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i LUIS GUILHERME ASSIS KALIL Filhos de Adão Análise das hipóteses sobre a chegada dos seres humanos ao Novo Mundo (séculos XVI e XIX) Campinas 2015

LUIS GUILHERME ASSIS KALIL Filhos de Adão - … · Orientador: Prof. Dr. Leandro Karnal Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, para a obtenção

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LUIS GUILHERME ASSIS KALIL

Filhos de Adão

Análise das hipóteses sobre a chegada dos seres humanos ao Novo Mundo

(séculos XVI e XIX)

Campinas

2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

LUIS GUILHERME ASSIS KALIL

Filhos de Adão

Análise das hipóteses sobre a chegada dos seres humanos ao Novo Mundo

(séculos XVI e XIX)

Orientador: Prof. Dr. Leandro Karnal

Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de

Filosofia e Ciências Humanas, para a obtenção

do Título de Doutor em História.

Este exemplar corresponde à versão final

da tese defendida pelo aluno Luis

Guilherme Assis Kalil e orientada pelo

Prof. Dr. Leandro Karnal

Campinas

2015

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Resumo

Filhos de Adão: Análise das hipóteses sobre a chegada dos seres humanos ao Novo

Mundo (séculos XVI e XIX)

A tese pretende analisar de que formas a questão sobre a existência de seres

humanos no Novo Mundo foi abordada em dois períodos distintos: a virada do século XVI

para o XVII e ao longo do século XIX, momentos em que a produção de reflexões sobre

este tema aumentou consideravelmente. No primeiro período, observamos que as dúvidas

sobre a origem dos indígenas não surgem durante os contatos iniciais com os europeus, mas

se desenvolvem ao longo do século. Além disso, identificamos um aumento progressivo das

representações que enfatizavam a multiplicidade dos indígenas, nas quais as reflexões do

jesuíta espanhol José de Acosta, que analisou os debates anteriores sobre os ancestrais dos

americanos e dividiu os “povos bárbaros” em três níveis de desenvolvimento, ocupam um

papel central. Para um número crescente de autores, as grandes diferenças identificadas

entre os diversos grupos que habitavam as terras americanas seriam fruto de origens

específicas e hierarquizadas. No século XIX, a percepção da multiplicidade dos indígenas

passa a ser incorporada, entre outros aspectos, ao conceito de raça e aos discursos sobre a

memória e a identidade nacional elaborados nas colônias americanas recém-independentes.

Neste segundo período, há a identificação de um índio “nacional”, geralmente restrito ao

passado, que teria uma origem diferente e superior a dos outros habitantes do continente.

Novamente, as diferenças identificadas pelos autores entre os povos americanos são

interpretadas a partir das origens: grupos considerados como mais avançados procederiam

de povos diferentes dos grupos “inferiores” que habitaram e ainda habitavam o continente.

Divisão e hierarquização estas, profundamente influenciadas pelas reflexões sobre o

Oriente, fruto das diversas expedições e descobertas arqueológicas ocorridas no período.

Palavras-chave: História; Índios; Origem; Novo Mundo.

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Abstract

Sons of Adam: Analysis of the hypothesis about the arrival of humans in the New

World (16th and 19th centuries)

The thesis aims to analyze in which ways the question about the existence of

human beings in the New World was addressed on two different time periods: the turn of

the 16th to the 17th century and throughout the 19th century, moments in which the

production of reflections on this issue increased considerably. In the first period, we

observed that the doubts about the origin of the Americans were not raised during the first

contacts with the Europeans, but developed over the century. Furthermore, we identified a

progressive increase in representations that emphasized the multiplicity of the indigenous,

in which the reflections of the Spanish Jesuit José de Acosta, who examined the previous

debates about the ancestors of the Americans and divided the “barbarians peoples” in three

levels of development, occupies a central role. For a growing number of authors, the major

differences identified among the various groups that inhabited the American lands would

result from specific and hierarchical backgrounds. In the 19th century, the perception of

indigenous multiplicity becomes incorporated, among other aspects, into the concept of

race and the discourses on memory and national identity, developed in the newly

independent American colonies. In this second period, there is the identification of a

"national" Indian, usually restricted to the past, who would have a different and superior

origin than the other inhabitants of the continent. Once again, the differences identified by

the authors among the American people are interpreted as related to their origins: groups

considered more advanced would behave differently from "inferior" groups who had

inhabited and still inhabited the continent. Those division and ranking were deeply

influenced by the reflections elaborated about the East, as a result of the various

expeditions and archaeological discoveries made in the period.

Keywords: History; Indians; Origin; New World.

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Sumário

Introdução

O ídolo das origens ............................................................................................... 01

A procedência dos americanos em pesquisas recentes ........................................... 03

Justificativas sobre as fontes e os recortes teóricos e temporais ............................. 10

Estrutura e divisão dos capítulos ........................................................................... 16

Capítulo 1

As origens dos índios: leituras e interpretações sobre uma questão colonial

Expedições em busca da verdade nos relatos coloniais ........................................... 21

Hierarquização das fontes e tradições de pensamento ............................................ 30

A origem dos americanos como ideologia colonial ................................................ 37

O Novo Mundo e seus habitantes como problema teórico europeu ......................... 50

A representação do indígena a partir de suas origens.............................................. 54

Capítulo 2

Sobre as ovelhas do outro aprisco: as teorias das origens dos índios formuladas nos

relatos coloniais europeus

Os debates sobre os índios espanhóis entre a Igreja e a Coroa ................................ 57

A construção de um problema ............................................................................... 66

As premissas religiosas .......................................................................................... 71

i) a linhagem de Noé.............................................................................................. 73

ii) terra de gigantes ................................................................................................ 82

iii) as tribos perdidas de Israel ............................................................................... 85

iv) a tribo de Issacar ............................................................................................ 101

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A tradição clássica ............................................................................................... 107

i) as zonas tórridas ............................................................................................... 111

ii) América e Atlântida ........................................................................................ 113

A percepção da multiplicidade dos indígenas ....................................................... 118

Capítulo 3

José de Acosta e as relações entre tradição e experiência nas representações sobre os

indígenas

Acosta e os relatos sobre o Novo Mundo ............................................................. 127

A origem dos índios na Historia Natural y Moral de las Indias ........................... 132

i) as teorias refutadas ........................................................................................... 136

ii) a migração asiática para o Novo Mundo .......................................................... 137

iii) entre o natural e o moral ................................................................................. 140

iv) a multiplicidade dos indígenas ........................................................................ 143

v) os índios orientais ............................................................................................ 151

América como novidade ou domínio da tradição ................................................. 155

Novos Mundos .................................................................................................... 159

Capítulo 4

Entre bárbaros e civilizados: as reflexões sobre as origens dos indígenas no século XIX

Palenque, a origem dos índios e a de seus construtores ........................................ 167

Os debates sobre os primeiros americanos no século XVIII ................................. 179

i) William Robertson ........................................................................................... 185

ii) Francisco Javier Clavijero ............................................................................... 188

iii) Alexander von Humboldt ............................................................................... 192

Os índios judeus .................................................................................................. 200

i) a teoria dos índios judeus nos Estados Unidos .................................................. 206

ii) Lord Kingsborough, os índios e os judeus que colonizaram a América ............ 213

