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LUÍS DOS SANTOS VILHENA: PENSAMENTO ILUSTRADO NA COLÔNIA Gabriel de Abreu M. Gaspar Luís dos Santos Vilhena nasceu em 1744, na vila de são Tiago do Cassino, no Alentejo e no ano de 1787 foi designado para o lugar de mestre régio de grego na Bahia. Permaneceu em Salvador até 1799, quando retornou à Portugal para tratar de sua saúde e solicitar o seu jubilamento, alcançado em 1801 1 . Logo depois deve ter retornado à Bahia, onde faleceu em 1814. É autor de 24 cartas 2 que descrevem e analisam a América Portuguesa no final do século XVIII. As primeiras 20 cartas foram escritas na colônia e são destinadas a Filopono, que se pode traduzir por "aquele que aprecia o esforço do trabalho", dedicadas ao príncipe regente D. João. As demais, foram completadas em Portugal e endereçadas a Patrífilo, Rodrigo de Sousa Coutinho, Secretário da Marinha e do Ultramar. É possível identificar um alinhamento entre as ideias do professor régio e as do ministro, ambos em um espaço das Luzes portuguesas, preocupadas, sobretudo, em corrigir as deficiências da administração, em promover a expansão da agricultura na colônia por meio de conhecimentos práticos e de métodos mais racionais. Neste trabalho analisou-se a 24ª. Carta, 1 NEVES, Guilherme Pereira das. "Luís dos Santos Vilhena". In: VAINFAS, Ronaldo (dir.). Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808) . Rio de Janeiro, Objetiva, 2000. 2 A cartas estão disponíveis em duas edições: VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no século XVIII. Salvador, Itapuã, 1969, 3 v. e _____. Recopilação de notícias soteropolitanas e brasílicas. Bahia, Imprensa Oficial, 1921-22, 2 v. 1

Luís dos Santos Vilhena: Pensamento Ilustrado na Colônia

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Luís dos Santos Vilhena nasceu em 1744 e no ano de 1787 foi designado para o lugar de mestre régio de grego na Bahia. É autor de 24 cartas que descrevem e analisam a América Portuguesa no final do século XVIII. As primeiras 20 cartas foram escritas na colônia e são destinadas a "Filopono", que pode-se traduzir por "aquele que aprecia o esforço do trabalho", dedicadas ao príncipe regente D. João. As demais, foram completadas em Portugal e endereçadas a "Patrífilo", Rodrigo de Sousa Coutinho, Secretário da Marinha e do Ultramar (1795-1801). É possível identificar um alinhamento entre as ideias do professor régio e as do ministro, ambos em um espaço das Luzes portuguesas, preocupadas, sobretudo, em corrigir as deficiências da administração e em promover a expansão da agricultura na colônia por meio de conhecimentos práticos e de métodos mais racionais. Neste trabalho analisou-se a 24ª. Carta, publicada sob o título de "Pensamentos políticos sobre a Colônia" destacando seu caráter ilustrado sob os seguintes aspectos: suas considerações sobre a população, a proposta de uma lei de terras e as duras críticas ao comércio.

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LUS DOS SANTOS VILHENA: PENSAMENTO ILUSTRADO NA COLNIAGabriel de Abreu M. Gaspar

Lus dos Santos Vilhena nasceu em 1744, na vila de so Tiago do Cassino, no Alentejo e no ano de 1787 foi designado para o lugar de mestre rgio de grego na Bahia. Permaneceu em Salvador at 1799, quando retornou Portugal para tratar de sua sade e solicitar o seu jubilamento, alcanado em 1801[footnoteRef:1]. Logo depois deve ter retornado Bahia, onde faleceu em 1814. autor de 24 cartas[footnoteRef:2] que descrevem e analisam a Amrica Portuguesa no final do sculo XVIII. As primeiras 20 cartas foram escritas na colnia e so destinadas a Filopono, que se pode traduzir por "aquele que aprecia o esforo do trabalho", dedicadas ao prncipe regente D. Joo. As demais, foram completadas em Portugal e endereadas a Patrfilo, Rodrigo de Sousa Coutinho, Secretrio da Marinha e do Ultramar. possvel identificar um alinhamento entre as ideias do professor rgio e as do ministro, ambos em um espao das Luzes portuguesas, preocupadas, sobretudo, em corrigir as deficincias da administrao, em promover a expanso da agricultura na colnia por meio de conhecimentos prticos e de mtodos mais racionais. Neste trabalho analisou-se a 24. Carta, publicada sob o ttulo de "Pensamentos polticos sobre a Colnia"[footnoteRef:3] destacando seu carter ilustrado sob os seguintes aspectos: suas consideraes sobre a populao, a proposta de uma lei de terras e as duras crticas ao comrcio. [1: NEVES, Guilherme Pereira das. "Lus dos Santos Vilhena". In: VAINFAS, Ronaldo (dir.). Dicionrio do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro, Objetiva, 2000.] [2: A cartas esto disponveis em duas edies: VILHENA, Lus dos Santos. A Bahia no sculo XVIII. Salvador, Itapu, 1969, 3 v. e _____. Recopilao de notcias soteropolitanas e braslicas. Bahia, Imprensa Oficial, 1921-22, 2 v.] [3: VILHENA, Lus dos Santos. Pensamentos polticos sobre a Colnia. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, Srie Publicaes Histricas 87, 1987.]

