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Lucien Goldmann I ou a aposta comunltarla MICHELLóWY E NQUANTO NOS Estados Unidos e na América Latina o pensamento e a obra de Lucien Goldmann continuam suscitando um interesse muito grande, na França, ao que parece, o autor foi encoberto por estranho I esquecimento. E verdade que se trata de uma sociologia em ruptura total com a tradição dominante nas ciências sociais francesas, a qual vai de Auguste Comte a Lévi-Strauss e Louis Althusser, passando por Emile Durkheim. Mas, por outro lado, por sua reinterpretação de Pascal, ela não deixa de ser herdeira de uma corrente dissidente da cultura francesa moderna. A importância de Goldmann resulta da dupla dimensão de sua obra, que é, a um só tempo, sociologia crítica e filosofia social. O tema da comunidade é o cimento que reúne esses dois momentos, proporcionando-lhes profunda coerên- cia. Origina-se de uma crítica radical (porém dialética) da vislÚJ individualista do mundo, em todas suas formas e variantes, desde Descartes até, o século xx. O cogito cartesiano inaugura uma forma de pensamento que tão somente conhece o sujeito individual e faz do indivíduo isolado um começo absoluto: a mônada sem portas nem janelas de Leibniz, o empirismo inglês, o racionalismo do entendimento, o iluminismo, o homo economicus dos economistas clássicos, o Eu fichtiano, o novo cogito husserliano, o existencialismo são várias manifesta- ções dessa mesma visão do mundo. Não se trata de lista exaustiva e poderiam lhe ser acrescentadas muitas outras formas não estudadas por Goldmann, como a economia marginalista, o darwinismo social, a corrente do individualismo metodológico nas ciências sociais etc. Enquanto sociólogo da cultura, Goldmann se interessa pelos fundamentos sociais e históricos de tal individualismo e examina criticamente os laços existen- tes entre o desenvolvimento da economia de mercado, na qual o indivíduo apare- ce como fonte autônoma das próprias decisões e atos, e o aparecimento das vi- sões do mundo que vêem nesse mesmo indivíduo a fonte primeira do conheci- mento e da ação. O iluminismo do século XVIII francês é o exemplo mais signi- ficativo. ''No momento em que os homens perderam toda e qualquer consciência da existência de uma organização global supra-individual da produção e distri- ESTUDOS AVANÇADOS 9 (23), 1995 183

LÖWY (1995) - Lucien Goldmann Ou a Aposta Comunitária

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LÖWY (1995) - Lucien Goldmann Ou a Aposta Comunitária

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  • Lucien Goldmann I

    ou a aposta comunltarla MICHELLWY

    ENQUANTO NOS Estados Unidos e na Amrica Latina o pensamento e a obra de Lucien Goldmann continuam suscitando um interesse muito grande, na Frana, ao que parece, o autor foi encoberto por estranho I

    esquecimento. E verdade que se trata de uma sociologia em ruptura total com a tradio dominante nas cincias sociais francesas, a qual vai de Auguste Comte a Lvi-Strauss e Louis Althusser, passando por Emile Durkheim. Mas, por outro lado, por sua reinterpretao de Pascal, ela no deixa de ser herdeira de uma corrente dissidente da cultura francesa moderna.

    A importncia de Goldmann resulta da dupla dimenso de sua obra, que , a um s tempo, sociologia crtica e filosofia social. O tema da comunidade o cimento que rene esses dois momentos, proporcionando-lhes profunda coern-cia. Origina-se de uma crtica radical (porm dialtica) da vislJ individualista do mundo, em todas suas formas e variantes, desde Descartes at, o sculo xx.

    O cogito cartesiano inaugura uma forma de pensamento que to somente conhece o sujeito individual e faz do indivduo isolado um comeo absoluto: a mnada sem portas nem janelas de Leibniz, o empirismo ingls, o racionalismo do entendimento, o iluminismo, o homo economicus dos economistas clssicos, o Eu fichtiano, o novo cogito husserliano, o existencialismo so vrias manifesta-es dessa mesma viso do mundo. No se trata a de lista exaustiva e poderiam lhe ser acrescentadas muitas outras formas no estudadas por Goldmann, como a economia marginalista, o darwinismo social, a corrente do individualismo metodolgico nas cincias sociais etc.

