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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS CURSO DE GRADUAÇÃO DE DIREITO LORENA CORDEIRO DE OLIVEIRA A FORMAÇÃO JURÍDICA DOS E DAS ESTUDANTES DE DIREITO A PARTIR DA EXTENSÃO NO PROGRAMA MOTYRUM: Aprendendo e ensinando o direito no Leningrado NATAL 2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

CURSO DE GRADUAÇÃO DE DIREITO

LORENA CORDEIRO DE OLIVEIRA

A FORMAÇÃO JURÍDICA DOS E DAS ESTUDANTES DE DIREITO A

PARTIR DA EXTENSÃO NO PROGRAMA MOTYRUM: Aprendendo e

ensinando o direito no Leningrado

NATAL

2014

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LORENA CORDEIRO DE OLIVEIRA

A FORMAÇÃO JURÍDICA DOS E DAS ESTUDANTES DE DIREITO A

PARTIR DA EXTENSÃO NO PROGRAMA MOTYRUM: Aprendendo e

ensinando o direito no Leningrado

Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação em Direito

apresentada à Universidade Federal do Rio Grande do Norte como

exigência parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito.

Orientador: Professor Mestre Luciano Athayde Chaves

Coorientador: Professor Mestre José Humberto Góes Junior

Natal

2014

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LORENA CORDEIRO DE OLIVEIRA

A FORMAÇÃO JURÍDICA DOS E DAS ESTUDANTES DE DIREITO A PARTIR DA

EXTENSÃO NO PROGRAMA MOTYRUM: Aprendendo e ensinando o direito no

Leningrado

Monografia apresentada ao Curso de Direito da Universidade Federal

do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para a obtenção do

título de bacharel em Direito.

Aprovação em: ___/___/____.

BANCA EXAMINADORA:

LUCIANO ATHAÍDE CHAVES

JOSÉ HUMBERTO DE GÓES JUNIOR

MARIANA DE SIQUEIRA

ANA LIA VANDERLEI DE ALMEIDA

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Dedico este trabalho ao Programa Motyrum de Educação Popular em

Direitos Humanos, ao Conjunto Habitacional Leningrado,

especialmente a Cazuza, Cícero, Tatinha, Renilson, Noêmia e Ruth, e

ao Centro Acadêmico Amaro Cavalcanti.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha mãe e ao meu pai, que conferiram a mim os primeiros atos de amor de

minha existência, a educação – das palavrinhas mágicas, do “por favor”, “obrigada” e “com

licença” aos valores da solidariedade e do cuidado com o outro e a outra, da honestidade, da

franqueza, da gratidão, do respeito. Que me conferiam a liberdade de voar para onde desejasse

e me apoiaram nas escolhas, boas e ruins.

Agradeço a Deus pelos mágicos momentos de calmaria diante dos desesperos, das

dificuldades que pareciam não ter solução, sobretudo no decorrer deste trabalho. Pelo

atendimento de minhas preces e mesmo quando não atendidas, por guardar algo melhor por

vir.

Agradeço à minha Avó (Anísia) pela generosidade e pelo exemplo de gente e de mulher que

se concretiza em minha vida. Pelas lições de sabedoria que me ensinaram, sobretudo, o valor

do conhecimento popular, de quem vivencia a luta diária, de quem não é letrada, mas sabe da

vida mais do que “doutor”.

Agradeço ao meu companheiro (Denis), pelo amadurecimento enquanto pessoa, pela

paciência no decorrer da nossa caminhada, por se fazer presente nas horas de dor e de alegria,

com ouvidos e braços a me apoiarem.

Agradeço aos companheiros e às companheiras do Programa Motyrum e do Centro

Acadêmico Amaro Cavalcanti, em especial a Natália Bonavides, Hélio, Magnus, e Débora,

referências no meu processo de politização enquanto estudante. Agradeço pelas experiências

que esses espaços proporcionaram na minha construção enquanto mulher negra e enquanto

gente que luta contra as opressões e sonha com um mundo melhor.

Agradeço aos moradores e às moradoras do Leningrado, especialmente à Ruth, Tatinha,

Cícero, Cazuza, Renilson e Noêmia, pela inspiração no meu engajamento político, pelo

aprendizado de quem luta por melhores condições de vida e de mundo, por me fazerem sentir

a “justa-raiva”, por dar sentido à minha graduação no Curso de Direito e à minha vida,

sobretudo enquanto militante de direitos humanos. Enfim, sem vocês, este trabalho não

existiria.

Agradeço aos amigos e às amigas de longas datas pelo apoio, pela amizade e pelo carinho

mesmo com o distanciamento e da indisponibilidade decorrentes de minha participação em

atividades políticas e acadêmicas.

Agradeço aos meus orientadores neste trabalho pela paciência em lidar com as dificuldades

que espelham as falhas de minha formação acadêmica no campo da pesquisa. Em especial ao

professor e amigo Humberto (Betinho) pelas reflexões e pelo aprendizado que me incentivam

desde o nosso primeiro encontro.

Agradeço ainda a quem também participou da construção desta monografia, direta ou

indiretamente. Às pessoas entrevistadas pela disponibilidade, ao Professor Walter Pinheiro

pelas reflexões provocadas nas aulas do Curso de Pedagogia, e a Denis, novamente, pelos

esclarecimentos, discussões e por me acalmar nos momentos tensos, que não foram poucos.

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Não é na resignação mas na rebeldia em face das injustiças que nos afirmamos.

(Paulo Freire, Pedagogia da Autonomia, 1996).

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RESUMO

O trabalho avalia de que forma o Programa Motyrum de Educação Popular em Direitos

Humanos, através da extensão realizada no Conjunto Habitacional Leningrado, interferiu na

formação jurídica das e dos estudantes do Curso de Direito da Universidade Federal do Rio

Grande do Norte. Realiza-se a avaliação a partir de três aspectos da educação popular, a

interdisciplinariedade, a dialogicidade e a horizontalidade. Para formar uma base teórica para

a pesquisa de campo, estuda a concepção de direito positivista e o ensino jurídico dogmático

consoante vivências da autora no Curso de Direito. Analisa os conceitos da educação popular,

da extensão universitária popular, da educação popular em direitos humanos e da assessoria

jurídica popular e sua relação com o ensino jurídico. Discorre-se sobre o Programa Motyrum

e o trabalho de educação popular no Conjunto Leningrado para compreender o seu papel no

ensino do direito. Realiza entrevistas individuais com extensionistas que participaram do

trabalho de educação popular para investigar se houve interferência na formação jurídica de

cada um e de cada uma e como a interdisciplinariedade, a dialogicidade e horizontalidade

contribuem para essa mudança. Analisa as respostas e conclui que o Programa Motyrum,

quando proporciona o contato de estudantes de direito com realidades de violações de direitos

humanos através da educação popular, provoca reflexões sobre o direito, permite o

desenvolvimento de habilidades no contato com pessoas e mostra a possibilidade da profissão

de jurista exercer uma função social, voltada à transformação da sociedade.

Palavras-chave: Programa Motyrum de Educação Popular em Direitos Humanos. Conjunto

Habitacional Leningrado. Ensino jurídico. Educação popular.

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RESUMEN

En este trabajo se evalúa la forma en que el Programa Motyrum de Educación Popular para

los Derechos Humanos, a través de la extensión universitaria lleva a cabo em La Viviendas

Leningrado, interfirió en la formación jurídica de los estudiantes de derecho de la Universidad

Federal de Rio Grande do Norte. Se lleva a cabo la evaluación de tres aspectos de la

educación popular, la interdisciplinariedad, dialogicidad y la horizontalidad. Para formar una

base teórica para la investigación de campo, estudia la concepción positivista del derecho y

las enseñanza dogmática del derecho de conformidad con las experiências del autor en el

Curso de Derecho. Examina los conceptos de la educación popular, la extensión universitaria

popular, la educación popular en derechos humanos y asistencia jurídica popular y su relación

con la educación juridica. Habla sobre el Programa Motyrum y el trabajo de educación

popular en Leningrado para entender su papel en la enseñanza del derecho. Lleva a cabo

entrevistas individuales con los extensionistas que participaron en el trabajo de educación

popular para investigar si hubo injerencia en la formación juridica de todos y cada uno y

cómo la interdisciplinariedad, la horizontalidad y la dialogicidad contribuir a este cambio.

Analiza las respuestas y llega a la conclusión de que el Programa Motyrum cuando

proporciona a los estudiantes de derecho el contato con las realidades de violaciónes de los

derechos humanos mediante la educación popular, hace reflexiones sobre lo derecho, permite

el desarrollo de habilidades en contacto con la gente y muestra la posibilidad de abogacía

ejercer una función social, dirigida a la transformación de la sociedad.

Palabras clave: Programa Motyrum de Educación Popular en Derechos Humanos. Vivienda

Leningrado. La enseñanza del Derecho. La educación popular.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 12

POSITIVISMO E ENSINO JURÍDICO: Um olhar sobre o Curso de Direito da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte....................................................................16

1.1 A CONCEPÇÃO POSITIVISTA DO DIREITO..............................................................16

1.1.1FORMALISMO....................................................................................................16

1.1.2DOGMATISMO E A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE....................................19

1.1.3NEUTRALIDADE............................................................................................... 21

1.1.4COMPLETUDE....................................................................................................23

1.1.5ABSTRAÇÃO...................................................................................................... 25

1.2 ENSINO JURÍDICO DOGMÁTICO E O CURSO DE DIREITO DA UFRN...............26

1.2.1 MUITA REPRODUÇÃO E POUCA REFLEXÃO......................................... 28

1.2.2 APEGO À LEI, O EXCESSO DE TEORIA E O DISTANCIAMENTO DA

REALIDADE....................................................................................................34

1.2.3 A AUSÊNCIA DE DIÁLOGO E A RELAÇÃO

VERTICALIZADA..........................................................................................................45

1.2.4 A AUSÊNCIA DE INTERDISCIPLINARIEDADE.......................................48

1.2.4 O PROBLEMA DA DIDÁTICA......................................................................50

TEORIA E PRÁTICA DO DIREITO CRÍTICO: Traçando conceitos-base da práxis do

Programa Motyrum................................................................................................................54

2.1 A VISÃO DIALÉTICA DO DIREITO..............................................................................54

2.2 OUTRA PROPOSTA DE FORMAÇÃO JURÍDICA........................................................59

2.2.1 EDUCAÇÃO POPULAR ...................................................................................63

2.2.2. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA POPULAR ....................................................70

2.2.3 A EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS....................................................73

2.2.4 ASSESSORIA JURÍDICA POPULAR ..............................................................76

O MOTYRUM COMO ALTERNATIVA À FORMAÇÃO JURÍDICA...........................81

3.1 O PROGRAMA MOTYRUM DE EDUCAÇÃO POPULAR EM DIREITOS

HUMANOS..............................................................................................................................81

3.1.1 O QUE É E COMO FUNCIONA........................................................................81

3.1.2 LIMITAÇÕES......................................................................................................86

3.1.3 O MOTYRUM NO CURSO DE DIREITO DA UFRN......................................90

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3.2 A EXPERIÊNCIA NO LENINGRADO.............................................................................91

3.2.1 NÚCLEO URBANO E LENINGRADO.............................................................92

3.2.2 A CHEGADA DO NÚCLEO URBANO.............................................................93

3.2.3 O TRABALHO DESENVOLVIDO....................................................................95

3.3 A CONTRIBUIÇÃO DA EDUCAÇÃO POPULAR NO LENINGRADO NA

FORMAÇÃO JURÍDICA DOS E DAS EXTENSIONISTAS.................................................98

3.3.1 METODOLOGIA................................................................................................99

3.3.2 ENCHARCANDO DE REALIDADE...............................................................100

3.3.3 DIALOGICIDADE............................................................................................106

3.3.4 INTERDISCIPLINARIEDADE........................................................................119

3.3.5 HORIZONTALIDADE......................................................................................124

CONCLUSÃO.......................................................................................................................131

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................133

ANEXO 01............................................................................................................................ 137

ANEXO 02............................................................................................................................ 138

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INTRODUÇÃO

A escolha pelo tema da formação jurídica neste trabalho de conclusão de curso

está diretamente relacionada às minhas vivências no Curso de Direito da Universidade

Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) como graduanda e membra do Centro Acadêmico

Amaro Cavalcanti e aos três anos e meio em que fui extensionista do Programa Motyrum de

Educação Popular em Direitos Humanos, o qual representou um divisor de águas na minha

vida acadêmica, pessoal e profissional.

O Programa Motyrum me apresentou um mundo que não conhecia, ou melhor,

que eu não sentia. Uma realidade permeada de violações de direitos humanos, uma sociedade

estruturada em relações de poder que reforçam essas violações, e um Curso de Direito

anestesiado a isso. O Motyrum despertou em mim a “justa-raiva” que fez tornar-me “gente”,

gente que não se adapta nem se resigna, mas que denuncia e anuncia as opressões e faz disso

um compromisso político de vida pessoal e profissional.

O contato com o Conjunto Habitacional Leningrado e o vínculo emocional e

político formado com moradores e moradoras encharcaram o Curso de sentido. Situado em

um contexto de vulnerabilidade social, de negação e descaso estatal, o Leningrado foi o

espaço em que o Núcleo Urbano realizou por dois anos o trabalho de extensão popular através

da educação popular em direitos humanos. Foi o espaço em que o diálogo se fez entre quem

era negado, excluído pela sociedade e quem, embora situado em um espaço privilegiado

socialmente que é a universidade, era negado em sala de aula, submetido a uma educação

bancária, castradora e autoritária.

A extensão no Leningrado me provocou refletir sobre o direito, sobre o ensino

jurídico e sobre a sociedade como um todo, me conduzindo a uma inserção maior dentro do

Motyrum, participando de outro núcleo, o Escritório Popular; a participar do Centro

Acadêmico Amaro Cavalcanti, me engajando nas problemáticas que envolviam o Curso de

Direito; e a buscar estágios em instituições como a Defensoria Pública da União, voltada para

o acesso à justiça da população espoliada.

Mais que isso, no Motyrum pude refletir sobre minha existência, pude me

enxergar também como oprimida enquanto mulher e negra. Foi a partir das reflexões que o

Programa me proporcionou sobre a sociedade e suas faces opressoras que construí minha

identidade como negra, me levando ao ato mais simbólico, e político, que pude realizar até

aqui, que foi assumir o cabelo crespo e me libertar do racismo que me negava o direito de ser

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mais desde criança. Bem como enxergar o motivo das dificuldades que já enfrentei e ainda

enfrento diariamente por ser mulher, o que me levou à minha afirmação enquanto feminista.

Por esse motivo que prezo neste trabalho pela adequação de gênero, me referindo

sempre a mulheres e homens, evitando me guiar pela gramática que discrimina o gênero

feminino ao determinar o masculino como padrão. Segundo a professora e escritora de um

blog da internet, a língua é um reflexo da sociedade, e na nossa, a posição da mulher ainda é

inferior à do homem:

(...) a linguagem que usamos todos os dias é preconceituosa, e como coloca a mulher

como cidadão de segunda classe. Por exemplo, quando usamos a palavra homem

como sinônimo de ser humano, em casos como "a origem do homem", passamos a

impressão que homem é mais ser humano que mulher. Quando escrevemos sobre um

sujeito indeterminado e dizemos ele ao invés de ela, idem. Quando usamos adjetivos

no masculino, também. (ARONOVICH, Lola. Nossa língua machista. Escreva Lola

Escreva, 14/09/09).

Então, é a partir dessa história que escrevi ao longo do Curso de Direito e do

significado que a experiência no Leningrado representou na minha vida, que me coloquei a

fazer uma pesquisa que investigasse, que analisasse objetivamente a influência da extensão na

formação jurídica dos e das extensionistas que realizaram o trabalho comigo no ano de 2011,

quando o núcleo passou a visitar a comunidade todos os sábados realizando os círculos de

cultura. Uma pesquisa que sistematizasse e refletisse sobre o que foi vivenciado e que pudesse

provocar o debate sobre o ensino jurídico no Curso de Direito da UFRN, situando a

metodologia e os princípios do Motyrum como uma proposta inovadora.

Destaco de antemão o caráter desafiador que representa esta monografia frente às

fragilidades de minha formação acadêmica, no viés da pesquisa e da produção intelectual e até

mesmo diante das dificuldades do Programa Motyrum em sistematizar as experiências e

refleti-las. Porém, ouso a construí-lo, ainda que com essas limitações, no intuito de colaborar

com o Curso de Direito da UFRN e com a extensão universitária a partir de minhas tímidas

reflexões sobre formação jurídica.

O presente trabalho tem como objetivo, então, traduzir o que foi vivido, mais

precisamente, a partir da análise de três aspectos da educação popular – da dialogicidade,

interdisciplinariedade e da horizontalidade – traçando um estudo comparativo da forma como

se apresentam no Curso de Direito da UFRN e no Programa Motyrum. É saber se: esses

fatores alteram, e se sim, como alteraram a perspectiva de direito e de ensino jurídico? Eles

provocaram alguma mudança no e na extensionista? Ajudaram a desenvolver alguma

habilidade? Qual ou quais? O ou a extensionista do Motyrum possui algum diferencial em

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relação aos outros e às outras estudantes do Curso de Direito?

Esses questionamentos despertaram a necessidade de um estudo teórico dos temas

relacionados, sobretudo no que tange à concepção de direito, ao ensino jurídico e à educação

popular, a qual traz as variáveis da pesquisa. Assim, estruturei o presente trabalho em três

capítulos, de modo que nos dois primeiros apresento as bases teóricas desses temas para no

terceiro relacioná-las ao que foi vivenciado.

Dessa forma, o primeiro capítulo apresenta a concepção positivista do direito a

partir de cinco elementos caracterizadores que se relacionam com os cinco aspectos do ensino

jurídico dogmático, apresentados na segunda parte do capítulo. Tanto os fatores da concepção

de direito quanto do ensino jurídico foram escolhidos a partir da vivência no Curso de Direito

da UFRN, ou seja, as análises são desenvolvidas a partir da pesquisa participante, da

pesquisadora como observadora e como parte do objeto de estudo. Aqui também realizo uma

pesquisa quantitativa no sentido de expor o perfil do Curso de Direito a partir das disciplinas

oferecidas pela matriz curricular e do quadro docente.

No segundo capítulo analiso outra perspectiva de direito e de ensino jurídico, que

é próxima da adotada pelo Programa Motyrum1. Isto é, uma visão de direito que possibilite

realizar mudanças na sociedade e um ensino jurídico que provoque a reflexão crítica, que seja

próximo da realidade. E para isso aponto algumas práticas orientadas neste sentido, que

constituem justamente a práxis do Programa Motyrum: a educação popular, a extensão

universitária popular, a educação em direitos humanos e a assessoria jurídica popular.

O último capítulo é voltado para a questão mais específica da pesquisa, que é a

experiência do trabalho no Leningrado. Assim, explico no que constitui o Programa Motyrum

de Educação Popular em Direitos Humanos, sua metodologia, sua prática e a sua posição no

Curso de Direito da UFRN; e apresento um relato da atuação do Núcleo urbano na

comunidade, apontando as atividades e alguns resultados alcançados. Num terceiro momento

passo a analisar a formação jurídica dos e das extensionistas que atuaram no projeto em 2011

a partir de dados coletados em entrevistas individuais realizadas durante este trabalho e em

vídeos produzidos pelo núcleo em 2011, na finalização do trabalho. Esses dados são situados

dentro das três variáveis já apresentadas – dialogicidade, interdisciplinaridade e

horizontalidade – de modo que em cada uma apresento o que foi levantado por colegas acerca

da contribuição da experiência no Leningrado em suas vidas acadêmicas e profissionais.

1 O Motyrum não tem uma compreensão homogênea do direito e do ensino jurídico. Porém, a sua práxis permite

apreender ideias gerais como, por exemplo, a noção de que o direito se constrói nas ruas e pode ser instrumento

de transformação social e a noção de que a educação deve ser libertadora do oprimido.

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Portanto, com essa monografia vislumbro a possibilidade de contribuir para a

produção acadêmica no campo da extensão universitária, estando certa de que esta é uma das

poucas pesquisas sistematizadas a partir de uma experiência de extensão no Curso de Direito

da UFRN. Como também compreendo que este estudo pode orientar uma discussão mais

aprofundada no Motyrum quanto à reflexão sobre sua práxis e no Curso quanto ao ensino

jurídico, possibilitando uma reflexão crítica daquilo que tem oferecido ao seu corpo discente,

docente e à sociedade potiguar.

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CAPÍTULO I

POSITIVISMO E ENSINO JURÍDICO:

Um olhar sobre o Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

No presente capítulo busco estudar os reflexos da adoção da teoria positivista nas

faculdades de direito, a relação com o ensino jurídico dogmático e como este cenário se

apresenta no Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Esta análise parte da apresentação da teoria positivista a partir de cinco aspectos

(formalismo, dogmatismo e legitimidade, neutralidade, completude e abstração) definidos em

razão de uma escolha metodológica de se buscar uma relação mais próxima com as variáveis

a serem estudas no presente trabalho – dialogicidade, interdisciplinaridade e horizontalidade.

Assim, tais fatores são abordados no intuito de estabelecer uma relação entre essa

concepção de direito e o ensino jurídico dogmático, fornecendo o embasamento necessário ao

segundo tópico do capítulo, em que se pretende analisar criticamente o ensino do direito a

partir da observação participante na experiência vivida na Graduação do Curso de Direito da

UFRN de 2009 a 2014. Essa análise será realizada também com base no Projeto Político

Pedagógico, na matriz curricular e nos relatórios de autoavaliação do curso.

1.1 A concepção positivista de direito

A teoria positivista apresenta aspectos caracterizadores que buscam denotar o

Direito em seu caráter formalista, como um sistema completo, neutro, composto de normas

incontestáveis, gerais e abstratas. Assim, neste tópico tenho o propósito de analisar algumas

questões que caracterizam essa concepção positivista do direito no intuito de fazer uma ponte

com as deficiências do ensino jurídico que trabalho no tópico seguinte. Saliento que o

objetivo neste momento é apresentar noções do positivismo jurídico para contextualizar o

foco do trabalho, que é a formação jurídica.

Dessa forma, por entender que o trabalho monográfico denota uma menor

complexidade teórica, pela intenção mesma de não aprofundar o estudo sobre concepção de

direito e pelo agravante do tempo para me dedicar a este trabalho, optei por fazer um estudo

mais sintético.

1.1.1 Formalismo

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O discurso positivista identifica o direito apenas no plano da norma. Na definição

de Hans Kelsen (1998, p. 4), o direito “é uma ordem normativa da conduta humana, ou seja,

um sistema de normas que regulam o comportamento humano” e tem como principal

elemento a sanção, ou seja, a resposta dada pelo Estado para o descumprimento das

disposições estabelecidas como expressão das vontades públicas. A esse conjunto de normas,

Bobbio denomina de ordenamento jurídico:

(...) a teoria do ordenamento jurídico constitui uma integração da teoria da norma

jurídica. (...) digamos que não foi possível dar uma definição do Direito do ponto de

vista da norma jurídica, considerada isoladamente, mas tivemos de alargar nosso

horizonte para a consideração do modo pelo qual determinada norma se torna eficaz

a partir de uma complexa organização que determina a natureza e a entidade das

sanções, as pessoas que devam exercê-las e a sua execução. Essa organização

complexa é o produto de um ordenamento jurídico. Significa, portanto, que uma

definição satisfatória do Direito só é possível se nos colocarmos do ponto de vista do

ordenamento jurídico (BOBBIO, 1995, p. 22).

Segundo a perspectiva positivista, a qualidade jurídica dessas normas é

determinada pela sua natureza institucionalizada, que na sociedade advém do Estado, a quem

é conferido o monopólio da produção jurídica, o poder de dizer o direito.

Essa concepção restringe em demasia a visão do que é e do que pode ser o direito,

pois que sintetiza tudo na vontade do Estado e, portanto da classe dominante2, cujo controle

do processo econômico, dos meios de produção, confere também o domínio sobre o aparelho

estatal. Essa redução implica diretamente numa relação de dominação, como atenta Lyra

Filho (1982, p. 5):

(...) se o Direito é reduzido à pura legalidade, já representa a dominação ilegítima,

por força desta mesma suposta identidade; e este “Direito” passa, então, das normas

estatais, castrado, morto e embalsamado, para o necrotério duma pseudociência, que

os juristas conservadores, não à toa, chamam de “dogmática”. Uma ciência

verdadeira, entretanto, não pode fundar-se em “dogmas”, que divinizam as normas

do Estado, transformam essas práticas pseudocientíficas em tarefa de boys do

imperialismo e da dominação e degradam a procura do saber numa ladainha de

capangas inconscientes ou espertos.

2 Segundo Marx (1998), a classe dominante é representada na sociedade capitalista pela classe burguesa,

detentora dos meios de produção. A partir da posse da produção material, a burguesia explora a força de trabalho

da classe trabalhadora para acumular riquezas, de modo que, com o domínio econômico, passa a ter o domínio

da sociedade e do Estado. Dessa forma, se instalam mecanismos de opressão, de negação da liberdade, que

subjuga a classe trabalhadora, além de outros grupos sociais que não correspondem aos padrões burgueses.

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Ao passo que confere apenas ao Estado o poder de dizer o direito, nega-se a

outros setores da sociedade o direito de também lutar por aquilo que consideram direito, suas

expressões jurídicas. Não reconhece práticas inovadoras de construí-lo, resiste às

necessidades apontadas nas ruas, uniformiza toda a sociedade por meio de uma produção

jurídica exclusiva e tenta anular outras formas jurídicas e criadoras de direito porventura

existentes na sociedade. Esse pensamento sacraliza o Estado e põe obstáculos à transformação

e à sua própria atualização.

Isto quer dizer que se trata de um mecanismo de manutenção do poder, pois é esse

monopólio que “pacifica” os conflitos de ordenamentos e impõe a vontade do Estado como a

única válida, conferindo um leque de privilégios à classe dominante. Ou seja, em nome de

uma suposta “paz social”, por sua vez, reafirmadora do pressuposto contratual da vida em

sociedade estabelecida pela filosofia política moderna3, é preciso centralizar o poder e

submeter as diferenças ao controle de uma única ordem normativa ao tempo em que o conflito

passa a ser visto como ameaça a todo o conjunto homogêneo da sociedade.

É isso que confere força ao legalismo, sob o pretexto de que a lei, expressão

neutra e geral, liberta da tirania e da violência ao registrar antecipadamente os

comportamentos tidos como socialmente desejáveis, bem como a resposta a ser aplicada para

aquelas pessoas que descumpram a norma. Em um duplo efeito, tem-se uma confusão entre

legalidade e legitimidade por um lado e, por outro, que tem relação imediata com o primeiro,

a norma, que submete a todas as pessoas, impõe-se de igual maneira a quem a deve aplicar,

podendo apenas circular dentro de certos moldes interpretativos, sem, contudo, destituir a

superioridade da norma para impor sua própria vontade individual ao caso concreto de

violação.

No esteio da crítica a esse sofisticado mecanismo de justificação, Lyra Filho

(1982, p. 3 e 4) considera o legalismo como um componente do “repertório ideológico do

Estado” na medida em que faz prevalecer a ideia de que o direito estatal é o único apto a

conferir o bem da coletividade, anulando-se os demais direitos socialmente existentes e

alimentando a cultura conformista de aceitar imposições sem questionamentos, como também

o medo de fazê-lo, pois que o Estado também detém o monopólio da força.

3 Rousseau propõe o contrato social como condição da subsistência, da conservação dos seres humanos em

sociedade. É um contrato tacitamente admitido pelas pessoas, que alienam seus direitos, sua liberdade, em prol

da coletividade, da paz social (ROUSSEAU, 1983, p. 30). Assim, justifica o poder sobreano do Estado como

expressão da vontade geral de lhe conferir poderes para decidir por todos e todas, e ainda afirma que o interesse

do sobreano não pode ser contrário ao interesse dos particulares.

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O rigor formal do positivismo transforma o direito em uma estrutura estática, pois

não permite acompanhar a velocidade com a qual se transformam as relações na sociedade.

As respostas para novos problemas sempre dependerão de uma lei ou, com mais força na

atualidade, com a criação, a partir da emenda constitucional n. 45/2004, de um sistema

híbrido entre civil law e common law, de uma decisão judicial, que, na realidade brasileira,

surgem tardiamente.

Denota-se que conceber o direito nesta visão limitada significa uma ausência de

diálogo com a sociedade, quanto a outras maneiras autênticas de expressão do direito. Nesta

concepção, as necessidades da comunidade devem se adequar à lei e não esta àquelas, o que

constitui um mundo abstrato, apartado do mundo concreto. A relação entre esse direito

positivo e a população manifesta-se restrita, gerando então uma crise na satisfação, na crença

e na própria existência da norma, desencadeando uma crise maior, de legitimidade. Esse

direito, portanto, não se mostra capaz de regular satisfatoriamente o comportamento humano.

1.1.2 Dogmatismo e legitimidade

O direito positivista apresenta um enfoque nitidamente dogmático, isto é, pautado

em premissas inatacáveis, em conceitos fixos, em uma decisão imposta, e regido pelo

“princípio da inegabilidade dos pontos de partida” 4.

Na dogmática jurídica, o estudo do direito é restrito à lei, expressão da ordem

vigente a qual demanda o imperativo da obediência, seja justa ou injusta, autoritária ou

democrática, legítima ou ilegítima. Portanto, a lei se constitui em um dogma, cujas premissas

são impostas (FERRAZ JÚNIOR, 2004, p. 62.).

Porém, no intuito de não aparentar arbitrariedade, a dogmática se utiliza de

argumentos razoáveis para justificar essa decisão, os quais devem se constituir em

generalidades, aplicáveis a toda a coletividade, como é o caso dos princípios.

Dito isto, cumpre analisar os argumentos apresentados pelo positivismo para

instituir o ponto de partida inegável da norma, a legitimação do ordenamento positivo.

A característica formal do direito positivo se apresenta como condição de validade

para a existência da norma, que é produto do Estado. Este, por sua vez, possui o monopólio da

produção de leis por ordem de uma norma. Quer dizer, a norma que diz quem a produz e

4 Denominação adotada por Tércio Sampaio Ferraz Júnior (2003, p.48) em referência a Luhmann (1974), que

caracteriza a ciência dogmática. Quer dizer a impossibilidade de negar as premissas que formam as bases da

teoria ou do pensamento, em outras palavras, significa proibir questionamentos. O exemplo apresentado pelo

autor é o princípio da legalidade, que vincula decisões e interpretações à norma, sem poder contrariá-la.

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como deve ser para ser válida. Logo, na dogmática, tem-se que é na própria norma que está o

fundamento do poder de produzi-la e de todo ordenamento, portanto.

Para Norberto Bobbio (1995, p. 58), esta é a norma fundamental, responsável por

instituir o último poder criador do ordenamento, o poder constituinte originário, a quem

confere a produção da principal norma interna do sistema, a Constituição.

Considerada o eixo do arcabouço normativo, a norma fundamental não possui

fundamento expresso. Sua existência consiste numa suposição, uma criação abstrata para

conferir legitimidade ao poder originário e, assim, ao ordenamento jurídico positivo.

Encontrar esse fundamento, aliás, não é uma tarefa que interessa ao positivismo.

Isso porque não há como buscá-lo dentro do sistema normativo, mas apenas fora dele, o que

confrontaria a sua completude, a sua natureza fechada e até a mesmo sua isenção ideológica

de influências políticas, conforme explica Norberto Bobbio (1995, p. 62-63):

À pergunta “sobre o que ela se funda” deve-se responder que ela não tem

fundamento, porque, se tivesse, não seria mais a norma fundamental, mas haveria

outra norma superior, da qual ela dependeria. Ficaria sempre aberto o problema do

fundamento da nova norma, e esse problema não poderia ser resolvido senão

remontando também a outra norma, ou aceitando a nova norma como postulado.

Perguntar o que estaria atrás desse início é problema estéril. A única resposta que se

pode dar a quem quiser saber qual seria o fundamento do fundamento é que para

sabê-lo seria preciso sair do sistema. Assim, no que diz respeito ao fundamento da

norma fundamental, pode-se dizer que ele se constitui num problema não mais

jurídico, cuja solução deve ser procurada fora do sistema jurídico, ou seja, daquele

sistema que para ser fundado traz a norma fundamental como postulado.

A opção por não se preocupar com esse fundamento é coerente com o enfoque

dogmático, premissa inquestionável, e revela um posicionamento ideológico de, pelo primado

da lei, omitir questionamentos acerca da legitimidade, mantendo o status quo. Na visão ora

analisada a norma é legítima porque tem origem em outra norma. A lei é início e fim. Daí a

confusão entre legalidade e legitimidade como se os significados fossem os mesmos.

Assim, o positivismo jurídico é campo fértil para a manutenção da ordem vigente.

De acordo com Ferraz Junior, o direito positivado é potencialmente

um instrumento manipulável que frustra as aspirações dos menos privilegiados e

permite o uso de técnicas de controle e dominação que, por sua complexidade, é

acessível apenas a uns poucos especialistas (FERRAZ JÚNIOR, 2004, p. 20).

Assim, no contexto da luta de classes, na qual a burguesia é dominante, o direito

positivo, imposto por ela mesma, sobretudo quando estudado dominantemente na ótica

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dogmática, torna-se um instrumento de manutenção:

a ciência dogmática do direito, na tradição que nos vem do século XIX,

prevalecentemente liberal, em sua ideologia, e encarando, por conseqüência, o

direito como regras dadas (pelo Estado, protetor e repressor), tende a assumir o

papel de conservadora daquelas regras, que, então, são por ela sistematizadas e

interpretadas (FERRAZ JÚNIOR,2004, p. 70).

Portanto, de dominação, como afirma Lyra Filho (1980, p. 22):

(...) como, por outro lado, ao aparelho estatal, e só a ele, é deferido o poder seletivo

do que se insere na preceituação jurídica, o direito, com aquela seleção, passa a ser a

vontade do Estado nua e crua. Aí não se atenta para a consequência fatal: é que a

ótica positivista “desjuridiciza” o Estado, de vez que ele passa a ser metajurídico,

enquanto produtor de todo direito. Mas, se o Estado não é jurídico e, sim, jurígeno

(pois, em tal caso, até as normas jurídicas reguladoras de sua constituição e

funcionamento são estatais), em nome de que direito ele se arroga o poder jurígeno

mesmo? Trata-se, então, dum ato puro e simples de dominação ilimitada.

A produção normativa como monopólio estatal é um mecanismo de garantir as

condições sociais de produção, conforme explica Machado:

Para garantir essa produção, e a correspondente acumulação, o Estado, por meio da

lei, prevê, controla, desarma e reprime quaisquer possibilidades de resistência e

insubmissão das classes trabalhadoras, expropriadas do capital. (...) Esse mecanismo

legal é o mesmo que, na medida do possível, “legaliza” as aspirações e os interesses

econômicos predominantes no interior de uma formação social, próprios da classe

que detém o poder político de editar normas, via Estado liberal, pela composição

majoritária nos parlamentos. Estes, por meio do artifício liberal da representação,

são os responsáveis pela produção legislativa do direito (ius scriptum) que tem no

Estado sua única fonte (MACHADO, 2009, p. 41).

Na dogmática jurídica, a superficialidade se veste de obviedade para naturalizar o

pensamento positivista e manter o que está posto. A imposição de premissas inquestionáveis e

a aceitação da legitimidade por legalidade revelam uma fragilidade teórica quando

confrontada à própria realidade: o distanciamento do mundo concreto, a restrição do estudo

do direito aos códigos, a formação legalista e acrítica do profissional, a cultura jurídica

conservadora e resistente às transformações sociais.

1.1.3 Neutralidade

A bem da verdade, a teoria pura do direito pensada por Hans Kelsen (1985, p. 1)

não nega a relação do direito com aspectos políticos, sociais, econômicos, culturais,

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religiosos. Porém, na medida em que isola o direito desses elementos que também o compõem

e o condicionam, fecha-se no mundo do império da lei, onde a norma é incontestável,

soberana, absoluta e independe da vontade dos seus “súditos”, da realidade concreta.

O ordenamento positivo, como ciência jurídica, estaria afastado de influências

externas, como política, religião, moral, ética. Atendo-se ao requisito puramente formal de

validade, não considera o conteúdo da norma, pois este pertence ao mundo do dever-ser, que

não é jurídico, mas ideológico (KELSEN, 1985, p. 72).

Na obra “A teoria pura do direito”, Hans Kelsen adota como conceito de ideologia

aquilo que encobre a realidade na intenção de manter e defender seus interesses, bem como

destruir uma outra em prol destes. Assim, apresenta sua teoria como antiideológica por estar

alheia a interesses outros, a interesses políticos, importando-se apenas com a objetividade das

normas, isto é, sua qualidade jurídica.

A neutralidade, nesse discurso positivista, é uma qualidade, no sentido do que é

bom, da norma. É a indicação da sua natureza de Ciência, que não se deixa levar pelos

condicionamentos da sociedade, mas apenas pelo rigor dos métodos científicos, pela

racionalidade e objetividade formal. Logo, a norma é neutra porque está livre de influências

valorativas, porque não se envolve com política, moral ou religião. É neutra porque provém

do Estado, o único legitimado a produzi-la, posto expressar a “vontade geral” e defender os

“interesses da coletividade”, de acordo com a teoria do contrato social (ROUSSEAU, 1983).

Como dito anteriormente, o direito positivo surge da imposição do mais forte

sobre o mais fraco. O mundo jurídico tal como apresenta a referida teoria é criado para

legitimar o poder do Estado5, que é instrumento do mais forte, e assim legitimar seus

privilégios e seus interesses sob o manto da legalidade.

A dogmática, por sua vez, reforça a neutralidade do direito a partir de seus

conceitos abstratos que, revestindo a norma de aparente legitimidade, neutraliza os interesses

impostos pela classe dominante. Consoante explica Machado, é uma estratégia para

universalizar a vontade da classe dirigente como vontade geral:

Numa sociedade capitalista, naturalmente estratificada, a pauta ideológica das classes

que figuram no topo da hierarquia social necessita ao menos de uma aparência de

legalidade para lograr o consenso legitimador. E essa, digamos, aura de legalidade, é

perseguida por intermédio do discurso dogmático que apresenta, retoricamente, a lei

como instância desideologizada, indiferente aos interesses políticos desta ou daquela

classe. Tal estratégia, na verdade, busca universalizar juridicamente os interesses da

5 De acordo com Marx (1998), a evolução da burguesia acompanha um progresso político, de modo que desde o

momento em que conquistou a indústria e o mercado, tem o Estado como verdadeiro “gestor” dos seus próprios

negócios, isto é, subserviente aos seus interesses.

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classe dirigente, que é aquela que dirige a sociedade de um ponto de vista material e

cultural, procurando difundir a ideia de que a lei resulta de uma vontade geral, cujo

fim é garantir o bem comum por meio de normas, dogmas e princípios tais como o

princípio da isonomia e da legalidade (MACHADO, 2009, p. 41).

Percebe-se então que não há neutralidade. O direito que serve de manutenção da

ordem vigente e que não admite outra paralela revela a disputa ideológica presente na

sociedade. Revela uma opção: conservar os interesses da classe dominante.

A assimilação do direito neutro incorre na resistência àquilo que assumidamente

não o é. Ou seja, num conflito entre classe dominante e classe dominada, por exemplo, a

decisão a favor daquela seria considerada neutra; se em benefício desta, no entanto, haveria

conotação ideológica. É dizer que a neutralidade, servindo à manutenção, resiste às mudanças

como mecanismo de defesa (MACHADO, 2009, p. 41), rotulando os questionamentos como

expressão ideológica em contraste com a suposta neutralidade da ordem vigente.

Portanto, a desconstrução dessa neutralidade se faz essencial na transposição dos

obstáculos à transformação do direito, postos pela dogmática positivista.

1.1.4 Completude

O direito compreendido enquanto conjunto de normas estatais, como assim

caracteriza o positivismo, é concebido como algo acabado, completo, suficiente em si mesmo,

capaz de regular tudo e todos, isto é, não haveria problema que o ordenamento jurídico não

pudesse solucionar.

A autossuficiência do ordenamento jurídico, para o positivismo, está na

generalidade de algumas normas e na existência de mecanismos de interpretação, como uso

da analogia, de princípios, equidade e jurisprudência, que no caso concreto não previsto na

norma, se aplica da forma que o juiz entender pertinente, conforme explica Tércio Sampaio

Ferraz Júnior (2004, p. 67):

Nessa totalidade, que tende a fechar-se em si mesma, as lacunas (aparentes) devem

sofrer uma correção num ato interpretativo, não pela criação de nova lei especial,

mas pela redução de um caso dado à lei superior na hierarquia. Isso significa que as

leis de maior amplitude genérica contêm, logicamente, as outras na totalidade do

sistema. Nesse sentido, toda e qualquer lacuna é efetivamente uma aparência. O

sistema jurídico é necessariamente manifestação de uma unidade imanente, perfeita

e acabada, que a análise sistemática, realizada pela dogmática, faz mister explicitar.

