teste, havia 20 participantes, sendo 10

nascidos no estado do Rio de Janeiro e 10, no estado do Ceará. Excetuando a

divisão diatópica, já esclarecida em parágrafos anteriores, a inserção de

participantes nos grupos do experimento foi feita de maneira aleatória.

Após a elaboração de todos os enunciados a serem utilizados no

experimento, organizamos os itens experimentais e distratores em uma

planilha Excel, para que os mesmos fossem lidos pelo software PsychoPy v1.8

(PEIRCE, 2009). Esta ferramenta, gratuita e disponível para os sistemas

operacionais Windows, Mac e Linux, serviu-nos para programar a

apresentação dos estímulos no computador bem como para registrar as

respostas e os tempos de leitura dos participantes (vide a Figura 5.1). Além

disso, o PsychoPy também possibilitou a randomização dos enunciados, de

maneira que cada participante foi exposto às frases experimentais em

sequências aleatórias.

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Figura 5.1 – Interface do software PsychoPy com experimento programado.

Com o experimento devidamente configurado no computador, foi

possível iniciar a aplicação aos participantes. Passemos, na próxima

subseção, aos procedimentos utilizados para a aplicação do teste.

5.6 Procedimentos

Aplicamos o experimento de leitura automonitorada entre os meses de

setembro e outubro de 2017, primeiramente no estado do Ceará. Utilizamos,

na aplicação, um Macbook Pro, monitor de 15” (Apple, Macintosh).

Individualmente, cada sujeito recebia os comandos para a realização do teste,

transmitidos oralmente, pelo pesquisador responsável, e por escrito, na tela

do computador. Além disso, todos os participantes realizavam uma etapa de

treinamento antes de começar o teste real, ainda na presença do pesquisador,

a fim de receber orientações específicas ou de sanar possíveis dúvidas acerca

da tarefa.

Durante o treino, os participantes eram expostos a quatro enunciados,

bastante semelhantes aos distratores do teste verdadeiro (listados em 42-45).

Assim, o pesquisador instruía os sujeitos a manusear, no teclado do Macbook,

apenas a tecla “espaço” (para passar à tela seguinte) e, na tela da pergunta

interpretativa, as teclas “a” (para responder “sim”) e “l” (para responder “não”).

As referidas teclas de resposta foram escolhidas a fim de facilitar o

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acionamento da resposta pelos participantes (vide a posição de “a” e “l” no

teclado padrão) e eram sinalizadas no teclado por um papel adesivo colorido.

(42) Letícia pediu ao garçom na mesa do restaurante: Quero frango com brócolis.

PERGUNTA: Letícia pediu frango com brócolis ao garçom?

(43) Victor implorou à mãe no caminho do clube: Vamos jantar na praça do shopping!

PERGUNTA: Victor implorou para jantar na praça do clube?

(44) Caio conferiu com o professor a nota do bimestre: Fiquei com nove na média.

PERGUNTA: Caio ficou com nove na média do bimestre?

(45) Mara fechou com o chefe as contas da firma: Reduzimos dez por cento dos gastos.

PERGUNTA: Os gastos da firma aumentaram?

Nas instruções, os participantes também eram informados quanto à

rotina da tarefa: ao clicar “espaço”, apareceria um asterisco no centro da tela

em branco e isso significava que seria exibido um novo enunciado; clicando

em “espaço” novamente, surgiria a primeira parte do enunciado, que deveria

ser lido no menor tempo possível para o entendimento completo; acionando

“espaço” pela terceira vez, apareceria a segunda parte do enunciado, que

também deveria ser lido atentamente e o mais rápido possível; em mais um

clique em “espaço”, seria exibida uma pergunta interpretativa, relacionada ao

enunciado que havia sido lido. A pergunta só desapareceria da tela quando o

participante acionasse “a” ou “l” no teclado, o que também deveria ser feito

rapidamente. Respondida a pergunta, voltava ao centro da tela um asterisco.

O processo se repetia até o final do experimento, que tinha sua conclusão

sinalizada por uma mensagem de agradecimento. O esquema a seguir ilustra

a rotina descrita:

[espaço] → * (início de um novo enunciado)

[espaço] → Rita revelou para Pedro na casa de José:

[espaço] → eu te amava na escola.

[espaço] → Rita amava Pedro na escola?

[A] ou [L] → * (início de um novo enunciado) ...

Realizando a etapa de treinamento sem grandes dificuldades e não

havendo dúvidas, os participantes iniciavam o experimento propriamente dito.

Durante a realização da tarefa, os sujeitos ficavam sozinhos ou em um campo

suficientemente isolado do local de aplicação, livre de ruídos que pudessem

afetar o seu desempenho. Em média, os participantes levavam 5 minutos para

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cumprir integralmente a tarefa, caracterizada por eles como de simples

execução e de fácil entendimento.

No que se refere à apresentação dos estímulos, eles eram exibidos em

meio escrito, de modo não-cumulativo, na cor preta, em fundo branco na tela

do Macbook. Como formatação padrão, utilizamos a fonte Times New Roman,

tamanho 14, centralizado. Cada segmento do enunciado, exposto em uma tela

individual, ocupava uma única linha. Quanto à dimensão dos segmentos, a

primeira sentença possuía 15 sílabas, a segunda sentença, 9 sílabas e a

pergunta interpretativa, 11 sílabas.

Ainda em relação à dimensão dos estímulos, cumpre destacar que os

enunciados associados à condição CLÍTICO O/A contavam com uma sílaba a

mais na segunda sentença e na pergunta interpretativa (cf. o Quadro 5.1).

Essa decisão metodológica foi tomada em razão desse clítico ser representado

por um único caractere em meio escrito. Para que isso não enviesasse a

variável tempo de leitura em relação às demais condições, decidimos

compensar essa diferença com o acréscimo de mais uma sílaba. Esse ajuste

não afetava o sentido global do enunciado.

5.7 Resultados

Após a aplicação do experimento aos 60 participantes, reunimos os

dados, salvos automaticamente pelo PsychoPy em planilhas do Excel, a fim de

analisá-los estatisticamente. Dividiremos a exposição dos resultados pelas

variáveis dependentes analisadas. Iniciamos com os resultados relativos à

resposta da pergunta interpretativa, nossa medida off-line. Como já explicamos

em outras partes deste capítulo, a partir da resposta dada à pergunta feita

após a leitura da frase com o clítico (sim ou não), era possível depreender qual

interpretação os participantes fizeram do pronome (2SG ou 3SG). Para tornar

a apresentação dos resultados mais clara, optamos por informar a frequência

(em %) de respostas relacionadas à leitura de 2SG, que é de nosso interesse

central.

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183

5.7.1 Respostas às perguntas interpretativas

As Figuras 5.2 e 5.3 sintetizam a frequência com que os participantes

efetuaram a leitura de 2SG a partir dos clíticos investigados. Os índices

globais aparecem na Figura 5.2, e o resultado correlacionado com a variável

estado de origem aparece na Figura 5.3:

Figura 5.2 – Interpretação da informação

de 2SG segundo o tipo de pronome (em %).

Figura 5.3 – Interpretação da informação

de 2SG segundo o tipo de pronome - por

estados (em %).

Segundo os resultados globais, vemos que os três clíticos favoreceram a

interpretação de 2SG na leitura dos participantes com uma frequência

relativamente alta (acima de 60% em todos os casos). A forma te foi a que

ativou a leitura de 2SG, em termos percentuais, com maior recorrência (em

75% dos enunciados que envolviam esse pronome). Em segundo lugar no

ranking, temos o pronome lhe, com um índice bastante próximo (73%) do

índice verificado para te. Na terceira posição – sendo, pois, o pronome menos

eficiente na referência a 2SG –, aparece o clítico o/a, com 66% de frequência.

Todavia, aplicando o teste de qui-quadrado aos dados sintetizados na Figura

5.2, com o intuito de verificar se as diferenças seriam significativas, apuramos

que nenhuma delas se mostrou relevante estatisticamente: te-lhe: 2=0,20 (1),

p = 0,64; te-o/a: 2=3,47 (1), p = 0,06; lhe-o/a: 2=1,69 (1), p = 0,19.

Quanto aos resultados da Figura 5.3, que subdividem os índices obtidos

a partir das respostas às perguntas interpretativas de acordo com o estado de

origem dos participantes, verificamos que a distribuição dos percentuais de

frequência dos participantes do RJ é semelhante à distribuição do resultado

global. O clítico te foi a forma que favoreceu a interpretação de 2SG com maior

frequência (84%), seguida do clítico lhe (74%). Em contrapartida, o clítico o/a

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184

foi a forma pronominal menos eficiente para acessar a 2SG (65%). Vale

ressaltar, ainda, que a diferença entre as frequências relativas à interpretação

dos participantes fluminenses foi maior, em termos percentuais, do que a

observada no resultado geral (10% entre te e lhe, 9% entre lhe e o/a, e 19%

entre te e o/a). Por outro lado, os resultados do teste de qui-quadrado

mostraram que a única diferença significativa se dá entre os índices de

interpretação envolvendo os clíticos te e o/a (2=8,52 (1), p < 0,01), ao passo

que as diferenças nos índices envolvendo os pares pronominais te e lhe

(2=2,44 (1), p = 0,11) e lhe e o/a (2=1,50 (1), p = 0,21) não são

estatisticamente relevantes.

Focalizando a distribuição dos índices obtidos a partir das respostas dos

sujeitos do CE, percebemos que há diferenças quanto à interpretação da

informação de 2SG, se as compararmos com o resultado geral. A principal

diferença diz respeito ao índice dos enunciados com o pronome te, que atuou

no acesso ao nome próprio de 2SG em apenas 66% das situações (contra 75%

do resultado geral). Entre os cearenses, a forma mais eficiente no acesso à

2SG foi o clítico lhe, com 71%. Já a forma o/a favoreceu a leitura de 2SG em

67% dos enunciados. Entretanto, as diferenças existentes por tipo de clítico,

entre os dados do CE, não foram estatisticamente significativas em nenhuma

das comparações binárias (te-lhe: 2=0,37 (1), p = 0,54; te-o/a: 2=0 (1), p = 1;

lhe-o/a: 2=0,21 (1), p = 0,64).

Comparando os índices de interpretação da informação de 2SG a partir

dos clíticos, nos dois estados, vemos que a maior diferença percentual ficou

por conta das frases que traziam o pronome te: 84% nas respostas dos

participantes fluminenses frente a 66% nas respostas dos cearenses. Para as

frases com os demais pronomes, encontramos índices muito próximos, como

74% (RJ) e 71% (CE) para lhe, e 65% (RJ) e 67% (CE) para o/a. Analisando as

distribuições mencionadas pelo teste estatístico de qui-quadrado, detectamos

que nenhuma das diferenças diatópicas quanto aos índices de interpretação é

significativa (te: 2=2,16 (1), p = 0,14; lhe: 2=0,06 (1), p = 0,80; o/a: 2=0,03

(1), p = 0,86).

Avancemos, na próxima subseção, para a análise da variável

dependente on-line tempo de leitura das sentenças. Especificamente,

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185

interessa-nos averiguar as médias de tempo de leitura das frases que traziam

o clítico (apresentadas em 5.7.2) e da pergunta interpretativa (apresentadas

em 5.7.3).

5.7.2 Médias de tempo de leitura das sentenças com o clítico

As Figuras 5.4 e 5.5 exibem as médias de tempo de leitura das frases

com o clítico. Elas foram obtidas a partir de dois cálculos distintos: pela média

dos participantes (5.4) e pela média dos itens experimentais (5.5). Na primeira

figura, reunimos os dados de cada participante no conjunto de cada condição

e extraímos uma média (lembrando que cada participante via 10 itens

experimentais). Já na segunda figura, agrupamos os dados de cada item no

conjunto de cada condição e calculamos a média (cada item experimental era

visto por 20 participantes diferentes). Esse procedimento objetiva organizar

melhor os dados da variável dependente e evitar o erro do tipo II (o “falso

negativo”): se calculássemos a média geral das condições através da soma dos

tempos de leitura de todos os itens e de todos os participantes conjuntamente,

poderíamos não encontrar diferenças significativas na análise estatística da

variância (ANOVA), diferenças essas que, na realidade, podem existir, mas

estariam camufladas na média geral.

Figura 5.4 – Média de tempo de leitura da frase com o clítico (em ms), calculada por

participantes.

Figura 5.5 – Média de tempo de leitura da frase com o clítico (em ms), calculada por

itens experimentais.

Visualizando as Figuras 5.4 e 5.5, vemos que, em termos globais, as

frases com o clítico te foram as que demandaram menor tempo leitura, fato

que se traduz tanto na média calculada por participantes (1904,1

milissegundos) quanto na média calculada por itens (1879,9 milissegundos).

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186

Em sequência, estão as frases que traziam o clítico o/a, que contabilizaram

um tempo médio de leitura de 2230,9 milissegundos na análise por

participantes e 2188,8 milissegundos na análise por itens. Já as frases com o

clítico lhe foram as que registraram as maiores médias de tempo de leitura

(2359,9 milissegundos no cálculo por participantes e 2346,5 milissegundos

no cálculo por itens), o que nos permite pensar que esse clítico seja o que

demanda maior custo de processamento.

Com o intuito de verificar a significância das diferenças existentes entre

as médias de tempo registradas, efetuamos a Análise de Variância (ANOVA)34

por participante e por item. Em ambos os casos, a Anova indicou efeito

principal significativo do fator tipo de clítico (F1 (2,60)=4,58 p < 0,05; F2

(2,10)=12,85 p < 0,001). Na análise do teste-t35, em que verificamos a

relevância da diferença entre as médias de tempo dos pronomes por

comparações binárias, constatamos que as médias verificadas para o tempo

de leitura das frases com te são significativamente menores do que as médias

verificadas para as frases com os demais clíticos (te-lhe: t1 (39)=3,70 p < 0,001

– t2 (9)=6,10 p < 0,001; te-o/a: t1 (39)=2,28 p < 0,05 – t2 (9)=3,08 p < 0,05). Em

contrapartida, as diferenças entre as médias de tempo de leitura das frases

com lhe comparadas às médias das frases com o/a não se mostraram

significativas pelo teste-t (t1 (39)=0,68 p = 0,49 – t2 (9)=1,69 p = 0,12).

Nas Figuras 5.6 e 5.7, a seguir, analisaremos as médias de tempo de

leitura considerando a variável estado de origem. Em outras palavras,

recalculamos as médias de leitura das frases com os clíticos (por participantes

e por itens) separando os dados segundo o estado natal dos sujeitos, a fim de

apurar se houve alguma diferença diatópica em relação aos tempos de leitura.

34 A análise de variância é um teste paramétrico que compara médias de três ou mais grupos

de condições. O teste inferencial ANOVA avalia a probabilidade de que qualquer diferença

entre duas condições se deva a um erro amostral. A rejeição da hipótese nula (ou seja, não há diferença alguma) em favor da hipótese alternativa (isto é, há diferenças significativas)

indica que as diferenças observáveis se devem ao fator (ou fatores) controlados, que surtiram

efeitos estatisticamente significativos sobre os resultados dos participantes. 35 O teste-t segue a mesma linha de raciocínio da análise de variância, no sentido de indicar

a significância de diferenças entre as médias observáveis para cada conjunto de condição. A

principal diferença é que o teste-t faz análises binárias, comparando as condições existentes na amostra por pares.

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187

Figura 5.6 – Tempo médio de leitura da

frase com o clítico (em ms) segundo o estado de origem.

Calculado por participantes.

Figura 5.7 – Tempo médio de leitura da

frase com o clítico (em ms) segundo o estado de origem.

Calculado por itens experimentais.

Como podemos notar, tanto os participantes fluminenses quanto os

participantes cearenses levaram menos tempo para ler as frases que traziam

o clítico te: encontramos um tempo médio de 1964,5 milissegundos para os

primeiros e de 1843,8 milissegundos para os últimos na média por

participantes; ao considerarmos as médias por itens, os valores se reduzem

ligeiramente em ambas as localidades: 1922,7 milissegundos para o RJ e 1833

milissegundos para o CE. As frases que apresentavam o clítico lhe

contabilizaram as maiores médias de tempo dentre as formas analisadas,

sendo 2220,8 milissegundos entre os participantes do RJ e 2499

milissegundos entre os participantes do CE na análise por participantes, e

2230,3 milissegundos e 2495,9 milissegundos, respectivamente, na análise

por itens. Além disso, o tempo médio de leitura das frases com o clítico o/a foi

maior em relação a te, porém menor em relação a lhe: 2048,6 milissegundos

(RJ) e 2413,2 milissegundos (CE) nas médias por participantes; 2030,7

milissegundos e 2386,6 milissegundos nas médias por itens.

A Análise de Variância indicou, assim como para as médias de tempo

globais, um efeito principal significativo da variável tipo de clítico (F1

(2,60)=4,65 p < 0,05 - F2 (2,10)=9,68 p < 0,001). Contudo, não houve efeito

principal significativo da variável estado de origem (F1 (2,60)=1,91 p = 0,16 -

F2 (2,10)=3,71 p = 0,06) nem interação entre as variáveis tipo de clítico e estado

de origem (F1 (2,60)=1,41 p = 0,24 - F2 (2,10)=2,18 p = 0,12).

