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Universidade Federal de São Paulo Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Programa de Pós-graduação em História Luciano Alves Silva PAULO E ONÉSIMO: ESCRAVIDÃO E MANUMISSÃO NO PRINCIPADO ROMANO Dissertação apresentada à EFLCH: Escola de Filosofia Letras e Ciências Humanas (UNIFESP), como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em História. Orientador: Prof. Dr. Glaydson José da Silva Linha de pesquisa: Poder, cultura e saberes. GUARULHOS 2018

Luciano Alves Silva PAULO E ONÉSIMO: ESCRAVIDÃO E ... · preservação da ordem social como se encontrava, do que uma abordagem de aspecto mais libertário. Assim, o nosso esforço

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Universidade Federal de So Paulo

Escola de Filosofia, Letras e Cincias Humanas Programa de Ps-graduao em Histria

Luciano Alves Silva

PAULO E ONSIMO: ESCRAVIDO E MANUMISSO NO

PRINCIPADO ROMANO

Dissertao apresentada EFLCH:

Escola de Filosofia Letras e Cincias

Humanas (UNIFESP), como requisito

parcial para obteno do ttulo de Mestre

em Histria.

Orientador: Prof. Dr. Glaydson Jos da Silva

Linha de pesquisa: Poder, cultura e saberes.

GUARULHOS

2018

2

Luciano Alves Silva

PAULO E ONSIMO: escravido e manumisso no Principado

romano.

Dissertao apresentada EFLCH:

Escola de Filosofia Letras e Cincias

Humanas (UNIFESP), como requisito

parcial para obteno do ttulo de Mestre

em Histria.

Orientador:

Glaydson Jos da Silva

GUARULHOS

2018

3

Silva, Luciano Alves.

Paulo e Onsimo: escravido e Manumisso no Principado romano / Luciano Alves Silva. Guarulhos, 2018.

125 f. Dissertao Universidade Federal de So Paulo, Escola de

Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Departamento de Ps Graduao, 2018.

Orientador: Glaydson Jos da Silva.

Ttulo em ingls: Paulus and Onesimus: slavery and manumission in the roman Principate.

1. Paulo. 2. Onsimo. 3. Escravido. 4. Manumisso. I. Silva, Glaydson Jos. II. Paulo e Onsimo: escravido e manumisso no principado romano.

4

FOLHA DE APROVAO

LUCIANO ALVES SILVA

PAULO E ONSIMO: escravido e manumisso no Principado romano.

Dissertao apresentada EFLCH:

Escola de Filosofia Letras e Cincias

Humanas (UNIFESP), como requisito

parcial para obteno do ttulo de Mestre

em Histria.

Orientador: Glaydson Jos da Silva

Aprovado em _____ de ________________________ de 2018.

Professor (a) Dr (a)

Professor (a) Dr (a)

5

LUCIANO ALVES SILVA

PAULO E ONSIMO: ESCRAVIDO E MANUMISSO NO

PRINCIPADO ROMANO

Presidente da banca: Prof. Dr. Glaydson Jos da Silva

Banca examinadora:

Prof. Dr. Adilton Luis Martins (ps-doc)

Prof. Dr. Maria Aparecida de Andrade Almeida (ps-doc)

Prof. Dr. Pedro Paulo Funari (livre-docente; suplente)

6

Dedico este trabalho memria da dona

Enelita, minha me, que me ensinou a

sorrir com responsabilidade.

A Deus toda glria.

7

Agradeo Capes - Coordenao de Aperfeioamento de

Pessoal de Nvel Superior, sem a qual no seria possvel a

realizao deste trabalho. E, tambm, agradeo aos

professores coordenadores do curso de ps-graduao da

Histria: Jaime Rodrigues, Mariana Villaa, Andrea Slemian; e,

especialmente ao meu orientador Glaydson Jos da Silva, por

me proporcionarem chegar a esta etapa to importante da

minha vida e histria acadmica.

Agradeo tambm a pacincia e compreenso da minha famlia

mais imediata, minha esposa e filha, Miriam e Luiza, e a

comunidade crist da qual fao parte Igreja da Comunho,

que entenderam as minhas muitas ausncias em virtude das

exigncias deste trabalho.

Especialmente agradeo a professora Suzete Cirelli pela

reviso gramatical deste trabalho.

Muito obrigado.

8

Lista de abreviaturas1

BJ BBLIA DE JERUSALM

BIS BBLIA SHEDD

BVN BBLIA VIDA NOVA

ICAR IGREJA CATLICA APOSTLICA ROMANA

NIV NEW INTERNATIONAL VERSION

NT NOVO TESTAMENTO

NVI NOVA VERSO INTERNACIONAL

VT VELHO TESTAMENTO

A.D. ANNO DOMINI

A.C. ANTES DE CRISTO

1 Os livros ou epstolas da Bblia, quando citados, aparecero abreviados pelas duas primeiras letras,

sem o ponto final, como no exemplo que segue: I Co 7.21 (primeira carta aos Corntios, captulo 7 e versculo 21).

9

Resumo

No presente trabalho nos propusemos a investigar um assunto recorrente nas

cartas paulinas: a escravido, partindo do pressuposto de que este autor bblico no

tratou diretamente sobre este tema do ponto de vista legal. Nosso esforo ento se

deteve em tentar alcanar o pensamento de Paulo de Tarso sobre a escravido e a

manumisso romana, analisando-as a partir dos documentos produzidos pelo

prprio Paulo, outros textos bblicos, ainda outros da mesma poca com a mesma

nfase, bem como a partir de outras fontes secundrias e pesquisadores

especialistas desta temtica. O documento principal objeto da nossa investigao

a carta que Paulo escreveu ao amigo Filemon, na qual intercede por um escravo

recm-convertido ao Cristianismo, que tem por nome Onsimo.

10

Abstract

In the present work we propose to investigate a recurrent subject in the

Pauline letters: slavery, assuming that this biblical author did not deal directly with

this issue from the legal point of view. Our effort then stopped to try to reach the

thought of Paul of Tarsus on the slavery and the Roman manumission, analyzing

them from the documents produced by Paul himself, other biblical texts, still others of

the same time with the same emphasis, as well as from other secondary sources and

specialized researchers of this theme. The main document object of our investigation

is the letter that Paul wrote to his friend Filemon, in which he intercedes for a newly

converted slave to Christianity, whose name is Onesimus.

11

SUMRIO

Dedicatria ..................................................................................................................6

Agradecimentos .........................................................................................................7

Lista de abreviaturas .................................................................................................8

Resumo ......................................................................................................................9

Abstract .....................................................................................................................10

Sumrio .....................................................................................................................11

Introduo .................................................................................................................13

Captulo 1...................................................................................................................17

1. Escravido antiga ..................................................................................................18

1. Escravido no Novo Mundo ..................................................................................24

1.2 Os judeus e a escravido.....................................................................................37

1.3 Escravido grega e romana.................................................................................43

1.4 Os Libertos em Roma..........................................................................................47

1.4.1 O liberto Trimalcio em Satyricon.....................................................................50

1.5 Leis de concesso de manumisso.....................................................................54

Captulo 2...................................................................................................................57

2. Paulo de Tarso, sua origem e contextos................................................................58

2.1 Um homem de trplice cultura..............................................................................58

2.2 As cartas paulinas................................................................................................66

2.3 Escravido no NT.................................................................................................69

2.4 Escravos na literatura paulina..............................................................................72

Captulo 3...................................................................................................................79

3. O caso de Onsimo na carta a Filemon.................................................................80

3.1 Anlise da carta a Filemon...................................................................................86

3.2 O termo escravo (doulos) no NT..........................................................................92

3.3 A escravido encontrada em Filemon e noutros escritos paulinos.....................94

3.4 Escravido como metfora do Reino.................................................................111

Consideraes finais................................................................................................119

Bibliografia................................................................................................................127

Fontes ..................................................................................................................... 127

Fontes Secundrias ................................................................................................ 127

12

Bibliografia geral...................................................................................................... 128

Sites, Revistas e artigos eletrnicos ........................................................................133

Breve Bibliografia sobre Paulo de Tarso .................................................................133

Breve Bibliografia sobre a carta de Paulo a Filemon ..............................................140

13

Introduo

O tema da nossa pesquisa tem por ator principal a figura do maior

personagem bblico do Novo Testamento, com exceo a Jesus Cristo, Paulo de

Tarso. Ou, como disse Funari e Vasconcellos: uma das pessoas mais influentes nos

rumos da histria2. E neste trabalho nos propusemos a investigar um assunto

recorrente em suas cartas: a escravido, partindo do pressuposto de que este autor

bblico no tratou diretamente sobre este tema do ponto de vista legal, ou seja, suas

orientaes sobre escravido e/ou manumisso tinham mais a funo da

preservao da ordem social como se encontrava, do que uma abordagem de

aspecto mais libertrio.

Assim, o nosso esforo se deteve em tentar alcanar o pensamento sobre a

escravido e a manumisso romana deste seguidor do Nazareno, analisando-as a

partir dos documentos produzidos pelo prprio Paulo, outros textos bblicos, ainda

outros da mesma poca com a mesma nfase, bem como a partir de outras fontes

secundrias e pesquisadores especialistas no tema. O documento principal objeto

da nossa investigao a carta que ele escreveu ao amigo Filemon, na qual

intercede por um escravo recm-convertido ao Cristianismo, que tem por nome

Onsimo.

O trabalho est organizado em trs captulos. O primeiro traz questes

relacionadas s possveis origens da escravido na Antiguidade, no sem antes

traar paralelo entre esta escravido antiga, a escravido indgena e a escravido

racial no Brasil. Naturalmente, passando pela aquecida economia transatlntica.

Entendemos que investigar com mais rigor essa fase da escravido no Novo Mundo,

em alguma medida, corrobora com o objeto principal da nossa pesquisa, uma vez

que a escravido do negro africano foi respaldada por senhores e mercadores

brancos cristos, a partir de interpretaes de textos bblicos.

O segundo captulo deste trabalho elucida com certos detalhes a pessoa,

origem, famlia, religio e a viso de Paulo de Tarso sobre a escravido e a

manumisso, a partir dos seus prprios escritos e de outros pesquisadores que

escreveram sobre ele. Para tentar compreender seu pensamento a respeito da

2 VASCONCELLOS, Pedro F.; FUNARI, Pedro Paulo. Paulo de Tarso: um apstolo s naes. So

Paulo: Editora Paulus, 2013, 05 p.

14

escravido e da manumisso, investigamos essas origens, contextos e sua trplice

cultura, pois, embora judeu e imerso na cultura judaica, nasceu em Tarso na Cilcia,

cidade do Mediterrneo, de cultura helnica, que estava sob o domnio romano. Isto,

naturalmente, influenciar seus textos e prticas.

E no terceiro e ltimo captulo, analisaremos a carta escrita por Paulo a

Filemon, senhor do escravo Onsimo. Este documento do primeiro sculo nos levou

a levantar algumas hipteses sobre os elementos deflagradores das manumisses

dentro das comunidades crists do Cristianismo primitivo. Outros textos pertinentes

ao assunto, tanto bblicos, quanto filosficos e teolgicos esto presentes em nossa

pesquisa e nos ajudaram a melhorar a elaborao da mesma.