    Enquanto socilogo da cultura, Goldmann se interessa pelos fundamentos sociais e histricos de tal individualismo e examina criticamente os laos existen-tes entre o desenvolvimento da economia de mercado, na qual o indivduo apare-ce como fonte autnoma das prprias decises e atos, e o aparecimento das vi-ses do mundo que vem nesse mesmo indivduo a fonte primeira do conheci-mento e da ao. O iluminismo do sculo XVIII francs o exemplo mais signi-ficativo. ''No momento em que os homens perderam toda e qualquer conscincia da existncia de uma organizao global supra-individual da produo e distri-

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  • buio de bens, os fllsofos das Luzes exigem, em alto e bom som, o reconheci-mento do entendimento individual como a instncia suprema que no se deve submeter a qualquer autoridade superior" (1).

    Sobre o fundamento do individualismo, h outros laos ainda que unem a filosofia das luzes burguesia: suas principais categorias mentais correspondem todas, em certo grau, estrutura da troca comercial que constitui o ncleo da nascente sociedade burguesa. Isso vale para o contratoy enquanto modo funda-mental das relaes humanas, tanto como para a tolerncia, a universalidade, a liberdade formal, a igualdade jurdica, a propriedade privada. No se trata, para Goldmann, de negar a importncia humana de vrias dessas categorias, mas de mostrar seus limites e as conseqncias decorrentes de tal absolutizao do in-divduo e do mercado, assim como a abolio de toda e qualquer realidade supra-individual- quer seja Deus, a totalidade, o ser ou a comunidade. O pen-samento individualista concebe a sociedade apenas como uma soma de indiv-duos e a vida social como simples produto do pensamento e das aes de gran-de nmero de indivduos, cada um dos quais constitui um ponto de partida absoluto e isolado (2). A relao dos indivduos com a totalidade social no pode ser diferente daquela que tm com o mercado: a observao de seu movi-mento objetivoy o estudo de suas leis cientficas.

    Mas, como, partindo do indivduo isolado, fundar uma tica, regras morais obrigatrias? Segundo Goldmann, no se pode, no contexto do individualismo burgus, demonstrar a necessidade de nenhum sistema particular de valores. O pressuposto fundamental da economia poltica clssica - mas tambm da filosofia poltica liberal - que a procura egostica do prprio interesse por cada um dos indivduos, conduz, por meio de uma harmonia implcita (a mo oculta), ao inte-resse geral de todos. Toda norma tica torna-se, portanto, suprflua, se no preju-dicial. Na realidade, para o pensamento individualista conseqente e levado aos ltimos limites, a esfera moral, tanto quanto a religiosa inexistem enquanto cam-pos especficos e relativamente autnomos. Os filsofos racionalistas (Descartes, Spinoza e seus discpulos) continuam, claro, falando, com toda sinceridade, em moral e religio; mas, nas antigas formas ticas e crists, desenvolve-se um con-tedo radicalmente novo e, em ltima anlise, amoral e irreligioso (3).

    verdade que o combate da filosofia das Luzes contra o obscurantismo da Igreja tinha um significado progressista e emancipador, que Goldmann nunca esquece, no deixando ao mesmo tempo de manifestar sua preocupao diante do vazio moral criado pela civilizao individualista-burguesa e por aquilo que cha-ma de indiflrena axiolgica do capitalismo: quando ameaado, esse se adapta to bem ao fascismo e barbrie como as formas mais civilizadas do sistema demo-crtico. Ele, ao mesmo tempo, chama a ateno para os perigos e as ameaas representados pela inexistncia de normas vlidas - resultado da prpria lgica do

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  • individualismo radical - diante do desenvolvimento vertiginoso da tcnica: "a ausncia de foras ticas capazes de controlar a utilizao das descobertas tcnicas e de subordin-las aos fins de uma verdadeira comunidade bem que poderia levar a conseqncias que ningum ousaria imaginar" (4). Goldmann deve pensar nos perigos do equilbrio do terror nuclear. Mas seu argumento aplica-se tambm s ameaas de catstrofe ecolgica que pesam sobre a comunidade neste fim do sculo xx.