Os americanos atlantes ........................................................................................ 218

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Capítulo 5

Os índios arianos: a construção de um passado nacional através das reflexões sobre as

origens dos americanos

Os arianos e as línguas indo-europeias ................................................................. 227

Os crânios indígenas como evidências de suas procedências ................................ 248

O Oriente como origem ....................................................................................... 262

i) o Novo Mundo e as terras de Fou-sang ............................................................. 272

ii) os índios arianos.............................................................................................. 274

Vicente Fidel López ................................................................................. 276

Francisco Adolpho de Varnhagen ............................................................. 285

iii) os índios arianos na Europa ............................................................................ 295

A América como origem ..................................................................................... 299

Conclusão

As origens dos índios........................................................................................... 311

Referências bibliográficas

Fontes.................................................................................................................. 319

Bibliografia ......................................................................................................... 324

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Agradecimentos

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer ao prof. Dr. Leandro Karnal pela

orientação que começou muito antes deste doutorado. Para além das muitas ideias,

indicações, leituras e comentários sobre este e outros textos, agradeço-o particularmente

por ter, com uma única pergunta, marcado profundamente os rumos desta pesquisa.

À Capes, pelo financiamento desta pesquisa.

Aos professores doutores José Alves de Freitas Neto e Luiz Estevam de

Oliveira Fernandes por terem aceitado participar do exame de qualificação e também da

banca de defesa da tese. Agradeço também ao Zé por suas aulas, indicações e comentários,

mas, principalmente, pelas conversas informais, sempre muito inspiradoras.

Aos professores doutores Janice Theodoro da Silva, Eliane Moura da Silva,

Anderson Roberti dos Reis, Leila Mezan Algranti e Maria Cristina Bohn Martins por terem

aceitado o convite para participar da banca de defesa da tese como titulares ou suplentes.

Agradeço especialmente à Cris pelas muitas sugestões de leitura, conselhos, indicações e

convites.

Ao prof. Dr. Michael Hall pelas inspiradoras aulas na graduação que foram

fundamentais para a minha formação não apenas como historiador.

Aos amigos que fiz na Unicamp:

Duda, além das palavras direcionadas acima ao Luiz Estevam, gostaria de

agradecê-lo pelo grande amigo que você se tornou: alguém sempre presente, seja para

conversas sérias ou para risadas, em – vários – momentos bons e outros – poucos – nem

tanto, em viagens a trabalho e a passeio, em corridas (temos que voltar!), em reformas e

mudanças (em vários sentidos). Amigo com quem tive discussões teóricas sobre política e

história que geraram frutos em artigos, entrevistas, materiais didáticos e em boa parte desta

tese, mas também sobre música (a rádio tem que voltar!), cinema... Agradeço a você,

principalmente, por ter, junto com a Aline (e, depois, com a Manu e a Maitê), me

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apresentado novos amigos que se tornaram a minha família com DDD 19 (ainda que eu

teime em continuar com DDD 12): João e Carol; Tadeu (Santos, sempre Santos!), Andreia

e João Vicente; Diego e Maria Clara; Felipe e Natasha.

Anderson Roberti dos Reis, alguém que consegue deixar qualquer assunto

interessante e que sabe ser sério em momentos descontraídos e também o contrário com a

mesma naturalidade. Muito obrigado pelas risadas e pela amizade, mas também pelas aulas

que você me deu provavelmente sem nem perceber. Concordo com você, estamos juntos...

Caio Pedrosa da Silva, parceiro de textos e de longas conversas nas escadarias

das bibliotecas da Unicamp. Única pessoa que eu conheço capaz de fazer associações entre

Krautrock, Sun Ra e Ozu logo depois de falar sobre Said ou futebol. Agradeço

principalmente pelas dezenas de indicações de bandas, filmes, sites... responsáveis por

preencher muitas madrugadas insones.

Agradeço também: Chico e Marcelo (que conseguiam diminuir o tamanho da

Rodovia Dom Pedro com suas conversas), Renato Denadai, Gabriel Sordi, Flávia Godoy

(com quem estarei sempre em débito de indicações de leitura), Flávia Galli, Simone

Domingues e os colegas do Grupo de Estudos de América.

À professora Maria Helena Apolinário, que “passou o bastão” para mim através

da doação de parte significativa de sua biblioteca.

Aos amigos próximos – ainda que geograficamente distantes – Rodrigo,

Clarissa e, em breve, Beatrice.

Ao Chico, sua birosca e seus frequentadores, onde esquecia por algumas horas

esta tese para poder voltar no dia seguinte ao batente.

À minha família em Santa Bárbara d’Oeste: Eunice, José, Gisele e Josiane.

À minha família: Wagner, Beatriz e Rodrigo, além dos avós Margarida, José (in

memorian), Luiza (in memorian) e Elias (in memorian).

Para Jaquelini, sempre.

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“Decerto, mesmo que a história fosse julgada

incapaz de outros serviços, restaria dizer, a

seu favor, que ela entretém. Ou, para ser mais

exato – pois cada um busca seus passatempos

onde mais lhe agrada –, assim parece,

incontestavelmente, para um grande número

de homens. Pessoalmente, do mais remoto

que me lembre, ela sempre me pareceu

divertida. Como todos os historiadores, eu

penso. Sem o quê, por quais razões teriam

escolhido esse ofício? Aos olhos de qualquer

um que não seja um tolo completo, com

quatro letras, todas as ciências são

interessantes. Mas todo cientista só encontra

uma única cuja prática o diverte. Descobri-la

para a ela se dedicar é propriamente o que se

chama vocação” (Marc Bloch, Apologia da

História, p. 43).

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Introdução

“O outro é o fantasma da historiografia. O objeto que ela

busca, que ela honra e que ela sepulta” (Michel de

Certeau, A escrita da História, p. 14).

O ídolo das origens

Durante o ano de 2010, um espetáculo multimídia percorreu as principais

cidades mexicanas com exibições gratuitas em locais de grande circulação, onde a projeção

de um vídeo (de aproximadamente uma hora) era acompanhada por fogos de artifício, jogos

de luz e som e apresentações de músicos e dançarinos. Intitulada 200 años de ser

orgullosamente mexicanos, esta atração foi produzida pelo governo federal1 como parte das

comemorações do Bicentenário da Independência do México e do Centenário da Revolução

Mexicana.

O título, no entanto, não corresponde exatamente ao seu conteúdo. Ao invés de

se limitar aos dois séculos relacionados às efemérides celebradas, a apresentação se inicia

com uma rápida sucessão de imagens que partem do presente e sugerem um retorno no

tempo até a exibição de uma data que permanece luzindo na tela durante vários segundos:

1200 a.C. A partir daí, são projetadas reproduções digitais de construções, adornos e

práticas associadas aos grupos indígenas pré-colombianos da região que culminam com a

imagem de pegadas em direção à célebre representação da águia com a serpente sobre o

nopal. Assim, as raízes da história mexicana são associadas não apenas aos dois eventos

1 O conteúdo desta apresentação contou com a colaboração do historiador mexicano Enrique Krauze. Ela foi

exibida pela primeira vez na Cidade do México, em 05 de maio de 2010, na maior tela de projeção já montada

na América Latina, e passou por cidades de todos os estados mexicanos até o final daquele ano.