Aos realizarmos os testes-t a partir das médias de tempo de leitura de

ambas as localidades, obtivemos um resultado curioso: as médias de leitura

para as frases com te foram significativamente menores em relação às médias

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188

das frases com os outros pronomes nos dados do Ceará (te-lhe: t1(19)=3,82 p

< 0,01 – t2 (9)=6,27 p < 0,001; te-o/a: t1 (19)=2,63 p < 0,05 – t2 (9)=2,63 p <

0,05), mas não o foram nos dados do Rio de Janeiro (te-lhe: t1 (19)=1,52 p =

0,14 – t2 (9)=1,96 p = 0,08; te-o/a: t1 (19)=0,73 p = 0,47 – t2 (9)=1,47 p = 0,17).

Por sua vez, as diferenças entre as médias de tempo de leitura das frases com

lhe em relação às médias das frases com o/a não foram significativas nos

dados dos dois estados (RJ: t1 (19)=0,73 p = 0,47 – t2 (9)=1,06 p = 0,31; CE: t1

(19)=0,28 p = 0,77 – t2 (9)=0,43 p = 0,67).

Na subseção que segue, exploraremos as médias de tempo de leitura

das perguntas interpretativas. Após lerem as frases com os clíticos, os

participantes tinham de responder a uma pergunta que relacionava os nomes

próprios da primeira frase exibida na sequência com as informações da frase

com o pronome. O que queremos descobrir agora é: quanto tempo, em média,

os participantes levaram para responder a essas perguntas interpretativas?

5.7.3 Médias de tempo de leitura das perguntas interpretativas

Nas Figuras 5.8 e 5.9, abaixo, temos as médias de tempo de leitura das

perguntas interpretativas. Assim como na subseção anterior, temos as médias

calculadas por participantes e por itens experimentais.

Figura 5.8 – Média de tempo de leitura da

pergunta interpretativa (em ms), calculada

por participantes.

Figura 5.9 – Média de tempo de leitura da

pergunta interpretativa (em ms), calculada

por itens experimentais. Focalizando primeiramente o gráfico da Figura 5.8, que traz as médias

por participantes, constatamos que as perguntas que sucediam as frases com

o clítico te foram lidas mais rapidamente, contabilizando um tempo médio de

2953,3 milissegundos. Já em relação às perguntas interpretativas que

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189

sucediam as frases com os clíticos lhe e o/a, verificamos tempos médios de

leitura de 3321,3 milissegundos para aquelas e de 2968,1 milissegundos para

estas. Tempos de leitura bastantes similares podem ser vistos no gráfico da

Figura 5.9, que reúne as médias por itens experimentais. Nesse caso,

encontramos as seguintes médias para as perguntas que sucediam as frases

com os pronomes te, lhe e o/a, nessa ordem: 2920,8 milissegundos, 3236

milissegundos e 2925,9 milissegundos.

Segundo o resultado do teste ANOVA, porém, não houve efeito principal

significativo do fator tipo de clítico (F1 (2,60)=1,28 p = 0,27 - F2 (2,10)=2,74 p

= 0,08). Nas análises de teste-t, detectamos diferenças significativas apenas

nas comparações entre as médias de leitura das perguntas que sucediam as

frases com os clíticos lhe e te na análise por participantes (t1 (39)=2,50 p <

0,05) e entre as médias de leitura relativas às perguntas que seguiam as frases

com os clíticos lhe e o/a na análise por itens (t2 (9)=3,16 p < 0,05). As demais

comparações binárias por participantes (lhe-o/a: t1 (39)=1,49 p = 0,14; te-o/a:

t1 (39)=0,07 p = 0,94) e por itens (te-lhe: t2 (9)=2,02 p = 0,07; te-o/a: t2 (9)=0,02

p = 0,97) não foram estatisticamente significativas.

Daremos prosseguimento à descrição dos resultados do Experimento 2

explorando as médias de tempo de leitura da pergunta interpretativa em

correlação com a variável estado de origem. Tal como executamos na subseção

anterior, analisaremos as médias de leitura das perguntas interpretativas (por

participantes e por itens) segundo a localidade dos participantes, com o intuito

principal de atestar se houve diferenças diatópicas em relação ao tempo de

resposta.

Figura 5.10 – Tempo médio de leitura da

pergunta interpretativa (em ms) segundo o

estado de origem. Calculado por participantes.

Figura 5.11 – Tempo médio de leitura da

pergunta interpretativa (em ms) segundo o

estado de origem. Calculado por itens experimentais.

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190

Na análise dos tempos médios de leitura das perguntas segundo o

estado de origem dos participantes, observamos diferenças quanto às menores

e maiores médias registradas. Nos dados relativos aos indivíduos do RJ, vemos

que o tempo de leitura das perguntas que sucediam as frases com clítico o/a

representa a menor média, tanto no cálculo por participantes (2539,1

milissegundos) quanto no cálculo por itens (2535,9 milissegundos). Em

segundo lugar, aparecem as médias referentes ao tempo de leitura das

perguntas que seguiam as frases com o clítico te, com valores iguais a 2830,3

milissegundos (para a análise por participantes) e 2799,5 milissegundos (para

a análise por itens). As perguntas que sucediam as frases com o clítico lhe são

as que registram as médias de tempo de leitura mais elevadas: 3399,5

milissegundos (por participantes) e 3240,6 milissegundos (por itens).

Essa ordenação é totalmente diferente nos dados relativos aos

indivíduos do CE, nos quais verificamos que as menores médias de tempo de

leitura foram registradas para as perguntas que sucediam as frases com o

clítico te, quer no cálculo por participantes (3076,4 milissegundos) quer no

cálculo por itens (3017,3 milissegundos). Já as perguntas que seguiam os

enunciados que traziam o clítico o/a contabilizaram médias de 3397,1

milissegundos na análise por participantes e 3320,6 milissegundos na análise

por itens, sendo a condição com os maiores tempos de leitura dentre os

sujeitos cearenses. Para as perguntas subsequentes às frases com o clítico

lhe, contabilizamos médias intermediárias entre os tempos de leitura de te e

o/a: 3243 milissegundos na análise por participantes e 3224,4 milissegundos

na análise por itens.

Os resultados do teste ANOVA não indicaram efeito principal nem do

fator tipo de clítico (F1 (2,60)=1,32 p = 0,26), nem do fator estado de origem

(F1 (2,60)=2,28 p = 0,13) na análise por participantes. Além disso, o ANOVA

também indicou, na referida análise, que não houve efeito de interação entre

os fatores tipo de clítico e estado de origem (F1 (2,60)=1,99 p = 0,14). Já em

relação à análise por itens experimentais, a análise de variância indicou o fator

estado de origem como significativo (F2 (2,10)=5,33 p < 0,05). O fator tipo de

clítico, contudo, não foi significativo nessa análise (F2 (2,10)=2,16 p = 0,12),

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191

assim como também não houve efeito de interação entre os fatores controlados

(F2 (2,10)=2,78 p = 0,07).

Nas análises binárias, realizadas através do teste-t, detectamos

diferenças significativas, apenas entre os dados do RJ, com relação às médias

de leitura das perguntas que sucediam as frases com lhe em comparação com

as médias de leitura de o/a (t1 (19)=2,99 p < 0,01 - t2 (9)=3,18 p < 0,05) e te

(t1 (19)=2,69 p < 0,05). As demais comparações envolvendo as médias do RJ

não foram significativas (lhe-te: t2 (9)=1,55 p = 0,15; te-o/a: t1 (19)=-1,20 p =

0,24 – t2 (9)=-1,31 p = 0,22). No que tange aos dados do CE, os testes-t

indicaram não haver diferença significativa em nenhuma das comparações

realizadas (te-lhe: t1 (19)=0,83 p = 0,41 – t2 (9)=0,99 p = 0,34; te-o/a: t1

(19)=1,02 p = 0,31 – t2 (9)=1,16 p = 0,27; lhe-o/a: t1 (19)=-0,44 p = 0,66 – t2

(9)=-0,36 p = 0,72).

5.8. Discussão

Os resultados descritos anteriormente nos permitem refletir sobre

diversos aspectos concernentes às hipóteses e previsões aludidas na seção 5.2

do presente capítulo. No desenvolvimento dessa discussão, procuraremos

correlacionar as previsões e hipóteses com os resultados efetivamente obtidos

através do experimento de leitura automonitorada.

Inicialmente, prevíamos que os participantes, de um modo geral, seriam

capazes de efetuar a leitura da informação de 2SG dos referentes nominais

presentes nos enunciados dos itens experimentais de forma eficaz,

principalmente quando aparecessem os clíticos te e lhe nas frases. Essa

previsão foi verificada nos índices de interpretação da informação de 2SG,

ilustrados na Figura 5.2. Tanto as condições com o clítico te (75%) quanto as

condições com o clítico lhe (73%) registraram altos índices de resposta em que

pudemos constatar que os participantes retomavam, na maioria das vezes, o

nome próprio que representava o interlocutor no contexto criado pelas frases

iniciais de cada condição.

Um resultado que nos surpreendeu, entretanto, foi o relativo aos índices

de interpretação da informação de 2SG nas condições que envolviam o clítico

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192

o/a. Havíamos postulado que os participantes efetuariam em menor escala a

leitura de 2SG a partir das frases que contivessem esse clítico, fato que não

foi observado. Como podemos visualizar na Figura 5.2, os participantes em

geral conseguiram acionar a leitura de 2SG em 66% dos itens experimentais

da condição do clítico o/a. De imediato, atribuímos esse elevado índice à

própria natureza do experimento: os estímulos eram apresentados em meio

escrito e podiam ser lidos por tempo indeterminado (embora a orientação

padrão tenha sido que as sentenças fossem lidas no menor tempo possível).

Junte-se a isso o fato de todos participantes serem altamente escolarizados e,

portanto, terem certo contato com formas linguísticas pouco frequentes na

língua falada, como é o caso de o/a. Dessa forma, pensamos que, se o mesmo

experimento fosse replicado com estímulos orais e com participantes de menor

grau de escolarização, os resultados gerais atinentes à variável índice de

respostas às perguntas interpretativas poderiam ser diferentes para a condição

do clítico o/a.

Além disso, verificamos também, através do teste estatístico de qui-

quadrado, que as diferenças de frequência existentes entre as condições,

exibidas na Figura 5.2, não são significativas. Em outras palavras, isso quer

dizer que, com relação à interpretação da informação de 2SG, capturada a

partir das respostas acionadas pelos participantes, não houve efeito da

variável tipo de clítico.

As diferenças observadas na Figura 5.3. também não se mostraram

significativas, o que nos leva a descartar uma possível interferência da variável

estado de origem sobre a interpretação das frases com os clíticos. Na

comparação entre os índices de interpretação da informação de 2SG,

constatamos que nem mesmo a diferença existente na condição com o clítico

te entre os dados do RJ (84%) e do CE (66%) foi significativa. Ademais, na

verificação estatística das diferenças entre as condições segundo os dados de

cada estado, vimos que nenhuma delas foi significativa entre os dados do CE

(te: 66%, lhe: 71%, o/a: 67%); entre os dados do RJ, apenas a diferença entre

as condições dos clíticos te e o/a foi significativa (te: 84% e o/a: 65%).

A ausência de efeito do tipo de clítico sobre as respostas dadas pelos

participantes, todavia, não quer dizer que haja uma equivalência entre os

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193

pronomes investigados. As diferenças encontradas através da variável tempo

de leitura da frase com o clítico parecem sustentar essa premissa. No que diz

respeito à média de tempo de leitura geral das frases que traziam os clíticos,

notamos que as frases da condição do clítico te foram lidas em tempos

significativamente menores (1904 milissegundos na análise por participantes

e 1879 milissegundos na análise por itens), quer em comparação com as frases

da condição do clítico lhe, quer em comparação com as frases da condição do

clítico o/a. Tal resultado vai ao encontro da nossa hipótese, segundo a qual o

elevado estágio de gramaticalização de te no PB faz com que essa forma seja

processada mais rapidamente, uma vez que está mais disponível na memória

dos falantes para ativar a informação de 2SG. As outras formas, no entanto,

embora tenham possibilitado a retomada dos referentes de 2SG na tarefa

experimental proposta, demandaram maiores tempos de leitura das frases em

que o clítico aparecia, como ilustram os gráficos das Figuras 5.4 e 5.5.

Aos separarmos as médias de tempo de leitura da frase com o clítico

segundo o estado de origem dos participantes, observamos que (i) o efeito da

variável tipo de clítico foi igualmente significativo, (ii) não houve efeito

significativo da variável estado de origem e (iii) não houve interação entre as

variáveis mencionadas. Essas informações sugerem que a localidade natal dos

participantes não interfere no tempo de leitura das frases, o que nos permite

descartar, por exemplo, a hipótese de que os participantes cearenses, por

utilizarem produtivamente a forma lhe na língua falada como uma estratégia

de 2SG, leriam os enunciados contendo esse clítico mais velozmente do que

os participantes fluminenses.

Quanto às diferenças significativas de tempo de leitura entre os dados

de cada condição, notamos que os enunciados com o pronome te foram lidos

pelos participantes cearenses mais rapidamente (1843 milissegundos – média

por participantes; 1833 milissegundos – média por itens) dos que os

enunciados que traziam os pronomes lhe e o/a. Embora tenhamos encontrado

diferenças da mesma natureza para os enunciados lidos pelos participantes

fluminenses, os testes-t por pares indicaram que elas não são significativas.

Além disso, as diferenças entre as médias das frases com lhe e com o/a não

foram significativas nos dados de ambos os estados.

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194

Ainda em relação às diferenças entre as médias de tempo, agora ligadas

à leitura das perguntas interpretativas, notamos, através dos valores

apresentados nas Figuras 5.8 e 5.9, que os participantes, em geral, levaram

menos tempo para ler as perguntas precedidas pelas frases com o clítico te

(2953 milissegundos – média por participantes; 2920 milissegundos – média

por itens). As perguntas que sucediam os enunciados com o clítico lhe foram

as que registraram maiores médias de tempo de leitura (3321 milissegundos

– média por participantes; 3236 milissegundos – média por itens). Embora o

teste de variância não tenha apontado para um efeito significativo do fator tipo

de clítico, duas comparações, nos testes-t, se mostraram significativas, ambas

envolvendo o clítico lhe (lhe-te na análise por participantes e lhe-o/a na análise

por itens), o que parece sinalizar que as perguntas lidas após as frases com

esse pronome, de fato, demandaram maior tempo de leitura.

Separando as médias de tempo de leitura da pergunta interpretativa por

estados, representadas nas Figuras 5.10 e 5.11, vemos que os participantes

do CE levaram, em média, mais tempo para responder à pergunta após terem

lido uma frase com o clítico o/a (3397 milissegundos – média por

participantes; 3320 milissegundos – média por itens). Já as perguntas que

sucediam as frases com o clítico te eram respondidas mais rapidamente (3076

milissegundos – média por participantes; 3017 milissegundos – média por

itens) pelos mesmos participantes. Ainda que essas diferenças nas médias

estejam de acordo com a nossa previsão geral (isto é, média para a condição

te < média para a condição lhe < média para a condição o/a), as análises

estatísticas revelaram que elas não são significativas.

Por outro lado, os testes-t indicaram que, no que tange aos dados do

RJ, as diferenças nas médias de leitura das perguntas que sucediam as frases

com lhe (3399 milissegundos – por participantes; 3240 milissegundos – por

itens) em comparação com as médias de leitura de o/a (2539 milissegundos –

por participantes; 2535 milissegundos – por itens) e te (2830 milissegundos –

por participantes; 2799 milissegundos – por itens) são significativas, o que

nos leva a pensar que os participantes fluminenses demandavam mais tempo

para responder às perguntas precedidas por frases com o clítico lhe. Além

disso, embora as médias de tempo de leitura para a condição do clítico o/a

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195

tenham sido menores do que as médias para a condição do clítico te, essas

diferenças não foram significativas.

Nesse sentido, podemos dizer que as análises acerca dos tempos de

leitura – tanto das frases com os clíticos quanto da pergunta interpretativa –

mostram que, apesar de os participantes das duas localidades aparentemente

terem executado a tarefa experimental de modo distinto, os resultados, em

sua totalidade, sinalizaram para a mesma direção. De um lado, vimos que as

diferenças nos tempos de leitura da frase com o clítico registradas para os

participantes do CE se mostraram significativas. Isso parece sugerir que esses

participantes só avançavam para a tela que trazia a pergunta interpretativa

quando tinham alguma segurança quanto à compreensão da frase. De outro

lado, notamos que foram as diferenças nos tempos de leitura da pergunta

interpretativa que se revelaram como significativas para os dados dos

participantes do RJ. Aparentemente, tais participantes liam as frases com o

clítico em um ritmo similar e partiam para a tela da pergunta. Todavia,

encontramos diferenças nas médias de tempo de leitura da pergunta, o que

parece sugerir, em se tratando de uma tarefa de leitura automonitorada, de

um efeito spillover: podemos dizer que o processamento das frases com o

clítico pelos participantes ia além do momento em que eles acionavam a tecla

que trazia à tela a frase seguinte, afetando, assim, o tempo de leitura da

pergunta interpretativa.

Se correlacionarmos esses resultados com os índices de interpretação

da informação de 2SG, concluiremos que: (i) os participantes fluminenses

registraram uma média de tempo baixa para ler as perguntas que sucediam

as frases com a forma te e acessaram em 84% das vezes o referente de 2SG;

(ii) a média de tempo de leitura das perguntas que sucediam as frases com a

forma o/a também foi baixa (e o teste-t indicou, inclusive, que não houve

diferença significativa na comparação com a média da condição do pronome

te); entretanto, o índice de interpretação da informação de 2SG foi

significativamente menor (65%) do que o verificado para a condição do

pronome te; (iii) em relação à condição do clítico lhe, detectamos que os

participantes fluminenses levavam mais tempo para responder à pergunta

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interpretativa; todavia, eles acessavam, com maior frequência, o referente de

2SG da frase anterior (74%).