Ao problematizarmos as questes da escravido encontradas em Paulo e

diante desta proposta trabalhamos com a hiptese de que o modo como Paulo

lidava com a escravido, sem interferir na lei romana vigente sobre o tema, com o

tempo possibilitou o arrefecimento da prtica escravista nas comunidades crists e

at sua extino formal pelos cristos, uma vez que, possivelmente, muitos

senhores de escravos se converteram ao Cristianismo.

Nossas fontes primrias so, especialmente, os escritos do Novo Testamento

e alguns textos do Velho Testamento; as secundrias, outros escritos do mesmo

perodo. A bibliografia deste trabalho composta por pesquisas realizadas por

historiadores, socilogos, filsofos, fillogos, telogos e outros cientistas humanos

especialistas ou, em alguma medida, que exploraram em suas pesquisas a vida e a

obra de Paulo de Tarso, bem como da temtica escravido e manumisso no

Principado romano, as relaes entre senhores e escravos no perodo e as leis

vigentes sobre tais assuntos.

Lembramo-nos da importncia da dispora judaica e da cidade de Tarso sob

o domnio romano e, sobre como esses elementos e ambientes influenciaram,

certamente, a concepo do apstolo Paulo sobre tais temas. Ainda pesquisamos a

educao daquele mundo, explorando o fato de Paulo ser judeu naquela cidade que

estava sob a influncia helnica, seus possveis contatos com a escravido e

manumisso e, tambm, como os religiosos judeus tratavam tais questes.

Ao escrever suas epstolas o apstolo as enderea s comunidades onde se

renem discpulos do Nazareno, que foram evangelizados por Paulo. Lembremos

que at os incios do sculo III ainda no se havia construdo edifcios especficos

para reunies desses cristos em comunidades, assim eles se reuniam em qualquer

15

casa que tivesse um lugar suficientemente grande para abrigar um nmero maior de

pessoas3, por isso tambm Paulo de Tarso sada alguns destinatrios fazendo

meno igreja que est em sua casa (Rm 16.5; I Co 16.9; Cl 4.15; Fl 1.2).

Nessas comunidades, dentre tantos outros assuntos tratados por Paulo, avanamos

na compreenso sobre como o apstolo concebia e tratava as questes

relacionadas escravido e, por conseguinte, a manumisso.

Nas consideraes finais sobre o documento principal da nossa pesquisa, que

a carta que Paulo escreveu a Filemon, intumos que a escravido e a

manumisso, do ponto de vista do apstolo, eram realidades presentes na

sociedade na qual as comunidades crists estavam inseridas e que, segundo os

conselhos dados por ele, os cristos no deveriam se indispor contra o governo e

suas leis. Antes, deveriam desenvolver dentro da prpria comunidade crist uma

prxis interna de amor, igualdade e fraternidade, onde, nesse ambiente, os escravos

e os livres estariam sendo orientados a primar pela igualdade. O que nos parece

que os conselhos de Paulo aos que estavam em condio de escravido na

comunidade de Corinto, os estimulavam a buscar sua manumisso legal (I Co 7.21).

Vimos que a presena da escravido na sociedade e, por conseguinte, na

Igreja, tornou-se para Paulo um elemento indispensvel para fins didticos,

enquanto comunicava a f crist e que tambm, tanto escravos quanto libertos eram

teis nas comunidades e aptos para exerccios de atividades, segundo a demanda

local.

A carta, ou o quase bilhete4 a Filemon, que o principal documento da nossa

investigao, tinha por objetivo suplicar pela vida de um escravo fugitivo, como

vimos, chamado Onsimo. Talvez o pedido do apstolo a seu amigo Filemon tenha

sido atendido e Onsimo libertado, pois, ao lermos a carta, percebemos muita

intimidade entre o apstolo e o destinatrio, como se este devesse favores quele.

Quem saberia dizer se, de fato, Onsimo no tenha sido libertado por

Filemon? E se isto aconteceu, e se Onsimo permaneceu cristo, embora seu nome

seja muito comum poca, quem sabe tambm, se de fato, este no tenha se

3 BARCLAY, William. El pensamiento de San Pablo. Buenos Ayres: Ed. La Aurora, 1978. 232 p.

4 CHEVITARESE, Andr. Cristianismos: questes e debates metodolgicos. Rio de Janeiro: Kline

Editora, 2011. 123 p.

16

tornado o bispo ao qual Incio de Antioquia tenha se referido em sua carta, cerca de

cinquenta anos mais tarde5?

Quanto metodologia, a pesquisa, naturalmente, nos levou a comparar

assuntos dentro do tema investigado e, como disse o historiador Jos DAssuno

Barros:

Comparar, elencar semelhanas e diferenas e estabelecer analogias so naturalmente aes to familiares aos historiadores como contextualizar os acontecimentos, ou dialogar com as fontes. (...) mas o mtodo comparativo deve ultrapassar aquele uso mais prximo da intuio e da utilizao cotidiana da comparao para alcanar um nivel de observao e anlise mais profundo e sistematizado, para o qual o que se pode comparar e o como se compara tornam-se questes relevantes, fundadoras de um gesto metodolgico6. (BARROS, 2014, p. 45)

Assim, nossa metodologia foi pautada tambm em anlises das fontes e

documentos, onde fizemos comparaes, no apenas para comprovar diferenas e

semelhanas, mas tambm na tentativa de buscar possveis relaes de

complementaridade ou excluso7. A partir dessa perspectiva, nos esforamos por

perceber o que se podia comparar e tambm, o como iramos comparar as

questes relacionadas a escravido e manumisso, dentro dos textos bblicos e os

demais utilizados na elaborao do trabalho.

Ento, no que prprio numa pesquisa como esta, tivemos de levantar as

fontes, fazer as leituras, os fichamentos e as anlises da bibliografia existente como

questes preliminares.

5 INCIO DE ANTIOQUIA in Patrstica: Coleo Padres apostlicos. Traduo: Ivo Storniolo,

Euclides M. Balancin. So Paulo: Ed. Paulus, 1995, 82 p. 6 BARROS, Jos DAssuno. Histria Comparada. So Paulo: Ed. Paulus, 2014, 45 p.

7 VILLAA, Mariana Martins. Polifonia tropical: experimentao e engajamento na msica

popular (Brasil e Cuba, 1967 1972). So Paulo: Humanitas, 2004, 23 p.

17

CAPTULO 1

18

1. Escravido antiga

A origem da escravido tem sido debatida de modo importante e especialistas

como: Moses Finley, Fustel de Coulanges, Michael Rostovtzev, Geza Alfldy, Paul

Veyne dentre outros, tm colaborado para ampliar a pesquisa sobre o assunto. De

passagem, um pouco de luz que estes autores tm derramado sobre este tema pode

nos trazer orientao importante.

Fustel de Coulanges, por exemplo, chamar a escravido de fato primordial

e Moses Finley dir que gregos e romanos transformaram este fato primordial em

algo novo, absolutamente original na histria do mundo (e raro no curso da histria),

que um sistema institucionalizado do uso, em larga escala, do trabalho escravo

nas cidades e nos campos. Assim, divergindo de Fustel de Coulanges, que entende

a escravido como problema histrico fcil de se explicar, Moses Finley mostra que

a necessidade de se mobilizar fora de trabalho para tarefas superiores

capacidade de um indivduo ou de uma famlia, existe desde a Pr-histria8, portanto

demanda muita pesquisa e anlises para que se compreenda de modo satisfatrio

essa problemtica histrica.

Muitos autores trabalham a questo da conceituao do termo escravido,

pois se trata de manifestaes histricas muito diversificadas, como argumenta

Marcelo Rede, por entender que escravido no se trata de um status, mas um

processo:

(...) necessrio reafirmar a dificuldade de estabelecer um conceito de escravido minimamente satisfatrio para dar cobertura a manifestaes histricas muito diversificadas. possvel que o impasse se deva, sobretudo, ao fato de que a escravido, ao contrrio do que muitas vezes se tem insistido, no seja um status, mas um processo. Ela no se apresenta como uma situao imvel (que, poderia, ento, ser definida por critrios imutveis), mas como uma complexidade dinmica que exige, portanto, para sua apreenso um conjunto de conceitos analticos que d conta de sua fluidez9. (REDE, 1998, 01 p.)

8 FINLEY, M. Escravido antiga, ideologia moderna. Trad. Norberto Luiz Guarinello. Rio de

Janeiro: Edies Graal, 1991. 70 p. 9 CARDOSO, Ciro Flamarion; REDE, Marcelo; ARAUJO, Sonia Regina Rebel de. Escravido Antiga

e Moderna. Tempo, on-line, So Paulo, vol. 3, n 6, Dezembro de 1998. Disponvel

. Acesso em 20 set. 2016.

http://www.historia.uff.br/tempo/artigos_dossie/artg6-1.pdf

19

Assim, Rede nos diz que existe uma complexidade em relao escravido,

que est relacionada diretamente a um processo e neste processo o escravo pode

se tornar mercadoria, mas no somente isto; sendo necessrio, diante dessa

complexidade dinmica desse ator social, muitos conceitos analticos, portanto o

escravo no se trata apenas de uma ferramenta venda num mercado, ou um

objeto disposio do seu senhor; isto tambm, mas no somente isto.

Em harmonia com esta ideia Norberto Guarinello, por sua vez, nos mostra a

complexidade em se tratar do assunto escravido, argumentando sobre a sua

capilaridade no mundo pr-capitalista e sua pluralidade de sentido. O escravo

poderia ser apenas um objeto subjugado ao direito pleno que o seu dono tinha sobre

seu corpo e vontade, mas essa prpria condio de objeto variava, a depender da

cultura em que o senhor de escravos pertencesse:

No fcil definir a escravido antiga. A historiografia trata em geral a escravido como se fosse um fenmeno quase universal, presente, em diferentes graus de intensidade, em quase todas as sociedades humanas pr-capitalistas. Nossa imagem do que seja ou tenha sempre sido a escravido calcada na experincia da escravido colonial nas Amricas, particularmente as do sul dos Estados Unidos, do Caribe e do Brasil que, por sua vez, buscaram grande parte de seus fundamentos jurdicos e de sua legitimao no direito romano. A noo mais comum continua sendo de carter eminentemente legal: a do escravo propriedade, sempre um estrangeiro, adquirido para ser uma coisa pertencendo a outro indivduo, que seria senhor, no somente de seu trabalho, mas de seu prprio corpo, do qual teria pleno e total direito de utilizao e que poderia submeter a qualquer tipo de coao, castigo ou mesmo execuo simples e sumria. Para essa definio o escravo, por ser propriedade, seria uma coisa, uma condio, mas no um agente. No devemos nos esquecer de que a prpria noo de propriedade culturalmente determinada, de que ela especfica para cada sociedade ou cultura e pode variar, com o tempo, no interior de uma mesma sociedade10. (GUARINELLO, 2006, 229 p.)