    N ada mais errado do que deduzir de tal crtica uma rejeio unilateral da herana do iluminismo; trata-se apenas de mostrar as aporias que resultam dos pressupostos individualistas dessa filosofia e tentar super-la - no sentido dialtico da Aufhebung: negao, conservao, sobressuno) - por um pensamento comu-nitrio novo. Marx considerava o socialismo moderno o herdeiro das mais altas conquistas do humanismo burgus. A viso de mundo do iluminismo, salienta Goldmann "encerra valores essenciais cuja salvaguarda deve urgentemente ser assegurada pelo socialismo": a tolerncia, a liberdade e igualdade formais. A ex-perincia trgica do estalinismo obriga os seguidores de Marx a se perguntarem, mais do que nunca, "como ... retomar esses valores dentro do socialismo e asse-gurar-lhe a sobrevivncia numa base social e econmica diferente daquela em que nasceram?" (5).

    Se a viso individualista do mundo origina-se do cogito cartesiano (eu pen-so, portanto, eu existo), o pensamento dialtico comea, segundo Goldmann, "por uma frase, talvez excessiva, mas que como se fosse um manifesto: o Eu odioso" (Pascal). Goethe, Hegel, Marx e Lukcs vo prolongar a intuio de Pascal ao fazer do sujeito transindividualo ponto de partida da ao e do conheci-mento: para a dialtica, "o fundamento ontolgico da Histria a relao do homem com os outros homens, o fato de que oEu individual s existe por detrs da comunidade". Em tal perspectiva, os demais seres humanos j no so simples objetos de conhecimento e observao, mas aqueles junto dos quais eu ajo (6).

    Goldmann no questiona as descobertas de Freud: verdade que a vida psquica individual liga-se libido e todo comportamento humano individual possui uma dimenso libidinal. Entretanto, as aes histricas, o domnio da natureza, a criao cultural no podem ser entendidos em sua significao, nem explicados em sua gnese seno partindo de um sujeito coletivo, ou antes, transindividual. Esse ltimo no deve ser confundido com o misterioso sujeito coletivo proposto por Durkheim, ou seja, com uma conscincia coletiva que se situaria fora ou ao lado da conscincia individual: ele designa os grupos huma-nos, as coletividades nas quais os seres humanos pensam e agem juntos.

    Tal concepo dialtica do sujeito histrico ape-se s vises individualistas do mundo tanto quanto quelas que, ao modo do estruturalismo, eliminam o

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  • sujeito da teoria. Rejeitando essas duas posies correspondentes e complementares) representadas na fIlosofia francesa contempornea por Sartre e Althusser, Goldmann v no sujeito transindividual o nico processo capaz de superar os dualismos do pensamento moderno: sujeito e objeto, juws de fato e juws de valor, explicao e compreenso, determinismo e liberdade, teoria e prxis (7).

    Embora a Histria seja o produto da prxis de sujeitos humanos coletivos, todos os grupos no tm a mesma importncia na vida social e cultural: "entre os inmeros sujeitos transindividuais cuja ao se entrecruza e que constituem a vida de uma sociedade goblal, existe uma categoria cuja ao tem uma pertinncia particular no tocante s transformaes histricas e, principalmente, criao cultural; trata-se dos grupos sociais em cujas prxis conscincia e afetividade so orientadas no para um setor particular da organizao social global ( ... ) mas para a organizao social como tal, para o conjunto das relaes inter-humanas e das relaes entre os homens e a natureza, quer tendam a conserv-las, quer ten-dam, ao contrrio, a transform-las de maneira radical: trata-se das classes sociais" (8). Goldmann pensa ento, como Marx, que preciso privilegiar o papel das classes sociais enquanto grupo cuja ao orientada para a universalida-de, para a estruturao da sociedade; que preciso, tambm, ver nas relaes entre as classes a chave da compreenso da realidade social passada, presente e futura.