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que motivaram os festejos, mas remontam praticamente aos primeiros seres humanos que

alcançaram estas terras.

As relações estabelecidas entre as comemorações do Bicentenário mexicano e

os primórdios da presença de grupos humanos na região não se limitaram ao espetáculo

governamental. Elas também foram reproduzidas em várias obras de divulgação que

alcançaram grande circulação no período. Em especial, fazemos referência a dois livros que

contaram com participação direta do governo federal: a Viaje por la Historia de México, de

Luis González y González (2009)2, e a Historia de México, coletânea de artigos organizada

pela Academia Mexicana de História (WOBESER, 2010)3. Em ambos os casos, há a

identificação de uma “civilização original”4 que teria se desenvolvido na região cujas

características seriam determinantes não apenas para a história destas terras, mas também

para a identidade nacional mexicana.

É evidente que o retorno a um passado remoto em busca de características,

personagens ou eventos “essenciais” não se limita ao México do Bicentenário5 ou mesmo

ao continente e período a que nos referimos. Pelo contrário. Trata-se de um processo

recorrente na construção de identidades muito anterior ao contato com o Novo Mundo e

que pode ser identificado em culturas extremamente distantes tanto no tempo quanto no

espaço. Processo este, que exerceu grande influência na historiografia, gerando o que Marc

2 A obra do já então falecido Luis González y González é uma reedição do Álbum de historia de México,

escrito pelo historiador na década de 1990. Ao integrá-la aos festejos do Bicentenário, o governo federal

realizou alterações em seu conteúdo e patrocinou a publicação de cerca de 25 milhões de exemplares, que deveriam ser distribuídos gratuitamente pelo correio a “todos” os lares mexicanos acompanhada de um

exemplar da bandeira nacional (a obra também foi disponibilizada integralmente no site do governo federal

para as comemorações do Bicentenário).

3 Este livro foi o resultado da atuação conjunta da Academia Mexicana de História e a Secretaria de Educação

Pública (para uma análise específica de seu conteúdo, Cf. KALIL e SILVA, 2013). Assim como a

republicação da obra de González y González, a Historia de México foi lançada em uma cerimônia oficial

com a participação do então presidente da República Felipe Calderón Hinojosa (que também assinou

pequenos textos de apresentação incluídos nos dois livros), onde foi enfatizada a importância desta obra para

o fortalecimento da identidade nacional.

4 Nos dois escritos, o México é identificado como o “berço” de uma civilização que teria alcançado um grau

de desenvolvimento encontrado apenas em outras cinco regiões do planeta: China, Mesopotâmia, Índia, Egito e a região andina (GONZÁLEZ Y GONZÁLEZ, 2009, 6-7; WOBESER, 2010, 49).

5 Para uma análise da importância da questão da origem dos índios dentro da construção de um passado

nacional mexicano entre os séculos XVIII e XIX, Cf. FERNANDES, 2009, 66-79. Para uma compilação dos

autores que abordaram a origem do homem americano desde o século XVI tendo o “México” como centro de

suas análises, Cf. MATOS MOCTEZUMA, 1987.

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Bloch denominou como o “ídolo das origens”. De acordo com o renomado historiador

francês, “a explicação do mais próximo pelo mais distante dominou nossos estudos às vezes

até à hipnose [...] Para o vocabulário corrente, as origens são um começo que explica. Pior

ainda: que basta para explicar. Aí mora a ambiguidade; aí mora o perigo” (BLOCH, 2001,

56-58).

Dentro desta visão identificada por Bloch, o problema da origem dos índios,

tema central desta tese, ganha relevância. Questão analisada desde as primeiras décadas de

contato dos europeus com o Novo Mundo, ela exerceu um papel fundamental dentro das

obras de diversos autores ao longo de mais de cinco séculos e gerou – e, em alguns casos,

ainda gera – intensos debates em campos que vão da teologia à ciência, do direito à

economia e política.

A procedência dos americanos em pesquisas recentes

Na entrada do Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, os visitantes se

deparam com um mapa do continente americano marcado por setas provenientes da África

e de diferentes regiões do Oceano Pacífico, que indicam as possíveis rotas migratórias

percorridas pelos grupos humanos em direção ao Novo Mundo e, mais especificamente, ao

território brasileiro. Em seguida, são apresentadas reproduções de pinturas rupestres

encontradas na região da Serra da Capivara, no Piauí, acompanhadas pela ressalva de que

“a preservação desses bens culturais proporciona, assim, uma base física para estudarmos o

processo de formação da identidade cultural, aqui concebida como um processo de

reconhecimento de nossa própria nacionalidade”. Não por acaso, a palavra escolhida para

nomear o portal de entrada do museu é oreretama (“nossa terra” ou “nossa morada” em

tupi). De acordo com o texto introdutório, a escolha desta expressão como abertura do

acervo das exposições permanentes se daria pelo fato do tupi ser o tronco linguístico “ao

qual pertence um grande grupo de indígenas, descendentes dos primeiros habitantes desse

imenso território tropical”, que já habitariam estas terras há, pelo menos, 500 séculos.

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Fica evidente a partir dessa breve descrição que há nestes textos e imagens a

identificação de uma ligação direta e inquestionável entre os atuais indígenas que habitam o

território brasileiro e os primórdios do processo de ocupação deste local, corroborando uma

teoria (de que o ser humano habita esta região há aproximadamente 50.000 anos) que, como

veremos a seguir, enfrenta sérias resistências dentro do mundo acadêmico. Além disso, há o

reforço de uma interpretação que associa o início da história nacional aos primeiros

habitantes destas terras, em um processo que se assemelha com a imagem reproduzida pelo

governo mexicano durante as comemorações do Bicentenário abordadas no início da

introdução6.

Exemplos como estes evidenciam como as questões que envolvem a origem dos

habitantes do continente americano encontram-se ainda distantes de um final. Uma rápida

pesquisa em periódicos de grande circulação indica o surgimento de novas “respostas” ou

novos argumentos para hipóteses já formuladas anteriormente com uma impressionante

regularidade. Ainda que não seja o objetivo de nossa tese, acreditamos ser útil mencionar

algumas das principais teorias defendidas por pesquisas realizadas nas últimas décadas.

Ao longo de parte considerável do século XX, a chamada teoria Clovis7 ocupou

um papel central dentro do mundo acadêmico (especialmente nos Estados Unidos),

chegando, segundo alguns de seus críticos, a se tornar um “dogma” (ADOVASIO, 2011,

14-18) ou um “modelo quase inexpugnável” (NEVES, 2008, 88). Estruturada a partir da

descoberta de sofisticadas pontas de lança talhadas em pedra na região de Clovis, no estado

norte-americano do Novo México, na década de 1930, esta hipótese defende que os

criadores destes artefatos são os pioneiros – e, provavelmente, os únicos – responsáveis

pelo processo de ocupação da América, que teria ocorrido através do estreito de Bering há

cerca de 11.500 anos. A partir daí, grupos de caçadores desta cultura teriam empreendido

um rápido processo de expansão até o extremo sul do continente por um suposto “corredor

livre de gelo” a leste das montanhas Rochosas.