Guarinello em seus argumentos revela que conceituar o escravo apenas

como mercadoria , certamente, no atentar para o fato de que este tambm um

agente social importante para a economia.

10 GUARINELLO, Norberto Luiz. Escravos sem senhores: escravido, trabalho e poder no mundo

romano. Revista Brasileira de Histria, on-line, So Paulo, vol.26, n. 52, Dec. 2006. Disponvel em . Acessado em 20 set. 2016.

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882006000200010#nt05http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882006000200010#nt05

20

Ao pesquisarmos o assunto, neste recorte temporal e espacial, no Principado

romano, verificamos que existia a possibilidade legal da manumisso, como

comenta Paul Petit que, apesar do conservadorismo e das tendncias timocrticas

romanas, existia a possibilidade da ascenso pelo vis tanto das riquezas

acumuladas pelos escravos, quanto do aspecto geogrfico, pois, comumente, eram

os escravos urbanos que conseguiam a manumisso11. Pois, para os escravos que

trabalhavam nos campos arando a terra, plantando, colhendo, beneficiando os

gros, prensando azeitonas etc., suas vidas seriam bastante difceis, pois se

gastariam nessa dinmica. Pior ainda seria para aqueles que trabalhavam nas

minas, pois teriam uma vida muito curta pelos esforos exigidos nas tarefas. Estes

morreriam cedo. Portanto, os escravos dos campos e das minas eram muito mais

sofridos do que os domsticos.

Guarinello, em harmonia com Paul Petit, revela essa realidade de que, quanto

mais prximo ao seu senhor que habitava a cidade, quanto mais dentro da casa do

senhor, menos distante a possibilidade de alforria:

(...) os escravos urbanos tinham trajetrias mais abertas. Podiam ser treinados em ofcios especficos e, muitas vezes, estabelecer-se independentemente, pagando uma taxa a seu dono. Podiam trabalhar na residncia de seu senhor, ganhar sua confiana e passar, por exemplo, a administrar seus negcios, a gerir suas propriedades agrcolas, a comerciar em seu nome. Como ponto final da trajetria, podiam obter sua alforria, tornarem-se libertos e, at mesmo, cidados romanos, ainda que carregando a mancha da escravido, da qual s seus filhos se libertariam plenamente12. (GUARINELLO, 2006, 232 p.)

difcil precisar com clareza a origem da escravido. O autor j citado,

Fustel de Coulanges, entendia que esta era um fato primordial, contemporneo das

origens da sociedade e que teve suas razes numa poca da raa humana em que

todas as desigualdades tinham sua razo de ser13. A escravido existiu desde

sempre, quer por sujeio em relao aos inimigos dominados, por compra em

11PETIT, Paul. A paz romana. So Paulo: EDUSP, 1989. p. 248, 249.

12 GUARINELLO, Norberto Luiz. Escravos sem senhores: escravido, trabalho e poder no mundo

romano. Revista Brasileira de Histria, on-line, So Paulo, vol.26, n. 52, Dec. 2006. Disponvel em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882006000200010#nt05 acesso 20/09/2016 . 13

DE COULANGES, Fustel. Recherches sur quelques problmes dhistorie. Paris: Librairie Hachette Et Cie, 1885. 3 p.

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882006000200010#nt05http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882006000200010#nt05

21

mercados escravos, por sequestros, por dvidas etc. O pressuposto de Coulanges

para a escravido era a desigualdade e necessidades econmicas, ou seja, em toda

e qualquer sociedade humana, havia escravido.

Esse pensamento encontra harmonia aos argumentos de Finley quando

este admite que a maioria das sociedades humanas, at onde se possui registro,

explorou escravos. E que

desde a pr-histria, existe a necessidade de se mobilizar foras de trabalho para tarefas superiores capacidade do indivduo. E essa fora de trabalho indispensvel foi obtida por compulso pela fora das armas, ou da lei e do costume, em geral por ambos para todos os fins (ou interesses) no alcanveis pela simples cooperao: na agricultura, na minerao, nos trabalhos pblicos ou na fabricao de armas14. (FINLEY, 1991, p. 69-70)

Alberto da Costa e Silva dir que a escravido at o fim do sculo XIX era o

sistema mais eficiente (e mais impiedoso) de obter-se e controlar trabalho e existiu

em todas as civilizaes e em todas as culturas15. Ou seja, desde que se conhece a

respeito da escravido, at a abolio nas Amricas, esta tratava-se do meio mais

eficaz de mo de obra de trabalho controlada.

Registros existem, desde a poca dos Faras e mesmo antes, como diz

Joaquim Jeremias, que muitos papiros confirmam o comrcio de escravos na

Palestina, no sculo III antes da nossa era16. Outros documentos antigos, como o

Cdigo de Hamurabi do sculo XVIII A.C. e o livro de xodo da Bblia judaica do

sculo X ou IX A. C.17 atestam a realidade escravista de civilizaes antigas.

O citado Rei Hammurabi, embora tenha vivido trinta e oito sculos atrs, em

seu renomado cdigo de leis esculpido em uma estela de pedra de mais de dois

metros de altura, exposto atualmente no Museu do Louvre em Paris, mostra o mais

conhecido e mais eloqente dos pensamentos legais das pessoas da antiga

Mesopotmia. Suas quase 300 leis prescrevem o que fazer em casos de roubo,

assassinato, negligncia profissional e muitas outras reas na vida diria das

14 FINLEY, Moses. Escravido antiga, ideologia moderna. Trad. Norberto Luiz Guarinello. Rio de

Janeiro: Edies Graal, 1991. p. 11, 69-70. 15

Ns transatlnticos. Alberto Silva. A Escravido na Histria e na frica. Disponvel em: < https://www.youtube.com/watch?v=Dn_2RIo4QJc >. Acessado em 20 ago. 2017. 16

JEREMIAS, Joachim. Jerusalm nos tempos de Jesus. Traduo de M. Ceclia de M. Duprat. So Paulo: Ed. Paulinas, 1983. 157 p. 17

ELIADE, Mircea. Histria das crenas e das ideias religiosas: da idade da pedra aos mistrios de Eleusis, Vol 1. Trad. Roberto Cortes de Lacerda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2010. 162 p.

https://www.youtube.com/watch?v=Dn_2RIo4QJc

22

pessoas que ele governou. E muitos trechos desse achado arquelogico

documentam questes relacionadas escravido18.

Percebemos com essas breves observaes que, desde que os homens

passaram a dominar outros homens, o fizeram por questes econmicas. E termos

ou expresses como fora de trabalho, processo escravista, mobilidade, direito,

distines entre campo e cidade, agricultura, minerao, trabalhos pblicos, esto

relacionados diretamente a economia. Mas, no somente isto, tambm questes

sociais, religiosas, geogrficas e de outras naturezas tm sido debatidas a partir da

escravido.

Em cerca de vinte e cinco pginas do captulo primeiro do seu livro

Escravido Antiga e Ideologia Moderna, Moses Finley coloca esta escravido antiga

em discusso de modo importante. Passando, especialmente, por historiadores da

Antiguidade, mas tambm por filsofos, telogos e cientistas sociais; depois de

longa apurao sobre suas produes textuais, mostra que as discusses sobre

esta temtica, que ele chama de grosseira ou artificial passam, ou por uma viso

moralista ou espiritualista, ou ainda, por uma viso sociolgica do processo histrico.

Ou seja, a discusso sobre escravido antiga, sua razo de ser, suas

dinmicas internas, dentro da Grcia e de Roma e nas colnias romanas, seu

arrefecimento e trmino, foram explorados desde o sculo XVI e nomes de

historiadores importantes e outros cientistas sociais, ou pela relevncia dos seus

argumentos, ou pela excentricidade dos textos, so objetos de discusso de Finley

que, neste caldo de ideias e pensamentos sobre esta problemtica so reduzidos a

duas grandes frentes humanistas objetivas, a da viso moralista bblica crist e da

viso sociolgica, de processos histricos, como dito acima19.

Evidentemente que os senhores de escravos desejam ter vida mais

confortvel, privilgios, benefcios e de tudo isto, de fato, desfrutavam. Logo, a

presena do escravo nas sociedades antigas era fundamental para o aquecimento

econmico local, por isso tambm a escravido se torna complexa de ser

compreendida nas sociedades em que se estabelece, implicando em se dificultar o

18 MIEROOP, Marc Van De. King Hamurabi of Babylon: a biography. Oxford: Blackwell publishing,

2005. p. VII. 19

FINLEY, Moses. Escravido antiga, ideologia moderna. Trad. Norberto Luiz Guarinello. Rio de Janeiro: Edies Graal, 1991. p. 13-33.

23

forro de escravos; essa mo de obra perene, este bem, esta mquina viva a ser

usada at que se gaste e acabe.

Numa explicao simples, sabemos que havia sociedades muito antigas e

tambm povos nmades que, temerosos por levantes dos seus dominados, uma vez

que eram vitoriosos sobre os inimigos, matavam os homens na idade do vigor,

levando poucos consigo, e se apropriavam dos seus celeiros e animais. Assim, a

vitria e o ganho estavam presentes quando se subtraia os despojos da batalha ou

da invaso. Nestes casos, poucas eram as pessoas feitas escravas. Lembramo-nos

do exemplo dos Assrios que saqueavam os povos dominados e impunha-lhes o

terror pela violncia; alm do que misturavam o pouco de cativos que sequestravam

a outros povos dominados, enfraquecendo suas etnias e intenes de levante. Este

exemplo pode ser visto nos textos dos profetas bblicos do VT (Ez 23.1-10; Is 37.18).

Mas isso, por si s no explica de modo satisfatrio a escravido antiga, uma vez

que muitas outras formas de tornar homens livres em escravos eram praticadas.

Desde antes dos tempos da descoberta das Amricas as terras eslavas

sofreram intervenes europeias, especialmente no que se refere escravido. Os

eslavos eram vistos como hereges ou pagos congnitos, e do sculo X ao XVI

essas terras representavam para os vikings e os italianos sua principal fonte de

escravos. E este fato foi considerado escravido de crise, aquele meio brutal no

qual, uma regio dilacerada pela violncia e reduzida misria, transforma a

populao excedente em recurso econmico20. O prprio termo slave, em ingls,

que traduzido para a nossa lngua significa escravo, tem sua origem mais

embrionria nesses povos da Europa central, ocidental e meridional, povos da

mesma matriz lingustica.

Isto refora a ideia do autor Moses Finley, que nos lembra de que at onde se

possui registros das sociedades, escravos tm sido explorados, mas destaca que

houve apenas cinco sociedades genuinamente escravistas: a Grcia clssica e a

Itlia clssica e outras trs pertenciam ao Novo Mundo21.

20 BLACKBURN, Robin. Traduo de Maria Beatriz de Medina. A construo do escravismo no

Novo Mundo: do barroco ao moderno, 1492-1800. Rio de Janeiro/ So Paulo: 2003. p. 73, 74. 21

FINLEY, Moses. Escravido antiga, ideologia moderna. Trad. Norberto Luiz Guarinello. Rio de Janeiro: Edies Graal, 1991. 11 p.