Dessa forma, não haveria lacuna normativa. O próprio ordenamento preveria

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critérios para problemas que a princípio não teriam sido pensados pelo legislativo, mas que

poderiam ser analisados pelo juiz, a quem caberia escolher a norma adequada e atualizar o seu

sentido no caso concreto, como ocorre, por exemplo, no fenômeno da “mutação

constitucional”, método de interpretação recentemente utilizado pelo Supremo Tribunal

Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277/DF e da Arguição de

Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132/RJ6, que reconheceu como entidade

familiar a união de pessoas do mesmo sexo7.

Logo, ainda que se tenha uma norma produzida em um contexto histórico

diferente, a norma teria essa capacidade de se reinventar a partir do trabalho do juiz.

Para os positivistas, a completude é requisito primordial na sustentação do sistema

normativo. Como diz Bobbio (1995, p. 118) “a completude é algo mais que uma exigência, é

uma necessidade, quer dizer, é uma condição necessária para o funcionamento do sistema”.

No entanto, essa própria corrente de pensamento admite a existência da lacuna

ideológica (BOBBIO, 1995). Segundo Bobbio, este tipo de lacuna está relacionada ao

sentimento de justiça, ou seja, seria a falta da “solução satisfatória”, da “norma justa” no

ordenamento. Ele mesmo afirma: “que existem lacunas ideológicas em cada sistema jurídico é

tão óbvio que não precisamos insistir. Nenhum ordenamento jurídico é perfeito, pelo menos

nenhum ordenamento jurídico positivo” (BOBBIO, 1995, p. 140).

Esse tipo de lacuna é, porém, irrelevante para o positivismo, justamente por

compreender o direito como norma no sentido exclusivamente formal. Não importa se as

normas são justas, não importa a quem elas favorecem e a quem elas prejudicam. Afinal,

como revela o referido autor, “as lacunas ideológicas não interessam aos juristas” (BOBBIO,

1995, p. 142).

Diante do exposto, percebe-se que ao direito positivo não importa a aceitação da

sociedade, afinal, nesta concepção, o direito é heterônomo, isto é, sujeita os indivíduos de

uma sociedade às suas normas, independentemente de sua aceitação, de ser justa ou não.

A completude do ordenamento é meramente formal e carece do valor de justiça.

Essa lacuna confere ao direito positivo o poder de legitimar arbitrariedades de quem é

responsável por produzir e aplicar as leis, uma vez que o que têm valor para o positivismo é

6 Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635>. Acesso em

02 de abril de 2014. 7 A mutação constitucional é um método de interpretação que modifica o sentido de normas contidas na

Constituição Federal sem alterar sua redação. Sua finalidade é atualizar e harmonizar a norma maior com a

realidade social, com os valores do momento histórico. No caso em tela, a Constituição brasileira não previa no

seu texto a constituição familiar a partir de laços homoafetivos. Após o julgamento de uma ação originada da

necessidade de casais homossexuais de terem seus direitos familiares e conexos reconhecidos, o STF adotou essa

técnica interpretativa para atender aos anseios desse grupo de pessoas.

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sua natureza estatal. Nessa concepção “avalorativa” do direito, não há preocupação com o

conteúdo social da norma ou com os efeitos políticos das decisões (MACHADO, 2009, p.

127). Conforme já exposto, a intencionalidade da norma no contexto da sociedade capitalista

é manter interesses da classe dirigente; é vulnerável, portanto, às suas decisões em cada

momento histórico.

A história está repleta de exemplos de formas de dominação desumanas

amparadas pela norma. As atrocidades produzidas pelo nazismo ao legitimar o extermínio de

judeus e a ditadura militar no Brasil, que por duas décadas reprimiu a liberdade de brasileiros

e brasileiras, inclusive através da tortura, ilustram essa deficiência do positivismo em

desconsiderar o valor de justiça, legitimando graves violações de direitos humanos.

1.1.5 Abstração

A dogmática jurídica se constitui a partir de uma dupla abstração (FERRAZ

JURNIOR, 20014, p. 43), uma vez que seu objeto se constitui das normas (dogmas de ação) e

das regras de interpretação (dogmas do comando hermenêutico). Ou seja, “um produto

abstrato, as regras, que tem por objeto outro produto abstrato, as normas” (FERRAZ JUNIOR,

2004, p. 68).

Disto, vislumbram-se duas consequências: o distanciamento da realidade a partir

da abstração da abstração – a regra abstrata que interpreta norma abstrata construída sem

vínculo com a sociedade –, e a liberdade e independência de se instituir no ordenamento

positivo como direito o que bem entender – sem essa vinculação, não há limites para norma, a

não o ser os instituídos por ela mesma.

A abstração do direito leva, por conseguinte, à abstração do indivíduo. Cria-se a

ficção jurídica da igualdade de todos perante a lei, ocultando as diferenças sociais

(MACHADO, 2009, p. 42).

No processo, por exemplo, as figuras do autor e do réu encobrem o contexto dos

sujeitos envolvidos ao passo que transpõem o caso concreto para o mundo jurídico, no qual o

campo de visão é restrito à situação-problema. Esta, por sua vez, não costuma ser

compreendida no processo como fruto dos condicionamentos sociais, políticos, econômicos.

Da mesma forma ocorre com os seus sujeitos – Joana e Maria são apenas autora e ré do

conflito, proprietárias de um nome, de um registro civil e de um endereço, mas sem história,

sem contexto. A decisão sobre o conflito é formulada a partir de papéis, documentos, ritos

formais, ou seja, permanece na abstração, não se comunica com a realidade, com as

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condicionantes sociais, políticas e econômicas da questão analisada.

A partir das análises apresentadas, observa-se que todos os aspectos convergem

para construção do direito como instrumento de manutenção do status quo. Neutraliza-se,

formaliza-se e se abstrai com o fim de instituir-se legítimo, inquestionável e exclusivo. Os

cinco fatores da teoria positivista do direito apresentados dialogam, portanto, com outros

aspectos da formação jurídica dogmática, como o distanciamento da realidade, a resignação, o

conservadorismo, a formação acrítica, a seguir expostos.

1.2 O ensino jurídico dogmático e o Curso de Direito da UFRN

A concepção do direito enquanto norma é tradicionalmente dominante nas

faculdades de direito, e no Curso de Direito da UFRN não é diferente.

Isto se depreende da relação já analisada entre direito e dominação, revelada pela

história. A burguesia tem se constituído como classe dominante desde o século XVIII, quando

na Revolução Francesa, tomou o poder do Estado, instituindo o império da lei para legitimá-

lo. Neste sentido, é criada a ciência do direito, manipulada pelo enfoque dogmático, no intuito

de fortalecer a teoria positivista e, assim, manter a burguesia no posto de classe dominante.

Desde o Renascimento, as alterações sociais, a complexidade populacional, o

crescimento da atividade mercantil modificam as relações concretas de poder, como

havia na Idade Média (suserano/súdito), que são substituídas por uma outra, da qual

a burguesia se apossará rapidamente. Esse novo tipo de poder, que Foucault

(1982:188) chama de poder disciplinar, não é mais apenas poder sobre o território,

mas sobre o corpo e seus atos, numa palavra, poder sobre o trabalho. Esse poder é

mais racionalizável, pois não é descontínuo, nem ocorre apenas quando necessário,

nem tem instrumentos ocasionais como imposições assistemáticas de impostos, mas

é contínuo, permanente e exige um sistema de delegações. Com isso, uma ideia

central para a teoria das fontes, a noção de soberania, adquire certa flexibilidade

abstrata que esconde as relações de propriedade como poder e cria a impressão de

que tudo tem uma base naturalmente econômica, competindo ao poder político zelar

convenientemente por elas. (...) O exercício do poder, contínuo e permanente, ocorre

agora por meio de instituições, procedimentos, dispositivos de segurança, que fazem

surgir uma série de aparelhos, os aparelhos de Estado, de produção econômica, de

controle social. Nesse contexto, é preciso um saber novo, capaz de definir, a cada

instante, o que deve competir ao Estado, à sociedade privada, ao indivíduo. E aí que

entra a ciência dogmática moderna. E a teoria das fontes é, assim, um de seus

instrumentos primordiais, pois, por meio dela, torna-se possível regular o

aparecimento contínuo e plural de normas de comportamento sem perder de vista a

segurança e a certeza das relações (FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 219-220).

Com a ascensão da classe burguesa ao poder, a sociedade passa a ser regida por

valores por ela concebidos, como a liberdade de mercado, a razão, a legalidade. De acordo

com Edgardo Lander (2005, p. 8), essa sociedade cria o fenômeno da naturalização das

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relações sociais a partir da construção de um pensamento que omite a existência de outras

forças políticas, então derrotadas; que padroniza esses valores e que apresenta a sociedade

liberal como a única possível, na qual não há ideologias nem outras possibilidades de modo

de vida satisfatório.

Esse pensamento é forjado pelas ciências sociais, utilizadas como instrumento de

naturalização a partir de duas dimensões (LANDER, 2005): das separações do mundo real e

da forma como os saberes se articulam com a organização do poder. Na primeira, tem-se a

separação entre razão e mundo, produzindo-se, daí, um conhecimento descorporizado e

descontextualizado que se pretende ser universal; além da separação entre os ditos

especialistas e a população em geral. Na segunda, pode-se citar a construção do Direito e da

ideia de direitos universais, que apenas o são enquanto coadunarem com o modelo de

sociedade liberal, o que está de fora não é legítimo, portanto.

Dessa forma, excluindo o diferente e impondo uma só verdade e uma só visão de

mundo, se constituíram as disciplinas das ciências sociais (LANDER, 2005, p. 13). Partindo-

se dessa premissa, o Direito, como uma ciência social, portanto, reproduz essa lógica da

naturalização construída a partir do conhecimento distanciado da realidade e voltado para a

manutenção da ordem social, servindo à dominação burguesa.

De acordo com Machado (2009), o direito é um fenômeno ideológico,

condicionado por diversos interesses, políticos, econômicos, sociais. Na sociedade capitalista,

portanto, o direito positivado assimila os interesses de quem detém os meios de produção,

mas tenta ocultar essa absorção como se neutro fosse:

Apesar de tais evidências de que o direito encerra mesmo um conteúdo axiológico, o

fato é que o direito liberal burguês, na modernidade, procurou sempre produzir um

discurso tendente à ocultação dos aspectos valorativos, tanto da produção quanto da

aplicação e também do ensino do direito. No século 20, por exemplo, a ideologia

jurídica prevalecente, o normativismo positivista, logrou um espantoso êxito nessa

tarefa de ocultar as dimensões axiológicas do direito e da sua ciência, impondo-se

como a mais prestigiada maneira de conhecer o fenômeno jurídico, de aplicá-lo e de

transmiti-lo de modo politicamente asséptico. (...) a dogmática jurídica é hoje o

único paradigma aceito para a ciência do direito, como decorrência da visão

normativo-positivista prevalecente no mundo ocidental, sobretudo naqueles

ordenamentos jurídicos influenciados pelo modelo da civil Law (MACHADO, 2009,

p. 36).

No entanto, essa concepção de direito restrita à norma enquanto objeto de estudo

não tem se sustentado frente à velocidade das mudanças sociais, se mostrando ineficaz no

acompanhamento das novas demandas, frente aos questionamentos dessa neutralidade e dessa

produção descontextualizada de conhecimento que apartam o direito da sociedade.

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Realmente, o normativismo como único objeto da ciência jurídica; o raciocínio

lógico-formal como sua única metodologia; o liberalismo como paradigma

ideológico exclusivo e a mentalidade positivista como base do saber jurídico

tornaram esse saber excessivamente dogmático, inflexível, de cientificidade

duvidosa e alheio às dimensões não normativas do direito. Portanto, um saber e uma

ciência inadequados para a realidade atual, matizada por conflitos coletivos,

mudanças aceleradas, emergência de novos direitos, novos sujeitos, novas demandas

sociais e políticas etc. (MACHADO, 2009, p. 36).

Por conseguinte, o ensino dessa ciência jurídica nas faculdades de direito também

tem vivido uma crise estrutural ao carregar as limitações do positivismo na compreensão do

direito e da técnica jurídica, se mostrando incapaz de oferecer uma formação completa ao e à

estudante e profissional jurista, consoante explica Machado (2009, p. 109):

Essa crise de paradigmas da ciência jurídica atinge, por conseguinte, também a

reprodução do saber e o universo prático do profissional do direito. Atinge o ensino

jurídico porque o mesmo não está mais orientado por padrões didáticos e

pedagógicos que propiciem a formação completa do jurista, capacitando-o para atuar

em meios sociais conflitivos, como mediador de relações que se devem orientar pela

busca da justiça e da democracia, enquanto expressões de igualdade social e

participação política; e atinge também a atuação profissional do jurista, porque essa

atuação há muito se tornou um fazer simplesmente tecnológico, despolitizado e

exercido com total indiferença pelos critérios éticos de justiça, quer distributiva,

quer comutativa (MACHADO, 2009, p. 36).

Portanto, a crise do ensino jurídico tem como pressuposto a crise do paradigma

positivista do direito. Isto é, indica que a reforma da educação jurídica passa pela

reformulação de conceitos ligados ao direito, pela desconstrução da ideia de neutralidade, dos

dogmas positivistas, do formalismo excessivo. Pois o dogmatismo aliena; o formalismo

excessivo e a abstração distanciam da realidade; o conservadorismo se imprime nos métodos

pedagógicos e na ausência de diálogo entre docente e discente; a visão restrita diviniza o

direito; o individualismo direciona estudantes a cargos e empregos, e não ao mundo para

exercerem sua função social.

Dessa forma, os problemas do ensino jurídico são situados, no presente trabalho,

através de elementos definidos a partir da realidade que vivenciei no Curso de Direito da

UFRN, sendo fruto, portanto, de uma vivência. A seguir, esses aspectos são abordados

individualmente a fim de um maior aprofundamento e buscando relacioná-los à realidade

local, através de dados e exemplos.

1.2.1 Muita reprodução e pouca reflexão

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O direito ensinado na perspectiva positivista e dogmática conduz

hegemonicamente a uma formação jurídica acrítica e acomodada.

Primeiro porque a confusão entre direito e lei é demasiadamente restrita e formal,

ignorando o valor de justiça em detrimento da superestimação da norma, constituindo-se no

dever de obediência à ordem vigente. Segundo porque o enfoque dogmático não permite

questionamentos, mas apenas a aceitação do que está posto. Como dito anteriormente, a

existência da norma é apresentada de forma tão óbvia, que não haveria necessidade de

investigar sua legitimidade.

Isso se expressa por meio do ensino restrito à abordagem de códigos e

jurisprudência, o que torna a formação meramente técnica, capaz de ignorar as implicações do

direito com questões políticas, econômicas e sociais. Afinal, nessa concepção de direito, deve-

se prezar pela neutralidade da norma para assegurar os interesses de quem a produz,

consoante explica Ferraz Junior (2003, p. 74):

Notamos, assim, que o desenvolvimento da dogmática no século XIX em termos de

sua função social, passa a atribuir a seus conceitos um caráter abstrato que lhe

permite uma emancipação das necessidades cotidianas dos interesses em jogo. Com

isso tornou-se possível uma neutralização dos interesses concretos na formação do

próprio direito, neutralização essa já exigida politicamente pela separação dos

poderes e pela autonomia do poder judiciário.

A dogmática impõe padrões de conhecimento, que assim como a norma, devem

ser cumpridos. O direito é acabado, não havendo necessidade de ser transformado. É neutro e

assim deve permanecer. É legítimo e sobre isso não há como existirem dúvidas.

(...) trabalha-se com textos, com leis e documentos, que têm a pretensão de esgotar o

real, de desenvolver uma lógica interna excludente que expele os dados que não

podem ser por ela tratados. O contexto é negado para justificar um abstrato primado

de leis que transitam em um espaço etéreo, no máximo referido pelas malfadadas

“ciências auxiliares” do direito. O ensino jurídico passa a ser um processo de

análises perfunctórias das redundâncias legalistas. As grandes questões da

legitimidade, da justiça, dos conflitos sociais, das dominações políticas e das

desigualdades econômicas, por exemplo, são olimpicamente ignoradas, ocasionando

uma lacuna mutiladora na construção das cabeças dos estudantes de direito

(AGUIAR, 2004, p. 185).

Os dogmas são expostos repetidamente ao longo do curso em cada disciplina, nas

quais se ensina a memorizar e a reproduzir, de modo que pouco se oportuniza a reflexão, a

análise crítica, os debates em sala de aula. Além da estagnação, seus ensinamentos, por não se

preocuparem com fundamentos, mas apenas com a imposição de verdades, tendem a formar

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estudantes e profissionais reprodutores do senso comum diante da ausência do

aprofundamento teórico e prático e de reflexões críticas, consoante destaca Aguiar (2004, p.

181):

Ora, essa reprodução, essa mesmice do mundo só pode gerar práticas de reprodução

de conhecimentos, nunca de produção, de criatividade, de urdidura de novas

soluções, de emergência de novos modelos de enfrentamento dos desafios que a

sociedade apresenta. (...) mas esses procedimentos são importantes para tornar os

cultores do direito pessoas pacatas dentro da ordem injusta, conservadoras perante as

mudanças, medrosas diante das inovações e pouco atuantes politicamente (...).

No Curso de Direito da UFRN, uma oficina de autoavaliação realizada

recentemente, em 08/04/2014, com estudantes de diversas turmas apontou no relatório essa

mesma realidade nas salas de aula: “alguns professores não contribuem para a produção do

conhecimento pelo aluno, limitando-se a ditar conteúdo para o estudante anotar” (2014, p. 7).

Como participante dessa oficina observei que a maioria dos e das estudantes

presentes se queixam de docentes que se limitam a ler códigos nas aulas, além de exigir nas

avaliações a memorização da letra fria da lei, de súmulas e tratados, castrando a capacidade de

análise crítica dos e das discentes. O referido relatório traz falas de estudantes como: “temos

que decorar as leis para respondermos as provas” e “as provas exigem a prática da decoreba”

(p. 7).

Segundo alguns relatos, a maior parte do corpo docente realiza provas objetivas

para não ter trabalho na correção, sendo essas avaliações semelhantes às provas de concurso

público. Quando discursivas, preservam o caráter objetivo, como em um caso relatado em que

um professor se atém a correções de “datas” de promulgação de leis, ou exigem do e da

discente uma reposta de acordo com o ponto de vista do ou da docente, isto é, que reproduza o

mesmo pensamento. Já quando os e as estudantes se deparam com questões discursivas que

exigem a reflexão e o exercício do pensar, relatou uma estudante que há uma dificuldade

grande para respondê-las, diante do costume de lidar com provas de marcar “x” e que

requerem memorização.

Por outro lado, o que pude observar nessa oficina de autoavaliação no contexto do

Curso de Direito é que as aulas reprodutoras têm despertado um senso crítico no e na

estudante quanto ao modelo de ensino, na verdade, uma negação do ambiente das salas de

aula. A insatisfação generalizada do corpo discente com o ensino legalista, com poucas

oportunidades de debates tem levado estudantes a participarem de atividades extracurriculares

para complementar sua formação jurídica, como é o caso dos projetos de extensão, avaliado

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pelas pessoas presentes como o ponto forte do Curso8.

Dessa forma, a carência de reflexões nas salas do Curso de Direito acaba

provocando no corpo discente a necessidade de saná-la através de atividades que ofereçam um

aprendizado mais aprofundado, criando um paradoxo no que tange ao ensino legalista.

A carência de reflexões no ensino jurídico também pode ser constatada a partir da

matriz curricular. Os cursos de direito estão repletos de disciplinas meramente técnicas, às

quais sequer há preocupação em dar aplicabilidade e finalidade social, sem haver um

equilíbrio em relação às matérias filosóficas, políticas e sociológicas, o que para Machado

(2009, p. 98), corresponde a uma escolha intencional:

Atualmente é visível que a política de massificação do ensino jurídico consumou

essa tendência de privilegiar matérias e disciplinas tecnológicas nas grades

curriculares das faculdades de direito, em detrimento daquelas que apresentam um

conteúdo mais humanístico e reflexivo. Tais opções curriculares podem ser

entendidas até mesmo com uma estratégia de despolitização do jurista e atrofia do

seu senso crítico, como ingredientes necessários para garantir a inteira subserviência

dos profissionais do direito aos reclamos do mercado (MACHADO, 2009, p. 98).

Essa mesma lógica rege a matriz curricular vigente no Curso de Direito da UFRN.

Além do desequilíbrio entre disciplinas voltadas à formação humanista e as voltadas à

formação profissionalizante, a matriz do Curso apresenta ainda uma distribuição desigual, de

modo que aquelas se concentram nos primeiros períodos, enquanto estas compõem

praticamente toda a extensão do curso, consoante a tabela abaixo:

PERÍODO CARGA HORÁRIA

EIXO FORMAÇÃO

FUNDAMENTAL9

CARGA HORÁRIA

DISCIPLINAS

PROFISSIONALIZANTES10

MANHÃ NOITE MANHÃ NOITE

8 A quem interessa ir além da busca de uma melhoria da formação individual para refletir o direito e o ensino

jurídico, o espaço do Centro Acadêmico Amaro Cavalcanti e o Programa Motyrum de Educação Popular em

Direitos Humanos, programa de extensão, têm acolhido estudantes indignados e indignadas com a conjuntura do

Curso, nas duas deficiências de ensino e nos problemas relacionados ao quadro docente. 9 De acordo com o Projeto Político Pedagógico (2010) do Curso de Direito da UFRN, o eixo de formação

fundamental consiste nas disciplinas de Antropologia, Ciência Política, Economia, Ética, Filosofia, História,

Psicologia e Sociologia. 10

O Projeto Político Pedagógico faz referência a essa nomenclatura a partir da Resolução nº 09/2o04 da Câmara

de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação, do Ministério da Educação, que define no art. 5º, II o

eixo de formação profissional como aquele que abrange “além do enfoque dogmático, o conhecimento e a

aplicação, observadas as peculiaridades dos diversos ramos do Direito, de qualquer natureza, estudados

sistematicamente e contextualizados segundo a evolução da Ciência do Direito e sua aplicação às mudanças

sociais, econômicas, políticas e culturais do Brasil e suas relações internacionais, incluindo-se necessariamente,

dentre outros condizentes com o projeto pedagógico, conteúdos essenciais sobre Direito Constitucional, Direito

Administrativo, Direito Tributário, Direito Penal, Direito Civil, Direito Empresarial, Direito do Trabalho, Direito

Internacional e Direito Processual”.

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1º 300h 300h 0h 0h

2º 150h 90h 210h 210h

3º 120h 120h 240h 180h

4º 30h 30h 300h 240h

5º 0h 0h 330h 270h

6º 0h 0h 330h 300h

7º 60h 60h 240h 270h

8º 30h 30h 210h 180h

9º 0h 0h 150h 150h

10º 0h 0h 0h 90h

11º X 60h X 120h

TOTAL 690h 690h 2.010h 2.010h

Tabela 01. Distribuição das Cargas horárias obrigatórias mínimas na matriz curricular dos turnos da manhã (dez

períodos) e da noite (onze períodos). Fonte: produção própria a partir de dados do SIGAA11

.

Conforme se vê, a quantidade de carga horária entre os tipos de disciplinas é

dispare. As horas destinadas às disciplinas profissionalizantes representam mais que o dobro

das disciplinas do eixo fundamental, evidenciando o perfil tecnicista do Curso de Direito da

UFRN, isto é, a prevalência da razão tecnológica ou instrumental (MACHADO, 2009). Sobre

isso o relatório aponta a opinião discente:

A proposta de formação humanista, conforme prevê o projeto pedagógico, é

interessante; todavia, o ensino não corresponde ao previsto. É centrado,

essencialmente, na perspectiva legalista. (2014, p. 6).

Interessante observar que o atual Projeto Político Pedagógico do Curso se propôs

a corrigir essa deficiência detectada na matriz curricular anterior, de 2007, consoante afirma

no “diagnóstico do curso”:

Por outro lado, o atual currículo não atende às exigências da resolução n. 9/2004 no

que diz respeito às disciplinas que compõem o eixo de formação fundamental.

Apesar de existir uma preocupação com a formação humanística do profissional do

direito, falta-lhe conhecimento na área da antropologia e da psicologia assim como,

uma melhor distribuição das disciplinas e da carga horária no decorrer dos semestres

de forma a atender, da melhor maneira possível, a compatibilidade entre o conteúdo

e o nível de compreensão (2010, p. 10).

Todavia, tal pretensão não se concretiza na realidade, de modo que o objetivo

traçado de “estimular a formação humanista do aluno para que este entenda a realidade social

e seja um agente transformador” (2010, p. 12) não é percebido também pelo corpo docente

como algo que acontece na prática, de acordo com o relatório da oficina de autoavaliação:

11

Sistema Integrado de Gestão de Atividades Acadêmicas.

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A formação humanista contemplada nos objetivos e perfil do curso encontra-se

prejudicada porque “existe discrepância entre o que está no Projeto e a prática”; “as

disciplinas humanistas são desprezadas pelos professores e até pelos alunos”. (2014,

p. 9).

Diante do exposto, nas palavras de Lyra Filho (1980, p. 6), é o direito errado,

ensinado de forma errada. O erro está na concepção limitada que reforça o direito como

instrumento de dominação. Está no ensino jurídico dogmático que forma um exército a

serviço da classe dominante, para reproduzir naturalmente seus dogmas e manter seus

privilégios, na medida em que atribui um valor excessivo à norma, ou seja, algo abstrato, sem

discutir a sua legitimidade (MACHADO, 2009).

(...) o processo de conhecimento puramente normativista do fenômeno jurídico, e a

reprodução desse saber pautado por paradigmas epistemológicos também

ideologizados, transforma o ensino e as escolas de direito em verdadeiros “aparelhos

ideológicos” da burguesia, para utilizar a conhecida expressão de Althusser,

realizando automaticamente a difusão dos valores, objetivos e aspirações da classe

detentora do poder econômico, social e político (MACHADO, 2009, P. 58).

O ensino jurídico pautado na reprodução seja de códigos, de ideias ou de opiniões

próprias do ou da docente não estimula o senso crítico do ou da estudante, a não ser nos casos

em que a prática pedagógica provoca tamanha indignação que faz o ou a estudante buscar

espaços como o Centro Acadêmico ou o Programa Motyrum, como ocorre no Curso de

Direito da UFRN, conforme já exposto.

Todavia, o problema do ensino reprodutor está na restrição do debate, da

possibilidade de refletir e questionar sobre o que é dito em sala de aula, de criar

conhecimento. Esta questão também está ligada à prática pedagógica, no sentido da existência

do diálogo em sala de aula que permita a discussão e o aprofundamento do conteúdo.

Quando o ensino é reprodutor, e reprodutor do que está na lei, à qual é associada a

ideia do dever de obediência, ainda que não haja concordância, acaba disseminando uma

concepção de direito inquestionável (pois direito é norma) que atende a apenas uma parcela

da sociedade que não é maioria, mas é quem domina os meios econômicos de produção, os

meios de comunicação, o poder político e, portanto, a produção de leis.

É nesse sentido de não questionar a legitimidade, o conteúdo das normas, o seu

valor de justiça para a sociedade, de perpetuar essa visão classista do direito que mais provoca

exclusão social do que inclusão e mais injustiça do que justiça (MACHADO, 2009), que o

ensino jurídico dogmático se constrói e hegemoniza uma visão única do direito.

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É dessa forma que a formação humanista e politizada do e da estudante de direito

dá lugar aos interesses de mercado formando juristas cuja figura mais se aproxima de um

operário ou de uma operária industrial do século XX, retratada por Charles Chaplin no filme

Tempos Modernos (1936), do que de um ou uma profissional intelectual. Ou seja, a

reprodução, junto à repetição de uma mesma concepção de direito permite a formação de

juristas que agem mecanicamente seguindo aqueles conceitos depositados em suas mentes,

que passam por um processo de aprendizagem castrador do pensamento e da liberdade

criativa. São profissionais encharcados de conceitos de técnicas, ás vezes até aptos a aplicá-las

repetidamente (e reproduzindo-as repetidamente), mas que não conhecem o sentido delas, a

relação com a sociedade, a sua origem, que não questionam sua existência, sua forma, seu

objetivo.

1.2.2 O apego à lei, o excesso de teoria e o distanciamento da realidade

A adoção do positivismo como compreensão dominante do direito também produz

como consequência a constituição de uma formação jurídica apartada da realidade. Isto

porque, diante da supremacia e do primado da lei, não há espaço para o reconhecimento de

outras formas de expressão do direito que surgem na vivência social; os olhos dos e das

juristas estão voltados para artigos, doutrinas e decisões judiciais, o que seria então o direito, e

não para os acontecimentos concretos. É o que afirma Machado (2009, p. 49):

(...) a questão do método, tal como adotado pelos cursos jurídicos em geral, é talvez

o fato preponderante pelo qual o ensino do direito no Brasil mergulhou

definitivamente num abstratismo estéril, capaz de formar bacharéis versados em

formalidades legais e inteiramente alheios aos problemas políticos. Vale dizer, na

medida em que vai prevalecendo, quase que de forma incontestável, a opção pelo

método lógico-formal, e pelo modelo didático compatível com essa espécie de

metodologia, o ensino do direito vai cada vez mais se distanciando de suas bases

históricas, para assumir um caráter nitidamente retórico, em que a formação do

jurista se resume num discurso sobre as formas ideais de comportamento humanos,

sem qualquer consideração pela realidade ou pelos aspectos valorativos ou

ideológicos desses comportamentos.

No Curso de Direito da UFRN, o problema do distanciamento da realidade é

observado a partir de dois vieses: o excesso de disciplinas teóricas técnicas em detrimento dos

módulos de prática jurídica, voltados à aplicabilidade desse instrumental profissionalizante; e

a forma de ensino dessas disciplinas teóricas e práticas, no sentido de discutir e assimilar o

conteúdo ao que acontece no mundo, às atualidades, novos direitos, problemas sociais,

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políticos, econômicos etc., como também quanto à função social que o Curso exerce na sua

localidade, isto é, no envolvimento com os problemas locais e no atendimento da população

naquilo que ela demanda, por exemplo.

No primeiro viés, podemos observar que a matriz curricular do Curso de Direito

apresenta uma carga horária discrepante de disciplinas teóricas em relação à exigida nos

módulos de prática jurídica, conforme a tabela abaixo:

PERÍODO CARGA HORÁRIA

DISCIPLINAS

PROFISSIONALIZANTES

CARGA HORÁRIA

MÓDULOS DE

PRÁTICA12

MANHÃ NOITE MANHÃ NOITE

1º 0h 0h 0h 0h

2º 210h 210h 0h 0h

3º 240h 180h 0h 0h

4º 300h 240h 0h 0h

5º 330h 270h 0h 0h

6º 330h 300h 0h 0h

7º 240h 270h 120h 0h

8º 210h 180h 60h 120h

9º 150h 150h 75h 60h

10º 0h 90h 75h 75h

11º X 120h x 75h

TOTAL 2.010h 2.010h 330h 330h

Tabela 02. Distribuição das Cargas horárias obrigatórias mínimas na matriz curricular dos turnos da manhã e da

noite. Fonte: produção própria a partir de dados do SIGAA.

Os dados acima revelam uma deficiência quantitativa e de distribuição. A carga

horária das disciplinas teóricas técnicas chega a ser o sêxtuplo do que é exigido para os

módulos práticos. Além disso, há uma concentração excessiva destes nos últimos períodos, o

que não possibilita uma formação concomitante entre teoria e prática. Assim opinou

estudantes participantes da oficina de avaliação:

Há predominância de aulas teóricas, necessitando de mais exercício da prática como,

por exemplo, estudos de caso. Teoria e prática se completam, mas no curso de

Direito predomina simplesmente a teoria. Os alunos afirmaram haver uma acentuada

deficiência em relação à oferta de disciplinas práticas. Consideram que algumas

disciplinas optativas deveriam ser obrigatórias. As disciplinas são mal distribuídas e

ofertadas em horários impraticáveis para os estudantes (2014, p. 7).

Quanto ao método de ensino, observo que há um distanciamento da realidade

12

Aqui não adotei o critério da Resolução nº 09/2004 da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de

Educação, que abrange o Estágio Curricular Supervisionado, Trabalho de Curso e Atividades Complementares,

mas o da carga horária mínima exigida de módulos de prática oferecidos pelo Curso, divididos em “prática

jurídica I, II, III e IV”. O motivo da escolha é delinear o estudo comparativo no âmbito dos componentes

curriculares com natureza de disciplina.

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concreta nos dois âmbitos, teórico e prático.

No âmbito teórico, as aulas são em sua maioria expositivas e apresentam um

conteúdo abstrato, no sentido de sua aplicabilidade prática, que comumente não guarda

qualquer relação com atualidades, com vidas concretas, com o que brota a cada dia na

dinâmica social. Os exemplos se resumem aos sujeitos Tício, Caio e Mévio, autores e réus

que litigam apenas em conflitos individuais. Isto é, homens, indicando nas entrelinhas a

predominância masculina, e que não têm cor, classe ou contexto social, omissão que visa

dissimular a desigualdade real (MACHADO, 2004, p. 123). Logo, tal abstração revela uma

intencionalidade, a de mascarar os conflitos sociais para assegurar sua suposta legitimidade.

(...) para conservar aquele mito da “neutralidade”, afirma que o Direito é apenas uma

técnica de organizar a força do poder; mas, desta maneira, deixa o poder sem

justificação, como que nu e pronto a ferrar todo o mundo, mas de calças arriadas,

com perigo para sua dignidade; portanto o mesmo Kelsen acrescenta que a força é

empregada “enquanto monopólio da comunidade” e para realizar “a paz social”.

Desta maneira, opta pela teoria política liberal, que equipara Estado e comunidade,

como se aquele representasse todo o povo (ocultando, deste modo, a dominação

classística e dos grupos associados a tais classes). Chama-se, então, de “paz social” a

ordem estabelecida (em proveito dos dominadores e tentando disfarçar a luta de

classes e grupos) (LYRA FILHO, 1982, p. 23)

De volta às compreensões de estudantes sobre o Curso, na oficina de avaliação,

um estudante relatou que há professores que chegam a adotar como referencial bibliográfico

para acompanhamento das aulas e para provas avaliativas, livros de doutrina ultrapassados,

anteriores à vigência de códigos legislativos. De acordo com o relatório, “o conteúdo é

desconectado da proposta pedagógica do curso e da realidade social” (2014, p. 6).

Assim, a desatualização não é apenas quanto à lei, mas para além dela. A maioria

das aulas não acompanha o que acontece na atualidade. Isso pode ser visto como

consequência do ensino dogmático positivista, que ensina o direito como algo isolado, criando

um mundo à parte, das normas, das súmulas, das técnicas, desvinculado da realidade sócio-

histórica (MACHADO, 2009).

No contexto do Curso de Direito, esse descompasso fica evidente na conduta de

docentes que repetem o mesmo roteiro de aulas e as mesmas avaliações a cada semestre, sem

qualquer atualização, o que, conforme registra o relatório, apresenta uma consequência

preocupante quanto à postura do corpo discente, que acaba limitando o estudo da disciplina

durante todo o semestre às provas avaliativas repetidas, que circulam já acompanhadas das

respostas: “Há disciplinas em que as provas são repetidas durante anos, sem reavaliação, ao

ponto de os alunos se acomodarem e passarem a estudar as provas anteriormente aplicadas,

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sem nenhuma alteração” (2014, p. 7).

Quer dizer, além de ser um ensino naturalmente desatualizado e

descontextualizado por se ater à da reprodução da norma, ainda há o agravante desse tipo de

conduta, que contribui ainda mais para a ausência de aprofundamento teórico nas aulas, como

também desestimula ainda mais o e a estudante a buscá-lo. Ocorre, por assim dizer, uma

dupla desatualização.

À exceção de temas polemizados e promovidos pela mídia, o ensino do direito

não acompanha o tempo presente e, ainda quando se presta a debater esses temas, o faz de

maneira superficial e acrítica (AGUIAR, 2004, p. 187), vez que o contato com a realidade é

pontual, que o ensino é ainda descontextualizado e restrito à técnica jurídica. Ou seja, diante

de um caso noticiado referente a um homicídio provocado por um adolescente, sobre o qual a

mídia está debatendo a redução da menoridade penal, por exemplo, há uma tendência a

reproduzir o senso comum a favor da redução, sem um debate crítico do sistema carcerário,

das garantias da criança e do adolescente, da ausência de políticas públicas para a juventude,

portanto, sem uma discussão politizada e aprofundada do tema, revelando uma opção política

pelo não envolvimento do ensino jurídico com essas questões, para garantir a “pureza” do

direito.

Esse discurso da neutralidade contribui para esse distanciamento do mundo real na

medida em que situa o direito como aquilo que está livre de influências políticas, culturais,

econômicas, religiosas. A instituição do “dever-ser” como mundo ideal que não se comunica

com o mundo real denota uma separação de duas realidades, uma jurídica e outra não-jurídica,

de modo que esta não interessa à ciência do direito, consoante o positivismo de Kelsen (1960,

p. 12). Desse modo, a formação jurídica proporcionada pelo ensino jurídico dogmático

permite conferir ao e à estudante de direito apenas habilidades técnicas sem uma visão

política do fenômeno jurídico (MACHADO, 2009, p. 125).

Esse plano abstrato que é o mundo jurídico, com seu caráter imperativo, acaba

gerando uma aceitação o que está posto enquanto norma. Esta, produzida por quem tem o

poder político e econômico, traz em seu conteúdo o reforço da dominação socioeconômica,

consoante explica Machado:

Convém lembrar que a norma, na sua gênese, envolve sempre opções valorativas e é

o resultado de uma correlação de forças políticas nos parlamentos. Logo, numa

sociedade capitalista, quando a teoria do direito opta pelo simples conhecimento

descritivo de normas, está optando, automaticamente, também pela reprodução

descritiva dos valores burgueses nela internalizados (2009, p. 114).

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Esses valores burgueses, impressos na norma, são, então, tidos como neutros. Daí

que, como consequência, aquilo que afronta esses valores passa a ser evitado ou combatido, e

rotulado como “o que tem lado”, como uma orientação política, que contraria a natureza

“neutra” do direito, mascarando o viés político e ideológico por trás dessa concepção.

Assim, o ensino jurídico que se diz neutro, busca se afastar das discussões

políticas, reproduzindo essa aversão nas mentes dos e das estudantes, que tendem a não se

envolver com questões dessa natureza, acreditando que assim não “possuem lado” no jogo das

forças políticas. Explica Machado:

(...) o questionamento das condicionantes socioeconômicas, políticas e culturais do

direito, sobretudo na perspectiva da vulgata kelseniana, não se inscreve no rol de

preocupações do jurista. Este deve permanecer imune àquelas influências como

condição de sua pretensa neutralidade e garantia de “pureza” do seu saber. Essa

formação cultural faz com que o jurista não perceba, de imediato, os interesses

econômicos que já estão internalizados, como expressão do interesse geral, na

estrutura normativa do direito positivo, e passa a operar este último de forma

mecânica e abstrata. Portanto, de forma absolutamente distanciada da realidade

sócio-histórica, como se sua atuação fosse politicamente neutra e indiferente a

valores (2009, p. 125).

Esse discurso de neutralidade é reproduzido no Curso de Direito da UFRN,

quando nas aulas pouco se fala sobre movimentos sociais e partidos políticos, por exemplo. A

título de ilustração, na disciplina de direitos reais, ao falar sobre função social da propriedade,

o professor não menciona a existência do maior movimento social do país que luta pela

reforma agrária, pela efetivação dessa função – o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra.

Da mesma forma, a disciplina de direitos humanos fundamentais não aborda a práxis de

movimentos e grupos voltados a esse tema, nem mesmo pautas relacionadas, como questões

relativas à defesa de minorias como mulheres, índios, negros, movimento LGBT etc..

Dois casos podem ilustrar de forma clara a intencionalidade do discurso de

neutralidade no Curso de Direito. O primeiro ocorreu numa plenária de departamento em que

o Programa Motyrum de Educação Popular em Direitos Humanos propôs o oferecimento de

dois módulos de prática jurídica, um sobre direito agrário e outro sobre direitos humanos,

duas professoras se manifestaram contra: uma comentou que o Curso estava se propondo a

defender “bandidos” e outra perguntou, indignada, se o Curso iria formar advogados para o

Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. A esta última, outro professor respondeu

ironicamente com uma pergunta: “já não formamos advogados para a Petrobrás?”.

O professor se referia ao grupo de pesquisa em direito da energia, vinculado e

financiado pelo Programa de Recursos Humanos em Direito do Petróleo, Gás Natural e

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Biocombustíveis da Agência Nacional do Petróleo (ANP). É o projeto mais estruturado do

Curso, no que tange à realização de atividades e ao financiamento, oferecendo atualmente

dezesseis disciplinas da matriz curricular do Curso exclusivamente para integrantes, além de

envolver três dos poucos professores em regime de dedicação exclusiva13

do Curso de tal

maneira que o único docente titular14

apenas ministra aulas na graduação correspondentes a

essas disciplinas, que já suprem boa parte da sua carga horária.