Em síntese, o que procuramos demonstrar é que as diferenças previstas

quanto aos tempos de leitura foram capturadas em segmentos distintos do

Experimento 2: para os participantes do CE, as médias de tempo de leitura da

frase com o pronome foram mais informativas; para os participantes do RJ,

as médias de tempo de leitura da pergunta interpretativa em correlação com

os índices de interpretação da informação de 2SG se mostraram mais

esclarecedoras. Nesse sentido, já que as diferenças quanto à variável estado

de origem não foram significativas, podemos dizer, baseados nos resultados

gerais, que o Experimento 2 forneceu evidências favoráveis aos seguintes

aspectos discutidos nesta tese: (i) o pronome te é a forma que representa a

informação de 2SG por excelência no PB, o que se traduziu no teste de leitura

automonitorada em menores médias de tempo de leitura dos itens

relacionados a esse pronome; (ii) os pronomes lhe e o/a se mostraram como

formas que, embora tenham ativado a informação de 2SG no teste com uma

frequência consideravelmente alta, demandaram maior tempo de leitura dos

itens relacionados (no caso de lhe) ou propiciaram, em um maior número de

casos, a interpretação de 3SG (no caso de o/a).

Antes de encerrar o presente capítulo, cabe, ainda, tecer alguns

comentários, nos quais destacaremos as informações mais relevantes para a

tese obtidas a partir dos resultados do Experimento 2 bem como

sublinharemos os problemas e questões que suscitaram do referido

experimento.

5.9 Conclusão do capítulo

Em uma tentativa de aproximar o experimento de leitura

automonitorada, apresentado neste capítulo, ao experimento de julgamento

de cenas legendadas, discutido no capítulo anterior, arriscamos dizer que o

elevado índice de aceitação para sentenças com o clítico te, verificado nos

resultados a partir das legendas de filmes, está em consonância com as

médias de tempo de leitura mais baixas, atestadas nos resultados do

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experimento de leitura automonitorada. Recuperando mais uma vez nossa

hipótese teórica para explicar a permanência da forma te, argumentamos que

um elevado estágio de gramaticalização desse item no PB garante a sua

sobrevivência.

Como já vimos até aqui, te é a estratégia mais eficiente no acesso à

informação de 2SG. Junte-se a isso o fato de que tal acesso envolve baixo

custo de processamento, como evidenciaram os tempos de leitura discutidos

neste capítulo. Desse modo, sendo mais eficiente e menos custoso

cognitivamente, esse item parece estar mais disponível na memória dos

falantes, o que – na nossa perspectiva – justifica o alto índice de julgamentos

positivos que encontramos no Experimento 1. Essa “automatização” das

construções verbo-pronominais envolvendo a forma te nos leva a pensar que

isso seja o reflexo de um processo de gramaticalização, em que esse item passa

a atuar como um marcador da informação de segunda pessoa.

Se, novamente, os resultados foram bastante esclarecedores acerca do

processamento do pronome te, o mesmo não podemos dizer a respeito dos

resultados atinentes aos clíticos lhe e o/a. De tudo que discutimos neste

capítulo, o resultado que nos causa maior estranhamento é o índice

relativamente alto de ativação do referente de 2SG a partir de frases com o

clítico o/a. Os diversos estudos já realizados sobre o tema (DUARTE, 1986;

FREIRE, 2000; 2005; SOUZA, 2014; dentre outros) justificam o nosso

estranhamento.

Além disso, a ausência de diferenças significativas entre os índices de

interpretação da informação de 2SG relacionadas a lhe e a o/a também nos

leva a duvidar se esses resultados não teriam sido provocados por certas

limitações da técnica adotada. Não houve um controle preciso acerca do tempo

que os participantes gastaram para ler cada palavra das sentenças

experimentais. Como eles efetuaram essa leitura? Qual terá sido o elemento

mais fixado durante a visualização dos estímulos? Houve um efeito de

ambiguidade a partir dos nomes próprios presentes na frase inicial? Essas

questões nos conduziram, pois, a desenvolver e aplicar um terceiro

experimento, envolvendo uma técnica mais precisa em relação aos elementos

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fixados pelos participantes. Trataremos desse terceiro experimento no

próximo capítulo.

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6 EXPERIMENTO 3: LEITURA DE FRASES COM RASTREAMENTO

OCULAR

Neste terceiro e último capítulo acerca dos dados experimentais

relativos à percepção das formas clíticas de 2SG, descrevemos o experimento

de leitura de frases com rastreador ocular. Esse teste envolveu apenas

participantes do Rio de Janeiro e tem como objetivo principal pôr à prova, a

partir de uma técnica on-line, as hipóteses defendidas no trabalho. Em outras

palavras, pretendemos, utilizando a sofisticada tecnologia do eye tracker,

verificar se as respostas produzidas pelos indivíduos sinalizam positivamente

para uma diferença no processamento dos clíticos lhe e o/a em relação à forma

te, uma vez que assumimos que te passa por um processo de gramaticalização

no PB, passando a atuar como um marcador da informação de 2SG. Nos

parágrafos que seguem, detalhamos as informações mais relevantes sobre a

técnica, procurando destacar – tal como fizemos nos dois capítulos

precedentes – as variáveis em estudo, os materiais utilizados, os

procedimentos de aplicação e os resultados encontrados.

6.1 Desenho do experimento

Por volta de 1878/79, um oftalmologista francês chamado Émile

Javal36, ao observar alguns sujeitos durante a atividade de leitura, verificou

que os olhos humanos não se movem de forma contínua do começo até o final

de uma linha de texto. Em vez disso, ele notou que o olhar avança sobre o

texto através de pequenos saltos, entre os quais existem pequenas pausas.

Essa descontinuidade na dinâmica de leitura foi associada, tempos mais

tarde, a dificuldades que os indivíduos encontram durante o processamento

da informação linguística presente nos textos. Dessa forma, podemos dizer

que, grosso modo, as pesquisas que utilizam a técnica do rastreamento ocular

assumem como pressuposto que as variações observáveis no padrão do olhar

dos indivíduos em uma atividade de leitura estão fortemente relacionadas com

o processamento cognitivo das estruturas linguísticas presentes no texto. Esse

36 Os dados históricos aos quais fazemos alusão neste parágrafo foram extraídos de Luegi (2006).

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parece ser o posicionamento, por exemplo, de Luegi, Costa e Faria (2009). De

acordo com as autoras:

A análise dos padrões oculares durante a leitura sustenta-se no

pressuposto de que os movimentos dos olhos reflectem eventuais

dificuldades sentidas pelo leitor durante o processamento da

informação linguística. Se determinada estrutura ou condição causar maiores dificuldades ao leitor e se houver sobrecarga cognitiva

durante o processamento da informação, essas dificuldades serão

reflectidas nos padrões oculares, alterando-os. (LUEGI; COSTA;

FARIA, 2009, p.63)

Forster (2017) faz afirmação parecida, ao tratar da lógica da técnica do

rastreamento ocular:

Parte dos trabalhos que usam o rastreamento ocular no âmbito da pesquisa cognitiva investigam a influência de informação top-down,

dentre as quais se inclui possivelmente informação de natureza

linguística, no comportamento oculomotor. Esses trabalhos são

baseados na pressuposição de que os movimentos oculares são

reflexos do estado cognitivo de um indivíduo em um determinado

momento e, por isso, poderiam nos dizer como e quando certas informações são processadas. Pressupõe-se que, ao direcionar o olhar

para um determinado ponto, o sujeito direciona também seus recursos

cognitivos a ele com vistas a processar informações nele contidas ou a

ele relacionadas. (FORSTER, 2017, p. 623)

A formalização desse pressuposto é atribuída a Just e Carpenter (1980).

Esses pesquisadores realizaram um estudo de rastreamento de leitura para a

língua inglesa e observaram, dentre outras coisas, que os participantes

fixavam por mais tempo palavras menos frequentes. Além disso, eles

perceberam também que a frequência e o tamanho das palavras que

precediam ou sucediam uma determinada palavra não influenciava a duração

do olhar nesta, de modo que seria possível associar o tempo de leitura

registrado ao processamento da palavra em foco. A partir da correlação

positiva detectada entre complexidade do material linguístico e duração das

fixações e dos tempos de leitura, Just e Carpenter (1980) propuseram dois

princípios para o estudo do movimento dos olhos em tarefas de leitura: o

Princípio da Imediaticidade (immediacy assumption) e Princípio de Ligação

Olho-Mente (eye-mind assumption).

O Princípio de Imediaticidade postula que o processamento da

informação lida é imediato. Dessa forma, segundo Just e Carpenter (1980, p.

330), “(...) um leitor tenta interpretar cada palavra lexical assim que ela é

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201

encontrada, mesmo correndo o risco de fazer suposições que às vezes se

revelam erradas”37. Por interpretação, os autores compreendem o

“processamento em vários níveis, tais como a codificação da palavra, a escolha

do seu significado, atribuição ao seu referente e a definição do seu status na

frase e no discurso”38. Correlacionado com este, aparece o Princípio de Ligação

Olho-Mente, segundo o qual “(...) o olho permanece fixado em uma palavra

enquanto ela estiver sendo processada”39 (JUST; CARPENTER, 1980, p. 330).

Por essa lógica, os autores depreendem que “(...) o tempo necessário para

processar uma palavra recém-fixada é indicado diretamente pela duração do

olhar”40.

Embora subjaza ao raciocínio básico das pesquisas com monitoramento

ocular, o Princípio de Ligação Olho-Mente precisa ser relativizado. Isso porque,

segundo Forster (2017, p. 625), “(...) o local e a duração das fixações, em certas

circunstâncias, pode não coincidir exatamente com o locus e com a duração

do processamento cognitivo, conforme sugere a versão forte da eye-mind

assumption”. O autor defende essa relativização pautando-se nos tipos de

atenção visual, que, segundo ele, pode ser patente ou latentemente

direcionada:

(...) podemos alocar nossa atenção em um ponto do campo visual,

orientando nosso olhar a ele – atenção patente (overt attention) – ou podemos fazê-lo de maneira menos transparente, alocando recursos

cognitivos nesse ponto sem dirigir nosso olhar a ele – atenção latente

(covert attention). Em função disso, é possível a dissociação entre o

locus do processamento cognitivo e o locus de fixação. (FORSTER,

2017, p. 625)

Diante dessa questão, parece-nos que o mais adequado é interpretar os

dados provenientes de rastreamento ocular antes como evidências do que

como provas absolutas acerca da correlação entre complexidade linguística e

tempo de leitura elevado. Em outras palavras, não consideramos o Princípio

37 “(…) a reader tries to interpret each content word of a text as it is encountered, even at the expense of making guesses that sometimes turn out to be wrong”. 38 “Interpretation refers to processing at several levels such as encoding the word, choosing

one meaning of it, assigning it to its referent, and determining its status in the sentence and

in the discourse”. 39 “(…) the eye remains fixated on a word as long as the word is being processed”. 40 “So the time it takes to process a newly fixated word is directly indicated by the gaze duration”.

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de Ligação Olho-Mente deterministicamente, tal como postularam Just e

Carpenter (1980), mas sim analogisticamente, a exemplo de estudos como os

de Posner (1980), Posner et al. (2014) e de Wright e Ward (2008). Além disso,

com a possibilidade concreta de que outras variáveis interfiram nos resultados

de monitoramento ocular, cresce a necessidade de uma elaboração detalhada

e rigorosa do projeto experimental envolvendo a referida técnica.

Para a concepção de um projeto experimental envolvendo o

rastreamento ocular, algumas informações relativas à visão humana precisam

ser consideradas (visto que os rastreadores e os dados por eles produzidos são

projetados a partir da fisiologia do olho humano). Segundo Luegi, Costa e

Faria (2009), existe, na nossa visão, uma área que é abrangida quando

fixamos algum ponto no espaço; a essa área, denomina-se campo visual. Este,

por sua vez, divide-se em três regiões: (i) a região foveal, onde os raios de luz

incidem na região da retina conhecida como fóvea; (ii) a região parafoveal,

onde os raios de luz incidem na região da parafóvea; (iii) a região periférica,

onde os raios incidem na região externa à parafóvea (cf. Figura 6.1 ).

Figura 6.1 – Regiões do campo visual do olho humano.

(Fonte: http://eyetracking.me/?page_id=9)

Dessas três regiões, a mais importante para os estudos de

monitoramento ocular é a que corresponde à região da fóvea, pois é onde a

imagem do objeto focalizado é projetada, além de ser a zona com maior grau

de precisão no processamento de detalhes. Assim, à medida que a imagem

projetada se afasta do centro da fóvea, a nitidez dessa imagem se reduz

gradativamente. De acordo com Luegi, Costa e Faria (2009, p. 67), no que

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203

tange à extração de informações referentes à leitura, duas zonas são realmente

úteis: a zona foveal e parafoveal, “que criam duas regiões de extracção de

informação: a zona perceptiva, correspondente à soma da região foveal e

parafoveal, e a zona de identificação da palavra, que corresponde à região

foveal”.

A partir dessa informação, compreendemos, pois, a própria dinâmica de

movimentação do globo ocular humano, regida por dois mecanismos

fisiológicos básicos: as sacadas e as fixações. Em sentido amplo, as sacadas

correspondem aos “saltos” realizados durante a leitura (observados por Émile

Jamal no século XIX), enquanto que as fixações correspondem às pequenas

paradas sobre palavras específicas de uma determinada frase.

As sacadas são movimentos rápidos e balísticos, que podem ser

reflexivos ou voluntários e ocorrem de 3 a 4 vezes por segundo e tem

durabilidade de 10 a 100 milissegundos (cf. Richardson; Spivey, 2004;

Martinez-Conde; Macknik; Hubel, 2004 apud FORSTER, 2017, p. 618).

Acredita-se que, durante os movimentos sacádicos, a visão seja praticamente

suprimida. Consoante Forster (2017), a função desse tipo de movimento é

direcionar a fóvea para um determinado ponto, a fim de captar com maior

acuidade informações visuais. Além disso, segundo Irwing (2004 apud

FORSTER, 2017, p. 619), existem evidências de que ocorre processamento de

informações durante um movimento sacádico, tais como o reconhecimento e

a identificação de palavras anteriormente fixadas.

As fixações consistem em curtos períodos em que o olhar se encontra

parcialmente estacionado sobre uma determinada imagem. A informação

visual é analisada durante as fixações, através da região foveal. As fixações

possibilitam, também, a seleção de porções de estímulo visual para o

processamento. Além disso, a informação externa à porção selecionada pelo

campo visual ligado à fóvea permite que, durante a fixação, seja selecionado o

alvo para a sacada seguinte (Irwing, 2004 apud FORSTER, 2017, p. 621).

Tanto as sacadas quanto as fixações apresentam variabilidade na

quantidade e na durabilidade, a depender do tipo de estímulo visual. Forster

(2017) afirma que o número de sacadas na leitura tende a ser menor em textos

mais familiares para o leitor. As fixações, por sua vez, podem durar, em média,

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de 200 a 300 milissegundos. Esse número pode se alterar bastante de acordo

com a tarefa desempenhada pelos sujeitos. A seguir, reproduzimos uma tabela

presente no estudo de Rainer (1998, p. 373), com a média de duração da

fixação e do comprimento da sacada em tarefas visuais envolvendo a língua

inglesa:

Tarefa Média de

duração da

fixação (ms)

Média do

comprimento da

sacada (graus)

Leitura silenciosa 225 2 (cerca de 8 caracteres)

Leitura oral 275 1,5 (cerca de 6

caracteres)

Busca visual 275 3

Percepção de cena 330 4

Leitura de música 375 1

Datilografia 400 1 (cerca de 4 caracteres)

Tabela 6.1 – Média aproximada de duração da fixação e do comprimento da sacada em

diferentes tarefas visuais. As medidas têm como referência a língua inglesa.

(Adaptado de RAINER, 1998, p. 373)

No âmbito dos estudos psicolinguísticos, verificamos que, dentre o

conjunto de informações capturadas pelos rastreadores oculares, as medidas

relativas às fixações são as mais utilizadas nas análises de processamento

linguístico, especificamente o número e a duração das fixações em um dado

estímulo. Forster (2017) aponta que ambas as variáveis dependentes são,

geralmente, associadas

(...) à alocação de recursos cognitivos e, em certas circunstâncias, a

um aumento da carga de processamento cognitivo, de forma que é

possível inferir, por exemplo, na comparação entre condições, que

aquelas correlacionadas a um número maior ou uma duração maior das fixações estariam associadas à maior dificuldade de

processamento” (Holmqvist et al, 2011, p. 381-383; 412-415).

(FORSTER, 2017, p. 626)

As sacadas também são utilizadas, ainda que em menor escala, como

medidas de análise nos estudos linguísticos. Um tipo de medida particular

que pode ser apreciado é o número de sacadas regressivas. Embora o esperado

e mais frequente seja as sacadas progressivas, que avançam nas linhas de um

texto, da esquerda para a direita (no caso de línguas como o inglês e o

português), o olhar humano, durante a execução de tarefas como a leitura,

também retrocede em certa quantidade (10% a 15% das sacadas, segundo

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Rayner e Clifton Jr., 2009 apud FORSTER, 2017, p. 628), ou seja, produz

sacadas regressivas. Um índice elevado de sacadas regressivas costuma ser

interpretado como evidência de dificuldade na leitura dos estímulos. Logo, alta

incidência de sacadas regressivas tende a ser vista como reflexo de maior

carga de processamento.