24

1.1 Escravido no Novo Mundo

O historiador Fabio Joly, mostra aos seus leitores a realidade constatada por

Finley, quando comenta que:

quase consenso atualmente, no campo de estudos histricos, que a Itlia antiga, sobretudo entre os sculos III a.C e II d. C., fez parte, ao lado da Grcia clssica, do Brasil, do sul dos Estados Unidos e do Caribe ingls e francs entre os sculos XVI e XIX, do restrito grupo de sociedades escravistas22. (JOLY, 2005, 11 p.)

Este Novo Mundo, destacado por Finley, traduzido por Joly como Brasil, Sul

dos Estados Unidos e Caribe; um Novo Mundo descoberto pelos europeus cristos

modernos. E, do ponto de vista cristo medieval a terra era tripartida e suas partes

corresponderiam frica, sia e Europa, em ordem hierrquica ascendente.

Sendo esta ltima, a Europa, mais perfeita por sua natureza e espiritualmente

privilegiada23. A ampliao do comrcio escravista se dar a partir de conjunturas

amplas passando pelos novos descobrimentos, avanos tecnolgicos e rupturas

religiosas que beneficiariam tanto a mobilidade, quanto a economia.

E, antes de Colombo achegar-se s Amricas, no perodo entre o sculo XI e

XIV, ou seja, na Baixa Idade Mdia, foi engendrada uma mudana radical no

Ocidente que, desenvolveu seu comrcio com o Oriente e ampliou sua economia. A

Europa passou a ser cortada em todas as direes por caravanas de mercadores,

sua economia de subsistncia tendia a ser substituda pela economia monetria e a

influncia da cidade passou a prevalecer sobre os campos. Os burgueses

enriquecidos buscavam o prestgio poltico, uma vez que j gozavam de poder

econmico. Mas a Peste Negra, as revoltas populares e a Guerra dos Cem Anos

foram os fatores principais para o refluxo do desenvolvimento econmico europeu. A

soluo encontrada para a retomada de uma economia crescente foi adotar uma

forma de trabalho mais rentvel.

O trabalho assalariado e a liberao dos servos para vender seus excedentes

nos mercados das cidades europeias, estimulados por um rendimento prprio

22 JOLY, Fabio Duarte. A escravido na Roma Antiga: poltica, economia e cultura. So Paulo:

Alameda, 2005. 11 p. 23

OGORMAN, Edmundo. A inveno da Amrica: reflexo a respeito da estrutura histrica do Novo Mundo e do sentido do seu devir. Traduo: Ana Maria Martinez Corra e Manoel Lelo Bellotto. So Paulo: Editora UNESP. 96 p.

25

possibilitou a incrementao de tcnicas e o aumento da produo. Isto culminou

numa dissoluo do sistema feudal de produo, contribuindo assim para uma

economia monetria, vinda de atividades comerciais variadas e da intensificao no

investimento de capital.

O desenvolvimento da navegao, entre Itlia e Flandres, atravs do

Atlntico, propiciou negcios em novos centros comerciais como Sevilha, Lisboa e

Londres, o que implicou na falta de um maior volume de moedas e mercadorias na

Europa. Logo, as navegaes ibricas e a descoberta de novas rotas para a sia e

frica, bem como do novo continente americano no limiar do sculo XVI, viriam fazer

com que o capitalismo comercial europeu respirasse mais aliviado24.

Do ponto de vista econmico, a criao desse novo eixo comercial,

especialmente as novas rotas do Mar Atlntico provocou rupturas que deixavam a

Idade Mdia para trs do retrovisor da histria e uma srie de transformaes nas

mentalidades e nas tecnologias inauguravam um novo momento que, apesar da

Peste Negra e da fome, culminaria com a deflagrao do Iluminismo Europeu, onde

haver o domnio da razo sobre a viso teocntrica. Dentro desse conjunto de

novas realidades, um dos mais importantes acontecimentos, para no dizer o mais

importante, foi a chegada de Colombo Amrica, o que provocou a conquista e a

inveno de um Novo Mundo.

J, h tempos, quanto religio, mudanas significativas vinham sendo

percebidas. Ainda no sculo XI a ICAR havia tido a sua primeira grande ruptura,

quando a Igreja Oriental, de fala grega, separou-se da Ocidental (latina), nascendo

assim a Igreja Ortodoxa Grega e, quase cinco sculos mais tarde, as Reformas

Religiosas na Europa contriburam significativamente para enfraquecer o domnio da

Igreja Catlica.

No norte da Europa Erasmo de Rotterdam escrevia o Elogio loucura, talvez

o texto mais importante naquele momento. Ali ele ataca a imoralidade e a ganncia

presentes na ICAR, o formalismo vazio a que se reduziam os cultos, a explorao

das imagens e das relquias, o palavratrio obscuro dos telogos, a ignorncia dos

padres e a venda das indulgncias. Segundo entendiam homens como Erasmo,

Thomas Morus, John Collet, o Cristianismo deveria centrar-se na leitura do

24 SEVCENKO, Nicolau. O Renascimento. 17 edio revista e ampliada. So Paulo: Atual Editora,

1994. p. 5-8

26

Evangelho, no exemplo de vida de Cristo, no amor altrusta, na simplicidade da f e

na reflexo interior25. Isto j prenunciava um novo momento de ruptura religiosa. O

rei Henrique VIII se desentenderia com a igreja catlica por questes polticas,

pessoais e fundaria sua prpria religio anglicana e atores como Martinho Lutero,

Joo Calvino, Philip Melanchton e Ulrico Zwinglio se indispuseram dogmaticamente

contra a ICAR e promoveram a Reforma Protestante, quebrando a comunho

definitivamente com a religio oficial.

Nesse tempo de disputas de poder, interesses econmicos e mercados,

naes como Portugal e Espanha tinham a fama de as naes mais desenvolvidas

na Europa. Mas, Portugal amargava dvidas importantes poca de D. Joo III, o rei

de Portugal e Algarves que estendeu os limites da coroa portuguesa at o Extremo

Oriente, enquanto em Portugal o que se conferia era:

A indstria paralisada, a agricultura sem braos, o governo rudo de incurveis abusos, eis os resultados para a nao de haver estendido por to largos territrios os braos de reino, cujas foras no eram igual ao arrojo. Cada provncia conquistada na ndia era um novo encargo. Os mares que os poetas cantavam subjugados engoliam incalculveis riquezas em navios e carregaes preciosas. (...) eram certos, as perdas visveis em navios e em vidas e em honra e os lucros demorados e duvidosos. (...) numa palavra: os cmbios e os juros oneravam o errio, o rei estava empenhado, a corte pobre26.

(SEVCENKO, 1994, 22 p.)

Mas, Portugal e a Espanha tinham fama, pois desenvolveram alta tecnologia

de navegao e assim foram conquistando o Novo Mundo. E foi essa tecnologia que

lhes propiciou condies de ampliarem ainda mais o comrcio e sua fama, como

esclarece o Darcy Ribeiro:

Esse complexo do poderio portugus vinha sendo ativado nas ltimas dcadas pelas energias transformadoras da revoluo mercantil, fundada especialmente na nova tecnologia, concentrada na nau ocenica, com suas novas velas de mar alto, seu leme fixo, sua bssola, seu astrolbio e, sobretudo, seu conjunto de canhes de guerra (...) para praticar esse conhecimento para descobrir

25 SEVCENKO; Ibidem, 22 p.

26 GOULART, Mauricio. A escravido africana no Brasil: das origens a extino do trfico, 3

edio: So Paulo: Ed. Alfa e mega, 1975. 69 p.

27

qualquer terra achvel, a fim de a todo o mundo estruturar num mundo s, regido pela Europa27. (RIBEIRO, 1995, pp. 38-39)

Esses dois pases regiam, desde meados do sculo XIV, o comrcio do

Atlntico; e o Tratado de Tordesilhas em 1494 ratificou o monoplio portugus do

comrcio de escravos africanos. O historiador Mauricio Goulart entende que a

entrada dos primeiros negros no Brasil tem como marco inicial a fabricao dos

primeiros acares, possivelmente com Pero Capico, entre 1516 e 152628. E essa

bizarra forma de se aquecer a economia encontrou fora para se sustentar por conta

da negligncia do Estado e apoio da Igreja, que proibia a venda de escravos a

muulmanos, advogando que a escravido deveria levar converso dos infiis29 e,

tambm, os nativos que resistissem ao papel divino de Castela, seriam

condenados escravido. Assim, tanto os africanos trazidos em navios, quantos

indgenas pagos eram submetidos servido.

A bula papal, Romanus Pontifex, lavrada pelo Papa Nicolau V, em 08 de

janeiro de 1454, era a regulamentao das novas cruzadas contra os hereges

pagos e inocentes, autorizando a escravizao e domnio sobre os povos pagos e

nativos que encontrassem pela frente. Em partes da mesma podemos ler:

No sem grande alegria chegou ao nosso conhecimento que o nosso dileto filho Infante D. Henrique, incendido no ardor da f e zelo da salvao das almas, se esfora, como verdadeiro soldado de Cristo por fazer conhecer e venerar em todo o orbe, at os mais remotos lugares, o nome gloriosssimo de Deus (...) Guinus e negros tomados pela fora, outros legitimamente adquiridos por contrato de compra, foram trazidos ao reino, onde em grande nmero se converteram a f catlica, o que esperamos progrida at a converso do povo ou ao menos de muitos mais. (...) Porisso ns, tudo pensando com devida ponderao, por outras cartas nossas concedemos ao dito rei Afonso a plena e livre faculdade, entre outras, de invadir, conquistar, subjugar quaisquer sarracenos e pagos, inimigos de Cristo, suas terras e bens, a todos reduzir servido e tudo aplicar em utilidade prpria e dos seus descendentes. Por esta mesma faculdade, o mesmo D. Afonso ou, por sua autoridade, o Infante legitimamente a adquiriram mares e terras, sem que at aqui ningum sem sua permisso neles se intrometesse, o mesmo devendo suceder a seus sucessores. E para que a obra mais ardentemente possa prosseguir.

27 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formao e o sentido do Brasil. 2 ed., 2 reimpresso:

So Paulo: Cia das Letras, 1995. pp. 38-39. 28

GOULART, Mauricio. A escravido africana no Brasil: das origens a extino do trfico, 3 edio: So Paulo: Ed. Alfa e mega, 1975. 95 p. 29

BLACKBURN, Robin. Traduo de Maria Beatriz de Medina. A construo do escravismo no Novo Mundo: do barroco ao moderno, 1492-1800. Rio de Janeiro/ So Paulo: 2003. 21 p.