Quer dizer, há toda uma estrutura voltada à formação de profissionais para uma

área restrita do direito e direcionada à prestação de serviço para a Petrobrás, inclusive

envolvendo um número significativo – considerando o contexto do curso15

- de docentes com

dedicação exclusiva nas suas atividades, gerando um déficit de orientação no Curso de

Graduação. Porém, as professoras preferiram criticar a iniciativa que contemplava um estudo

prático do direito para servir como instrumento jurídico em favor de movimentos sociais que

atuam na defesa de direitos humanos, reagindo com espanto ao que não segue a lógica da

suposta neutralidade.

O outro caso envolve a reprodução desse discurso por uma parte do corpo discente

do Curso. Trata-se da reação de estudantes à composição da mesa da V Aula Magna do Curso

de Direito da UFRN16

, cujo tema era “Os direitos da comunidade LGBT” e os palestrantes

eram o Deputado Federal Jean Willys e o Professor de direito da UFG, José Humberto de

Góes Junior. Questionava-se a ausência de um palestrante que representasse o “outro lado”,

isto é, o posicionamento conservador que oprime a comunidade LGBT, e acusavam o Centro

Acadêmico Amaro Cavalcanti de não proporcionar um debate justo e neutro, com “os dois

lados” na mesa.

As condutas das professoras e dos e das estudantes que reivindicaram a presença

da ideia conflitante na mesa do evento refletem a ausência do debate sobre direitos humanos

no Curso, direitos que diariamente são violados, retratando a diversidade de problemas sociais

existentes no mundo, como a miséria, o trabalho escravo, a violência doméstica, o extermínio

da juventude negra, entre outros assuntos. Docentes e discentes que assumem a postura de

13

De acordo com o art. 159 do Regimento Interno da UFRN, corresponde ao regime de obrigação de 40

(quarenta) horas semanais de trabalho, em que há impedimento do exercício de outra atividade remunerada,

pública ou privada. Esse tipo de regime implica diretamente na orientação de atividades de pesquisa e extensão,

uma vez tendo como único compromisso as atividades universitárias. 14

Trata-se do nível mais elevado da carreira de magistério superior, de modo que além da exigência do título de

doutorado, exige o período de dez anos de experiência como docente. 15

Adiante apresento uma tabela indicando a quantidade de docentes no Curso de acordo com seu regime de

trabalho. 16

Evento organizado pelo Centro Acadêmico Amaro Cavalcanti que tradicionalmente inaugura o semestre de

aulas do curso.

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contestar a inserção desses temas no Curso parecem estar alheios à realidade e

despreocupados com que ocorre fora dos muros da universidade.

Refletem ainda uma intencionalidade de manter longe no espaço acadêmico esse

tipo de discussão. É como se essas iniciativas ameaçassem a “neutralidade” do ensino jurídico

e a “paz” nos ambientes da universidade, no sentido de interferir na passividade das aulas

teóricas, expositoras e reprodutoras da letra fria da norma.

Há docentes que demonstram ainda uma preocupação com o cumprimento do

programa da disciplina, algumas vezes extenso para o período de tempo, se mostrando avesso

aos debates para não atrapalhar o planejamento, ou seja, prezando pela quantidade e não pela

qualidade. O que também reflete a mesma intencionalidade, quando se enche as disciplinas de

conteúdos, cujo rol é impossível de ministrar em sua inteireza diante de outras atividades da

universidade como seminários, feiras de ciência e cultura, de feriados e da própria compressão

do tempo do semestre.

Todavia, importante ressaltar que essa postura de ignorar os debates que

envolvam atualidades na sala de aula toma também outra conotação possível no corpo

discente, em alguns casos preocupado estritamente com os conteúdos de provas de concurso

público, a lhe garantir um bom futuro com estabilidade econômica, consoante afirmou o

grupo de docentes que participou da oficina de avaliação: “Segundo os professores, os alunos,

na sua maioria, se preocupam com o Exame da Ordem (OAB) e com os concursos públicos”

(p.10).

Em linhas gerais, há uma intenção política de manter-se distante da realidade, que

é manter a “neutralidade” do direito, isto é, manter a estrutura de dominação socioeconômica.

Isto porque o descompasso com a realidade revela as fragilidades do positivismo frente a sua

incapacidade de regular todas as relações sociais, levanta questionamentos sobre sua

legitimidade, sobre concepções de justiça, ameaça, portanto, o status quo.

Sem a implicação com a realidade concreta, os cursos de direito também se

apresentam deficientes na discussão e no envolvimento com demandas locais, conforme

assinala Roberto A. R. de Aguiar (2004, p. 183):

(...) em regiões com graves problemas ambientais, o direito ambiental não consta no

currículo; nas que apontam problemas minerários, o direito da mineração é

ignorado; nas regiões de grave conflito rural, o direito agrário não é tocado. É como

se o direito existisse independentemente das sociedades que tem de normar.

Na realidade do Curso de Direito da UFRN existe um paradoxo quanto a essa

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questão. A matriz curricular pouco contempla em sua estrutura disciplinas teóricas ou práticas

que se voltem aos problemas locais. Dentre as teóricas estão previstas as disciplinas de Direito

urbanístico, Direito agrário, Direito ambiental e Direito da criança, do adolescente e do idoso,

todas optativas de acordo com o projeto político pedagógico (2010, p. 16). Porém, das quatro,

apenas as duas últimas têm sido oferecidas nos últimos cinco anos do Curso, período em que

fui estudante.

Aliás, a título de exemplo, é interessante observar a importância do Direito

urbanístico no contexto de produção do espaço urbano hoje em Natal. A expansão do mercado

imobiliário e da construção civil nos últimos anos tem provocado através da valorização de

áreas centrais da cidade, a saída de famílias pobres para lugares distantes dos centros urbanos

e de serviços públicos e comerciais, violando o direito à moradia e à cidade da população de

baixo nível socioeconômico, consoante aponta Silva (apud Moraes, Vivas e Sobrinha, 2008,

p. 39):

(...) a expansão habitacional ocorrida em Natal, notadamente a partir dos anos 1980,

seguiu um modelo de urbanização periférica, primordialmente através da segregação

da população mais pobre em áreas específicas da cidade. A construção de conjuntos

habitacionais por parte do Estado e a abertura de loteamentos, na maioria ilegais,

consolidaram extensas áreas residenciais caracterizadas por: pouca diferenciação de

rendas familiares (a maioria de baixa renda), com baixo padrão construtivo, bairros

com carência no provimento de serviços e infra-estrutura (como escolas,

saneamento, segurança, abastecimento de água, etc) (...).

Por outro lado, um programa de extensão do Curso, o Programa Motyrum, através

do núcleo urbano, tem realizado um trabalho de educação popular nas periferias de Natal,

sobre o qual detalho no capítulo III, provocando discussões no ambiente acadêmico através de

eventos que trazem a realidade desses locais e do próprio contexto da cidade, como foi o caso

do evento organizado em conjunto com o Centro Acadêmico Amaro Cavalcanti sobre o

direito à moradia, realizado em 28 de outubro de 2010 com a presença de um dos

coordenadores do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), Welington

Bernardo, na mesa de debates (BEZERRA; BONAVIDES, 2010, p. 6). E outro evento com o

tema “(I)mobilidade urbana: precariedade do transporte público”, realizado em 18 de outubro

de 2012, tendo como participantes da mesa uma arquiteta, um advogado, uma estudante de

serviço social e um morador do Conjunto Leningrado, que discutiram a temática sobre seus

diversos aspectos, inclusive de quem vivencia a precarização, no caso do morador.

Assim, além de trabalhar temas relacionados aos problemas sociais, o programa

tem buscado envolver os sujeitos e as sujeitas desses problemas nos debates acadêmicos,

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buscando aproximar o Curso a essas questões, como também garantir a legitimidade e a

coerência de quem vivencia essa realidade (BEZERRA; BONAVIDES, 2010, p. 6).

Quanto à prática jurídica, na oficina de autoavaliação estudantes relataram que a

prática jurídica é, na verdade, teórica. Os módulos que deveriam ensinar o uso prático acabam

apresentando o conteúdo teórico da matéria, seja por não ter um correspondente teórico na

matriz curricular, seja pela deficiência de aprendizagem nas disciplinas teóricas, ou mesmo

por opção de metodologia docente.

Os módulos de prática jurídica oferecidos na matriz curricular Curso de Direito da

UFRN são em sua maioria optativos, de livre escolha do e da estudante, mas vinculados a

uma carga horária mínima. Desse modo, a estrutura dos componentes práticos é organizada da

seguinte forma:

PRÁTICA I

MÓDULOS DE PRÁTICA TIPO CARGA

HORÁRIA

AUTOCOMPOSIÇÃO DE CONFLITOS:

NEGOCIAÇÃO, CONCILIAÇÃO E MEDIAÇÃO

OBRIGATÓRIA 30h

CARREIRAS JURÍDICAS OBRIGATÓRIA 30h

PEÇAS JURÍDICAS I (EXTRAJUDICIAIS) OBRIGATÓRIA 30h

PEÇAS JURÍDICAS II (JUDICIAIS) OBRIGATÓRIA 30h

PRÁTICA II GRUPO DE 4 MÓDULOS OPTATIVOS OBRIGATÓRIA 60h

PRÁTICA III ATENDIMENTOS - PRÁTICA JURÍDICA III OBRIGATÓRIA 30h

GRUPO DE 3 MÓDULOS OPTATIVOS OBRIGATÓRIA 45h

PRÁTICA IV ATENDIMENTOS – ANDAMENTOS

PROCESSUAIS

OBRIGATÓRIA 75h

Tabela 03: Estrutura da carga horária obrigatória mínima da Prática Jurídica. Fonte: dados do SIGAA

organizados em tabela própria.

Analisando a estrutura, observamos que há apenas dois módulos dedicados ao

atendimento da população – “atendimentos” e “andamentos processuais” – dentre o total de

treze módulos a serem cumpridos obrigatoriamente pelo e pela estudante, o que representa

aproximadamente 15% (quinze por cento) desse universo. Na lista de componentes práticos

optativos, portanto sem considerar os da tabela acima, a matriz curricular oferece atualmente

um total de trinta e quatro módulos, de modo que nenhum realiza atendimento. São práticas

voltadas às simulações, visitas a instituições jurídicas, análise de casos concretos, ou seja, que

não proporcionam o contato direto com a realidade concreta.

A prática jurídica do Curso de Direito acaba refletindo o problema do tecnicismo

e do distanciamento da realidade na medida em apresenta uma práxis voltada à aplicação

abstrata dos instrumentos técnicos, que desconhece os sujeitos e as sujeitas do “caso

concreto”, em geral processos e problemas passados (AGUIAR, 2004, p. 187), como descreve

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a ementa do módulo “Análise de casos concretos I”: “EMENTA: Análise de casos concretos

que já foram solucionados. Análise das teorias jurídicas que já foram utilizadas. Análise do

resultado obtido e dos resultados juridicamente possíveis”17

.

As simulações, por sua vez, também ocorrem entre quatro paredes e tem como

objeto os ritos do Poder Judiciário como audiências de varas judiciais ou tribunais. Os

módulos de “Práticas simuladas”, “Júri Simulado” e “Audiências simuladas” apresentam a

mesma ementa: “tem como objetivo possibilitar ao aluno o conhecimento prático das

estruturas do poder judiciário e da tramitação dos processos, bem como a prática do

consultivo jurídico”18

. O módulo “Organização e funcionamento do Poder Judiciário”, que

consiste em visitas aos fóruns e sessões, tem o mesmo objetivo da ementa descrita.

Dessa forma, esses tipos de prática reforçam a apatia do direito à vida social, sem

proporcionar ao e à estudante a possibilidade de aplicar a técnica jurídica no que é concreto,

no que respira, no que se move, no mundo mesmo; de se deparar com casos que exigem

criatividade e inovação; de no contato com os conflitos sociais, desenvolver a capacidade de

pensar o problema globalmente, nos aspectos sociais, econômicos e políticos e de, buscando

uma adequação, uma efetividade prática, pensar outras alternativas de solução e mediação. A

abstração reforçada pela prática jurídica incorre no risco da inaplicabilidade social dessas

técnicas jurídicas, afinal, a própria norma, quando confrontada com a realidade, se mostra

ineficaz.

Nos dois únicos módulos que permitem o contato com a população, os temas são

muito limitados, abrangendo direito de família e algumas ações de direito real, obrigações e

sucessório19

. Além disso, são definidos pelo Curso, sem uma consulta, sem um diagnóstico

quanto à necessidade do povo. Essa restrição parece ser uma opção do projeto político-

pedagógico do Curso, que na oportunidade de modificar essa situação, preferiu ampliar as

atividades do Estágio Supervisionado e fazer parcerias com outras instituições ao invés de

corrigir essa deficiência:

No que diz respeito ao Estágio Supervisionado propomos a ampliação das atividades

de Prática tendo em vista que atualmente se resume em atendimento que envolve

apenas Direito de Família, para isto ampliaremos os convênios com instituições

públicas e privadas que possam nos oferecer ambiente adequado e acompanhamento

com profissionais capacitados e comprometidos com a aprendizagem, a ética, a

moral e os bons costumes (2010, p. 8).

17

Dados retirados do SIGAA. 18

Idem. 19

Lista de atendimentos disponível em: <http://praticajuridicaufrn.no.comunidades.net/

index.php?pagina=1879996291>. Acesso em: 07 abril 2014.

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Esses módulos de prática ainda trabalham na perspectiva individualista do direito,

tendo em vista que não atendem coletivos ou movimentos sociais. O critério para o

atendimento, além da correspondência com a lista fixa de problemas jurídicos, é patrimonial,

de modo que o beneficiado ou a beneficiada deve declarar-se pobre para ter receber o

atendimento da Prática; como também possui caráter nitidamente patrimonial ao passo que

apenas trabalha com temas de direito civil na perspectiva tradicional.

Assim, é reproduzido o modelo convencional de escritório, voltado a casos

individuais e estabelecendo uma relação distante com as pessoas beneficiadas, sem conhecer

seu contexto de vida, social e econômico, sem se envolver com a sua história. Isso interfere,

de certa forma, no aprendizado e até mesmo na construção do senso de responsabilidade.

Nesse modelo, sem envolvimento com a causa, sem saber a importância do seu significado na

vida das pessoas, a dedicação pode não ser a que requer o caso, justamente pela ausência de

compreensão da realidade.

Além disso, os atendimentos permanecem entre as quatro paredes. Os serviços da

Prática são oferecidos dentro da universidade, que já possui difícil acesso tanto pela amplitude

do espaço que confunde quem não a conhece, quanto pela estrutura de transporte público em

torno do campus da UFRN. Agravando a acessibilidade, sobretudo de pessoas idosas e

deficientes, as salas de atendimento funcionam no primeiro andar de um prédio, cujo elevador

nunca funcionou, como aponta o relatório da oficina de autoavaliação: “problema de

acessibilidade, uma vez que o atendimento à população é realizado no 1º andar (Prédio sem

elevador)” (2014, p. 8).

No módulo de “Atendimentos”, a turma é dividida em grupos, que formam

microescritórios. Cada grupo deve comparecer uma vez por semana no prédio da Prática para

realizar atividade de atender a população e, a partir das informações coletadas, construir uma

petição inicial para dar início ao processo. Já na prática de “Andamentos processuais”, a

turma também é dividida em grupos, que devem comparecer duas vezes na semana para

acompanhar nos sistemas virtuais do Poder Judiciário e da Prática Jurídica os processos

iniciados no módulo de “atendimentos” e, esporadicamente, atender quem busca informações

sobre o seu caso.

O contato ainda é pouco expressivo, sobretudo porque dura apenas um semestre e,

no caso desse segundo módulo, é possível cursar toda a disciplina sem ter contato com os

sujeitos e as sujeitas dos casos em acompanhamento.

A opção de não ampliar as áreas de atendimento ou mesmo os módulos de prática

que permitam o contato com a população e o problema da acessibilidade indicam um

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desinteresse do Curso de Direito quanto à aproximação com a realidade. Retomando o

número da carga horária de módulos de prática jurídica, indica ainda que o ensino prático não

é prioridade, tampouco quando se coloca a se aproximar um pouco mais da sociedade, da

localidade em que está situado. Aliás, pelo o que aponta o projeto político-pedagógico, a

existência de disciplinas práticas se justifica mais para servir ao e à estudante na sua formação

jurídica do que conferir uma função social da técnica jurídica. Assim se refere à formação

prática: “O bacharel deve entender os elementos da prática jurídica, pois só assim poderá

exercer bem a profissão que escolheu” (2010, p. 13).

Em suma, se observa que o apego à lei é um fator do positivismo jurídico e do

ensino dogmático que não induz a inserção social do e da estudante. Não prepara profissionais

para lidar com os desafios que surgem diante da velocidade com que a sociedade de

transforma e se reinventa (MACHADO, 2009).

A valorização da teoria em detrimento da prática e o ensino que não assimila as

mudanças sociais e as realidades locais caracterizam uma educação jurídica restritamente

teórica e técnica, sem uma compreensão de casos consoante seu contexto social, econômico,

político. Como consequência, tem-se na sociedade profissionais com habilidades técnicas,

mas com dificuldade de aplicá-las ou ainda que consiga aplicá-las, com uma visão limitada da

questão analisada.

1.2.3 A ausência de diálogo e a relação verticalizada

O ensino jurídico é marcado fortemente pela educação bancária (FREIRE,

1987)20

. Trata-se de um modelo de ensino no qual seus integrantes, professores (educadores) e

estudantes (educandos), mantém uma relação hierárquica e sem diálogo.

A educação bancária consiste em um modo de educar que considera que o

professor é aquele que detém o conhecimento, enquanto o estudante suporta a ignorância. Nas

palavras de Paulo Freire (1987, p. 33), “na visão bancária da educação, o saber é uma doação

dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber”. Essa relação hierárquica, verticalizada,

na qual docentes mandam, pensam e prescrevem e estudantes obedecem passivamente,

memorizam o pensamento, reproduzem e cumprem as prescrições, não permite uma educação

crítica, mas uma educação que domestica, que acomoda.

20

Termo utilizado por Paulo Freire em Pedagogia do Oprimido como uma crítica ao modelo de ensino

tradicional, hierárquico e domesticador.

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Não é de estranhar, pois, que nesta visão “bancária” da educação, os homens sejam

vistos como seres da adaptação, do ajustamento. Quanto mais se exercitem os

educando no arquivamento dos depósitos que lhe são feitos, tanto menos

desenvolverão em si a consciência crítica de que resultaria a sua inserção no mundo,

como transformadores dele. Como sujeitos. (FREIRE, p. 34, 1987).

A verticalidade faz confundir autoridade e autoritarismo. O respeito ao professor

se confunde com obediência, com o silêncio e a aceitação do que é dito. O questionamento do

estudante é recebido como enfrentamento, desrespeito, portanto, um desvio de conduta.

Consoante explica Paulo Freire (1996), a autoridade é necessária no processo

dialógico de aprendizado, na medida em que confere ao ou à docente o dever de orientar

atividades, estabelecer tarefas, cobrar a produção individual e coletiva da turma. O exercício

da autoridade, de acordo com o autor, requer o bom senso nas escolhas e nas cobranças, bem

como respeito à autonomia, à dignidade e à identidade do educando ou da educanda.

O autoritarismo, por sua vez, nega a liberdade do educando e da educanda

(FREIRE, 1987), como também seu saber, sua história, sua condição de sujeito e sujeita no

mundo, sua capacidade de ensinar e de criar conhecimento, quando na fala de cima para

baixo, de quem assume uma postura de superioridade e de dono da verdade (FREIRE, 1996),

de quem não escuta o educando ou a educanda.

Na oficina de autoavaliação do Curso de Direito da UFRN, relatos de estudantes

expressaram a insatisfação com a postura antidialógica de alguns docentes, de não permitirem

o debate nem o questionamento durante as aulas, tendo mencionado a conduta de não dar a

fala a um estudante durante uma discussão e de limitar o seu tempo de fala. Nesses relatos,

também disseram que alguns professores, por serem juízes, se comportam como tal em sala,

conduzindo a aula como uma audiência judicial em que têm o poder de controlar os atos e as

palavras de quem está presente.

Interessante essa relação colocada pelo estudante, entre a conduta do ou da

docente e sua profissão fora das salas de aula. Quer dizer, até que ponto prejudica ou até que

ponto contribui a experiência docente em outras profissões do direito? Não tenho respostas

para essa pergunta, nem é minha intenção respondê-la. Porém, a reflexão é necessária para

discutir o ensino jurídico enquanto educação que forma profissionais de índole autoritária e

como isso ocorre.

Vale aqui transcrever as palavras de Machado (2009) sobre a formação jurídica

autoritária, que, no seu entender, guarda relação direta com o ensino estritamente técnico:

(...) a pedagogia técnica e normativista sempre favorece uma formação de cunho

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autoritário, quer porque o ensino normativo, naturalmente, alimenta nos estudantes

de direito, como diria Marilena Chauí, “o gosto ou a tendência pela autoridade”;

quer porque o tecnicismo supõe a completa ausência de crítica pelo desprezo que

dedica ao ensino das humanidades. Portanto, esse é um modelo que, no fundo,

atende plenamente às exigências de um mercado que se desenvolve dentro de uma

ordem mantida pela autoridade e não tolera nenhuma espécie de razão crítica, muito

menos aquelas críticas humanísticas que pudessem embaraçar a ação e os resultados

dos negócios estabelecidos desse mercado (p. 88).

A rigidez dessas posições, de mandante e mandado ou mandada, não possibilita o

diálogo, posto se pautar em ordens, em imposições, em estritas narrações do conhecimento.

As aulas consistem em monólogos, centradas na figura docente, cabendo ao corpo discente

ouvir, em silêncio, passivamente, “sem maiores questionamentos críticos” (MACHADO,

2009, p. 91). O conteúdo dessas aulas é determinado exclusivamente pelo professor ou pela

professora, sem a participação dos destinatários das suas exposições, portanto, sem coadunar

com as necessidades reais dos educandos e das educandas, suas dúvidas, seus interesses. Na

verdade, como seres “ignorantes”, em “nada” poderiam contribuir.

A verticalidade e a ausência de diálogo no ensino jurídico são marcantes no

processo de acomodação do e da estudante de direito, que incorporam o significado de

“depósito de conhecimento” segundo o tratamento da maioria do corpo docente. Tornam-se

passivos não apenas diante dessa relação hierárquica, obedecendo ao seu superior, mas

também à monotonia da aula, aos problemas de didática do professor e ao que fora por ele

dito em sala de aula.

Nas minhas vivências em salas de aula no Curso de Direito, observei que essa

assimilação enquanto “depósito de conhecimento” é evidenciada, sobretudo, em dois

momentos. Primeiramente, quando nas raras vezes em que o ou a docente se colocou a

discutir questões em conjunto com a turma, como o programa da disciplina, promover debates

em sala de aula ou instituir outras formas de avaliação voltadas à reflexão crítica, a reação de

boa parte das e dos estudantes foi negativa, mostrando preferência por docentes que não

envolvem a turma, mas que apenas prescrevem. Noutra ocasião, discentes que se colocam

durante as aulas problematizando opiniões de professores e professoras, que querem provocar

debates, são muitas vezes “malvistos”, por colegas e rotulados como quem “atrapalha” o

andamento da aula.

Dessa forma, o ensino jurídico, na medida em que assimila a educação bancária,

verticalizada, antidialógica e autoritária, contribui para a reprodução desse modelo de

formação jurídica na academia e nas instituições jurídicas e, portanto, para formação de

profissionais, sejam juiz ou juízas, professores ou professoras, advogados ou advogadas, e

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pessoas de outras profissões jurídicas que pensam e agem de acordo com essa mesma lógica

da educação bancária.

1.2.4 A ausência de interdisciplinariedade

Da pretensa completude do direito decorre seu isolamento também diante de

outras áreas de conhecimento, acadêmicas e populares. Isto é, na medida em que a concepção

positivista restringe o direito à norma para analisá-lo sem os condicionamentos sociais, o seu

ensino se dá de forma unidisciplinar, “como se o fenômeno jurídico pudesse ser abordado em

compartimentos estanques e separados da realidade social, econômica e cultural”

(MACHADO, 2009, p. 89).

No âmbito da matriz curricular do Curso de Direito da UFRN, conforme exposto

nas tabelas 01 e 02, o eixo fundamental é pouco expressivo frente ao número de disciplinas

profissionalizantes e está concentrado nos períodos iniciais, de modo que as reflexões e

questionamentos debatidos e expostos nas aulas dessas disciplinas se esvaem ao longo do

curso, cujo caráter é majoritariamente tecnicista, ou seja, proporciona uma formação que

valoriza muito mais conhecimento técnico do que o conhecimento humanista.

Nessa estrutura não é observada, portanto, uma comunicação entre esses tipos de

disciplinas. Assim, não basta fazer constar na matriz curricular, mas é necessário que o

conteúdo ministrado possa interagir com demais disciplinas, que o corpo docente responsável

apresente um perfil condizente com o que é previsto no projeto político-pedagógico, assim

como a bibliografia apresentada, que haja uma fiscalização adequada sobre o conteúdo, a

abordagem e a didática de docentes que ministram as disciplinas do eixo fundamental

(MACHADO, 2009, p. 101).

No contexto do Curso de Direito, a ausência dessa fiscalização configura outro

problema. Consoante o relato de um estudante durante a oficina, não há critérios na escolha

do perfil de docentes a ocuparem as disciplinas voltadas à formação humanista. Explicou que,

como são disciplinas vinculadas a outros departamentos, acaba sendo uma escolha aleatória

do setor responsável e o Curso aceita sem o cuidado de conhecer o perfil, a didática, de situar

o ou a docente na proposta do projeto político-pedagógico, enfim, sem a atenção que exige a

importância dessas disciplinas para a formação politizada e humanizada do e da estudante de

direito.

Isso apresenta consequências na formação do e da estudante, quando se deparam

com docentes alheios aos objetivos do Curso, ou que repetem o modelo de ensino reprodutor

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sem servir ao fim principal dessas disciplinas que é a formação crítica e politizada. Como diz

Lyra Filho (1980, p. 9), “de nada serve acrescentar o estudo da Sociologia Jurídica, da

Antropologia Jurídica ou da Economia ao currículo, se as disciplinas ‘dogmáticas’

permanecem dogmáticas”.

Na opinião do corpo docente, de acordo com o relatório da oficina, “os docentes

que ministram disciplinas do curso vinculadas a outros Departamentos, devem interagir, para

permitir uma discussão dos conteúdos, de modo a torná-los mais proveitosos” (2014, p. 10).

Assim, é possível concluir que no Curso de Direito as disciplinas voltadas à formação

humanista existem, mas ainda são pouco expressivas diante da carga horária das disciplinas

técnicas, além de não receberem a devida atenção do Curso quanto aos cuidados com o perfil,

a didática e com o conteúdo ministrado pelo ou pela docente responsável.

No que tange ao ensino das disciplinas profissionalizantes, pude constatar, assim

como o corpo docente, que há uma deficiência na interação com outras áreas de

conhecimento: “Recomendou-se, então, incluir as questões humanistas e sociais nas

disciplinas técnicas” (2014, p. 9).

A técnica jurídica é ensinada nas salas de aula de forma estritamente objetiva, de

modo que no exercício do raciocínio jurídico diante de questões-problemas não se agrega uma

visão multidisciplinar do mesmo, mas apenas a visão normativa, de memorizar que no caso do

não pagamento de alimentos pelo devedor, por exemplo, deve-se ajuizar uma peça chamada

“execução de alimentos”. Isso incorre numa visão demasiadamente limitada no enfrentamento

de problemas, sem considerar seus condicionamentos sociais, sua origem e as consequências

na vida de quem os vivencia.

Assim, o caso concreto pode se apresentar multifacetado, exigindo uma equipe

multidisciplinar para analisá-lo e conduzi-lo. Nem sempre o mais adequado será a via judicial,

o que não significa dizer que o e a jurista são dispensáveis. O que se pretende é que, ciente de

que o conhecimento jurídico não é suficiente para dar resposta ao problema, o e a profissional

do direito devem ter a sensibilidade de integrar outros saberes.

No decorrer do processo judicial, por exemplo, pode ocorrer a necessidade de

realizar perícias que chamam a participação de profissionais da área de saúde, da psicologia,

da engenharia, dentre outras, para uma compreensão totalizadora do caso concreto, apontando

que, em casos mais complexos, ou que fogem à especialidade de juristas, o conhecimento de

normas não seria por si suficiente à resolução do problema. Da mesma forma exige a

realidade fora do processo. Uma percepção total da realidade, a integrar os diversos saberes

em prol de soluções de conflitos, de efetivação de direitos.

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50

Para além da universidade ainda, não se pode ignorar os saberes populares. A

compreensão de realidade e do direito assimilada pelo povo é necessária à construção do

conhecimento jurídico e da formação profissional de juristas.

A participação do povo é essencial para uma visão crítica do direito e condizente

com os valores presentes na sociedade. Essas pessoas vivenciam as deficiências do direito ao

passo que são atingidas por elas, de modo que essas experiências devem servir ao

aprimoramento do funcionamento das instituições jurídicas (Ministério Público, Defensoria

Pública, Tribunais, varas, etc), buscando a efetividade do seu trabalho na sociedade. Dessa

forma, os saberes populares ajudam a construir um direito mais próximo da realidade, bem

como contribuem para uma formação de juristas implicados socialmente em prol de atender as

necessidades do povo.

1.2.5 O problema da didática

O aspecto pedagógico do ensino jurídico é um fator que agrava os demais

problemas do dogmatismo. O modelo de aulas, pautado estritamente na exposição do

professor, pouco incentiva a participação dos e das discentes, pois, como diz Freire, são

“depósitos vazios”:

Narração de conteúdos que, por isto mesmo, tendem a petrificar-se ou a fazer-se

algo quase morto, sejam valores ou dimensões concretas da realidade. Narração ou

dissertação que implica num sujeito – o narrador – e em objetos pacientes, ouvintes

– os educandos. (...) A narração, de que o educador é o sujeito, conduz os educandos

à memorização mecânica do conteúdo narrado. Mais ainda, a narração os transforma

em “vasilhas”, em recipientes a serem “enchidos” pelo educador. Quanto mais vá

“enchendo” os recipientes com seus “depósitos”, tanto melhor educador será.

Quanto mais se deixem docilmente “encher”, tanto melhores educandos serão.

(1987, p. 33).

Sem essa participação de estudantes, o conhecimento do professor ou da

professora é transmitido passivamente, sem questionamentos, sem permitir a construção do

conhecimento, mas a sua reprodução. De acordo com Machado:

O professor fala a partir de um lugar privilegiado, que lhe permite manter sob

controle a tônica e os rumos da discussão. O seu saber dogmático aparenta ser auto-

suficiente, encontrando suas soluções apenas nas estruturas normativas onde estão

selecionadas e previstas as variáveis do jurídico. Essa pedagogia atende aos valores

de segurança e certeza do saber científico do direito em todas as suas manifestações

concretas no espaço-tempo social, como era de se esperar no caso de um ensino

realmente superior (2009, p. 92).

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No Curso de Direito da UFRN, existem claros exemplos de práticas pedagógicas

ainda mais ultrapassadas que as aulas narrativas: um professor que ministra todas as suas

aulas ditando do início ao fim conceitos e palavras para estudantes copiarem e uma professora

cujo recurso mais inovador utilizado durante as aulas foi um retroprojetor, havendo um

aparelho de data show na sala.

As avaliações constituem outro aspecto da questão pedagógica. De acordo com

Paulo Freire (1996), na educação bancária os sistemas de avaliação de estudantes possuem um

caráter vertical, de discurso de cima para baixo. Quer dizer, as avaliações muitas vezes

exigem a memorização dos conceitos transmitidos em sala de aula, sem oportunizar ao ou à

estudante dizer o que pensa e analisar criticamente o conteúdo.

No Curso de Direito da UFRN, ao assimilar a concepção positivista, essa

reprodução ocorre, sobretudo, no âmbito da norma, ou seja, exige do e da discente a

memorização de artigos, incisos, súmulas e decisões judiciais sem reflexão crítica a respeito,

sem conexão com a realidade e sem aplicabilidade, até mesmo em hipóteses abstratas. Como

já exposto em tópico anterior, há professores que exigem datas de leis e tratados nas

avaliações.

Os exemplos já expostos neste capítulo também servem à questão da prática

pedagógica, como o que foi apontado por estudantes na oficina de avaliação do Curso, sobre

docentes que fazem questões objetivas para não perderem tempo em correções de questões

discursivas; a questão da falta de bom senso durante as correções, pautando justificativas de

notas em argumentos de autoridade, como dizer que “não revisa nota de prova a não ser que

seja erro na contagem” ou que “estar certo não é suficiente”; as provas discursivas que exigem

a reprodução de posicionamentos do professor ou da professora da disciplina (provas

subjetivas-objetivas).

Também cabe aqui resgatar o que foi apresentado anteriormente sobre a repetição

de provas e de roteiros de aula. Sem atualização e sem práticas educativas que despertem a

curiosidade no e na estudante, existe uma cultura disseminada entre o corpo discente de

utilizar o máximo de faltas permitidas pelo Regimento Interno da UFRN para não “perder

tempo” nessas aulas e, ainda, estudar apenas provas anteriores para realizar a avaliação,

quando muito, os roteiros de aula, que em alguns casos são os mesmos há cerca de dez anos.

Dessa forma, vem ocorrendo um processo de acomodação, uma vez que,

descrentes de que a didática do professor ou da professora possa melhorar, estudantes pensam

ser melhor garantir uma boa nota para serem aprovados na disciplina, do que estudar

verdadeiramente o conteúdo proposto e ter de frequentar as aulas.

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Na realidade do Curso de Direito, estuda-se mais por obrigação do que por prazer.

É a cultura do “estudar para passar”. As notas, então, não podem ser retrato fiel da qualidade

do ensino. Elas mascaram a superficialidade do conhecimento sobre a disciplina, pois: o

programa apresentado costuma prezar pela quantidade de assuntos em detrimento do seu

aprofundamento; os métodos de avaliação adotados se apresentam limitados para cumprir sua

finalidade, como provas que exigem do e da estudante apenas memorização ou a bibliografia

indicada pelo professor; e porque a preocupação com notas passa a ocupar prioridade na vida

de estudantes, direcionando seus estudos para uma ocasião pontual e não para sua formação

profissional.

O docente também é causa do problema pedagógico. Nas faculdades de direito, a

grande maioria do corpo docente exerce a função como secundária a uma atividade principal

– juízas e juízes, promotores e promotoras, advogados e advogadas. O problema não está na

dupla jornada, mas na falta de compromisso de uma parcela desses e dessas profissionais com

as atividades acadêmicas, como ocorre em alguns casos no Curso.

No Curso de Direito da UFRN, essa realidade pode ser reproduzida no quadro

abaixo:

Tabela 04: Quadro permanente e substituto de docentes do Departamento de Direito Público (DPU) e do

Departamento de Direito Privado (DPR), sem considerar docentes afastados. Fonte: Produção própria a partir de

dados do SIGAA

A tabela aponta a predominância de docentes em regime de 20h, representando

aproximadamente 56% (cinquenta e seis por cento) do total do quadro permanente, enquanto

o grupo de docentes em regime de 40h e de dedicação exclusiva, que exigem justamente

maior dedicação às atividades acadêmicas, representa cerca de 32% (trinta e dois por cento).

A carência de docentes com tempo integral para a universidade reflete nas deficiências que o

Curso de Direito enfrenta quanto à orientação em pesquisa e em projetos de extensão.

Isto porque aqueles e aquelas que possuem dupla jornada, mesmo quando

comprometidos com a docência, têm o tempo como obstáculo ao exercício de atividades

extraclasse, posto que até mesmo o preparo do plano de aula e de avaliações já constitui

dispêndio de tempo. A tabela abaixo apresenta um panorama das profissões desempenhadas

REGIME NÚMERO DE DOCENTES

20h 38

40h 6

Dedicação Exclusiva 16

Substituto 20h 2

Substituto 40h 5

TOTAL 67

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pelos e pelas docentes do Curso:

FUNÇÃO NÚMERO DEDOCENTES

Juiz ou juíza 14

Desembargador ou Desembargadora 5

Membro ou membra do Ministério Público (Promotor ou Promotora,

Procurador ou Procuradora).

8

Advogado ou advogada 10

Defensor ou defensora 1

Procurador ou Procuradora da Fazenda (Municipal, estadual e da

União)

5

Professor ou professora em outras instituições 5

Outras atividades (servidor, auditor fiscal, etc) 3

TOTAL 51

Tabela 05: Quadro de profissões exercidas por docentes permanentes e substitutos em regime de 20h e 40h em

2014.1, sem considerar docentes afastados. Fonte: Produção própria a partir de dados do SIGAA

De acordo com os dados apresentados nas duas tabelas acima, observamos que do

total de docentes permanentes e substitutos ativos no Curso de Direito, a maioria tem outra

profissão, que costuma exigir mais tempo que os compromissos acadêmicos, como

audiências, sessões de julgamento nos tribunais, congressos, entre outras.

A esse contexto da docência e seus reflexos nas práticas pedagógicas posso citar

algumas causas como a valorização da profissão, pouco remunerada, e a ausência de cursos de

reciclagem, sobretudo voltados à formação de educador.

Para Aguiar (2004, p. 194), o título de bacharel não deveria habilitar pessoas a

tornarem-se docentes, pois desta forma, na conjuntura das práticas pedagógicas do ensino

jurídico, ocorre a repetição dos problemas didáticos na medida em que esses bacharéis têm

como referência o modelo dogmático e bancário de educação jurídica.

Portanto, a deficiência nos métodos educativos interfere na qualidade do ensino

jurídico e do e da profissional que se forma nesse contexto, sobretudo no que tange ao

aprofundamento e à reflexão crítica dos conteúdos.

Diante de todo o exposto neste capítulo, é possível concluir que o ensino jurídico

do Curso de Direito da UFRN possui deficiências em vários aspectos, da estrutura da matriz

curricular ao quadro docente, da concepção de direito às práticas pedagógicas, que

prejudicam, sobretudo, a formação humanista do e da profissional do direito diante da

educação bancária e do ensino distanciado da realidade.

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CAPÍTULO II

TEORIA E PRÁTICA DO DIREITO CRÍTICO:

Traçando conceitos-base da práxis do Programa Motyrum

Neste capítulo, busco apresentar um esboço de uma proposta de educação jurídica,

que parte não apenas da concepção dialética do direito, mas da prática pedagógica, de uma

metodologia de ensino jurídico que se dê na prática, na ação e na reflexão, que desperte no

corpo discente uma preocupação com a função social do e da profissional do direito no

sentido de transformar a realidade, de buscar a realização da justiça social21

.

2.1 A visão dialética do direito

A partir das críticas à compreensão positivista do direito e das suas fragilidades

teóricas e práticas, se põe o presente trabalho a analisar uma outra concepção, que permita

uma visão totalizadora da realidade e do próprio direito, reconhecendo a diversidade de

sujeitos e sujeitas a se implicaram na sua construção. Que esteja afinada com a sociedade, nas

suas mudanças e nas suas necessidades. Que tenha um caráter transformador, buscando-se o

combate às injustiças e à dominação.

Trata-se de uma concepção dialética22

, que concebe o direito de forma ampla,

como um processo histórico constante que se realiza a partir das contradições da sociedade.

Neste sentido, nega-se a condição estática conferida pela norma, para afirmar sua

dinamicidade, enquanto produto de uma dialética social.

Explica Lyra Filho (1982) que o modo de produção estabelecido numa sociedade

é que vai definir sua divisão em classes. Assim, no modelo capitalista, a propriedade privada

opõe a classe que detém os meios de produção, a burguesia, e os que não têm, os

trabalhadores e as trabalhadoras, cuja venda da força de trabalho é ao mesmo tempo fonte de

21

Compreendo como justiça social aquilo que torna a sociedade mais igualitária, sem opressões raciais, de

gênero, sociais, econômicas e culturais. Não é um ideal, mas um princípio que orienta a as lutas sociais por

libertação das classes e grupos oprimidos, pela conquista de direitos e de espaços (LYRA FILHO, 1982). 22

A concepção dialética do direito é defendida por Roberto Lyra Filho (1982), numa perspectiva de que o direito

é algo em movimento, que se transforma de acordo com a dialética social. Quer dizer, uma visão ampla do

direito, que considera sua relação com classes e contradições sociais, a pluralidade jurídica, a política, o modelo

econômico, enfim, que o compreende não apenas a partir de uma teoria, mas a partir da contribuição de várias

outras. Por esta razão, por ser uma visão ampla, plural e em movimento, que apresento esta concepção de direito

como uma alternativa ao ensino jurídico, sem impor uma verdade, mas possibilitando conhecer a diversidade de

ideias.

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sobrevivência própria e fonte de acúmulo do outro, instaurando-se uma relação de dominação.