6 Outro exemplo que corrobora esta visão é a capa da revista Veja, de 25 de agosto de 1999, que trazia uma

reconstrução da aparência de Luzia (fóssil encontrado na região de Minas Gerais sobre o qual faremos

menção adiante) com a manchete: “Luzia, a primeira brasileira”. Para uma análise das apropriações culturais

sobre Luzia, Cf. GASPAR NETO e SANTOS, 2009.

7 Conhecida em inglês como Clovis first.

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A despeito das dificuldades de se encontrar vestígios materiais de período tão

recuado no tempo8, a partir da década de 1970, escavações em sítios arqueológicos de

diferentes regiões da América foram utilizadas como base para hipóteses migratórias “pré-

Clovis” que recuavam a chegada dos grupos humanos ao continente em milhares de anos.

Mesmo que algumas dessas descobertas – e, consequentemente, as teorias daí decorrentes –

tenham sido questionadas ou mesmo invalidadas por pesquisas posteriores9, outras

apresentaram resultados que apontam para uma presença humana na América anterior ao

“limite” determinado pelos “clovistas”.

Entre outras, podemos citar as escavações realizadas em diferentes regiões do

atual território norte-americano e, principalmente, as descobertas arqueológicas ocorridas

8 André Prous (1997, 8-21) enumera as diversas dificuldades encontradas pelos pesquisadores nas

investigações sobre a presença humana no continente americano durante o Pleistoceno (período geológico

entre 2.000.000 e 10.000 anos atrás), que são “de ordem climática, metodológica e até psicológica [...] os

sítios de passagem estão agora sob as águas geladas da Beríngia. Nas zonas ainda emersas, as massas de gelo

do fim do Pleistoceno provocaram uma erosão intensa, deixando poucos sítios potencialmente intactos. A probabilidade de encontrar-se algum dos sítios mais antigos é portanto particularmente remota. Outrossim, até

poucos anos atrás, os arqueólogos não tinham acesso às regiões militarmente sensíveis que separam a Sibéria

do Alasca [...] os vestígios ósseos (restos alimentares ou de sepultamentos) conservam-se particularmente mal

em regiões quentes onde a atividade bacteriana ou a ação das raízes é intensa e as terras geralmente ácidas.

Além do que, em regiões tropicais onde havia abundância de madeira, a maioria dos instrumentos deve ter

sido feita com esse tipo de matéria-prima, a qual é rapidamente destruída [...] Até poucos anos atrás, as

chances de se encontrarem sítios pleistocênicos eram ainda diminuídas pelo fato de que poucos arqueólogos

acreditavam numa presença tão remota do homem nas Américas, e quase ninguém se atrevia a procurar seu

rastro em sedimentos geológicos anteriores a 10.000 ou 11.000 anos”.

9 Entre outras, fazemos referência à “hipótese solutrense”, formulada no final da década de 1990 por autores

como Bruce Bradley e Dennis Stanford e amplamente questionada por outros pesquisadores. Esta teoria

defende que o ser humano não teria alcançado o continente americano por terra a partir do estreito de Bering ou por navegações pelo Oceano Pacífico, mas sim da Europa, através de pequenas embarcações durante a

última Era do Gelo, há cerca de 20.000 anos. Segundo esta hipótese, as técnicas líticas utilizadas pela cultura

Clovis tinham uma ligação direta com a cultura solutrense que ocupava as regiões dos atuais territórios da

França e Espanha: “It occurs to us that the Solutrean hunters probably developed their techniques for

exploiting the marine environment during a colder climatic period when the annual ice regularly formed in

the Bay of Biscay […] Inevitably, this cool climate phase began to collapse […] Inevitably, a group following

the European seals on their northward migration would have ended up at the western end of the gyre, not

knowing until too late that they were hunting Canadian seals heading southward to rookeries along the

Atlantic coast of North America. Once they understood the seal migration patterns, the hunters could work

the pattern back and forth. The entire distance along the ice bridge would have been around 2.500km, shorter

than the Thule Inuit migrations from Alaska to Greenland. Some families eventually established camps along the Western Atlantic seaboard and did not return to Europe” (BRADLEY e STANFORD, 2004, 472). De

acordo com alguns dos críticos da migração solutrense, as semelhanças entre culturas indígenas e europeias

utilizadas para embasar esta hipótese seriam tênues demais para indicar uma ligação direta. Além disso,

estudos genéticos realizados nos últimos anos apontam o continente asiático como sendo o local de partida

mais provável dos ancestrais dos americanos.

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na região de Monte Verde, no Chile, que apresentam indícios de presença humana há cerca

de 13.000 anos. De acordo com estes novos estudos, a entrada e o processo de dispersão

dos paleoíndios pelo continente americano não teriam ocorrido através de um corredor livre

de gelo (como sugerido pela teoria Clovis), mas sim através do litoral – desde a Sibéria até

a costa pacífica da América do Sul – em simples e precárias embarcações (NEVES, 2008,

80-86).

Escavações realizadas no atual território brasileiro também identificaram

vestígios humanos anteriores à cultura Clovis em locais como a Lapa do Boquete, em

Minas Gerais, Santa Elina, no Mato Grosso, e em Monte Alegre, na Amazônia. Entre estes

exemplos, um deles se destaca pelo grande recuo no tempo que propõe. Na região da Pedra

Furada, localizada na Serra da Capivara, no estado do Piauí, foram encontrados indícios de

pedras queimadas e/ou lascadas e manchas interpretadas como sendo sinal da atuação

antrópica na região. Tendo entre seus principais defensores a arqueóloga Niéde Guidon,

esta teoria remete a presença humana em solo “brasileiro” às dezenas de milhares de anos e

traça como provável rota de migração as navegações marítimas através de pequenas

embarcações que teriam migrado, paulatinamente, de ilha em ilha até alcançar o continente

americano10

. Contudo, as evidências que corroborariam esta teoria foram duramente

questionadas por diversos acadêmicos, tanto em relação aos métodos de datação utilizados

quanto, especialmente, sobre a origem humana destes indícios (PROUS, 2007, 21-23)11

.

Outra hipótese apresentada nas últimas décadas – e que continua gerando

acirrados debates dentro do mundo acadêmico – foi formulada, entre outros, pelo

bioantropólogo brasileiro Walter Neves. Segundo este autor, o continente americano teria

10 “[...] hoje é válido propor como hipótese de trabalho que diversos grupos humanos chegaram à América,

por diferentes vias de acesso, tanto marítimas quanto terrestres. Pode-se também propor que os primeiros

grupos chegaram até o continente há pelo menos 70 mil anos [...] pode-se admitir que penetrando no país por

uma via ainda desconhecida, grupos humanos chegaram até o sudeste do Piauí há cerca de 60 mil anos. O sul de Minas Gerais estaria povoado por volta de 30 mil anos atrás, e no Sul do Brasil grupos humanos estariam

estabelecidos há pelo menos 15 mil anos” (GUIDON, 1992, 39). Vale lembrar que esta é a hipótese

apresentada na entrada do Museu Histórico Nacional.

11 Para muitos de seus críticos, as pedras lascadas e os vestígios de pintura e fogueiras encontrados nestes

sítios arqueológicos seriam resultado de ação natural, sem interferência humana.