28

(...) vigorando at para quanto foi adquirido antes da data daquela faculdade, como para quanto posteriormente pode ou possa ser conquistado aos infiis e pagos provncias e ilhas, portos e mares, incluindo ainda a conquista desde os cabos Bojador e no at toda a Guin e, alm dela, toda a extenso meridional: tudo declaramos pertencer de direito in perpetuum aos mesmos D. Afonso e seus sucessores... Podero fundar nessas terras igrejas ou mosteiros, para l enviar eclesisticos seculares e, com autorizao dos superiores, regulares das ordens mendicantes... Se algum, indivduo ou coletividade, infringir estas determinaes, seja excomungado, s podendo ser absolvido se, satisfeitos o rei Afonso e seus sucessores ou o Infante, eles nisso concordarem30.

Aqui percebemos que o Infante D. Henrique chamado pelo Papa de

verdadeiro soldado de Cristo, que quer propagar o evangelho em toda orbe, como j

vem fazendo; o Papa ainda desautoriza outros a percorrerem para conquistar povos

nas mesmas rotas e concede ao rei D. Afonso a plena e livre faculdade, entre

outras, de invadir, conquistar, subjugar quaisquer islmicos e pagos, inimigos de

Cristo, suas terras e bens, a todos reduzir servido e tudo aplicar em utilidade

prpria e dos seus descendentes. E ainda lhes confere legitimamente mares e

terras, sem que nestes haja intromisso de ningum, pois isto para a obra de

proclamar o Reino de Deus. Essa autorizao da Coroa Portuguesa tem a finalidade

exclusiva de dominar o mundo pago indgena, subjugando escravido os nativos,

se estes no se convertessem f crist catlica. A implicao disto que os

lugares conquistados se tornaro colnias portuguesas com demandas de produo

e trabalho, que abrir um novo negcio bastante lucrativo, a comercializao de

escravos negros trazidos da frica.

Com a chegada desses europeus na Amrica do Sul, autorizados pelo Papa,

haver uma dizimao daqueles habitantes. Especialmente porque os brancos

europeus trazem em seus corpos doenas letais para os indgenas tropicais; e

tambm a explorao das suas terras e da sua mo de obra no voluntria, sero

atitudes igualmente destruidoras para aquelas naes de ndios, j presentes nas

terras americanas,

(Cuja) vida era uma tranquila fruio de existncia, num mundo dadivoso e numa sociedade solidria. Claro que tinham suas lutas,

30 HISTEDBR, on-line, Campinas, SP, 2006. Disponvel em:

, acessado em 28/07/2017.

http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/fontes_escritas/1_Jesuitico/annaes_da_biblioteca.htmhttp://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/fontes_escritas/1_Jesuitico/annaes_da_biblioteca.htm

29

suas guerras. Mas todas concatenadas, como prlios, em que se exerciam, valentes. (Mas, com a chegada do homem branco,) sem embargo, mais ainda que as espadas e os arcabuzes, as grandes armas da conquista, responsveis principais pela depopulao do Brasil, foram as enfermidades desconhecidas dos ndios com que os invasores os contaminaram31.

Os ndios morriam s dezenas de enfermidades incurveis trazidas pelos

brancos em seus corpos.

Na outra Amrica, a colonizada por ingleses, franceses, espanhis sendo

esses dois ltimos menos aguerridos em seus estabelecimentos mas a partir da

colonizao de ingleses protestantes, como os puritanos e os peregrinos, a colnia

torna-se, basicamente protestante.

Diferentemente dos ibricos que conquistaram a parte Sul do Novo Mundo

para deflorar e sugar com toda fora e possibilidades sua madeira, seu ouro, sua

pedraria, os britnicos buscaram na Amrica do Norte um lugar para morar, cultuar a

Deus em sua prpria expresso religiosa e comercializar. Fugindo tambm das

perseguies impostas por Henrique VIII que acabara de estabelecer sua prpria

Igreja Anglicana em 1534, uma vez que rompeu com Roma por questes polticas e

pessoais. O desenvolvimento das colnias trouxe a demanda e a necessidade de

mo de obra para a plantation, que foi sendo assimilada e desenvolvida no Norte

das Amricas.

Assim, as colnias americanas protestantes entendiam que a Bblia

autorizava os senhores de escravos a possu-los e tambm comercializ-los.

Pautando suas prticas escravistas em interpretaes bblicas particulares, aos

silvcolas, j presentes no Novo Mundo quando se estabeleceram, matavam por

doena ou por maldade ou, em menor escala que na Amrica do Sul, escravizavam.

Para isto, valiam-se, especialmente, de referncias bblicas do NT32, justificando

suas prticas. Eles afirmavam que as Escrituras ensinavam, em diversos textos, que

os escravos deveriam ser obedientes e subservientes aos seus senhores33.

31 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formao e o sentido do Brasil. 2 ed., 2 reimpresso:

So Paulo: Cia das Letras, 1995. pp. 47 e 52. 32

Nas citaes bblicas aqui referidas preferimos nos valer da traduo da Nova Verso internacional da Bblia, pois nesta verso o termo grego doulos traduzido por escravo. Outras verses traduzem o termo pela palavra servo. 33

BUSWELL III, J. Oliver. Slavery, Segregation and Scripture. Michigam: Eerdmans Publishing Co., 1964. p. 15-18.

30

E mesmo antes da utilizao do NT para esses fins, tanto os mercadores

europeus e norte-americanos, bem como os compradores dos escravos, entendiam

que, desde o VT, a raa negra era declaradamente amaldioada e que, por isso,

Deus os entregou servido, tendo como base legal o texto do livro de Gnesis no

captulo 9, que retrata o drama familiar de No.

A respeito da questo cor da pele, alguns interpretavam este mal como a

prpria maldio sofrida por Cam, outros entendiam que eram consequncias das

reaes climticas, outros ainda criam que se tratava de infeco natural que

passa de pai para filho. Eles deveriam ter renunciado a Deus; e a sua condio de

pagos representaria o abandono do conhecimento que No tinha do verdadeiro

Deus34.

O registro, que consta no livro de Gnesis no captulo 9, relata que No

amaldioa seu filho Cam:

E comeou No a ser lavrador da terra, e plantou uma vinha. E bebeu do vinho, e embebedou-se; e descobriu-se no meio de sua tenda. E viu Co, o pai de Cana, a nudez do seu pai, e f-lo saber a ambos seus irmos no lado de fora. Ento tomaram Sem e Jaf uma capa, e puseram-na sobre ambos os seus ombros, e indo virados para trs, cobriram a nudez do seu pai, e os seus rostos estavam virados, de maneira que no viram a nudez do seu pai. E despertou No do seu vinho, e soube o que seu filho menor lhe fizera. E disse: Maldito seja Cana; servo dos servos seja aos seus irmos. E disse: Bendito seja o Senhor Deus de Sem; e seja-lhe Cana por servo. Alargue Deus a Jaf, e habite nas tendas de Sem; e seja-lhe Cana por servo. (Gn 9.20-27)35

Segundo a histria bblica, depois da proclamao das bnos e maldio,

os filhos de No seguiram seus prprios rumos com suas famlias. Sendo o mais

abenoado os descendentes de Sem, os chamados semitas, de onde se originam

tambm os judeus; depois os descendentes de Jaf e por fim, os descentes de Cam,

que passaram a habitar as regies da frica.

34 BLACKBURN, Robin. Traduo de Maria Beatriz de Medina. A construo do escravismo no

Novo Mundo: do barroco ao moderno, 1492-1800. Rio de Janeiro/ So Paulo: Record, 2003. p. 95-96. 35BBLIA. Portugus. BIBLIA SAGRADA, Nova Verso Internacional: Antigo e Novo Testamentos. Traduzida pela comisso de traduo da Sociedade Bblica Internacional. So Paulo: Sociedade Bblica Internacional, 2000. p. 20-22.

31

Os cristos colonizadores da Amrica do Norte, que fizeram sua leitura

particular dos textos bblicos em benefcio prprio, basearam-se nesse texto. Pois,

convenientemente, entendiam que a maldio que No lanou sobre seu filho Cam

sentenciou sua descendncia escravido.

J. Oliver Buswell III, em sua pesquisa36 descreve os primeiros argumentos

bblicos dos senhores de escravos para justificar a escravido na Amrica do Norte:

(...) a caracterstica dada por Deus a cada filho de No, permanecem com eles at os dias atuais, portanto, o carter dos descendentes de Cam, o filho de No, bestial e degradado, estas so as caractersticas do negro37. (BUSWELL, 1964, 16 p.)

Ainda, textos bblicos eram destacados no NT, fora dos seus contextos, para

justificar suas prticas escravistas. Assim, da carta escrita ao pastor da igreja em

Creta, Tito, destacavam a orientao do autor na tratativa com os escravos que

pertenciam quela comunidade:

Ensine os escravos a se submeterem em tudo a seus senhores, a procurarem agrad-los, a no serem respondes e a no roub-los, mas a mostrarem que so inteiramente dignos de confiana, para que assim tornem atraente, em tudo, o ensino de Deus, nosso Salvador. (Tt 2.9-10)38

Outro texto recorrente para justificar suas aes, eles insistiam que os

escravos deveriam obedecer aos seus senhores, no apenas para agrad-los, mas

porque eram escravos, primeiramente de Cristo; tendo de servir a esses mestres de

boa vontade, pois o Senhor os recompensaria se assim procedessem e havia, neste

caso, a contrapartida dos senhores que deveriam tambm recompensar aos seus

escravos, sem ameaas. Para tanto se valiam do texto presente na carta escrita aos

Efsios:

36 No corpo do texto, segue a traduo livre do texto original em ingls: (...) the character given of God

to each of these three sons is the character of their descendents at the present moment, thus the descendents of Ham, the beastly and degraded son of noah, are the caracteristic of Negro. 37

BUSWELL III, J. Oliver. Slavery, Segregation and Scripture. Michigam: Eerdmans Publishing Co., 1964, 16 p. 38

BBLIA. Portugus. BIBLIA SAGRADA, Nova Verso Internacional: Antigo e Novo Testamentos. Traduzida pela comisso de traduo da Sociedade Bblica Internacional. So Paulo: Sociedade Bblica Internacional, 2000. p. 2086-2087.