A compreensão do direito deve, portanto, partir da compreensão dessa sociedade, dividida em

classes e permeada de contradições. Ao contrário do positivismo, que busca convencer que o

direito é fruto do consenso, de um pacto social, omitindo, pois, esse conflito de classe, de

interesses opostos (LYRA FILHO, 1980, p. 33).

O direito, então, assimila as contradições existentes nessa luta de classes,

constituindo-se numa relação constante entre o Direito e o Antidireito – respectivamente, o

justo e o injusto (conjunto de normas que expressam meros interesses de classe para fins de

manutenção do poder, portanto, ilegítimas) (LYRA FILHO, 1982). Como um processo

histórico, não há conceitos estáticos, mas em constantes transformações, pois o que é direito

no presente, poderá não sê-lo no futuro.

A visão dialética permite enxergar várias expressões do direito. Não é apenas norma,

como defende o positivismo, não é apenas direito natural como querem os jusnaturalistas. O

direito abrange a diversidade de normas, bem como a resistência a elas; compreende outros

ordenamentos que não o estatal; assimila novos direitos que brotam das lutas sociais, na conquista

de espaços, na busca por dignidade, em suma, está sempre em construção.

(...) se persiste a cisão de grupos e classes em dominadores e dominados, a dialética

vem a criar, paralelamente à organização social, um processo de desorganização,

que interfere naquela, mostrando a ineficácia relativa e a ilegitimidade das normas

dominantes e propondo outras, efetivamente vividas, em setores mais ou menos

amplos da vida social. No plano político, assim se estabelece o que os cientistas

políticos denominam o “poder dual” (isto é, mais de um poder social na dialética de

conflito) (LYRA FILHO, 1982, p. 29).

É dizer que o direito também é expressão da luta de classes. Recorrendo à história,

percebe-se que a burguesia se contrapõe à dominação da monarquia instituindo uma nova

ordem social, econômica, cultural e jurídica que lhe confere poder e privilégios, a qual busca

manter continuamente. As classes então oprimidas pela monarquia continuam dominadas,

agora pela classe burguesa, portanto, permanecendo na luta pela sua libertação. Conforme

Lyra Filho (1982, p.53), “dentro do processo histórico, o aspecto jurídico representa a articulação

dos princípios básicos da Justiça Social atualizada, segundo padrões de reorganização da

liberdade que se desenvolvem nas lutas sociais do homem”.

Reconhecer a dialética e a historicidade do direito possibilita enxergá-lo como um

processo de libertação permanente (LYRA FILHO, 1982, p. 53), portanto, como algo que é

passível de transformação, bem como que é capaz de transformar.

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Direito é processo, dentro do processo histórico: não é uma coisa feita, perfeita e

acabada; é aquele vir-a-ser que se enriquece nos movimentos de libertação das

classes e grupos ascendentes e que definha nas explorações e opressões que o

contra-dizem, mas de cujas próprias contradições brotarão as novas conquistas.

(LYRA FILHO, 1982, p. 56).

Dessa forma, a concepção dialética compreende uma visão totalizadora, crítica e

contextualizada do direito, em permanente relação com a sociedade, de modo que não se limita a

exercer sobre ela o controle social através de sua regulação, mas se apresentando como

instrumento de transformação.

Resta então apresentar algumas faces da dialética do direito.

a) Visão Totalizadora

Trata-se de uma compreensão ampla do direito, no que tange às suas expressões,

isto é, para além da norma estatal, bem como quanto às suas relações com outras

condicionantes sociais, como política, economia, religião, entre outras.

A norma estatal é demasiado limitada para se constituir como expressão única do

direito. Diante do seu rigor formal, é estática, apresentando limites de ordem temporal,

cultural, econômico e social, conforme ensina Aguiar (2004, p. 184-185):

A norma em si, não é nada. Ela não é, mas se constitui na possibilidade de vir a ser.

Ela, apesar de suas características típicas, de sua logicidade e potencialidades

semânticas, nasce em dada sociedade ou cultura, norma determinados destinatários,

traduz valores e ideologias que vão cambiando no decorrer de suas sucessivas

interpretações, apresenta resultados na sociedade, é aceita ou não por esta e tem sua

vida condicionada pela continuidade do sistema político-econômico que a gerou.

O direito está para além da norma institucionalizada. Pois não se pode ignorar que

sua positivação decorre muitas vezes das exigências sociais, bem como sua modificação de

sentido, como assim realiza o juiz, e sua revogação, diante das transformações sociais (LYRA

FILHO, 1982).

A eficácia social da norma estatal também é limitada, sobretudo quando o Estado

é ausente na promoção de políticas públicas, sujeitando indivíduos a violações de direitos

humanos, os quais passam a não reconhecer a legitimidade do direito estatal, perante a

situação de abandono. Essa lacuna é substituída por outro ordenamento, que busca conferir o

bem-estar da comunidade então esquecida, legitimando uma forma de organização paralela.

Nas favelas, por exemplo, ambientes que retratam, sobretudo, a exclusão urbana, social e

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racial, o Estado é substituído por grupos de tráfico de drogas, exercendo um poder paralelo

que, por um lado, constitui a afirmação de sua existência então ignorada, e por outro, reproduz

aspectos do poder estatal, como a repressão violenta, por exemplo – ou seja, uma organização

que também possui suas contradições, a promoção de justiça e de injustiças.

Assim, o pluralismo jurídico compõe uma das faces do direito e reconhecê-lo

enquanto tal é ampliar os horizontes do universo jurídico, como também situá-lo no meio

social, onde se apresenta passível das mais variadas influências. Ora, essa pluralidade decorre

senão de uma estrutura socioeconômica excludente, insurgindo-se contra a ordem que a

legitima como uma forma de libertação (SANTOS apud LYRA FILHO, 1982, p. 49).

Portanto, a visão totalizadora permite enxergar as contradições e a diversidade de

sujeitos e sujeitas capazes de construir o direito em uma dialética, possibilitando uma visão

crítica da realidade e do direito e se afastando da percepção reprodutora de conceitos, sem

reflexões e restrita à norma.

b) Crítico

A visão crítica do direito possibilita a desconstrução dos dogmas positivistas

como a aparência de neutralidade e de legitimidade, a percepção do caráter reprodutor e

mantenedor da dominação e, por outro lado, a visualizá-lo como instrumento de

transformação.

Perceber como funciona a sociedade e como o direito se insere neste contexto faz

surgir questionamentos e reflexões sobre ele, distanciando-se da acomodada reprodução para

construir um pensamento crítico. Conforme afirma Machado (2009, p. 53):

O pensamento crítico supõe naturalmente, um saber antidogmático em concreto

diálogo com as determinantes sociais do fenômeno jurídico. Portanto, esse

pensamento parte da constatação de que o idealismo pelo conhecimento lógico-

formal e meramente descritivo de normas e instituições, tal como positivadas pelo

legislador racional, jamais responderá às necessidades concretas dos sujeitos sociais.

O questionamento dos dogmas conduz à percepção de que a neutralidade é um

mito, que a legitimidade é forjada e que a segurança jurídica é a manutenção da burguesia.

Assim, perguntando-se para quem serve a norma, é despertada a consciência sobre sua

finalidade mantenedora da dominação econômica, cultural, social (LYRA FILHO, 1982, p. 3).

Ainda que se verifiquem no ordenamento jurídico normas como a Lei Maria da Penha de

combate à violência doméstica, o artigo constitucional que prevê a função social da

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propriedade e leis de proteção e garantias da classe trabalhadora, “o sistema de controle apenas

‘absorve’ a quota de mudança que não lhe altere a organização posta e imposta” (LYRA FILHO,

1982, p. 44). Isto é, ainda que signifiquem uma conquista na disputa por normas favoráveis

aos grupos e às classes oprimidos, não são suficientes à mudança estrutural da sociedade.

A imposição da norma como única expressão do direito e de sua obediência, a sua

abstração que distancia do contexto social e os dogmas inquestionáveis são obstáculos ao

pensamento crítico, uma vez que exigem a acomodação e a reprodução. Portanto, é a

percepção dialética, totalizadora do direito, que permite o desenvolvimento de reflexões

(LYRA FILHO, 1980).

É preciso pensar criticamente o direito para se libertar das amarras dogmáticas e

então enxergar o seu potencial transformador. É o pensar crítico que ajuda a compreender o

inacabamento do direito, suas lacunas, suas deficiências a cada momento histórico. É o que

move em direção ao processo de libertação.

c) Transformador

A reflexão sobre o direito positivista faz perceber que o direito pode ser

instrumento de dominação, a partir da padronização de uma concepção que nega as demais,

de uma teoria que se legitima a partir de dogmas, enfim, por meio de um sistema voltado

atender interesses classísticos apenas.

Por outro lado, permite descobrir o potencial transformador a partir de sua própria

transformação. Isto é, a partir de uma teoria crítica, enxergando o direito na dialética social,

assumir o compromisso de lutar pela libertação das classes e de grupos oprimidos.

Partindo da premissa de que o direito é um processo constante de libertação, este

não deve servir a quem domina, que tolhe a liberdade do outro, mas a quem a vocação de ser

mais23

é negada, aos oprimidos, desumanizados pela violência das opressões. Aliás, segundo

Paulo Freire, a libertação vem dos espoliados em resposta à dominação e apenas a partir deles

esse processo é possível:

A violência dos opressores que os faz também desumanizados, não instaura uma

outra vocação – a do ser menos. Como distorção do ser mais, o ser menos leva os

oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta tem sentido

23

Em poucas palavras, Ser mais é uma categoria teórica de Paulo Freire que traduz a vocação dos seres humanos

de serem sujeitos de sua própria humanização, de sua própria história, enquanto seres inacabados. É a vocação

de transformar-se e de transformar em contato com o mundo.

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quando os oprimidos, ao buscar recuperar a sua humanidade, que é uma forma de

criá-la, não se sentem idealistamente opressores, nem se tornam, de fato, opressores

dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos, e ai está a grande

tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si e aos opressores. Estes,

que oprimem, exploram e violentam, em razão de seu poder, não podem ter, neste

poder, a força de libertação dos oprimidos nem de si mesmos (FREIRE, 1987, p. 16-

17).

Ciente de que o direito transformador serve aos oprimidos, na sua libertação,

necessária a luta por espaço para concretizar mudanças. Ou seja, pulverizar essa ideia nas

faculdades de direito, nas instituições judiciárias, nas pesquisas jurídicas, buscando-se

institucionalizar o pensamento progressista, a favor dos interesses das classes populares, para

dar-lhe hegemonia e suporte no combate ao direito que reproduz a dominação.

d) Contextualizado

Compreender o direito como produto de uma sociedade, seus valores,

contradições, separações, conduz observá-lo dentro do contexto social, sempre associado à

realidade em constante construção.

O direito dialoga com a sociedade, a política, a economia, a cultura. E é nesse

diálogo permanente que vai se constituindo, afinado com as demandas sociais, com as

mudanças dos valores da sociedade, com a conjuntura política. É autoritário nas ditaduras, é

democrático nas democracias. É, sendo, no decorrer da história (LYRA FILHO, 1982).

Perceber as contradições da sociedade e do próprio direito constitui numa visão

ampla, capaz de reconhecer o direito além da norma, reconhecer o direito de resistência a esta,

os direitos por ela não assimilados, os sentidos coadunados ao presente.

Esse direito não corre o risco da estagnação, de tornar-se ultrapassado, como a

norma. É capaz de responder às inovações que surgem e de discuti-las, pois é um sistema

aberto que permite ser moldado quando necessário.

2.2 Outra proposta de formação jurídica

A compreensão do direito como um processo dialético e como um instrumento

transformador passa, necessariamente, pelo ensino jurídico, pela formação de profissionais

sensíveis à realidade, às questões sociais e que busquem aplicar seu saber em prol de

mudanças. Da mesma forma, o rompimento com o ensino tecnicista e dogmático deve partir

desta concepção outra do direito, que reconhece a pluralidade, a manifestação de grupos

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marginalizados social, econômica e juridicamente.

A compreensão dialética amplia o foco do direito, conforme afirma Lyra Filho.

Não parte de dogmas, mas da observação alinhada ao que ocorre na sociedade, assimilando

diversas formas de construção e expressão do direito.

(...) como notava o líder marxista italiano, Gramsci, a visão dialética precisa alargar

o foco do Direito, abrangendo as pressões coletivas (e até, como veremos, as normas

não-estatais de classe e grupos espoliados e oprimidos) que emergem na sociedade

civil (nas instituições não ligadas ao Estado) e adotam posições vanguardeiras, como

determinados sindicatos, partidos, setores de igrejas, associações profissionais e

culturais e outros veículos de engajamento progressista (LYRA FILHO, 1982, p. 4).

O ensino, por sua vez, é um mecanismo de disseminação da concepção de direito,

é quem orienta a formação de profissionais. Daí a relação íntima entre concepção de direito e

ensino jurídico. Nas palavras de Lyra Filho (1980, p. 6), “não se pode ensinar bem o direito

errado; e o direito, que se entende mal, determina, com essa distorção, os defeitos da

pedagogia”.

Assim, uma alternativa à reforma do ensino jurídico é a educação libertadora,

dialógica, que desperta a reflexão crítica, que se faz em contato com o mundo concreto, na

prática, que busca a construção interdisciplinar e participativa do conhecimento, de teorias

associadas às práticas.

Quanto mais se problematizam os educandos, como seres no mundo e com o mundo,

tanto mais se sentirão desafiados. Tão mais desafiados, quanto mais obrigados a

responder ao desafio. Desafiados, compreendem o desafio na própria ação de captá-

lo. Mas, precisamente porque captam o desafio como um problema em suas

conexões com outros, num plano de totalidade e não como algo petrificado, a

compreensão resultante tende a tornar-se crescentemente crítica, por isto, cada vez

mais desalienada (FREIRE, 1987, p. 40).

Conforme defende Machado (2004, p. 50), é necessária uma reforma do ensino

jurídico, desde sua estrutura metodológica à estrutura curricular, buscando-se uma relação de

afinidade entre direito e sociedade:

A recuperação da dimensão axiológica do direito e de sua ciência, bem como do

conteúdo social da função do jurista, numa sociedade industrial de transformações

rápidas e desenvolvimento sustentado, é tarefa que passa pela revisão de alguns

paradigmas e, necessariamente, pela maneira como se concebe o direito e como se

transmite o saber jurídico. Portanto, está fora de dúvida que essa tarefa supõe uma

profunda reforma do ensino jurídico, com a consequente revisão dos projetos

pedagógicos e dos conteúdos programáticos das disciplinas que compõem as grades

curriculares nas escolas de direito, bem como a adoção de uma didática libertária, de

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fisionomia dialógica, capaz de ampliar o foco do direito na direção das

manifestações jurígenas até então consideradas à margem do conhecimento

científico, para além, portanto, do universo formal da dogmática jurídica.

Neste tópico irei me restringir, todavia, à perspectiva metodológica, que envolve o

processo educativo do direito, no diálogo entre discente e docente, entre teoria e prática, entre

a diversidade de saberes.

A responsabilidade do ensino jurídico na mudança da concepção do direito, das

estruturas jurídicas e da própria sociedade está na formação de profissionais, que interpretam

e aplicam o direito.

A conotação tradicionalmente elitista do direito por si só distancia os profissionais

das classes desprovidas de recursos e de orientação acerca dos próprios direitos. Enquanto um

curso acessado majoritariamente por estudantes de classes econômicas favorecidas, é nestas

que circulam os e as profissionais, de modo que é pouco ou nenhum o seu contato com as

classes populares. Como consequência, esses e essas profissionais pouco conhecem da

realidade e das necessidades do povo e este, pouco acessa o judiciário, seja por não ter

recursos, por não conhecer seus direitos ou por não conhecer profissionais da área a lhes

fornecer ao menos uma orientação (MACHADO, 2004, p. 217).

Soma-se a isto a questão da sensibilidade, consoante destaca Machado (2004, p.

217):

Vale salientar ainda que a situação socioeconômica das pessoas de baixa renda, com

baixo nível cultural, ainda avulta as dificuldades que encontram na defesa de seus

direitos, especialmente pelos virtuais problemas encontrados no relacionamento com

autoridades em que o juiz se apresenta como alguém inalcançável, o promotor

muitas vezes parece-lhe ainda com o friso do algoz acusador, o advogado surge

como profissional de altos custos e, por fim, as repartições administrativas,

encarregadas da expedição de documentos necessários às demandas (certidões,

laudos, alvarás, etc), nem sempre dispensam a atenção e a solicitude adequadas aos

interesses das pessoas humildes que ali comparecem.

A linguagem do direito, através de seus ritos, suas vestimentas, vocabulário seleto

e a arquitetura imponente de suas instituições também contribuem para a restrição do acesso

das classes populares à justiça. De acordo com o comentário de Campilongo, sobre a figura do

advogado:

Da indumentária ao vocabulário, do local de atendimento à postura na relação

dialógica, do manuseio dos códigos ao diploma pendurado na parede, tudo

cria um ambiente desconhecido e enigmático para a clientela. A gravata, o

palavreado difícil, a sala acarpetada, o problema constrangedor (a separação, o

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despejo, o crime), os livros e a autoridade técnica do bacharel determinam o lugar de

quem fala e de quem ouve. Ao cliente cabe expor seu problema ao jurista, assinar a

procuração, se for o caso, e retornar para casa. A partir daí, quem age e controla a

situação é o advogado. Os tecnicismos dos procedimentos judiciais, aliados à

demora dos processos, tornam o cliente anestesiado diante da lide (CAMPILONGO,

p. 4).

Essa linguagem, por sua vez, pode e deve ser modificada para possibilitar a

democratização do acesso, para que o conjunto de imagens não afaste, não amedronte, não

intimide, não cause constrangimentos a essas pessoas. Esta também é uma tarefa do ensino

jurídico, o trabalho com a linguagem acessível e comunicável.

O desenvolvimento de habilidades que preparem profissionais do direito para o

contato com a realidade, com as diversas classes e grupos sociais, compreendendo suas

condições e suas necessidades, é essencial ao exercício da função social do e da jurista. Trata-

se de ter a sensibilidade de entender que nem sempre a medida judicial será necessária ou a

mais adequada; de saber utilizar o conhecimento jurídico em diálogo com outros saberes

acadêmicos e populares; de se colocar ao lado e não acima dos sujeitos e das sujeitas, numa

relação horizontal, portanto; de assumir uma postura política e crítica na apreensão da

realidade; de ter audácia e criatividade para inovar nas práticas jurídicas, sem temer o novo.

Para Machado, a função social do e da profissional do direito está no trabalho pela

efetivação do acesso à justiça e dos direitos fundamentais:

Ao jurista, seja ele advogado, juiz ou membro do Ministério Público, consciente do

seu papel na construção da democracia, atuando em meio às relações de poder que

governam a sociedade capitalista, parece não haver alternativa senão funcionar como

canal de acesso à justiça para as camadas populares na defesa de direitos

fundamentais, assumindo assim, como uma de suas funções institucionais, a defesa

jurídico-política dos direitos humanos ou sociais formalmente assegurados pela nova

ordem constitucional (MACHADO, 2004, p. 220).

Os direitos humanos constituem, aliás, um elemento fundamental a ser integrado

ao ensino jurídico na formação de profissionais engajados na realização da justiça social. Pois,

como se mostrará adiante, carregam uma conotação emancipadora e libertária das classes e

grupos oprimidos, levando à sensibilização de profissionais e estudantes, ao

comprometimento com as lutas sociais, de onde emanam as vozes que exigem novas

necessidades.

No intuito de realizar mudanças no ensino jurídico diante de sua crise, Machado

observa o surgimento de uma reação organizada de juristas que compartilham uma visão

crítica do direito, constituindo “movimentos prático-teóricos e jurídico-políticos de

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contestação da legalidade instituída, portanto, da legalidade burguesa” (2004, p. 51). Tratam-

se de práticas contra-hegemônicas que, numa perspectiva crítica e questionadora, buscam

modificar a estrutura tradicional do ensino jurídico e da ciência jurídica, paralelamente a esta

própria estrutura.

Dentre essas práticas, situa-se o projeto Direito achado na rua, da Universidade

de Brasília, que surge como resposta à

situação de advogados de assessorias jurídicas populares, de comissões de direitos

humanos e de movimentos sociais e suas organizações urbanas e rurais, no sentido

de que a Universidade desenvolvesse um programa capaz de atender às expectativas

de uma reflexão acerca da práxis social constituída na sua experiência comum de

luta por justiça e direitos (SOUSA JUNIOR (org), 1987, p. 5).

Dessa forma, conforme assinala José Geraldo de Souza Júnior, o projeto permite

“conjugar a dupla face da prática jurídica na sua dimensão de orientação política para o

exercício profissional e de formação acadêmica preparatória para esse exercício” (p. 7).

A assessoria jurídica popular, neste contexto, permite uma prática politizada do

direito, utilizando-o enquanto instrumento emancipatório na concretização dos direitos

humanos. Isto porque assimila as práticas pedagógicas da educação popular – o diálogo, a

interdisciplinaridade e a horizontalidade – e realiza uma formação em direitos humanos, tendo

em vista se voltar para a sua realização. É o que desenvolvo a seguir.

2.2.1 Educação popular

O conceito de educação popular aqui adotado parte da concepção desenvolvida

por José Francisco de Melo Neto em diálogo com o que Paulo Freire denomina de educação

para a liberdade.

Para Melo Neto (2004, p. 127) a educação se realiza a partir da capacidade

humana de aprender, o que chama de fato pedagógico. A forma como ele ocorre é

determinada pela técnica adotada no processo educativo, a teoria pedagógica, orientada por

sua vez, pelas políticas de educação. Estas duas últimas categorias apresentadas pelo autor

incorrem numa opção política – silenciar o povo ou despertar sua consciência no mundo, sua

capacidade transformadora. São o meio e o fim, respectivamente.

Assim, a finalidade da prática educativa deve dar sentido à sua metodologia. Pois

uma política educacional que se diz popular, quando se utiliza de técnicas desligadas do seu

objetivo, pode levar à sua domesticação ao invés de sua libertação.

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A educação popular, portanto, está orientada para o povo. Buscando compreender

o sentido do termo “popular”, Melo Neto (2004, p. 154) analisa a perspectiva de Karl Marx

quanto à necessidade da organização da classe trabalhadora para conquistar o poder político, o

que é assimilado pelos movimentos de esquerda na história recente do Brasil:

Outro movimento marcante na história política da esquerda no Brasil deu-se com a

criação do Partido dos Trabalhadores. Este formulou uma política como “estratégica

democrática e popular, devendo conduzir um programa com as mesmas

características”, ou seja, o socialismo petista. Trata-se de uma perspectiva que

concebe o popular como ampliação das forças possíveis de mudanças para além da

classe trabalhadora, na construção da democracia. “Na verdade, a democracia

interessa, sobretudo, aos trabalhadores e às massas populares” (Resoluções, 1998:

429). O Programa democrático e popular, projeto de sociedade para o país, só se

concretizará através de uma perspectiva de ampliação (aliança) e resistência desses

atores sociais que vislumbram as transformações sociais. Nesse sentido, o popular

tem um nítido componente classista, abrangendo as classes trabalhadoras, os

camponeses, os setores médios da sociedade, além de setores da pequena burguesia

(MELO NETO, 2004, p. 157). (grifei)

Em suma, o que confere a qualidade de popular, segundo Melo Neto, são

elementos que traduzem sua essência, aqueles que sempre estiveram presentes nas suas

variadas concepções ao longo do tempo – a origem no trabalho do povo, a ação comprometida

com o povo, a clareza do papel político de lutar contra as opressões e de defender os

interesses do povo, a metodologia pautada no diálogo e no desenvolvimento da cidadania

crítica, o trabalho guiado por princípios voltados à maioria e pelas utopias de realizar sonhos,

nas buscas incessantes pelas superações.

A educação popular é, portanto, uma ação política, que se faz para o povo e com o

povo, que é sujeito, que é protagonista no processo educativo emancipatório e libertador.

Não basta, pois, alfabetizar, profissionalizar. Como diz Paulo Freire (1991):

Não basta saber ler que Eva viu a uva. É preciso compreender qual a posição que

Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra

com esse trabalho.

Na concepção freireana, a educação popular assume o compromisso humanista de

servir ao oprimido, à sua libertação. E essa opção tem uma razão de ser.

Conforme explica Freire (1987), o opressor nega a liberdade e a condição de

sujeito histórico do oprimido, retirando-lhe a vocação do ser-mais, desumanizando e

silenciando a sua voz. Autoritário, não permite questionamentos, impõe, prende, cala.

Por outro lado, quando o oprimido e a oprimida passam a problematizar a sua

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existência no mundo e com o mundo, percebem-se sujeito e sujeita de sua própria história e

buscam a sua humanização, a sua vocação transformadora. Conquistam sua liberdade e sua

autonomia e liberta o opressor, que também restaura sua vocação de ser mais, pois deixa de

oprimir, de negar a vocação do outro e da outra.

Por isto é que esta educação, em que educadores e educandos se fazem sujeitos do

seu processo, superando o intelectualismo alienante, superando o autoritarismo do

educador “bancário”, supera também a falsa consciência do mundo. O mundo agora

já não é algo que se fala com falsas palavras, mas o mediatizador dos sujeitos da

educação, a incidência da ação transformadora dos homens, de que resulte a sua

transformação. Esta é a razão por que a concepção problematizadora da educação

não pode servir ao opressor. Nenhuma “ordem” suportaria que os oprimidos todos

passassem a dizer: “Por quê?” (FREIRE, 1987, p. 43).

A problematização, para Freire, apenas se torna possível por meio do diálogo, pois

é neste que a dicotomia entre docente e discente se desfaz para dar lugar ao educador-

educando e ao educando-educador. Ambos são sujeitos do processo de conhecer, de aprender,

de desvelar o mundo.

A superação dessa dicotomia humaniza e liberta sujeitos e sujeitas para pensar,

falar e agir. Aqui não mais existe o depósito de conhecimentos, a verticalidade da relação

entre quem ensina e quem é ensinado, mas a comunhão e a horizontalidade de saberes, o

inacabamento que exige o ensinar-aprender simultâneo e constante.

Dessa forma, delineiam-se os elementos que orientam essa pesquisa no que tange

aos seus impactos na formação jurídica de estudantes que tiveram contato com o povo através

da prática da educação popular.

a) O diálogo

O diálogo permite a problematização ao passo que torna seus sujeitos e sujeitas

livres para agir e refletir, para pensar criticamente sobre si mesmo e sobre o mundo a partir da

relação com este; que desperta neles e nelas sua vocação de conduzir a própria história, de

tomar decisões, de intervir no mundo para transformá-lo. Neste sentido, “não é transferir

conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção”

(FREIRE, 1996 p. 47).

A relação construída de forma dialógica permite o exercício de escutar, isto é, de

repeitar a fala e as diferenças do outro, de ouvir em silêncio e não silenciar, de falar com. Não

se trata de reprimir o direito de discordar, pelo contrário, se trata de preparar melhor a sua fala

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a partir da fala do outro, construindo argumentos e não imposições, respeitando as opiniões

contrárias, no tom democrático e não autoritário.

O silêncio é necessário na postura de quem escuta. Portanto, no diálogo não há

silenciado, mas o silencioso. A voz do educador e da educadora não cala a voz do educando e

da educanda.

Trata-se de um exercício que requer humildade, tolerância (capacidade de aceitar

o diferente), abertura ao novo e respeito às diferenças, pois, como afirma Paulo Freire:

Se discrimino o menino ou a menina pobre, a menina ou o menino negro, o menino

índio, a menina rica; se discrimino a mulher, a camponesa, a operária, não posso

evidentemente escutá-las e se não as escuto, não posso falar com eles, mas a eles, de

cima para baixo. Sobretudo, me proíbo de entendê-los. Se me sinto superior ao

diferente, não importa quem seja, recuso-me escutá-lo ou escutá-la. O diferente não é

o outro a merecer respeito é um isto ou aquilo, destrável ou desprezível (FREIRE,

1996, p. 120-121).

Sem humildade, forma-se uma hierarquia, uma “falsa superioridade de uma

pessoa sobre a outra”, que afronta a “vocação humana de ser mais” (FREIRE, 1996, p. 121).

Freire coloca ainda a necessidade de respeitar a leitura do mundo do educando e

da educanda, fruto de sua experiência de vida, de sua história, das condicionantes culturais e

sociais a que foi exposto, reconhecendo, assim a “historicidade do saber”.

É a maneira correta que tem o educador de, com o educando e não sobre ele, tentar a

superação de uma maneira mais ingênua por outra mais crítica de inteligir o mundo.

Respeitar a leitura de mundo do educando significa tomá-la como ponto de partida

para a compreensão do papel da curiosidade, de modo geral, e da humana, de modo

especial, como um dos impulsos fundantes da produção de conhecimento. (FREIRE,

1996, p. 123).

Ao educador ou à educadora cabe a tarefa de através da sua palavra, incitar o

educando e a educanda a proferir a própria palavra, a produzir a própria inteligência, bem

como a superar as suas dificuldades. Não é transferindo a sua visão de mundo, mas

reconhecendo o educando e a educanda como sujeitos no processo educativo, estimulando-os

a construir a sua própria opinião.

Isto se faz, portanto, recusando-se a oferecer aulas meramente narrativas, que não

integram os e as discentes, pelo contrário, disseminam o tédio, a monotonia e o desinteresse; a

se comportar de forma arrogante e autoritária; e a realizar avaliações que exijam a reprodução

do próprio pensamento sem possibilitar ao outro o exercício do pensar, do refletir, do recriar.

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Se, na verdade, o sonho que nos anima é democrático e solidário, não é falando aos

outros, de cima para baixo, sobretudo como se fôssemos portadores da verdade, a

ser transmitida aos demais, que aprendemos a escutar, mas é escutando que

aprendemos a falar com eles. Somente quem escuta paciente e criticamente o outro,

fala com ele, mesmo que, em certas condições precise falar a ele. O que jamais faz

quem aprende a escutar para poder falar com é falar impositivamente. Até quando,

necessariamente, fala contra posições ou concepções do outro, fala com ele como

sujeito da escuta de sua fala crítica e não como objeto de seu discurso. O educador

que escuta aprende a difícil lição de transformar o seu discurso, às vezes necessário,

ao aluno, em uma fala com ele (FREIRE, p. 113).

A memorização, tão comum nos ambientes das faculdades de direito, tolhe a

criatividade e a liberdade do educando e da educanda, domestica, trata-os como seres

adaptados, nega a vocação transformadora, questionadora. A prática de “decorar” leis,

correntes doutrinárias e, em casos como já relatado no Curso de Direito da UFRN, a opinião

do ou da docente, torna insignificante a participação do corpo discente com suas ideias,

pensamentos e críticas, pois sua tarefa é absorver o conteúdo e não refletir sobre ele. No

direito significa, mais especificamente, saber a técnica e a lei, sem conhecer suas limitações

práticas e teóricas e suas implicações políticas, ideológicas e sociais.

Trata-se de um “círculo vicioso”, no qual essa prática pedagógica de “depositar” e

“absorver” conteúdos se sedimenta nos cursos jurídicos, reproduzindo-se e reproduzindo o

direito enquanto lei e a partir de opiniões incontestáveis. A tradição soa como um argumento

de autoridade, como um obstáculo às inovações no método de ensino, à perspectiva de relação

entre docente e discente – horizontal e dialógica.

Ensinar o direito implica, portanto, envolver estudantes, classes populares e

setores diversos da sociedade. É construir o conhecimento jurídico em diálogo com as

demandas sociais e com o pensar crítico dos e das discentes. Como disse Paulo Freire, “não

há docência, sem discência” (FREIRE, 1996, p. 21). Não há teoria sem prática, nem prática

sem teoria. O conhecimento é, portanto, dialético e dialógico.

b) A horizontalidade

O diálogo requer também uma relação horizontal entre educando e educanda e

educador e educadora, na qual ambos compreendem a incompletude, o inacabamento do ser

humano e que, dessa forma, não há quem saiba mais ou quem saiba menos, mas uma

permanente busca pelo conhecimento - “é na inconclusão do ser, que se sabe como tal, que se

funda a educação como processo permanente” (FREIRE, 1996, p.58).

Neste sentido, a consciência da incompletude humana remete ao educador e à

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educadora sua igual condição de educando e educanda, que ensinando também aprende. Por

isso não haver aqui uma superioridade docente, de quem sabe, de quem manda, mas um

diálogo de sujeitos e sujeitas e de saberes.

Quando saio de casa para trabalhar com os alunos, não tenho dúvida nenhuma de

que, inacabados e conscientes do inacabamento, abertos à procura, curiosos,

“programados, mas, para aprender”, exercitaremos tanto mais e melhor a nossa

capacidade de aprender e de ensinar quanto mais sujeitos e não puros objetos do

processo nos façamos” (FREIRE, 1996, p. 59).

Não existe aqui superioridade nem autoritarismo, mas autoridade docente, uma

“autoridade coerentemente democrática” (FREIRE, 1996, p. 92), que constrói uma disciplina

não castradora da liberdade discente, voltada ao despertar de uma consciência de

responsabilidade das próprias ações e de compromisso ético, de respeito às diferenças e à fala

do outro. Autoridade e liberdade são faces de uma mesma moeda, não se separam, estão

imbricados no processo educativo:

Este é outro saber indispensável à prática docente. O saber da impossibilidade de

desunir o ensino dos conteúdos de formação ética dos educandos. De separar prática

de teoria, autoridade de liberdade, ignorância de saber, respeito ao professor de

respeito aos alunos, ensinar e aprender. Nenhum destes termos pode ser

mecanicistamente separado, um do outro. Como professor, tanto lido com minha

liberdade quanto com a liberdade dos educandos, que devo respeitar, e com a criação

da autoridade dos educandos (FREIRE, 1996, p. 95).

A horizontalidade requer ainda o respeito à autonomia do educando e da

educanda, o que para Freire constitui um imperativo ético. A construção dessa autonomia

ocorre no processo de aprendizagem, com respeito à sua curiosidade, à sua linguagem, às suas

opiniões e enxergando-os enquanto sujeitos e não como objetos.

Cabe ainda ao educador e à educadora apresentar-se disponível ao diálogo. É

reconhecer sua incompletude, de que não sabe de tudo, mas pode estar sempre buscando

saber. É abrir-se ao mundo, diminuindo a distância com a realidade e com os discentes.

Assim, fazendo-se o diálogo por meio do mundo em que habita, necessário conhecê-lo para

comunicar-se. Isto é, conhecer o contexto dos educandos e das educandas para compreender

seu comportamento, sua linguagem.

A formação dos professores e das professoras devia insistir na constituição deste

saber necessário que me faz certo dessa coisa óbvia, que é a importância inegável

que tem sobre nós o contorno ecológico, social e econômico em que vivemos. (...)

Preciso, agora, saber ou abrir-me à realidade desses alunos com quem partilho a

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minha atividade pedagógica. Preciso tornar-me, se não absolutamente íntimo de sua

forma de estar sendo, no mínimo, menos estranho e distante dela (FREIRE, 1996, p.

137).

No mesmo sentido, Aguiar (2004) diz que “não há direito sem a capacidade de

nos conhecer e conhecer os outros e suas circunstâncias”. Para o autor, é necessário

compreender o contexto, a condição do oprimido, para que se realize uma prática jurídica

efetivamente comprometida com a justiça.

O direito não só precisa desse conhecimento, como também de criar pontes de

linguagens e conhecimentos diferenciados. A mania dos operadores de se cingir à

comunicação conforme a norma culta impede que eles se façam entender em várias

situações e possam entender o discurso dos outros; isso significa a perda da

possibilidade de alteridade operante, fundamento de qualquer direito. A alienação e

inconsciência perante o mundo e suas relações atingem a prática jurídica justamente

no que ela tem de essencial que é a busca de uma justiça na concretude da sociedade.

Quem não sabe do mundo que o cerca também está impossibilitado ou, no mínimo,

limitado em fazer justiça perante os problemas que lhe são trazidos. A habilidade de

pensar e sentir o mundo, de vislumbrar caminhos e tendências, é fundamental para

contextualizar utopias que mobilizam nossas existências. Não existe jurista sem

sonho, sem vislumbre de um mundo melhor; sem isso, serão mecânicos aéticos de

normas (AGUIAR, 2004, p. 62).

No direito, essa percepção abrangente do contexto e das condições dos sujeitos se

faz necessária posto o contato constante com situações de conflito. É necessário, portanto,

conhecer o outro, evitando-se cair no risco do senso comum, em pré-conceitos, que afastam

ao invés de dialogar.

c) A interdisciplinariedade

A interdisciplinariedade é o diálogo entre saberes, que permite uma visão total da

realidade, a partir dos diversos ângulos possíveis.

A educação popular assimila a diversidade de saberes e respeita-os, sem

estabelecer hierarquia. A necessidade do diálogo entre as áreas de conhecimento também

decorre do reconhecimento da sua incompletude, das limitações em permitir a compreensão

totalizada do mundo.

A interdisciplinaridade é o oposto da repartição do conhecimento. Este

conhecimento fragmentado, à medida que vai se especializando, restringe ainda mais a

percepção da realidade. Nas palavras de Paulo Freire (1987, p. 33), “são retalhos da realidade

desconectados da totalidade”.

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É no plano da totalidade que se constrói uma percepção “desalienada”,

desapegada às “visões focalistas”.

Por isto é que a investigação se fará tão mais pedagógica quanto mais crítica e tão

mais crítica quanto, deixando de perder-se nos esquemas estreitos das visões parciais

da realidade, das visões “focalistas” da realidade, se fixe na compreensão da

totalidade (FREIRE, 1987, p. 57).

Na formação jurídica, conforme ressalta Aguiar (2004), a percepção do todo é

essencial na identificação de problemas, isto é, situar o problema jurídico em um contexto

maior, de variáveis econômicas, sociais, culturais e políticas, descobrindo-se, a partir de suas

causas, a melhor forma para resolvê-los.

A função da interdisciplinaridade no direito também está relacionada a uma

formação jurídica aberta ao novo, às influências externas, capaz de analisar a complexidade

que envolve o direito diante de sua diversidade, de suas pontes com as mais variadas áreas de

conhecimento.

2.2.2 Extensão popular

A extensão é elemento indissociável do ensino e da pesquisa na educação

universitária, consoante a Carta Constitucional de 1988. Já a lei que institui as diretrizes e

bases da educação nacional24

, a institui como uma finalidade da Universidade: “promover a

extensão, aberta à participação da população, visando à difusão das conquistas e benefícios

resultantes da criação cultural e da pesquisa científica e tecnológica geradas na instituição”.

A Política Nacional de Extensão Universitária25

vai além, apresentando a seguinte

definição:

A Extensão Universitária, sob o princípio constitucional da indissociabilidade entre

ensino, pesquisa e extensão, é um processo interdisciplinar, educativo, cultural,

científico e político que promove a interação transformadora entre Universidade e

outros setores da sociedade (2012, p. 15).

O referido documento ainda estabelece como diretrizes para a extensão

universitária a interação dialógica, a interdisciplinariedade e a interprofissionalidade, a

indissociabilidade entre Ensino-Pesquisa-Extensão, o impacto na formação do estudante e o

24

Lei nº 9.394/1996, art. 43, VII. 25

Disponível em: < http://www.renex.org.br/documentos/2012-07-13-Politica-Nacional-de-Extensao.pdf>.

Acesso em: 12 de abril de 2014.

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impacto e transformação Social.

Dessa forma, a extensão corresponde a um aspecto da formação acadêmica e, ao

mesmo tempo, a uma função social institucionalizada da universidade, orientada a promover

intervenção na realidade.

Porém, Melo Neto (2002) questiona o conceito de extensão que se limita a

descrevê-la como função social da universidade, pois que isto não traduz por si só um

compromisso com as classes oprimidas. Aliás, como aponta Santos, a universidade é uma

instituição historicamente ocupada pelas elites:

A centralidade da universidade enquanto lugar privilegiado de produção de alta

cultura e conhecimento avançado é um fenômeno do Século XIX, do período do

capitalismo liberal, e o modelo de universidade que melhor traduz é o modelo

alemão, a universidade de Humboldt. A exigência posta no trabalho universitário, a

excelência dos seus produtos culturais e científicos, a criatividade da actividade

intelectual, a liberdade de discussão, o espírito crítico, a autonomia e o

universalismo dos objectivos fizeram da universidade uma instituição única,

relativamente isolada das restantes instituições sociais, dotada de grande prestígio

social e considerada imprescindível para a formação das elites. (SANTOS, p. 168).

Além disso, problematiza a extensão enquanto processo que se faz pela via de

mão-dupla. É certo que essa compreensão possibilita a participação popular na construção do

conhecimento, democratizando-o. Porém, esse canal em que a universidade leva e traz

conhecimento pode resultar numa compreensão de que apenas nesta instituição ocorre a

reflexão teórica, a produção do conhecimento, decorrendo, pois, numa separação do processo

e da produção:

A concepção de extensão como via de mão dupla separa o processo educativo da

própria educação, o processo cultural da produção da cultura, bem como o processo

científico da própria ciência. Pode-se questionar: quais os interesses que se

manifestam nessa realização? Será a extensão algo ideal, capaz de viabilizar uma

relação transformadora, como propõe aquele conceito? (MELO NETO, ano, p. 17-

18).

