223
UNIVERDADE DE SÃO PAULO MUSEU DE ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUEOLOGIA MARCEL LOPES OCUPAÇÃO TUPINAMBÁ NO VALE DO PARAÍBA PAULISTA: VISTA A PARTIR DA ANÁLISE DO SÍTIO ARQUEOLÓGICO SANTA MARINA São Paulo 2014

Lopes, Marcel 2014

Embed Size (px)

Citation preview

  • UNIVERDADE DE SO PAULOMUSEU DE ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ARQUEOLOGIA

    MARCEL LOPES

    OCUPAO TUPINAMB NO VALE DO PARABA PAULISTA: VISTA A PARTIR DA ANLISE DO STIO ARQUEOLGICO SANTA MARINA

    So Paulo2014

  • UNIVERDADE DE SO PAULO MUSEU DE ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ARQUEOLOGIA

    OCUPAO TUPINAMB NO VALE DO PARABA PAULISTA: VISTA A PARTIR DA ANLISE DO STIO ARQUEOLGICO SANTA MARINA

    Marcel Lopes

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Arqueologia do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Mestre em Arqueologia.

    rea de Concentrao: Arqueologia.

    Orientadora: Prof. Dra. Marisa Coutinho Afonso.

    Linha de Pesquisa: Espao, Sociedade e Processos de Formao do Registro Arqueolgico.

    Verso corrigida. A verso original encontra-se nas dependncias do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de So Paulo.

    So Paulo 2014

  • 1

    AGRADECIMENTOS

    Agradeo Prof. Dra. Marisa Coutinho Afonso pela orientao, apoio, suporte nessa longa jornada que se iniciou em 2007, logo quando me tornei estagirio do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. Fundao Cultural Jacarey pela disponibilizao de toda a documentao e acesso ao acervo do stio arqueolgico Santa Marina, em especial Cludia Moreira Queiroz. toda equipe do laboratrio 2 do MAE/USP, principalmente aos amigos Paulinho e Dria.

    Aos funcionrios da biblioteca do MAE/USP pela ateno e auxlio, especialmente ao parceiro Hlio Miranda. Amelina Aquino pelas revises e tradues. Danielle Samia pela elaborao da parte grfica. Aos professores do curso de histria das Faculdades Integradas de Jahu: Camlia, Dirceu, Fabrcio, Lisa, Lourdes, Marcos, Nilva pelos incentivos e contribuies ao longa da minha formao acadmica. Prof. Dra. Maria Isabel DAgostinho Fleming pelos estmulos em nossos encontros nos SIICUSPs. Aos docentes do MAE/USP: Fabola Andrea Silva, Jos Roberto Pellini, Lucas Bueno, Maria Beatriz Borba Florenzano e Marisa Coutinho Afonso pelo aprendizado durante a realizao das atividades acadmicas desta instituio. Ao Prof. Jos Luiz de Morais pelas observaes e contribuies no Exame de Qualificao. Prof. Dra. Dominique Tilkin Gallois pela oportunidade de participar do curso Redes de saberes e relaes amerndias e poder saborear formas to singulares de contemplar as populaes indgenas. Aos amigos de trajetria acadmica: Fbio, Jeferson, Murilo, Paulinho e Rui pelas conversas, discusses e debates longo da minha formao.

    Ao amigo e professor Robson Rodrigues pela ajuda e todo incentivo durante meus primeiros passos na arqueologia, alm das importantes contribuies e recomendaes no Exame de Qualificao. Camila A. Morais Wichers, a maior culpada por ter me tornado um amante da cermica Tupiguarani, pelo suporte e apoio incondicional.

  • 2

    Ao prof. Dr. Paulo Zanettini pela oportunidade, estmulos, incentivos e contribuies ao longo da minha formao de arquelogo. Ao amigo ngelo Corra por todo aprendizado, apoio e colaboraes. Aos meus amigos da Zanettini Arqueologia, grandes incentivadores e apoiadores deste trabalho. Alm de pacientes, pois durante longos anos aguentaram todo meu mau humor.

    Aos meus pais Joo e Ins e meu irmo Marcelo, pelo zelo, palavras, carinho e

    compreenso, pois mesmo distantes, sempre estiveram prximos e presentes em minha vida. Renata Freitas, pelo amor, carinho, afeto, zelo e por sempre dizer preu no me preocupar, ter f e ver coragem no amor (...) e se o tempo for te levar, eu sigo essa hora e pego carona, pra te acompanhar ...

  • 3

    RESUMO

    Nesta dissertao apresentamos um amplo quadro da ocupao indgena pr-colonial no vale do Paraba Paulista, localizado na poro leste do Estado de So Paulo. Apesar da diversidade das populaes que habitaram a regio, nosso estudo teve como foco as populaes falantes de lnguas do tronco lingustico Tupi, mais precisamente, aquelas associados aos grupos Tupinamb (lngua e cultura). Para o entendimento destes processos, alm de nos debruarmos sobre as fontes disponveis para regio, desenvolvemos um estudo detalhado do histrico e das atividades realizadas no stio arqueolgico Santa Marina e a anlise apurada do conjunto artefatual cermico e ltico. As aes delineadas ao longo deste trabalho permitem compreendermos as formas utilizadas por estas populaes ao se constiturem e estenderem seus domnios scio-polticos por sculos, ao longo da paisagem valeparaibana.

    Palavras-chave: arqueologia Tupi, cermica Tupiguarani, Tupinamb, Vale do Paraba Paulista, paisagem valeparaibana.

  • 4

    ABSTRACT

    In the present thesis, we exhibited a wide scenario of the pre-colonial indigenous settlement in Vale do Paraba Paulista, situated in the Eastern portion of So Paulo State. In spite of the diversity of populations that inhabited the region, our work is focused on Tupi linguistic branches speakers, precisely, on those associated with Tupinamb groups (language and culture). Aiming to understand that process, a detailed study of the history and activities performed in Santa Marina archeological site was developed, in addition to an accurate analysis of pottery and lytic artifactual sets. Besides that, we looked over the sources at hand for the region. The actions outlined during this work allow us to understand the means those people used in their constituting process and broadening of their social-politic domains through centuries, along the valeparaiban landscape.

    Keywords: Tupi archaeology, Tupiguarani pottery, Tupinamb, Vale do Paraba Paulista, valeparaiban landscape.

  • 5

    LISTAGEM GERAL DE TABELAS, FIGURAS E PRANCHAS

    Lista de tabelas 1.Tipos de rochas e minerais 2.Vestgios arqueolgicos identificados na regio do vale do Paraba Paulista 3.Tradies arqueolgicas distribudas por municpio do vale do Paraba Paulista 4.Grupos indgenas identificados no vale do Paraba Paulista e rea de entorno 5.Porcentagem de peas por setor Etapa 1 6.Porcentagem de peas por quadra Etapa 2 7.Porcentagem de peas por tipo de interveno 8.Resumo das atividades realizadas no stio 9.Distribuio de peas por etapa de pesquisa de campo 10.Total de intervenes realizadas no stio nas trs etapas 11.Detalhamento dos resduos produtivos 12.Categoria das peas analisadas 13.Tipo de acabamento de superfcie interna 14.Tipo de acabamento de superfcie externa 15.Frequncia da cor do engobo por superfcie 16.Espessura das bandas 17.Classificao dos acabamentos plsticos 18.Porcentagem dos acabamentos plsticos 19.Tipo de borda e inclinao 20.Dimetro das bordas 21.Vasilhas referentes as subtradies Guarani e Tupinamb 22.Tipo de matria-prima identificada no stio 23.Tipo de crtex.4 24.Detalhamento das dataes C14 25.Detalhamento das dataes TL

    Lista de figuras 1.Mapa serto desconhecido. 2.Bacia hidrogrfica do rio Paraba do Sul 3.Mapa de solos do vale do Paraba do Sul 4.Pesquisas realizadas em Aparecida

  • 6

    5.Material cermico identificado no municpio de Aparecida 6.Pesquisa realizada por Ruy Tibiri em So Jose dos Campos 7.Material cermico do stio Caninhas municpio de Canas 8.Vasilhas identificadas no stio Light municpio de Jacare 9.Mapa do vale do Paraba Paulista com a indicao de achados fortuitos e/ou stios arqueolgicos 10.Disperso de grupos indgenas pelo vale do Paraba Paulista segundo Knivet 11.Disperso de grupos indgenas pelo vale do Paraba Paulista segundo Nimuendaju 12.Delimitao aproximada do stio Santa Marina 13.reas trabalhadas durante as trs etapas da pesquisa de campo 14.Distribuio das manchas no stio 15.Atividades GPR 16.Atividades GPR 17.Estrutura funerria 18.Atividades realizadas na etapa 2 19.Atividades realizadas na etapa 2 20.Atividades realizadas na etapa 3 21.Atividades realizadas na etapa 3 22.Atividades realizadas na etapa 3 23.Atividades realizadas na etapa 3 24.Atividades realizadas na etapa 3 25.Atividades realizadas na etapa 3 26.Marca do negativo de esteio 27.Atividades realizadas na etapa 3 28.Atividades realizadas na etapa 3 29.Atividades realizadas na etapa 3 30.Atividades realizadas na etapa 3 31.Delimitao bloco testemunho 32.Delimitao bloco testemunho 33.Perfil estratigrfico da rea escavada pelo maquinrio 34.Resduo produtivo identificado na poro sul do stio 35.Calibradores identificados na poro norte do stio 36.Fragmento de fuso 37.Tipos de antiplsticos identificados

  • 7

    38.Espessura dos antiplsticos identificados 39.Frequncia e tipos de pastas 40.Tipo de pastas diferenciadas 41.Exemplos do uso da tcnica acordelada 42.Fluxograma do processo preparatrio de produo cermica 43.Fragmento de vasilha aberta com a identificao da Zona, Banda e Campo Central. 44.Banda vermelha realizada sobre pintura 45.Pintura realizada sobre banda vermelha 46.Fragmento de borda com duas bandas. 47.Fragmento de borda com trs bandas. 48.Fragmento de borda com ausncia de banda. 49.Traos identificados nas zonas superfcies internas 50.Traos identificados nas zonas superfcies externas 51.Linhas imprecisas ou nervosas 52.Pontos formando nuvens de preenchimento. 53.Acabamento plstico repuxado 54.Espessura das peas 55.Urna funerria identificada na poro sul do stio (durante a etapa 2 da escavao) 56.Fragmento de vasilha geminada 57.Fragmento de possvel vasilha geminada com acabamento entalhado no lbio 58.Vasilha em miniatura com apndice 59.Fragmento e perfil de possvel prato 60.Lascas em slex com marcas de uso 61.Ncleo em slex 62.Lminas de machado identificadas no stio 63.Tipos de percutores identificados 64.Provvel polidor ativo, podendo ter sido utilizado para afiar gume de machado 65.Artefato bruto com modificao no intencional provvel uso final, como polidor 66.Plaquetas com marcas de polimento 67.Calibradores em arenito identificados no stio 68.Modelo de disperso Tupi de acordo com Meggers e Evans 69.Modelo de disperso Tupi de acordo com Brochado 70.Modelo de disperso fluxo e refluxo 71.Mapa do vale do Paraba com indicaes da disperso Tupinamb

  • 8

    72.Perfil da geomorfologia do vale do Paraba 73.Localizao dos Tupinamb (e Tamoio) e Tupiniquim pelo vale do Paraba Paulista 74.Anlise intra-stio.