    Significativa parte da obra de Goldmann, inspirada por essa premissa metodolgica fundamental, tem por objeto a identificao das classes sociais que desempenham o papel de sujeito transindividual de certas criaes culturais -inclusive literrias e filosficas. Le Dieu cach o exemplo mais importante disso, por sua descoberta da nobreza de toga enquanto sujeito coletivo da vida trgica do mundo do sculo XVII - o jansenismo -, verdadeiro grito diante da expanso da moral individualista do racionalismo. A anlise, em termos de sociologia da cultura, em nada diminui a importncia de indivduos como Pascal e Racine para dar a tal viso do mundo rigor e coerncia. O procedimento de Goldmann no pretende, de forma alguma, eliminar o papel dos indivduos na ao histrica ou na criao cultural, mas inscrev-los no contexto do sujeito transindividual e, particularmente, da classe social a que pertencem.

    verdade que Goldmann, no seu livro sobre a sociologia do romance, acreditou ter achado uma homologia estrutural direta entre as estruturas do merca-do capitalista e as do romance como forma literria, sem passar pela mediao de uma conscincia coletiva. No entanto, um sujeito transindividual (no necessaria-mente uma classe) sugerido implicitamente por sua anlise, medida em que o romance expressa os sentimentos daintelitJncia criadora, ou seja, a dos criadores, escritores, artistas, fIlsofos, telogos "cujos pensamentos e comportamento, mesmo sem escapar inteiramente ao poder degradante do mercado e da reificao,

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  • permanecem dominados por valores qualitativos"(9). Parece-me haver a uma pista fundamental - no seguida por Goldmann - para entender vrios fenme-nos culturais modernos, a comear pelo romantismo (10).

    Segundo Goldmann, no h como formular uma tica coerente - inseparvel do conhecimento e da ao do grupo -, seno em relao a um sujeito transindividual. O pensamento individualista conseqente s conhece a verdade e o erro, o racional e o absurdo, o sucesso e o fracasso. A moral, enquanto campo prprio e relativamente autnomo, s pode existir "quando as aes dos indiv-duos so julgadas em relao a um conjunto de normas do bem e do mal que o transcendem" e se referem a um valor transindividual: um Deus sobre-humano ou a comunidade humana "sendo um e outra, a uma s vez, exteriores e interiores ao indivduo" (II).

    Desse ponto de vista, o pensamento dialtico herdeiro das inquietudes ligadas viso trgica do mundo, e, particularmente, de Pascal: "O problema central do pensamento trgico, problema que s o pensamento dialtico poder resolver ao mesmo tempo no plano cientfico e moral, o de saber se nesse espao racional ( ... ) existe ainda um meio, uma esperana qualquer de reintegrar os valores morais supra-individuais, se o homem poder ainda reencontrar Deus ou aquilo que para ns sinnimo e menos ideolgico: a comunidade e o univer-so". Ao secularizar, dessa forma abrupta, a idia trgica de Deus, Goldmann apa-ga com demasiada rapidez aquilo que faz a especificidade da religio em face do pensamento comunitrio. Mas, na realidade, ele procura evidenciar a afinidade oculta entre o cristianismo trgico de Pascal e o socialismo marxiano.

    Outra maneira de enfatizar tal parentesco a redefmio, por Goldmann, do prprio conceito de religio, por meio do qual, "com condio de tomar essa ltima palavra no seu sentido mais amplo de f em um conjunto de valores que transcendem o indivduo, ele pretende abranger a ambos. A diferena essencial que separa um do outro a ausncia de perspectiva histrica da viso trgica, a qual admite o mundo existente como definitivo e imutvel, sem esperana de porvir: trata-se de um pensamento incapaz de substituir o mundo atomista e mecanicista da razo individual por uma nova comunidade. A recusa absoluta e radical do mundo na viso trgica no conhece seno uma nica dimenso temporal: o pre-sente)) (12).