Da mesma forma que Darcy Ribeiro (1985, p. 7) questiona universidade para

quem e para quê, se pergunta para quem e para quê serve a extensão universitária. Logo, para

Melo Neto (2002), a extensão deve ser definida de forma a construir uma hegemonia de

classe. E isto, segundo o autor, se faz por meio da produção de conhecimento útil às classes

populares, de modo que essa utilidade não parte de uma intuição acadêmica, mas da

compreensão do povo, igualmente sujeito na construção do saber. Esse conhecimento traduz,

portanto, uma nova cultura para a classe trabalhadora.

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Portanto, não basta dizer que a extensão busca uma interação com a sociedade, ou

mesmo com as classes populares, pois existe um leque de possibilidades para isto acontecer,

podendo servir às empresas privadas, às classes privilegiadas econômica e socialmente, ou

mesmo à população carente de recursos através de práticas assistencialistas.

Essas práticas revelam, por sua vez, um viés autoritário e vertical, pois situam

quem assiste numa condição superior em relação àquele que é assistido. É uma relação de

doação, que parte de uma suposta “generosidade” de quem doa, como se constituísse um

favor, uma “esmola” a quem precisa. Não é uma ação transformadora, portanto, eis que o

necessitado, o assistido não é sujeito ativo, mas passivo nessa relação, redundando numa

prática que não respeita a autonomia do outro.

A definição proposta por Melo Neto busca superar os problemas conceituais da

extensão no sentido de deixar clara a intencionalidade – o para quem e o para quê da

extensão.

Portanto, o diferencial da extensão popular está na sua qualidade de “trabalho

socialmente útil”. A categoria trabalho está relacionada àquilo que transforma a natureza e

que cria um produto. Ou seja, a extensão é, então, o trabalho que transforma a realidade e que

produz conhecimento pertencente aos sujeitos e às sujeitas que se envolveram na sua

realização:

Sendo trabalho social e útil, a efetivação da extensão gera um produto que

transforma a natureza, na medida em que cria cultura. É um trabalho imbuído da sua

dimensão educativa. O produto desse trabalho, todavia, passa a pertencer tanto às

equipes dos projetos de extensão, na universidade, quanto à própria comunidade ou

aos grupos comunitários, para aplicação na organização de seus movimentos. Esta

tem sido uma busca constante de apropriação do produto gerado nas atividades de

extensão. Essa dimensão da extensão possibilita a superação da alienação gerada

pela não posse do produto do trabalho por parte de seus produtores, no modo de

produção capitalista. Todos os produtores devem apropriar-se desse produto do

trabalho, que é o saber (MELO NETO, 2004, p. 36-37).

Neste sentido, partindo da concepção marxista do trabalho como “resgate da

dimensão humana”, isto é, que liberta o indivíduo enquanto agente transformador na

apreensão daquilo que produz, o papel da extensão é de humanizar, portanto, de contribuir

para superar a negação, a opressão que proíbe condição humana de ser livre.

A extensão popular apresenta, portanto, uma finalidade essencialmente política,

de comprometimento com as classes populares, com os grupos oprimidos, na sua libertação,

na construção de sua autonomia. Daí seu caráter transformador, eis que a mudança, para

acontecer, demanda dos próprios oprimidos que assumam sua libertação, pois:

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Estes, que oprimem, exploram e violentam, em razão de seu poder, não podem ter,

neste poder, a força de libertação dos oprimidos nem a si mesmos. (...) Os

opressores, falsamente generosos, têm necessidade, para que a sua “generosidade”

continue tendo a oportunidade de realizar-se, da permanência da injustiça (FREIRE,

1987, p. 17).

A transformação social oportunizada pela extensão popular ocorre em duas

dimensões: no trabalho específico desenvolvido, realizando mudanças em determinado

contexto, numa fábrica, numa comunidade rural ou urbana, onde seus sujeitos e sujeitas vão

construindo e se apropriando do conhecimento produzido ao tempo em que constroem sua

autonomia e sua liberdade; e na formação acadêmica de estudantes, professores e

funcionários, na medida em que a experiência vivida possibilita a tomada de posição, a

formação de um compromisso com as classes populares, conferindo um sentido transformador

aos seus papéis na sociedade e dando continuidade à práxis libertadora.

No que tange à formação de estudantes, a experiência com a extensão popular

desperta a apreensão crítica da realidade e a consciência de seu papel transformador, ensina a

relacionar teoria e prática, a perceber a importância do saber popular na elaboração do

conhecimento, da participação dos diversos setores da sociedade na construção da democracia

e da justiça social. Enfim, a extensão apresenta uma aprendizagem crítica e comprometida

com a realidade, orientando a formação de profissionais conscientes de que seu conhecimento

pode servir de instrumento à mudança.

Na formação jurídica, a extensão popular denota uma prática ainda mais

desafiadora e contra-hegemônica, tendo em vista que o contexto das faculdades de direito,

conforme já apresentado, é permeado de uma visão distanciada da realidade, pouco reflexiva e

que preza pela acomodação, além da verticalidade, que é avessa a práticas inspiradas na

educação popular, com a horizontalidade, a dialogicidade e a interdisciplinaridade.

É justamente a partir dessas contradições que a extensão confronta esse contexto

conservador, possibilitando aos e às estudantes o desenvolvimento de uma concepção crítica

do direito e do ensino jurídico, da sensibilidade perante as demandas sociais e da consciência

transformadora.

Diante das especificidades técnicas e próprias do direito, a extensão popular se

desenvolve de uma maneira diferenciada, isto é, através da assessoria jurídica popular, que

assimila a intencionalidade do trabalho social e o método pedagógico da educação popular,

conforme análise a seguir.

2.2.3 A educação em Direitos humanos

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Necessário, nessas primeiras linhas, esclarecer qual a concepção de direitos

humanos aqui adotada. Trata-se do sentido emancipador, ligado às conquistas das lutas sociais

no decorrer da história e voltado para o que Paulo Freire denomina de humanização.

Aliás, consoante dissertação de mestrado de José Humberto de Góes Júnior, Paulo

Freire defende a construção de uma sociedade livre de opressão não apenas a partir da práxis

pedagógica, mas também do respeito aos direitos humanos:

A leitura de escritos de Paulo Freire, todavia, é capaz de informar que seu

pensamento não está adstrito ao campo da pedagogia. Não obstante seja esta sua

temática central, o autor imprime ao seu estudo a necessidade de analisar o mundo,

de submeter as relações sociais, sobretudo, aquelas de opressão, ao crivo de um

olhar atento, crítico, com vistas à sua eliminação. E, fundado no respeito aos

Direitos Humanos à dignidade, à igualdade e à liberdade, Paulo Freire nega qualquer

possibilidade de haver mudanças sociais aparentes, das quais resulte apenas a troca

de papéis entre opressores e oprimidos. Seu propósito é, decerto, a construção de

mecanismos capazes de fortalecer a democracia e a cultura de respeito aos Direitos

Humanos, de modo que já não subsistam formas de exploração, econômica e/ou

cultural (GÓES JÚNIOR, 2008, p. 21).

Os direitos humanos concebidos não como um conjunto de artigos e incisos que

confiram uma segurança abstrata de sua efetivação, mas como uma constante evolução

humana, uma permanente luta por transformação social, como aquilo que realiza a vocação

humana de ser mais.

Não se quer negar a relevância da positivação dos direitos humanos, pois que seu

papel também é importante na efetivação desses direitos, ao passo que imprime deveres ao

Estado, que coloca a lei ao lado dessa luta. Porém, restringi-los a esta condição pode incorrer

na negação de outros direitos humanos, insurgentes no seio da dinâmica social, ainda marcada

por desigualdades. Por isso a necessidade de compreender os direitos humanos no seu sentido

histórico:

Os direitos humanos representam a conquista, que não poderia dissimular toda luta

social e histórica para estabelecê-los, seja como princípio e parâmetro de avaliação

jurídica, seja como elenco de garantias a que se terá de oferecer efetiva substância e

eficiência, em toda legislação e aplicação de leis, ou até mesmo contra elas, se

preciso for. (...) Quero dizer, com isto, que os direitos humanos propriamente ditos

só nascem ou vigem, na medida em que a sua legitimidade constitutiva e eficácia

funcional se polariza no sentido da evolução histórica, em condições propícias das

correlações de forças internacionais. E estas só podem ser a situação, em cada etapa,

do processo de eliminação das dominações minoritárias e classistas, internamente, e

dos imperialismos de nações ou blocos de nações, no plano externo. Daí a constante

reformulação daqueles direitos, à medida que novas e mais amplas quotas de

libertação conscientizam-se, lutam pelo reconhecimento e se estabelecem,

historicamente (LYRA FILHO, 1980, p. 7-8)

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Assim, enquanto vivermos em uma sociedade marcada pelas opressões, culturais,

sociais, de gênero, de etnia ou econômica, pela negação da liberdade, pela ausência de

dignidade, os direitos humanos, ainda que positivados, necessitam ser conquistados a cada dia

por meio da luta, de ações transformadoras que busquem dignificar e libertar os oprimidos e

as oprimidas. Pois que libertação “traduz-se no fortalecimento da democracia e no respeito

aos direitos humanos” (GÓES JÚNIOR, 2008, p. 23).

Aqui se assimila ainda a noção de Santos (1997) acerca da concepção

multicultural de direitos humanos, isto é, que compreende suas variantes culturais

questionando seu caráter supostamente universalista, conferido pelo conceito ocidental.

Entender o contexto dos grupos vulneráveis é assumir uma postura dialógica e não autoritária,

de impor conceitos prontos e acabados:

Na área de direitos humanos e da dignidade humana, a mobilização de apoio social

para as possibilidades e exigências emancipatórias que ele contém só será

concretizável na medida em que tais exigências tiverem sido apropriadas e

absorvidas pelo contexto cultural local. Apropriação e absorção, neste sentido, não

podem ser obtidas através da canibalização cultural (SANTOS, 1997, p. 23).

Esta visão ocidental e legalista dos direitos humanos a que Santos (1997) critica,

além do autoritarismo, limita-se a pensar direitos a partir de deveres, contradizendo o sentido

histórico, que confere a constante criação e recriação dos direitos humanos.

(...) a concepção ocidental dos direitos humanos está contaminada por uma simetria

muito simplista e mecanicista entre direitos e deveres. Apenas garante direitos

àqueles a quem pode exigir deveres. Isto explica por que razão, na concepção

ocidental dos direitos humanos, a natureza não possui direitos: porque não lhe

podem ser impostos deveres. Pelo mesmo motivo, é impossível garantir direitos às

gerações futuras: não possuem direitos porque não possuem deveres (SANTOS,

1997, p. 24).

Dessa forma, a educação em direitos humanos busca pensá-los a partir de uma

concepção emancipadora e não a partir de deveres ou de normas. A necessidade não

pressupõe obrigação, mas existência digna – dignidade de ser livre, a liberdade contra

opressões.

De acordo com Lyra Filho (1982, p. 6) em referência a Ernst Bloch, “não há

verdadeiro estabelecimento dos Direitos Humanos, sem o fim da exploração; não há fim

verdadeiro da exploração, sem o estabelecimento dos Direitos Humanos”.

Eis o porquê da escolha pela educação em direitos humanos. Eles trazem a conotação

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de libertação do oprimido e da oprimida para viver com dignidade, para viver enquanto ser

humano, conscientes de sua vocação de ser mais. Traduzem a realização da justiça social, da luta

contra opressões, da transformação, da humanização.

A educação em direitos humanos humaniza educandos e educandas, educadores e

educadoras, ao passo que se constrói no diálogo, em respeito ao outro; quando se volta a pensar o

mundo de forma crítica; quando busca despertar a condição de sujeitos e sujeitas de direitos por

sua condição humana e não pela existência de deveres. Enfim, nas palavras de Paulo Freire (1987,

p. 31), quando promove não apenas a “liberdade para comer, mas liberdade para criar e construir,

para admirar e aventurar-se”.

O ensino jurídico pautado nos direitos humanos permite, por conseguinte, a criação

de uma cultura voltada à emancipação de sujeitos e sujeitas vulneráveis à ordem social desigual.

Isso significa dizer o potencial que apresenta na superação da visão legalista do direito e das suas

contradições perante a realidade na medida em que aproxima estudantes e profissionais das lutas

sociais, dos movimentos, grupos e organizações engajados na promoção da justiça social.

A educação jurídica promovida a partir dos direitos humanos implica sentir-se

afetado pela dor do outro, no exercício da alteridade (WARAT apud SENA, In NALINI;

CARLINI, 2010), implica sentir-se responsável pelo mundo em que vive e pela condição do

outro, implica sensibilidade.

2.2.4 Assessoria jurídica popular universitária

A assessoria jurídica popular universitária absorve todos os pontos anteriores,

constituindo numa alternativa à formação jurídica, pautada na práxis emancipatória dos

direitos humanos por meio da extensão popular universitária. Todavia, antes de delinear a

relação entre este tópico e os anteriores, vale destacar o contexto do surgimento da assessoria

jurídica popular (Ajup).

Com efeito, as assessorias jurídicas dos movimentos sociais surgiram, no Brasil, a

partir dos anos 1960, em parte como decorrência dos limites políticos contidos num

sistema político autoritário e, em parte, como reação a uma formação jurídica,

centrada num positivismo estiolante, que impedia a percepção do direito como

estratégia de superação de uma realidade injusta e de exclusão social fazendo do

formalismo legal um obstáculo à emergência de novos direitos. Em todo caso, elas

foram ajustando o seu perfil de atuação para concretizar objetivos emancipatórios e

de concretização de Direitos Humanos (SOUSA JUNIOR, p. 7).

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As causas do surgimento das AJUP’S no Brasil são capazes de informar por si só

a intencionalidade de seus objetivos, dentre os quais se situa a instrumentalização do direito

em favor de grupos oprimidos como uma forma de transformar a realidade.

A concepção atual de AJUP no meio universitário surgiu na da década de 1990, a

partir de atividades ligadas a projetos da universidade apresentando um diferencial – o

protagonismo estudantil (RIBAS, 2008).

Em uma concepção ampla, que contemple as peculiaridades das atividades

desenvolvidas no âmbito universitário, a assessoria jurídica popular

(...) consiste no trabalho desenvolvido por advogados populares, estudantes,

educadores, militantes dos direitos humanos em geral, entre outros; de assistência,

orientação jurídica e/ou educação popular com movimentos sociais; com o objetivo

de viabilizar um diálogo sobre os principais problemas enfrentados pelo povo para a

realização de direitos fundamentais para uma vida com dignidade, e a sua

efetivação; seja por meio dos mecanismos oficiais, institucionais, jurídicos,

extrajurídicos, políticos, ou por meio da conscientização (RIBAS, 2008, p. 249).

Partindo das definições de Campilongo (2005), a assessoria jurídica popular seria

um serviço legal inovador, caracterizado pela coletivização, participação e organização, em

contraponto ao serviço legal tradicional, de caráter individualista, paternalista e apático.

O autor desenvolve sua ideia explicando que no serviço legal tradicional, o

atendimento costuma ser individualizado, configurando como uma decorrência da cultura

individualista liberal; as práticas possuem um caráter assistencialista, voltadas apenas para

quem se declara pobre, transmitindo uma ideia de caridade, de favor; além de constituir uma

relação hierárquica e formalista entre advogado e cliente, sem possibilitar envolvimento do

profissional nem do cliente, que sai da posição de sujeito do próprio problema, ocorrendo uma

“subordinação do cliente ao conhecimento do profissional” (CAMPILONGO, 2005, p. 6).

Por outro lado, a inovação do serviço legal está na atenção aos direitos coletivos,

valorizando princípios como o da solidariedade; na superação da restrição do caráter

econômico para atender à diversidade de grupos vulneráveis; no trabalho com entidades

coletivas; na relação horizontal entre advogado e cliente, com a participação e envolvimento

de ambos na causa, possibilitando a resolução coletiva e consciente do problema a partir de

estratégias definidas para além das vias judiais, como a pressão política, por exemplo.

Desse modo, a assessoria jurídica popular, enquanto prática inovadora, constitui

numa ação contra-hegemônica que desafia a concepção de direito e de ensino jurídico

dominantes e que se revelam nos serviços legais tradicionais.

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A AJUP é uma ação política que busca a emancipação da classe trabalhadora, dos

grupos indígenas, das mulheres, dos grupos étnicos, enfim, dos espoliados e oprimidos. Aqui,

o problema não é compreendido apenas numa análise legal e jurisprudencial, mas como parte

de um todo, que envolve um contexto político, social, cultural e econômico.

Por isso, a via judicial nem sempre é o canal principal de solução, valendo-se

muitas vezes de estratégias que envolvam conhecimentos de várias outras áreas do saber,

inclusive do próprio movimento ou grupo sujeito do problema, a partir de suas experiências.

Aliás, complementando a definição teórica da AJUP com a experiência pessoal de assessora

estudantil, o Judiciário não se mostra apto a receber demandas de movimentos sociais. Vale

abrir um parêntese para explicar por que.

Nas ações judiciais que têm como polo passivo o Movimento dos Trabalhadores

Sem Terra, o escritório popular26

, se depara com constantes desafios para garantir uma defesa

ao movimento condizente com os princípios constitucionais do processo, como o

contraditório e a ampla defesa. Dentre as violações de direito ao devido processo legal

visualizadas na existência do projeto estão: a falta de citação justificada pela impossibilidade

de encontrar o acampamento, embora sempre seja possível ao oficial de justiça cumprir a

decisão judicial que determina a saída imediata do movimento do local; e decisões judiciais

fundamentadas em provas frágeis, geralmente em meras alegações do proprietário

latifundiário e que muitas vezes transparecem o pensamento preconceituoso diante das

práticas políticas do MST, como tachar de “público e notório” que o movimento possui

práticas violentas; dentre tantas outras.

Assim, é ter a sensibilidade de escolher o meio que melhor atende às exigências

do assessorado, consciente das limitações do Poder Judiciário. Daí a necessidade de uma

equipe interdisciplinar, que ofereça outros caminhos a trilhar. Por outro lado, a iniciativa de

permitir o acesso de movimentos como o MST ao Judiciário denota uma ação ousada, uma

provocação ao individualismo e aos preconceitos disseminados nos tribunais e nas varas

judiciais. É desafiar o direito a pensar mecanismos de garantir a efetivação de direitos

coletivos.

Além disso, a coletivização da demanda também possibilita outro alcance,

conforme salienta Campilongo:

26

Um dos projetos que compõe o Programa Motyrum de Educação Popular em direitos humanos. É composto

por extensionistas, advogados e advogados e tem como atividade a assessoria jurídica popular de movimentos

sociais do Rio Grande do Norte, dentre eles acampamentos do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra e

movimentos estudantis locais como o Fora Micarla e a Revolta do Busão.

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Mais do que lidar com interesses difusos ou coletivos, o objetivo político desses

grupos também é contribuir para a afirmação daquele espírito comunitário já

apontado. A busca por essa “justiça alternativa” desdobra-se em dois lances: no

plano processual e no terreno substancial. No primeiro, a adjudicação institucional-

formal passa a concorrer com outros tipos de processos: juizados informais; ênfase

a critérios de eqüidade; participação popular na administração da justiça;

encorajamento à negociação, transação e barganha, etc. No segundo, a restauração

de equilíbrio individual cede lugar a uma justiça preocupada com o

encurtamento das desigualdades sociais - uma racionalidade regulada segundo as

exigências das “maiorias desprivilegiadas” (CAMPILONGO, 2005, p. 9).

Neste sentido, de promover uma sociedade justa e igualitária, a AJUP é

responsável também pela criação de uma cultura jurídica em direitos humanos. Sua finalidade

é tanto a efetivação desses direitos – dos direitos à saúde, educação, moradia ao acesso à

justiça – quanto permitir o processo de conscientização dos sujeitos e sujeitas envolvidos, no

sentido de estimular sua organização e sua autonomia, pois que a luta é diária. Dessa forma,

constroem-se profissionais e organizações comprometidas com a transformação social a partir

dos direitos humanos.

O pensar sobre a própria condição pode levar o homem à reflexão de que casos

extremos de necessidade o levarão obrigatoriamente, à ação. Não se pode se

surpreender que dia-a-dia se repitam atos violentos daqueles que nada têm. Haverá

algo mais violento do que a fome? O caminho da ação pode ser acompanhado por

aqueles que têm o compromisso político, como estudantes que podem analisar a

sociedade a partir do olhar daqueles que nela convivem, na experiência de encontrar

o sentido de sua luta (RIBAS, 2008, p. 26).

A partir das definições das atividades realizadas no âmbito das AJUP’s é possível

identificar a prática pedagógica da educação popular. Primeiramente porque tem como

finalidade a libertação dos oprimidos, do que sofrem com a sociedade injusta e desigual,

procurando estimular a construção de sua autonomia enquanto sujeitos de direito. Segundo

porque constrói uma relação horizontal, pautada no diálogo entre os movimentos e os e as

estudantes e profissionais envolvidos, em que os assessorados têm voz para dizer suas

necessidades, bem como participam da reflexão sobre caminhos e estratégias. Terceiro porque

se verifica a troca de saberes e a sua utilização em prol de um bem comum. No mais, a

educação popular se faz presente pela proposta pedagógica que busca formar seres humanos

conscientes de seu papel transformador no mundo.

No contexto específico da AJUP universitária, além de todos os elementos

abordados, se apresenta o protagonismo estudantil. Nas palavras de Ribas (2008, p. 89), “o

estudante não lê o mundo enquanto não toma a decisão de vivê-lo nos espaços onde se

esconde a realidade”.

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De acordo com o autor, o envolvimento estudantil decorre da indignação:

A assessoria jurídica popular universitária nasce da “indignação ética”. Primeiro,

com um ensino do direito de estudantes cansados de tanta repetição, de tanta

“dogmática ruim” e de tanta doutrinação. Segundo, indignação com a prática

jurídica, com o atendimento nos escritórios “modelos” muito longe dos ideais de

acesso à justiça. Por fim, com a realidade brasileira, em que a igualdade formal não

corresponde aos anseios da utopia estudantil (RIBAS, 2008, p. 90).

Outra questão relacionada ao protagonismo estudantil é a baixa participação de

professores (RIBAS, 2008) nestes projetos, o que se conclui pela ausência ou precária

orientação. No entanto, apesar de algumas dificuldades que esta deficiência traz, é possível

identificar as consequências positivas deste engajamento, como a dedicação, a politização, a

postura crítica e dialógica, o senso de coletividade no trabalho em grupo e de democracia na

organização do grupo.

Por fim, é por constituir numa educação popular em direitos humanos a partir de

projetos de extensão de universidades, entendendo aí todas as suas implicações já abordadas,

que a assessoria jurídica popular universitária se constitui em uma alternativa à formação

jurídica em um sentido inovador e transformador.

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CAPÍTULO III

O MOTYRUM COMO UMA ALTERNATIVA PARA O ENSINO JURÍDICO

No presente capítulo busco situar o Programa Motyrum de Educação Popular em

Direitos Humanos no contexto do Curso de Direito da UFRN no que concerne à formação

jurídica. Dessa forma, explicarei no que constitui este programa de extensão e farei um relato

do trabalho desenvolvido no Leningrado para, depois, analisar as respostas das entrevistas

realizadas com a maioria dos e das estudantes que desenvolveram a atividade no ano de 2011,

a partir das variáveis dialogicidade, interdisciplinaridade e horizontalidade.

3.1 O Programa Motyrum de Educação Popular em Direitos Humanos

A seguir, apresento o Programa Motyrum a partir de algumas noções de

organização, orientação política e metodologia de trabalho, além de suas limitações e de sua

relação com o Curso de Direito da UFRN. Trata-se de melhor compreender o Programa e,

portanto, o núcleo Urbano, para realizar a análise que me disponho a fazer no último tópico

deste capítulo sobre a formação jurídica.

3.3.1 O que é e como funciona

O Motyrum é um programa de assessoria jurídica popular que tem como proposta

central o desenvolvimento da educação popular em cinco eixos de atuação: a) comunidades

urbanas (Núcleo Urbano); b) rurais (Núcleo Rural); c) indígenas (Núcleo Indígena); d)

ambientes de privação de liberdade para adultos (Núcleo Penitenciário) e e) ambientes de

privação de liberdade de jovens em conflito com a lei (Núcleo Infanto-Juvenil). Além de

atividades ligadas à advocacia popular em apoio aos movimentos sociais do Estado do Rio

Grande do Norte, desempenhadas pelo Escritório Popular.

Assim, a práxis do Programa se realiza na discussão das violações de direitos

humanos verificadas nesses contextos através de círculos de cultura27

, na mediação

institucional e na articulação política para defender interesses do grupo com o qual se

27

Os círculos de cultura são rodas de conversa que seguem a ideia freireana de organizar o espaço de forma que

não traduza hierarquia, isto é, no sentido de estudantes de frente para o professor. A roda expressa

horizontalidade, em que todos e todas podem se olhar e falar. Constitui um espaço de mobilização de sujeitos e

sujeitas para pensar a realidade da qual fazem parte.

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trabalha, como também no assessoramento jurídico das demandas que exigem uma

intervenção do Judiciário, situação que passa a envolver também o Escritório Popular. De

forma mais direta, o núcleo prepara os fatos e as provas da ação, enquanto o Escritório

trabalha os fundamentos e atua no acompanhamento processual.

A palavra “motyrum” possui origem Tupi-Guarany e quer dizer “união de pessoas

em torno de algo”. A escolha por este nome se deu por sua capacidade de expressar a essência

do Programa, que constitui numa opção política de construir com várias mãos um mundo

diferente, sem opressões, mais humano. É uma palavra “popular, feminista, negra, indígena,

da juventude, dos oprimidos, dos condenados da terra, condenados do mundo e da história”,

que indica a “nossa opção lúcida e consciente pelos explorados e exploradas, pela libertação

das correntes opressoras”, conforme dissemos na carta de esclarecimento sobre a mudança do

nome do Programa28

, antes chamado “Lições de Cidadania”29

.

A prática de extensão do Programa tem como objetivo promover, através do

diálogo com sujeitos e grupos oprimidos, a democratização do conhecimento através da

participação ativa da Universidade nas demandas sociais; a emancipação dos sujeitos e

sujeitas dos ambientes de atuação por meio da educação popular em direitos humanos; a

intervenção na realidade local; o acesso à justiça30

de movimentos sociais e das classes

populares; e a instrumentalização do Direito na transformação social31

.

Além da extensão, o Motyrum apresenta ainda o viés do ensino, ao passo que

permite aprender o Direito e outras disciplinas de forma prática, em relação com a sociedade e

estimulando o raciocínio jurídico; e da pesquisa, quando, na partilha de saberes, constrói um

conhecimento novo, surgindo a necessidade de sua teorização.

28

O Programa surgiu com o nome Lições de Cidadania, porém, ao longo dos anos, o crescimento e o

amadurecimento político provocou uma reflexão crítica sobre este nome, entendendo ter uma conotação

tradicional de educação, de educação bancária, de quem ensina lições a alguém de como ser um cidadão ou uma

cidadã. Assim, o nome Motyrum representa agora aquilo que somos e o que fazemos, representa a língua

indígena oprimida e o nosso compromisso com as classes populares, oprimidas e excluídas da sociedade. 29

Embora a presente pesquisa se refira a trabalho realizado na época em que o Programa se chamava Lições de

Cidadania, optei por adotar o nome atual por se tratar de uma análise posterior dos efeitos visualizados hoje após

a extensão no Leningrado. 30

Neste trabalho adoto a concepção mais abrangente de acesso à justiça, mencionada por Sousa Junior (2008), a

partir de referências à Boaventura de Souza Santos, na sua tese de doutorado. Isto é, o acesso almejado não é

apenas ao sistema judicial de solução de conflitos ou da efetivação de direitos positivados. É o acesso que

reconhece o pluralismo jurídico e os saberes da população agregando essas experiências na construção do direito

e de práticas alternativas, que visa à emancipação de sujeitos e sujeitas e a participação popular também nas

instituições jurídicas. 31

Entendo que a utilização do direito como instrumento de transformação social significa colocá-lo ao favor das

classes e grupos oprimidos para que possam combater as situações de dominação aos quais estejam submetidos,

emancipando-se, libertando-se de suas condições de exploração da força de trabalho, de discriminação racial, de

gênero, e cultural. Dessa forma, a partir dessa emancipação, vislumbro a ocorrência de mudanças estruturais e

culturais na sociedade com a eliminação das diversas formas de opressão.

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Há duas frentes de atuação: fora dos limites físicos da Universidade, através da

prática da educação popular numa perspectiva de desenvolvimento social das comunidades e

sujeitos em diálogo com o Programa; e voltada à comunidade acadêmica, na “extensão às

avessas”32

, isto é, buscando conferir um espaço a estes sujeitos e sujeitas dentro da

Universidade para falarem e serem ouvidos pela instituição.

Dessa forma, provocamos o corpo docente e discente a despertar para as causas

sociais, a perceberem o quão afastados estão do mundo não acadêmico, a se sensibilizarem.

Certa vez, em um evento sobre direito à moradia, promovido pelo Núcleo Urbano, um

representante do Movimento de Luta em Bairros, Vilas e Favelas (MLB), que compunha a

mesa, iniciou sua fala da seguinte maneira: “Só assim para a gente entrar na Universidade...”.

Quer dizer, uma crítica a este espaço ainda marcado pela ausência ou tímida presença das

classes populares e dos movimentos sociais, e pelo distanciamento, pela separação de dois

mundos, o acadêmico e o social, quando na verdade, constituem um só.

A principal base teórica do Motyrum está nas obras de Paulo Freire, leituras

obrigatórias para todo e toda extensionista para compreender a metodologia do Programa,

pautada na educação popular e, por tanto, a importância do diálogo nas relações com o outro

ou a outra, da relação entre a diversidade de saberes e da horizontalidade.

Assim, a partir das experiências vivenciadas e de conversas com extensionistas,

percebo que, orientado por uma educação libertadora, o Motyrum tem como objetivo

proporcionar uma formação humanista ao e à estudante de direito, que permite o

desenvolvimento de habilidades como pensar criticamente, ter humildade diante das relações

sociais, enxergar o direito na totalidade, saber aplicar o conhecimento jurídico na prática,

perceber as limitações das instituições jurídicas, dentre outras que permitem a construção de

um profissional ou de uma profissional ciente de sua função social enquanto agente

transformador.

Além de estudantes de direito, do Programa também participam e participaram

estudantes de História, Ciências Sociais, Serviço Social, Nutrição, Pedagogia, Gestão de

Políticas Públicas, Psicologia, Letras, Contabilidade, Publicidade e Propaganda e Biologia.

32

A extensão às avessas, ou “ao contrário”, de acordo com Boaventura de Souza Santos (2004), consiste em um

mecanismo de aproximação entre universidade e comunidade. Importa não no movimento de ir até a

comunidade (como é comum na extensão em si), mas esta ocupar o espaço universitário para fazer parte da

construção do conhecimento, para participar das discussões e dialogar a partir do seu saber, da sua experiência.

Nas palavras de Santos (2014, p.57), é converter a universidade “num espaço público de interconhecimento onde

os cidadãos e grupos sociais podem intervir sem ser exclusivamente na posição de aprendizes.”. Ou seja, na

extensão a universidade vai até a comunidade e na extensão às avessas, esta vai até aquela, de modo que em

ambos os espaços ocorre o diálogo e a construção de conhecimento. É dizer que a universidade não é um espaço

privilegiado para isso, é, na verdade, mais um lugar para fazê-los.

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Essa busca pela interdisciplinaridade se funda na possibilidade de uma percepção ampla da

realidade e de uma intervenção mais qualificada, a olhar para os vários aspectos dos

problemas enfrentados em cada ambiente de atuação de forma conjunta. Ela parte, assim, da

compreensão da incompletude do direito, da necessidade de “beber” de outras fontes de

conhecimento e de relacionar esses saberes e experiências no fazer e no refazer da extensão.

O Programa Motyrum é conduzido predominantemente por estudantes, contando

com raras participações de docentes nas atuações e em orientações33

. A orientação se faz por

meio de gerações: os e as extencionistas mais experientes no Programa vão se tornando

referências para as pessoas recém-chegadas. Além disso, as gerações mais experientes

também conduzem a formação política para atrair novos e novas extensionistas. É que, frente

a dificuldade de encontrar no Curso de Direito docentes com mesma intencionalidade política

e que tenha experiência com educação popular, o protagonismo estudantil se reafirma como

uma forma de sobreviver a essa conjuntura, de viabilizar o trabalho proposto pelo Motyrum,

até mesmo como uma forma de defesa, evitando interferências que venham a prejudicar o

andamento das atividades.

Interessante perceber que, por um lado, esse protagonismo estudantil exige a

busca de uma autoformação a partir de outros espaços (cursos de formação, encontros

regionais e nacionais de estudantes de direito – ERED E ENED, por exemplo), a busca de

docentes de outras áreas de conhecimento para orientar34

atividades (atuação em comunidade,

produção de artigos, planejamento do núcleo) e de leituras sobre educação popular,

movimentos sociais, dentre outros temas, no intuito de qualificar as ações do programa e as

formações de novos e novas extensionistas. E isso possibilita um engajamento de estudantes

na condução do Programa, fortalecendo-o e conferindo maior qualidade ao nosso fazer,

contrapondo, aliás, a posição em que são colocados e colocadas nas salas de aula, como

simples ouvintes, aguardando passivamente as ordens do seu “superior hierárquico” – o

professor. O engajar-se é algo que vai se desenvolvendo aos poucos nos e nas extensionistas,

de modo que verifico que isto ocorre em maior grau sempre naqueles e naquelas mais

33

Geralmente, salvo alguns raros momentos, as atividades do Motyrum são realizadas apenas por estudantes: a

organização do calendário semestral, a pauta de formações internas, a organização de eventos, o preenchimento

de editais de financiamento, as ações a serem realizadas nas comunidades. Nas ações que exigem assinatura de

orientadores, eles são contatados para realizar as diligências necessárias após ser explicado o motivo da tarefa.

Apesar de algumas tentativas em buscar a ajuda de orientadores, há dificuldades tanto por parte dos e das

extensionistas em buscar orientação, por diversos motivos como encontrar nesses professores uma orientação

política próxima do Programa e/ou que tenha experiência em extensão popular, não compreender da importância

da orientação docente, dentre outras; quanto por parte de professores em lidar com o protagonismo estudantil,

em compreender a metodologia do Programa e acompanhar a quantidade de atividades, dentre outras questões

que necessitam de uma avaliação coletiva do Programa para serem percebidas e melhor avaliadas. 34

O Programa já possuiu como orientadores docentes da Psicologia, Serviço Social e Antropologia.

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experientes, que já carregam um acúmulo de formações e de vivência no Programa. Ou seja,

espontaneamente essas pessoas mais antigas se tornam referências, sobretudo diante da

expressividade desse protagonismo estudantil.

Por outro lado, a centralidade das atividades nos e nas estudantes possui limites na

formação mesma, ainda superficial, e na reflexão sobre as ações do Programa, instalando

entre extensionistas uma reprodução das ideias defendidas, dos discursos críticos, sem um

aprofundamento teórico. As ações do Motyrum apresentam, assim, um traço de ativismo

(FREIRE, 1987) como reflexo dessa limitação teórica35

, limitações que serão abordadas no

tópico seguinte.

A formação de novos e novas extensionistas ocorre anualmente e constitui

requisito para a entrada no Programa. São cerca de dez encontros, em que são apresentadas as

realidades dos ambientes de atuação dos núcleos no contexto local e nacional, ou seja, a

situação do Conjunto Leningrado, por exemplo, dentro de um contexto maior, do direito à

cidade, do direito à moradia, da intervenção do mercado imobiliário, da exclusão social, etc.

Nos encontros são discutidos textos relativos às temáticas e à educação popular, além de ter

sempre a preocupação de utilizar formas lúdicas, como dinâmica, teatro, música, material

visual (cartazes, fotografias e vídeos), no intuito de provocar o interesse, a participação e o

envolvimento36

do público com as causas apresentadas.

Assim, este é o primeiro momento de formação política do Motyrum, que tem

como objetivo apresentar o trabalho do Programa (atuações, organização interna,

metodologia), mas principalmente provocar um choque de realidade abordando temas que ou

não são tratados em sala de aula, ou o são sob a ótica opressora. Ou seja, discutindo questões

a partir da exposição das contradições sociais, da realidade enfrentada por oprimidos e

oprimidas, que não são apresentadas nas aulas abstratas do Curso de Direito. E a partir desse

choque, despertar a vontade de agir para transformar a realidade, seja participando no

35

Entendo que as ações do Motyrum não são meramente ativistas, elas são refletidas, partem de leituras, de

estudos teóricos que são realizados, dentro das possibilidades, antes e durante o trabalho de extensão nas

comunidades, por exemplo. No entanto, esse aprofundamento ainda é pouco expressivo no Programa, o que

confere esse traço, esse limite que denota uma ação com pouca reflexão. Interpreto isso não como uma opção do

Programa em sacrificar a reflexão (e por isso não ser meramente ativista), mas como uma consequência da

conjuntura em que está inserido, em que há dificuldades de realizar um trabalho que não é hegemônico no Curso

de Direito nem na Universidade, em que há fragilidades na formação de estudantes no âmbito da pesquisa. 36

A prática da educação popular pressupõe esse envolvimento de sujeitos e sujeitas nas discussões, na reflexão e

na descoberta do mundo. Essa prática educativa participativa é coerente com uma opção política progressista,

democrática (FREIRE, 1993), que reconhece educando e educador enquanto sujeitos inacabados, aptos a ensinar

e a aprender. É nesse sentido que esse curso de formação política busca envolver os e as participantes, de

provocar o despertar para sua condição de sujeitos e sujeitas históricas no mundo, de seres potencialmente

transformadores da realidade. Ou seja, é uma prática educativa que manifesta claramente sua intencionalidade

política, contrapondo o discurso da neutralidade no Curso de Direito.

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programa ou não37

.

O Programa é auto-gestionado38

, de modo que todas as decisões são tomadas de

forma coletiva e democrática, aplicando também nesses espaços a pedagogia freireana de

respeito à fala do outro, de horizontalidade, de exercício da escuta. Estas atividades de gestão,

juntamente com o trabalho de extensão no contato com sujeitos oprimidos, com contextos

sociais até então desconhecidos para a maioria dos e das extensionistas, constituem, no meu

entender, o segundo momento de formação política do Motyrum, permitindo um

amadurecimento pessoal, profissional e político, conforme será exposto no último tópico deste

capítulo.

3.2.2 Limitações

O Motyrum apresenta alguns limites na execução daquilo que pretende ser e

realizar. Dentre essas limitações está o desafio da interdisciplinaridade, da pesquisa e da

continuidade do trabalho.

O Programa ainda é formado majoritariamente por estudantes de direito (cerca de

quarenta e nove pessoas), com poucas participações de estudantes de outros cursos, que,

quando presentes, não permanecem até a finalização do trabalho por motivos diversos, como a

falta de orientação na área do curso a que está vinculado e, por consequência, a dificuldade de

instrumentalizar o trabalho de extensão com seus conhecimentos; a incompatibilidade de

horários (o Curso de direito funciona pela manhã e a noite, enquanto outros apenas a tarde); a

dificuldade de estudantes de direito, considerando o ensino monodisciplinar do Curso, em

37

O número de inscritos nessas formações sempre é superior ao número de vagas estabelecido pelos núcleos, o

que impossibilita a entrada de todos e todas. Porém, o curso de formação constitui em si uma atividade

diferenciada oferecida pelo Motyrum no âmbito do Curso de Direito, de modo que possibilita, de maneira geral,

colocar estudantes de direito em contato com essas discussões, ainda que não venham a integrar o Programa, e,

talvez, mudar um pouco a concepção do direito e a forma de enxergar os problemas sociais. Dessa forma, o

curso de formação política também é um instrumento de disputa da concepção do direito dentro do Curso, uma

vez que permite sensibilizar um maior número de pessoas, para além do que irá efetivamente integrar o

Programa. Os frutos colhidos da formação, portanto, não são apenas novos e novas extensionistas, mas também

estudantes de direito que possam compartilhar posicionamentos políticos semelhantes, ocupando outros espaços

dentro e fora da universidade (e disputando-os também), como o Centro Acadêmico do Curso, por exemplo. 38

A autogestão do Motyrum está ligada à existência de docentes que compreendam a metodologia e a

intencionalidade política do Programa e que se dediquem às atividades relacionadas, tendo em vista o contexto

do Curso de Direito da UFRN, com quadro docente formado majoritariamente por docentes em regime de 20h e

ainda com a forma de compreender o direito e a sociedade distinta do Programa. Diante disso, os e as

extensionistas vêm adotando esse modelo de administração autogestionada para conduzir o Motyrum, garantindo

que as atividades de extensão sejam realizadas de acordo com os princípios e métodos da educação popular sem

a interferência de professores com orientação política distinta. Funciona, sobretudo, como uma forma de defesa

perante o contexto do Curso, no sentido de evitar que possíveis confrontos com professores na condução do

Programa atrapalhem suas atividades.