As colunas mais slidas e bases estveis da colniaPopulao, agricultura e comrcio so as colunas mais slidas e a base mais estvel das colnias que conservamos na Amrica, compreendidas no Principado do Brasil. Carece refletirmos se tem havido a precisa ateno solidez destas colunas, se se acham em estado de sustentar o grande peso que sobre elas gravita e o modo por que podero sustent-lo, no caso de terem sado do seu equilbrio. (p.39)Segundo Vilhena, o essencial da economia brasileira podia ser descrito na frase supracitada, considerando que os pilares de sustentao da economia colnia eram populao, agricultura e comrcio, mas questiona se "tem havido a precisa ateno solidez destas colunas". Entre as crticas e as propostas, o professor rgio diagnostica que o Estado do Brasil est dividido em grandes capitanias gerais e capitanias subalternas, que, caso povoadas e cultivadas de acordo com a extenso e qualidade do terreno, nada teriam que invejar aos Estados da Europa. Contudo, este "pas extensssimo, fecundo por natureza e riqussimo" habitado por poucos colonos, em sua maior parte pobres e famintos: a capitania da Bahia a mais povoada, no porm a mais extensa, pois que algumas h que a sucedem; por consequncia, tm logo todas as capitanias uma populao extremosamente pequena em comparao do mbito, no s do todo do Estado, como de cada uma de por si. (p. 51, grifo nosso)Ao considerar que "sem homens no h sociedade, e sem meios de subsistncia no pode haver homens" (p. 51), Vilhena afirma que a falta de populao no Brasil causada pela pobreza e considera a terra como "subsidiria dos viventes". Ele vai alm e constata que "quem gera o cidado a propriedade" (p. 54). Estabelece-se a a correlao entre propriedade da terra, atividade agrcola e populao e diagnostica o problema das grandes propriedades, como "causa dos vcios de um e da misria de inumerveis" e obstculos para a populao. Portanto, os pobres no so os nicos culpados pela decadncia da agricultura, a concentrao fundiria tambm o era, j que a lei do morgadio impedia que os demais filhos do senhorio tivessem terras para produzir: Quantos filhos segundos e terceiros estariam estabelecidos; seriam chefes de fecundas famlias se aquela reunio de propriedades vinculadas que privativamente passam posse do primognito fossem desanexadas e igualmente repartidas pelos irmos a que o feio semblante da pobreza faz aborrecer o consrcio. (p. 53)Assim, ele declara que a Lei de terras uma necessidade, ao considerar a agricultura como chave mestra para a subsistncia dos homens e expanso da populao. Vilhena prope uma lei agrria com limitao de tempo que redistribusse as terras entre a populao marginalizada, porm respeitando a classe senhorial. Diz ele que "(...) poderiam dividir-se as terras pelas famlias que se achassem em cada um dos distritos" (p. 57), considerando no s o nmero, mas a qualidade delas, alm de suas comodidades e serventias. Estas terras deveriam permanecer indivisas e medida do aumento dessas famlias, outros lotes de terras deveriam ser concedidos. As terras improdutivas deveriam ser confiscadas em um prazo de dois anos se no fossem cultivadas e as florestas de madeira de lei permaneceriam sob controle da coroa portuguesa. Alm disso, ele identifica a necessidade de nomeao de um ministro intendente para zelar pela prtica e cuidar para que fosse cultivado o gnero de acordo com as propriedades das terras, pois as incoerncias de "querer que d tabaco o terreno que tem propriedade para algodo e vice-versa" impede um melhor desenvolvimento agrcola, em suma, "h preciso de plant-las de que elas melhor produzem" (p. 58). Se, para o autor, o cidado gerado pela propriedade e esta lei tornaria proprietrios um grande nmero de brasileiros, um grande nmero de pessoas se converteria em cidados.Alm disso, ele prope uma outra lei para solucionar um problema colonial: a populao ociosa, que ter "foras para fazer evacuar das cidades os preguiosos vadios e povoar de agricultores as campanhas" (p. 59). Os vadios seriam, ento, convertidos em trabalhadores rurais, aproveitando-se os braos trabalhadores para o sucesso do projeto colonial.O comrcio ocupou lugar importante na anlise de Lus dos Santos Vilhena e foi considerado tambm um dos pilares slidos para a conservao das colnias. O professor de grego afirma que a liberdade " o esprito dominante do comrcio, e que sem ela impossvel que este possa florescer", mas defende que cada um entende esta palavra segundo seu modo de pensar. Mas, para ele, ela consiste na liberdade na autoridade das leis, sabedorias e prudncia de governo e felicidade dos povos, j que certo que em toda a parte deve a administrao ser o sustentculo da prosperidade dos povos, da opulncia da nao; deve mostrar a sua influncia na explanao das vidas por que os homens corram para a felicidade. [...] pelo que pertence ao comrcio deve atender a que as provncias da sua dependncia no sofram muito por causa da distncia nem da proximidade, e que cada um tenha para a exportao e importao aquelas facilidades que forem relativas sua posio. (p. 73, grifo nosso)Ele diagnostica que o comrcio da Amrica til e vantajoso, j que por meio dele so fornecidos gneros indispensveis Europa. Ao mesmo tempo, "de todos os estabelecimentos de Portugal o Brasil no s o mais rico como o mais suscetvel de melhoramento" (p.74) e o mais interessante ao comrcio, desde que povoado e cultivado o quanto deve e pode ser. Cabe destacar a consonncia desta perspectiva com a de Rodrigo de Souza Coutinho, considerado, por Guilherme Pereira das Neves, "um dos mais notveis representantes da Ilustrao portuguesa"[footnoteRef:4]. Secretrio de Estado da Marinha e Domnios Ultramarinos (1796-1801), d. Rodrigo capitaneava um conjunto de letrados, denominados por Kenneth Maxwell de "gerao de 1790"[footnoteRef:5] que buscavam reconhecer e mapear o imprio e percebiam a situao frgil em que se encontrava Portugal no fim do sculo XVIII. [4: NEVES, Guilherme Pereira das. Rodrigo de Souza Coutinho. In: VAINFAS, Ronaldo (dir.). Dicionrio do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro, Objetiva, 2000.] [5: "A gerao de 1790 e a idia de imprio luso-brasileiro". In: Chocolate, piratas e outros malandros.So Paulo, Paz e Terra, 1999.]