    O pensamento dialtico, o socialismo, ao contrrio, orientam-se radical-mente para o porvir da comunidade humana. Mas enquadram-se tambm nessa religio em sentido lato: uma f nos valores transindividuais. Em seu grande ensaio de 1960 sobre a filosofia das Luzes, Lucien Goldmann expressa nos seguintes termos as grandes opes que se apresentam humanidade, em nossa poca: "Eis a alternativa: sociedade dessacralizada, marcada pelo sucesso tcnico, inteiramen-

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  • te racionalizada, ou ento comunidade humana que, sem dvida, h de retomar e desenvolver as possibilidades tcnicas criadas pela sociedade burguesa, mas, ao mesmo tempo, dever superar a alienao e criar uma nova religiosidade imanente - livre de qualquer transcendncia - da comunidade humana e da Histria?" Uma leitura superficial desse trecho poderia sugerir uma oposio entre razo e esperana, mas alguns pargrafos adiante, a alternativa explicitada na forma de escolha entre um saber tcnico, indiferente aos valores da comunidade e uma f imanente na comunidade, ou, em outros termos, "quem, do entendimento ou da razo, do capitalismo ou do socialismo ser o futuro da humanidade" (13). Trata-se, portanto, de uma superao do VCrstand pela VCrnunft dialtica que, diante do desencantamento capitalista do mundo, abre-se para uma dimenso religiosa imanente, a uma s vez, sagrada e profana.

    Melhor que o termo religio (mesmo imanente), o qual poderia causar confuso, a palavra f que lhe parece mais apta a significar aquilo que ambas essas atitudes - apesar de to diferentes uma da outra -, tm em comum. Segun-do Goldmann, pode-se usar o conceito de f - com condio de livr-lo "das contingncias individuais, histricas e sociais que o vinculam a tal ou qual reli-gio precisa, ou at a religies positivas em geral" - para designar certa atitude total, referente a valores transindividuais e capaz de abranger simultaneamente, numa unidade orgnica, "a compreenso da realidade social, o valor que a julga e a ao que a transforma" (14).

    Mastando a suspeita de querer cristianizar o marxismo) Goldmann - por outro lado judeu e racionalista - insiste na oposio constante do marxismo com relao a toda e qualquer religio revelada que afirme a existncia de uma transcendncia sobrenatural ou supra-histrica: '~f marxista uma f no porvir histrico, feito pelos prprios homens ou, mais exatamente, que cabe a ns fazer por nossa atividade, umaaposta sobre o sucesso de nossa aes; a transcendncia que objeto dessa forma de f j no nem sobrenatural, nem trans-histrica, mas supra-individual, nada mais, mas tambm, nada menos". Enquanto pensa-mento racionalista, a dialtica marxista herdeira da fIlosofia das Luzes, mas por sua f em valores transindividuais ela - depois de uma interrupo de seis sculos de racionalismo tomista e cartesiano - reencontra a tradio augustiniana de que se valiam Pascal e os jansenistas. O ato de f, afirma tranqilamente Goldmann, o fundamento comum da epistemologia agostiniana, pascaliana e marxista, em-bora se trate, nos trs casos, de uma f essencialmente diferente: evidncia de transcendente, aposta sobre o transcendente, aposta sobre uma significao imanente (15).