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inserir conhecimentos dessas outras áreas nas ações de extensão, ainda que se tente; a

limitação de estudantes de outros cursos que chegam ao Programa quando nos primeiros

períodos da graduação, sem ter um acúmulo em sua área de atuação que ajude a realizar a

interação disciplinar39

.

A pesquisa também é deficiente quanto à sistematização das experiências e à

produção de textos e artigos científicos. A importância dessas atividades está justamente na

produção científica de algo que ainda é pouco estudado nas universidades, de publicizar

experiências, positivas ou negativas, que possam orientar ações de extensão semelhantes. A

sistematização, por sua vez, contribui principalmente na orientação do próprio Programa,

quando nos momentos de renovação, com a saída de extensionistas experientes e entrada de

novas pessoas, no sentido de permitir uma continuidade, de apresentar um material que

exponha o trabalho já realizado pelo núcleo até então sem a necessidade de parar o trabalho

para fazer isto, de não repetir os mesmos erros diante dos mesmos problemas.

Isto porque sistematizar as experiências vividas na educação e extensão popular

significa ordená-las e reconstruí-las a partir da interpretação crítica desse processo, do

exercício da reflexão sobre a prática teorizando-a, repensando-a e criando conhecimento

(HOLLIDAY, 2006). É pensar os limites, as intervenções necessárias para melhorar as ações.

Assim, a sistematização é necessária à continuidade das ações do Programa, como também à

reflexão teórica e à compreensão aprofundada da nossa prática (HOLLYDAY, 2006).

A produção científica também é importante para a questão da disputa no espaço

acadêmico, isto é, de confrontar um espaço que ainda impera o mito da neutralidade

científica. Consoante defende Bourdieu (1976), o campo científico é também um espaço de

“luta política pela dominação científica”, uma vez que os métodos e estratégias científicas

também correspondem a escolhas políticas, não há como dissociar uma da outra. Assim

sendo, ocupar o campo científico com produções acerca de experiências de extensão e

educação popular no direito é disputar um espaço cuja produção está voltada para análises da

lei, de discussões doutrinárias, de posicionamentos jurisprudenciais, ou seja, uma pesquisa

abstrata.

A ausência de orientação e participação docente interfere no trabalho dos e das

extensionistas, que têm que realizar todas as atividades administrativas e burocráticas do

39

Há uma gama de questões que envolvem a interdisciplinariedade no Motyrum que demanda uma avaliação

coletiva do grupo, envolvendo inclusive os sujeitos e as sujeitas de outros Cursos que vivenciam essas

dificuldades talvez mais que extensionistas do Curso de Direito. Assim, em razão dessa limitação de avaliar

individualmente algo que diz respeito a uma coletividade, me restringi a apontar alguns motivos que envolvem

os desafios da concretização da interdisciplinariedade do Motyrum, sem uma análise profunda do que isso

representa.

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Programa, como gestão de recursos, preenchimento de editais de financiamento, cadastro de

bolsistas e reserva de transportes, pensar o Motyrum em sua organização, na participação de

outros espaços, na organização das formações para extensionistas atuais e futuros (seleção); e

ainda pensar o Núcleo do qual participa, a organização, as atuações, as formações, as

atividades administrativas, a realização de eventos. Quer dizer, há uma sobrecarga sobre os e

as extensionistas, de modo que pouco lhes sobra tempo para refletir sobre as ações e

sistematizá-las em produção científica.

Em alguns momentos em que núcleos contaram com a orientação e a participação

docente, observo que existiu uma produção científica de artigos para apresentações em

congressos e eventos, até mesmo fora do país. Por outro lado, quem se coloca a produzir, com

ou sem orientação, sente na construção do trabalho, as dificuldades provenientes de uma

formação pouco voltada à pesquisa, de desenvolver, por exemplo, as técnicas necessárias, a

sensibilidade de pesquisador, a organização das ideias. É o que tenho sentido no decorrer da

elaboração deste trabalho, por exemplo.

Todavia, o próprio Motyrum não possui um planejamento e uma organização que

preze pela pesquisa, pela formação teórica, pela elaboração de artigos científicos. Há um

espontaneísmo neste aspecto, no sentido de que escreve quem sente vontade ou necessidade –

é uma questão mais individual que coletiva. As ações realizadas nas comunidades são

avaliadas pelo grupo em reuniões ordinárias (núcleo) e assembleias gerais (Programa) e se

perdem em atas de registro, sem uma sistematização e sem uma teorização do que foi e será

feito. As leituras são deficientes, de modo que pouco se conhece sobre obras, autores, textos

que abordam conceito de direito, ensino jurídico, extensão universitária, direitos humanos,

educação e temas específicos ao âmbito de atuação dos núcleos (moradia, questão agrária,

sistema penitenciário, dentre outros). Muitas vezes ocorre de serem priorizadas apenas em

alguns momentos específicos, como preparação para escolha ou entrada na comunidade ou

com o surgimento de uma demanda que exija um estudo aprofundado, mas pontual. Mais uma

vez, a questão aqui é mais individual do que coletiva, de modo que um ou outro ou outra

estudante que busca por si só, uma formação teórica no assunto.

Dessa forma, o Motyrum acaba vivendo um paradoxo ao pretender realizar uma

educação pautada na ação e reflexão que indica Freire (1987), ao mesmo tempo em que pouco

reflete sobre sua práxis interna e externa. No âmbito interno há falhas evidentes, sobretudo

quando observo a repetição dos mesmos erros em termos de organização e planejamento. No

âmbito externo, também existem outros obstáculos a essa prioridade, como as urgências que

as comunidades demandam na realização de tarefas. Essas são geralmente tidas como a

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prioridade dos núcleos, colocando em um segundo plano uma análise aprofundada do que se

pretende fazer.

O próprio formato do ensino no Curso de Direito, no que tange aos e às

extensionistas deste Curso, por um lado prioriza a sala de aula, exigindo a presença nas aulas

sob pena de reprovação, o estudo para provas e trabalhos avaliativos e a realização de artigos

científicos, prejudicando a dedicação às atividades do Programa, que já são numerosas40

. Por

outro, uma vez que é um ensino que pouco exercita a reflexão, sendo essencialmente de

natureza reprodutora, os reflexos dessa formação acadêmica incidem no Motyrum, que apesar

de representar um avanço no sentido de discutir criticamente o direito, o ensino jurídico e a

universidade, como um espaço do Curso de Direito da UFRN, apresenta as mesmas

fragilidades.

Contudo, apesar das limitações, posso afirmar que o Motyrum é capaz de realizar

seu propósito, ainda que timidamente, no que tange à formação jurídica. A possibilidade de

ler ao menos Paulo Freire (leitura obrigatória) para entender a importância da escolha de um

lado, o lado dos oprimidos e das oprimidas; de enxergar a relação do direito com poder, com a

sociedade e suas injustiças; de conhecer a fundo a vida de pessoas que vivenciam outra

realidade socioeconômica, já despertam nos e nas estudantes de direito um novo olhar sobre o

mundo, conforme pude apreender das entrevistas realizadas nesta pesquisa e será exposto

adiante.

É válido ressaltar ainda que o problema da orientação docente é ainda mais crucial

para o Programa no âmbito do Curso do Direito, pois há poucos professores e professoras em

regime de dedicação exclusiva e, desse universo, poucos e poucas possuem uma linha de

pensamento próxima a do Motyrum, de pensar o direito como instrumento de transformação,

de se apropriar da educação popular, de saber como funciona a assessoria jurídica popular.

Quer dizer, são docentes que não possuem experiência naquilo que o Motyrum se propõe a

fazer, a estar em comunidades continuamente, a realizar uma educação dialógica, a pensar

criticamente, fugindo, nestes aspectos, ao que é hegemônico no Curso de Direito – a extensão

distanciada da realidade ou de cunho assistencialista e a educação bancária e reprodutora de

leis.

Neste sentido, o Motyrum possui limitações que, além de existirem por questões

internas, também estão diretamente ligadas ao contexto de ensino jurídico no Curso de Direito

40

O Motyrum requer a participação de estudantes em reuniões ordinárias dos núcleos e em suas atuações em

comunidade, o cumprimento de demandas do núcleo e do Programa, a participação em assembleia geral e em

reuniões operativas, ambas envolvendo todos os núcleos.

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da UFRN, refletindo suas deficiências na formação jurídica, sobretudo nos aspectos da

interdisciplinaridade, da pesquisa e da orientação docente.

3.1.3 O Motyrum no Curso de Direito da UFRN

O Motyrum é hoje o maior Programa de Extensão do Curso de Direito. Conta com

cerca de sessenta e nove estudantes dos cursos de Direito, Serviço Social, Psicologia, Ciências

Sociais, Letras, Contabilidade, Pedagogia, Publicidade e Propaganda e Biologia, além de duas

advogadas e dois advogados populares.

Dentre os outros projetos de extensão, é o único que conta com a participação de

estudantes de outros cursos da UFRN e de universidades privadas. Também é o único a atuar

em comunidades de baixo nível socioeconômico de forma contínua41

. Há um outro projeto

que faz atendimentos pontuais e esporádicos em diferentes comunidades da cidade,

envolvendo estudantes que organizam a ação de extensão, ou seja, que compõem o projeto, e

estudantes que participam apenas da ação pontual, no local específico. Logo, não há um

contato permanente com os sujeitos e sujeitas do atendimento42

, como ocorre nas atuações do

Motyrum, que buscam estabelecer vínculos com essas pessoas.

O Motyrum também apresenta exclusividade quanto ao referencial teórico

pautado na pedagogia de Paulo Freire e que discute a perspectiva do direito crítico através de

pensadores como Roberto Lyra Filho, Boaventura de Sousa Santos e José Geraldo de Souza

Junior. Em razão dessas leituras, geralmente realizadas individualmente43

, os e as

extensionistas passam por um processo de politização que tem levado a outros espaços de

atuação, como movimentos sociais, partidos políticos, centros acadêmicos e diretórios

estudantis, e ao envolvimento nas manifestações estudantis da cidade, como o Fora Micarla44

41

A continuidade é uma característica da extensão popular, podendo ser definida como um “trabalho

permanente, continuado” (MELO NETO, 2004). A prática da extensão requer o movimento dialético da ação e

reflexão, da teoria e prática na produção do conhecimento socialmente útil. Assim, é um fazer que vai se

refazendo a partir da crítica, da reflexão, que produz transformação social. Por este motivo, não poderia ser uma

ação pontual, uma visita única a uma comunidade. É necessário esse contato permanente para viabilizar as

discussões, o processo educativo e criação do produto social. 42

Diferentemente do trabalho permanente, esse projeto que atua pontualmente não viabiliza o processo

educativo. É uma ação assistencial, que “resolve” o problema, sem uma discussão sobre sua origem e suas

implicações, que resolve unilateralmente, sem partir de uma construção coletiva e participativa de sujeitos e

sujeitas envolvidas. 43

Conforme já exposto, o Motyrum possui deficiências na formação teórica, mas formações pontuais apresentam

algumas possibilidades de leituras que acabam despertando a necessidade em cada extensionista,

individualmente, fazendo-o buscar esse empoderamento teórico. 44

Movimento que surgiu nas redes sociais a partir de uma indignação generalizada da sociedade natalense diante

da gestão da prefeitura, à época gerida por Micarla de Souza – as pesquisas apontavam um índice de 90% de

rejeição. Dessa forma, sindicatos, movimentos sociais, partidos políticos e estudantes secundaristas e

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e a Revolta do Busão45

.

Aliás, a participação do Programa nesses movimentos a partir do assessoramento

jurídico prestado pelo Escritório Popular tem proporcionado uma prática jurídica diferenciada

do que é proporcionado pelo Curso de Direito. Voltada para a instrumentalização do direito a

favor de grupos oprimidos, para uma perspectiva coletiva do direito, esta formação tem

proporcionado ao Motyrum uma maior visibilidade tanto na universidade quando na cidade.

Os movimentos têm reconhecido o Motyrum como um aliado nas reivindicações sociais,

sobretudo a partir da vitória judicial que marcou o Movimento Fora Micarla – um habeas

corpus impetrado em favor da liberdade das pessoas que estavam acampadas diante de uma

decisão judicial que ordenava a desocupação com o uso da força policial. A decisão favorável

foi proferida pelo Superior Tribunal de Justiça a poucos minutos da chegada da polícia ao

local, evitando que a repressão se concretizasse.

Assim, o Motyrum se apresenta como um projeto contra-hegemônico no contexto

do Curso em vários aspectos: o método da educação popular; a aproximação de vários

contextos sociais (privação de liberdade, periferias, assentamentos rurais, grupos indígenas); a

reflexão crítica sobre o direito; o desenvolvimento de uma postura dialógica e comprometida

com as classes populares; a possibilidade de intervir na realidade; o diálogo entre os diversos

saberes acadêmicos e populares com o direito; a “extensão às avessas” com a promoção de

eventos que dão voz ao oprimido e à oprimida, dentre outras peculiaridades que diferenciam o

Programa das demais ações de extensão hegemônicas no Curso e da educação jurídica

verticalizada, abstrata, acrítica e despolitizada que caracteriza o ensino nas salas de aula.

3.2 A experiência no Leningrado

Aqui me proponho apenas a relatar o trabalho desenvolvido no Leningrado – pois

que a reflexão sobre implicaria numa outra pesquisa – no intuito de melhor compreender o

tópico seguinte, em que analiso os efeitos deste na formação jurídica dos e das extensionistas

universitários, com apoio de instituições como a OAB/RN e o Conselho Estadual de Direitos Humanos e de

mandatos de vereadores e deputados, ocuparam a Câmara Municipal dos Vereadores de Natal (CMN) para

requerer a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CEI) com o intuito de investigar irregularidades

nos contratos de aluguéis da Prefeitura. A ocupação durou onze dias e terminou com um acordo assinado entre a

Câmara, ocupantes, Ministério Público Estadual, OAB e Conselho Estadual de Direitos Humanos para que os

manifestantes desocupassem a CMN, para a realização de uma audiência pública e para a instalação da CEI. 45

Movimento que também surge das redes sociais, composto essencialmente por estudantes, com a participação

de movimentos sociais e partidos políticos. Tem provocado a discussão sobre o transporte público em Natal em

razão da precarização do serviço e do trabalho de motoristas e cobradores em contraponto ao aumento

progressivo da passagem. Tem como reivindicação principal a melhoria do serviço público de transporte e a

transparência na sua gestão.

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participantes.

3.2.1 Núcleo Urbano e Leningrado

O núcleo urbano é um projeto pertencente ao Programa Motyrum que tem como

alvo de atuação comunidades urbanas, periferias e favelas de Natal.

São contextos marcados pela violação do direito à cidade pelo mercado

imobiliário, pela ausência de políticas públicas, pela exclusão social, o que leva à construção

de estereótipos como “lugar perigoso”, “de gente favelada”, “que só tem bandido”.

O Conjunto Leningrado vive esse contexto. Localizado na Zona Oeste de Natal,

entre os Bairros Guarapes e Planalto, o Conjunto se construiu a partir de um dos maiores

assentamentos de sem-tetos do país, organizado pelo Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e

Favelas (MLB) para a efetivação do direito à moradia.

Seguindo essa lógica, o dia 09 de abril de 2004 datou o início da ocupação de 200

famílias em uma área pertencente a essa zona, mais especificamente no bairro do

Guarapes, que mais tarde se tornaria o Conjunto Habitacional Leningrado,

considerado um dos maiores assentamentos de sem-tetos do país, que, a partir da

organização popular e da ação efetiva do MLB – Movimento de Luta nos Bairros,

Vilas e Favelas – se torna referência na luta e mobilização pelo direito à moradia no

país, se caracterizando como espaço de convergência de várias famílias oriundas de

favelas e bairros periféricos de Natal que moravam na rua, em barracos ou que

dependiam de aluguel, representando uma alternativa popular para cidadãos que

necessitam de uma moradia digna e se mobilizam diante dessa finalidade. (LIMA,

2011).

O projeto de construção de casas populares no Leningrado previa, além das casas

(cerca de quatrocentos e setenta), uma lagoa de captação, um posto policial, uma creche, uma

escola e um posto e saúde. Além de abrigar os e as ocupantes, o projeto buscava realizar um

“processo de desfavelização” de pessoas que moravam em outras localidades “caracterizadas

pela mesma espoliação socioeconômica, como bairros afastados, favelas, assentamentos e

demais ocupações natalenses” (MELO, 2013).

Porém, a conquista do direito à moradia não foi plena. Em monografia escrita

por Lucas Sidrim Gomes de Melo (2013), também integrante do Programa Motyrum, é

possível observar uma reportagem publicada pelo Jornal Tribuna do Norte, em que o

professor Ademir Araújo (UFRN) fala sobre o processo de desfavelização em Natal. Aqui

reproduzo um trecho citado pelo autor:

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Para o professor da UFRN, Ademir Araújo, doutor em Geografia Urbana, as favelas

não serão erradicadas de Natal com a simples remoção. Segundo Ademir, desde o

fim da década de 80 que o bairro Planalto recebe loteamentos com casas para

moradores de favelas, que sempre voltam ou para o local de origem ou para novas

favelas. “As favelas sempre voltam porque o problema real não é resolvido.

Primeiro não se dá condições para essas pessoas sobreviverem e depois não se dá

um novo uso para o terreno que antes abrigava a favela”, explica. (MELO apud

LIRA, Isaac. Planalto: desfavelização incompleta. Tribuna do Norte. Rio Grande do

Norte, 06/11/2009).

Em outra reportagem, o jornal Tribuna do Norte retrata a realidade de um casal de

moradores:

Os dois ganharam uma casa no Conjunto Leningrado, no Planalto, mas assim como

as outras famílias que moram na área, sofrem com a falta de oportunidade de

emprego e de acesso a serviços básicos, como saúde, educação e transporte. Só para

ir e voltar à região de Candelária, onde sempre cataram do lixo o produto reciclável

que vendiam para se sustentar, eles perdem cinco horas por dia em cima da

carroça.“Lá era tudo mais perto e o pessoal passava de carro e ajudava a gente, aqui

isso não acontece e tudo é mais difícil”, compara José Osvaldo. As duas filhas do

casal, de quatro e dois anos de idade, acompanham os pais na longa viagem da zona

Oeste à zona Sul de Natal, diariamente. “Nem tem onde deixar elas, nem vou deixar

sozinhas em casa. Então para onde a gente vai tem de levar”, explica a mãe.

(LOPES, Wagner. Ex-favelados fazem críticas ao Leningrado. Tribuna do Norte,

23/07/2010).

A casa, portanto, não é o que define o direito à moradia. Esse direito é efetivado

quando há condições de permanência, se vida digna, com acesso aos serviços públicos de

saúde, educação, segurança, transporte, além de condições de trabalho e lazer.

É neste contexto de ausência, de abandono estatal, nessa “ilha”, como se referiu

certa vez uma moradora46

, que o Núcleo Urbano se insere para discutir essa realidade e

intervir através da educação popular em direitos humanos.

3.2.2 A chegada do Núcleo Urbano

A partir de uma indicação do MLB, o núcleo optou, em 2010, por realizar o

trabalho de educação popular no Leningrado.

Para conhecer a comunidade, o grupo aplicou cem questionários47

em cem casas

46

A fala foi extraída de um vídeo encontrado no acervo do Programa que registrou a aplicação de questionários

no Leningrado, no intuito de conhecer os problemas sociais vividos pelos moradores e pelas moradoras. 47

O questionário foi estruturado em dez eixos: informações gerais (sexo, idade, estado civil, escolaridade,

ocupação, membros por família e idade e ocupação desses membros), moradia, organização (participação em

algum movimento, associação), transporte, saúde, segurança, educação, lazer e cultura, direito e disponibilidade

para o curso. O objetivo principal era investigar quais eram as necessidades da comunidade e a partir dos dados,

organizar um quadro de temas geradores para realizar o trabalho de educação popular.

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para traçar um diagnóstico e conhecer as dificuldades e as necessidades dos e das moradoras.

Durante cerca de cinco meses, estudantes de direito e uma estudante de serviço social

realizaram formações e estudaram para construir o questionário. Por mais três meses

realizaram visitas para aplicá-los, o que era feito por meio de conversas informais, de casa em

casa. Ao fim das visitas, mais três meses ocuparam os e as extensionistas na tarefa de

interpretar os dados.

Os dados revelaram quatro problemas principais. O primeiro era o transporte.

Nenhum ônibus circulava próximo ao Conjunto, de modo que era necessário andar dois

quilômetros e quinhentos metros para chegar à parada mais próxima. Somava-se a isso a

questão do acesso ao Conjunto: estradas de barro, esburacadas, que facilmente alagavam com

nas chuvas, e morros com vegetação fechada, ambos sem iluminação, propiciando a

incidência de ações criminosas, como assaltos, estupros e homicídios.

O problema se tornava ainda maior quando se tratava de jovens, crianças,

mulheres e idosos a transitar por esses acessos. Muitas crianças e adolescentes deixavam de ir

para escola em razão disso. As mulheres, vulneráveis ao estupro. Moradores e moradoras,

vítimas do rótulo “bandido”, confundidos com ladrões.

Percebemos, então, que a violação do direito ao transporte público estava

diretamente relacionada às dificuldades no acesso à educação, à saúde, à segurança, ao lazer,

à própria cidade.

O segundo problema estava na questão da saúde. A indeterminação sobre a qual

bairro o Leningrado pertencia ocasionava na recusa dos postos do Planalto e do Guarapes em

atender a comunidade do Leningrado. Somado a isso, o Serviço de Atendimento Móvel de

Urgência (SAMU) também se recusava a atender os chamados da comunidade, ora em razão

do acesso ora sob a suspeita de trotes.

A educação era outro problema enfrentado por todas as faixas etárias. As crianças

de até cinco anos aguardavam a abertura da creche localizada no Conjunto – Centro

Municipal de Educação Infantil (CMEI) Arnaldo Arsênio –, pronta e inaugurada, mas que não

funcionava por falta de autorização do Corpo de Bombeiros. As crianças e adolescentes do

ensino fundamental e médio não eram, em sua maioria, beneficiados pelo transporte escolar.

As condições para chegar à escola não eram as melhores: ir a pé até a escola ou até a parada

de ônibus, sujeitando-se aos perigos das estradas e morros ou, ainda, para terem acesso ao

direito à educação, passar a semana na casa de familiares em outros locais da cidade. No

entanto, eram comuns os relatos de que famílias perdiam o benefício Bolsa Família em razão

de a criança não frequentar a escola, justamente por essas dificuldades, por não ter o dinheiro

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da passagem.

A segurança também foi um problema bastante ressaltado. A construção de que a

comunidade era perigosa abria margem para diversas arbitrariedades da polícia. Troca de

tiros, confundir moradores com ladrões, chantagear familiares de presos, eram ocorrências

presentes.

É nesse contexto, para muitos dos e das extensionistas, inimaginável, que o núcleo

urbano passa a interferir.

3.2.3 O trabalho desenvolvido

Ao fim do ano de 2010, finalizado o diagnóstico, iniciaram os círculos de cultura,

chamados “encontros de cidadania”. Da constatação dos problemas expostos, o grupo

sintetizou quatro eixos temáticos principais, sem excluir outros mencionados no diagnóstico,

para desenvolver o trabalho: transporte, saúde, educação e segurança.

A ausência de organização na comunidade exigia do grupo o empenho na

mobilização de moradores e moradoras. Dessa forma, pendurou-se uma faixa próximo ao

local das atividades, um galpão utilizado para celebrações religiosas, reuniões e outros

eventos do Conjunto, indicando a realização dos encontros semanais nas tardes dos sábados,

dia e horário indicados pela própria comunidade. Além disso, pagávamos uma taxa para um

morador passar um carro de som anunciando a reunião e chamando a presença de todos e

todas. Em alguns dias era necessário passar de casa em casa.

Cada encontro precedia uma preparação, estabelecida em reunião semanal do

núcleo. Decidia-se o tema a ser abordado no encontro seguinte, a forma (dinâmica, conversa,

entre outras coisas), o mediador ou a mediadora responsável, o relator ou a relatora para

registrar as falas e, algumas vezes, quem reservaria o transporte e levaria o lanche. O grupo

era, portanto, autogestionado, decidindo democrática e coletivamente, e sem orientação

docente, sobre os encontros de cidadania, os rumos do núcleo, a necessidade de formações e

tudo mais que se fizesse necessário. Nessa mesma reunião, havia uma partilha de demandas

surgidas no encontro anterior, como enviar ofícios para Secretarias Municipais, Ministério

Público e demais órgãos públicos.

Os encontros, apesar de planejados, nem sempre ocorriam conforme o script. Uma

certa vez, em que o tema pensado para ser debatido era “cultura”, duas mortes haviam

marcado a semana da comunidade, de modo que se fez necessário abordar o tema da

segurança. A formação política realizada pelo Programa para selecionar novos e novas

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extensionistas, atrelada à observação da condução dos encontros pelos e pelas extensionistas

mais experientes, conferiam a sensibilidade de compreender aquele momento da comunidade

e respeitar sua autonomia. Dessa forma, o não cumprimento do planejamento era até mesmo

comentado com entusiasmo por extensionistas, pois acreditava-se que a autonomia estava

sendo resgatada dos tempos de ocupação, em que eram sujeitos e sujeitas de suas vidas.

A abordagem do tema saúde ocorreu durante vários encontros. Acompanhava-se a

necessidade da comunidade de expor suas dificuldades. Muitas vezes os e as extensionistas

que mediavam o encontro se limitavam a ouvir apenas. Compreendíamos aqueles momentos

como um desabafo de vozes sufocadas e a importância de nos dedicarmos a ouvi-las e mostrar

interesse. Eram muitos os relatos de negligência, recusa de atendimento, descriminação, falta

de medicamentos, profissionais, estrutura.

Dessas reuniões, surgiram algumas demandas: primeiramente, mediar um diálogo

com a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) para buscar atender a uma questão mais urgente,

que era definir um posto de saúde para atendimento. Enviamos ofícios solicitando

esclarecimentos sobre a situação instalada e agendamento de reuniões. E então, lhe dando

com o Poder Público, passamos a entender melhor o que era o descaso relatado por moradores

e moradoras do Leningrado. Sem resposta, apresentamos à comunidade a possibilidade de

acionar o Ministério Público (MP). Aceita a sugestão, noticiamos formalmente o caso ao MP,

que abriu um inquérito civil para apurar as afirmações.

No entanto, a denúncia legítima deveria vir de quem conhece bem a própria

realidade. Dessa forma, o núcleo e a comunidade solicitou a presença da Promotora de Saúde

em uma reunião a ser realizada no próprio conjunto para que ela se deparasse diretamente

com moradores e moradoras relatando os absurdos do descaso com a saúde, sobretudo de

idosos, crianças e pessoas com deficiência, que legalmente possuem prioridade no

atendimento médico48

. Uma das frases mais marcantes nesses encontros veio de uma

moradora e integrante do MPB: “Aqui nós não temos plano de saúde, temos plano de morte”.

A intervenção do MP fez a Secretaria Municipal de Saúde adotar uma medida que

garantisse o atendimento médico no Conjunto Leningrado. Dessa forma, um acordo foi

estabelecido para que a cada quinze dias um carro da Prefeitura levasse quarenta pessoas nos

turnos da manhã e da tarde para atendimento no posto de saúde mais próximo, para

atendimento ginecológico, pediátrico, clínico geral. Além disso, a SMS deveria buscar

terrenos para construir o posto de saúde previsto no projeto de construção do Conjunto.

48

A prioridade no atendimentos desses grupos são estabelecidos pelo Estatuto do Idoso, pelo Estatuto da Criança

e do Adolescente e pela Lei nº 10.048/00, respectivamente.

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A temática da educação se processou de maneira similar. Os contatos com a

Secretaria Municipal de Educação (SME) foram infrutíferos, de modo que recorremos

novamente ao Ministério Público, instaurando-se outro inquérito para apurar o não

funcionamento do CMEI, o não oferecimento de transporte escolar e a ausência de escola no

Conjunto. O inquérito, por sua vez, surtiu efeito já na primeira intimação da SME, que de

pronto pôs o CMEI em funcionamento.

Os encontros com a Promotora de Educação ocorreram tanto na comunidade

quanto na sede do MP. Um Termo de Ajustamento de Conduta foi assinado pela SME para

garantir o transporte escolar de crianças e adolescentes, o que ocorreria mediante ao auxílio da

comunidade para mapear as escolas que concentram maior número de estudantes do

Leningrado. Quanto à questão da construção de uma escola no conjunto, ficou a promessa da

construção de um anexo no local do Galpão, onde crianças seriam ensinadas durante o dia e

jovens e adultos à noite.

O problema do transporte foi o mais difícil de resolver e ao mesmo tempo o mais

envolvente. Nos encontros para discutir a mobilidade das pessoas do Leningrado, também

estavam presentes moradores e moradoras de conjuntos vizinhos, que também eram afetados

pelo mesmo problema. O convite era feito pela própria comunidade. Além disso, a discussão

não necessitava da nossa mediação, os atingidos e as atingidas discutiam, conduzindo a

reunião, os melhores caminhos para trafegar o transporte público. Foram os encontros de

maior participação da comunidade.

Também encontramos alguns obstáculos no diálogo com os setores relacionados –

a Secretaria Municipal de Mobilidade Urbana (SEMURB) e a Secretaria Municipal de Obras

Públicas (SEMOPI) – e na indefinição, no próprio Ministério Público, sobre a competência da

Promotoria adequada a atuar no caso, se do Consumidor ou do Meio ambiente. Sem a

intervenção do MP, as referidas Secretarias estavam sempre jogando a responsabilidade uma

para outra. A SEMURB alegava a condição das estradas de acesso, dizendo que deveria se

esperar a conclusão das obras para asfaltar uma das vias para então tomar uma providência. A

SEMOPI estava sempre fornecendo prazos para conclusão, que nunca eram cumpridos.

Após a finalização das obras que asfaltaram e iluminaram uma das vias de acesso

ao Leningrado, foram mais seis meses para entrar o primeiro ônibus circular no Conjunto. Foi

a conquista mais saboreada pelos moradores e pelas moradoras, como também por

extensionistas. Sabíamos, naquele momento, o quão significativo era entrar, sentar e percorrer

alguns metros dentro do ônibus, ver o Leningrado de suas janelas, pedir parada e lá descer.

Alguns meses depois, com a finalização do trabalho, tivemos a notícia de que mais três ônibus

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passaram a incluir o Leningrado na rota e mais, quando uma das linhas estava sendo

ameaçada de ser retirada, a comunidade organizou um protesto, bloqueando ruas, para evitar

que a ameaça se concretizasse.

O tema da segurança não foi encaminhado em razão da dificuldade e do

despreparo dos e das extensionistas em abordá-lo. Apesar de ter sido discutido em alguns

encontros, não soubemos como mediar este problema dentro da comunidade, sobretudo diante

da vulnerabilidade a que a comunidade estava submetida às práticas de corrupções de alguns

grupos policiais.

Com o encaminhamento das demandas, a frequência dos encontros foi reduzida,

realizando-se a cada quinze dias para acompanhar o andamento. A metodologia do encontro

foi modificada nessa ocasião, de modo que se resumiam a repasses das comissões e

encaminhamentos para o que ainda estava pendente. As comissões eram divididas nos três

eixos principais de atuação – saúde, educação e transporte –, sendo formadas por

extensionistas e pessoas do Leningrado. Nesta ocasião, apenas participavam os moradores e

as moradoras que se envolveram efetivamente com o trabalho ao longo do ano.

A finalização do trabalho em dezembro de 2011 ocorreu em função do entender

do núcleo que havíamos esgotado nossas contribuições para com a comunidade. A saída foi

marcada por uma grande festa, em que extensionistas expuseram homenagens com vídeos de

depoimentos dos e das estudantes que participaram do trabalho falando sobre a importância da

relação com a comunidade, uma poesia e um cordel, além de uma mística em que construímos

uma bandeira (anexo 2) em que estava escrita a palavra “luta” com nossas mãos,

simbolizando o vínculo e o compromisso firmado a partir do trabalho desenvolvido. A

comunidade preparou um lanche para nós e falou um pouco da importância do trabalho nas

suas vidas e para o Leningrado.

Assim, fechamos o ciclo da extensão no Conjunto Leningrado, do qual tanto

comunidade quanto extensionistas puderam colher frutos. Algumas transformações visíveis

podem ser percebidas diante das melhoras dos serviços públicos reivindicados, agora,

passamos a analisar quais as transformações realizadas na formação jurídica dos e das

estudantes de direito a partir do processo educativo de intervenção na realidade do

Leningrado.

3.3 A contribuição da extensão popular no Leningrado na formação jurídica dos e das

extensionistas

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Conforme venho defendendo ao longo do presente trabalho, a extensão popular

oferece contribuições à formação jurídica, sobretudo nos aspectos delineados nesta pesquisa –

na formação dialógica, interdisciplinar e horizontal. Desse modo, a partir do relato acima,

analiso a seguir como as atividades realizadas no trabalho de extensão desenvolvido no

Leningrado interferiu na formação jurídica dos e das extensionistas participantes – as

habilidades desenvolvidas, a visão do direito, as mudanças, entre outras, que têm relação

imediata com a interdisciplinaridade, a horizontalidade e a dialogicidade.

3.3.1 Metodologia

Para investigar como a experiência com a extensão popular no Leningrado

interferiu na formação jurídica dos e das estudantes de direito, realizei uma entrevista

individual com nove das quatorze pessoas que à época eram estudantes de direito e que

participaram do projeto no ano de 2011.

O recorte do ano de 2011 se justifica primeiramente por opção própria de realizar

esta pesquisa a partir das vivências pessoais, isto é, analisar o diferencial da formação jurídica

do Motyrum partindo também da minha experiência na Graduação do Curso e no Programa,

uma vez que passei a integrá-lo em 2011. O segundo motivo é limitar também o período no

qual se realizaram os círculos de cultura, pois, como já exposto, em 2010, as atividades do

núcleo se concentraram no diagnóstico, formulando, aplicando e interpretando questionários.

Logo, a análise tem como objeto a atuação do Núcleo Urbano apenas em 2011 e as atividades

realizadas neste espaço de tempo.

As entrevistas para o presente trabalho se deram a partir de um questionário

(anexo 1) com seis perguntas abertas sobre a experiência e os seus efeitos na formação de

cada entrevistado e entrevistada, mas com foco nas variáveis desta pesquisa – o diálogo, a

interdisciplinaridade e a horizontalidade.

Procurei as quatorze pessoas que participaram do trabalho à época e que eram

estudantes de direito, pois duas eram de outros cursos, e entrevistei nove, uma vez que as

demais estavam fora da cidade no período das entrevistas. Dentre as pessoas entrevistadas,

sete são estudantes da graduação, uma é estudante do mestrado e uma é advogado popular.

Além desta ferramenta, também busquei analisar vídeos produzidos pelo núcleo

ao fim do trabalho, em 2011, em que cada extensionista fala para o Leningrado como esse

contato afetou suas vidas, pessoal e profissionalmente.

Neste sentido, apresento a seguir as análises realizadas a partir das minhas

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reflexões e das respostas de colegas acerca das vivências experimentadas no Leningrado e

proporcionadas pelo Motyrum, em que juntos pudemos descobrir a “boniteza de ser gente”,

como diz Paulo Freire (1996, p. 60), isto é, de lutar com os oprimidos e as oprimidas por um

mundo mais justo e sem opressões.

3.3.2 Encharcando de realidade

Expus anteriormente, em linhas gerais, como o Motyrum se situava no contexto

do Curso de Direito da UFRN enquanto único projeto de extensão pautado na educação

popular, que tem em sua práxis o contato com grupos oprimidos do nosso Estado, contato

contínuo, que forma vínculo e que envolve o e a extensionista neste processo que busca a

emancipação desses grupos, desses sujeitos.

Nas entrevistas realizadas, este foi o ponto central apontado pelos e pelas colegas:

a oportunidade que o Motyrum confere aos e às estudantes de direito de conhecer a fundo o

contexto de vida de pessoas que são submetidas diariamente às violações de direitos humanos.

Eu acho que o principal é o contato da realidade, que é muito diferente. Se você

passou toda a faculdade só estudando para prova sem participar de nenhum projeto

de extensão... de extensão mesmo, de ir pra comunidade. Sem querer citar nomes,

mas tem projeto que você só vai uma vez numa comunidade, e depois de dois meses,

você vai em outra comunidade. Então você não consegue em um dia ter esse contato

para se apropriar daquele problema, para ver que aquilo ali não tá certo, se sentir

mexido com aquela realidade. Em um dia você não vai sentir da mesma maneira

como você sente num programa que você passa um ano atuando todos os sábados,

vendo as mesmas pessoas, vendo uma evolução ou não daqueles problemas que são

colocados todos os sábados ali. Eu acho que o principal é esse choque de realidade

que a pessoa tem, pelo menos que eu tive quando eu comecei a participar do

programa e comecei a visitar a comunidade. (T. S. C., estudante de direito, 2014).

Na fala acima, é possível perceber uma avaliação crítica do ensino e de projetos

de extensão no Curso de Direito, ambos por não possibilitar conhecer realidades sociais

diferentes, o mundo concreto. O conhecimento mencionado se refere tanto ao contato

constante, de acompanhar com frequência os problemas trabalhados quanto à formação de

vínculo, que permite o processo de sensibilização, como diz, de “se sentir mexido”. Já é

possível aqui perceber uma diferença do Motyrum para as demais atividades realizadas no

âmbito do Curso de Direito.

A partir desse contato, foi possível vivenciar o quotidiano das pessoas, em suas

dificuldades de acessar direitos básicos. Além de ouvir os relatos, pudemos enxergar na

prática, o dissabor que os moradores e as moradoras experimentavam na busca de

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atendimento em políticas públicas, ou seja, na realização de direitos, aquilo que um curso de

direito dificilmente é capaz de fazer. É como se falasse de algo que não se conhecesse ou que

existisse plenamente, portanto, sem levar em conta como o direito se realiza no contexto de

desigualdades.

Tinha sido um sábado que eu e outras pessoas estávamos desde manhã (...) Aí M.,

uma das crianças mais quietas, deu de cair com a cabeça no banco e machucou,

cortou na testa. E aí foi mais uma experiência de aprender como o Leningrado, como

as pessoas têm seus direitos violados no Leningrado. Porque a gente saiu com M. e

de carro, que já é uma facilidade muito maior do que se fosse de ônibus e tudo mais,

e a gente foi bater em cinco hospitais para ver onde é que M. ia ser atendido para

fazer os pontos na testa (...). Sem brincadeira, foram uns cinco hospitais até chegar

lá na Zona Norte, onde ele foi ser atendido. (...) Isso foi muito simbólico, né?,

porque tudo que a gente vinha discutindo todo sábado, naquele momento a gente

viu, né?, quais as dificuldades que vocês passavam. (N. B. B., advogada popular,

2011).

Conforme apontado, é a oportunidade de sentir a justa-raiva que líamos nas obras

de Paulo Freire, de se indignar, de vivenciar junto com os moradores e moradoras do

Leningrado as dificuldades do acesso aos serviços públicos de saúde, educação e transporte,

de perceber o descaso do Poder Público, como dito por um morador em uma visita do núcleo

à sua casa: “só tomara que um dia eles (gestores municipais) lembrem que aqui mora gente”.

Quer dizer, perceber como era desumana aquela situação.

A indignação diante de situações como essa era importante no desenvolvimento

do trabalho. Era como um combustível, era o que reforçava nos e nas extensionistas a sua

responsabilidade perante a comunidade e o núcleo, o seu papel na sociedade, de buscar uma

mudança que não permita violações como essas. A partir dessa experiência de se indignar, foi

possível o envolvimento com a realidade do Leningrado, envolvimento que garantia o

comprometimento individual e coletivo com as atividades que eram realizadas e com os

compromissos assumidos. Pois, como exposto no tópico anterior, haviam demandas,

distribuídas coletivamente entre extensionistas e pessoas do Conjunto, que implicavam numa

responsabilidade perante a comunidade.

Na pesquisa, foi possível identificar em todas as falas a lacuna do Curso quanto à

formação humanista e próxima da realidade concreta. A crítica à formação estritamente

formal e tecnicista, que parte de hipóteses, de casos abstratos para ensinar o direito, foi

unânime. Logo, o papel do Motyrum, nesse contexto, é de suprir esta lacuna, oferecendo a

possibilidade de conhecer a vida fora dos muros da universidade, como foi possível verificar

nos seguintes trechos de entrevistas:

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Quando eu digo encharcar de realidade, para o ensino jurídico, eu acho que tenta

corrigir uma deformação, porque através da extensão universitária, você tenta

construir um diagnóstico junto com aquela comunidade, um diagnóstico de alguma

violação naquela comunidade e você vai buscar resolver em cima de medidas

possíveis e não de coisas imaginárias, fictícias, e realmente vai atender às

necessidades. (G.. B. S., estudante de direito, 2014).