    75.Planta da Aldeia da Queimada Nova 76.Planta do stio Santa Marina distribuio das manchas de terra preta. 77.Planta de uma aldeia Arawet 78.Quadro de dataes do stio Santa Marina 79.Quadro de dataes do stio Santa Marina distribudas espacialmente 80.Croqui esquemtico dos stios Tupinamb localizados na rea de estudo 81.Croqui esquemtico dos stios arqueolgicos distribudos na macro unidade espacial 82.Dataes dos stios arqueolgicos Santa Marina e Villa Branca 83.Croqui esquemtico de uma aldeia Tupinamb

    Lista de pranchas 1.Aspectos da geologia 2.Aspectos da geomorfologia 3.Aspectos da hidrografia 4.Atividades realizadas na etapa 1 5.Atividades realizadas na etapa 2 6.Atividades realizadas por maquinrio pesado 7.Atividades realizadas na etapa 3 8.Atividades realizadas na etapa 3 9.Atividades realizadas na etapa 3 10.Croqui esquemtico com todas as intervenes realizadas no stio 11.Tipos de acabamento pintado 12.Tipos de acabamento plstico 13.Tipos de acabamento plstico 14.Tipos de acabamento plstico 15.Tipos de acabamento plstico 16.Projeo de formas 17.Organizao do espao Tupinamb na rea de estudo

  • 9

    SUMRIO

    INTRODUO .............................................................................................................. 11 CAPTULO 1 ................................................................................................................. 15 1. O VALE DO PARABA PAULISTA: UMA PAISAGEM EM CONSTRUO .... 16 1.1. A criao de uma paisagem desalmada................................................................ 16 1.1.1. Afinal, o que uma paisagem? ............................................................................. 20 1.1.2. Paisagem como construo social ........................................................................ 22 1.1.3. Paisagem e Arqueologia: ligando os pontos ......................................................... 23 1.2. Fisiografia do vale do Paraba Paulista: caractersticas gerais ................................ 29 CAPTULO 2 ................................................................................................................. 45 2. POR ENTRE OS VALES: HISTRICO DA OCUPAO INDGENA NO VALE DO PARABA PAULISTA ........................................................................................... 46 2.1. Juntando os cacos e as pedras: os vestgios arqueolgicos de ontem e de hoje no vale do Paraba Paulista ......................................................................................................... 47 2.2. Dos cacos e pedras s populaes: interpretando os vestgios arqueolgicos ......... 59 2.2.1. As tradies arqueolgicas no vale do Paraba Paulista: caracterizando os vestgios e os stios arqueolgicos ................................................................................................. 60 2.3. As populaes indgenas do vale do Paraba Paulista e rea de entorno nas narrativas dos sculos XVI ao XVIII .............................................................................................. 65 2.3.1. Nomeando pessoas: etnnimos no vale do Paraba Paulista ................................ 72 CAPTULO 3 ................................................................................................................. 77 3. ESCAVANDO O VALE: HISTRICO DA PESQUISA ARQUEOLGICA NO STIO SANTA MARINA .............................................................................................. 78 3.1. Descobrindo o stio: histrico da pesquisa arqueolgica no stio Santa Marina ..... 79 3.2. Descrio das intervenes arqueolgicas realizadas no stio Santa Marina .......... 81 3.2.1. Etapa 1. Intervenes arqueolgicas e resultados obtidos .................................... 82 3.2.2. Etapa 2. Intervenes arqueolgicas e resultados obtidos .................................... 85 3.2.3. Etapa 3. Intervenes arqueolgicas e resultados obtidos .................................... 91 3.3. Por entre os mtodos e tcnicas utilizadas no stio Santa Marina: aplicaes e resultados. ..................................................................................................................... 104 CAPTULO 4 ............................................................................................................... 110 4. ENTRE CACOS E PEDRAS: ANLISE DO CONJUNTO ARTEFATUAL CERMICO E LTICO DO STIO SANTA MARINA .............................................. 111 4.1. Conjunto artefatual cermico................................................................................. 111 4.2. Conjunto artefatual ltico ....................................................................................... 151

  • 10

    CAPTULO 5 ............................................................................................................... 160 5. OCUPANDO O VALE: A ORGANIZAO DO ESPAO TUPI NO VALE DO PARABA PAULISTA ................................................................................................ 161 5.1. Origem e disperso dos grupos Tupi e a ocupao do vale do Paraba Paulista ... 162 5.1.1. Chegando ao Vale: os Tupi no vale do Paraba Paulista .................................... 166 5.2. Organizao espacial do stio Santa Marina: apontamentos preliminares ............ 171 5.2.1. As manchas de terra preta na configurao espacial do stio Santa Marina ....... 172 5.3. Perspectivas para um modelo de organizao social do espao Tupinamb ......... 182 5.3.1. Breve definio dos conceitos Teii, Tekoh e Guar ......................................... 184 5.4. Classificao dos espaos Tupinamb: uma proposta interpretativa para a rea de estudo. ........................................................................................................................... 186 5.4.1. Caracterizao da organizao do espao Tupinamb a partir dos stios arqueolgicos localizados na rea de estudo ................................................................ 188 CONSIDERAES FINAIS ....................................................................................... 194 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ......................................................................... 197

  • 11

    INTRODUO

    O vale do Paraba Paulista, situado na poro leste do Estado de So Paulo, constitui um importante corredor natural de comunicao (SCATAMACCHIA, 2008) pelas vias terrestres ou pelo rio Paraba do Sul. Por sculos, esta paisagem foi testemunha da dinmica scio-poltica das populaes valeparaibanas, formadas tanto por grupos indgenas falantes de lnguas do tronco Tupi quanto do Macro-J.

    A regio, durante os sculos XVI e XVII, foi descrita e narrada por cronistas, viajantes e missionrios, permitindo que a Coroa Portuguesa obtivesse conhecimento sobre suas terras incgnitas e seus habitantes. De posse destas informaes, foi possvel verificar as condies favorveis ou no ao processo de colonizao e domnio dos territrios da Amrica Colonial.

    A literatura colonial, a princpio, rejeitou a possibilidade de reconhecer o outro (AGNOLIN, 2005). Construiu-se ento a imagem dos ndios sombra de sua prpria cultura, selecionando informaes e deixando de acreditar em eventos contrrios lgica que procuravam impor (MOREAU, 2003, p.25). Com isso, a princpio, todas as populaes que se tinham conhecimento foram reunidas em dois grupos, a partir de similaridades lingusticas e culturais, chamados de Tupi e Tapuia.

    Os Tupi foram descritos de forma relativamente extensa e precisa (FERNANDES, 2009), ao contrrio dos Tapuia (associados aos J). Os Tapuia, dispostos no serto, em oposio ao litoral, e aos Tupi, eram considerados brbaros, povos de lngua travada e, principalmente, inimigos diretos dos interesses polticos dos agentes colonizadores da Coroa. Dessa forma, as diferenas lingusticas e culturais potencializavam a segmentao entre os povos indgenas. Estas caractersticas fizeram com que os europeus adotassem a prtica de rotular estas populaes1 atravs da criao de etnnimos2. Para Viveiros de Castro (1993, p.32), a atribuio de etnnimos era fruto de uma incompreenso total da dinmica tnica e poltica do socius amerndio.

    1 Cabe salientar que historiadores, linguistas e antroplogos tambm classificaram os povos indgenas

    com objetivo de determinar sua origem tnica (LOURDES OLIVEIRA, 2006). 2 Nome prprio de uma agrupao tnica (UNTERMANN, 1992).

  • 12

    Para exemplificarmos, na rea de estudo, na documentao existente para os grupos Tupi h meno sobre os Tupinamb, Tupiniquim, Tamoio, Goitac, dentre outros (REIS, 1979). Da mesma maneira, os dados da lingustica histrica apontam para regio a presena de povos com diferenas lingusticas, como o caso dos falantes das lnguas Tupinamb e Tupiniquim (ou Tupi de So Vicente) (RODRIGUES, 2010).

    Cabe salientar que estas populaes saram da Amaznia e percorreram um longo caminho (espacial e temporal) at adentrarem no vale do Paraba Paulista. Os Tupinamb, por exemplo, s estenderam seus domnios pela paisagem de forma contnua a partir da instalao de redes de aldeias que se comunicavam e se interrelacionavam entre si (NOELLI, 2004, p.384).

    De acordo com Fausto (2008, p.384),

    vrias aldeias, possivelmente ligadas por laos de consanguinidade e alianas, mantinham relaes especficas entre si, participando de rituais comuns, reunindo-se para expedies guerreiras de grande porte, auxiliando na defesa do territrio (...), formavam um conjunto multicomunitrio capaz de se expandir e se contrair conforme os jogos de alianas e de guerra.

    nesse contexto que inserimos o stio arqueolgico Santa Marina, na composio e no funcionamento de um amplo e complexo sistema constitudo por unidades menores (aldeias) unidas entre si por laos de parentesco e pelos interesses comuns que eles pressupunham, nas relaes com a natureza, na preservao da integrao tribal e na comunicao com o sagrado (FERNANDES, 2009, p.24). Esta rede de parentesco entre os povoados e grupos familiares autnomos que permitia o intercmbio social e econmico era conhecida como tekoh (NOELLI, 1993) ou tecoaba (ASSIS, 1996).

    O stio arqueolgico Santa Marina, associado a uma ocupao Tupi, est localizado no municpio de Jacare, identificado no incio da dcada de 1970 e amplamente pesquisado nas dcadas de 1990, 2000 e 2009/2010. Estas atividades resultaram na coleta de mais 20 mil peas, entre fragmentos de cermica e artefatos lticos, alm da identificao de inmeros vestgios, como terra preta (solo antropognico), fogueiras, enterramento, etc.

  • 13

    Durante as trs etapas da pesquisa arqueolgica, diferentes mtodos e tcnicas foram utilizados, de acordo com os fundamentos tericos e metodolgicos de cada pesquisador. Consequentemente deparamo-nos com resultados diferenciados (escavaes pontuais, de superfcies amplas, uso de maquinrio pesado etc.), que so avaliados do ponto de vista metodolgico, para que possamos compreender no somente as escolhas e os resultados alcanados, mas tambm a prpria formao do registro arqueolgico (SCHIFFER, 1972).

    Diante do quadro apresentado, esta dissertao tem como objetivos, a partir das fontes da arqueologia, histria e lingustica: exibir o painel da ocupao indgena no vale do Paraba Paulista; detalhar os resultados alcanados por meio das anlises

    empreendidas no stio Santa Marina, mais precisamente, nos conjuntos artefatuais cermico e ltico, uma vez que estes apresentam elementos importantes para

    compreenso da relao entre a organizao social e cultura material por estarem relacionados a uma mesma matriz cultural (SOARES, 1997); apresentar os elementos que nos permitam associar este stio a uma ocupao Tupinamb e; por fim, a partir dos modelos de organizao social do espao Tupi e, por meio da insero dos stios arqueolgicos Tupi presentes no municpio de Jacare, compreender a ocupao no vale do Paraba Paulista em uma perspectiva maior, inserida no complexo scio-poltico Tupinamb.

    Para isso, a presente dissertao est organizada da maneira que segue.

    No primeiro captulo, apresentamos o vale do Paraba Paulista a partir do conceito de paisagem, enquanto construo social. Com isso, detalhamos este conceito to amplo e cheio de veredas (MENEZES, 2002) de forma que possamos dialogar com elementos afins da arqueologia (como padro de assentamento, espacialidade, sistema regional, etc.). Por fim, exibimos os aspectos da fisiografia da regio, uma vez que a ocupao humana no se d no abstrato, pressupe a natureza do ambiente fsico (MANO, 2006).