32

Escravos obedeam a seus senhores terrenos com respeito e temor, com sinceridade de corao, como a Cristo. Obedeam-lhes no apenas para agrad-los quando eles os observam, mas como escravos de Cristo, fazendo de corao a vontade de Deus. Sirvam aos seus senhores de boa vontade, como ao Senhor, e no aos homens, porque vocs sabem que o Senhor recompensar a cada um pelo bem que praticar, seja escravo, seja livre. Vocs, senhores, tratem seus escravos da mesma forma. No os ameacem, uma vez que vocs sabem que o Senhor deles e de vocs est nos cus, e ele no faz diferena entre as pessoas. (Ef 6.5-9)39

Na mesma direo os orientavam de que deveriam obedecer aos senhores

terrenos com sinceridade de corao, uma vez que temiam a Deus. Eles deveriam

servir de corao, pois estavam servindo tambm a Cristo com esta atitude. E quem

cometesse injustia a receberia de volta. Esses argumentos sobre o servir

compulsoriamente tais senhores tiravam da carta escrita aos Colossenses que dizia:

Escravos obedeam em tudo a seus senhores terrenos, no somente para agradar os homens quando eles esto observando, mas com sinceridade de corao, pelo fato de vocs temerem ao Senhor. Tudo o que fizerem, faam de todo o corao, como para o Senhor, e no para os homens, sabendo que recebero do Senhor a recompensa da herana. a Cristo, o Senhor, que vocs esto servindo. Quem cometer injustia receber de volta injustia, e no haver exceo para ningum. (Cl 3:22-25)40

Ainda eram advertidos a serem submissos, suportar aflies quando sofriam

injustamente, pois foram chamados para isto, e assim como Cristo sofreu, seus

servos tambm deveriam suportar todo tipo de provao, sofrimento e injustia. E, o

prprio Pedro lhes orientava esse procedimento em sua epstola universal quando

escreveu:

Escravos sujeitem-se a seus senhores com todo o respeito, no apenas aos bons e amveis, mas tambm aos maus. Porque louvvel que, por motivo de sua conscincia para com Deus, algum suporte aflies sofrendo injustamente.Pois que vantagem h em suportar aoites recebidos por terem cometido o mal? Mas se vocs suportam o sofrimento por terem feito o bem, isso louvvel diante de Deus. Para isso vocs foram chamados, pois tambm Cristo sofreu no lugar de vocs, deixando-lhes exemplo, para que sigam os

39 BBLIA. Portugus. BIBLIA SAGRADA, Nova Verso Internacional: Antigo e Novo Testamentos.

Traduzida pela comisso de traduo da Sociedade Bblica Internacional. So Paulo: Sociedade Bblica Internacional, 2000. 2027 p. 40

Ibidem; 2047 p.

https://www.bibliaonline.com.br/nvi/cl/3/22-25

33

seus passos."Ele no cometeu pecado algum, e nenhum engano foi encontrado em sua boca".Quando insultado, no revidava; quando sofria, no fazia ameaas, mas entregava-se quele que julga com justia.Ele mesmo levou em seu corpo os nossos pecados sobre o madeiro, a fim de que morrssemos para os pecados e vivssemos para a justia; por suas feridas vocs foram curados.Pois vocs eram como ovelhas desgarradas, mas agora se converteram ao Pastor e Bispo de suas almas. (I Pe 2:18-25)41

Observando o que estava escrito na carta a Timteo, os senhores insistiam

em que os escravos deveriam respeit-los, pois isso honrava o nome de Deus e

convalidava o ensino presente na carta a Timteo; os escravos de senhores crentes

deveriam lembrar que estes eram seus irmos de f e que por isso deveriam servi-

los ainda melhor, pois os senhores eram fiis e amados. O texto dizia:

Todos os que esto sob o jugo da escravido devem considerar seus senhores como dignos de todo o respeito, para que o nome de Deus e o nosso ensino no sejam blasfemados. Os que tm senhores crentes no devem ter por eles menos respeito, pelo fato de serem irmos; pelo contrrio, devem servi-los ainda melhor, porque os que se beneficiam do seu servio so fiis e amados. Ensine e recomende essas coisas. (I Tm 6:1,2)42

Eles insistiam em que os escravos deveriam permanecer no estado em que

foram chamados, usando para isto especialmente a passagem da carta que Paulo

escreve aos corntios, embora a contradio implcita, pois Paulo afirma que se for

possvel conseguir o forro, que o escravo o faa:

Cada um deve permanecer na condio em que foi chamado por Deus. Foi voc chamado sendo escravo? No se incomode com isso. Mas, se voc puder conseguir a liberdade, consiga-a. Pois aquele que, sendo escravo, foi chamado pelo Senhor, liberto e pertence ao Senhor; semelhantemente, aquele que era livre quando foi chamado, escravo de Cristo. Vocs foram comprados por alto preo; no se tornem escravos de homens. Irmos, cada um deve permanecer diante de Deus na condio em que foi chamado. (I Co 7:20-24)43

41 BBLIA. Portugus. BIBLIA SAGRADA, Nova Verso Internacional: Antigo e Novo Testamentos.

Traduzida pela comisso de traduo da Sociedade Bblica Internacional. So Paulo: Sociedade Bblica Internacional, 2000. p. 2130 - 2131. 42

Ibidem; 2074 p. 43

Ibidem; 1963 p.

https://www.bibliaonline.com.br/nvi/1pe/2/18-25https://www.bibliaonline.com.br/nvi/1tm/6/1,2https://www.bibliaonline.com.br/nvi/1co/7/20-24https://www.bibliaonline.com.br/nvi/1co/7/20-24

34

Os senhores interessados em justificar seus atos, tambm argumentavam

que os escravos fugitivos deveriam ser devolvidos, segundo o que disse Paulo ao

devolver o fugitivo Onsimo ao seu dono, Filemon: Ele (o escravo Onsimo) antes

lhe era intil, mas agora til, tanto para voc quanto para mim. Mando-o de volta a

voc, como se fosse o meu prprio corao. (Fl 1:11,12)

Logo, a mnima expresso da Bblia que pudessem usar para justificar suas

aes, sem respeitar contextos e sem uma hermenutica adequada, era suficiente

para subsidiar seus argumentos e prticas.

Diferentemente desses argumentos pr-escravido, nossa hiptese repousa

sobre o fato de que Paulo de Tarso no se posicionou, nem a favor nem contra, a

escravido em seu tempo. Entendemos que sua postura seja resultado da

conscincia de que tinha outra misso, que envolvia seu engajamento na

proclamao dos ensinos de Jesus de Nazar.

Assim, nesta Era Moderna e diante do importante aquecimento econmico

atravs da plantation, ampliou-se, de modo jamais visto, o mercado escravo,

especialmente porque a escravido moderna foi uma escravido de homens

negros44, conseguidos nas costas e nos interiores africanos e trazidos para as

Amricas. O historiador britnico Robin Blackburn destaca que:

Estes sistemas escravistas eram de carter radicalmente novo se comparados com formas anteriores de escravido, embora fossem compostos de ingredientes de aparncia tradicional. Tornaram-se intensamente comerciais, transformando o comrcio atlntico na mola propulsora das trocas globais do sculo XVI ao XIX, embora, dentro da plantation, o dinheiro desempenhasse um papel aparentemente modesto, at mesmo desprezvel. O tabaco, o algodo, o acar produzidos pelos escravos facilitaram o nascimento de um mundo novo e crescente de consumo (...) a aquisio de cerca de doze milhes de cativos na costa da frica entre 1500 e 1870 contribuiu para possibilitar a construo de um dos maiores sistemas de escravido da histria humana45. (BLACKBURN, 2003, 15 p.)

Tambm a escravido no Novo Mundo envolveu os nativos das terras

americanas, que praticamente foram dizimados pelas doenas trazidas pelo homem

44 FINLEY, Moses. Escravido antiga, ideologia moderna. Trad. Norberto Luiz Guarinello. Rio de

Janeiro: Edies Graal, 1991. 11 p. 45

BLACKBURN, Robin. A construo do escravismo no Novo Mundo: do barroco ao moderno, 1492-1800. Traduo de Maria Beatriz de Medina. Rio de Janeiro/ So Paulo: Record, 2003. 15 p.

https://www.bibliaonline.com.br/nvi/fm/1/11,12

35

branco ou exterminados pelo desconhecido poderio blico empunhado pelos

dominadores.

No caso brasileiro estima-se que a populao indgena tenha sido de cinco

milhes quando da invaso, havendo tanto do lado portugus quanto do espanhol

uma tendncia evidente de se minimizar a populao indgena original. O

antroplogo Darcy Ribeiro entende que esses nmeros no devem estar certos e

que, possivelmente, o dobro disto parece fazer sentido em nmero de silvcolas

presentes no Brasil poca da chegada dos portugueses. Ele ainda comenta que:

a populao original do Brasil foi drasticamente reduzida por um genocdio de projees espantosas que se deu atravs da guerra de extermnio, do desgaste no trabalho escravo e da virulncia das novas enfermidades que os achacaram. A ele se seguiu um genocdio igualmente dizimador, que atuou atravs da desmoralizao pela catequese; da presso dos fazendeiros que iam se apropriando de suas terras; do fracasso de suas prprias tentativas de se encontrar um lugar e um papel no mundo dos brancos. Ao genocdio e ao etnocdio se somam guerras de extermnio, autorizadas pela Coroa contra os ndios considerados hostis, como os do Vale do Rio Doce e do Itaja. Desalojaram e destruram grande nmero deles. Apesar de tudo, espantosamente, sobreviveram algumas tribos indgenas ilhadas na massa crescente da populao rural brasileira. Esses so os indgenas que se integram sociedade nacional, como parcela remanescente da populao original46. (RIBEIRO, 1995, pp. 141 a 145)

Quanto escravido negra, os nmeros so muito mais expressivos. Desde o

sculo XVI, com a vinda dos primeiros negros escravizados para trabalhar nos

engenhos de acar, at a abolio da escravatura em 1888, j quase no sculo XX,

cerca de dezoito milhes de negros foram trazidos para as terras brasileiras.

Diferentemente dos nativos indgenas, os negros eram mais robustos e

resistentes a doenas e pestilncias. Embora esparsos e pouco expressivos, vrios

levantes e resistncias aconteceram. O mais expressivo certamente foram as

formaes de quilombos, que acolhiam escravos fugitivos de fazendas, dos quais o

mais famoso foi o Quilombo dos Palmares do final do sculo XVI. Muitas investidas

aconteceram contra este quilombo, mas foi somente no final do sculo XVII, que o

bandeirante Jorge Velho conseguiu matar o lder Zumbi e acabar com esse

importante foco de resistncia.

46 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formao e o sentido do Brasil. 2 ed., 2 reimpresso:

So Paulo: Cia das Letras, 1995. p.141-145.

36

Os Mals, que eram negros islamizados e alfabetizados, tentaram subverter a

ordem nacional no sculo XIX (1835). Embora fossem chamados de negros de

ganho, pois exerciam atividades livres, sofriam o preconceito, embargo comercial e

discriminao religiosa, o que os motivou a se organizar contra o governo. Os

muulmanos era a minoria na Bahia, mas mesmo assim havia uma representao

expressiva, segundo Joo Jos Reis entre 15 a 20% dos negros africanos47. Mas, o

plano de rebelio foi denunciado. Eles foram cercados pelos soldados brasileiros

enquanto articulavam a revolta e desbaratados, restando um saldo de sete soldados

mortos, contra setenta escravos mortos.

A alforria de negros, no caso brasileiro, era possvel de diversas formas.

Sabemos que a mo de obra primria no Brasil colonial, tanto nas plantations como

na minerao do ouro, eram os negros escravizados. Um censo realizado em 1798

registrou a presena de 1.582.000 escravos, numa populao de 3.248.000

habitantes48.