Acho que a experiência no Motyrum principalmente me serviu assim para perceber

que o ensino do direito unicamente em sala de aula é insuficiente. O direito trabalha

muito com hipóteses, com situações que você tem que adequar à norma, à lei... mas

a sociedade tem vários tipos de situações. E assim, a gente vive um tipo de situação,

as pessoas com que a gente teve contato na comunidade teve outras completamente

diferentes. Então é abrir o leque de interpretação do direito, diferente daquilo que

você vê unicamente na sala de aula. E você consegue notar que aquilo que é

ensinado em sala de aula é ínfimo em relação à grande violação que ocorre fora

daquele mundo que você tá ali, de universidade, de classe média. (T. L. V. B.,

estudante de direito, 2014).

Ao passo que criticam o ensino jurídico do Curso, essas pessoas reconhecem a

importância do aprendizado junto com a comunidade, no mundo real; de aprender a partir do

diálogo com outras pessoas e com outra realidade social. Percebem a limitação da

universidade e também de sua visão de mundo na posição socioeconômica que ocupa na

sociedade e, portanto, a necessidade de transpor esses limites, essas separações do mundo

universitário e o mundo do restante da sociedade, do mundo da classe média e do mundo do

povo pobre, para compreender o direito e conhecer as relações sociais.

Esse conhecer gerou, por sua vez, um rompimento, que foi além das barreiras

físicas de ir para uma periferia da cidade numa ação de extensão. O rompimento é também do

mundo aos quais muitos do núcleo estavam habituados, em que as desigualdades sociais e

seus efeitos eram, para a maioria desses e dessas estudantes, realidades distantes. No

Leningrado, elas tinham nome, cor, classe social, endereço, história, o que permitiu um

processo de sensibilização, de humanização e de reflexão crítica sobre o mundo e sobre o

direito, que gerou nos e nas estudantes de direito a vontade de mudar aquela realidade, que

permitiu sonhar junto com a comunidade um Leningrado onde habite a dignidade. Era o que

nos movia e nos envolvia na busca por mudança.

O contato com a comunidade muda completamente o seu mundo. Tipo, você chega

completamente ao extremo do seu mundo e rompe aquelas paredes, tá ligado?

Rompe e é um mundo completamente diferente. O contato com a comunidade,

principalmente com movimentos sociais, que o Motyrum tentou fazer por um bom

tempo e acho que ainda tenta, muda o mundo de uma pessoa que tem origem de

classe média, de uma pessoa que vem de escolas particulares, muda o mundo, a

concepção do direito. Esse extravazar de mundo, você chegar no extremo do seu

mundo e mudar completamente sua visão da realidade faz necessariamente que sua

concepção de direito se transforme, o que você quer fazer com o seu curso, com o

seu conhecimento, transforma também, né? (M. H. S. M., estudante de direito,

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2014).

Sentir a comunidade levou consequentemente a sentir o mundo. Isso se tornou um

acontecimento ainda maior na vida dos e das estudantes em razão de sua origem de classe e

em condições socioeconômicas que lhes permitem acesso aos direitos humanos da saúde,

educação, segurança, lazer, transporte; como também em razão do processo educativo nas

escolas particulares, como aponta o entrevistado, que não se dava em diálogo com um mundo

concreto, mas puramente abstrato e restrito à realidade de classe média, aos seus problemas,

às suas visões de mundo.

Ter esse contato, ver que existem pessoas, não são dados estatísticos, são pessoas

que não têm coisas básicas que graças a Deus eu tenho... isso me ajudou a tentar

mudar o mundo, a tentar deixar um pouco mais igualitário. Talvez, se eu não tivesse

vivenciado o que eu vivenciei, ter estudado os textos que a gente compartilhava,

talvez eu não via a importância disso, que isso tem para a sociedade. A gente acha

que tem ideia, mas não vê a importância disso. Eu me sinto privilegiada por ter

passado pelo Lições. (I. A. F., mestranda, 2014).

Diante disso, observo que este processo da sensibilização permite o abandono de

algumas concepções de mundo que faziam parte de nossas vidas até então, como a vaidade de

ser estudante de direito de uma universidade pública e prestigiada, por exemplo, como o

individualismo de se preocupar apenas com os próprios problemas, como os estereótipos

construídos em nossa roda de convívio social com relação às pessoas e aos bairros da cidade.

Quer dizer, o nosso olhar é modificado para enxergar aquelas pessoas da comunidade como

pessoas iguais a nós, merecedoras de respeito e atenção; como pessoas com histórias de vida

que denotam um aprendizado; com conhecimento da realidade até maior do que nós tínhamos

e com sabedoria para enfrentá-la no dia-a-dia.

O método de aprendizagem a que a maioria dos e das extensionistas foi submetido

na maior parte de suas vidas não permitia essa sensibilização, essa humanização e esse

aprendizado fora dos livros didáticos e das aulas expositivas. Chegamos à universidade

pública estudando assuntos orientados para uma prova de vestibular, para conseguir nossa

vaga e cursar a nossa graduação. A experiência do Motyrum foi um “choque de realidade”

também nesse sentido, de vivenciar uma outra forma de se educar, em diálogo com pessoas e

com o mundo, descobrindo e não repetindo algo que fora dito, exercendo a liberdade de criar

e de pensar criticamente. Como também de superar o excesso de abstração do ensino restrito

às salas de aula – como costuma ser todo o caminho de formação educativa desde criança e da

mesma forma com que se apresenta o ensino do direito – pisando no chão, visitando postos de

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saúde, indo de casa em casa para conversar com as pessoas e ouvi-las, vivenciando o

tratamento hostil ou desinteressado das autoridades públicas, percebendo o funcionamento e

as limitações das instituições jurídicas. Enfim, compreendendo a vida das pessoas.

As contradições saltavam aos olhos do e da extensionista ao ouvir e ver as

violações de direitos. Surgiu então uma gama de questionamentos sobre o direito ensinado em

sala de aula, a sua aplicabilidade. Por que o que está na lei não se concretiza? Por que não se

concretiza apenas para aquelas pessoas e outras em semelhante condição social? Por que

diante das violações de direitos os órgãos judiciários não são capazes sozinhos de saná-las?

Era necessário aprender com a comunidade o que fazer na prática, entender o sistema de

serviços públicos com quem era estudante de serviço social, ler textos e livros que não

estavam nas indicações bibliográficas dos professores, mas buscar na pedagogia, na

sociologia, na gestão de políticas públicas, as respostas para essas perguntas.

Os alunos que se propõem a participar do programa com certeza têm um choque

quando chegam na comunidade, mesmo quando começam as leituras e depois

quando chegam na comunidade pra atuar, eu acho que é desconstruído tudo aquilo

que você viu em sala de aula. Porque você estuda uma coisa e na realidade você vê

que aquilo que você tá estudando não tem aplicabilidade, pelo menos não pra todo

mundo, pra determinadas camadas sociais. Você vai ver que aquilo ali não vale

nada, claro que é importante você estudar doutrina, a lei, mas só isso não é

suficiente. (T. S. C, estudante de direito, 2014).

O contato com a realidade levou, portanto, à percepção da discrepância entre

teoria e prática, entre a lei e sua viabilidade e eficácia na realidade social, no sentido de que

ambas devem caminhar juntas, são necessárias ao conhecimento.

Segundo Pedro Demo (1984, p. 106), enquanto a teoria é abstrata e generalizante,

a prática particulariza a partir dos casos concretos do mundo real; enquanto a teoria busca

objetividade e pureza, encobrindo sua ideologia ao distanciar-se do concreto, a prática é em si

claramente uma opção política, de “sujar as mãos” para fazer história. Porém, como pontua o

referido autor, ambos se relacionam numa dialética, na qual uma necessita da outra, pois a

teoria sem prática é mera abstração e a prática sem teoria é mero ativismo, isto é, a

incapacidade de fazer autocríticas, de rever as próprias práticas.

Neste sentido, é despertada a importância do fazer prático no processo de

aprendizagem, seja do saber acadêmico, seja do conhecimento de mundo. É o que dá sentido à

teoria, ao direito. É o que dialoga com a realidade, que permite construir refazer a teoria e

construir conhecimento novo (DEMO, 1984, p. 111).

Importante também perceber que essa relação entre teoria e prática no trabalho se

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dava em duas situações:

a) partir da prática para buscar a teoria, isto é, a partir das discussões em

comunidade qualificarem a formação em certos assuntos ou mesmo analisar as ações

desenvolvidas, e b) reformular a teoria já estudada, por vezes em sala de aula, após a

experiência em comunidade. (OLIVEIRA; TORRES, 2013).

Esse movimento dialético foi essencial para repensar o direito, numa perspectiva

que não é algo que está posto, pronto e acabado, tampouco pode ser tido como expressão da

lei e como produto apenas estatal, consoante era apresentado em sala de aula. A vivência na

comunidade fez com que enxergássemos o direito como instrumento de transformação social,

construído socialmente por uma diversidade de pessoas a partir das lutas por direitos, de

saberes e experiências diferentes que somam nesse processo.

É certo que a teorização da prática consistiu numa fragilidade do trabalho

desenvolvido, como analisado anteriormente. Porém, ainda que sem o devido aprofundamento

teórico, sem as devidas reflexões e sistematizações, o movimento de buscar a prática e, a

partir dela, questionar teorias do direito e repensá-las construiu um conhecimento novo, que

dentro das limitações da formação jurídica e do Programa mesmo, aos poucos tem se

transformado em trabalhos acadêmicos, como é o caso desta monografia, desenvolvida a

partir das minhas reflexões e de entrevistados e entrevistadas sobre a experiência vivida no

Leningrado.

Outro dado sobre a relação entre teoria e prática espantou e marcou, como dito por

uma estudante entrevistada:

Quando a gente foi analisar a resposta do questionário, pouquíssimas pessoas tinham

ouvido falar em Constituição, e as poucas que conheciam não sabiam dizer o que

era. Um grupo de pessoas que é totalmente prejudicado pelo não conhecimento da

Constituição. E outra coisa que me chamou atenção na época foi o conhecimento da

defensoria pública, por exemplo. O público alvo da defensoria tava ali, mas não

sabia que existia a defensoria nem que tinha o direito de procurá-la. Então é uma

realidade totalmente paralela ao que você vê em sala de aula. (T. S. C, estudante de

direito, 2014).

A estudante se refere a dados coletados no processo de diagnóstico social do

Leningrado, realizado pelo núcleo em 2010, que aponta que apenas 17% (dezessete por cento)

do universo de moradores e moradoras entrevistadas conheciam a Constituição Federal, e que

62% (sessenta e dois por cento) não conheciam a Defensoria Pública49

.

49

Dados não publicados, encontrados no acervo do Núcleo.

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Dessa forma, esse descompasso entre o direito ensinado em sala de aula e o direito

vivenciado no Leningrado conduziu o e a estudante para uma mudança na percepção do

direito e de ensino jurídico, permitindo também situar essas contradições dentro de um

sistema maior, de um jogo de interesses políticos e econômicos que contribuem para a

existência daquele contexto de opressão, de negação em que vive a comunidade. Ou seja, o

contato permitiu uma visão total – nas suas incoerências e incompatibilidades e não apenas de

um ponto de vista – da sociedade e do direito; e enxergar a possibilidade de utilizar o direito

como instrumento de transformação social e não apenas como manutenção do que está posto.

Porém, essa mudança na forma de perceber o mundo e o direito e essa necessidade

de transformação social, que serão abordados adiante, foram possibilitadas pela forma como

se construiu essa relação entre Motyrum, extensionistas e Leningrado, isto é, a partir de uma

relação dialógica, horizontal e interdisciplinar, que permitiram o envolvimento dos sujeitos

deste processo, o empoderamento do direito pela comunidade e por estudantes, conforme será

analisado a seguir.

3.3.3 A dialogicidade

“Educador é quem ouve o educando. Já o

professor é quem dá sua opinião sem querer

escutar.” (Morador do Leningrado, 2011).

As entrevistas apontaram que na experiência de extensionista do Motyrum, o

diálogo se fazia tanto na relação com a comunidade quanto nas relações dentro do núcleo e do

Programa, entre estudantes.

Primeiramente, na organização e autogestão do núcleo e do Programa, havia uma

preocupação em ouvir em silêncio a fala do outro e da outra e respeitá-la, discordasse ou não.

Assim, sempre buscávamos aplicar a pedagogia freireana também na nossa convivência

enquanto grupo como uma forma de exercitar essa prática da escuta e do diálogo para atuar

nas comunidades, sobretudo por não ser essa a conduta pela qual fomos educados nas escolas.

No projeto a gente discutia muito e era muito importante. Toda discussão que a

gente tinha, sobre textos, sobre as questões mesmo da comunidade... eu achava

muito importante, porque era um momento que a gente se resolvia como grupo, né?.

A gente discutia, cada um dava a sua opinião, crítica e tudo, e no fim das contas a

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gente chegava a um consenso, não era que uma opinião se sobrepusesse a outra, mas

no final todo mundo tinha se acrescentado alguma coisa. (R. T. P., estudante de

direito, 2014).

Essa maneira horizontal de conduzir as tarefas do núcleo, de discutir de forma

dialógica, provoca mudanças no processo de aprendizagem, quando o ou a estudante se

percebe sujeito ou sujeita da ação, do trabalho, podendo desenvolver sua criatividade e seu

pensamento crítico. As discussões realizadas em grupo ocorriam a partir da liberdade de falar

e do respeito ao ouvir, sem interromper, por exemplo. Como aponta a entrevistada, todas as

opiniões eram consideradas e o grupo determinava a partir dos debates o que fazer e como

fazer.

As demandas eram distribuídas de maneira horizontal, na maior parte das vezes,

por iniciativa individual de cada extensionista, ciente de seu compromisso e responsabilidade

com o grupo e com a comunidade. Buscávamos ainda a igualdade, prezando por não

sobrecarregar uma ou outra pessoa. Direitos e deveres se apresentavam de forma equilibrada

na organização do núcleo. Dessa forma, pudemos desenvolver a capacidade de trabalhar

coletivamente, sem tomar as coisas para si ou as deixando pesar sobre o ou a colega.

É interessante observar que é totalmente o oposto do que vivenciamos em sala de

aula, em que estudantes não possuem autonomia nem liberdade para falar. São poucos os

direitos, e muitos os deveres – de ouvir, não contestar, reproduzir opiniões alheias,

memorizar, não faltar, ser pontual, dentre outras.

No Curso de Direito, por exemplo, há casos notoriamente conhecidos pela

comunidade estudantil de docentes que frequentemente não comparecem às aulas. Embora

estudantes possam denunciar pelo sistema SIGAA, tamanha é complacência instalada que,

ainda que diante de denúncias, não são tomadas providências cabíveis. Enquanto isso, as

faltas são cobradas com rigor aos e às estudantes, que correm o risco de reprovar em

disciplinas, caso supere o limite estabelecido.

O ambiente da sala de aula é protagonizado pela figura docente, que utiliza todo o

tempo do encontro narrando, expondo, depositando conteúdos, falando de cima para baixo. É

quem determina o conteúdo da disciplina, a quem faculta dar voz ao ou à estudante ou não,

quem muitas vezes impõe o próprio pensamento como padrão de resposta em atividades

avaliativas.

Além disso, a sala de aula apresenta uma perspectiva individualista, perceptível no

modelo preponderante de avaliação (individualizado) e na própria organização do espaço –

cadeiras individuais, separadas e dispostas para a posição ocupada pelo ou pela docente, sem

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a possibilidade de contato entre si.

No ambiente do Leningrado, a relação dialógica permitia um processo de

aprendizagem efetivo, diferente do que estávamos habituados em sala de aula, da

memorização, do absorver, dos casos abstratos. Efetivo porque, para nós, estudantes, o direito

era aprendido na prática, a partir de problemas concretos, que exigiam de nós um raciocínio

jurídico para apresentar soluções para além do universo restrito ao que se tem

tradicionalmente como jurídico propriamente dito (elementos isolados em uma realidade

própria, cuja interpretação simplificada os permite caber nas disposições estritas da lei). E não

era qualquer prática. Era uma prática realizada no diálogo de saberes, de experiências, de

realidades distintas, que em comunhão permitia a capacidade de compreender a complexidade

social.

Acho que é muito mais útil a forma como a gente aprende na prática. Porque, assim,

aqui a gente tem a formação técnica, né? E então, a gente aprende uma coisa em

abstrato e imagina como deve ser. Decora aquilo ali e pronto. Um dia, a gente acha

que vai utilizar ou não. Mas lá, a gente vivencia, lida com problemas reais, a gente

aprende a improvisar, a pensar, porque aqui a gente não pensa, né? A gente só

absorve, decora alguns conceitos, regras... e lá não. Quando a gente se deparava com

algum problema a gente tinha que raciocinar uma solução prática, e que fosse útil

para a comunidade. (R. T. P., estudante de direito).

Porque nestes momentos também nos era possível perceber as limitações das

normas jurídicas, da litigância e das instituições do direito, como o Ministério Público e a

Defensoria Pública, para atender às necessidades da comunidade; e como isso se relaciona

com o modelo de sociedade em que vivemos. Quer dizer, a prática extensionista colocava em

cheque a perspectiva positivista e estatal do direito ensinada em sala de aula ao passo que

questionávamos sua aplicabilidade no mundo real e que percebíamos o direito sendo

construído nas lutas sociais. Pudemos desconstruir a crença de que as soluções para os

problemas são exclusividade das instituições jurídicas e que, em demandas que envolviam

políticas públicas, como as do Leningrado, estas se mostravam pouco eficientes e pouco

preparadas para lidar com pessoas, dado o apego à posição de cargo superior e de poder.

A norma existia, mas não se concretizava. O processo judicial não poderia dar as

respostas imediatas que as necessidades da comunidade exigiam. A Defensoria não tinha

estrutura para acolher as demandas. O Ministério Público, por sua vez, apesar de ter sido um

aliado no decorrer do trabalho desenvolvido no Leningrado, se deparava com uma gestão

municipal desorganizada e negligente, o que tornava os Termos de Ajustamento de Conduta

(TAC) um papel sem a efetividade esperada, de modo que ainda hoje os problemas persistem

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de alguma forma.

Além disso, apesar de o núcleo ter buscado realizar o processo inverso do que é

comum, levando promotores e promotoras à comunidade, em contato direto com as pessoas e

com o ambiente repleto de violações no intuito de sensibilizar e como uma tática mesma de

pressão política, as ações da instituição eram movidas a pedido do núcleo através de ofícios.

No caso da educação, por exemplo, foi necessário dizer que tínhamos elaborado uma peça

judicial para reivindicar o transporte escolar para a comunidade para então a Promotoria

tomar providências junto à Administração Pública em tempo hábil ao início do semestre

letivo.

A partir disso, observo que as instituições jurídicas são distanciadas da realidade

social, assim como seus profissionais, refletindo da mesma forma os problemas da abstração

da educação jurídica. Julgam as prioridades e decidem sobre ações sem ouvir sujeitos e

sujeitas implicadas no caso sob o qual têm responsabilidade. Acionar o Ministério Público e a

elaboração da referida peça judicial foram decisões coletivas, do núcleo e da comunidade,

mas o TAC não. Este foi uma proposta e uma decisão unilateral da instituição para dar

resposta à provocação do Leningrado e do Motyrum, de modo que, mesmo com a ida de

profissionais ao Conjunto e com o recebimento de moradores e moradoras em salas de

reunião, o diálogo não era efetivo a ponto de permitir sugestões dessas pessoas.

Os trechos de entrevistas a seguir demonstram como os e as extensionistas

passaram a enxergar o direito a partir da experiência no Leningrado.

O Lições de Cidadania foi importante na formação jurídica para perceber os dilemas

que as normas jurídicas por si só não conseguem resolver. Que os direitos que estão

assegurados na Constituição em um rol extenso por si só não bastam para serem

efetivados. (P. G. F., estudante de direito, 2014).

O cara percebe que o direito positivado está longe de formalizar tudo o que a

sociedade vive e vem cada vez mais mudando. Isso é muito difícil... Eu vejo o

direito como o que, através da norma, faz com que o pobre continue pobre e o rico

continue rico. (G. B. S., estudante de direito, 2014)

O que a gente vê na sala de aula é que o direito é uma manutenção, é instrumento de

manutenção. As regras do jogo funcionam para manter... Defensoria Pública mais

fraca que o Ministério Público, né? Uma das instituições mais sucateadas é a

Defensoria Pública. Você vê que isso no jogo político é para manter, né? Um

instrumento que poderia ser usado... enfim, não há paridade de armas. A gente viu

muito isso. No Motyrum a gente queria ter apoio da Defensoria, mas tinha essas

limitações... de ainda estar se estruturando no Rio Grande do Norte. (...) A

Promotoria, pode ser a pessoa mais bem intencionada do mundo, né?, como a gente

teve... sendo que a gente vê as limitações. Assina TAC, assina não sei o quê... e viu

que muitas soluções até hoje eles percorrem... eles estão lutando por muitas coisas

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ainda. (H. M. S. B., advogado popular, 2014).

Nesta última fala, interessante observar que o advogado confronta a “boa

intenção” da promotora com suas limitações. Entendo que estas refletem justamente a

deficiência da formação jurídica, da formação de profissionais do direito sem a percepção

total e real do mundo e da sociedade, sem uma postura dialógica que busque pensar as ações a

partir da escuta de pessoas, grupos e instituições envolvidas no caso trabalhado, limitados às

soluções com previsão legal e sem capacidade criativa e ousadia para inovar, para desafiar os

problemas a partir outros meios de pensar, de fazer, de mediar conflitos.

Estávamos em diálogo com pessoas que tinham uma caminhada de luta por

direitos. O teto em que moram carrega uma história de resistência, de perseverança e de

ousadia. Não foi uma doação do governo, tampouco foi construído em razão de uma norma

constitucional. Foi uma conquista à custa de muita batalha, de muito suor. Daí o aprendizado

de que o direito se faz na luta diária, a partir de movimentos sociais, se faz na rua. O direito

que envolve a participação de diversas pessoas, não apenas de legisladores e juízes; que se

constrói a partir das necessidades que brotam no cotidiano.

A concepção de direito deixa de ser o idealismo do positivismo ou do

jusnaturalismo, para chegar mais junto de algo mais concreto, mais real, mais

pautado nas relações concretas da sociedade, dos homens e mulheres construindo,

lutando por direitos, que foi isso que aconteceu no Leningrado. A gente tava junto

com a galera que tava lutando por direitos. O direito não era a lei, o operador do

direito que concretizava o direito, não é, porque na realidade não é isso, é a própria

relação social, as movimentações sociais na produção cotidiana de sua subsistência,

cada um vai conseguindo, concretizando o direito, o direito e outras coisas, e toda a

realidade, e daí o Motyrum permite que a gente tenha essa percepção, assim, que a

gente se aproxima de gente que tá em luta (M. H. S. M., estudante de direito, 2014).

Essa concepção de direito foi construída a partir de uma relação pautada no

diálogo, em que extensionistas se colocavam à disposição para compreender as necessidades

dos moradores e das moradoras, a forma como se percebiam no mundo e como lutavam para

nele sobreviver, suas indignações. Era se colocando ao lado, ombro a ombro, horizontalmente,

que a compreensão do direito se modificava, enxergando a contribuição da comunidade na

concretização de direitos. Penso que se não tivéssemos abandonado a verticalidade do ensino

tradicional e das práticas de extensão assistencialistas, não teria sido possível reconhecer o

valor do saber popular.

A percepção das limitações das instituições jurídicas, junto ao conhecimento da

história de vida das pessoas do Leningrado permitiu compreender tanto o direito ensinado em

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sala de aula quanto o direito que tínhamos contato na rua, com as pessoas e as situações de

violação. Isto é, o Motyrum deu a oportunidade de refletir sobre o direito, de compreendê-lo

numa dialética, nas contradições, percebê-lo como instrumento que pode servir à manutenção

e à transformação, influenciando estudantes a buscarem aprofundar essa análise, como diz um

entrevistado:

O Motyrum foi esse aspecto centralizador talvez assim... foi o imã para eu buscar

essas coisas. Se não fosse o Motyrum eu jamais teria conhecido aquelas pessoas,

jamais teria lido o que eu li, eu jamais teria encontrado a realidade que eu

encontrei... e jamais teria tido as formações que eu tive. (...) Eu pude perceber que

não necessariamente os polos são o certo e o errado, os polos são o que são por

causa da construção histórica, pessoal, interpessoal que eles tiveram. Então eu pude

perceber a relação mais próxima do direito com a ideologia, perceber que o que eu

via em sala de aula não necessariamente era uma teoria da verdade. (...) Esse contato

que eu tive com o Leningrado me ajudou a aprofundar essas relações por trás da

concepção de direito. (...) Em sala de aula, mesmo que o professor não pense o

direito enquanto lei, enquanto norma, o professor nunca pensa o direito a partir da

sua raiz ou mesmo faz uma discussão de por que ele tá ensinando aquilo, qual a sua

visão de direito para estar ensinando aquilo... No Leningrado é mais fácil

compreender o que fundamenta a visão do professor, qual a diferença entre a visão

do professor e a minha visão e... é mais fácil compreender na verdade a minha visão.

E ajuda a formular questões que move a gente a “tá” estudando, a ver o direito

enquanto instrumento desafiador para a gente manusear. (D. F. M. T., estudante de

direito, 2014).

O contato com o Leningrado a partir de uma relação dialógica e interdisciplinar

despertou a noção de que a verdade é produto de uma construção histórica e social, que varia

de acordo com o contexto e com as pessoas que nele estão inseridas. É produto das

contradições também, das antíteses que compõem a dialética social. Assim, superou o caráter

abstrato e absoluto como é apresentada na sala de aula, como se apenas um determinado

grupo de pessoas fosse legítimo para dizer a verdade, dizer o direito. A forma de enxergar o

direito muda nesse sentido, de democratizar sua construção, de ampliar o foco, de conservar

aspectos válidos das diferentes visões, de estudá-lo na totalidade, portanto, sem hierarquia

entre direito estatal e o direito produzido nas ruas, mas assimilando a diversidade de formas

de conceber o seu processo de construção – processo posto ser algo mutável, que vai sendo,

se transformando (LYRA FILHO, 1982).

Diante dessa nova forma de enxergar o direito, que não é apresentada em sala de

aula, o núcleo sentia a necessidade de buscar outras maneiras de compreendê-lo, como

realizando formações sobre o direito do Leningrado, e de utilizar a técnica jurídica nesse viés

de atender às demandas da comunidade:

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Quando se trata de problemas da realidade, como a gente encontrou no Leningrado,

questões de saúde, de educação, de direitos fundamentais... aí acaba a gente tendo

que se empoderar, né?... da técnica jurídica para responder aquilo. E a gente acaba

vendo que, que acaba não casando o que a gente vê em sala de aula com isso. Então

a gente tem que fazer um paralelo, a gente tem que fazer uma outra formação nossa,

buscar, né? Buscar nos códigos de outras formas, nas experiências das instituições,

Ministério Público, Defensoria Pública. Buscar outras formas de atuação que não é

da sala de aula. (H. M. S. B., advogado popular, 2014).

A teoria da sala de aula também era confrontada diante do enfrentamento dos

problemas concretos. Enquanto no Curso aprendemos que o Judiciário tem o poder conferido

pela sociedade para mediar e resolver conflitos, no Leningrado, esta via não era encarada

dessa forma – a morosidade, a falta de representatividade, a dificuldade de acessá-lo, dentre

outras questões que opto por não aprofundar para não sair do foco, conduziram a escolha da

mediação direta com o Poder Público, por extensionistas e pela comunidade mesma. Após o

insucesso desta via, é que o Ministério Público foi acionado.

A partir dessas escolhas, tínhamos que nos empoderar dessas formas alternativas

de atuação, buscando conhecer melhor as competências e o funcionamento do Ministério

Público, saber como pressionar autoridades do Poder Público, enfim, métodos de mediação

que não eram trabalhados em sala de aula, mas tivemos que nos apropriar a partir da prática,

percebendo que o litígio não é a única alternativa, tampouco a mais eficaz.

O conhecimento jurídico passou a ser assimilado pelos e pelas extensionistas para

servir a uma função social. O curso de direito ganhava um sentido em nossas vidas, que não

era apenas se formar profissionalmente, mas aplicar o saber jurídico para transformar a

realidade. A realidade do Leningrado sensibilizou extensionistas, fomentando-lhes a vontade

de querer aplicar o conhecimento jurídico, de contribuir com o aprendizado no Curso de

Direito para mudá-la.

A gente entra no curso com uma ideia assim, muito ainda... da pouca utilização do

direito com objetivos sociais, né? A gente entra com uma visão muito privatista do

direito, eu entrei pelo menos, achei que o direito era apenas uma função profissional,

assim como qualquer outra profissão e não uma função social. Foi no projeto que

comecei a mudar meu pensamento, a entender a importância do curso, de tudo o que

estava aprendendo aqui para utilizar no meio social, né?... saber que o curso não é só

para mim, né?, que eu tenho que saber utilizar certo. (R. T. P., estudante de direito,

2014).

Esse aprendizado foi possível pelo exercício da escuta que exige o diálogo. Em

muitos encontros nos limitávamos a ouvir. Escutar suas histórias, seus relatos, suas decepções

com o governo e com a vida injusta, suas indignações. Esse exercício nos permitiu

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compreender melhor aquele contexto de negação humana, de violações, nos encharcava de

realidade, nos fazia nos apropriar da vida e dos problemas da comunidade.

Eu poderia chegar no Leningrado e ver o que eu vi, por exemplo, a superfície da

situação, de ver pessoas que têm suas casas, suas ruas pavimentadas, mas poderia

talvez não ter conversado ou compreendido as pessoas da forma como eu

compreendi, inseridos num contexto maior, numa realidade que não é estática, que

as pessoas se relacionam com essa realidade. Talvez eu pudesse ter conversado com

aquelas pessoas num outro projeto, no Justiça Intinerante e nunca ter compreendido

da forma como compreendi a partir do Motyrum. (D. F. M. T., estudante de direito,

2014).

(...) eu tava conversando com R., e ai ela disse: “menina, tem dias que eu acordo

com uma revolta tão grande, uma indignação tão grande dentro de mim, e eu não sei

o que é isso. Eu fico pensando assim... meu Deus, por que as coisas são tão fáceis

para algumas pessoas e tão difíceis para mim? Porque eu vejo tanta gente que

consegue tudo tão fácil, tão tranquilo e para mim é tudo tão difícil assim?”. Então eu

vendo aquilo, as emoções com que R. falou aquilo, né?... falou chega ficou vermelha

de tanta revolta, ela tentando entender porque fica tão revoltada. Aí eu lembrei da

justa-raiva, de Paulo Freire, que a gente fala tanto, debate tanto, mas talvez a gente

não sinta com tanta intensidade quanto ela falou ali. (E. L. M., advogada popular,

2014).

Conhecendo o contexto, pudemos desconstruir o estereótipo, o rótulo imposto a

quem mora nas favelas, nas periferias da cidade. Para quem tinha conhecimento da existência

do Leningrado, a referência era de um conjunto violento, onde habitavam apenas criminosos.

Para nós, morava gente, gente oprimida, vítima da violência do descaso estatal.

O diálogo com sujeitos oprimidos nos proporcionou superar esses rótulos.

Aprender o direito a partir de quem participa da sociedade, de quem tem acesso a direitos, é

completamente diferente de aprender em diálogo com quem vive à margem, quem é invisível

ao Poder Público e cuja sobrevivência é uma luta diária, para conquistar direitos humanos

básicos como saúde, educação e transporte. É outra perspectiva de mundo e de direito.

Enquanto a primeira forma de aprender reforça o processo educativo abstrato, a segunda

rompe; enquanto a primeira ocorre de maneira vertical, cima para baixo, a segunda se dá

horizontalmente, sem a dicotomia entre quem ensina e quem aprende e reconhecendo a

importância da diversidade de saberes na construção do conhecimento.

Por isso, a opção por uma educação que se dê no diálogo com e para oprimidos e

oprimidas é condição necessária para a luta por transformação social (FREIRE, 1987). Sem se

encharcar de realidade, o mundo provavelmente não passará de uma rotina individual, com

algumas ilustrações em noticiários que nada mudam a forma de estar nele, sem fazer história.

É sentindo a justa-raiva, superando o estado de resignação com a situação opressora que os

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sujeitos e as sujeitas se libertam – uns com os outros, horizontalmente, pensando criticamente

e agindo no mundo, participando da construção da história.

Além disso, desenvolvemos a sensibilidade para lidar com essas pessoas, saber da

necessidade que tinham de serem ouvidas, da importância que esse gesto de respeito tinha em

suas vidas. Sensibilidade para tratá-las como gente, já que não era dessa forma que o Poder

Público as tratava, pois que habituadas ora à ausência, na prestação de serviços de saúde,

educação e transporte, ora à presença violenta da polícia.

Essa sensibilidade com as pessoas era exigida de nós em um contexto no qual nem

mesmo professores e professoras do Curso nos tratavam dessa forma, mas muitas vezes com

arrogância e como “donos e donas da verdade”, sem a humildade de escutar nossa voz, nossas

necessidades. Então ocorre uma ruptura com essa forma de se relacionar, de ensinar, educar e

se educar. A partir daquela experiência vivida, escutar as pessoas e saber enxergar o seu

contexto passaram a constituir habilidades intrínsecas ao fazer da prática jurídica.

Conversar com essas pessoas, conhecê-las, permitiu o desenvolvimento da

habilidade de ser dialógico, como afirmado por alguns entrevistados. Isto é, de enxergar o

outro, a outra enquanto sujeito, enquanto gente, sem impor conceitos, ideias ou soluções; de

ouvir em silêncio, com respeito e humildade.

Para os entrevistados, é uma habilidade que o Curso de Direito não ajuda a

desenvolver diante de seu caráter tecnicista e vertical, pois que nas salas de aula os e as

estudantes de direito em contato apenas com normas e com um ambiente onde inexiste o

diálogo entre docente e discente e entre discentes. O Motyrum apresenta, então, um

diferencial nesse sentido.

O professor diz daquela maneira extremamente hierárquica, uma pessoa que te olha

lá de cima, e a gente só escutando, e quando a gente fala, contesta ou quando a gente

quer criar, os próprios amigos de sala já lhe olham diferente... então o direito acaba

reproduzindo o próprio modelo de educação bancária. Se você repete o que o

professor diz você tira dez na prova, se você contestar, tiver um questionamento, um

posicionamento ideologicamente diferente... isso acaba gerando conflitos dentro da

sala de aula. (G. B. S., estudante de direito, 2014).

Como aponta o entrevistado, há inclusive uma aversão de parte do corpo discente

à participação e às indagações de colegas durante as aulas, pois representam uma ameaça ao

que é naturalizado como padrão de comportamento – o silêncio do ou da estudante. Essa

condição de depósito de conteúdos, de uma posição hierarquicamente inferior, é internalizada

de tal modo que creem ser este seu dever: apenas ouvir e absorver o conteúdo das aulas para

no momento da prova saber reproduzi-las nas respostas.

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O diálogo supera esta condição de depósito do ou da estudante, permitindo que

possa desenvolver o senso crítico, que possa se posicionar, além de desenvolver habilidades

nas relações sociais, conforme diz uma entrevistada:

O diálogo é o principal instrumento do aluno de direito, porque é o nosso

instrumento de trabalho, tem que saber utilizar e na universidade a gente é privado

de diálogo com o professor, né? Não é privado, mas é bem restrito o diálogo. A

gente não pratica, a gente só recebe informações e deposita, né?... mas a gente não

exerce esse diálogo. Tanto que eu conheço várias pessoas que quando chegam na

Prática [jurídica] não conseguem ter o mínimo de diálogo, não evoluem, não

conseguem, não conseguem. E eu acho que o diálogo poderia desenvolver um lado

crítico do aluno, mas não acontece, né? A gente não reflete, só recebe... e, na Prática,

como a gente não tem uma preparação, a gente também tem dificuldades. Por isso

que no Motyrum foi importante lidar com as pessoas, que a gente passa a ter noção

de como que a gente deve dialogar, utilizar o diálogo para resolver o problema deles.

(R. T. P., estudante de direito, 2014).

A fala indica o diálogo também como instrumento de trabalho, aquilo que vai

permitir entender o problema do outro ou da outra e nessa compreensão – inclusive de sua

realidade, de seu contexto, de sua condição social – saber buscar soluções adequadas. E o

Motyrum, ao permitir o exercício dessa conduta dialógica, supre uma deficiência na formação

jurídica proporcionada pelo Curso de Direito da UFRN, que se dá preponderantemente de

forma verticalizada, o que é visível no despreparo de estudantes no atendimento à população

na Prática Jurídica, consoante ilustrado pela entrevistada, apresentando dificuldades em se

comunicar, em se fazer entender e entender o outro ou a outra.

A importância dessa habilidade na vida do e da profissional do direito está no

tratamento, no acolhimento sem distinção de classe, no relacionamento com pessoas de forma

respeitosa, seja no ambiente de trabalho seja em contato com clientes, partes, assistidos, como

diz uma entrevistada:

O profissional que desde a faculdade já aprendeu a lidar com a interdisciplinaridade,

a ser aberto ao diálogo, a falar sua opinião de forma respeitosa, dialógica só tem a

ganhar, a própria pessoa e outras no ambiente de trabalho, os clientes, os assistidos

certamente vão sair mais satisfeitos se forem tratados de forma dialógica e não

impositiva. (T. S. C., estudante de direito, 2014).

Ter o contato, manter aquele elo... porque eu fico imaginando assim, na prática

jurídica, por exemplo, que atende num escritório... como você vai atender o seu

cliente? Você tendo que acolher, tratar bem, tudo isso. E eu acho que essa também

foi uma tratativa que a gente aprendeu, né?... então, sem distinção de classe. (H. M.

S. B., advogado popular, 2014).

Esse tratamento, esse cuidado com o outro e a outra também gera um laço de

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confiança, que foi justamente o que se construiu entre o Motyrum e o Leningrado até mesmo

após o término do trabalho50

. A responsabilidade assumida por nós de estarmos na

comunidade todos os sábados foi importante para a formação do vínculo, sobretudo quando

retornamos após um assalto ao final de um dos encontros, o que teve um significado

simbólico na nossa atuação, pois rompeu com o esperado, que seria nosso afastamento. Além

do que, éramos um grupo da universidade diferente dos demais, que chegavam, colhiam

dados e voltavam para a universidade sem dar qualquer retorno para o Conjunto.

Na prática jurídica do Curso, por sua vez, observo o contrário. No módulo de

“acompanhamento processual”, no qual devemos estar sempre a par do que está acontecendo

nos processos pelos quais cada grupo fica responsável, se manifestando quando necessário e

em contato com o “assistido” ou a “assistida” para dar retorno das atividades realizadas ou

tirar dúvidas, percebo que não há uma confiança no grupo. As limitações da prática jurídica

ficam evidenciadas de tal forma para essas pessoas, que estamos sempre recebendo

reclamações sobre demora, organização e comunicação. São críticas válidas, pois de fato a

rotatividade de pessoas em um mesmo processo é frequente – é um grupo diferente a cada

semestre, que tem que levantar todo o histórico do caso e, pela ausência e desorganização de

registros, precisa perguntar tudo ao “assistido” ou à “assistida”. Ou seja, não é possível o

envolvimento que gera o senso de responsabilidade e o comprometimento, ainda que haja

esforço do ou da estudante.

A intencionalidade da práxis do Motyrum é provocar a formação de laços, de

vínculos, pois é dessa forma que é despertada a sensibilidade, a noção da importância de cada

tarefa pela qual se fica responsável. A busca da confiança das pessoas não é para ter o poder

de fazer tudo sozinho, mas para fazê-las perceber que estamos lado a lado na luta pelo mesmo

objetivo, que podemos trabalhar em conjunto contribuindo com nossos conhecimentos.

Estar em contato com a comunidade também proporcionou aos e às extensionistas

uma compreensão coletiva e social do direito, pautada nos direitos humanos, mais uma vez

confrontando ao que era estudado em sala de aula e aplicado na prática jurídica do Curso, isto

50

Os moradores e as moradoras ainda projetam em nós uma referência para ajudá-los ou orientá-los naquilo que

precisam, como quando da ocasião em que uma criança da comunidade faleceu em razão da falta de leito em

Unidade de Terapia Intensiva (UTI) nos hospitais da cidade: ajudamos as pessoas do Leningrado a construir um

ato pela saúde pública do Estado mobilizando estudantes da UFRN para participarem, mediamos uma reunião

junto à Promotoria de Saúde, ao Conselho Estadual de Direitos Humanos e à Comissão de Saúde da OAB com a

Secretaria Estadual de Saúde Pública (SESAP) para que medidas fossem tomadas pelo Estado na garantia de

mais leitos de UTI para crianças, além de ajuizarmos uma ação de indenização contra o Estado do RN em favor

do pai da criança falecida, morador do Leningrado. Isto ocorreu em 2012, quando já tínhamos concluído o

trabalho na comunidade.