No que se refere à dinâmica de pesquisa com rastreamento ocular,

temos as seguintes etapas: a partir da detecção dos direcionamentos do olhar

dos participantes, os sistemas de rastreamento traduzem as informações

coletadas em coordenadas com valores para os eixos x e y em relação à tela

do computador, em função do tempo; com base nesses dados, o pesquisador

pode extrair várias medidas, que serão adotadas como variáveis dependentes

do experimento; ao assumir o pressuposto de que os movimentos dos olhos se

correlacionam com processos cognitivos, o pesquisador pode traçar

conclusões acerca da natureza e do curso temporal de processos cognitivos

atuantes na realização da tarefa experimental, tomando como evidência

empírica os padrões de comportamento oculomotor analisados (cf. FORSTER,

2017).

Quanto às vantagens e limitações que caracterizam a técnica de

rastreamento ocular, listamos, a seguir, algumas citadas por Forster (2017),

começando pelas vantagens:

- precisão na captura do processamento on-line: o rastreador permite aos

pesquisadores coletar de maneira contínua as amostras de dados referentes

ao posicionamento do olhar dos participantes, contemplando todo o período

de observação do estímulo. Com isso, é possível verificar as alterações de

comportamento visual provocadas por cada elemento linguístico nos

participantes, o que fornece aos pesquisadores dados de processamento on-

line muito precisos;

- baixo grau de volição envolvido: o comportamento dos movimentos oculares

é, na maioria dos casos, um ato involuntário. Por essa razão, o controle

consciente do participante quanto às suas reações na tarefa realizada é

mínimo;

- menor grau de invasibilidade: atualmente, a maioria dos equipamentos

existentes permite que os experimentos com rastreador sejam menos

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invasivos para os participantes (evitando, por exemplo, fadiga e desconfortos

físicos). Isso faz com que o tempo de preparação para a execução da tarefa

também seja menor;

- tarefa mais imediata: como os participantes não precisam realizar nenhuma

tarefa adicional (p. ex., apertar uma tecla para ler os estímulos ou responder

a uma pergunta), os comportamentos e reações registrados são mais diretos,

isto é, não sofrem a interferência de tarefas concomitantes;

- integralidade dos estímulos: nas tarefas de leitura, não há necessidade de

que os estímulos sejam segmentados e apresentados aos pedaços, como ocorre

em outras técnicas;

- detalhamento dos eventos de leitura: com o rastreamento ocular, é possível

analisar dados relativos à leitura dos estímulos de maneira discreta. O

pesquisador pode, por exemplo, saber o tempo exato que os participantes

despenderam para ler cada palavra de uma frase;

- validade ecológica relativa: como primeira desvantagem, está o fato de os

experimentos com rastreador ocular não refletirem as condições perfeitamente

naturais de processamento, o que exige certa relativização quanto à validade

ecológica dos dados observados;

- alto custo financeiro: talvez a maior limitação seja justamente o custo dos

equipamentos e softwares necessários para o rastreamento do olhar. A maioria

dos materiais tem um valor elevado, o que explica, por exemplo, o fato de

inúmeros laboratórios de linguística experimental no Brasil não conduzirem

pesquisas com essa técnica.

Devido ao último ponto destacado acima, os trabalhos com a técnica do

rastreamento ocular desenvolvidos no Brasil ainda são escassos, se

comparados àqueles que empregam outras técnicas experimentais. Forster

(2017) cita alguns estudos mais recentes, produzidos no país, dentre os quais

mencionamos aqui o trabalho de Maia (2008), que analisou os níveis de

processamento a partir da observação de imagens, e as investigações

realizadas no âmbito da referência pronominal: Leitão, Ribeiro e Maia (2012),

acerca da Penalidade do Nome Repetido, e Teixeira, Fonseca e Soares (2014),

a respeito do pronome nulo. Em relação aos fenômenos estudados com o

monitoramento ocular, verificamos que os pesquisadores têm investigado

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estritamente a referência pronominal de 3SG, não havendo, portanto, relatos

experimentais com essa técnica envolvendo formas pronominais de 2SG.

No experimento de leitura de frases, que passaremos a delinear na

próxima subseção, assumimos a forma não determinística da hipótese de Just

e Carpenter (1980), uma vez que buscaremos relacionar possíveis diferenças

nos tempos de fixação dos participantes nas áreas contendo os clíticos de 2SG

com disparidades na demanda de esforço cognitivo para processá-los

linguisticamente. Partindo da premissa de que as formas analisadas nesta

tese apresentam dissimilaridades estruturais, funcionais e cognitivas (fato que

explica os padrões de frequência atestados pelos estudos de corpora),

esperamos que os resultados obtidos através do monitoramento ocular dos

participantes forneçam evidências on-line – isto é, extraídas do momento em

que os falantes estão processando os itens experimentais em questão –

favoráveis às nossas hipóteses, sobretudo à hipótese de gramaticalização da

forma te.

Utilizamos, neste teste, essencialmente os mesmos itens materiais

construídos para o experimento de leitura automonitorada. Entretanto, como

será mostrado na sequência, realizamos algumas modificações a fim de

ajustá-los à técnica do rastreamento. Nosso intuito ao preservar os mesmos

estímulos experimentais é, dentre outros, tornar os resultados obtidos

diretamente comparáveis com o que encontramos a partir do Experimento 2.

Dessa maneira, acreditamos que, se nossas hipóteses estiverem na direção

correta, os dados de ambos os testes revelarão certa complementaridade: os

padrões de fixação do olhar sobre as frases que trazem os clíticos de 2SG

poderão fornecer evidências mais consistentes para as interpretações feitas

acerca das médias de tempo de leitura verificadas no Experimento 2.

De um modo mais preciso, buscamos demonstrar, por meio dos dados

de rastreamento ocular, que o clítico te é a forma mais gramaticalizada de

representação da 2SG no PB. Sendo amplamente aceita no teste de julgamento

e tendo registrado os menores tempos de leitura do referente na tarefa de

leitura automonitorada, a previsão em torno dessa forma pronominal agora é

que ela registre número e quantidade de fixações substancialmente menores

em comparação com as formas lhe e o/a. Se essa previsão for confirmada,

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208

teremos então mais uma forte evidência experimental de que o clítico te seria

a forma dêitica de representação da 2SG mais arraigada na gramática e, por

essa razão, estaria mais disponível para os usos efetivos dos falantes.

A seguir, destacamos as questões que motivaram a realização do

Experimento 3, pontuamos as hipóteses diretamente testadas nele e listamos

as previsões postuladas em torno da tarefa de leitura de frases com

rastreamento ocular.

6.2 Hipóteses e previsões

Pretendemos explorar, com base no experimento de leitura de frases

com rastreamento ocular, as seguintes questões:

(i) É possível estabelecer uma relação positiva entre a frequência de

ocorrência dos clíticos te, lhe e o/a atestada em corpora e o esforço

cognitivo necessário para o processamento da informação de 2SG?

(ii) O que evidenciam os padrões de processamento on-line dos falantes em

relação aos clíticos verificados durante a leitura de frases?

As hipóteses que lidam com as questões anteriores e que serão

submetidas à prova no experimento são:

(i) Há uma relação biunívoca entre a distribuição de frequência das formas

clíticas em dados de corpora e o esforço cognitivo envolvido, na medida

em que o clítico te, altamente frequente nos dados de uso, demanda

menor custo de processamento, ao passo que o clítico o/a, raramente

atestado pelas pesquisas etnográficas (mesmo em dados de língua

escrita), envolve maior esforço cognitivo.

(ii) Antes de se tratar de uma explicação circular, essa relação evidencia, na

realidade, as diferenças morfossintáticas e semânticas existentes entre

esses clíticos, que se refletem tanto nos dados de uso (que constituem o

produto da codificação gramatical) quanto nos dados de compreensão

(que captam o processo on-line da decodificação gramatical);

(iii) Os padrões de processamento on-line obtidos a partir da técnica de

rastreamento ocular são capazes de aferir diferenças de comportamento

dos participantes quanto ao tipo de clítico presente na frase, revelando

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209

que as formas te, lhe e o/a não são processadas da mesma maneira

durante a execução da tarefa de leitura. Desse modo, os dados do eye-

tracking fornecem evidências que não podem ser atestadas em métodos

menos diretos.

Assim sendo, colocamos como previsões de resultados para o

Experimento 3 que:

(i) Os participantes fixarão em menor número e por menos tempo as frases

com o clítico te. Além disso, efetuarão preferencialmente a leitura de 2SG

dos referentes assinalados nos enunciados;

(ii) Embora também venham a efetuar a leitura de 2SG para a maioria dos

referentes assinalados nos enunciados experimentais, os participantes

fixarão em maior quantidade e por maior intervalo de tempo as frases

com o clítico lhe;

(iii) As frases com o clítico o/a também deverão registrar maior quantidade e

maiores tempos de duração de fixações do olhar. Contudo, nesses

enunciados, os participantes não efetuarão uma leitura

predominantemente de 2SG para os referentes destacados.

Na sequência, passamos à descrição da variável independente

analisada, as condições experimentais projetadas e as variáveis dependentes

fornecidas pelo experimento com a técnica do monitoramento ocular.

6.3 Variáveis e condições

No presente experimento, temos um design do tipo 3, ou seja, uma

variável independente (tipo de clítico) com três níveis:

(a) TIPO DE CLÍTICO: te, lhe ou o/a

Tal qual procedemos na elaboração do Experimento 2, neutralizamos a

possível interferência da variável tipo de interação nos itens experimentais

utilizados. Com isso, cada condição experimental corresponde a um dos níveis

da variável tipo de clítico. Vejamos, a seguir, exemplos dessas condições

experimentais:

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210

(a) Condição CLÍTICO TE

Ex.: Paulo garantiu para Aline na frente de Ana: eu já te indiquei ao cargo.

PERGUNTA: Paulo já indicou Aline ao cargo?

(b) Condição CLÍTICO LHE

Ex.: Paulo garantiu para Aline na frente de Ana: eu já lhe indiquei ao cargo.

PERGUNTA: Paulo já indicou Aline ao cargo?

(c) Condição CLÍTICO O/A

Ex.: Paulo garantiu para Aline na frente de Ana: eu a indiquei para o cargo41.

PERGUNTA: Paulo indicou Aline para o cargo?

Uma vez que o experimento com o rastreador ocular foi conduzido

apenas com falantes do estado do Rio de Janeiro, não houve a necessidade de

controlar a variável estado de origem. Evidentemente, perguntamos, antes da

aplicação do teste, a todos os voluntários se eles haviam nascido e se viviam

dentro do estado.

As variáveis dependentes analisadas no Experimento 3 são: a resposta

das perguntas interpretativas, a duração das fixações do olhar e o número de

fixações do olhar nos segmentos críticos. Exibimos essas medidas abaixo:

(a) RESPOSTA DAS PERGUNTAS INTERPRETATIVAS: sim ou não

(b) DURAÇÃO DAS FIXAÇÕES DO OLHAR: em milissegundos (ms)

(c) NÚMERO DE FIXAÇÕES DO OLHAR NOS SEGMENTOS CRÍTICOS: média de ocorrências

As variáveis explicitadas em (b) e (c) foram extraídas do primeiro

template, isto é, a primeira tela com a qual os participantes tinham contato

(cf. seção 6.6, para maiores detalhes relativos à dinâmica do experimento).

Eles podiam ler os enunciados apresentados como estímulos por tempo

indeterminado (embora fossem instruídos a lê-los dentro do menor tempo

necessário para compreendê-los), enquanto o rastreador ocular registrava

automaticamente todas as fixações e sacadas realizadas. Em etapa posterior,

delimitamos, com auxílio do software do próprio equipamento utilizado, três

áreas críticas: área 1 – Clítico, área 2 – Clítico+Verbo e área 3 – Frase inteira.

Desse modo, os tempos de fixação e o número de fixações que serão reportados

na subseção 6.7 correspondem especificamente a essas três regiões da tela do

computador. A Figura 6.2 ilustra o primeiro template com uma das condições

experimentais e a sinalização das referidas áreas críticas:

41 Conforme explicamos em 5.6, as condições com o/a apresentam pequenos ajustes para compensar a diferença quanto ao número de caracteres que há entre os clíticos.

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211

Figura 6.2 – Template do enunciado com a forma clítica

e a sinalização das áreas críticas delimitadas.

Já a variável resposta das perguntas interpretativas foi obtida a partir

do segundo template visualizado pelos participantes. Nele, havia uma

pergunta diretamente relacionada com os referentes e clíticos que apareciam

no enunciado do primeiro template e dois retângulos de resposta, com as

opções “sim” e “não” (cf. a Figura 6.3). Os sujeitos eram orientados

previamente a responder à questão fixando simplesmente o olhar na direção

da alternativa que eles julgassem como sendo correta. Diferentemente do

primeiro, o template com a pergunta era exibido na tela do computador por

um período de 5 segundos e, após esse tempo, desaparecia automaticamente.

Figura 6.3 – Template com a pergunta interpretativa.

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212

Como esclarecemos no capítulo anterior, não havia uma “resposta certa”

para as perguntas. A configuração sintática dos enunciados nos permitia

verificar qual a leitura que os participantes efetuavam em relação aos clíticos.

Exemplificamos, a seguir, a lógica da tarefa:

(46) 1º Template: PAULO garantiu para ALINE na frente de ANA: eu a indiquei para o cargo.

2º Template: PAULO indicou ALINE para o cargo? [SIM] ou [NÃO]

SIM = o participante efetuou uma leitura de 2SG para o clítico a, ligando-o ao referente

nominal ALINE

NÃO = o participante efetuou uma leitura de 3SG para o clítico a, ligando-o ao referente

nominal ANA 42

Vejamos, na próxima subseção, o perfil dos participantes que se

voluntariaram para o experimento de leitura de frases com rastreamento

ocular.

6.4 Participantes

Participaram neste teste 30 sujeitos, todos declaradamente nativos do

estado do Rio de Janeiro. Apenas 5 dos voluntários eram do sexo masculino.

A média de idade dos participantes era de 23 anos de idade. Todos possuíam

ensino superior (completo ou em andamento) e, em sua maioria (28), são da

área de Letras, com exceção de um participante da área de odontologia e outro

da área de artes visuais.

6.5 Materiais

Construímos 30 enunciados experimentais, de modo que cada condição

correspondia a 10 itens diferentes. Esses estímulos foram organizados em 3

conjuntos, formados por 10 itens experimentais acompanhados de mais 20

itens distratores. Cada conjunto reunia duas condições experimentais, da

seguinte maneira:

(a) Conjunto 01: Condições CLÍTICO TE e CLÍTICO LHE - 10 experimentais + 20 distratoras

(b) Conjunto 02: Condições CLÍTICO LHE e CLÍTICO O/A - 10 experimentais + 20 distratoras

(c) Conjunto 03: Condições CLÍTICO TE e CLÍTICO O/A - 10 experimentais + 20 distratoras

42 Ou mesmo a um hipotético 4º referente, que estaria ausente do contexto construído no enunciado.

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213

Os 30 participantes foram divididos equanimemente em três grupos e

cada grupo visualizava os estímulos presentes em um dos conjuntos. Dessa

forma, os participantes do Grupo 01 liam 5 enunciados com o clítico te, 5

enunciados com o clítico lhe e 20 enunciados distratores; os participantes do

Grupo 02 eram expostos a 5 enunciados com o clítico lhe, 5 com o clítico o/a

e mais 20 distratores; os participantes do Grupo 03 visualizavam 5

enunciados com te, 5 com o/a e 20 distratores. Na prática, todos os 30 sujeitos

viram as mesmas frases, visto que a principal diferença entre os conjuntos era

o tipo de clítico utilizado. Por exemplo, as mesmas 5 frases vistas com o clítico

lhe pelo Grupo 01 apareciam com o clítico o/a para o Grupo 02 e com o clítico

te para o Grupo 03. Essa configuração por quadrado latino fez com que as

condições estivessem distribuídas dentre participantes (within subjects).

Os itens experimentais compreendiam duas orações em relação de

subordinação. A oração matriz construía-se em torno de um verbo dicendi e a

oração completiva atuava como o objeto direto desse verbo. O enunciado

representava, portanto, um discurso direto dentro do qual a oração completiva

correspondia à fala de um dos referentes da oração matriz. Os itens

experimentais utilizados na tarefa com o rastreador ocular foram os mesmos

que integraram o experimento de leitura automonitorada, descrito no capítulo

5. No Quadro 6.1, exibimos novamente os enunciados visualizados pelos

participantes nos diferentes grupos:

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214

ITENS EXPERIMENTAIS UTILIZADOS

Para as condições com te e lhe Para as condições com o/a

Rita revelou para Pedro na casa de José: Eu

lhe/te amava na escola.

Pergunta: Rita amava Pedro na escola?

Rita revelou para Pedro na casa de José: Eu

o amava na faculdade.

Pergunta: Rita amava Pedro na faculdade?

Bruna ligou para Luís no prédio de Hugo: Eu

lhe/te espero no mercado.