    Em seguida, no segundo captulo, adentramos a paisagem valeparaibana e exibimos o histrico da ocupao indgena na regio. Para tanto, sistematizamos os dados arqueolgicos (stios e achados fortuitos) presentes na regio e os associamos s populaes indgenas; em seguida, organizamos os elementos advindos das narrativas

  • 14

    coloniais dos sculos XVI e XVII e; por fim, discutimos, a partir desses elementos, a composio das populaes indgenas no Vale do Paraba Paulista.

    Todos os dados provenientes do stio Santa Marina so destacados no terceiro captulo. Exibimos tambm o histrico das pesquisas realizadas no stio, que envolve os inmeros trabalhos realizados em pocas distintas; alm disso, fazemos uma breve discusso interpretativa dos usos dos mtodos e tcnicas utilizadas na pesquisa, buscando avaliar a aplicao e os resultados destas intervenes.

    No quarto captulo, detalhamos, a partir do conceito de cadeia operatria (LEMONIER, 1993), os resultados das anlises empreendidas no conjunto artefatual cermico e ltico.

    No quinto captulo, a partir da proposio de que no h stios arqueolgicos isolados nem sequer na periferia dos assentamentos Tupi (NOELLI, 2004), discutimos as possveis relaes existentes entre o stio Santa Marina e a paisagem valeparaibana, por meio da existncia de redes regionais e da estrutura scio-poltica de alianas sustentadas por intercmbios permanentes. Utilizamo-nos dos conceitos de teii, tekoh (tecoaba) e guar para compreender a organizao social do espao Tupinamb.

    Por fim, apresentamos nas consideraes finais os resultados alcanados e os pontos pertinentes obtidos durante a realizao desta dissertao.

  • CAPTULO 1

    The landscape is constituted as an enduring record of and testimony to the lives and works of past generations who have dwelt within it, and in so doing, have left there something of themselves*.

    Tim Ingold (1993)

    * A paisagem constituda por um registro duradouro de e testemunha das vidas e trabalhos de geraes

    passadas que habitaram dentro dela, e desta feita, deixaram l algo de si mesmas.

  • 16

    1. O VALE DO PARABA PAULISTA: UMA PAISAGEM EM CONSTRUO

    O vale do Paraba Paulista, localizado entre as ngremes encostas das serras do Mar e da Mantiqueira, foi testemunha, por sculos, dos processos que envolveram diferentes formas de ocupao humana. Pelas fontes da histria e, mais recentemente, pelos dados arqueolgicos, sabe-se que o Vale constituiu um imenso mosaico cultural formado por grupos indgenas falantes de lnguas pertencentes tanto ao tronco lingustico Tupi quanto ao Macro-J. No entanto, forjou-se em discursos contemporneos a homogeneizao dessa diversidade em uma regio1 chamada aqui de Vale do Paraba, ou, em tempos atrs, o serto por onde corre o rio Paraba do Sul. Para que possamos entender o contexto no qual o stio arqueolgico Santa Marina est inserido, faz-se necessrio conhecer previamente o Vale do Paraba Paulista2, tanto os elementos que compuseram suas caractersticas simblicas (e ideolgicas) como os aspectos fsicos que concebem a formao da paisagem valeparaibana.

    1.1. A criao de uma paisagem desalmada

    Durante o processo inicial da colonizao europeia, as narrativas compostas sobre a Amrica Colonial detalhavam, dentre outras coisas, a ideia de uma geografia americana formada tanto pela prpria noo de espacialidade do nativo como pela ao dos agentes colonizadores, que tinham como objetivo garantir estratgias de domnio do territrio americano. De acordo com Kok (2004, p.18), a Coroa assegurou o poder para alm do visvel, de um territrio promissor conformado na fronteira do mito e da experincia, convencionalmente chamado pelos europeus de serto. Estabeleceu-se um ponto em comum ao caracterizar a paisagem, distante do litoral e no interior de um dado lugar, que carregou consigo representaes com

    1 Regio aqui entendida como um conjunto de lugares onde as diferenas internas entre esses lugares

    so menores que as existentes entre eles e qualquer elemento de outro conjunto de lugares (CORRA, 1986, p.32). 2Localizado a leste do Estado de So Paulo, o vale do Paraba Paulista contempla a mesorregio formada por 39 municpios agrupados em seis microrregies. O stio arqueolgico Santa Marina, situado no municpio de Jacare, est inserido na microrregio de So Jos dos Campos.

  • 17

    sentidos mais sutis, que de uma forma ou de outra acabaram por personificar estas regies (AMANTINO, 2008, p.33). Dessa forma, neste perodo, o uso da palavra serto destinava-se

    a um local inculto, distante de povoaes ou de terras cultivadas e longe da costa. oriundo do radical latino desertanu que se traduz como uma idia geogrfica e espacial de deserto, de interior e de vazio (...) o fato de o serto ser identificado enquanto um deserto remete sempre noo de que era vazio de elementos civilizados (Ibidem, p.33).

    O serto ento trazia consigo a dificuldade de transitar e o perigo eminente.

    Na regio do vale do Paraba Paulista3, no foi diferente. Durante a passagem do padre Cristvo de Gouveia (visitante da Companhia de Jesus), o jesuta que o acompanhava, Ferno Cardim, narra que, ao passar pela Serra do Mar no ano de 1585, o caminho to ngreme que s vezes amos pegando com as mos (...) todo o caminho cheio de tijucos, o peor que nunca vi, e sempre amos subindo e descendo serras altssimas e passando rio caudaes e agua frigidissima (CARDIM, 1980 apud KOK, 2004, p.27).

    A ideia da regio valeparaibana como serto permaneceu at o sculo XVIII. Na Figura 1, elaborada por Pereira dos Reis4 (1979, p.41), possvel visualizar, na rea nordeste do mapa, a designao serto desconhecido em sua maior parte. Nessa regio atualmente se encontram os municpios de Bananal, Cruzeiro, Cunha dentre outros que foram fundados durante os sculos XVII e XIX.

    3 As pesquisas realizadas por Paulo Pereira dos Reis durante as dcadas de 1960 e 1970 buscaram compor

    o quadro histrico da ocupao indgena na regio do Vale do Paraba. Dentre estas, destaca-se o livro publicado em 1979 e intitulado O indgena do Vale do Paraba, pois detalha a participao dos cronistas e escritores na identificao e composio social dos ndios da regio. De acordo com o autor, h referncias do vale do Paraba feitas por: Diogo Garcia (1527), Padre Manuel de Nbrega (1549), de Ulrico Schmidl (1552), Hans Staden (1557), Andr Thevet (1555), Jean de Lry (1556), Magalhes Gandavo (1576) e Gabriel Soares (1587). 4 Este mapa foi composto a partir do levantamento de uma extensa bibliografia que compreende crnicas

    e outros documentos dos sculos XVI e XVII.

  • 18

    Figura 1. Mapa elaborado por Pereira dos Reis (1979) definindo as reas de ocupao de vilas e aldeias indgenas e, na poro nordeste, rea de serto desconhecido.

    Portanto, o espao geogrfico desconhecido na Amrica Colonial constituiu uma paisagem natural, virgem, destituda de sinais de interferncias humanas, regies desertas, onde quando muito perambulavam ndios (CORRA, 2006, p.66), gerando mltiplas e conflitantes representaes e prticas (MENEZES, 2002).

    Esses ndios perambulantes, aos olhos dos europeus, compartilhavam certas caractersticas em comum com a chamada cultura Tupi (que permanecia radicalmente segmentada) e as sociedades no-Tupi (representadas por dezenas de famlias lingusticas distintas), ou ditas Tapuias. As duas categorias genricas estavam bem fundamentadas, na medida em que identificava trajetrias histricas diferentes e formas de organizao social distintas, fato este destacado em virtualmente todas as fontes quinhentistas (MONTEIRO, 1994, p.20). A interpretao historiogrfica, por sua vez, feita a partir da leitura dos relatos de cronistas do sculo XVI e XVII, ignorou a dinmica interna do Brasil indgena (Ibidem, p.18), alm de permanecer com interpretaes sobre o serto de forma tradicional. Para

  • 19

    exemplificarmos, Capistrano de Abreu5 (1924) detalhou tal paisagem desconhecida de forma que ele, como narrador,

    estivesse situado na costa, observando o Brasil como algum que est aportando. Jamais ultrapassou a linha formada pelas terras efetivamente apropriadas, dominadas e povoadas pelos colonos. Alm desse territrio estava o serto, mas, embora afirme a sua importncia para o entendimento da formao do Brasil, jamais penetra, esboa-o como se estivesse muito longe. Quando busca avanar, a sua descrio perde objetividade e o que exibe um cenrio caracterizado de forma genrica por seus aspectos geogrficos, sugerindo uma natureza virgem (CORRA, 2006, p.66).

    evidente que outros estudos, como Buarque de Holanda, abordaram a questo de forma dessemelhante, principalmente com as publicaes de Mones em 1945 e Caminhos e Fronteiras em 1957, no qual o autor adentra no cenrio desconhecido, as veredas de p posto. A partir da, a historiografia avana com novos elementos interpretativos por meio dos estudos dos movimentos das bandeiras paulistas de aprisionamento e de explorao de minrios que se deram no decorrer do sculo XVIII (MENDONA, 2009). No vale do Paraba Paulista, por exemplo, esse movimento foi intenso, pois a regio se constitua como uma precpua via para o intercmbio de populaes do planalto, caminho fulcral entre o litoral e o serto, onde se percorria a p, pelas trilhas indgenas ou pelo rio Paraba (KOK, 2004). No entanto, de acordo com Corra (2006, p.65), os estudos historiogrficos que trataram a paisagem colonial impossibilitaram a concepo desse cenrio como algo que ia alm das fazendas e das vilas, no obstante a vigncia de uma paisagem indgena comprimida em aldeias e aldeamentos de ndios cristianizados, os quais, no raro, encontravam-se prximo do povoamento colonial e politicamente compunham um mesmo territrio.

    5 Esta exemplificao est baseada no estudo desenvolvido por Dora Shellard Corra (2004 e 2006), no

    qual a autora trabalha com a insero do espao geogrfico no relato historiogrfico, baseada principalmente nos trabalhos de Capistrano de Abreu e Caio Prado Jnior. Para a autora, a paisagem construda pelos ndios, resultado de suas relaes com a natureza, omitida nessa memria j consolidada na historiografia brasileira (...) o espao natural, natureza virgem, caracterizado pela mata escura, fechada, tropical, pela caatinga, pela zona rida, mas tambm pelo espao aberto de difcil trnsito, pelos campos com vegetao rasteira, por rios encachoeirados (...) onde os ndios se escondem nas matas, vivem errantes isolados em pequenos grupos, e poucas marcas deixam de sua existncia (2006, p.67).

  • 20

    Tem-se, ento, dois movimentos concomitantes: o detalhamento da paisagem da Amrica Colonial, e a descrio metaforizada das populaes indgenas (MOREAU, 2003; FONSECA, 2011). Desse movimento, cristalizou-se a ideia do serto em oposio ao litoral, propiciando interpretaes alusivas ao desconhecido.

    Para que seja possvel desvencilhar da acepo do vale do Paraba Paulista enquanto um lugar vazio e natural na perspectiva sertanista, e associ-lo dinmica e heterogeneidade das populaes locais, necessrio explorar o conceito de paisagem enquanto uma construo social, tornando-a, dessa maneira, prerrogativa a quaisquer interpretaes feita regio em estudo.