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sido povoado por duas ondas migratórias12

ocorridas em períodos distintos, ainda que pela

mesma rota, o estreito de Bering. A primeira delas teria sido empreendida há

aproximadamente 15.000 anos por caçadores-coletores com morfologia semelhante a dos

primeiros humanos surgidos no continente africano13

. O segundo grupo teria alcançado

estas terras cerca de 4.000 a 5.000 anos depois, sendo formado por indivíduos com

características associadas aos povos mongoloides. Ainda segundo esta teoria, os

descendentes da colonização inicial se extinguiram por completo em algum momento, por

motivos ainda não totalmente conhecidos, restando nos indígenas atuais traços apenas da

segunda migração14

.

Dessa forma, podemos observar que, atualmente, as pesquisas ainda não são

conclusivas em relação ao processo de migração de grupos humanos em direção ao

continente americano. A exploração de outros sítios arqueológicos, a utilização de novos

métodos de pesquisa e as inovações tecnológicas continuam alimentando regularmente os

debates sobre a origem dos indígenas. A despeito dos importantes achados e descobertas

12 Outras pesquisas apontam um número diferente de ondas migratórias. De acordo com Neves (2008, 94),

estudos genéticos defendem a ocorrência de quatro migrações distintas em direção ao continente americano.

Há também teorias que envolvem três migrações distintas. Marta Mirazón Lahr (1997, 78) afirma que, na

década de 1980, três pesquisadores (o linguista Joseph Greenberg, o antropogeneticista Steven Zegura e o

antropólogo-dentário Christy Turner II) propuseram um modelo conjunto multidisciplinar baseado em uma

migração tripla (que foi utilizado por alguns autores como um reforço da teoria Clovis): “A primeira, de um

grupo sinodonte, seria ancestral a todas as tribos das Américas hoje englobadas na família linguística

“Amerind”, o que inclui todas as populações indígenas da América do Sul, América Central e a grande

maioria daquelas da América do Norte [...] A segunda migração teria sido de um grupo ancestral das tribos

pertencentes à família linguística na-dene. Por último, a terceira e mais recente teria sido de populações com uma adaptação periártica, os aleutas-esquimós”. Tom D. Dillehay (1997, 28-29), responsável pelos estudos

pioneiros envolvendo o sítio arqueológico de Monte Verde, no Chile, afirma que, recentemente, este modelo

tem recebido muitas críticas: “Alguns arqueólogos acreditam que o lapso de tempo de permanência dos seres

humanos no Novo Mundo é maior, e consideram o modelo de Turner muito simplista empiricamente e

restritivo temporalmente”.

13 Estas características poderiam ser identificadas em Luzia, nome dado a um crânio feminino de

aproximadamente 11.000 anos encontrado na região mineira de Lagoa Santa e considerado como um dos

vestígios humanos mais antigos descobertos no Novo Mundo.

14 “[...] evidências demonstraram [...] que em locais muito remotos, ou em locais onde os paleoíndios viviam

em grande densidade demográfica, a morfologia não-mongoloide foi preservada, no mínimo, até a chegada

dos europeus no século XVI [...] É possível, inclusive, que uma ou outra tribo brasileira ainda viva possa descender diretamente dos primeiros americanos, sem ter recebido um aporte genético significativo dos

mongoloides. Nesta última categoria destacam-se os Nhambiquara, do Mato Grosso, e os Kaingang, do Sul do

Brasil, povos tradicionalmente conhecidos como predominantemente caçadores-coletores. Mas essas

conclusões estão pautadas sobre um número muito pequeno de crânios, o que torna a associação desses povos

com os paleoíndios extremamente questionável” (NEVES, 2008, 312).

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das últimas décadas, ainda permanecem dúvidas em relação tanto ao período quanto ao

número de povos que teriam migrado, o ponto de partida dessas migrações e as possíveis

rotas que teriam sido percorridas.

É importante observarmos também que, para além dos acirrados debates em

torno das semelhanças entre os códigos genéticos de vestígios humanos de diferentes

épocas e regiões ou das possíveis ligações existentes entre troncos linguísticos ou técnicas

de elaboração de peças líticas, o problema da origem dos indígenas apresenta contornos que

extrapolam os meios acadêmicos. Entre outros aspectos, o início da presença humana no

continente americano – e suas possíveis origens e descendências – está relacionado às

narrativas produzidas por diversos grupos indígenas sobre seu passado remoto, às regiões

que habitam atualmente e, em alguns casos, em disputas por terras e direitos. Dois

exemplos ocorridos em diferentes regiões dos Estados Unidos nos últimos anos são

ilustrativos a este respeito.

Em 1996, no estado norte-americano de Washington, um grupo de estudantes

que realizava corridas de hidroplanos encontrou acidentalmente nas margens do rio

Columbia os restos mortais de um ser humano de aproximadamente 9.000 anos que ficou

conhecido como “homem de Kennewick”. Como o local onde ocorreu a descoberta era

considerado como “terra tradicional” por grupos indígenas da região, cinco de suas

lideranças entraram na justiça reivindicando a posse dos ossos para que pudessem realizar

um funeral de acordo com sua cultura. Seus argumentos foram embasados no “Ato de

Repatriação e Proteção dos Túmulos dos Nativos Americanos” (Nagpra), documento

assinado em 1990 pelo então presidente norte-americano George Bush que defendia a

devolução aos grupos nativos dos restos mortais encontrados em terras federais cujas

afiliações culturais pudessem ser estabelecidas. O pedido também fazia referência às

tradições orais transmitidas na região há gerações, que remetiam a presença de seus

ancestrais nestas terras “desde o início dos tempos”.

Em um primeiro momento, as reivindicações dos líderes indígenas foram

atendidas pelo governo federal. Contudo, um grupo de antropólogos interessados nas

informações que estes vestígios poderiam fornecer também abriu um processo legal onde

requeriam o acesso ao homem de Kennewick para que pudessem realizar pesquisas mais

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aprofundadas. A argumentação central dos pesquisadores era de que estes ossos poderiam

apresentar novos e relevantes indícios sobre a ocupação das terras americanas. Além disso,

eles defendiam que, em última instância, o Ato de Repatriação não poderia ser utilizado,

pois não se tratava de um ancestral dos atuais indígenas da região, mas sim de um

integrante de um grupo extinto há milhares de anos.

Como alguns dos pesquisadores sugeriram que estes ossos tinham

características semelhantes às existentes em grupos humanos que habitaram a Europa há

milhares de anos, o que poderia indicar uma migração oriunda deste continente até as terras

americanas (nos moldes da hipótese solutrense15

), outra entidade também passou a solicitar

os ossos encontrados: a Asatru Folk Assembly. De acordo com esta organização, que seguia

antigas crenças europeias (conhecidas como religião Norse), o homem de Kennewick

poderia ser um de seus ancestrais (Cf. GASPAR NETO e SANTOS, 2009)16

.