    Se o termo f aparece muitas vezes de forma retrica na literatura marxista, Goldmann o primeiro a ter tentado explorar as implicaes filosficas, ticas, metodolgicas e polticas de tal uso. Sem temer a heresis com respeito tradio

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  • materialista-histrica, ele descobre, graas sua interpretao pouco ortodoxa e profundamente inovadora de Pascal, a afInidade oculta, o tnel subterrneo que religa, por sob a montanha das Luzes, a viso trgica (religiosa) do mundo e o socialismo moderno.

    o ato de f, que se acha no ponto de partida da opo marxista, como qualqur ato semelhante, baseia-se numa aposta: a possibilidade de realizao histrica de uma comunidade humana autntica (o socialismo). Ora, como mostram Pascal e Kant, no h nada, nos juws no indicativo, nos juzos de fato cientficos que permita afIrmar o carter errneo ou vlido da aposta inicial. Essa ltima no pode ser objeto de prova ou demonstrao factual, mas deci-dida por nossa ao comum, pela prxis coletiva. Por outro lado, apenas a rea-lizao futura do socialismo est sujeita aposta: as outras teses ou afIrmaes do marxismo devem ser submetidas " dvida e ao controle permanente dos fatos e da realidade" (16) .

    .As vises individualistas do mundo - racionalistas ou empiristas - ignoram a aposta. Essa no acha lugar seno no cerne das formas de pensamento inspira-das por uma f em valores transindividuais: aquilo que a aposta pascaliana e a dialtica tm em comum o risco) o perigo de fracasso e a esperana do sucesso. O que as distingue a natureza transcendental da primeira (aposta sobre a existncia de Deus) e puramente imanente e histrica da segunda (aposta sobre o triunfo do socialismo na alternativa, oferecida humanidade, da escolha entre o socialismo e a barbrie).

    pergunta: " preciso apostar?", Pascal responde que todo ser humano j "est embarcado". Quaisquer que sejam as diferenas evidentes entre a f de Pascal e a de Marx "a idia de que o homem est embarcado, de que ele tem de apostar, constitui desde Pascal a idia central de todo pensamento ftlosfico consciente de que o homem no uma mnada isolada que se basta a si mesma, mas um elemento parcial, no interior de uma totalidade que o ultrapassa e qual est ligado por suas aspiraes, sua ao e sua f; a idia central de todo pensamento que sabe que o indivduo no tem condio de realizar sozinho, pelas prprias foras, nenhum valor autntico e precisa sempre de um auxlio transindividual, na existncia do qual ele deve apostar pois no poderia viver, nem agir, seno na perspectiva de um sucesso no qual tem de acreditar" (18). Mais do que uma homenagem a Pascal, essa passagem prope uma nova interpretao, bastante heterodoxa, da significao do marxismo enquanto f re1Jolucionria.

    Para um pensamento do progresso linear e da evoluo histrica num ni-co sentido, o paradoxo de um pensamento, a uma s vez, mais lcido e retrgra-do - Pascal diante de Descartes, representante do progresso cientfico e racional- incompreensvel. Goldmann, por sua vez, no hesitava em reconhecer qp.e o

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  • carter trgico e no-revolucionrio do jansenismo permitiu-lhe evitar certas ilu-ses do racionalismo progressista e entender, melhor que esse ltimo, muitos aspectos da condio humana (como o mostrou Lukcs, ''um fenmeno anlogo produziu-se na Alemanha, onde nasceu o pensamento dialtico") (19). Tais ob-servaes poderiam ter sido o ponto de partida de uma crtica marxista da ideolo-gia do progresso, infelizmente nunca cogitada por Goldmann. Ele desconhecia a obra de Walter Benjamin e as publicaes da Escola de Frankfiirt pareciam-lhe demasiadamente pessimistas ...