    1.1.1. Afinal, o que uma paisagem?

    A etimologia da palavra paisagem nos remete a diferentes contextos de definies e criaes. No contexto francs, por exemplo, paisagem (paysage o radical pay significa ao mesmo tempo habitante e territrio) foi definida pela geografia descritiva em seus aspectos naturais; j no alemo (landschaft origem landschaffer, que significa criar a terra, produzir a terra) estabeleceu um complexo natural relacionado ao humana onde paisagem e cultura se interligavam (NAME, 2010; POZZO & VIDAL, 2010).

    Em um primeiro momento, o termo paisagem foi utilizado como representao, numa tela, de um determinado acontecimento enquadrado por uma dada realidade geogrfica (ALVES, 2001). Foi com a pintura no Renascimento italiano e holands (COSGROVE, 1984) que a paisagem se tornou um meio particular de ver, uma tcnica linear de perspectiva (...) que tinha como objetivo criar imagens realistas da natureza (PELLINI, 2009). Natureza no sentido de pureza (SIEWERDT, 2007), contemplao (SALGUEIRO, 2001) e, principalmente, de artializao6.

    Na literatura, a natureza tambm era admirada em sua forma plena nas narrativas sobre o mar, as montanhas e os desertos (LUCHIARI, 2001); idealizada entre a beleza e

    6A ideia de artializao trabalhada por Roger (1997) concebe a paisagem ou um territrio a partir do momento em que h a transformao de um espao visvel atravs de uma apreciao esttica favorvel. Assim, os espaos penosos e repulsivos ou desconhecidos, como aqueles encontrarmos pelos europeus na Amrica Colonial, foram, aos poucos, reavaliados, segundo novos modelos paisagsticos associados a esses espaos (ALVES, 2001).

  • 21

    a harmonia, possibilitando a captura de uma realidade verdadeira (GOMES, 2001). As narrativas representavam no somente o resultado de uma construo mental individual, mas tambm o produto da evoluo das representaes coletivas (ALVES, 2001).

    Cabe lembrar que a definio da concepo de paisagem esteve imbuda de aspectos religiosos, os quais se amenizaram durante os sculos XVIII e XIX, quando ocorreu um processo de laicizao da paisagem, frente ideia crescente de urbanizao, do homem urbanizado. Mais alm, no decorrer dos sculos XIX e XX, a paisagem como representao da natureza estabelece um continuum entre seus aspectos fsicos e culturais, sendo que este ltimo o resultado da transformao do homem sobre o meio. Destarte passou-se a reconhecer a dialtica entre sociedade e cultura de um lado, e o ambiente natural de outro, onde de acordo com Seibert (2006, p.XVI-XVII), as percepes das pessoas do forma a como vem o ambiente, e o ambiente, por sua vez, d forma s percepes culturais de paisagem existentes em uma dada sociedade*. No decorrer do sculo XX, o estudo da paisagem ganha novos aspectos interpretativos, tornando-se plural e acintosa em todas as reas do conhecimento, em um processo ininterrupto de transformaes7, as quais constituem alternativas que no se excluem (MENEZES, 2002). Inmeras so as possibilidades terico-metodolgicas de interpretao, que vo desde vieses da histria agrria (BLOCH, 2001), da cognio (FARINA & BELGRANO, 2004), da fenomenologia (TUAN, 1983; BACHELARD, 1998; MERLEAU-PONTY, 1999), aos histrico-culturalistas (MEGGERS & EVANS, 1973), processualistas (BINFORD, 1982; CLARKE, 1977; KENT, 1987) e ps-processualistas (HODDER & ORTON, 1987; PERSON & SHANKS, 2001).

    Diante das diferentes possibilidades interpretativas do conceito de paisagem, apresentamos a seguir alguns pontos e alternativas existentes que no se excluem, mas

    apontam o posicionamento terico e metodolgico da pesquisa em apreo.

    *peoples perceptions shape how they see the environment, and the enviroment, in turn, shapes the prevailing cultural perpections of landscape in a given society (SEIBERT, 2006, pp.XVI-XVII). 7Da mesma forma que outros aspectos tericos e metodolgicos se redefinem e se recriam, a ideia de paisagem enquanto discurso tambm se renova e os interditos so rediscutidos, e mesmo algo da singularidade que permite definir uma matriz disciplinar no interior da rede de saberes pode sofrer variaes mais ou menos significativas medida que surgem novos paradigmas e contribuies terico-metodolgicos (BARROS, 2010, p.37).

  • 22

    1.1.2. Paisagem como construo social

    O estudo da paisagem amplo e cheio de veredas (MENEZES, 2002), possui elasticidade e ambiguidade, portanto impossvel apreend-la de forma totalizante e encarcer-la em uma definio nica (NAME, 2010). Falar em paisagem, consequentemente, assumir uma posio ou um recorte terico que necessariamente no levar ao esgotamento da bibliografia sobre o tema, mas possibilitar o exerccio do posicionamento do pesquisador frente s possibilidades interpretativas do objeto em questo.

    Com isso, entendemos paisagem como uma construo social que est

    condicionada pela capacidade do indivduo em reter, reproduzir e distinguir elementos significativos (culturais ou naturais, circunstanciais ou processuais, adventcios ou genunos, entre outros aspectos) desse mosaico construdo. A paisagem evoca significados a partir dos signos e valores atribudos. Esses signos assumem amplo espectro de propriedades e escalas numa grande semntica prpria (GOMES, 2001, p.57).

    Tais signos so apropriaes estticas e sensoriais, logo, no h paisagem sem

    observador. A percepo visual, segundo Menezes (2002), uma condio fundamental para existncia cultural da paisagem. Do mesmo modo, para o autor, no se pode negar que ela tenha uma natureza objetiva, que seja um objeto, pois consider-la antes de mais nada como objetivo (portanto um dado, um a priori) ainda permanecer num horizonte restrito, que no seria suficiente para dar conta de todas as dimenses do fenmeno (Ibidem, p.32). Por outro lado, para alm da ideia de natureza, o termo paisagem tambm frequentemente relacionado com a palavra espao ou lugar. Se a paisagem, como vimos, uma construo social apropriada pelo homem, o espao aquilo que d movimento, vida, a essa paisagem. Santos (1994, p.72) afirma que a paisagem a materializao de um instante da sociedade (...), homens fixos como numa fotografia; o espao, contrariamente, contm o movimento, onde as relaes sociais se estabelecem. Nesse sentido, De Certeau (1998, p.202) caracteriza o espao da seguinte forma:

  • 23

    Existe espao sempre que se tomam em conta vetores de direo, quantidades de velocidade e a varivel tempo. O espao um cruzamento de mveis. de certo modo animado pelo conjunto de movimentos que a se desdobram. Espao o efeito produzido pelas operaes que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidades contratuais (...). Em suma, o espao um lugar praticado. Assim a rua geometricamente definida por um urbanismo transformada em espao pelos pedestres.

    De qualquer modo, paisagem e espao esto intrinsecamente relacionados, so familiares e complementares (FRMONT, 1976; TUAN, 1983). Dessa forma, tanto a paisagem valeparaibana quanto o espao no qual o stio arqueolgico Santa Marina est inserido estabelecem um carter de fenmeno social construdo pela ao transformadora dos grupos sociais, exercida por atividades dirias que so socializadas em regras e transformadas em aes corporificadas (BOURDIEU, 1983). Ou seja, como se o espao estabelecesse um senso de identidade para as pessoas que os habitam, conforme coloca Hodder (1987).

    Com isso, o entendimento do stio vai alm de seus limites espaciais, expandindo-os ao entorno imediato, ou seja, na

    paisagem onde se inserem os assentamentos pr-histricos, visto tanto em uma perspectiva natural (...) quanto em sua condio simblica, interpretada e simbolizada pelos grupos que a ocuparam, fazendo parte de sua organizao social como um todo. (FAGUNDES & PIUZANA, 2010, p.210).

    1.1.3. Paisagem e Arqueologia: ligando os pontos

    No campo da arqueologia, a pluralidade dos temas que envolvem o estudo da paisagem (Arqueologia Espacial, Arqueologia da Paisagem, Arqueologia Regional, Arqueologia do Lugar, dentre outros) encontra no stio arqueolgico a unidade de interpretao do comportamento humano8. Comportamento este que est diretamente

    8 Neste ponto, cabe salientar que no existe uma nica definio de stio arqueolgico. De acordo com

    Morais (1999, p.4), qualquer definio vlida, desde que se ajuste a determinado escopo, para a soluo de certo problema. Este autor, por exemplo, em seus trabalhos realizados no trecho paulista da bacia do Rio Paranapanema, no mbito do PROJPAR (Projeto Paranapanema) caracteriza o stio

  • 24

    relacionado a conceitos caros arqueologia, como: continuidade e mudana, simbolismo, organizao tecnolgica, mobilidade, obteno de recursos, sistema de assentamentos e suas interconexes, etc. (Ibidem, 2010).

    Uma discusso se fundamenta com o estabelecimento do Processualismo por volta da dcada de 1960, ultrapassando, segundo Renfrew e Bahn (1993), o impasse criado pelo empirismo e descritivismo do Histrico-culturalismo. Dentre as novas possibilidades de se interpretar a formao do registro arqueolgico, pensar espacialidade facilitou o estabelecimento de novas caractersticas ao estudo de padres de assentamento dos stios e as relaes inter-stios em uma perspectiva quantitativa, com abordagens geomtricas, geogrficas e ecolgicas (ASSIS, 1996). Da mesma forma, possibilitou a identificao de reas de captao de recursos e do raio de explorao do potencial em torno de um stio arqueolgico (TRIGGER, 2004).

    Nessa perspectiva, destacam-se os trabalhos de Clarke (1977), porque estabeleceram modelos com tcnicas estatsticas e quantitativas da ocupao do espao, permitindo, dessa maneira, captar regularidades e definir padres de povoamento e suas relaes existentes com o meio ambiente, tendo como princpio bsico a otimizao dos recursos naturais (CARVALHO, 2007, p.36-37). A perspectiva espacial foi influenciada pelo padro de site catchment analysis, formulado por Vita-Finzi e Higgs (1970), baseado em modelos espaciais importados da Geografia Locacional, que tinha como objetivo avaliar as potencialidades naturais de um dado territrio ideal de explorao, relacionando-as com a tecnologia empregada (Ibidem, p.37). De acordo com Carvalho (2007), este horizonte foi duramente criticado pela corrente Ps-processualista, que buscava estabelecer um quadro terico centrado nas variveis individuais dos processos na construo social da paisagem. No Processualismo, em sentido oposto, isto incidia

    exclusivamente sobre as dimenses fsicas e visveis da sociedade, limitando-se, numa perspectiva funcionalista, a procurar determinar-lhes a sua funo prtica e tentando explicar sob uma perspectiva meramente econmica, e luz de um determinismo ambiental, a relao homem-meio, simplificando quantificando e reduzindo a modelos uma realidade que na sua essncia era bastante mais complexa (Ibidem, p.42).

    arqueolgico como a menor unidade de espao passvel de investigao, dotada de objetos intencionalmente produzidos ou rearranjados, que testemunham as aes de sociedades do passado.

  • 25

    As questes ambientais ainda estabeleciam forte influncia no Processualismo, pois se acreditava que a mudana cultural era uma resposta a um desequilbrio temporrio provocado por mudanas ambientais (TRIGGER, 2004, p.260). Esses fatores j dialogavam com as discusses propostas da chamada Arqueologia Ecolgica, influenciada pelos trabalhos de Steward (1937, 1938, 1955). Steward, por exemplo, denominou como ecologia cultural a maneira como a adaptao ao ambiente poderia levar a mudanas culturais. Nesse sentido, a arqueologia baseou os estudos de ecologia cultural basicamente em trs pontos: os artefatos serem vestgios do comportamento social e da cultura humana; a realizao de estudos de padro de assentamento levar em considerao as caractersticas fsicas e humanas existentes; e o papel ativo das variveis ambientais no desenvolvimento das sociedades (ROBRAHN-GONZLEZ, 1999-2000, p.18).