O historiador Robin Blackburn nos diz que, em relao escravido do Novo

Mundo,

A escravido no Velho Mundo foi muito mais diversificada, tanto no padro do emprego quanto em sua composio tnica, com mestres escravos gregos, administradores escravos egpcios, criados escravos ingleses, trabalhadores escravos alemes e muito mais (embora muito pouco africanos negros). E embora o status de escravo fosse transmitido por herana no Velho Mundo e em outras sociedades escravocratas, havia duas restries a esta forma de reproduo da mo de obra escrava. Em primeiro lugar, os escravos tinham poucos filhos; em segundo nos locais onde tinham filhos costumava ocorrer uma melhora gradual da condio de seus descendentes: as geraes posteriores adquiriam alguns direitos, ou mesmo beneficiavam-se da alforria. A alforria acontece nas colnias do Novo Mundo, embora fosse menos comum nos lugares onde foi maior o desenvolvimento da plantation. Em relao grande maioria, a escravido no Novo Mundo foi uma maldio da qual at os netos dos netos dos cativos africanos originais achavam extremamente difcil escapar. Foi um tipo de escravido muito forte, sem precedentes. (BLACKBURN, 2003, 589 p.)

47 REIS, Joo Jos. Rebelio escrava no Brasil: a histria do levante dos Mals em 1835. Edio

revista e ampliada. So Paulo: Cia das Letras, 2003. 177 p. 48

BLACKBURN, Robin. A construo do escravismo no Novo Mundo: do barroco ao moderno, 1492-1800. Traduo de Maria Beatriz de Medina. Rio de Janeiro/ So Paulo: Record, 2003. 589 p.

37

Com essa digresso nossa inteno mostrar como a motivao,

supostamente religiosa e o uso da Bblia, estavam presentes nas aes

expansionistas dos Europeus em direo ao Novo Mundo. Verificaremos outros

modelos de escravido, para chegarmos ao objeto da nossa pesquisa.

1.2 Os judeus e a escravido

Os textos bblicos judaicos mostram de maneira muito peculiar a lide com os

escravos. Alm da prpria Tor (os cinco primeiros livros do VT), tambm no

restante do contedo do TANAK (Velho Testamento inteiro)49 h legislaes sobre a

escravido e a manumisso. E no Talmud e no Midrash, que so duas grandes

obras que constituem a tradio oral do povo judeu, elaboradas no incio da Idade

Mdia, encontramos prescries sobre a escravido50. Assim, os judeus tinham

cdigos prprios pautados nos textos do AT para lidar com a escravido dentro da

sua sociedade.

E pensando especialmente em Jerusalm epoca de Jesus e Paulo,

encontramos escravos como domsticos, no sendo muito numerosos e na maioria

dos casos no se consegue saber a origem desses escravos, uma vez que muitos

deles eram circuncidados pelos donos, o que os tornavam judeus proslitos. Outro

servial encontrado em Jerusalem era o diarista, neste caso tratava-se de um

homem alugado por um rico habitante de Jerusalm. Esses trabalhadores ganhavam

um denrio, que era o preo de um dia de servio e a refeio51.

Em alguma medida, a tratativa com o escravo dentro do contexto da Palestina

do primeiro sculo era diferente da tratativa no mundo Greco-romano. Neste ltimo

caso a literatura mostra que os escravos daquelas sociedades eram considerados

coisas ou animais que somente trabalhavam e que eram desprovidos de capacidade

de pensar, e para sobrar foras para o trabalho comiam e dormiam; eram vendidos

segundo as mesmas normas que se vendem objetos, contabilizados entre os

49 Lembremos que a expresso Tanak refere-se a toda a bblia judaica, que compreende a Tor ou

Pentateuco, os Profetas e Os escritos, abrangendo todos os livros do Antigo Testamento, de Gnesis at o profeta Malaquias. 50

AZEVEDO, L. V. Midrash Rabbah: a tradio oral e a discusso rabnica medieval. Caderno de Pesquisa CDHIS, on-line, Uberlndia: vol. 1, n 37, jul-dez. 2007. Para acessar o artigo, digitar, ou copiar a colar, o nome do mesmo na barra de endereo da internet, acessado em 20/08/2017. 51

JEREMIAS, Joachim. Jerusalm nos tempos de Jesus. Traduo de M. Ceclia de M. Duprat. So Paulo: Ed. Paulinas, 1983. p. 157-158.

38

utenslios e os animais, considerados coisa mvel (res mobilis) e, contrariamente ao

assalariado, a sua pessoa no se distinguia da sua capacidade de trabalho52.

Ainda, dentro do contexto Greco-romano, sabemos tambm que a

manumisso era possvel, mas muito difcil de obter53, especialmente se aquele

escravo fosse um trabalhador no campo e/ou nas minas. Neste caso sua vida durar

at aos trinta anos, no mximo quarenta; enquanto que o escravo urbano ter vida

menos sacrificada, embora tambm tratado como coisa ou objeto cuja existncia

restringe-se a vontade do seu senhor. E, a no ser que caia em suas graas e

alcance alforria devido sua juventude lhe servindo como objeto sexual, morrer de

trabalho ou doena.

A diferena na tratativa prescrita por lei nessas sociedades antigas ser

encontrada na literatura judaica, onde temos que um escravo hebreu no deveria

pertencer a um senhor hebreu por mais de seis anos (xodo 21.2)54. A no ser em

caso espontneo de pertencimento, onde o escravo decide ficar com o seu senhor,

depois de expirado o prazo do seu servio e o senhor concorde com isto.

Mas, o que chama a nossa ateno tambm o fato de um escravo judeu

ter valor comercial inferior em relao a um escravo estrangeiro. Enquanto aquele

valia entre 1 e 2 minas, o preo do estrangeiro poderia chegar at 100 minas.

Lembremo-nos de que cada mina era uma medida monetria equivalente a 100

dracmas (cerca de trs meses de salrio)55. Evidentemente por conta de que no

caso do escravo judeu seu prazo de servio de no mximo seis anos, enquanto

que o estrangeiro poder ser pelo resto da vida.

Joachim Jeremias nos ajuda a entender que dentro da sociedade judaica

palestina, do ponto de vista legal, poca de Jesus e Paulo, um judeu poderia se

tornar escravo de trs maneiras56: a primeira, quando furtava e era pego, no tendo

52 GIARDINA, Andrea. (Org.). O homem romano. Trad. Maria Jorge Villar de Figueiredo. Lisboa:

Editorial Presena, 1991, 120 p. 53

GUARINELLO, Norberto Luiz. Escravos sem senhores: escravido, trabalho e poder no mundo romano. Revista Brasileira de Histria, on-line, So Paulo, vol.26, n. 52, Dec. 2006. Disponvel em . Acesso em 20 set. 2016, 232 p. 54

BBLIA, A. T. xodo. In BBLIA. Portugus. Bblia de Jerusalm: Antigo e Novo Testamentos. Traduo de Gilberto da Silva Gorgulho. So Paulo: Edies Paulinas, 2 impresso, 1992. 136 p. 55

BBLIA, N.T. Lucas. In BBLIA. Portugus. A Bblia Anotada edio expandida, Charles C. Ryrie: Antigo e Novo Testamentos. Traduo de Susana Klassen. So Paulo: Ed. Mundo Cristo, Barueri: SBB, 2007, 1008 p. 56

JEREMIAS, Joachim. Jerusalm nos tempos de Jesus. Traduo de M. Ceclia de M. Duprat. So Paulo: Ed. Paulinas, 1983. p. 414-417.

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882006000200010#nt05http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882006000200010#nt05

39

condio de reaver os bens furtados, o tribunal o vendia compulsoriamente, levando

em conta o texto de xodo 22.3: Um ladro ter que restituir o que roubou, mas se

no tiver nada, ser vendido para pagar o roubo. Numa segunda maneira, trata-se

de que os homens poderiam vender a si mesmos voluntariamente, desde que fosse

homem adulto. Assim, em tempos de muita escassez, algum poderia se colocar

nessa condio. O texto que usavam diz:

"Se algum do seu povo empobrecer e se vender a algum de vocs, no o faam trabalhar como escravo. Ele dever ser tratado como trabalhador contratado ou como residente temporrio; trabalhar para quem o comprou at o ano do jubileu. Ento ele e os seus filhos estaro livres, e ele poder voltar para o seu prprio cl e para a propriedade dos seus antepassados. Pois os israelitas so meus servos, a quem tirei da terra do Egito; no podero ser vendidos como escravos. No dominem impiedosamente sobre eles, mas temam o seu Deus. (Lv 25.39-43)57

Neste caso, aceitava-se a venda a judeus, mas impunha-se aos pais o

direito de resgate. Na maioria das vezes quem chegava a ponto de vender-se o fazia

num gesto que demonstrava que esta era a sua ltima opo para sobreviver.

Um terceiro modo de escravido, dentro da sociedade judaica, era que a lei

outorgava o direito a pais judeus de venderem suas filhas, desde que fossem

menores, at a idade de 12 anos, a outro judeu. Neste caso, geralmente, a venda da

jovem significava que mais tarde esta se casaria com o seu dono, ou com o filho

deste. O texto de xodo 21 era a base legal para esta ao:

"Se um homem vender sua filha como escrava, ela no ser liberta como os escravos homens. Se ela no agradar ao seu senhor que a escolheu, ele dever permitir que ela seja resgatada. No poder vend-la a estrangeiros, pois isso seria deslealdade para com ela. Se o seu senhor a escolher para seu filho, lhe dar os direitos de uma filha. Se o senhor tomar uma segunda mulher, no poder privar a primeira de alimento, de roupas e dos direitos conjugais. Se no lhe garantir essas trs coisas, ela poder ir embora sem precisar pagar nada. (xodo 21:7-11)58

57 BBLIA. Portugus. BIBLIA SAGRADA, Nova Verso Internacional: Antigo e Novo Testamentos.

Traduzida pela comisso de traduo da Sociedade Bblica Internacional. So Paulo: Sociedade Bblica Internacional, 2000. 197 p. 58

Ibidem; 127 p.

https://www.bibliaonline.com.br/nvi/ex/21/7-11

40

Mas, se voltarmos antes da Lei Mosaica, para alm desta legislao

baseada na religio, os povos que formaram o que mais tarde seria conhecido como

o povo Hebreu praticavam a escravido. Se observarmos os textos bblicos desde a

Tor (os cinco primeiros livros do AT), veremos que a primeira meno bblica sobre

escravido se encontra em Gnesis quando No sentencia os descendentes do seu

filho Cam por conta de um episdio familiar. Ele diz: Maldito seja Cana, que ele

seja o ltimo dos escravos!59.

Na Dinastia de Ur dos Caldeus a arqueologia encontrou uma instalao para

a produo cermica com muitos fornos de oleiros prximos, sinal de uma produo

em massa e extrafamiliar60, muito provavelmente usando-se de mo de obra escrava

essas produes eram realizadas; Ur era uma cidade da Sumria, a mais importante

dentre um complexo de cidades-estados, povoada por civilizao altamente culta,

pelo menos desde a metade do quarto milnio61; o prprio Abro habitante da regio

era dono de escravos, como diz o texto bblico: Abro tomou sua mulher Sarai, seu

sobrinho L, todos os bens que tinham reunido e o pessoal que tinham adquirido em

Har (Gn 12.562). Embora a traduo da BJ traga a expresso o pessoal que tinha

adquirido, originalmente o termo hebraico utilizado pelo autor bblico Hanefesh

que pode ser traduzido como: pessoas, almas, indivduos etc. O sentido do texto

aponta para pessoas adquiridas, compradas.