Pergunta: Bruna espera Hugo no mercado?

Bruna ligou para Luís no prédio de Hugo:

Eu o espero no restaurante.

Pergunta: Bruna espera Hugo no

restaurante?

Marcos propôs para Vera no celular de Laura:

Eu lhe/te encontro na estação.

Pergunta: Marcos encontra Vera na estação?

Marcos propôs para Vera no celular de

Laura: Eu a encontro no desembarque.

Pergunta: Marcos encontra Vera no

desembarque?

Lucas falou para Beth no evento de Olga: Eu

lhe/te convido para o show.

Pergunta: Lucas convida Olga para o show?

Lucas falou para Beth no evento de Olga:

Eu a convido para o baile.

Pergunta: Lucas convida Olga para o baile?

Paulo garantiu para Aline na frente de Ana:

Eu já lhe/te indiquei ao cargo.

Pergunta: Paulo já indicou Aline ao cargo?

Paulo garantiu para Aline na frente de Ana:

Eu a indiquei para o cargo.

Pergunta: Paulo indicou Aline para o

cargo?

João disse para Carla na presença de Marta:

Eu te/lhe perdoo pelos erros.

Pergunta: João perdoa Marta pelos erros?

João disse para Carla na presença de

Marta: Eu a perdoo pelas mentiras.

Pergunta: João perdoa Marta pelas

mentiras?

Rui avisou para Maria na festa de Paula: Eu

te deixarei em casa hoje.

Pergunta: Rui deixará Maria em casa hoje?

Rui avisou para Maria na festa de Paula:

Eu a deixarei em casa amanhã.

Pergunta: Rui deixará Maria em casa

amanhã?

Sônia prometeu para Aldo no carro de Davi:

Eu te/lhe ajudo com a prova.

Pergunta: Sônia ajuda Davi com a prova?

Sônia prometeu para Aldo no carro de Davi:

Eu o ajudo para a prova.

Pergunta: Sônia ajuda Davi para a prova?

Taís contou para Alex no noivado de Felipe:

Eu te/lhe conheci no colégio.

Pergunta: Taís conheceu Alex no colégio?

Taís contou para Alex no noivado de Felipe:

Eu o conheci na faculdade.

Pergunta: Taís conheceu Alex na

faculdade?

Sofia divulgou para Carlos na sala de Raul:

Eu te/lhe promovo ao emprego!

Pergunta: Sofia promove Raul ao emprego?

Sofia divulgou para Carlos na sala de Raul:

Eu o promovo para a vaga!

Pergunta: Sofia promove Raul para a vaga?

Quadro 6.1 – Enunciados utilizados como itens experimentais no Experimento 3.

Os enunciados distratores também seguiam o mesmo padrão sintático

dos enunciados experimentais. Os distratores não traziam, contudo, os três

nomes próprios na oração matriz nem um pronome clítico na oração

completiva que retomasse algum referente da oração matriz. A estrutura

dialógica bem como o tamanho das sentenças foi mantida nos dois tipos de

enunciado. Nas frases reproduzidas em (47-50), temos quatro itens distratores

vistos pelos participantes:

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215

(47) A juíza impôs ao advogado no término da sessão: Darei três dias à defesa.

PERGUNTA: A juíza deu à defesa três dias?

(48) Denise brigou com o pai no almoço de domingo: Quero viajar no feriado!

PERGUNTA: Denise quer viajar no feriado?

(49) Os operários exigiram do patrão na greve geral: Queremos reajuste salarial!

PERGUNTA: Os operários querem férias remuneradas?

(50) Igor discutiu com o médico na clínica do bairro: Marquei a consulta em abril!

PERGUNTA: Igor cancelou a consulta em abril?

Inscrevemos cada enunciado e pergunta interpretativa em um slide de

apresentação de PowerPoint, em fundo branco, com tamanho 25,4cm x

19,05cm. Esses slides foram salvos um a um como arquivos de pdf. Em

seguida, importamos esses arquivos – já com a configuração de templates –

para o programa TOBII Studio 2.3.2. Também utilizamos esta ferramenta para

programar a exibição dos templates no computador. A apresentação dos

enunciados foi semialeatória, visto que, na etapa de montagem do

experimento no computador, organizamos os templates de uma forma que os

participantes nunca iniciassem a tarefa visualizando um enunciado

experimental e nem vissem dois enunciados da mesma condição próximos um

do outro. O esquema a seguir ilustra a lógica de distribuição adotada:

DIST01 → DIST02 → EXP-TE01 → DIST03 → DIST04 → EXP-LHE01 → DIST05 → DIST06 ...

DIST = distratores

EXP-TE = experimental com clítico te

EXP-LHE = experimental com clítico lhe

Os procedimentos adotados na aplicação do teste de leitura de frases

com rastreamento ocular são explicitados na próxima subseção.

6.6 Procedimentos

O experimento de leitura de frases foi aplicado no mês de julho de 2017,

no Laboratório de Psicolinguística Experimental (LAPEX) da Faculdade de

Letras da UFRJ, sob a supervisão do professor Marcus Maia. Os participantes

liam as frases exibidas em um monitor de 23”, acoplado ao aparelho de

rastreamento ocular TOBII Studio 2.3.2. Antes de iniciar as tarefas relativas

ao teste, os participantes tinham seu olhar calibrado ao rastreador. Após

serem posicionados corretamente na cadeira, dentro da distância

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216

recomendada (entre 65 e 70 centímetros do aparelho), solicitava-se que eles

acompanhassem com os olhos uma pequena esfera vermelha que percorria

aleatoriamente o espaço da tela. Quando a esfera parava, os participantes

deviam fixar seu olhar no ponto em que ela estivesse. Com este procedimento,

era possível verificar se o rastreador está acompanhando corretamente os

movimentos oculares dos participantes (cf. Figura 6.4).

Figura 6.4 – Etapa de calibração do olhar do participante ao rastreador. As marcações em

verde sinalizam os pontos fixados na tela pelo participante no momento da calibração.

(Fonte: https://s3-eu-west-1.amazonaws.com/ppreviews-plos-725668748/1504942/preview.jpg)

Concluída a etapa de calibração, os sujeitos recebiam as instruções para

a realização da tarefa, que eram passadas oralmente, pelo pesquisador

responsável, e por escrito, na tela do computador. Antes do experimento de

fato, os participantes realizavam um treinamento, ainda na presença do

pesquisador, recebendo orientações mais específicas e sanando possíveis

dúvidas. O treino era composto por quatro enunciados, muito similares aos

itens do experimento. Na tela, as sentenças apareciam automaticamente, e os

participantes poderiam lê-las por tempo indeterminado (embora fosse

salientado pelo pesquisador que eles deveriam gastar somente o tempo

necessário para a compreensão dos enunciados). Em seguida, deveriam

apertar o botão F5 do teclado para chamar à tela a pergunta interpretativa. A

pergunta ficava exposta por um tempo máximo de 5 segundos e, depois disso,

desaparecia automaticamente. Para respondê-la, os participantes deveriam

apenas fixar uma das caixas de resposta que julgasse correta. As caixas, com

as opções “sim e “não”, situavam-se logo abaixo da pergunta. Após a resposta,

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217

surgia na tela um novo enunciado e o treino transcorria desse modo até o

final.

Ao concluir o treinamento, os participantes passavam por um novo

procedimento de calibração do olhar e, logo em seguida, começavam a

realização do experimento. Nessa fase, todos os sujeitos ficavam sozinhos na

sala do LAPEX, com isolamento acústico necessário à concentração na

atividade. Os participantes demoravam, em média, 7 minutos para terminar

a tarefa, considerada de simples execução e de fácil entendimento pelos

mesmos.

Quanto à apresentação dos estímulos, eles apareciam na tela em meio

escrito, na cor preta, em fundo branco na tela do monitor acoplado ao

rastreador ocular. Como formatação, utilizamos a fonte Courier New, tamanho

14, centralizado. Os enunciados ocupavam uma única linha na tela. A

dimensão dos segmentos era a mesma descrita para o Experimento 2: o

enunciado continha 24 sílabas e a pergunta interpretativa, 11 sílabas.

Além disso, os itens experimentais relacionados à condição CLÍTICO O/A

apresentavam uma sílaba a mais. A razão disso, conforme também já foi

explicado para o Experimento 2, é que o clítico o/a compreende um único

sinal gráfico. Isso poderia enviesar o tempo de leitura dessa condição em

comparação com as demais. Tal acréscimo não prejudicava a leitura geral das

frases, conforme ilustramos no exemplo a seguir:

(51)

a. Mar|cos| pro|pôs| pa|ra| Ve|ra| no| ce|lu|lar| de| Lau|ra: → 15 sílabas

Eu| lhe| en|con|tro| na| es|ta|ção. → 9 sílabas

b. Mar|cos| pro|pôs| pa|ra| Ve|ra| no| ce|lu|lar| de| Lau|ra: → 15 sílabas

Eu| te| en|con|tro| na| es|ta|ção. → 9 sílabas

c. Mar|cos| pro|pôs| pa|ra| Ve|ra| no| ce|lu|lar| de| Lau|ra: → 15 sílabas

Eu| a| en|con|tro| no| de|sem|bar|que. → 10 sílabas

Como podemos ver nos enunciados do exemplo em (51), para as versões

com os clíticos lhe e te, incluímos uma palavra com três sílabas na frase com

o pronome (“estação”). Já na versão com o clítico a, substituímos a palavra

“estação” por outra, com 4 sílabas e semanticamente equivalente

(“desembarque”).

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218

6.7 Resultados

Uma vez aplicado aos 30 sujeitos, o experimento de leitura com

rastreador ocular forneceu dados relativos às variáveis dependentes

necessárias para investigarmos o efeito do tipo de clítico sobre os padrões

oculomotores dos participantes durante o teste. Nas próximas subseções,

apresentaremos os resultados segundo as variáveis dependentes

consideradas. Começamos com a medida off-line, a resposta da pergunta

interpretativa, segundo a qual é possível capturar os índices de interpretação

da informação de 2SG na memória dos participantes, isto é, com que

frequência o participante fixou na tela do computador a opção relacionada à

leitura de 2SG a partir do clítico.

6.7.1 Respostas às perguntas interpretativas

Na Figura 6.5, temos o gráfico que sumariza com que frequência os

participantes do experimento acessaram o referente marcado como 2SG nos

enunciados experimentais no momento de responder à pergunta

interpretativa:

Figura 6.5 – Índices de interpretação da informação de 2SG na tarefa de leitura com

rastreamento ocular (em %).

Semelhantemente ao resultado obtido a partir da mesma variável

dependente no experimento de leitura automonitorada, vemos que os

enunciados com a forma pronominal te foram os que mais ativaram a

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219

interpretação do referente de 2SG, em 89% das respostas registradas. Em

segundo lugar, aparecem os enunciados que traziam o clítico lhe, cujo

percentual de interpretação da informação de 2SG foi de 73%. Em terceiro e

último lugar, encontramos os enunciados que envolviam o clítico o/a como

sendo os que menos conduziram à interpretação de 2SG, com 49% de índice

de interpretação da informação de 2SG. Ao procedermos às análises de

estatística inferencial, utilizando o teste de qui-quadrado, verificamos que,

neste caso, todas as diferenças nos índices de interpretação foram

significativas (te-lhe: χ²(1) = 8,31 p < 0,01; te-o/a: χ²(1) = 37,40 p < 0,001; lhe-

o/a: χ²(1) = 12,10 p < 0,001).

Passemos, na sequência, às variáveis dependentes on-line. No caso do

experimento em questão, tratamos da média de duração dos tempos de fixação

do olhar e do número de fixações registradas nas áreas críticas estabelecidas

nas frases.

6.7.2 Médias de duração dos tempos de fixação do olhar

Em relação à variável duração dos tempos de fixação do olhar,

analisamos os resultados relativos às três áreas críticas que delimitamos na

etapa de extração dos dados: (i) a área onde se localizava o pronome clítico,

(ii) a área que compreendia o pronome clítico junto com o verbo; (iii) a frase

inteira da condição. Vejamos a Figura 6.6, que traz os resultados referentes à

primeira área crítica estabelecida:

Figura 6.6 – Tempo médio de duração da fixação do olhar

na área crítica do pronome clítico (ms).

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220

Conforme ilustram os valores do gráfico, a forma clítica fixada por mais

tempo, em média, foi o pronome lhe, contabilizando 469 milissegundos. A área

do clítico te nos enunciados foi a segunda mais fixada, em termos de tempo

de duração, computando um valor médio de 414 milissegundos. Já a área em

que se apresentava o clítico o/a na frase foi a menos fixada em relação ao

tempo de duração, correspondendo ao valor médio de 405 milissegundos.

Entretanto, cabe destacar que, ao aplicarmos o teste ANOVA para averiguar a

significância das diferenças observadas, nenhuma delas se mostrou

estatisticamente relevante: não houve efeito principal, relativo à variável tipo

de clítico (F(2,178) = 1,50 p > 0,05), nem um valor de probabilidade

significativo na comparação binária entre os níveis da variável (te-lhe: t(89) =

1,61 p > 0,05; te-o/a: t(89) = 0,21 p > 0,05; lhe-o/a: t(89) = 1,48 p > 0,05).

Interpretamos essa ausência de significância como algo relacionado à

própria natureza do experimento, em vez de uma evidência de que o tipo de

clítico não interfira nos padrões de fixação do olhar do participante. Dito de

outro modo, é preciso lembrar que as formas em estudo constituem palavras

funcionais e que tendem a não serem fixadas fovealmente. De acordo com

Luegi, Costa e Faria (2009, p.68) “as palavras não lexicais ou funcionais,

sobretudo as mais curtas, não são fixadas, o que não significa que não sejam

processadas”. Dessa maneira, uma vez que estamos tratando de palavras

funcionais monossilábicas, é bastante plausível que os participantes tenham

fixado, mais frequentemente, o verbo que sucedia os clíticos, capturando

visualmente os pronomes na zona perceptiva (que engloba a região parafoveal

da visão).

Assumindo que os clíticos não tenham sido satisfatoriamente fixados no

experimento – como sugerem os curtíssimos tempos de fixação registrados,

todos em torno de 400 milissegundos –, dada a própria natureza linguística

desses itens, acreditamos que os resultados relativos à primeira área crítica

estabelecida não foram suficientemente informativos por conta disso. Sendo

assim, coube, então, analisarmos a segunda área crítica estabelecida, que

compreendia a construção pronome clítico+verbo. Os resultados com as

médias de tempo de fixação são apresentados na Figura 6.7:

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221

Figura 6.7 – Tempo médio de duração da fixação do olhar

na área crítica do clítico+verbo (ms)

De imediato, já percebemos que as diferenças entre os índices dessa

área crítica são mais visíveis, especialmente no que se refere à condição com

o pronome te. Notamos que as fixações na construção do tipo te+verbo

registraram, em média, menor tempo de duração, o que se traduz no valor de

836 milissegundos. Quanto às construções lhe+verbo e o/a+verbo,

percebemos tempos de fixação mais elevados: 1117 milissegundos para a

primeira e 1104 milissegundos para a segunda. Essas médias sugerem que os

participantes necessitaram fixar a referida área crítica por menos tempo

quando nela havia o clítico te, fato que nos permite pensar que esse pronome

facilitava mais a identificação de seu referente do que os outros dois.

Aplicando o teste ANOVA, constatamos que, para a área crítica clítico+verbo,

houve efeito principal da variável tipo de pronome (F(2,198) = 7,68 p < 0,001).

Além disso, a diferença existente entre o tempo de fixação da construção

te+verbo em relação ao das outras duas foi apontada como significativa (te-

lhe: t(99) = 3,90 p < 0,001; te-o/a: t(99) = 3,41 p < 0,001). Contudo, a análise

de variância indicou que as diferenças entre as médias de tempo de fixação

das construções lhe+verbo e o/a+verbo não são estatisticamente significativas

(lhe-o/a: t(99) = 0,14 p > 0,05).

Além das duas áreas críticas já comentadas, controlamos, ainda, o

tempo de duração das fixações na frase inteira que era apresentada aos

participantes. Os resultados aparecem organizados em forma de gráfico na

Figura 6.8 seguinte:

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222

Figura 6.8 –Tempo médio de duração da fixação do olhar na frase inteira (ms).

Conforme podemos verificar, as médias indicam que o tempo médio das

fixações nas frases que continham o pronome te era de 5556 milissegundos,

sendo a menor média em comparação com as demais. Os enunciados que

traziam o pronome lhe tiveram tempo médio de fixação de 6013 milissegundos.

Já as frases que apresentavam o clítico o/a foram as que computaram o tempo

médio de fixação mais elevado: 6955 milissegundos. Novamente, baseando-

nos nas diferenças das médias em foco, podemos conjecturar que a presença

da forma te nos enunciados tornava a leitura mais eficaz em termos de esforço

cognitivo, o que se traduziu em um menor tempo médio de fixação do olhar.

O resultado do teste ANOVA, para essa área crítica, também apontou um efeito

principal significativo da variável tipo de clítico (F(2,198) = 6,77 p < 0,01). Na

análise por pares, o teste-t sinalizou como significativas as diferenças entre as

médias das frases com o/a tanto em relação às frases com te (t(99) = 3,80 p <

0,001) quanto em relação às frases com lhe (t(99) = 2,25 p < 0,05). Já a

diferença entre as médias das frases envolvendo te em comparação com as

frases que traziam lhe não se mostrou estatisticamente significativa (t(99) =

1,22 p > 0,05).