    No Brasil, o modelo de reas culturais aplicadas pelo Programa Nacional de Pesquisas Arqueolgicas (PRONAPA) tomou como base propostas metodolgicas sob o enfoque ambientalista de Steward. Nesse sentido, os trabalhos realizados por Meggers e Evans, principalmente na Amaznia, trouxeram consigo um pouco do neo-evolucionismo da arqueologia americana e da ecologia cultural dos anos de 1950. De acordo com Barreto (1999-2000),

    essas culturas foram usadas em terreno brasileiro, identificando variantes culturais ou etnias a uma determinada distribuio de artefatos no tempo ou espao, se assemelha mais s prticas do difusionismo cultural europeu do que ao neo-evolucionismo ecolgico americano. O uso de tais categorias, ainda um tanto ambguas quanto ao tipo de unidades socioculturais que designam, marcou definitivamente a arqueologia brasileira (Ibidem, p.45).

    Ainda com relao ao Ps-processualismo, no decorrer das dcadas de 1970 e 1980, os fenmenos e as relaes entre o homem e seu ambiente atendia novas perspectivas. Para Ribeiro (2007),

    considerando-se que meio-ambiente o palco da ao humana, mais do que bvio que a cultura material (e toda a sua carga simblica) a est compreendida. A adaptao ao meio ambiente no se restringe (...) a mecanismos banais e direitos de uma refrega cotidiana entre o homem e o meio fsico. A adaptao refere-se aos mecanismos de sobrevivncia humana em todos os nveis

  • 26

    ambientais e o contexto histrico-social claramente comporta o contexto geo-fsico, sobre o qual o homem age (Ibidem, p.95).

    Dessa forma, a arqueologia da paisagem avana a novas questes terico-metodolgicas (SCHIFFER, 1972; KENT, 1984; HODDER & ORTON, 1987). Dentre as possibilidades, apresentamos sinteticamente alguns dos pontos que permitem a interpretao da paisagem enquanto construo social.

    No artigo de Binford publicado no ano de 1982, intitulado Archaeology of the Place, h uma discusso sobre o sistema regional de assentamento, na qual o autor coloca que, por meio do registro arqueolgico, possvel se obter informaes sobre a organizao da ao humana que ocorreu no stio*. Logo, foram estabelecidos processos repetitivos de padres de deposio (palimpsestos) durante o sistema adaptativo no espao geogrfico, gerando assentamentos perceptveis por meio da formao do registro arqueolgico.

    Em similar perspectiva terica e analtica, mas com objetivos especficos, Zedeo & Bowser publicam em 2009 o artigo Archaeology of Meaningful Places, definindo paisagem como lugares onde existem conexes entre identidades, trajetrias e memrias, onde as pessoas e significados convergem em mltiplas escalas de processos que criam o registro do comportamento humano. De acordo com as autoras,

    Lugar distinto de stio na modificao humana mensurvel ou visvel, no uma necessria e suficiente condio de lugar, enquanto stio , por definio da Arqueologia, uma categoria arbitrria na sistemtica arqueolgica que contm evidncia material de atividade humana. (...) Essa distino importante no pressupe que um lugar arqueolgico exista fora da referncia material. Ao contrrio, sugere que a ao humana, quer aleatria, oportunista ou proposital, cria e modifica lugares e marca seu significado de maneiras nem sempre respondveis pela anlise arqueolgica tradicional. (...) Lugar, como locus de atividade, deve ser a unidade de interesse da pesquisa arqueolgica porque apreende melhor a amplitude da variao em interaes homem-

    *about the organization of the human action which occurred at the site. (BINFORD, 1982).

  • 27

    solo e homem-recursos que caracterizaram a organizao de sistemas culturais do passado* (ZEDEO & BOWSER, 2009, p.7).

    Nas linhas acima, as autoras seguem um movimento que busca, a todo o momento, a inter-relao entre cultura, sociedade e espao, entre sistemas de pensamento, formaes econmico-sociais e paisagem** (CRIADO BOADO, 1999, p.6), com intuito de compreender o estudo de todos os processos sociais e histricos sem sua dimenso espacial, ou melhor, que pretende reconstruir e interpretar as paisagens arqueolgicas a partir dos objetos que os especificam*** (Ibidem, p.12). Assim, para Criado Boado (1999, p.1),

    A compreenso dessas dimenses, no entanto, no apenas fundamental para entender o passado dos seres humanos no mundo (j que uma parte fundamental desta histria o modo como o ser est no mundo e isto implica antes de tudo determinar como ele se adapta, modifica, utiliza, organiza e compreende o espao), mas que, alm disso, possui uma certa utilidade crtica e atual (j que se relaciona com temas que esto muito prximos da sensibilidade e preocupaes as quais na atualidade enfrentam nossas sociedades)****.

    * Place is distinct from site in the visible or measurable human modification is not a necessary and

    sufficient condition of place, whereas site is, by archaeological definition, an arbitrary category in archaeological systematics that contains material evidence of human activity (...). This important distinction does not imply that an archaeological place exists outside a material reference; rather, it suggests that human action, whether random, opportunistic, or purposeful, creates and modifies places and marks their significance in ways not always is amenable to traditional archaeological analysis (...) Place, as an activity locus, should be the unit interest in archaeological research because it best captures the range of variation in human-land and human-resource interactions that characterized the organization of past cultural systems (ZEDEO & BOWSER, 2009, p.7). **

    interrelacin entre cultura, sociedade y spacio, entre sistemas de pensamento, formaciones econmico-sociales y paisaje. (CRIADO BOADO, 1999, p.6). ***

    compreender el estdio de todos los processos sociales e histricos sem su dimensin espacial o, mejor, que pretende reconstruir e interpretar los paisajes arqueolgicos a partir de los objetos que los concretam (Ibidem, p.12). ****

    La comprensin de estas dimensiones, sin embargo, no slo es de importancia bsica para entender el passado de los seres humanos en el mundo (ya que una parte fundamental de esta historia es el modo como el ser est en el mundo y esto implica ante todo determinar cmo se adapta, modifica, utiliza, organiza y compreende el espacio), sino que adems posee una certa utilidade crtica y actual (ya que se relaciona com temas que estn muy prximos de la sensibilidade y preocupaciones a las que en la actualidad se enfrentan nuestras sociedades) (Ibidem, p.1).

  • 28

    Nota-se que tanto Zedeo & Bowser quanto Criado Boado interpretam o stio arqueolgico alm dos vestgios que os qualificam como tal. Por extenso, os aspectos culturais, sociais e econmicos do stio esto intrinsecamente relacionados com a paisagem em uma perspectiva mais ampla e perene. Essas caractersticas tambm permeiam o conceito de persistent places, utilizado por Schlanger (1988, 1992), e nos parece oportuno. Para ele, o termo citado usado para descrever os locais da paisagem que eram foco de atividades repetidas ao longo do tempo (SCHLANGER, 1992). O autor afirma que persistent places podem aparecer em trs momentos:

    Primeiro, atravs do reconhecimento de qualidades nicas onde locais particulares esto ajustados a certas atividades; segundo, atravs de vestgios que focam reocupaes uma vez construdas, atraindo reuso e reocupao, e estruturando atividades posteriores; e terceiro, atravs de processos de ocupao e revisitao de longa durao* (SCHLANGER, 1992, p.92).

    Concluindo, buscamos reunir os trabalhos que de alguma forma tratam a paisagem (ou as paisagens) totalmente dinmica, onde os indivduos transformam-na e so transformados, em diferentes processos de experimentao e construo. evidente que h inmeros posicionamentos quanto ao uso desta abordagem, mas o consenso que se estabelece que o entorno de ambientao onde se insere um stio arqueolgico, construdo em funo do uso e da ocupao do solo, ajuda-nos na tarefa de entender a vida pregressa e a cultura (MORAIS, 1999, p.13). Para que possamos compreender esta paisagem em todos os seus aspectos e, tendo em vista que a construo da ocupao humana do vale do Paraba Paulista no se deu no abstrato, pois pressupe a natureza do ambiente fsico (MANO, 2006, p.14), faz-se igualmente necessrio apresentar alguns dos aspectos desta regio, os quais possibilitam a reflexo sobre pontos pertinentes de qualquer pesquisa arqueolgica, como: saber sobre a integrao e interao dos grupos indgenas com o ambiente em seus aspectos fsicos; quais eram as estratgias de captao de recursos da fauna e flora;

    * First, through the recognition of unique qualities whereby particular locales are suited to certain

    activities; second, through remains that focus reoccupations once built, attracting reuse and reoccupation and structuring later activities; and third, through long term processes of occupation and revisitation (SCHLANGER, 1992, p.92).

  • 29

    as preferncias por locais em detrimento de outros; as reas de ocorrncia litolgica favorveis obteno de matrias-primas, etc. (MORAIS, 1999, p.7).

    1.2. Fisiografia do vale do Paraba Paulista: caractersticas gerais

    O vale do Paraba Paulista apresentou recursos necessrios para a sobrevivncia das populaes indgenas que ocuparam a regio, da mesma forma que propiciou ao longo do tempo que os indivduos pudessem dar e adquirir significados particulares e conotaes especficas nos lugares habitados (TILLEY, 1994). Com isso, a relao entre o homem com seu ambiente, por meio de apropriaes fsicas9 e simblicas do espao tornou possvel o estabelecimento das populaes na paisagem valeparaibana por um longo perodo de tempo. A relao duradoura de uso e ocupao de um espao, chamado por Schlanger (1992) de persistente place, criou um ambiente prprio, j distinto daquele que uma vez fora ocupado em seu estado natural, e se ope a um lugar re-ocupado anteriormente, com isso, longos processos de ocupao e re-visitao de um locus podem gerar um atrativo que depende apenas dos conjuntos materiais e artefatuais que contm em si (SILVA-MENDES, 2007, p.156),

    Busca-se aqui, de forma sinttica, apresentar os aspectos da fisiografia do vale do Paraba Paulista - enfatizando o municpio de Jacare e rea de entorno - para que possamos identificar os aspectos fsicos que possibilitaram o uso continuado da regio.

    Aspectos gerais da Geologia

    A regio do Vale est inserida na faixa de dobramentos leste-sudeste e sua gnese est vinculada a vrios ciclos que acompanham o metamorfismo regional, falhamentos e extensas intruses. O processo epirogentico ps-cretceo gerou o

    soerguimento da plataforma sulamericana, reativando os falhamentos antigos,

    9 Neste caso, de acordo com Silva-Mendes (2007, p.155), as apropriaes fsicas constituem prticas e

    comportamentos dos indivduos que envolvem proximidade de extrao de matrias-primas; feies geomorfolgicas adequadas que permitam assentamento, observao do entorno e proteo de uma regio ocupada; feies com potencial topogrfico de acesso de um locus a outro; feies nicas paisagsticas que potencializem a economia de um grupo ou que estejam associadas ao comportamento simblico do grupos (cachoeiras, travesses, cavernas, etc.).

  • 30

    produzindo, assim, as escarpas acentuadas e as fossas tectnicas como as do mdio Paraba do Sul (ROSS, 1998).