Assim, Abro era possuidor de muitos escravos e dois destes so destacados

dentro da narrativa bblica, a saber, Elizer e Hagar. Elizer era um escravo de

origem sria, de Damasco (Gn 15.263) e, provavelmente tenha sido este servo, que

era responsvel por tudo quanto Abro tinha, que foi incumbido pelo patriarca de

encontrar uma esposa para seu filho Isaque (Gn 24.264). A outra escrava destacada

pela narrativa bblica trata-se de Hagar que era Egpcia, que sob a orientao de

59BBLIA. Portugus. BIBLIA DE JERUSALM: Antigo e Novo Testamentos. Traduo de Gilberto da

Silva Gorgulho. So Paulo: Edies Paulinas, 2 impresso, 1992. 44 p. 60

Liverani, Mario. Antigo Oriente: histria, sociedade e economia. Traduo: Ivan Esperana Rocha. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 2016. 100 p. 61

MERRILL, Eugene H. Histria de Israel do Antigo Testamento: o reino de sacerdote que Deus colocou entre as naes. Traduo: Romell S. Carneiro. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2 edio 2002. 12 p. 62

Op. Cit., 47 p. 63

Ibidem; 50 p. 64

Ibidem; 61 p.

41

Sarai, foi concubina de Abro e lhe deu seu primeiro filho, Ismael (Gn 16.1-265).

Esses dois exemplos podem, minimamente, iluminar como as relaes entre senhor

e escravos se davam. Ora se Abro, habitante de Ur dos Caldeus desenvolveu uma

relao assim com seus escravos, a ponto de incumbir um deles de escolher uma

noiva para o seu filho e a outra de lhe possuir e permitir descendncia podemos

perceber que a relao nestes casos, entre senhor e escravos, no contemplava

apenas o aspecto servil, mas muitas vezes poderia implicar em relaes familiares.

Pensando na temporalidade em que esses episdios bblicos ocorreram,

cerca de 1.700 a 1.800 A.C., a questo que se coloca se haveria alguma

legislao sobre escravido poca, e em caso afirmativo, qual seria esta

legislao. Talvez o famoso Cdigo de Hamurabi, da mesma poca e regio da

Sumria, com suas muitas leis sobre a escravatura, fosse uma referncia ao modus

vivendi dos povos possuidores de escravos poca, no sendo diferente a

experincia e tipo de relao que Abro desenvolveu com seus sditos.

O que chama tambm nossa ateno que, segundo o texto bblico, Deus

disse a Abro que seus descendentes seriam escravos numa terra estrangeira

durante quatrocentos anos (Gn 15.1366). A narrativa bblica mostra que os hebreus

desceram para o Egito em nmero de setenta pessoas e passaram mais de

quatrocentos anos entre os Egpcios (Gn 46.2767; Ex 12.4068), e que em boa parte

desse tempo foram escravos de Fara (Ex 1. 6-1469). Ao que nos parece, lendo o

texto bblico que narra esse tempo, que os egpcios tratavam os escravos hebreus

com muito rigor. O que sabemos a partir das narrativas bblicas que os egpcios

temiam os hebreus que eram muito frteis e aumentavam em nmero

expressivamente. A legislao Egpcia sobre a escravido contemplava ao menos

trs tipos de escravos: os escravos cativos de guerras; aqueles que se tornavam

escravos voluntariamente, por conta de dvidas; e os livres que se tornavam

escravos compulsoriamente, mediante uma convocao do governo70. No caso

hebreu, estes tornaram-se escravos pelo fato de serem estrangeiros e tambm pelo

65 BBLIA. Portugus. BIBLIA DE JERUSALM: Antigo e Novo Testamentos. Traduo de Gilberto

da Silva Gorgulho. So Paulo: Edies Paulinas, 2 impresso, 1992. 51 p. 66

Ibidem; 50 p. 67

Ibidem; 97 p. 68

Ibidem; p. 122 e 123. 69

Ibidem; 106 p. 70

REDFORD, Donaldo B. (Ed.) The Oxford Encyclopedia of Ancient Egypt. Oxford: Oxford University press, 2002.

42

risco que ofereciam, uma vez que, segundo o relato bblico, aumentaram

expressivamente sua populao.

Depois do perodo de escravido dos hebreus no Egito, uma vez sados da

frica, entraram na sia, chegando at regio da Palestina. Estabeleceram-se em

doze tribos com governos locais e autonomia e, sobretudo, conectados por vnculos

religiosos. Por volta do ano 1.000 A.C. eram orientados pela Tor e tambm por

sacerdotes e profetas. O ltimo profeta que tambm fora legislador foi Samuel e,

sua poca, os israelitas estabeleceram um rei sobre as Doze Tribos (I Sm 8.1-571).

Este perodo foi conhecido como Reino Unido de Israel. Trs reis, no perodo de

cerca de 100 anos governaram os Israelitas como uma nica nao. O primeiro

deles foi Saul, depois Davi e por fim Salomo, filho de Davi. Assim, nesses tempos,

o Rei, se constitua como outro elemento de orientao ao povo, alm dos demais

sacerdotes e profetas.

poca, profetas se levantaram e proferiram suas sentenas contra os

israelitas que no estavam andando em conformidade com a Tor. Seguindo-se a

isto deu-se uma diviso no Reino, aps a morte de Salomo, uma vez que dois de

seus filhos disputaram a sucesso, o que implicou numa diviso das doze tribos,

ficando duas ao Sul: Jud e Benjamin; e as demais ao Norte: Rben, Simeo,

Zebulom, Issacar, D, Gade, Aser, Naftali, Manasss e Efraim72.

No ano de 722 A.C. os assrios sob o governo de Senaqueribe, levaram

cativos os hebreus habitantes das dez tribos, cuja capital era Samaria. Mais, tarde,

em 586 A.C. os Babilnicos de Nabucodonosor levaram cativos os Judeus

habitantes da Judeia, cuja capital era Jerusalm. Assim, em tempos diferentes os

hebreus foram escravos em terras estrangeiras. Na primeira situao, antes se de

constiturem nao, sob o domnio Egpcio, mais tarde pelos Assrios, e

posteriormente pelos Babilnicos.

Os modos de domnio desses ltimos eram diferentes. Enquanto os assrios

espalhavam seus dominados e os misturavam a outros povos, os babilnicos os

permitiam permanecer em seus domnios criando vilas, sendo que separavam os

que tinham entendimento e nobreza, para fins de contribuir intelectual e

71 BBLIA. Portugus. BIBLIA DE JERUSALM: Antigo e Novo Testamentos. Traduo de Gilberto da

Silva Gorgulho. So Paulo: Edies Paulinas, 2 impresso, 1992. 429 p. 72

SCHULTZ, Samuel J. A histria de Israel no Antigo Testamento. Traduo: Joo Marques Bentes. So Paulo: Edies Vida Nova, 1977. 151 p.

43

administrativamente com o governo babilnico. Por fim, a histria mostra que, antes

dos hebreus se constiturem como nao, seus patriarcas e, posteriormente, seus

descendentes tiveram experincias importantes com a escravido.

1.3 Escravido grega e romana

As duas sociedades antigas onde se encontram slida legislao sobre a

instituio da escravido so Grcia e Roma. E h de se esclarecer que todas as

sociedades antigas tiveram escravos, mas isto no significa que todas elas eram

sociedades escravistas. As sociedades genuinamente escravistas no se

configuram apenas como aquelas que tm escravos, mas sim no como esses

escravos participam ativamente da economia e da sociedade.

Os gregos tinham seus escravos, conhecidos como hilotas, que eram

escravos-propriedade, espcie de funcionrios do Estado, responsveis pela

produo. E, ao mesmo tempo tambm em que estes no eram livres, no

pertenciam a indivduos. Os hilotas eram possuidores de todas as instituies

humanas normais, com exceo liberdade. E, quando havia uma importante

necessidade militar, eram incorporados ao exrcito para atender s demandas da

guerra.

Os modos de se tornar um escravo na Grcia, como na maioria das

sociedades antigas, em primeiro lugar, se dava atravs da captura de povos por

meio de guerras, e vrias cidades transformavam os prisioneiros em escravos.

Esparta era uma cidade grega especialmente dedicada guerra, e a presena to

volumosa de escravos permitia que soldados matassem escravos nas ruas,

treinando para a guerra e diminuindo a populao, pois muitos escravos

demandavam muito consumo de comida, gua, roupas, artefatos, espao fsico e

outras demandas; a escravido podia acontecer por dvida, e tambm era comum

em algumas cidades gregas o devedor tornar-se escravo do credor, durante o tempo

estabelecido entre ambos; Como tambm acontecia no caso dos escravos

domsticos romanos, na Grcia, o escravo que trabalhava nas casas, limpando,

cozinhando, cuidando de crianas tinha uma condio muito menos sacrificada

daqueles que trabalhavam nos campos ou nas minas. Os trabalhos braais, grosso

modo, eram dispensados pelo homem grego, voltado ao pensamento, poltica e s

44

artes; assim assumiam a mxima de Plato que afirmava que prprio do homem

bem nascido desprezar o trabalho.

Agora, o que seria a escravido romana no primeiro sculo? Embora esse

termo seja comum e possa parecer de fcil definio, Norberto Guarinello aponta

para o fato de que o Imprio Romano conheceu diferentes formas de trabalho

compulsrio, dentre elas uma que denominamos escravido. Com essa afirmao

pontua a dificuldade em se definir o termo:

A forma extrema dessas relaes de dependncia, que podemos, por analogia, denominar de 'escravido', era aquela na qual o escravo era geralmente um estrangeiro, ou filho de me escrava, podendo ser comprado e vendido livremente no mercado e sobre o qual o proprietrio exercia um imenso poder, embora no ilimitado. Mas essa forma foi uma exceo e nunca a regra nesse chamado mundo

antigo 73

.

Dentre as difceis possibilidades de definio sobre a escravido na Roma do

primeiro sculo do Imprio, podemos perceber algumas luzes que revelam certos

aspectos da escravido. Um desses aspectos descrito por Paul Veyne, quando diz

que a escravido pode se tratar de um estatuto jurdico e no de uma condio

social e ainda, sob a sua tica, no haveria uma pirmide de classes, como as

conhecemos no nosso mundo moderno e, sim, realidades jurdicas e hierrquicas

diferentes74. Nessa direo, parece tambm concordar Moses Finley, que entende o

escravo como uma categorizao jurdica; uma propriedade que, dentro dessa

realidade, sofria no s uma perda total do controle sobre o seu trabalho, mas

tambm do controle sobre sua pessoa e personalidade, estendid