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é, um direito individualista e patrimonialista. O Leningrado exigia de nós esse pensamento

coletivo, estudar medidas que contemplassem toda a comunidade, não no sentido de ganho

financeiro, mas de atender às necessidades de direitos básicos, de ganho social.

Eu acho que emancipa o estudante, na formação jurídica você se emancipa para

atuar nos problemas sociais das periferias da cidade. (...) A gente teve que se

empoderar de problemas coletivos que o direito não trata... coletivamente os

problemas, é tudo individualmente e, na maioria das vezes, patrimonialista, que

envolve o patrimônio. Você analisa meu currículo na época, era muito mais

patrimonialista, tem muito mais civil do que constitucional. Então você vê que o

direito é muito individualista e patrimonial. (...) Diferente da nossa proposta, que é a

instrumentalização do direito para a justiça social, a favor dos oprimidos, a favor dos

excluídos. No Motyrum a gente se colocou a favor das parcelas mais pobres da

cidade, né?... Leningrado ali sem saúde, sem transporte, sem trabalho... a gente foi

para uma parte da cidade espoliada. (H. M. S. B., advogado popular, 2014).

A educação popular desenvolvida no Leningrado iniciou um processo de

libertação, de emancipação e conquista da autonomia dos e das estudantes de direito. Primeiro

porque naquela relação pedagógica eram sujeitos e sujeitas, diferentemente da posição de

objeto que são colocados na sala de aula, implicando numa mudança de postura, agora mais

ativa e participativa. Segundo porque nessa condição de agente participante e buscando

intervir na realidade da comunidade de forma transformadora, havia a necessidade de estudar

como fazer essa intervenção a partir do direito também, emancipando o e a estudante a pensá-

lo a partir daqueles problemas concretos e não mais reproduzindo fórmulas já concebidas para

hipóteses abstratas. E terceiro, porque em diálogo com oprimidas e oprimidos ocorre uma

libertação das ideias conservadoras, dos pré-conceitos e estereótipos que restringiam a forma

de conceber o direito. Ocorre uma ruptura com a forma com que a classe social a que

pertencem enxerga o mundo e, em alguns casos, a identificação com a classe do povo

oprimido, assumindo, portanto, um lado.

Para os moradores e as moradoras do Leningrado penso que houve uma libertação

do estado de resignação, considerando que a luta praticamente parou após a entrega das casas.

E a contribuição dos e das extensionistas nesse processo foi apresentar instrumentos a serem

utilizados na continuação da luta por direitos e, talvez, fazer essas pessoas se perceberem

como oprimidas. Todavia, a análise dos efeitos do trabalho de extensão para a comunidade é

tarefa que penso ser tema de outro trabalho científico, motivo pelo qual me atenho a focar nas

consequências para a formação jurídica de estudantes de direito.

O diálogo foi, portanto, um instrumento essencial na formação jurídica dos e das

extensionistas do Motyrum no sentido de se permitir conhecer e ser conhecido; de abrir novos

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horizontes, superando a ideia do direito que mantém, do direito estático, para compreender o

direito na dialética social, podendo ser utilizado a serviço das classes populares. Foi no

diálogo com as gentes do Leningrado que nos tornamos mais críticos e mais sensíveis ao

outro e à outra.

Para alguns, foi o momento em que se construiu o compromisso político de vida

de escolher um lado, o lado dos oprimidos e das oprimidas. Enquanto o curso direciona a

formação para a profissionalização individual, o Motyrum direciona para a realização de

justiça social, para a instrumentalização do direito em prol dos movimentos sociais, dos

grupos marginalizados. Esse compromisso provocou a necessidade de se organizar em outros

espaços, de se engajar na vida política, de levantar bandeiras, como se observa hoje, na

participação dos e das extensionistas em partidos políticos, movimento estudantil, centro

acadêmico, coletivos e outros.

O contato com a comunidade me fez me organizar em um movimento social, o

Levante Popular da Juventude, e em um partido, a Consulta Popular. O contato com

a comunidade me fez compreender a totalidade da conjuntura política do país, assim.

(M. H. S. M., estudante de direito, 2014).

O envolvimento de estudantes de direito em organizações, movimentos e coletivos

sociais implica numa formação politizada e, portanto, um diferencial na formação jurídica em

um contexto de educação jurídica apartada da sociedade. Quando a educação popular desperta

a necessidade de se organizar, penso que cumpre o seu papel na assimilação da ideia de

construção coletiva, de que a libertação e a mudança ocorrem em comunhão, em diálogo entre

pessoas e de pessoas com o mundo. Esse engajamento, então, permite uma formação

continuada de estudo da sociedade, de desenvolvimento de habilidades como a de articulação

e de reflexão, de trabalhar e construir coletivamente. É uma formação que complementa o

aprendizado do direito, encarando-o na complexidade social e histórica.

Dessa forma, o Motyrum possibilitou aos e às estudantes de direito ter contato

com a realidade de quem vive, ou melhor, de quem sobrevive às violações de direitos

humanos e, por meio do diálogo com essas pessoas, de ouvi-las, enxergar esse contexto não

com olhos de piedade, mas com olhos de indignação, de justa-raiva, de quem não dá a mão

para oferecer uma esmola, mas de quem dá a mão para segurar a do outro e lutar juntos pela

superação das opressões. Permitiu aprender na prática como o direito se relaciona com e se

expressa na sociedade, permitiu “aprender de verdade”, como dito por alguns entrevistados,

ou seja, refletindo, agindo, criando, exercendo a liberdade humana de se educar e de se

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comunicar com o outro e com a outra.

.

3.3.4 A interdisciplinariedade

“Se esse dedo fizesse uma lei, você acha que

ela vai servir para os outros quatro?”

(Morador do Leningrado, 2010).

O contato com a realidade, com uma cultura diferente, bem como com estudantes

de outros cursos permitiram, sobretudo, compreender o direito em sua totalidade, isto é,

compreendendo dentro de um contexto de influências políticas, econômicas, culturais e que se

faz não apenas no judiciário, mas na articulação política, na formação de uma rede

multidisciplinar que ajude a compreender o problema nos seus diversos aspectos.

Assim, foi rompendo com o isolamento dos saberes preconizado na academia e na

sociedade que chegamos à percepção do todo e de forma crítica. Foi relacionando as várias e

diferentes “dimensões significativas de realidade” (FREIRE, 1987, 55), ou seja, o modo de

percebê-la, que a captação e a compreensão do mundo e do direito foram se fazendo e

refazendo. Pois, utilizando a metáfora de Lyra Filho (1982, p. 6), a realidade é como um

organismo e cada dimensão significativa é um órgão que compõe esse complexo. Dessa

forma, apenas relacionando o máximo de saberes é que é possível chegar a essa

complexidade; isoladas desse organismo, elas carecem de sentido.

O direito não pode ser aplicado, estudado, interpretado dissociado da realidade

social e das demais ciências, porque o direito não é um fim em si mesmo, mas um

meio para a promoção do desenvolvimento social. O direito como um instrumento

de intervenção na sociedade, ele deve se aliar, se complementar com outras áreas de

conhecimento que estudam diretamente as relações humanas... para que de um modo

mais adequado e efetivo ele seja aplicado, concebido, estudado e criado... quer dizer,

a partir de uma visão multidisciplinar, o direito possa alcançar de um modo mais

efetivo a sua finalidade. (P. G. F., estudante de direito, 2014).

Eu achei superimportante o contato que a gente teve com o pessoal de outros cursos,

porque eu acho que... o curso de direito, assim, querendo ou não, apesar de ser da

área de humanas, a gente ainda é muito fechado à formação técnica, às regras, às

regras do direito, a gente não tem disciplinas que influenciem no contato com as

pessoas e eu acho que o pessoal de sociologia, de psicologia com certeza eles tem

outra visão, totalmente diferente da nossa, e no projeto eles acrescentaram muito.

(...) Eles estudam a sociedade sob outra perspectiva e isso foi essencial para o

projeto... para a gente, que tem uma visão mais fechada, é como se tivesse aberto

novos horizontes. (R. T. P., estudante de direito, 2014).

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A associação do direito às outras modalidades de conhecimento fez perceber a

limitação do ensino jurídico positivista no seu tecnicismo e abstracionismo redutores da

compreensão do direito e da realidade. O contato com a política e com estudantes de outros

cursos no processo de inserção na realidade apresentou outra perspectiva das coisas, ampliou

nossa visão, o que dificilmente seria possível se o Programa fosse composto apenas de

estudantes de direito. Pudemos, dessa forma, reconhecer o valor desses conhecimentos seja na

aplicação e no estudo do direito, seja na percepção do mundo, superando a hierarquia de

saberes da educação bancária (FREIRE, 1987) e o mito da pureza do direito.

A interação entre saber popular e saberes acadêmicos diversos possibilitou

enxergar que o direito não se realiza sozinho, tampouco é capaz por si só de resolver os

problemas, os conflitos.

No Leningrado, precisamos beber da pedagogia, do teatro, do conhecimento do

serviço social para fazer o que fizemos. Foi se apropriando do método freireano – da

educação emancipadora e humanizante – que dialogávamos com moradores e moradoras com

respeito à sua alteridade, foi buscando no teatro do oprimido que tentamos expor de uma

maneira mais comunicativa situações de opressão para provocar debates, foi com a

participação de uma estudante de Serviço Social que pudemos compreender melhor o sistema

de serviços públicos para propor soluções à comunidade.

Então no programa a gente sempre procurava fazer esse link entre a pedagogia de

Paulo Freire, por exemplo, e o direito constitucional. Como você ia fazer para explicar

para a população, através de uma dinâmica, de uma peça, o teatro do oprimido

também, uma coisa que você nunca imaginava que poderia utilizar para explicar

alguma coisa de direito se você tivesse só na sala de aula? Porque você não vê um

professor utilizar o teatro do oprimido para passar algum conceito de direito. Ai se

utilizou no Leningrado uma peça para demonstrar alguma coisa que a gente queria

passar pra comunidade do direito. (T. S. C., estudante de direito, 2014).

O reconhecimento da necessidade dessa articulação de saberes permitiu que

desenvolvêssemos a habilidade da construção coletiva. Enquanto nós tínhamos o

conhecimento de instituições jurídicas que poderiam auxiliar nas demandas, por exemplo, a

comunidade sabia do funcionamento da administração municipal, das secretarias e suas

competências. Aliando ambos, sem impor um ou outro, foi se desconstruindo a ideia de que

sabíamos mais porque éramos estudantes da universidade e se construindo a ideia de que todo

mundo tem algo a aprender, do nosso inacabamento enquanto gente.

Essa construção era possibilitada pela forma como estava organizado o coletivo,

de forma horizontal, os saberes de todos e todas eram respeitados e contribuíam para as

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discussões e para a produção do conhecimento novo, permitindo o fazer interdisciplinar. O

trabalhar coletivamente tinha essa questão de não haver uma centralização de demandas e de

decisões em uma pessoa; de produzir conhecimento a partir do diálogo entre os

conhecimentos acadêmicos e os conhecimentos populares, da ecologia de saberes (SANTOS,

2004), se desvencilhando da ótica que apresenta como válido apenas o conhecimento da

academia e valorizando, pois, a diversidade.

Foi a partir desses saberes em conjunto, que os problemas do Leningrado foram

encaminhados: tentávamos a via do poder público para então buscar instituições jurídicas.

Esses encaminhamentos eram discutidos e rediscutidos pelo grupo, entre extensionistas e

comunidade; bem como as estratégias, como agendar uma reunião com a Promotora ou com o

Secretário Municipal na comunidade e não no próprio gabinete. Quer dizer, a comunidade nos

ensinou também a importância da pressão política, de constranger autoridades diante de toda a

comunidade, tendo que explicar o motivo daqueles problemas, tendo que se comprometer a

cumprir suas promessas assinando a ata da reunião redigida por um morador.

Você vê que a técnica jurídica é importante, mas você vê que é um trabalho político,

né? Você saber como é o problema do direito à saúde, quando é o direito

fundamental à educação, as tratativas são questões políticas, de chamar o secretário

para assinar um TAC... a promotora, vai se sentir mais sensibilizada como? A gente

indo até ela ou levando ela para a comunidade? A gente aprendeu tudo isso... como

colocar um secretário constrangido... a fazer ele assinar uma ata dizendo que se

compromete com questões... (...) Se eles por uma época foram sem-teto e

conseguiram uma casa, água, luz... com certeza eles sabem muitos caminhos de

conquistar direitos. Então, já sabiam, muitos ali já sabiam como era as secretarias,

como se dirigir a um secretário. Nessa tratativa eu aprendi muita coisa, né?... eles já

tinha essa experiência de sentar com o secretário, de fazer atas, de fazer pressão

política... então disso aí eu pude perceber como se conquista direitos, né? Que

muitas vezes nos acordos de escritório, foi o que a gente viu que não dava. Uma

reunião com a Promotoria, o secretário de educação e uma comissão de moradores...

a gente via que o negócio pegava mesmo quando os moradores iam para cima, né?

Quando os moradores faziam atos, foi assim que aconteceu a entrada de ônibus lá,

até em uns dias recentes quando o posto de saúde teve problema, foi através de

atos... quando teve mais gente na reunião, não era acordo de gabinete, uma reunião

com o estudante de direito, o promotor e o secretário e o representante. Não. Era

quando tinha aquelas audiências. Enchia aquela sala da promotoria, com o promotor,

a população e o secretário, que tinha que explicar aquela situação, porque ele não

tava tendo, né? Então tudo isso, esse tensionamento da vivência deles contribuiu

para a minha formação jurídica. (H. M. S. B., advogado popular, 2014).

As táticas de articular instituições, de causar constrangimentos, de colocar

autoridades diante da realidade de violação de direitos foram alternativas de atuação

realizadas a partir do saber popular, da experiência de luta das pessoas do Leningrado. A

partir disso, pudemos perceber que o direito não se faz apenas por meio da técnica jurídica,

mas das habilidades políticas também, evidenciando que direito e política estão intimamente

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relacionados, a começar pelas escolhas por uma teoria de sua concepção (se positivista ou

dialética) e pela forma do seu ensino (se bancário ou emancipador, abstrato ou próximo da

realidade). Quer dizer, são escolhas políticas, que determinam uma posição na dialética social

– de dominação ou de transformação.

A compreensão da política é necessária à compreensão e à aplicabilidade do

direito. É nesse sentido que penso ser mais uma vertente a participar dessa relação de saberes

que conduz à captação da totalidade. Dessa forma, o ensino pretensamente neutro da sala de

aula, passa a ser visto como uma ficção jurídica, como aponta um entrevistado:

Me intrigava desde o início do meu curso essa relação entre o político e o jurídico.

Na sala de aula, a gente ouvia “a gente não pode confundir político com jurídico”,

“tem que criar o jurídico à parte”, e vai criando um negócio castrador, assim, que a

gente não consegue compreender a realidade como totalidade, que esses campos se

interferem entre si, é claro cada campo tem seus próprios adereços. Mas rola uma

interação profunda, se a gente pensar o jurídico enquanto lei, numa perspectiva

positivista, a lei é prática da ação política. Até na concepção positivista eu acho

esquisito até essa separação, porque a lei tem essa interação. E se você compreender

o direito inserido numa totalidade mesmo, no contato com a comunidade, com

movimentos sociais, faz você compreender a realidade material, a economia, o

direito, a política, cada um é, mas são juntos, são coisas distintas, mas são coisas

juntas. (M. H. S. M., estudante de direito, 2014).

De acordo com algumas falas de entrevistados e de entrevistadas, o diálogo com a

comunidade e o engajamento na luta dela pela conquista de direitos proporcionou uma

formação política aos e às estudantes, constituindo um diferencial na formação jurídica, no

sentido de perceber como funciona o sistema, a favor de quem ele se constrói e se mantém e,

nesse contexto, entender o papel do e da jurista:

A gente se coloca para jogar o jogo, as regras estão ai e a gente se coloca nessa

disputa, claro que existem várias outras... politicamente eles irem para o piquete,

irem fechar a entrada do Leningrado, tem esse caminho, mas a gente não vai se

mudar para o Leningrado para fazer o que eles fazem, nossa opção não foi essa... e

eles requerem isso da gente, eles querem alguém que bote um terno e uma gravata

para falar com o promotor, requerer um ofício... a gente não instrumentaliza o direito

para virar a mesa, nós trabalhamos nas contradições do sistema, para tencionar, para

servir a essas pessoas e isso é o quê? É tentar jogar o jogo a favor delas, mas a gente

vê que o jogo é desigual. A gente percebeu isso no Motyrum. Mas é algo que eles

demandam da gente, faz parte da luta deles. E a gente pode fazer parte da

transformação e o direito não é central nisso. (H. M. S. B., advogado popular, 2014).

A percepção da importância da formação política na educação jurídica é percebida

mais claramente quanto analisado o modelo de ensino do direito nas salas de aula, sob o

discurso da neutralidade política, do isolamento do direito dos fenômenos sociais. Como já

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exposto em análises anteriores neste trabalho, esse processo de politização, de beber da práxis

política, permitiu mudar a forma de se relacionar, de utilizar o direito, de pensar o mundo

(MACHADO, 2009). E é interessante frisar que esta veio da práxis popular, de fazer o direito

através de instrumentos políticos.

A convivência dessa pluralidade de saberes ao longo do trabalho nos transmitiu

também a ideia de que não há hierarquia de saberes, todos têm sua utilidade dentro do seu

contexto; a consciência do nosso inacabamento, enquanto seres históricos em permanente

processo de aprender e ensinar (FREIRE, 1987). E ter isso em mente permitia uma abertura ao

aprendizado, em que a descoberta era, muitas vezes, acompanhada de surpresa, fosse dos e

das moradoras ou dos e das estudantes.

A gente foi dar uma andada lá no Conjunto, foi a primeira vez que eu tava indo lá,

não tinha ideia de como era. E ai a gente foi numa casa de uma moradora lá do

Lenin e entrou lá, aí ficou ouvindo várias histórias, do pessoal falando como tinha

sido o começo do conjunto. (...) Uma mulher falou que foi com um menino de colo

atravessando o morro, numa mão o menino e na outra uma peixeira, abrindo o

caminho pelo morro. Ali naquele momento já senti qual ia ser o tom, o tamanho da

riqueza dessa experiência lá no Lenin pra gente. Logo depois eu vi como a gente

tinha realmente a aprender, porque um de nós, quando entrou na casa... tinha uma

senhora debulhando feijão (..). Aí um de nós ficou fascinado por aquilo, olhou assim

para a bacia de feijão... e “mas caramba, feijão, feijão verde!”, acho que ele ficou

com vergonha de continuar: “é daí que vem? Não vem já no saquinho?” E ai ele,

muito feliz: “posso ajudar?” Ai a mulher olhou assim para ele tão surpresa quanto

ele, ela fascinada com alguém se surpreender com aquilo (...). E eu achei massa,

achei sensacional, uma coisa que era tão simples, eu pensei... caramba, como a gente

tem a aprender, né?... (E. L. M., advogada popular, 2011).

Quer dizer, enquanto nos surpreendíamos com o fato de que a comunidade

desconhecia a Constituição Federal, aquela que para nós, no plano abstrato, deveria ser

conhecida por todos e todas; uma moradora se impressionava com a surpresa de um estudante

ao descobrir de onde vinha o feijão. Assim, o trivial para nós era um mundo desconhecido

pela comunidade, e o trivial para a comunidade, era um mundo desconhecido por nós. Então

era nesse diálogo de saberes que cada vez mais era é reforçada a nossa incompletude enquanto

gente no mundo e enquanto estudante de direito ao perceber que só a lei, a doutrina e as

jurisprudências não bastam para captar a essência do direito, que apenas na prática, em

contato com o povo, descobrimos o seu sentido.

A interdisciplinaridade em que se pauta o método do Motyrum também desafia o

que encontramos no Curso de Direito, em que a matriz curricular não possibilita essa

interação entre as próprias disciplinas oferecidas, bem como com outras áreas de

conhecimento não contempladas no currículo.

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A interdisciplinaridade a gente vê dentro da sala entre os ramos do direito, mas fora

do direito a gente só paga no inicio do curso sociologia, filosofia, antropologia, um

semestre e pronto e depois durante o curso essas disciplinas que a gente viu

geralmente não são associadas com as matérias do direito. (T. S. C., estudante de

direito, 2014).

Assim, a interdisciplinaridade, dentro da perspectiva dialógica, permitiu

desenvolver a habilidade de construir coletivamente e democraticamente, incluindo a

diversidade de saberes e respeitando a sua capacidade de contribuição, caminhos que levem à

transformação social. Saber que o que se aprendeu no Leningrado, o que se construiu de

conhecimento, o que conquistamos, apenas foi possível porque várias experiências

dialogaram e ajudaram a buscar soluções que atendiam às necessidades daquele momento,

que talvez se tivéssemos partido apenas do aprendizado da sala de aula os resultados não

fossem tão efetivos quanto os que tivemos na atuação interdisciplinar.

3.3.5 A horizontalidade

“Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si

mesmo, os homens se educam entre si,

mediatizados pelo mundo”. (FREIRE, 1987, p.

39)

Na relação que construímos com o Conjunto Leningrado sempre buscamos agir

com respeito, ouvir em silêncio51

, intervir quando necessário, chamar cada um e cada uma

pelo nome, assumir uma postura humilde e “sair do pedestal” que a sociedade nos coloca e

que alguns e algumas estudantes se colocam em razão do prestígio social que é estudar

direito. Isto é, nós tentávamos desconstruir a ideia de que sabíamos mais porque éramos

estudantes de direito, como disse um entrevistado: “de descer do pedestal, de saber tratar as

pessoas de forma digna e tudo, sem nenhuma pretensão de ensinar e de dizer que é mais que

alguém ali” (H. M. S. B., advogado popular, 2014).

Nós buscávamos desconstruir essa superioridade do status de universitário e de

estudante de direito incutida na sociedade, ou seja, a ideia de Universidade como espaço

51

Respeitávamos a fala dos moradores e das moradoras em silêncio, mas não deixávamos de, na oportunidade de

nos expressar, colocar nossas opiniões e reflexões, sempre com cuidado na linguagem e na forma de falar. Nos

círculos de cultura a gente prezava pelo ato de ouvir, uma vez que uma percepção que tivemos da Comunidade

era a sua necessidade de falar, de expressar sua voz, suas indignações. É nesse contexto que essa habilidade vai

sendo desenvolvida ao longo do trabalho, porém, sem se limitar a esse exercício.

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exclusivo de produção de conhecimento, de direito como algo distante do povo e de juristas

arrogantes. Tínhamos um cuidado especial, por exemplo, de ter uma atenção maior no modo

de falar, evitando termos técnicos e próprios do jurídico, e de se vestir, evitando as roupas

comuns às instituições jurídicas para usar roupas mais simples nos encontros na comunidade.

Dessa forma, rompíamos com a ideia cultuada no próprio Curso de Direito, em que

professores exigem que estudantes compareçam às aulas com roupas elegantes, em que

estudantes buscam os termos mais rebuscados na elaboração de uma redação ou na

apresentação de trabalhos, em que ser estudante de direito corresponde a status de

superioridade social.

As pessoas da comunidade não eram nossos objetos de estudo, mas sujeitos e

sujeitas, que junto conosco pensavam a realidade em que estava inseridos e inseridas para

intervir, para transformar. Nesse tratamento horizontal, pudemos desenvolver a habilidade de

lidar com pessoas, tal como já abordado no ponto sobre a dialogicidade, ou seja, de tratar o

outro ou a outra com respeito, sem impor ideias, soluções, de não olhar de cima para baixo,

como se fosse mais que alguém em razão de um cargo, de uma profissão ou de uma classe

social.

A presença de estudantes de direito todos os sábados na comunidade já era por si

só uma quebra de expectativas de moradores e moradoras, que comentavam algumas vezes

conosco a surpresa de ver estudantes da universidade assumindo esse compromisso, se

colocando a discutir os problemas do Leningrado, um lugar a princípio esquecido pelo Poder

Público, mas protagonista das páginas policiais dos jornais. Ou seja, superando também a

forma como se sentiam vistos pela sociedade, como um “lugar de marginais”.

O comportamento na comunidade também provocava esse rompimento – a

simpatia, o interesse, a humildade, a linguagem acessível. Além disso, a simplicidade das

roupas utilizadas nos encontros era uma escolha fundamentada na ideia de que as veste

formais dificultariam a quebra do paradigma construído sobre a figura de quem é da área do

direito (estudante ou profissional). Por uma questão de identificação, usávamos com

frequência a camisa do Programa também.

No entanto, essa presença repleta de cuidados e esforços de extensionistas para

estabelecer essa horizontalidade e desconstruir a ideia de que seríamos mais inteligentes por

estudar numa universidade, ainda se deparava com algumas falas de pessoas da comunidade

que traduziam esse pensamento, ainda que a percepção que tivessem de nós fosse de pessoas

humildes e comprometidas com a população. Penso que isso pode ser visto como uma

limitação da relação horizontal ou mesmo como a forma que a comunidade optou por nos

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enxergar, como oportunidade, como pessoas cujo conhecimento jurídico poderia ajudar a

mudar a realidade do Conjunto. Saber como essas pessoas nos enxergavam, porém, é uma

pergunta que acredito que deva ser analisada em outro trabalho.

Essa perspectiva de educação, que se dá horizontalmente entre sujeitos e saberes

diferentes, na ação e na reflexão, muda também o comportamento dos e das estudantes com

colegas e docentes do Curso de Direito quando assumem uma postura mais participativa e

crítica durante as aulas, dentro dos limites, é claro, que o contexto de uma pedagogia

opressora oferece. Os e as extenionistas do Motyrum passam a ter uma visibilidade no Curso

como “rebeldes” e “radicais”, o que evidencia esse destaque em relação à maioria de

estudantes do Curso, de participação e senso crítico e questionador da ordem vigente.

É diferente estar lá, ouvir, conhecer, ouvir o que eles têm para falar, o que eles estão

precisando. A gente se colocava no lugar do outro (...) a gente não chegava lá para

dar aula, a gente chegava para ouvir, e ser ouvido também, né?... a gente tentava se

colocar como igual, apesar de muitas vezes eles não verem isso. A gente se colocava

todo mundo igual, porque todo mundo tem o que aprender e o que ensinar. (I. A. F.,

mestranda em direito, 2014).

Aprender numa relação horizontal é bem diferente de quando se aprende no

modelo tradicional de ensino. Rompe com a ideia de supremacia do saber acadêmico, do

saber jurídico, e da figura docente. Então, no processo de aprendizado do direito durante a

extensão, vai se construindo essa perspectiva da igualdade de pessoas e de conhecimentos e

desconstruindo o fetiche da superioridade das instituições jurídicas, para tentar aproximá-las

da realidade social.

Estabelecer essa relação de horizontalidade era desafiante para nós, habituados à

verticalidade das salas de aula e ao assistencialismo da prática jurídica.

Os professores olham para gente não como professores, mas como juízes,

promotores, advogados, que estão ali apenas para reforçar seus anos de experiência,

nós somos esponjas, né? Ninguém tem humildade de ter a noção de que tem muita

coisa pra aprender ainda, que nós, reles estudantes, podemos ensinar alguma coisa

para eles. (I. A. F., mestranda em direito, 2014).

O trecho apresenta a noção do inacabamento, de saber que ninguém sabe de tudo,

que sempre é possível aprender algo novo. É a partir dessa incompletude que se constitui a

horizontalidade, quando cai por terra a noção de superioridade pautada no critério de “quem

sabe mais”. No Curso de Direito, porém, não é essa a compreensão da maioria do corpo

docente, que comumente se vale de suas profissões fora da universidade para reforçar seu

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nível acima de estudantes, que estão na sala, no curso apenas para aprender. Esse

entendimento pode ser traduzido a partir das aulas meramente expositivas, da reação

autoritária de docentes aos questionamentos de estudantes sobre suas opiniões, dos métodos

avaliativos e de correção, enfim, das práticas pedagógicas já discutidas no primeiro capítulo

que denotam essa relação vertical.

Diante de alguns problemas, por exemplo, nosso desejo era de ajuizar de imediato

uma ação, mas logo tínhamos que controlar os impulsos e perceber que a comunidade é

sujeita daquele trabalho, que daquela forma poderíamos ferir sua autonomia de decidir o que

melhor lhe atende, se uma ação judicial ou se uma mediação de conflitos por meio do

Ministério Público.

Uma das coisas mais difíceis era a gente não aplicar a educação bancária que a vida

toda a gente recebeu. Meu amigo, todo dia você querer se humanizar assim... Não,

peraí, eu não posso chegar lá e dizer... mas naquela urgência, você queria fazer

alguma coisa urgente, um provimento jurisdicional adequado àquele problema. Mas

daí a gente tentava segurar os instintos e... vamos pensar numa formação aqui. (G.

B. S., estudante de direito, 2014).

Era desafiador, portanto, não reproduzir a lógica da sala de aula, da verticalidade e

da imposição de conceitos, ideias e soluções. Quando o entrevistado fala em “instintos”,

penso na naturalidade com que a pedagogia opressora se faz em nossas vidas, tendo em vista a

imersão no modelo bancário de ensino ao longo de nossa existência.

Havia o esforço de transformar a simples “boa intenção” de ajudar em

envolvimento de moradores e moradoras nas demandas, pois que essas pessoas eram as

verdadeiras e legítimas protagonistas da realidade do Leningrado. Como diz Paulo Freire

(1987, p. 18), “a liberdade, que é uma conquista, e não uma doação, exige uma permanente

busca”, exige o exercício de assumir responsabilidade, exige ter a própria voz, exige ser

sujeito de suas próprias decisões. É nesse sentido de que “ninguém é sujeito da autonomia de

ninguém” (FREIRE, 1996, p. 107), que fomos construindo a horizontalidade na relação com o

Leningrado.

Ou seja, respeitando a alteridade, a autonomia do outro, reforçamos o que

líamos na teoria de Paulo Freire que a educação deve se fazer não para, mas com o povo, com

homens e mulheres.

Teve uma época que a gente pensou: será que isso tem efetividade na vida deles?

Será que eles queriam coisas mais práticas? Mas também não bastava a via mais

rápida, tem que ter uma educação também, então a gente tinha que repensar muita

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coisa. (T. L. V. B., estudante de direito, 2014).

Na verdade, tudo o que foi colocado sobre o aspecto da dialogicidade pode ser

considerado neste tópico sobre a relação horizontal, pois como também já expus, é no agir

com, é na co-vivência, que o diálogo se realiza, a partir de uma relação de sujeitos e sujeitas,

não de sujeito-objeto, como na educação bancária. É a horizontalidade, o respeito à alteridade,

a humildade que constroem a base desse aprendizado livre, simultâneo, crítico, voltado à

construção do conhecimento a partir da diversidade de saberes e de experiências. É a noção de

que inacabados que somos, sempre teremos algo a aprender na relação com o outro, com a

outra (FREIRE, 1996, p. 50).

A horizontalidade valorizada pelos e pelas extensionistas no contato com o povo

oprimido do Leningrado permitiu a abertura ao diálogo, a aprender com as histórias de vida

daquelas pessoas.

Isso teve um significado na formação jurídica dos e das extensionistas, que

unanimemente reconheceram uma inversão das suas expectativas diante do trabalho no

Leningrado: se logo no início achávamos que íamos mudar a vida daquelas pessoas, no

sentido de melhorar as suas condições de moradia, após aquela experiência, a revolução que

imaginávamos para o Conjunto aconteceu em nós, que “aprendemos a ser gente”, que nos

“identificamos enquanto povo”, como disseram alguns entrevistados.

Essa mudança foi atribuída aos moradores e às moradoras do Leningrado, ao que

essas pessoas ensinaram, o que gerou um reconhecimento coletivo de que ali estavam seus

verdadeiros professores, educadores do direito:

(...) eu preciso dizer uma coisa muito importante para vocês, que eu até sinto

vontade de chorar, que é dizer que de todos os professores que eu tive no meu curso,

vocês foram os meus maiores professores... de tudo o que eu aprendi em sala de

aula, nada se compara ao que eu aprendi aí no Leningrado, sentada numa roda, por

muitos sábados com vocês... que foram vocês que me ensinaram na verdade o que é

que é direito, esse curso que eu fiz... e como é que o direito acontece ou deixa de

acontecer na vida real, como é que tudo o que meus professores da sala de aula

falaram, muitas vezes, são só um pedaço de papel... que não é só estudando os livros

que eles vão sair do papel, é com muita luta, com muita união. E é por isso que eu

dedico a vocês esse momento, esse meu fim de curso, essa graduação. E dizer que

agora atuando como advogada, com certeza vocês serão inspiração sempre. (N. B.

B., advogada popular, 2011).

Vocês são esse exemplo de conquista de direito. (...) Vocês que sofriam as violações

de direitos é que tinham maior responsabilidade sobre isso, maior conhecimento...

são, na verdade, professores de direito para gente. Dedico a vocês também o meu

curso, a profissão que eu exerço hoje, de saber que hoje a gente pode lutar fazendo

essa assessoria. Agradeço por me formar mais militante, mais homem que eu sou,

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muito obrigado. (H. M. S. B., advogado popular, 2011).

Quando eu cheguei no Leningrado eu tinha uma determinada expectativa de que eu

ia contribuir muito mais com vocês do que vocês contribuíssem comigo. Mas eu

acho que a comunidade proporcionou a mim foi impagável assim, me garantiu gosto

pela universidade, me deu um norte... me deu um sul, me deu um objetivo que é

mais de tá lutando junto com vocês. (M. H. S. M., estudante de direito, 2011).

Nós pensamos em muito no que a gente aprendeu... que vocês foram nossos

professores, que nos surpreendeu bastante com a quantidade de coisas que a gente

viu na prática que superava livros e livros. (...) (L. S. G. M., advogado, 2011).

As falas acima traduzem não apenas os reflexos da experiência de extensão no

Leningrado, mas de certa forma, também o modo como estudantes se envolveram, se

implicaram nesse processo educativo. Afinal, chegaram na comunidade ainda com um

perspectiva vertical de aprendizagem, de pensar que iriam mudar o contexto de vida daquelas

pessoas. Mas, ao longo dessa vivência na educação popular, foi sendo construída a ideia do

inacabamento, foi sendo questionada a educação jurídica no Curso de Direito e a percepção de

que onde mais se aprende é na prática, em contato com o mundo, de modo que, após isso

tudo, se perceberam como sujeitos e sujeitas completamente diferentes do que eram.

Isso porque também se permitiram abrir para o novo, se aventurar nessa

pedagogia que sequer era vivenciada na escola e na universidade, ter humildade para ouvir e

para fazer a autocrítica, ter ousadia para fazer os enfrentamentos perante autoridades do Poder

Público. Porque no diálogo reconheceram a si e o outro ou a outra como sujeitos e sujeitas,

diferentemente de como a educação bancária trata estudantes e como a sociedade trata

oprimidos e oprimidas.

Reconhecer moradores e moradoras do Leningrado como verdadeiros docentes da

graduação no Curso de Direito revelam a mudança de paradigmas quanto à concepção de

direito e ao ensino jurídico. Mostra o convencimento de que o direito que se faz e se aprende

na rua, que se construiu no Leningrado, é autêntico, é legítimo, talvez até mais que o direito

estatal. Revela uma mudança dos rumos apontados pelo Curso – individualistas, como

concursos, conquista de estabilidade financeira. A extensão orientou esses e essas

extensionistas para uma prática transformadora, para tomada de decisões que implicam

diretamente com o uso do direito a favor dos oprimidos e das oprimidas, como a escolha pela

Defensoria Pública (que não tem representatividade expressiva no curso, seja na divulgação

do trabalho, seja na existência de docentes defensores ou defensoras), pela advocacia popular,

pela militância política em movimentos sociais e partidos políticos, pela ocupação de espaços

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conservadores como o Judiciário, no intuito de disputar outra concepção de direito. Enfim,

passam a tomar rumos orientados para a concretização da justiça social.

Portanto, a experiência de extensão no Leningrado afetou de forma significativa a

formação jurídica dos e das estudantes de direito do Curso da UFRN, desde o

desenvolvimento de habilidades como ouvir, falar em público, fazer o trabalho de articulação

política, trabalhar em grupo, lidar com pessoas e com diferenças à mudança na forma de

enxergar o mundo e o direito, orientando para uma visão transformadora. São e serão

profissionais que carregam consigo a inquietação diante das violações de direitos humanos,

que organizados ou não em um movimento, partido, rede, assumiram uma postura crítica

perante o direito e o compromisso de buscar diminuir as desigualdades sociais, de lutar por

um mundo mais justo.

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CONCLUSÃO

Ao final desta pesquisa, posso afirmar que o Programa Motyrum de Educação

Popular em Direitos Humanos cumpre um papel importante na formação jurídica do e da

estudante do Curso de Direito da UFRN.

As deficiências apontadas nas entrevistas, a análise da matriz curricular e o

relatório das oficinas de autoavaliação do Curso convergem para uma necessidade de

mudanças no fazer do ensino jurídico e, consequentemente, na adoção de uma outra

percepção de direito, ou melhor, na abertura de possibilidades, de trabalhar a diversidade de

concepções do direito, permitindo ao e à estudante conhecê-las e refleti-las.

O elemento principal, que situa o Motyrum como um programa diferenciado no

contexto do Curso de Direito, é a aproximação dos e das extensionistas da realidade local, se

propondo a discutir nas comunidades e na academia os problemas encontrados nas periferias

urbanas, nos assentamentos rurais, nas comunidades indígenas, nos ambientes de privação de

liberdade.

É a partir desse contato com a vida fora dos muros da universidade que a e o

estudante de direito passa a refletir sobre o conteúdo dos livros, das leis, das salas de aula,

quando se depara com as limitações das instituições jurídicas, com as violações de direitos

humanos, com as histórias de luta do povo oprimido.

O conhecer do Motyrum passa por um método pedagógico específico, diferente

do que é comumente adotado em escolas e universidades, que é a educação libertadora, que

valoriza os sujeitos e as sujeitas, suas experiências, seus saberes por meio do diálogo; que

permite compreender o mundo, o outro e a outra e o direito numa totalidade a partir da

interdisciplinaridade; que respeita a autonomia, a voz, a alteridade através da horizontalidade.

Dessa forma, a pesquisa apontou que a experiência da extensão universitária

popular no Leningrado e a participação na gestão do Programa contribuíram para a formação

jurídica dos e das extensionistas em diversos vieses. Sobre o aspecto da dialogicidade, o e a

estudante de direito desenvolveram as habilidades de lidar com pessoas, de se comunicar

ouvindo o outro e a outra; de ter um raciocínio jurídico coletivo e social; e de saber vias

alternativas de soluções de conflitos, como através da articulação política. Além disso, foi a

partir dessa experiência dialógica que se construiu nessas pessoas a ideia do direito enquanto

instrumento de transformação e da profissão de jurista como uma função social.

No que tange à interdisciplinariedade, os e as extensionistas passaram a

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compreender a necessidade de um estudo e de uma ação multidisciplinar, tanto para entender

o direito em sua totalidade quanto para entender o problema posto, o caso prático e, portanto,

saber construir coletivamente, a partir da diversidade de saberes. Também possibilitou uma

formação politizada, de perceber a relação entre direito e política e a necessidade das

habilidades desta na mediação de conflitos; e ainda, de influenciar o engajamento de

extensionistas em manifestações populares, em movimentos sociais, partidos políticos, centro

acadêmico e diretório estudantil.

No plano da horizontalidade a principal contribuição foi a desconstrução da ideia

de hierarquia do e da jurista ou estudante de direito perante a sociedade. A experiência

possibilitou ao e à extensionista exercitar sua capacidade de lidar com as pessoas com

humildade, respeitando sua autonomia, sua história e seu saber, sem se colocar acima, sem

impor nada a ninguém.

A partir das entrevistas e dos vídeos analisados, foi possível identificar um

elemento comum que exprime o significado dessa experiência para os e as extensionistas, que

é a possibilidade de aprender o direito na rua. Para muitos e muitas que participaram, o direito

foi de fato encontrado no Leningrado, suas contradições, suas deficiências, sua capacidade

transformadora.

Talvez, a maior contribuição do Motyrum para a formação jurídica constitua no

que diz a frase de Paulo Freire que estampa as camisas do Motyrum: “Não é na resignação,

mas na rebeldia em face das injustiças que nos afirmamos” (FREIRE, 1996, p. 78). Isto é, na

formação de mulheres e homens que constatam não para se adaptar, mas para mudar.

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ANEXO 01

Roteiro de entrevistas para a pesquisa de campo

01 – Como o Motyrum contribui para a formação jurídica?

02 – Como a relação como a comunidade interferiu no aprendizado?

03 – Quais as diferenças entre a sala de aula e as atividades vivenciadas no Motyrum?

04 – Qual o diferencial do/da estudante e do/da profissional que participou do Motyrum?

05 – Qual o papel que o Motyrum cumpre no curso?

06 – Como a interdisciplinaridade, o diálogo e a horizontalidade interferem na formação

jurídica?

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ANEXO 02

Registro fotográfico do último encontro do Motyrum Urbano no Conjunto Habitacional

Leningrado

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