    Duas grandes unidades tectnicas constituem a geologia da regio: o Embasamento Cristalino e a Bacia Sedimentar de Taubat. O Embasamento Cristalino contm as rochas metamrficas que sofreram uma deformao policclica e faixas de cisalhamentos. As rochas de baixo grau metamrfico so do Grupo Paraba do Sul, e as principais unidades de afloramento (paragnaisses) so do tipo escarnitos, quartzitos e ortognaisses subordinados, eventualmente associados s rochas granulticas (NARANJO, 1997). A Bacia Sedimentar de Taubat se insere no complexo cristalino pr-cambriano do leste paulista, no bloco tectnico Paraba do Sul, cujos limites so dados pelas falhas do Buquira (ao norte) e do Alto da Fartura (ao sul). Regionalmente, caracteriza-se por ser uma bacia tafrognica, disposta sobre uma faixa orientada segundo a direo E-NE e denominada como Sistema de Rift da Serra do Mar ou Rift Continental do sudeste do Brasil (ver Prancha 1).

    Na rea de estudo, o Grupo Taubat comporta as formaes de Trememb e Caapava. A formao Trememb contm folhelhos com nveis pirobetuminosos e argilitos cinzas, intercalando-se com arenitos, siltitos e brechas intraformacionais. Os sedimentos so caracterizados por depsitos pelticos em ambiente lacustre redutor, com intercalaes fluviais (pelotas de argila com estratificao cruzada) na regio de Quiririm-Trememb-Pindamonhangaba. No caso da formao Caapava, contm sedimentos arenosos e siltosos, com nveis pelticos presentes em camadas plano-paralelas ou lenticulares, tpicas de um ambiente fluvial (HASUI & PONANO, 1978 apud NARANJO, 1997).

    No perodo Pr-cambriano, so formados os grupos de rochas metamrficas associadas ao Grupo Paraba e tambm aquelas associadas ao Grupo Roque e Aungui. Essas rochas se dispunham em grandes blocos, separados por falhas transcorrentes que se processaram ao final desde perodo, at o Cambro-ordoviciano, agrupando-se em

    unidades maiores chamadas de Compartilhamento. O Grupo Aungui, constitudo, por exemplo, por filitos, xistos, quartzitos, calcrios metamrficos, metaconglomerados, anfibolitos e rochas migmticas. As rochas deste grupo aparecem na poro sul-sudeste do municpio de Jacare, no bairro Cidade Salvador (cerca de 4 km do stio arqueolgico Santa Marina), aflorando num trecho do Ribeiro do Turi ou Colnia (NARANJO, 1997).

  • PRANCHA 1 MAPA DA GEOLOGIA DO VALE DO PARABA PAULISTA

  • 32

    Quanto aos aspectos apresentados at o momento, da mesma forma que o estudo da geologia permite a compreenso do dinamismo da terra (responsvel pela formao das estruturas geolgicas), tambm possibilita que conheamos a formao e os tipos de rochas presentes na regio, as quais provavelmente estariam sendo utilizadas como fonte de matrias-primas pelas populaes que viveram no local (ARAJO, 1991). Esse aspecto permite o mapeamento dos marcos e fronteiras de territrio para captao de recursos, o que engloba mineiras e rochas de boa fratura conchoidal (material ltico) e aqueles elementos presentes nas argilas; no caso, utilizadas para confeco dos vasilhames cermicos10 (MORAIS, 1999, p.9). Nesse sentido, identificar as fontes de matria-prima est relacionado ao processo de cadeia operatria, que envolvem o processamento dos artefatos lticos e cermicos da seguinte forma: busca de matria-prima (a pedra lascvel ou o barro bom), as tcnicas de processamento (muito particulares em cada caso), o uso do instrumento (que acaba por tipificar as funes de assentamento ou de setores dos assentamentos) e o seu descarte (Ibidem, p.9); seguindo tambm do seu re-uso (reciclagem) (SCHIFFER, 1972).

    Nessa primeira leitura, atravs do mapa geolgico da regio (SIRGAS, 2000), detalhamos os tipos de rochas identificadas no municpio de Jacare e rea de entorno imediato.

    Tabela 1. Tipos de rochas e minerais presentes na regio de estudo.

    Idade Era Sigla Nome Litotipo 1 Litotipo 2

    Arqueano Neoarqueano A4PPr Complexo Rio Capivari Trondhjemito, Gnaisse, Migmatito, Ortognaisse

    Anfibolito, Rocha

    Calcissilictica

    Fanerozico Cenozico

    Er Formao Resende Arenito, Conglomerado, Diamictito, Lamito Calcrete, Siltito

    Arenoso

    Esp Formao So Paulo Arenito, Argilito, Siltito, Arenito Conglomertico -

    Et Formao Trememb Argilito, Folhelho, Marga, Calcrio

    Dolomtico

    Arenito Arcoseano,

    Calcrete, Siltito, Siltito Argiloso,

    Arenito Conglomertico,

    Arenito Fino

    Np Formao Pindamonhangaba

    Arenito, Argilito, Conglomerado suportado

    por Matriz, Siltito, Arenito Conglomertico

    -

    Q2a Unidade Depsitos aluvionares Areia, Cascalho Argila, Silte

    Proterozico Mesoproterozico MP2si Grupo Serra do Quartzito, Metapelito, Turmalinito,

    10A anlise de Microflurescncia de Raios X realizada atravs da avaliao das concentraes de elementos qumicos inorgnicos presentes no material cermico permite o estudo da determinao das fontes de argila utilizadas na confeco das vasilhas cermicas (CUNHA e SILVA et al. 2004).

  • 33

    Itaberaba Mica xisto Anfibolito, Rocha

    Calcissilictica, Formao Ferrfera Bandada,

    Metandesito, Metabasalto, Metarriolito,

    Metatufo, Metarcseo,

    Rocha Sedimentar

    Vulcanoclstica, Quartzito

    Feldsptico, Biotita Xisto,

    Muscovita Quartzito,

    Muscovita-biotita Xist

    Neoproterozico

    MP2si Grupo Serra do Itaberaba Quartzito, Metapelito,

    Mica xisto

    Turmalinito, Anfibolito,

    Rocha Calcissilictica,

    Formao Ferrfera Bandada,

    Metandesito, Metabasalto, Metarriolito,

    Metatufo, Metarcseo,

    Rocha Sedimentar

    Vulcanoclstica, Quartzito

    Feldsptico, Biotita Xisto,

    Muscovita Quartzito,

    Muscovita-biotita Xist

    NP3a_gamma_2Ica Corpo Granito Cruz do Alto Monzogranito, Biotita

    Granito -

    NP3a_gamma_2Inas Corpo Granito Natividade da Serra, tipo I

    Monzogranito, Biotita Granito -

    NP3e_gamma_1Isp Corpo Granito Serra do Palmital Granito, Tonalito -

    NP3e_gamma_1S Corpo Granitides

    tipo S, sinorognicos do

    Terreno Embu

    Granito, Monzogranito, Tonalito -

    NP3e_gamma_1Sfs Corpo Granito Fazenda Santa

    Terezinha Granito, Granodiorito -

    NP3e_gamma_1Sro Corpo Granito Roncador Granito -

    NP3e_gamma_1Ssb Corpo Granito Santa Branca Granito, Granodiorito -

    NP3e_gamma_1Ssc Corpo Granito Santa Catarina Monzogranito, Sienogranito

    Milonito, Protomilonito

    NP3e_gamma_1Ssj Corpo Granito Serra do Jambeiro Granito, Monzogranito,

    Biotita Granito -

    NP3e_gamma_1Ssl Corpo Granito Salto Biotita Granito -

    NP3e_gamma_1Ssu Corpo Granito Sabana Granito, Monzogranito -

    NP3e_gamma_2Isi Complexo

    grantico Granito Santa Isabel

    Granito, Granodiorito, Quartzo-Monzonito -

    NP3e_gamma_2it Corpo Granito Itapeti Granodiorito,

    Monzogranito, Quartzo-Monzonito, Biotita

    -

  • 34

    Granito

    NP3e_gamma_2Smc Corpo Granito Mogi das Cruzes Monzogranito, Biotita Granito, Granodiorito -

    NP3ml (No definida) Rochas milonticas Milonito, Protomilonito,

    Ultramilonito

    Biotita Milonito Gnaisse, Biotita

    Granito

    NP3p_gamma_2bv Corpo Granito Serra da Boa Vista Granodiorito, Monzonito,

    Biotita Granito -

    NP3p_gamma_2mc Corpo Granito

    Morro Claro/Imbiruu

    Granito, Granodiorito, Biotita Granito -

    NP3p_gamma_2mi Corpo Granito

    Morro Azul/Igarat

    Quartzo-Monzodiorito, Quartzo-Monzonito,

    Biotita Granito -

    NP3p_gamma_2Ssi Corpo Granito Serra dos Indios Biotita Granito Migmatito

    NP3p_gamma_2Stb Corpo Granito Terra Boa Granodiorito, Biotita

    Granito

    NP3s_gamma_1Imp Corpo Granito Morro do Po Granodiorito, Monzonito,

    Quartzo-Monzodiorito Granito

    NP3s_gamma_1Imt Corpo Granito Mato Mole Granito -

    NP3srbt Grupo So Roque,

    Formao Boturuna

    Rocha Piroclstica, Ortoanfibolito,

    Metarcseo, Metarenito Quartzoso,

    MetagrauvacaFeldsptica, Metapelito

    -

    NP3srer Grupo So Roque, Formao Estrada

    dos Romeiros Metarenito Quartzoso,

    Metapelito, Metarritmito -

    NPccgm

    Complexo Costeiro, unidade granito-gnissica

    migmattica

    Gnaisse, Migmatito, Augen gnaisse,

    Hornblenda-Biotita Granito Gnaisse

    Diorito, Tonalito,

    Anfibolito, lcali-feldspato Granito, Biotita Monzogranito

    NPccgp

    Complexo Costeiro, unidade

    de gnaisses peraluminosos

    Gnaisse, Paragnaisse, Gnaisse aluminoso

    Anfibolito, Migmatito,

    Rocha Calcissilictica,

    Quartzito

    NPccog Complexo

    Costeiro, unidade ortognissica

    Gnaisse, Migmatito, Ortognaisse, Biotita

    Gnaisse

    Biotitito, Tonalito,

    Anfibolito, Quartzito,

    Augen gnaisse, Hornblenda-

    Biotita Granito Gnaisse,

    Muscovita-Biotita Gnaisse, Biotita Granito

    NPccq Complexo

    Costeiro, unidade quartztica

    Quartzito Rocha

    Calcissilictica, Gnaisse

    aluminoso

    NPegb Complexo Embu,

    unidade de gnaisses bandados

    Gnaisse Grantico, Biotita Gnaisse

    Anfibolito, Ortognaisse,

    Rocha Calcissilictica,

    Quartzito, Biotita-Quartzo

    Xisto

    NPem Complexo Embu, unidade milontica Milonito

    Pegmatito, Filito,

    Metarcseo, Biotita Xisto,

    Biotita Quartzito

    NPepg Complexo Embu,

    unidade paragnissica

    Biotita Gnaisse, Ortognaisse

    Milonito, Anfibolito,

    Rocha Calcissilictica,

    Quartzito, Biotita Xisto,

  • 35

    Gnaisse Quartzoso

    NPexm

    Complexo Embu, unidade de xistos,

    localmente migmatticos

    Mica xisto, Quartzo Xisto

    Milonito, Anfibolito,

    Rocha Calcissilictica, Metaultramfica

    Por meio da simples caracterizao acima, possvel perceber a variedade de tipos de rochas e minerais presentes na regio, sendo que nem todos so propcios, por exemplo, para o uso como matria-prima na formao de instrumentos de uso dirio (machados, polidores, afiadores, raspadores, etc.), mas muitas deles permitem, mesmo que de forma hipottica, ao serem encontrados no stio arqueolgico, assinalar e caracterizar reas especficas de utilidade ou fabricao dos utenslios.