Contemplaremos, agora, a outra medida on-line obtida a partir do

experimento com rastreador ocular: o número de fixações. Por meio dessa

variável dependente, podemos analisar quantas vezes os participantes

fixaram, em média, as áreas críticas consideradas.

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223

6.7.3 O número de fixações do olhar

A Figura 6.9, abaixo, apresenta os resultados da média de fixações

realizadas pelo participante em relação à área crítica em que estava situado o

clítico:

Figura 6.9 – Média de fixações na área crítica do pronome clítico.

Os dados presentes no gráfico acima ilustram que, dentre as três formas

clíticas estudadas, a área crítica que continha a forma lhe foi a que registrou,

em média, o maior número de fixações: 2,03. A área crítica nas condições que

traziam o clítico te computou média de 1,52 fixação. Já a área crítica nas

frases em que aparecia o clítico o/a registrou uma média de 1,31 fixação.

Segundo os resultados estatísticos do teste ANOVA, houve efeito do tipo de

pronome sobre as diferenças nas médias registradas (F(2,178) = 12,4 p <

0,001). Através do teste-t por pares, verificamos, ainda, que são significativas

as diferenças das médias de lhe em comparação com te (t(89) = 3,25 p < 0,01)

e com o/a (t(89) = 4,62 p < 0,001). Em contrapartida, as diferenças entre as

médias de fixações de te e o/a não foram estatisticamente relevantes (t(89) =

1,60 p > 0,05).

Assim como procedemos na apreciação da variável dependente tempo de

fixação, também em relação ao número de fixações não iremos interpretar as

diferenças observadas a um efeito advindo do tipo de clítico, mas sim a uma

particularidade do experimento. Acreditamos que a média de fixações mais

elevada nas condições com o clítico lhe seja decorrente do tamanho do

estímulo visual (uma palavra com 3 caracteres), frente ao tamanho dos

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224

estímulos visuais relacionados a te (2 caracteres) e, principalmente, o/a (1

caractere). O tamanho desse clítico possivelmente fez com que a área crítica

em questão tenha sido mais fixada nas condições em que ele aparecia, o que

nos leva a pensar que a diferença no valor da média não esteja tão

intimamente ligada a questões de complexidade cognitiva, sobretudo em

comparação com o clítico o/a. Essa questão será retomada nos próximos

resultados a serem descritos.

Na Figura 6.10, temos as médias de fixações da área crítica que

compreendia a construção formada a partir do pronome clítico+verbo:

Figura 6.10 – Média de fixações na área crítica clítico+verbo.

Ao abordarmos a área crítica em que, muito provavelmente, o clítico era

percebido (através da zona parafoveal), verificamos que a construção te+verbo

foi a que registrou o menor número de fixações, com média de 3,79. Já a

construção o/a+verbo, nas frases em que aparecia, contabilizou um valor

médio de 4,27 fixações. A construção lhe+verbo computou o número de

fixações mais elevado, com média de 4,73. No entanto, a partir da análise

estatística, pudemos verificar que nem todas essas diferenças existentes entre

as médias das condições são significativas. A variável tipo de pronome

mostrou-se mais uma vez relevante (F(2,198)=4,01 p>0,05) no resultado do

teste ANOVA. Na aplicação do teste-t, contudo, verificamos que apenas a

diferença entre as médias de fixação das construções te+verbo e lhe+verbo

foram estatisticamente significativas (t(99)=3,04 p<0,01). As diferenças entre

as médias de fixação de o/a+verbo e te+verbo (t(99)=1,53 p>0,05), tal qual

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entre o/a+verbo e lhe+verbo (t(99)=1,25 p>0,05), não foram apontadas como

relevantes estatisticamente.

Ainda em relação ao número de fixações, examinamos essa medida on-

line em relação à frase inteira que era lida pelos participantes na tela do

computador. Os valores das médias registradas são apresentados na Figura

6.11 que segue:

Figura 6.11 – Média de fixações na frase inteira.

Ao considerarmos a frase inteira, percebemos que os enunciados que

traziam o clítico o/a foram os que registraram o maior valor médio de fixações:

27,98. Por outro lado, verificamos que os enunciados em que havia a presença

do clítico te registraram o valor médio de 24,23 fixações, o mais baixo dentre

os resultados em análise. Já as frases que continham o clítico lhe

contabilizaram uma média de 25,16 fixações. A análise de variância do teste

ANOVA apontou efeito principal da variável tipo de pronome (F(2,198)=3,11 p

< 0,05). As análises pareadas do teste-t indicaram, por sua vez, haver

diferença significativa somente entre o par “frases com te” e “frases com o/a”

(t(99)=2,50 p < 0,05). As diferenças existentes entre as médias de fixações dos

pares “frases com te” e “frases com lhe” (t(99)=0,59 p > 0,05), e “frases com

lhe” e “frases com o/a” (t(99)=1,73 p > 0,05) não foram estatisticamente

significativas.

Com o objetivo de tornar mais evidentes e visuais os resultados relativos

aos padrões de fixação do olhar dos participantes durante o experimento de

leitura de frases, apresentamos, na Figura 6.12 a seguir, três mapas de calor,

gerados através de uma das funcionalidades do programa TOBII Studio. Esses

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226

mapas, construídos com base em uma das sentenças experimentais, ilustram

o comportamento ocular que, de maneira geral, os participantes tiveram

durante a tarefa:

João disse para Carla na presença de Marta: Eu te perdoo pelos erros.

João disse para Carla na presença de Marta: Eu lhe perdoo pelos erros.

João disse para Carla na presença de Marta: Eu a perdoo pelas mentiras.

Figura 6.12 – Mapas de calor ilustrativos das fixações oculares de frases

com os clíticos te, lhe e a.

Conforme podemos observar, a frase que trazia o clítico te registra

menores durações de fixação, indicadas pela cor verde. Além disso, a área da

frase fixada por mais tempo (correspondente ao segmento “disse para Carla”),

sinalizada pela cor vermelha, indica que o participante acionou uma

interpretação de 2SG de maneira inequívoca. Isso pode ser reforçado no mapa

por meio da observação da área em que se situa o clítico te na frase (com

coloração entre o verde e o amarelo, indicando baixo tempo de fixação) e da

área em que aparece o terceiro nome próprio “Marta”, possível antecedente do

clítico (com coloração predominantemente verde, indicando baixo tempo de

fixação). Em outras palavras, podemos afirmar que o clítico te conduziu o

participante a uma interpretação de 2SG bastante segura, detectável pela

duração da fixação no constituinte “para Carla”.

Na frase que continha o pronome lhe, temos um quadro ligeiramente

distinto. Primeiramente, verificamos que a duração da fixação na área do

clítico é relativamente maior, comparada com o clítico te, o que é atestada pela

coloração avermelhada. Além disso, podemos notar também que houve maior

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tempo de fixação em outras áreas da frase, especialmente naquelas em que

aparecem os nomes próprios candidatos a antecedente do clítico (sinalizado

pela coloração amarela que chega ao alaranjado na região dos constituintes

“para Carla” e “de Marta”), o que parece sugerir certa hesitação do participante

quanto à interpretação da informação de pessoa (2ª ou 3ª do singular). Desse

modo, parece plausível afirmar que a leitura de 2SG não foi tão imediata a

partir do clítico lhe em relação ao que vemos para o clítico te. Apesar disso,

como sugere a coloração entre o laranja e o vermelho na área do constituinte

“para Carla”, podemos concluir que o participante atribuiu uma interpretação

de 2SG ao clítico.

O mesmo não é verificado para a frase com o clítico a. Percebemos uma

duração de fixação consideravelmente alta na área do enunciado em que esse

clítico aparece (indicada pela cor vermelha) e, junto a isso, uma duração

também elevada no campo em que se situa o nome próprio “Marta” (indicada

pela cor amarelada que chega ao laranja). Essas informações do mapa de calor

nos levam a concluir que, neste caso, o participante optou por uma leitura de

3SG, ligando o clítico ao terceiro nome próprio da sentença anterior. Cumpre

destacar, contudo, que também há uma duração de fixação relativamente alta

na área em que aparece o nome próprio “Carla” (sinalizada pela coloração

amarela intensa), o que sugere que a interpretação do clítico despertou

dúvidas no participante durante o processamento das informações contidas

na frase.

6.8 Discussão

Como terceiro e último experimento aplicado com o intuito de pôr à

prova as hipóteses em torno das quais gira a presente tese, podemos dizer que

os resultados obtidos por meio da tarefa de leitura com monitoramento ocular

foram bastante elucidativos, principalmente no que tange às diferenças

relacionadas aos clíticos lhe e o/a, que, nas experimentações anteriores, de

caráter off-line, não puderam ser detectadas dentro de uma significância

estatística esperada. De modo bastante amplo, podemos dizer que as medidas

controladas no referido experimento sinalizaram que há diferenças tanto

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228

qualitativas como quantitativas envolvendo as formas pronominais te, lhe e

o/a em termos do processamento da informação de 2SG.

Através dos resultados atinentes aos índices de interpretação da

informação de 2SG, verificamos que os participantes associaram o clítico te

ao referente marcado como o interlocutor dentro do contexto criado pelos

enunciados na maioria das vezes (89%). Tal índice salienta a eficácia desse

item para acessar a informação de 2SG na memória dos falantes.

Encontramos índices também elevados para as frases que continham lhe

(73%), fato que ilustra a maior associação desse clítico com a referência de

2SG do que com a 3SG pelos falantes. Configurando como a estratégia que

acessou o referente de 2SG em menor escala, temos o clítico o/a (49%), sendo,

portanto, a forma menos eficaz, dentre as três, para recuperar a informação

de 2SG. Embora essa mesma ordenação quanto à eficácia na retomada do

referente de 2SG tenha sido encontrada no experimento de leitura

automonitorada (2SG = te > lhe > o/a), naquele experimento as análises

estatísticas não foram significativas. Já na tarefa com eye-tracking, essa

distribuição foi significativa em todas as comparações, o que sugere que o

clítico te seja a forma mais eficiente no acesso à informação de 2SG.

Quanto à variável média de duração dos tempos de fixação, constatamos

que houve diferenças significativas que vão na direção das nossas hipóteses.

A partir da área crítica clítico+verbo, verificamos que as condições envolvendo

os clíticos lhe e o/a registraram tempos médios de fixação mais elevados (1117

e 1104 milissegundos, respectivamente), em comparação com as condições

que apresentavam o clítico te (836 milissegundos). Segundo os resultados do

teste estatístico, a diferença entre as médias de tempo de fixação de lhe+verbo

e o/a+verbo não são significativas, ao passo que as diferenças entre te+verbo

e as condições com lhe e com o/a são estatisticamente relevantes. Os índices

obtidos a partir dessa variável sugerem, portanto, que o custo de

processamento da área em que aparece a forma te é significativamente menor

em relação aos outros dois clíticos, o que podemos tomar como evidência do

seu acentuado nível de gramaticalização.

No que se refere aos resultados da área crítica “frase inteira”,

encontramos importantes diferenças em relação aos resultados da área crítica

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229

anterior. As fixações dos participantes sobre as frases que continham o clítico

o/a demoravam, em média, mais tempo do que em relação às frases com os

outros clíticos (o/a: 6955 milissegundos; lhe: 6013 milissegundos; te: 5556

milissegundos). Tendo em vista que a estrutura morfossintática das sentenças

experimentais era praticamente idêntica (exceto pelos pequenos ajustes feitos

para as frases da condição o/a, conforme já explicitamos), parece plausível

associar a média de duração das fixações mais alta à presença do referido

clítico. Já as frases que continham o pronome te registraram a menor média

de duração das fixações; no entanto, a análise estatística indicou que essa

média não é significativamente menor do que a encontrada para as frases com

lhe. Os resultados evidenciam, pois, que o estatuto de te é bastante distinto

dos outros dois clíticos analisados, ou seja, esses itens não seriam mais

funcionalmente equivalentes. Os tempos de fixação (tanto da área com o

pronome quanto da frase inteira) mais baixos parecem indicar que a forma te,

sendo a estratégia mais gramaticalizada, exige um esforço cognitivo dos

falantes substancialmente menor.

A análise da terceira variável dependente, número de fixações do olhar,

embora tenha revelado menor índice de diferenças significativas, reflete a

mesma ordenação vista na medida anterior: na área crítica clítico+verbo, a

maior média de fixações ocorre no conjunto de frases que apresentavam o

clítico lhe (4,73). As condições que continham o clítico te foram as que

registraram menor número de fixações na área do clítico (3,79). Para as

condições que traziam na área crítica o/a+ verbo, encontramos uma média de

fixações de 4,27, inferior à que foi registrada para lhe+verbo, mas superior a

que foi contabilizada para te+verbo. Por esse resultado, temos, novamente,

mais uma evidência do baixo custo de processamento relacionado ao clítico

te, cuja diferença no número de fixações em relação às condições com lhe é

significativa.

Contemplando a mesma medida a partir da área crítica “frase inteira”,

temos que os participantes produziram um número de fixações maior sobre

as frases experimentais que traziam o clítico o/a (média de 27,98 fixações).

Em consonância com os resultados para essa área crítica nas variáveis

dependentes média de tempo de duração das fixações e número de fixações,

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230

parece coerente dizer que os enunciados que traziam o clítico o/a

desencadearam maior custo de processamento nos participantes, uma vez que

contabilizamos maior número e maior média de tempo de duração de fixações

para as condições desse pronome. Em contrapartida, constatamos que os

participantes fixaram em menor número as frases que continham o clítico te

(média de 24,23 fixações). E a diferença na média entre ambas as condições,

o/a e te, foi significativa. A média de fixações nas frases com lhe foi de 25,16,

ficando, pois, entre as médias encontradas para o/a e te.

Sumarizando os resultados encontrados no experimento com rastreador

ocular, podemos traçar um perfil para cada clítico investigado como segue:

(i) O clítico te se mostrou como a estratégia gramatical mais eficiente

para o acesso à informação de 2SG em termos de processamento

linguístico, uma vez que foi capaz de ativar essa informação com

maior frequência do que os outros pronomes estudados, exigindo,

para isso, menor tempo e número de fixações nas frases;

(ii) O clítico lhe é, pelo que sugerem os resultados experimentais, uma

estratégia “ao meio do caminho”; embora seja capaz de ativar a

informação de 2SG em um grande número de casos, exige um custo

de processamento mais alto, pois demanda maior tempo e número

de fixações do olhar em comparação com te;

(iii) O clítico o/a consiste na estratégia gramatical menos eficiente para

acessar a informação de 2SG, posto que foi capaz de ativar essa

informação com um índice inferior ao verificado para os outros

pronomes. Embora a área em que esse clítico aparecia nas frases não

tenha registrado as médias de tempo e de número de fixações mais

altas – como havíamos previsto inicialmente –, os enunciados que

traziam esse item, como um todo, envolveram maior custo de

processamento, tendo contabilizado tempo de duração (em relação a

lhe e te) e número de fixações (em relação a te) significativamente

maiores. Associamos esse dado à dificuldade dos falantes do PB em

processar a informação de pessoa a partir desse clítico,

principalmente em contextos potencialmente ambíguos como era o

caso dos contextos inseridos no experimento.

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231

Na próxima seção, apresentamos alguns comentários finais, a título de

conclusão do presente capítulo. Nela, pretendemos avaliar a eficácia da

técnica do eye tracking para o estudo das formas clíticas de 2SG.

6.9 Conclusão do capítulo

À guisa de conclusão, cabe destacar a pertinência da técnica do eye

tracking para o estudo das formas clíticas de 2SG. A referida ferramenta se

mostrou bastante adequada e, em certa medida, até necessária para uma

compreensão mais aprofundada dos aspectos relacionados à percepção dos

itens te, lhe e o/a antepostos aos seus verbos predicadores por falantes

nativos do PB. Dada a granularidade do objeto de estudo, arriscamos afirmar

que somente através de uma técnica com tamanho grau de acurácia

diferenças tão difíceis de serem capturadas por outros métodos poderiam ser

detectadas e analisadas com segurança.

Os resultados apresentados neste capítulo tornaram mais claros os

dados aparentemente obscuros que encontramos a partir da utilização de

outras técnicas experimentais (principalmente da leitura automonitorada).

Tais resultados sugerem que existem diferenças entre a percepção de lhe e de

o/a quanto ao acesso à informação de 2SG. Tendo em vista que, no

experimento de leitura automonitorada, não foi possível encontrar diferenças

significativas entre as condições com esses pronomes, podemos associar essa

ausência de evidência ao formato do experimento: o fato de os participantes

poderem ler por tempo indeterminado as frases e as perguntas interpretativas

pode ter interferido nas medições dos tempos de leitura. Além disso, o modo

de emissão das respostas também deve ser levado em consideração: o ato de

clicar em um botão do teclado é – para uma variável que lida com milésimos

de segundo – menos imediato do que o ato de direcionar o olhar para uma

opção específica na tela de um computador.

A técnica do eye tracking, contudo, envolve uma série de fatores que

podem restringir a verificação de determinadas hipóteses de pesquisa. Dadas

as especificidades do aparato tecnológico e de seu manuseio, não foi possível

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232

que replicássemos o experimento em localidades fora do Rio de Janeiro (onde

está sediado o LAPEX). O eye tracker é uma tecnologia cara e infelizmente

poucas instituições brasileiras dispõem desse equipamento em seus

laboratórios. Seria interessante que, futuramente, outros pesquisadores

replicassem o experimento criado em outras localidades, a fim de relatar

semelhanças e diferenças com os resultados reportados neste capítulo.