Vilhena destaca a importncia da prudncia na escolha dos governadores para cada uma das capitanias e dos ministros e oficias para a administrao da justia e da fazenda. Cabia tambm metrpole, fechar "as infinitas portas por onde se introduz o ruinosssimo contrabando" (p. 74) e no permitir muitas fbricas nas colnias do Brasil, pois elas absorveriam as finanas das exportaes e desequilibrariam o comrcio de Portugal com o Brasil. Alm disso, no dever-se-ia incumbir os comerciantes estrangeiros de transportar e nem vender diretamente Colnia, para evitar que as riquezas do Estado vo parar na mo desses "comissrios ausentes". A perspiccia de Lus dos Santos Vilhena se revela ao identificar o comrcio "passivo e ruinoso" de Portugal:Daquela poca at o presente tem Portugal recebido do estrangeiro muito mais importaes que expedido exportaes, fazendo por isso um comrcio pouco menos que passivo e por isso ruinoso, apesar do que talvez Portugal a nica nao a quem este gnero de comrcio tem at o presente sido menos lesivo, pois que a moeda com que paga o excesso das suas importaes gnero de produo das suas minas do Brasil e no fruto da indstria, como nas outras naes, exceo da Espanha. (p. 77, grifo nosso)Contudo, apesar de afirmar que este comrcio desfavorvel tem sido "menos lesivo" devido aos ingressos do ouro, ele defende que em breve haver necessidade de propor medidas para quebrar os "canos por onde a indstria estrangeira conduz para fora a nossa moeda" (p. 77). Por fim, identifica que " os estrangeiros nas mos dos quais vai parar a riqueza toda das mesmas colnias" (p. 78). Vilhena e seu lugar nas Luzes ibricasDepois de apresentados seus "pensamentos polticos" e sem a pretenso de terem sido esgotadas todas as possibilidades, cabe refletir sobre o carter ilustrado de tais pensamentos no contexto das singulares Luzes ibricas. A Ilustrao luso-brasileira possuiu um carter peculiar, mas, segundo Guilherme Pereira das Neves[footnoteRef:6] devido falta de uma anlise precisa, continua a receber adjetivos variados, seja como catlicas, tmidas, plidas ou envergonhadas. Contudo, estudo recentes demonstram a complexidade da recepo dessas ideias ao perceber a oposio entre uma "pequena vanguarda iluminada" e um "setor obscurantista majoritrio", j outros identificam um discurso de constitucionalismo antigo, retomado com a Restaurao de 1640, que coexistia com uma linguagem absolutista do marqus de Pombal. Esta perspectiva pode ser alargada com os estudos de Franco Venturi[footnoteRef:7], que destacam a oposio vvida nas Luzes entre "monarquia", a tentativa de centralizao, e uma "tradio republicana", o sentimento de defesa da res publica, ao superar a interpretao puramente filosfica da Ilustrao e propor extra-la da sociedade, onde se enrazam as idias, e da relao entre utopia e reforma. [6: NEVES, Guilherme Pereira das. Sociabilidades modernas e poderes tradicionais no Rio de Janeiro de 1794. In: Espao atlntico de antigo regime, 2008, Lisboa. Actas do Congresso Internacional Espao Atlntico de Antigo Regime: Poderes e Sociedades. Lisboa: Biblioteca Digital Cames, 2008. v. 1. p. 1-16.] [7: VENTURI, Franco. Utopia e reforma no Iluminismo. Bauru, EDUSC, 2003.]