    Aspectos gerais da Geomorfologia

    No que concerne aos aspectos geomorfolgicos, a regio situa-se no Planalto

    Atlntico, que compreende as zonas do Planalto Paulistano, Planalto de Paraitinga, Planalto de Bocaina e Mdio Vale do Paraba do Sul (ver Prancha 2). O ltimo apresenta duas subzonas: Bacia de Taubat e Morros Cristalinos (NARANJO, 1997).

    Destacamos, pela proximidade com a rea em estudo, a zona do Mdio Vale do Paraba, que caracterizada por uma depresso alongada com relevo de colinas, baixos morros e plancies de vrzeas por onde o rio Paraba do Sul segue seu curso por sinuosos caminhos. Sua subzona Bacia do Taubat assinalada pela fossa tectnica do tipo Rift Valley com grandes propores de sedimentos quaternrios na plancie de inundao e nos baixos terraos ou plancies aluviais ao longo do rio Paraba. A subzona dos Morros Cristalinos composta por rochas pr-cambrianas, topos de interflvios com altitudes variando entre 700 a 900 metros, com duas categorias de relevo: os Morros e Morrotes, que so alongados paralelos constitudos por pequenas e estreitas faixas de transio entre a bacia de Taubat, e os Morros Cristalinos (representados pelas Serra do Mar que compreende, localmente, as serras do Quebra-Cangalha e do Jambeiro) e da Mantiqueira.

    A regio do Vale tambm compreende o domnio dos Mares e Morros, caracterizada presena de serras e depresses, sendo que as serras so compostas por

  • 36

    relevos acidentados e elaborados em rochas diversas com cristas e cumeadas por bordas escarpadas de planaltos; j as depresses so caracterizadas por relevos planos ou ondulados, localizados abaixo do nvel das regies vizinhas, elaboradas tambm em rochas de classes variadas (IBGE, 2007).

    Nos Mares e Morros predominam a mamelonizao extensiva que afeta todos os nveis da topografia (desde 10 m a 1300 m de altitude), constituindo relevos com superfcies aplainadas de cimeira ou intermontanas, patamares de sedimentao e eventuais terraos. Com isso, a presena da decomposio de rochas cristalinas e de processos de convexizao em nveis intermontanos constitui a alternncia entre a sedimentao e a mamelonizao nesses compartimentos. Nas plancies mendricas, por exemplo, h o predomnio de depsitos finos nas calhas aluviais soterrando os stone-lines (ABSBER, 2007). De acordo com AbSber (2007) o domnio dos Mares e Morros o meio fsico, ecolgico e paisagstico mais complexo e difcil do pas em relao s aes antrpicas, j que, alm das caractersticas geomorfolgicas (topos alongados que formam grandes plats, por exemplo), est sujeito a processos de eroso e de movimentos coletivos de solos (principalmente na Serra do Mar e na bacia do rio Paraba do Sul).

    A Prancha 2 apresenta as caractersticas geomorfolgicas gerais identificadas no municpio de Jacare e rea de entorno imediato. Nota-se que, no municpio em apreo, predominam as Bacias Terciarias; Coberturas sedimentares cenozoicas, que englobam diferentes tipos de depsitos sedimentares, com idade variando de terciria a holocnica; e Terreno Embu, que se caracteriza pelos conjuntos litolgicos compostos pela cobertura supracrustal e rochas granitoides.

  • PRANCHA 2 MAPA DA GEOMORFOLOGIA DO VALE DO PARABA PAULISTA

  • 38

    Aspectos gerais da Hidrografia

    A bacia hidrogrfica do rio Paraba do Sul compreende a Unidade de Gerenciamento de Recursos Hdricos 02 (UGRHI-02). Percorre uma rea total de 55.400 m incluindo os Estados de So Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. S a poro paulista perpassa cerca de 13.500 km (ver Figura 2).

    Figura 2. Bacia Hidrogrfica do rio Paraba do Sul. Em verde, localizao do municpio de Jacare (Fonte: Agncia Nacional de gua ANA www.comiteps.sp.gov.br).

    O Rio Paraba do Sul formado pela confluncia dos rios Paraibuna (que nasce na Serra do Mar) e Paraitinga (que nasce na Serra da Bocaina). Seus principais afluentes na margem esquerda so os rios Jaguari, Pirapetinga, Pomba e Muria e pela direita os rios Una, Bananal, Pira, Piabanha e Dois Rios (AGEVAP, 2011) (ver Prancha 3). Dentre os rios, crregos e ribeires presentes na rea em estudo destaca-se o Rio Comprido por seu importante papel na irrigao das vrzeas do rio Paraba do Sul e pelo potencial de degradao que est sujeito em face crescente urbanizao em sua bacia de contribuio. H tambm o rio Turi, que atravessa a zona urbana do municpio de Jacare, escoando naturalmente as guas pluviais da cidade, e o crrego Guatinga, que est localizado nas proximidades do stio arqueolgico Santa Marina.

  • 39

    Como mencionado anteriormente, a formao geolgica por onde passa o Rio Paraba do Sul composta por rochas metamrficas e gneas (relevo acidentado, ondulado e escarpado) que controla a direo e morfologia dos canais e padres de drenagem, gerando na foz da bacia o depsito de sedimentos areno-siltosos nas reas de plancies aluviais (vrzeas mendricas) (EPE, 2007). As reas mais rebaixadas esto na regio de So Jos dos Campos e Jacare, ocupadas atualmente pela horticultura irrigada que utilizam os horizontes superficiais orgnicos e hmicos de organossolos (rico em material orgnico) e gleissolos (constitudo por material mineral).

  • PRANCHA 3 MAPA DA HIDROGRAFIA DO VALE DO PARABA PAULISTA

  • 41

    Alm dos aspectos fsicos do rio Paraba do Sul anteriormente descritos, h tambm as caractersticas histricas e simblicas11 deste rio que, por sculos, tem sido testemunha dos diferentes processos de ocupao humana na regio do vale.

    O rio Paraba - do Tupi para (rio) e aiba (curiosamente chamado de rio impraticvel navegao) teve um papel muito importante no processo de ocupao da regio do vale do Paraba Paulista, sendo considerado estradas como as veredas terrestres (BUARQUE DE HOLANDA, 1976). Pelo rio, e em suas cercanias, instalaram-se os primeiros ncleos de povoamento indgena e no-indgena12.

    Assim como o rio Paraba do Sul, os demais afluentes tambm foram utilizados como meio de circulao. De acordo com Mendona (2009, p.42-43), a expedio realizada por Andr de Leo em 1601 (expedio para o serto conhecida como Caminho Velho), no trecho em que passa pelo vale do Paraba, descreve que aqui apparelhadas algumas canoas de casas de arvore, continuamos rio abaixo, durante cinco ou seis dias, e fomos ter a um rio maior [regio da foz do rio Jaguary, em frente a atual cidade de So Jos dos Campos] que corria da regio occidental.

    Aspectos gerais dos Solos

    Os solos constituem material mineral e/ou orgnico inconsolidado na superfcie da terra que serve como meio natural para o crescimento de plantas terrestres (IBGE, 2007). Assim, o interesse no estudo de solos est tambm na capacidade de ter (ou no) princpios fertilizantes, os quais facilitariam o cultivo de alimentos imprescindveis para as populaes locais, como a mandioca e o milho (BROCHADO, 1977).

    11Para exemplificarmos, de acordo com Meli (2001), o mito Guarani em relao gua diz o seguinte: fizeram da gua o lugar de sua origem, o centro de sua terra (...). No centro da terra, portanto, est a gua, Y Ete, a gua autntica, a genuna, a verdadeira. A gua, o centro da terra. A onde comea a vida. A vida da terra a gua. Em conseguinte, buscava-se a gua sem Mal (Y maraney), ou seja, um lugar onde a gua era boa e corrente (TOMMASINO, 2008). 12

    Durante a segunda metade do sculo XVII, diversas expedies penetraram no vale do Paraba, acarretando na fundao de inmeras vilas, dentre elas Taubat (1643), Guaratinguet (1651) e Jacare (1953) (MONTEIRO, 1994; ANTONIL, 2007; MENDONA, 2009).

  • 42

    De acordo com o Mapa Pedolgico IAC (1999), nas proximidades do municpio de Jacare, destacam-se dois tipos de solos: Argissolos Vermelhos-Amarelos (PVA) e os Gleissos Melnicos (GM).

    Os PVAs apresentam materiais derivados de granitos, gnaisses e xistos, classificados como solos bastante evoludos com concentrao de argila em profundidade. Os GMs foram classificados como Gleissolos (Hmicos e Hidromrficos Cinzentos), devido rea estar associada a aluvies de calhas e terraos, tendo como caracterstica o constante encharcamento das reas de vrzea (ver Figura 3) (MOURA, 2006).

    Figura 3. Mapa de solos simplificado do vale do Paraba (MOURA, 2006). Em vermelho, destaque para localizao do municpio de Jacare.

    Os solos presentes na rea do municpio de Jacare apresentam baixa fertilidade natural; no entanto, so favorveis ao desenvolvimento das plantas (RADAMBRASIL, 1983). O solo presente em Jacare corresponde a 4,36% com aptido regular para culturas de ciclo curto; 18,82% restrito para culturas de ciclo longo; e em 60% recomenda-se o uso restrito de pastagens ou silvicultura (EPE, 2007).

  • 43

    Aspectos gerais do Bioma vegetao e clima

    A regio do Vale tem como cobertura vegetal o bioma da Mata Atlntica, compreendendo ecossistemas terrestres com caractersticas condicionadas pelo clima e pela topografia local. Originalmente, essa vegetao cobria cerca de 1,3 milhes de km, estendendo-se de norte a sul do pas em uma faixa de aproximadamente 300 km ao longo da costa atlntica. Todavia, hoje h menos de 7% da extenso original (principalmente concentrados nas Serras do Mar e da Mantiqueira) e em contnuo processo de desmatamento (Ibidem, p.24).

    Na regio em apreo h duas categorias de floresta: a floresta ombrfila (influenciada por um clima mais mido) e a floresta estacional (em reas com climas mais secos). Alm das florestas, h ainda pequenas reas com outros ecossistemas que so integrados Mata Atlntica, como os campos de altitude (acima de 1.500 m), a vegetao de vrzea e as restingas e manguezais.

    Atualmente, predominam trechos com vegetao antrpica (vegetao secundria) que compreendem estgios diversos de sucesso das florestas, resultantes de cortes seletivos ou da regenerao de reas desmatadas. No que tange ao clima do Vale, est inserido na rea tropical sub-quente mido, que se caracteriza por um perodo seco (outono-inverno) e outro chuvoso (primavera-vero). As temperaturas oscilam entre 18 e 24 C e esto relacionadas com a topografia da regio, pois a orientao das Serras do Mar e da Mantiqueira influenciam o escoamento mdio da baixa troposfera, aumentando o regime pluviomtrico em funo da altitude (Ibidem). Nas serras, a temperatura pode atingir a mnima de 10 C e onde ocorrem os maiores ndices pluviomtricos.