Apesar disso, acreditamos que os resultados encontrados a partir de

falantes fluminenses sejam, em boa medida, representativos do modo como

os falantes do PB devem processar os clíticos estudados. Embasamos essa

hipótese nos seguintes argumentos: (i) não encontramos, em relação aos

experimentos aplicados a falantes de outras localidades, resultados que se

contradigam ou apontem para direções completamente distintas; (ii) no teste

de julgamento de cenas e no teste de leitura automonitorada, não

encontramos evidências significativas de que falantes de dialetos diferentes

processem os itens investigados de forma diferente, o que nos permite

descartar um possível efeito de variação diatópica sobre o fenômeno em

questão.

Feitas as últimas observações deste capítulo, cabe, agora, seguirmos

para as conclusões a que pudemos chegar com a presente investigação.

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233

7 CONCLUSÕES

Nas últimas linhas desta tese, gostaríamos de retomar as questões e

hipóteses que conduziram a nossa pesquisa procurando confrontá-las com os

resultados gerais mais relevantes. Além disso, tentaremos aproximar os

pressupostos teóricos descritos no capítulo 3 dos resultados discutidos nos

capítulos de análise. Nesse intento de conjugar as diferentes partes,

resgatamos a nossa hipótese de gramaticalização do pronome te, a fim de

salientar os fatores que possivelmente motivaram a convencionalização de te

como marca de 2SG. Pretendemos destacar também a importância de estudos

experimentais acerca de formas em processo de mudança na língua,

delineando perspectivas futuras em relação aos estudos das formas de

referência ao interlocutor no PB.

Conforme anunciamos no capítulo de introdução, a questão central que

moveu (e continuará movendo) a nossa pesquisa é: por que o clítico te,

relacionado ao paradigma do pronome tu (que está em processo de

desaparecimento em diversos dialetos do PB) permanece no sistema de

tratamento ao lado da forma inovadora você, co-ocorrendo frequentemente

com ela? Para tentar entender essa questão, optamos por confrontar a atuação

da forma te com outras duas formas morfossintaticamente equivalentes a ela:

os clíticos lhe e o/a.

No plano teórico-descritivo, detectamos disparidades que nos lançaram

algumas pistas sobre o problema. O clítico te era uma variante flexional de

acusativo na língua latina que passou ao português como marca de 2SG para

as funções de objeto direto e indireto. Por um longo espaço de tempo, foi a

única forma para marcar a 2SG em relações mais íntimas e informais. Em

oposição, os clíticos lhe e o/a são formas originalmente de 3SG que

historicamente passaram a poder representar 2SG a partir da reanálise da

construção Vossa Mercê como uma estratégia de referência ao interlocutor.

Além disso, o fato de eles serem sintaticamente especificados (lhe para a

função dativa e o/a para a função acusativa) restringiu seus campos de

atuação frente ao clítico te, que atua em ambas as funções desde os primeiros

séculos da língua portuguesa.

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Além dos pontos assinalados acima, vimos ainda as disparidades de

uso, relatadas por diferentes pesquisas sincrônicas e diacrônicas baseadas

em corpora. Os pesquisadores, de maneira geral, ressaltam a notável

regularidade na frequência de uso da forma te, que, pelo menos, desde os fins

do século XIX já podia ocorrer nos textos combinada com o pronome você na

posição de sujeito. Em contrapartida, as frequências de uso dos clíticos lhe e

o/a se mostram, nas pesquisas, bastante irregulares, na maioria dos casos

correlacionadas a diferentes variáveis extralinguísticas (localização geográfica,

período histórico, grau de instrução/nível de escolarização dos indivíduos,

faixa etária e tipo de relação entre os interlocutores).

Esses estudos nos foram bastante informativos e nos serviram como

base para a elaboração de algumas hipóteses desta tese, porém não chegam

a explicar, de maneira efetiva, a sobrevivência do clítico te. Embora alguns

estudiosos já tenham proposto explicações teóricas para esse fato – de ordem

sociopragmática, morfossintática e cognitivo-funcional (cf. Capítulo 2) –,

nenhum trabalho procurou explicar empiricamente a permanência de te em

um sistema no qual você se difunde. Isso foi, certamente, uma das principais

motivações para a realização desta pesquisa.

A partir das descrições históricas e dos dados de corpora acerca dos

referidos clíticos, começamos a pensar sobre a dimensão cognitiva desse

fenômeno em particular. Havendo importantes diferenças na diacronia e no

uso desses clíticos, como os falantes do PB atual devem interpretar/processar

a informação de 2SG através dos clíticos te, lhe e o/a? Qual seria a forma mais

eficiente na ativação da referência à 2SG? Que fatores poderiam influenciar

essa interpretação? Essas indagações foram a força motriz desta tese, em uma

empreitada que buscou compatibilizar um fenômeno de mudança com os

estudos de processamento.

Com base nos estudos já realizados sobre o tema e das questões

suscitadas por eles, procedemos à elaboração de três experimentos

linguísticos, com vistas a explorar a compreensão dos falantes do PB sobre

enunciados que envolviam os clíticos te, lhe e o/a. Esses experimentos

cumpriam diferentes objetivos e propuseram tarefas distintas aos

participantes, de modo que os dados produzidos por eles captassem diferentes

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235

facetas do objeto de estudo. No julgamento de cenas legendadas, o intuito era

mensurar o índice de aceitação dos três clíticos, inseridos em variadas

situações comunicativas e avaliados por participantes de diferentes

localidades do Brasil. Na leitura automonitorada, tínhamos como objetivo

principal averiguar a acessibilidade da informação de 2SG a partir dos

pronomes clíticos e o custo de processamento envolvido nessa operação

mental. Na leitura de frases com rastreamento ocular, visávamos a aferir com

maior precisão o tempo de processamento despendido pelos falantes durante

a decodificação dos enunciados que continham as formas em questão. Na

exposição dos resultados, verificamos que:

(i) No julgamento de cenas legendadas, a forma te foi a mais bem

julgada, computando índices de aceitação significativamente mais

elevados do que os concernentes às formas lhe e o/a. Esse resultado

foi constatado entre os julgamentos de participantes de quatro

estados brasileiros diferentes, tanto para as interações simétricas

quanto para as interações assimétricas, o que evidenciou que a

aceitação do clítico te não está relacionada a fatores

sociopragmáticos ou dialetais;

(ii) Na leitura automonitorada, os dados experimentais indicaram que

os participantes demoravam, em média, menos tempo para ler os

enunciados que continham o clítico te. Dentre as três formas

analisadas, te se mostrou como a estratégia mais eficiente na

ativação da referência à 2SG demandando baixo custo de

processamento;

(iii) Na leitura de frases com rastreador ocular, encontramos resultados

que tornaram ainda mais evidente a existência de diferenças no

processamento de te, lhe e o/a quanto ao acesso à informação de

2SG. Também nesse experimento, o clítico te despontou como a

estratégia mais eficiente em termos cognitivos, tendo ativado a

informação de 2SG com uma frequência bastante alta. Além disso,

foi a forma que exigiu menor tempo e número de fixações do olhar

dos participantes durante a leitura dos enunciados.

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236

Esses resultados, sumariamente recuperados, forneceram evidências

favoráveis ao conjunto de hipóteses que postulamos para o problema, quais

sejam: (i) os clíticos em análise não são processados do mesmo modo, visto

que existem diferenças entre eles que interferem diretamente no

processamento da informação de 2SG; (ii) As diferenças sociopragmáticas não

interferem no processamento de te, embora pareçam, em alguma medida,

influenciar na compreensão dos clíticos o/a e lhe; (iii) Dentre os três clíticos,

o processamento de lhe é o único que parece sofrer alguma interferência da

variável localidade de origem do falantes, visto que constitui uma marca

dialetal no PB; (iv) a forma te é a marca de representação da referência à 2SG

por excelência, fato que se reflete, dentre outras coisas, no seu largo índice de

aceitação e baixo custo de processamento.

Mas, afinal, o que tudo isso significa, em termos linguísticos? Em que

medida os resultados relativos ao processamento das formas clíticas, em

especial de te, contribuem para a explicação dos padrões de uso desses

pronomes no PB, detectados nas pesquisas baseadas em corpora?

Em primeiro lugar, precisamos retomar as assunções teóricas de

Hawkins (2004; 2014), em específico, a sua Hipótese de Correspondência

Desempenho-Gramática. Conforme apresentamos no capítulo 3, o referido

autor argumenta que a gramática das línguas consiste na convencionalização

de estruturas “preferidas” pelos falantes no desempenho. Essa preferência

estaria associada a princípios de eficiência, dentre os quais destacamos o

Princípio Minimizar Formas, que, resumidamente, estabelece que o

processador humano tende a concentrar mais propriedades/funções a um

número reduzido de formas; isso dependeria da facilidade com que tais

propriedades/funções podem ser atribuídas a certas formas.

A evidência central apontada por Hawkins (2004) acerca da sua hipótese

está ancorada na verificação empírica. Segundo ele, a convencionalização das

formas preferidas no desempenho pode ser atestada a partir dos padrões de

distribuição em corpora e pela facilidade de processamento em experimentos

linguísticos. Nesse sentido, podemos afirmar que os nossos resultados,

envolvendo os clíticos com referência à 2SG, se coadunam com essa hipótese,

visto que há uma forte correlação entre os dados de uso e de processamento;

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237

a forma te, além de ser amplamente utilizada pelos falantes do PB, é também

a estratégia que mais facilita o processamento da informação de 2SG,

conforme demonstraram os resultados dos experimentos.

No nosso entendimento, falar em convencionalização de formas

linguísticas preferidas pelos falantes é, em outras palavras, falar de um

processo de gramaticalização. Por esse motivo, postulamos como nossa

hipótese central que a alta frequência de uso do clítico te ao longo do tempo

teria desencadeado um processo de gramaticalização desse item no PB.

Especificamente, a forma te teria se convertido em um marcador da

informação de 2SG. Adotando essa linha de análise, podemos identificar como

evidências dessa gramaticalização: a extensão pragmática do item na

atualidade, visto que ele não está mais restrito ao plano da intimidade; a sua

alta e regular frequência de uso, típica das formas gramaticalizadas, mesmo

nos contextos em que coexiste com você na posição de sujeito; os elevados

índices de aceitabilidade registrados no teste de julgamento; a maior

velocidade de processamento da informação que veicula por parte dos

falantes, atestada nos experimentos de leitura automonitorada e leitura com

rastreamento ocular.

A preferência por te no âmbito da referência ao interlocutor em posição

de complemento verbal teria, portanto, convencionalizado esse item, no

sentido de que ele se tornou ainda mais gramatical. Resta-nos, agora, refletir

sobre um ponto: por que te se tornou a marca de representação da 2SG por

excelência (na posição de complemento) dentro de um sistema em que a forma

você se difundiu? Por que os clíticos lhe e o/a, pertencentes ao paradigma de

você, não conseguiram “banir” te do sistema? Arriscaremos uma resposta

apoiados em tudo que mencionamos nos parágrafos anteriores, resposta essa

que estará longe de ser completa ou definitiva.

Analisando estruturalmente os três clíticos investigados nesta tese,

observamos que o clítico te é um “candidato ótimo” para a representação da

2SG. Primeiramente, porque sofre menos restrições funcionais do que os

outros dois, podendo atuar na complementação acusativa e dativa (o que

amplia o leque de contextos sintáticos em que essa forma pode ser inserida).

Além disso, verificamos através do experimento com cenas legendadas que te

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também está menos sujeito a restrições sociopragmáticas e extralinguísticas,

o que permite a sua utilização em diferentes situações comunicativas.

Morfofonologicamente, te também é o que melhor se “ajusta” à posição

anteposta ao verbo predicador: a sua estrutura formada por consoante-vogal

adequa-se bem ao padrão fonológico do português, em comparação com lhe

(iniciado pela consoante lateral palatal, incomum para início de vocábulos do

português) e o/a (constituído unicamente por uma vogal, sem ataque silábico).

Por fim, cabe lembrar ainda que te acessa inequivocamente a informação de

2SG, não gerando, portanto, ambiguidades semânticas; as formas lhe e,

principalmente, o/a, podem acessar também a 3SG, o que, de certo modo,

complexifica o processamento desses clíticos em determinados contextos

(como indicaram os Experimentos 2 e 3).

Esses fatores, aliados com os demais aspectos já levantados

anteriormente, parecem contribuir para a

convencionalização/gramaticalização de te no sistema de tratamento do PB.

Os clíticos lhe e o/a parecem ser preteridos em favor de te por envolverem as

restrições estruturais, funcionais e contextuais comentadas. Desse modo, e

consoante Hawkins (2014), podemos pensar que o processador linguístico dos

falantes do PB opta pela forma mais eficiente e menos custosa para

estabelecer a referência ao interlocutor: a forma te.

Por fim, esperamos que as investigações empreendidas nesta tese

tenham servido para demonstrar a viabilidade de se estudar formas

linguísticas em processo de gramaticalização pela ótica do processamento.

Naturalmente, os experimentos propostos carecem de aperfeiçoamentos e

reformulações, de modo que se tornem mais produtivos e informativos a

respeito do tema discutido. Mesmo assim, acreditamos que os primeiros

passos foram dados no sentido de colocar à prova postulados e princípios

teóricos relacionados à gramaticalização que versam sobre a dimensão

cognitiva do processo. Seria bastante enriquecedor para os estudos dessa área

se mais estudiosos se propusessem a confrontar os dados de corpora e as

explicações teóricas com resultados experimentais.

Para encerrar, esboçamos uma pequena “agenda de pesquisa” acerca

dos desdobramentos desta tese. Evidentemente que este trabalho não esgota

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o assunto e ainda há muita coisa para ser investigada. Em primeiro lugar,

ressaltamos a importância de que sejam elaborados experimentos específicos

para analisar o status funcional dos clíticos lhe e o/a no PB. O nosso foco era

explorar o processamento do clítico te e, para tanto, procuramos contrastar

essa forma com os outros dois. No entanto, cada um deles precisará ser

minuciosamente examinado.

Sendo um pronome de uso bastante restrito na representação da 3SG,

quando empregado em referência a 2SG, o/a parece ser uma forma estranha

para os falantes do PB, sugerindo certa artificialidade. A presença de o/a na

referência de 2SG talvez represente um uso fossilizado, de produtividade

muito restrita e sujeito à extinção. Ainda necessitaremos estudar mais sobre

como esse pronome é processado pelos brasileiros e talvez um bom caminho

seja a realização de análises contrastivas com o português europeu, no qual

esse clítico é produtivamente utilizado (tanto na 3SG quanto na 2SG).

Quanto ao clítico lhe, os estudos etnográficos mostram que seu uso em

referência a 3SG é bastante raro no PB, o que nos permite pensar que esse

item tenha migrado para a representação da 2SG. No entanto, como

mostraram os experimentos, embora seja relativamente eficaz para

estabelecer a referência com o interlocutor, lhe parece estar bem distante de

se tornar uma forma de uso generalizado no PB, sendo, em vez disso, uma

marca de utilização restrita e complexa. Experimentos que controlem mais

acuradamente variáveis sociopragmáticas poderão ser bastante informativos.

Por fim, voltamos ao clítico te. Os experimentos desenvolvidos nesta tese

ofereceram uma análise holística do fenômeno, visto que estávamos

interessados em compreender questões mais gerais acerca do processamento

de te. Análises futuras, de cunho mais qualitativo, serão muito bem-vindas.

Em novos experimentos, poderão ser explorados, por exemplo, os verbos com

os quais o pronome te se liga. A frequência de ocorrência dos itens verbais

influencia o processamento de te? Há casos em que o pronome e o verbo estão

mais integrados entre si, de modo que os falantes processem te como um

afixo? Há casos em que o processamento de te é mais custoso? São questões

que podem (e devem) suscitar a continuação da investigação realizada aqui.

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Será preciso seguir adiante, haja vista a necessidade de se realizarem

mais investigações sobre os problemas, as questões e as hipóteses discutidas

nesta tese. O estudo das formas de tratamento ainda é muito incipiente no

âmbito da abordagem experimental e precisará ser mais bem desenvolvido por

outras pesquisas. As páginas escritas até aqui devem ser sucedidas por

muitas outras, a fim de que alcancemos um entendimento razoavelmente mais

amplo acerca da questão. Parodiando a famosa passagem shakespeariana:

existem mais coisas no uso e no processamento do que supõe o nosso vão

conhecimento linguístico...

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ANEXOS

I. Diálogos construídos para as legendas das cenas experimentais

(Experimento 1):

A. Condições com o pronome lhe:

(1) Rapaz e menino em casa

RAPAZ: E aí, garoto! Você gosta de chocolate, né?

[O menino fica olhando em silêncio]

RAPAZ: Você quer comer um? /[Retira um chocolate do bolso] Esse é para você!

MENINO: Eu não quero chocolate! Estou sem fome.

RAPAZ: Como é? / Pega logo, eu tô lhe dando!

(2) Cliente e funcionária no caixa do supermercado

FUNCIONÁRIA: Não aceitamos cartão de crédito.

CLIENTE: [olha para a funcionária sem entender] O quê?

FUNCIONÁRIA: Pagamento só em dinheiro.

CLIENTE: Ah! Nossa! Sério mesmo? / Eu não tenho uma moeda sequer aqui

comigo... [Procura dinheiro na bolsa] / Então... / Eu lhe ajudo com o trabalho no

caixa, ok?