A disputa pelos ossos rapidamente extrapolou os meios legais e alcançou os

veículos de imprensa17

, onde chegou a haver a difusão de opiniões e interpretações mais

exaltadas – que obtiveram pouca repercussão – de que, caso os restos mortais encontrados

comprovassem a existência de um grupo humano anterior aos ancestrais diretos dos atuais

indígenas que habitavam a região, estes perderiam a legitimidade sobre a posse das terras,

pois ficaria “comprovado” que eles não teriam sido os primeiros a colonizá-las. Em 2004,

após quase uma década de debates, a justiça norte-americana indeferiu o pedido das

lideranças indígenas, sob o argumento de que não tinham sido encontrados indícios

suficientes que associassem os vestígios em litígio aos atuais grupos nativos da região18

, e

permitiu o acesso dos pesquisadores aos ossos que passaram a ser responsabilidade da

Universidade de Washington.

15 Pesquisas realizadas nos últimos anos por acadêmicos de diferentes nacionalidades, incluindo o pesquisador

brasileiro Walter Neves, indicam que o homem de Kennewick apresenta características semelhantes às de

grupos ancestrais do Pacífico, hipótese mais aceita atualmente.

16 Após várias manifestações, a entidade recuou e desistiu do processo.

17 James M. Adovasio (2011, 312) afirma que os meios de comunicação reforçaram os traços “europeus” do

fóssil encontrado, divulgando-o como sendo um dos primeiros habitantes do continente americano.

18 Mesmo anos depois da decisão judicial, alguns líderes indígenas da região continuam realizando esforços

na tentativa de reabrir o processo.

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Resultado diferente ocorreu em uma pesquisa realizada no estado norte-

americano de Montana, anos depois. Na tentativa de evitar possíveis processos judiciais,

como os ocorridos no caso do homem de Kennewick19

, os pesquisadores envolvidos no

projeto, antes de iniciarem os estudos, entraram em contato com as lideranças indígenas

locais e se comprometeram a sepultar novamente o principal achado, o esqueleto de uma

criança cuja análise indicava ter, aproximadamente, 12.000 anos. As conclusões desta

pesquisa, baseada no sequenciamento genômico dos vestígios descobertos, indicaram,

segundo seus autores, que cerca de 80% dos indígenas atuais seriam descendentes diretos

do grupo a que pertencia a criança, o que reforçaria o elo entre os atuais americanos e os

paleoíndios. Conclusão esta, que ia ao encontro da postura adotada pelos grupos indígenas

da região sobre seu passado, fazendo com que um dos membros da tribo Crow, que também

assinou a pesquisa, concluísse que: “O estudo mostra o que nossos ancestrais já sabiam:

sempre estivemos aqui” (Cf. LOPES, 2014).

Justificativas sobre as fontes e os recortes teóricos e temporais

Como pudemos observar através deste pequeno balanço dos estudos e teorias

atuais, as dúvidas sobre a procedência dos primeiros americanos ainda geram dezenas de

debates, projetos de pesquisa, publicações e, até mesmo, processos judiciais. Contudo,

trata-se de um tema que se afastou nos últimos tempos das ciências humanas20

(sendo a

linguística uma rara exceção). Isto fez com que as reflexões sobre as possíveis origens dos

índios formuladas em períodos anteriores, sejam as do período colonial ou, principalmente,

as produzidas durante o século XIX, fossem pouco – ou nada – abordadas.

Em grande parte das vezes, estas teorias são vistas como meras curiosidades

históricas ou, em alguns casos, ignoradas sob o pretexto de conterem erros, devaneios ou

19 Diferente do primeiro caso descrito, os ossos descobertos no estado de Montana se encontravam em terras

particulares, onde o Ato de Repatriação não tem efeito (CALLAWAY, 2014).

20 Não por acaso, ao comentar sobre a pequena difusão dos estudos envolvendo a bioantropologia nas

universidades brasileiras, Walter Neves ressalta o afastamento progressivo das ciências sociais (NEVES,

2013, 151-152).

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respostas já comprovadamente invalidadas. Seguindo estes critérios, as breves menções

feitas a autores de séculos anteriores enfatizam os raros casos, como o do jesuíta espanhol

José de Acosta (Cf. Capítulo 3), que teriam alcançado respostas mais “corretas” – a

despeito de se tratar de uma questão ainda em aberto – do que as formuladas por seus

contemporâneos.

Podemos observar ainda que, em grande parte dos casos, a pequena bibliografia

que se deteve sobre este tema abordou a procedência do homem americano como algo

“fechado em si”. Ou seja, as reflexões sobre a origem dos índios foram abordadas como

tendo uma lógica interna própria que estabeleceria pouca ou nenhuma relação com o

restante do conteúdo dos escritos onde estavam inseridas ou com outros aspectos

relacionados aos indígenas e ao Novo Mundo. Novamente, as reflexões do jesuíta José de

Acosta se destacam. As possíveis relações dos indígenas com povos do Oriente (através de

uma ligação por terra ou por um pequeno estreito marítimo) identificadas pelo inaciano

espanhol foram interpretadas por muitos autores como uma questão eminentemente

“natural”, atrelada à geografia das terras recém-descobertas, que não estabelecia qualquer

relação com as reflexões produzidas por ele a respeito dos indígenas, sua natureza e as

formas de contato e conversão que deveriam ser estabelecidas pelos religiosos católicos.

Visão esta, que persiste em análises das obras de autores posteriores, e fez com que as

“respostas” sobre quem seriam os primeiros americanos elaboradas, por exemplo, por Hugo

Grotius (jurista holandês do século XVII) ou Francisco Adolpho de Varnhagen (historiador

brasileiro do século XIX) fossem definidas como desvios ou elementos extemporâneos às

suas produções intelectuais.

Outra abordagem recorrente na pequena bibliografia produzida sobre este tema

é a que analisa as “respostas” formuladas nos séculos anteriores sobre a origem dos índios a

partir de critérios como a utilização ou não de elementos “modernos” no embasamento das

reflexões ou como instrumento dentro de disputas políticas e econômicas por parte das

diferentes Coroas europeias. Contudo, apesar de produzirem conclusões extremamente

interessantes e eruditas, estas interpretações se afastam de nosso objetivo central, que é

analisar as teorias a respeito da existência de seres humanos no Novo Mundo não como um

fim, mas sim como um meio para observarmos aspectos como as representações dos

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indígenas presentes nas obras analisadas e de que forma este “outro” foi traduzido pelos

autores europeus em seus relatos (Cf. HARTOG, 1999).

Em resumo, não iremos nesta pesquisa esmiuçar cada uma das incontáveis

teorias sobre a(s) procedência(s) dos americanos, entabular seus defensores e críticos ou

identificar os “fundadores” ou “seguidores” de alguma hipótese ou “tradição de

pensamento” específica, objetivos já perseguidos por outros autores (Cf. Capítulo 1). Da

mesma forma, consideramos pouco produtivos os esforços em busca de critérios que

permitissem estabelecer as respostas mais e menos “corretas” sobre este tema, o que nos

levaria a um questionável processo de hierarquização das fontes a partir da “veracidade” de

seus conteúdos. Além disso, não pretendemos estabelecer qual – ou quais – eram as

hipóteses que os escritores analisados “realmente” acreditavam ou restringir nossas

conclusões aos “verdadeiros” motivos que os teriam levado a defender uma teoria em

detrimento de todas as outras, mas sim observar que imagem – ou, como sugerimos,

imagens – dos índios se depreende desses argumentos.