    As caractersticas brevemente apresentadas conformam a regio do vale do Paraba Paulista como pertencente, em sua maioria, ao ecossistema da Mata Atlntica, que envolve diferentes biomas. A adaptao das populaes a esses biomas no est somente prescritiva aos fatores ambientais, como tambm em funo de questes geopolticas, vises de mundo, disposies existenciais, etc. (MANO, 2006, p.129).

    Assim, de acordo com a bibliografia (BROCHADO, 1984; PROUS, 1991; NOELLI, 1993), a Mata Atlntica vigente na regio do vale do Paraba Paulista est relacionada aos povos de uma cultura economicamente definida pela horticultura do

  • 44

    milho e da mandioca e do aproveitamento mximo dos recursos alimentares dos rios, margens e lagos, e na utilizao da canoa como meio de transporte (MANO, 2006, p.141). No caso, associadas ao uso de grupos do tronco lingustico Tupi.

    Da mesma forma, houve na regio, reas de cerrado ou campos que, conforme Prezia (2000), tiveram um papel importante tanto para as populaes indgenas como para as europeias. Em uma das passagens de Cardim (membro da Companhia de Jesus) pela regio, ele expressou o seguinte comentrio sobre os campos: terra de grandes campos, fertilssima de muitos pastos e gados de bois, porcos, cavalos, etc, e abastada de muitos mantimentos * (CARDIM [1583] 1963, p.153 apud PREZIA, 2010, p.125).

    Para Petrone (1995), as reas de campos cobriam manchas por entre as reas de floresta por todo o atual Estado de So Paulo. De acordo com o autor, os europeus, assim como alguns grupos indgenas13, preferiram uma vegetao mais aberta para se estabelecerem, pois o colonizador, depois de atravessar a acanhada faixa litornea e, em especial, a escarpa da serra do mar e seu reverso imediato, em meio da densa e exuberante mata tropical, inevitavelmente valorizaria a clareira dos campos (Ibidem, p.38).

    Concluindo, este captulo se concentrou em explorar o vale do Paraba Paulista em seus aspectos paisagsticos, sejam eles naturais ou culturais. Esses fatores apresentam caractersticas imprescindveis para compreender a regio como um todo.

    Destarte, ultrapassada as ngremes barreiras da paisagem, cabe agora, no captulo seguinte, adentrar pelos vales e chegar at os indivduos que ocuparam de forma to diversa e fluida a regio valeparaibana.

    * Es tierra de grandes campos, fertilssima de muchos pastos y ganados de bueys, puercos, caballos, etc.,

    y abastada de muchos mantenimientos. (CARDIM [1583] 1963, p.153 apud PREZIA, 2000, p.125). 13De acordo com Mano (2006), os povos J ocuparam preferencialmente o bioma do cerrado, porque foram empurrados para essas pores da vegetao pelo avano do Tupi no litoral, se adaptando a ecossistemas mais frgeis. Essa adaptao estaria relacionada ausncia de canoas entre grupos J, ou seja, onde os cursos dgua no eram caudalosos, e, tambm, relao simblica desse ambiente como ecossistema integrado de entidades naturais, humanas e sobrenaturais (Ibidem, p.132).

  • CAPTULO 2

    Ningum sabe de quantos grupos, a nica memria que existe apenas o nome tribal ou, talvez, um apelido qualquer dado por ndios vizinhos ou invasores brancos.

    Egon Schaden (1979)

  • 46

    2. POR ENTRE OS VALES: HISTRICO DA OCUPAO INDGENA NO VALE DO PARABA PAULISTA

    Por entre as serras da Mantiqueira e do Mar, que proporcionavam agruras queles que desafiam ultrapass-las, e as pores litorneas que abriam as portas ao novo mundo, localiza-se o Vale do Paraba Paulista. Durante os sculos iniciais da colonizao europeia, este Vale foi assinalado no somente como serto desconhecido (REIS, 1979), ou apenas como uma profcua via de circulao1 (tanto terrestre quanto fluvial) (ANTONIL, 2007), mas tambm como uma paisagem que abrigou por um longo perodo de tempo centenas de populaes indgenas.

    Essas populaes estavam constitudas em plena diversidade, formando um imenso mosaico cultural. Parte destas culturas, principalmente aquelas associadas ao tronco lingustico Tupi, foram descritas de forma relativamente extensa e precisa (FERNANDES, 2009, p.22), ao contrrio das no falantes do Tupi, caracterizadas genericamente como Tapuias. Da mesma forma que os indgenas foram dispostos em dois grandes grupos culturais (Tupis e Tapuias), os vestgios destas populaes durante dcadas foram encaixotados em tradies arqueolgicas que, na maior parte das vezes, tinham como utilidade maior a de nomear coisas (ARAJO, 2007, p.12). Diante disso, este captulo tem como objetivo apresentar o quadro da ocupao indgena no Vale do Paraba Paulista, que envolveu um processo de longa durao2. Para formulao deste quadro, nos baseamos em dados arqueolgicos, nas fontes documentais3 da histria (indgena ou qui, da etnohistria) e nos dados da lingustica,

    1De acordo com Buarque de Holanda ([1957] 2008), as vias de circulao ou vias de passagem foram caracterizadas pelo processo conhecido como civilizao adventcia no qual os caminhos eram mais importantes do que a posse das terras; dessa forma, constituam-se rastros ao invs de populaes fixas. No entanto, com o passar do tempo, esses rastros que serviram tambm como bases para as expedies rumo s minas tornaram-se pequenos povoados e vilas, como o caso dos atuais municpios de Taubat (1643), Guaratinguet (1651), Jacare (1653) (MONTEIRO, 1994, p.81), dentre outros. 2 O conceito de longa durao entendido como um elemento que permite distinguir processos graduais

    cumulativos e perodos de alternncia de foras que transformam a ordem social e cultural levando alterao social (TRIGGER, 2004, p.323). Este continuum aponta traos comuns, que no revelam apenas a existncia de uma continuidade entre aspectos desarticulados da cultura, mas fundamentalmente os princpios estruturais ou a ordem cultural subjacente uma unidade de sentido organizada em torno de esquemas culturais tpicos (ORTNER, 1990 apud HECKNBERGER, 2001, p.25). 3 Esse levantamento envolveu a anlise das fichas de Cadastro Nacional de Stios Arqueolgicos CNSA

    - (disponveis no site do IPHAN), dos Relatrios Tcnicos de Arqueologia Preventiva (que se encontram no IPHAN Regional So Paulo), das fontes primrias e secundrias por meio da literatura disponvel para regio em estudo e; tambm, a coleta de dados de parte do acervo arqueolgico da Fundao Cultural Jacarehy (no municpio de Jacare) e no Museu Nossa Senhora Aparecida (na cidade de Aparecida).

  • 47

    os quais permitiram o aprofundamento e conhecimento das populaes que habitaram o Vale e, consequentemente, a paisagem onde se insere o stio arqueolgico Santa Marina.

    2.1. Juntando os cacos e pedras: os vestgios arqueolgicos de ontem e de hoje no Vale do Paraba Paulista

    Durante as dcadas inicias do sculo XX, os municpios do interior paulista passaram por um longo processo de transformaes, estimulados pelo movimento estratgico de expanso industrial e pelo desenvolvimento urbano4. neste perodo que se expandem as manchas urbanas, por meio dos incentivos das construes de novas ruas e avenidas, alm do estmulo implementao de empreendimentos imobilirios (principalmente, no final do sculo XX).

    Com isso, alm da transformao das cidades, brotavam do cho uma infinidade de cacos e vasilhas de cermica, pedras lascadas e polidas, aguando a curiosidade da populao interiorana.

    A seguir, detalhamos os vestgios arqueolgicos identificados durante esse processo nos municpios do Vale do Paraba Paulista.

    Municpio de Aparecida

    No municpio de Aparecida, os primeiros vestgios arqueolgicos de que se tem notcia foram encontrados por volta do incio do sculo XX. A sntese destes achados foi compilada por Conceio Borges Ribeiro de Camargo e Vicente de Camargo, e publicados em um dos Cadernos Culturais do Vale do Paraba. De acordo com Camargo & Camargo (1990), o achado inicial se refere a uma igaaba com esqueleto em posio vertical, encontrada durante a realizao de obras de manuteno no ptio da Estao da Estrada de Ferro Central do Brasil, no ano de 1908.

    Anos depois, em 1928, na Rua Ladeira Monte Carmelo descobriu-se outra igaaba com tampa e, dentro, um crnio, dentes e ossos. No ano de 1935, no terreno

    4 Para exemplificarmos, no municpio de So Paulo, a poltica de urbanizao no sculo XX tambm

    estimulou mudanas por meio de intensas obras estticas e sanitaristas (KAHTOUNI, 2004, p.76).

  • 48

    da atual Estao Rodoviria, durante a remoo de uma rvore, identificou-se uma grande igaaba de 72 centmetros de altura, 1 metro e 75 centmetros de circunferncia de borda e 1 metro e 47 centmetros de circunferncia no centro, e pintada de vermelho na parte externa. Cinco anos depois, no terreno onde hoje existe a Catedral Baslica de Nossa Senha de Aparecida, foram achadas duas peas indgenas de cor clara. J no ano de 1952, prximo da Escola Estadual Chagas Pereira, outro grande vaso despedaado (...) em forma semi-oval e fundo afunilado (...) com 80 centmetros de altura por 70 de largura, foi descoberto (CAMARGO & CARMARGO, 1990, p.15).

    No mesmo ano, durante a abertura da Rua Joo Andrade Costa, um trator deu com vrias peas de cermica, incluindo igaabas que apresentavam outras menores dentro do bojo, todas pintadas por fora de vermelho e clara por dentro, dentre estas, uma possua a forma de dois cones ligados pelas bases. No ano seguinte, durante a abertura de uma vala no muro do antigo Convento das Carmelitas, foi localizada outra pea grande, rasa, em forma de bacia com tampa (...) contendo no interior uma pequena vasilha tipo de alguidar, cor vermelha na parte externa (Ibidem, p.15). No incio da dcada de 1960, mais afastado do permetro urbano, prximo ao Porto de Itaguau, foram localizados um cachimbo com careta, sinais de terra preta, uma panela de bugre e uma pequena pea quase inteira, diferente das outras (com asas ao lado e outra menor do mesmo feitio) (MARANCA, 1969). Nesse mesmo perodo, foi encontrado um machadinho em forma de ncora, no quintal de uma casa localizada na Rua Joo Alves. Anos depois, outros fragmentos de cermica e fusos foram identificados na Avenida Colombano Teixeira e outra igaaba foi encontrada na Praa Doutor Benedicto Meirelles.

    Na Figura 4 visualizam-se alguns dos vestgios arqueolgicos identificados no municpio de Aparecida, os quais foram pesquisados pela equipe da Prof. Conceio (1990).

  • 49

    Figura 4. Retirada de vasilhas cermicas pela equipe da pesquisadora Conceio no municpio de Aparecida (Fonte: CONCEIO & CONCEIO, 1990).

    Parte dos vestgios arqueolgicos coletados pelos pesquisadores foi doada para o Museu da Baslica Nossa Senhora Aparecida e para a Universidade de Taubat Unitau (CALI, 1999). Em visita recente ao Museu de Aparecida, observou-se parte do acervo acima descrito, o qual pode ser visto na composio da Figura 5.

    Figura 5. Imagens a c) fragmentos de cermica com acabamento plstico; d) base de vasilha com formato cnico. e g) vasilhas com acabamento pintado na superfcie interna; h) vasilha com acabamento alisado e formado cnico. Todas as peas fazem parte do acervo do Museu da Baslica de Aparecida, sendo qu