    A aflrmao audaciosa de uma afinidade eletiva entre a f marxista e a f trgica (crist), e sua comum oposio s vises individualistas do mundo, no teve muita repercusso no pensamento cristo na Frana. Ser preciso esperar at os anos 80, bem depois de sua morte, para que uma corrente crist o mencione: a teologia da libertao latino-americana. Em seu livro La force historique des pauvres (1982), Gustavo Gutierrez, fundador da dita teologia, crtica e inovadora, de inspirao socialista, comunitria, escrevia o seguinte: "O individualismo a marca mais importante da ideologia moderna e da sociedade burguesa. Para a mentali-dade moderna, o homem um comeo absoluto, um centro autnomo de deci-ses. A iniciativa e o interesse individuais so o ponto de partida e o motor da atividade econmica. ( ... ) Como o observa Lucien Goldmann, com perspiccia, o empirismo tambm uma expresso do individualismo. Como o racionalismo, o empirismo igualmente a aflrmao de que a conscincia individual a origem absoluta do conhecimento e da ao". Em nota de p de pgina, Gutierrez faz referncia edio latino-americana do ensaio de Goldmann sobre a ffiosofla das Luzes (Lailustraciny la sociedad actual, Caracas, 1968) e acrescenta: "Muitas das observaes que flzemos sobre a relao entre a mentalidade iluminista e a econo-mia capitalista inspiram-se nesse trabalho". Como o pensamento dialtico de que Goldmann se valia, a reflexo crist de Gutierrez refere-se a um sujeito transindividual: "O locus da teologia da libertao outro. Est entre os pobres do subconsciente, nas massas indgenas, nas classes populares, est na presena desses grupos enquanto sujeito ativo e criador da prpria histria, nas expresses de sua f e esperana no Cristo pobre, nas suas lutas para se libertar" (20).

    Todavia, Gutierrez no se refere aDeus escondido: o desaflo intelectuallan-ado por Goldmann, em sua anlise paralela da aposta pascaliana e da aposta comunitria, flca ainda, em boa parte, por explorar ...

    Notas

    1 Lucien Goldmann, La philosophie des Lumieres, 1960. ln: Structures mentales et cration culturelle. Paris, Editions Anthropos, 1970, p. 29-30.

    2 Idem, Ibidem, p. 27-37.

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  • 3 L. Goldmann, Structures mentales et cration culturelle, cit., p. 41, 89; Le Dieu cach, Paris, Gallimard, 1955, p. 39.

    4 Idem, ibidem, p. 122 e 42, respectivamente.

    5 L. Goldmann, Les sciences humaines et la philosophie, Paris, Gonthier, 1966, p. 128.

    6 Idem, ibidem, p. 24-25.

    7 L. Goldmann, Pense dialectique et sujet transindividuel. ln: La Cration culturelle dans la socit moderne, Paris, Gonthier, 1971, p. 121-154.

    8 Entretien avec L. Goldmann, VH 101, La Thorie, n. 2, E, 19, p. 43.

    9 L. Goldmann, Pour une sociologie'du roman, Paris, Gallimard, 1964, p. 30-31.

    10 Remeto a meu livro (que se inspira amplamente no mtodo de Lucien Goldmann) em colaborao com Robert Sayre, RiPolte et mlancolie) le romantisme contre-courant de la modernit, Paris, Payot, 1992.

    11 L Goldmann, Le Dieu cache, cit., p. 40.

    12 Idem, ibidem, p. 43-44.

    13 L. Goldmann, Structures mentales et cration culturelle, p. 111-112.

    14 L. Goldmann, Le Dieu cache, cit., p. 99.

    15 L. Goldmann, Le Dieu cache) cit., p. 99, 104.

    16 Idem, ibidem, p. 99-100 e Rponse MM. Picard et Daix, Structures mentales et cration culturelle) p.481.

    17 L. Goldmann, Le Dieu cache, cit., p.334-336.

    18 Idem, ibidem, p. 337.

    19 L. Goldmann, Le Dieu cach et le marxisme, Structures mentales et cration culturelle) cit., p. 484.

    20 G. Gutierrez, La force historique des paupres) Paris, Cerf, 1986, p. 173, 203.

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  • Referncias bibliogrficas

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    modernit, Paris, Payot, 1992.

    Michel Lwy diretor de pesquisa em Sociologia do CNRS (Centre N arional de la Rescherce Scientifique, Frana). Foi professor-visitante do IEA-USP no segundo se-mestre de 1988.

    Traduo de Jean Briant. O original em francs - Lucien Goldmann ou le pari communautaire - encontra-se disposio do leitor no IEA-USP para eventual consulta.

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