Dessa forma, nos aproximamos das reflexões formuladas pelo historiador

francês Roger Chartier (2002, 73) em relação ao que ele denomina como campo das “lutas

de representações” e, mais amplamente, à sua definição de História Cultural: “tal como a

entendemos, [ela] tem por principal objeto identificar o modo como em diferentes lugares e

momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler” (1990, 16-

17). Em outras palavras, mais do que uma análise sobre os habitantes do novo continente,

centraremos nossa atenção, em especial na primeira parte da tese, no que Anthony Pagden

(1988, 15) definiu como a “resposta intelectual” dos europeus ao descobrimento de um

Novo Mundo. Isto faz com que nosso interesse nos capítulos iniciais recaia não sobre os

povos que habitavam estas terras no período, mas sim no “índio”, definido por João

Adolpho Hansen (1998, 348) como um novo objeto de conhecimento que teria sido

produzido no período por cronistas e jesuítas21

. Em seguida, nos capítulos finais,

21 A este respeito, consideramos exemplar a ressalva feita por Guy Rozat Dupeyron (1995, 111) ao analisar os relatos sobre os índios hiaquis presentes na obra do religioso espanhol Andrés Pérez de Ribas: “Antes que

nada pretendo que el lector no malinterprete mi intento. Si hablo de los hiaquis de ninguna manera se trata

de indios verdaderos o históricos que por medio del relato del padre Pérez de Ribas pudieran reencontrarse;

tampoco quiero hablar de los yaquis de la antropología y del indigenismo mexicano y la adecuación de su

descripción o de su cultura actual con los hiaquis ‘bárbaros’ del siglo XVII. En este capítulo sólo intento

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pretendemos observar como o índio passa a ser incorporado a debates como o das

hierarquias raciais e à construção de passados nacionais por parte dos países americanos

recém-independentes.

Diante da impossibilidade de nos debruçarmos sobre tema tão vasto e prolífico,

houve a necessidade de nos determos em alguns períodos específicos dentro dos mais de

cinco séculos de contato entre o Velho e o Novo Mundo. Recorrendo novamente às

reflexões de Marc Bloch22

, não consideramos producente adotar como limite temporal

linhas rigorosas e, ao mesmo tempo, “cômodas”, que restringiriam nossa pesquisa a um

século específico. Entretanto, algum recorte temporal deveria, necessariamente, ser

adotado. Nossa decisão foi a de concentrarmos as análises em dois momentos: os anos

finais do século XVI e o início do XVII – período onde as reflexões apresentadas pelo já

citado jesuíta espanhol José de Acosta ocupam um papel central – e, na segunda parte da

tese, as décadas de meados do século XIX, particularmente até 1870.

Esta escolha – que sabemos ser tão arbitrária quanto as divisões por séculos

criticadas por Bloch – deriva, no entanto, de uma constatação: os dois períodos analisados

marcam picos da produção sobre a questão da procedência dos americanos. No primeiro

intervalo selecionado, as poucas referências feitas ao tema a partir da década de 1530

aumentam progressivamente até alcançarem um grande destaque no final século XVI e

início do XVII. Aumento perceptível não apenas em relação ao número de autores que

abordaram o tema23

, mas também no espaço dedicado por eles a esta questão dentro de suas

entender cómo funciona el relato que va construyendo una figura particular – el hiaqui –, en la obra de Pérez

de Ribas”.

22 “Na confusão de nossas classificações cronológicas, uma moda insinuou-se, bem recente, creio, tanto mais

intrusiva, em todo caso, quanto menos sensata. Com naturalidade, contamos por séculos [...] Quem de nós se

gabará de ter um dia escapado às seduções de sua aparente comodidade? [...] Em suma, parece que

distribuímos, segundo um rigoroso ritmo pendular, arbitrariamente escolhido, realidades às quais essa

regularidade é completamente estranha” (BLOCH, 2001, 149-150).

23 Como poderemos observar com mais detalhes adiante, até meados do século XVI, pouquíssimos autores dedicaram alguma atenção à origem dos índios, que, a princípio, nem poderia ser identificada como uma

questão em si. Entre eles, dois se destacam, Gonzalo Fernández de Oviedo y Valdés e Alejo Vanegas del

Busto (além de pequenas referências ou menções laterais em obras de autores como Paracelso, Fernando

Colombo, Doutor Roldán e Motolinía). Contudo, no início do século seguinte já havia mais de três dezenas de

relatos que dedicaram uma maior atenção ao tema.

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obras24

. Já em relação ao segundo pico de produção, ocorrido em meados do século XIX,

há entre os próprios autores do período a visão de que este tema, deixado em segundo plano

por mais de um século, voltava a se tornar uma questão central diante das novas

descobertas arqueológicas e linguísticas25

.

Esta decisão foi acompanhada por outra, relacionada às fontes que seriam

analisadas. Neste campo, nos aproximamos do conceito de “coleção” elaborado por Michel

de Certeau. Para este pensador francês (2002, 81), o primeiro trabalho do historiador

consiste em “separar, reunir, e transformar em documentos certos objetos distribuídos de

outra maneira [...] Este gesto consiste em ‘isolar’ um corpo, como se faz em física, e em

‘desfigurar’ as coisas para constituí-las como peças que preencham lacunas de um

conjunto, proposto a priori”. Seguindo estes critérios, decidimos não restringir nossa

análise a um tipo específico de fonte. No caso do século XVI, serão analisados desde

manuscritos anônimos até obras que alcançaram grande sucesso editorial entre seus

contemporâneos, tendo como eixo comum o fato de se tratarem de autores europeus ou de

ascendência europeia que produziram reflexões sobre o início do povoamento do Novo

Mundo. Na segunda parte da tese, não nos limitaremos a um país ou tipo de obra específica,

mas analisaremos escritos de diferentes procedências, tanto de países europeus quanto

americanos que, em boa parte dos casos, travaram debates entre si a respeito da origem dos

índios.

24 É importante observarmos que o aumento do número de autores que especulavam sobre a procedência dos

indígenas é equivalente ao espaço dedicado por eles para a questão. Enquanto os pioneiros Oviedo e Vanegas

citados na nota anterior abordam o tema em poucas linhas ou páginas, outros autores começam a produzir

reflexões mais elaboradas, como José de Acosta e, já no século XVII, Juan de Torquemada e Juan de

Solórzano y Pereira, entre outros. A primeira obra dedicada inteiramente ao problema da origem dos índios

foi publicada em 1607 pelo padre Gregorio García. A ela, seguiram-se vários tratados, comentários e

panfletos dedicados exclusivamente ao tema ou que o utilizava como base para outras reflexões até meados

do seiscentos, sendo o tratado de Diego Andrés Rocha (1681) o último escrito em muitas décadas a abordar

mais detidamente esta questão (Cf. Capítulo 2).

25 Levantamentos numéricos acerca da produção sobre a origem dos índios neste período são extremamente

problemáticos, devido à profusão de novas teorias, análises, comentários sobre narrativas indígenas, relatos de expedições, etc. que são formuladas no período sobre os primórdios da ocupação humana na América ou que

se utilizam desta temática como parte de estudos mais amplos. Luis Pericot y García (1936, 413) identifica, ao

longo do século XIX, mais de uma dezena de balanços bibliográficos sobre o tema que fazem referência a

mais de uma centena de obras. Ainda segundo o autor, a década de 1870 marcaria um período de “especial

intensidade” no interesse sobre esta questão.