(3) Advogado e presidiário na cadeia

ADVOGADO: Você pegou prisão perpétua.

PRESIDIÁRIO: Mas eu sou inocente / eu jamais mataria a minha esposa.

ADVOGADO: Todas as provas apontam para você.

PRESIDIÁRIO: Eu lhe pago qualquer preço pra sair daqui!

(4) Policial e motorista em Blitz

POLICIAL: Avançar o sinal vermelho é infração grave... / E num cruzamento

perigoso como esse... / Não tem como perdoar! / Desculpe, Excelência, mas é o

meu trabalho.

MOTORISTA: Eu estava atrasado para um julgamento importante.

POLICIAL: Não me interessa o motivo, essa é a lei!

MOTORISTA: [olha para o policial indignado] O que você disse? / Eu lhe processo

por desacato!

(5) Casal de namorados jovens conversando

MOÇA: [fazendo charme para o rapaz] Já vai?

RAPAZ: É... Amanhã eu tenho prova na faculdade / Preciso estudar.

MOÇA: [olha surpresa] Jura?

RAPAZ: [decepcionado] Você sabe que eu não posso ficar / Eu já lhe expliquei

isso.

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(6) Dois amigos conversando no trem

AMIGA: [Apontando para o amigo] Da escola! / Claro! Você estudou comigo na

Castelo... [tentando lembrar o nome] / Encantado.

AMIGO: [tenta lembrar também] É uma que tinha a parede toda rabiscada...

AMIGA: Eu que rabisquei.

AMIGO: O quê?

AMIGA: Todo mundo soube disso na época / Mas pelo visto ninguém lhe contou.

(7) Casal discutindo em apartamento

MULHER: Acho que a gente precisa dar um tempo.

HOMEM: Eu concordo! Minha paciência esgotou!

MULHER: Sua mãe está atrapalhando a nossa relação!

HOMEM: Para de culpar minha mãe!

MULHER: Ela vai acabar com o nosso casamento! / Ela sempre me odiou!

HOMEM: [dá as costas e sai] Você está ficando louca!

MULHER: Volta aqui! Vou lhe mostrar quem é louca!

(8) Dois presidiários na cadeia

PRESO 1: Eles vão me pagar caro por me colocarem aqui! / Vou acabar com todos

eles! / Não vai restar nenhum vivo!

PRESO 2: Você só pensa em crimes! / Já chegou ao fundo do poço, não vê?

PRESO 1: Mas logo vou conseguir sair daqui. / E vou me vingar de todos eles!

PRESO 2: Nada disso adianta agora.

PRESO 1: Eu quero vingança!

PRESO 2: Acabou pra gente, já era!

PRESO 1: Vou matar todos eles! / Eu não vou ficar aqui!

PRESO 2: Você já está na cadeia, aceite!

PRESO 1: Cale a boca! / Eu lhe mato também, se quiser!

B. Condições com o pronome o/a:

(1) Advogada e detento na cadeia

ADVOGADA: Michael, me fala a verdade.

DETENTO: Eu não fiz nada.

ADVOGADA: É melhor você abrir o jogo comigo / Se não falar a verdade eles o

prendem.

(2) Professora e aluna em sala de aula

ALUNA: [vai até a mesa da professora] Oi! Trouxe esses biscoitos. / Você quer

provar?

PROFESSORA: [bocejando e mexendo na bolsa] Deixa aí. [A aluna coloca o pote

sobre a mesa e continua parada. A professora encara a aluna aborrecida] / Quer

que eu a leve para a direção?

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(3) Sequestradores e vítima em área deserta

SEQUESTRADOR 1: Acaba logo com ela!

VÍTIMA: Me solta! Me solta! Socorro!

SEQUESTRADOR 2: Cala essa boca!

VÍTIMA: Eu não quero morrer, por favor!

SEQUESTRADOR 2: Eu mandei você calar essa boca! [Joga a vítima no chão e

aponta o revólver para ela] / Quem a salvará dessa vez? [sequestrador 2 é baleado

por outro personagem que surge na cena antes de atirar na vítima]

(4) Pai e filho em trilha na montanha

FILHO: Caramba! / Você não me disse que essa trilha iria demorar um dia inteiro!

PAI: Já percorremos mais da metade, filho! / Logo chegaremos ao vilarejo

FILHO: Mas eu já estou cansado!

PAI: Eu sei, mas é assim mesmo / eu falei que era cansativo / Agora não dá pra

voltar, temos que chegar ao vilarejo para voltarmos

FILHO: Eu estou cansado, não ouviu? Será que é tão difícil de entender? / Depois

você diz que eu não o respeito!

(5) Casal discutindo a relação na rua

HOMEM: Estou indo embora agora!

MULHER: Faça o que achar melhor.

HOMEM: Encontrei isso dentro da sua bolsa. [Retira um bilhete do bolso] / E aí? /

O que você faria no meu lugar?

MULHER: O que você acha? / Eu o perdoaria.

(6) Diálogo entre noivos no altar do casamento

NOIVO: Na alegria e na tristeza / Na saúde e na doença / Com todo amor.

NOIVA: Para compartilhar, respeitar e cuidar. / Você me aceita? / Eu o aceito.

(7) Casal de namorados jovens na praia

RAPAZ: Sabe, Júlia, eu estive pensando... A gente se conhece há bastante tempo /

E a gente tá sempre junto por aí, um ajudando o outro...

MOÇA: É, tem razão... A gente tá sempre juntos.

RAPAZ: E eu queria sabe se você aceitaria namorar comigo...

MOÇA: Até que enfim você tomou coragem. / Você sempre soube que eu o amo!

(8) Duas amigas em um bar

AMIGA 01: O Caio me ligou ontem querendo saber como eu tava... / A gente

conversou melhor, mas sem chances de voltar [expressão de decepção]

AMIGA 02: [expressão de incômodo] Eu não sei / Você faz tudo por ele / E ele... /

Ele a trata como uma idiota!

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C. Condições com o pronome te:

(1) Aeromoça e passageiro no avião

AEROMOÇA: Tem algo de errado com a poltrona?

PASSAGEIRO: Eu não gostei desse assento e queria trocar.

AEROMOÇA: Não trocamos o assento durante o voo!

PASSAGEIRO: Eu sei, mas acontece que tem um monte de poltronas livres nesse

voo...

AEROMOÇA: Regras são regras! / Eu sinto muito / mas eu não posso te trocar de

lugar.

(2) Médico e paciente no hospital

PACIENTE: Quanto tempo eu tenho?

MÉDICO: Não posso fazer esse tipo de afirmação.

PACIENTE: Eu sei que o meu caso é grave.

MÉDICO: Descanse um pouco / você acabou de passar por uma cirurgia.

PACIENTE: Pode falar, Doutor. / Eu prefiro saber a verdade.

MÉDICO: Não vou te enganar, você tem um tumor no cérebro.

(3) Freira e visitante na igreja

VISITANTE: Oi, tudo bem? Desculpe por entrar sem avisar / Eu só passei aqui para

fazer uma oração rápida / Mas já terminei, tô indo embora / Outra hora eu volto

com calma

FREIRA: Não existe hora certa para entrar na Casa do Senhor / Você deve vir à

Igreja quando sentir vontade / Deus sempre te espera por aqui

(4) Cliente e funcionária numa lanchonete

FUNCIONÁRIA: Olá! Posso ajudar?

CLIENTE: Vou querer essa promoção do eggcheeseburguer com fritas e refrigerante.

FUNCIONÁRIA: Essa promoção acabou ontem.

CLIENTE: [surpreso] Como acabou?

FUNCIONÁRIA: [em tom de ironia] Não existe mais.

CLIENTE: Chama o gerente agora / Eu vou te denunciar.

(5) Grupo de amigos conversando em um bar

AMIGO 01: Quem vai querer cerveja?

AMIGO 02: Albert, ninguém vai beber aqui. / Estou convencendo o pessoal de ir

para uma boate. / Vamos para a Brown ou para a Wonk?

AMIGO 03: A Brown fechou já faz um tempo.

AMIGO 02: Não!

AMIGO 03: Eu te disse isso ontem.

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(6) Discussão entre jovens em um bar

RAPAZ 01: Não sei se você já tá sabendo / mas você quebrou a regra do bar. / É

proibida a entrada de calouros / sem me pedir autorização. / [risos] Se eu fosse

você, saía daqui agora mesmo.

RAPAZ 02: [rindo do que ouviu] Você é o dono do bar pra criar regras? / Quer

saber? / Nem vou te responder!

(7) Diálogo entre amigos de trabalho no escritório

AMIGO 01: A Rita do RH tá saindo com o chefe...

AMIGO 02: Fofoca velha! Todo mundo sabe que ela até dorme na casa dele! / Ela

vai subir de cargo rapidinho.

AMIGO 01: Pois é. A Rita é muito interesseira... / Tem gente que faz de tudo pra

subir de cargo...

AMIGO 02: Ah! Qual é? / Você não ia aceitar / se a chefe te chamasse para sair?

(8) Dois amigos conversando numa arquibancada

AMIGO 01: Os Visitantes vão massacrar!

AMIGO 02: Não fala besteira!

AMIGO 01: O time da casa vai tomar uma surra!

AMIGO 02: Isso não vai acontecer! / Sem a menor chance! / E esse cara?

AMIGO 01: Você acha que os da Casa vencem? [bate no braço do amigo 02] / Ei! Ei!

AMIGO 02: O que foi?

AMIGO 01: Eu tô falando, não me ignora!

AMIGO 02: Tá nervoso, cara? / Eu hein!

AMIGO 01: Eu te fiz uma pergunta!

II. Frases experimentais utilizadas para os Experimentos 2 e 3:

❖ Grupo 1 (lhe e te)

LHE01 Rita revelou para Pedro na casa de José: Eu lhe amava na escola.

Pergunta: Rita amava Pedro na escola? SIM

LHE02 Bruna ligou para Luís no prédio de Hugo: Eu lhe espero no mercado.

Pergunta: Bruna espera Hugo no mercado? NÃO

LHE03 Marcos propôs para Vera no celular de Laura: Eu lhe encontro na estação.

Pergunta: Marcos encontra Vera na estação? SIM

LHE04 Lucas falou para Beth no evento de Olga: Eu lhe convido para o show.

Pergunta: Lucas convida Olga para o show? NÃO

LHE05 Paulo garantiu para Aline na frente de Ana: Eu já lhe indiquei ao cargo.

Pergunta: Paulo já indicou Aline ao cargo? SIM

TE01 João disse para Carla na presença de Marta: Eu te perdoo pelos erros.

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Pergunta: João perdoa Marta pelos erros? NÃO

TE02 Rui avisou para Maria na festa de Paula: Eu te deixarei em casa hoje.

Pergunta: Rui deixará Maria em casa hoje? SIM

TE03 Sônia prometeu para Aldo no carro de Davi: Eu te ajudo com a prova.

Pergunta: Sônia ajuda Davi com a prova? NÃO

TE04 Taís contou para Alex no noivado de Felipe: Eu te conheci no colégio.

Pergunta: Taís conheceu Alex no colégio? SIM

TE05 Sofia divulgou para Carlos na sala de Raul: Eu te promovo ao emprego.

Pergunta: Sofia promove Raul ao emprego? NÃO

❖ Grupo 2 (o/a e lhe)

OA01 Rita revelou para Pedro na casa de José: Eu o amava na faculdade.

Pergunta: Rita amava Pedro na faculdade? SIM

OA02 Bruna ligou para Luís no prédio de Hugo: Eu o espero no restaurante.

Pergunta: Bruna espera Hugo no restaurante? NÃO

OA03 Marcos propôs para Vera no celular de Laura: Eu a encontro no desembarque.

Pergunta: Marcos encontra Vera no desembarque? SIM

OA04 Lucas falou para Beth no evento de Olga: Eu a convido para o baile.

Pergunta: Lucas convida Olga para o baile? NÃO

OA05 Paulo garantiu para Aline na frente de Ana: Eu a indiquei para o cargo.

Pergunta: Paulo indicou Aline para o cargo? SIM

LHE01 João disse para Carla na presença de Marta: Eu lhe perdoo pelos erros.

Pergunta: João perdoa Marta pelos erros? NÃO

LHE02 Rui avisou para Maria na festa de Paula: Eu lhe deixarei em casa hoje.

Pergunta: Rui deixará Maria em casa hoje?

LHE03 Sônia prometeu para Aldo no carro de Davi: Eu lhe ajudo com a prova.

Pergunta: Sônia ajuda Davi com a prova? NÃO

LHE04 Taís contou para Alex no noivado de Felipe: Eu lhe conheci no colégio.

Pergunta: Taís conheceu Alex no colégio? SIM

LHE05 Sofia divulgou para Carlos na sala de Raul: Eu lhe promovo ao emprego.

Pergunta: Sofia promove Raul ao emprego? NÃO

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❖ Grupo 3 (te e o/a)

TE01 Rita revelou para Pedro na casa de José: Eu te amava na escola.

Pergunta: Rita amava Pedro na escola? SIM

TE02 Bruna ligou para Luís no prédio de Hugo: Eu te espero no mercado.

Pergunta: Bruna espera Hugo no mercado? NÃO

TE03 Marcos propôs para Vera no celular de Laura: Eu te encontro na estação.

Pergunta: Marcos encontra Vera na estação? SIM

TE04 Lucas falou para Beth no evento de Olga: Eu te convido para o show.

Pergunta: Lucas convida Olga para o show? NÃO

TE05 Paulo garantiu para Aline na frente de Ana: Eu já te indiquei ao cargo.

Pergunta: Paulo já indicou Aline ao cargo? SIM

OA01 João disse para Carla na presença de Marta: Eu a perdoo pelas mentiras.

Pergunta: João perdoa Marta pelas mentiras? NÃO

OA02 Rui avisou para Maria na festa de Paula: Eu a deixarei em casa amanhã.

Pergunta: Rui deixará Maria em casa amanhã? SIM

OA03 Sônia prometeu para Aldo no carro de Davi: Eu o ajudo para a prova.

Pergunta: Sônia ajuda Davi para a prova? NÃO

OA04 Taís contou para Alex no noivado de Felipe: Eu o conheci na faculdade.

Pergunta: Taís conheceu Alex na faculdade? SIM

OA05 Sofia divulgou para Carlos na sala de Raul: Eu o promovo para a vaga!

Pergunta: Sofia promove Raul para a vaga? NÃO

III. Frases distratoras utilizadas para os Experimentos 2 e 3:

A atriz afirmou aos fãs no teatro da cidade: Encenarei Othelo mês que vem. Pergunta: A atriz encenará Othelo mês que vem? SIM

O dentista chamou o auxiliar na mesa de cirurgia: Prepare a anestesia. Pergunta: O dentista preparou a anestesia na mesa de cirurgia? NÃO

A professora informou aos alunos no fim da aula: Adiei a prova para julho. Pergunta: A professora adiou a prova para julho? SIM

O guarda pediu ao motorista na via Expressa: Coloque o cinto de segurança.

Pergunta: O guarda colocou o cinto de segurança? NÃO

A juíza impôs ao advogado no término da sessão: Darei três dias à defesa.

Pergunta: A juíza deu à defesa três dias? SIM

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O jogador reclamou com o técnico no meio do treino: Entrei em campo ontem!

Pergunta: O técnico entrou em campo ontem? NÃO

A avó telefonou para o neto na manhã de Natal: Assei um peru para a ceia.

Pergunta: A avó assou um peru para a ceia? SIM

O taxista advertiu ao passageiro no começo da viagem: O taxímetro

quebrou. Pergunta: O taxista usou o taxímetro na viagem? NÃO

O vendedor lembrou ao cliente na hora da compra: Aceito cartão de crédito. Pergunta: O vendedor aceita cartão de crédito? SIM

Os operários exigiram do patrão na greve geral: Queremos reajuste salarial!

Pergunta: Os operários querem férias remuneradas? NÃO

Bruno combinou com a amiga na saída do mercado: Iremos ao cinema de

noite. Pergunta: Bruno irá com a amiga ao mercado de noite? NÃO

Denise brigou com o pai no almoço de domingo: Quero viajar no feriado! Pergunta: Denise quer viajar no feriado? SIM

Ivo marcou com o irmão na fila da bilheteria: Vamos pegar segunda fileira. Pergunta: Ivo pegou última fileira com o irmão? NÃO

Eduarda planejou com a irmã no sofá da sala: Vamos arrumar o quarto. Pergunta: Eduarda vai arrumar o quarto com a irmã? SIM

Ivan decidiu com o sócio na sala da empresa: Assinarei o contrato hoje. Pergunta: Ivan recusará o contrato com o sócio? NÃO

Elisa acertou com a babá para o dia da festa: Pagarei duas diárias. Pergunta: Elisa pagará duas diárias para a babá? SIM

Igor discutiu com o médico na clínica do bairro: Marquei a consulta em

abril! Pergunta: Igor cancelou a consulta em abril? NÃO

Célia conversou com o avô nas férias de verão: Quero ficar na fazenda. Pergunta: Célia quer ficar na fazenda? SIM

Fábio brincou com os convidados no casamento: Cobrarei pelos convites. Pergunta: Fábio vendeu os convites para o casamento? NÃO

Sara fechou com o inquilino a locação do imóvel: Diminuirei o aluguel. Pergunta: Sara diminuirá o aluguel do imóvel? SIM