No mundo luso-brasileiro, "a recepo das Luzes [...] adquiriu uma tonalidade prpria, de acordo com as caractersticas peculiares daquela sociedade"[footnoteRef:8]. E, por isso, foi dotada de um carter ambguo: de um lado, "sombrio", que se colocava a servio da Coroa portuguesa, demonstrava uma secularizao muito limitada e valorizava a religio como importante forma de conhecimento, de outro lado, "esclarecido", que buscava conhecimentos teis para propor medidas e "luminosas reformas". "Em suma, adotava-se uma atitude de mudana pontual e limitada quase sempre dirigida pelas convenincias da Coroa, mas que no implicava em uma transformao profunda na estrutura da sociedade"[footnoteRef:9]. [8: NEVES, Lcia Maria Bastos Pereira das ; NEVES, Guilherme Pereira das . A Biblioteca de Francisco Agostinho Gomes: a Permanncia da Ilustrao Luso-Brasileira entre Portugal e o Brasil. Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro; Rio de Janeiro, v. 165, n.425, p. 11-28, 2004. Citao extrada da p. 14.] [9: Idem, p. 14. ]

nesta ambiguidade em que reside os pensamentos polticos de Lus dos Santos Vilhena e de outros memorialistas e administradores coloniais em fins do Setecentos. Em sua racionalizao, Vilhena conseguiu identificar as bases da colonizao portuguesa: populao, agricultura e comrcio e propor medidas e leis para a manuteno da solidez destas colunas, props uma lei de terras que solucionaria diversos problemas como a pobreza, a ociosidade de parte da populao e contribuiria para o progresso da agricultura e aumento da populao. Alm disso, diagnostica, com sucesso, a importncia e os problemas do comrcio lusitano, ao evidenciar o maior nmero de importaes do que o de exportaes e o quo lesivo isso era. Partindo disso, identificou a necessidade de "quebrar os canos" que conduziam para o estrangeiro a riqueza colonial. Encaixando-se, assim, como um representante da ambgua Ilustrao luso-brasileira. 1