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Da mesma forma, não estabeleceremos divisões entre os autores que visitaram

pessoalmente as terras do Novo Mundo daqueles que escreveram sobre esta região e seus

habitantes a partir das informações que alcançavam a Europa. É evidente que não negamos

haver diferenças e especificidades entre os escritos de “vista” e os de “oída”

(principalmente nos primeiros séculos de contato dos europeus)26

. No entanto, acreditamos

que, na questão específica das representações produzidas sobre os indígenas a partir das

“respostas” formuladas a respeito de suas origens, os diferentes tipos de relatos mantêm

diálogos tão estreitos entre si que impossibilitam o estabelecimento de fronteiras estritas

entre eles. Como exemplo, podemos citar as reflexões elaboradas em torno da hipótese de

uma migração atlante para o continente americano (Cf. Capítulos 2 e 4), apontada como

plausível tanto por autores de “vista”, como o dominicano Bartolomé de las Casas, quanto

de “oída”, como Francisco López de Gómara, a partir de suas reflexões sobre o Novo

Mundo e suas relações com o relato platônico.

Contudo, não abordaremos diretamente as narrativas elaboradas por diferentes

grupos indígenas sobre seus ancestrais ou, mais amplamente, sobre a origem do mundo ou

dos seres que o habitam. Estes relatos serão analisados apenas a partir das interpretações e

leituras realizadas por autores europeus ou criollos dentro de suas reflexões sobre o tema.

Em outras palavras, não pretendemos abordar as cosmologias indígenas, mas sim as

eventuais interpretações e leituras feitas sobre elas por autores europeus e, principalmente,

as maneiras como esses relatos indígenas foram integrados às teorias sobre a origem dos

americanos formuladas no período.

É importante ainda ressaltar que, ao escolher uma questão como centro de nossa

análise em detrimento de outros recortes possíveis, acabamos por analisar em conjunto

autores de diferentes regiões, religiões e períodos. Essa decisão, no entanto, parte da ideia

26 De acordo com Maria Emília Granduque José (em pesquisa ainda em andamento e a quem agradeço pelas

indicações sobre o tema), desde as primeiras décadas do século XVI, o contato pessoal com as terras

americanas foi reivindicado por diversos autores como elemento que aumentaria a veracidade de suas

narrativas em detrimento das obras que se limitavam ao relato de terceiros e ao saber livresco. Este processo pode ser observado, por exemplo, nos argumentos arrolados por Bernal Díaz del Castillo (soldado espanhol

que integrou a tropa de Hernan Cortés) para reforçar a validade do conteúdo de sua Historia verdadera. A

partir das indicações feitas por autores como Luis Filipe Barreto e Ramón Iglesia, a historiadora afirma haver

no período a existência de uma disputa entre um ponto de vista empírico de obtenção do conhecimento

(pautado na experiência pessoal) e outro racionalista, avesso à compreensão pelos sentidos.

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de que há uma circularidade entre as reflexões produzidas sobre o problema da origem dos

índios que impede a identificação de uma “resposta” jesuíta, franciscana, huguenote, criolla

ou espanhola. Ideia esta que fica evidente quando retornamos, mais uma vez, à obra de José

de Acosta, cuja análise sobre a procedência dos habitantes do Novo Mundo, sua possível

relação com os grupos asiáticos e sua incorporação a uma hierarquia dos povos “bárbaros”

foi extensamente debatida por autores como o franciscano Juan de Torquemada, o rabino

Menasseh ben Israel ou o pastor protestante inglês Thomas Thorowgood.

Estrutura e divisão dos capítulos

A partir destas escolhas, a tese irá se estruturar em cinco capítulos, sendo os três

primeiros relacionados ao início do período colonial e os dois últimos às décadas finais do

século XVIII até meados do XIX (ainda que sejam feitas menções, em ambos os casos, a

obras publicadas em anos anteriores ou posteriores).

O capítulo de abertura (“As origens dos índios: leituras e interpretações sobre

uma questão colonial”) tem como objetivo central analisar a pequena bibliografia produzida

sobre o tema nas últimas décadas. Em particular, nos deteremos nas reflexões apresentadas

em três obras, compostas por Lee Eldridge Huddleston (1967), Giuliano Gliozzi

(2000[1977]) e Teresa Martínez Terán (2001), que analisaram as teorias e reflexões

elaboradas sobre esta questão durante o período colonial a partir das formas como estas

respostas foram construídas, os diálogos que estabeleciam entre si e com escritos anteriores

e as possíveis influências de interesses políticos, econômicos ou religiosos.

Para isso, será necessário apresentarmos o conteúdo de algumas obras e teorias

aventadas durante o período colonial para observarmos como elas foram interpretadas pela

produção historiográfica posterior, que buscou identificar elementos que permitissem a

formação de grandes blocos homogêneos entre os escritores que abordaram o tema (seja a

partir do local de origem dos autores, do grupo social a que pertenciam ou aos interesses

que pretendiam defender). Blocos estes que, muitas vezes, foram interpretados a partir de

conceitos hierarquizadores, chegando em alguns casos a reproduzir ecos da legenda negra.

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A depender do autor analisado, o dominicano Gregorio García (autor de um célebre

compêndio das teorias sobre a origem dos índios formuladas até o início do século XVII),

por exemplo, foi identificado como um dos principais representantes de uma forma

“simplista” e/ou “tradicional” de se abordar a questão da origem dos americanos, um

exemplo da maneira “espanhola” de se interpretar a procedência dos indígenas ou como um

baluarte do pensamento “moderno” sobre o Novo Mundo e seus habitantes.

No segundo capítulo (“Sobre as ovelhas do outro aprisco: as teorias das origens

dos índios formuladas nos relatos coloniais europeus”), nossa atenção recairá sobre as obras

que abordaram esta questão a partir das propostas elaboradas por outros autores ou

formularam suas próprias teorias para a existência de seres humanos no continente

americano durante o período selecionado. Partindo da afirmação de François Hartog (1999)

de que uma narrativa é o percurso de outras narrativas, analisaremos as relações

estabelecidas pelos autores entre suas reflexões sobre este problema com elementos da

tradição cristã (em especial passagens das Sagradas Escrituras, mas também conteúdos

presentes em outros textos, como o apócrifo quarto livro de Esdras) e com determinados

clássicos greco-romanos (onde a narrativa platônica sobre a ilha de Atlântida ocupa lugar

central).

Novamente, a amplitude do tema exigiu recortes e escolhas. Neste caso, a

decisão foi por concentrarmos a análise em três teorias específicas: a judaica, a atlante

(ambas apresentadas neste capítulo) e a asiática (abordada no capítulo seguinte). Em

particular, pretendemos demonstrar nestas páginas que a questão da origem dos indígenas

não é um “problema” que se apresenta “pronto” quando da chegada dos europeus ao Novo

Mundo, mas sim o resultado do contato prolongado com os americanos. Seguindo esta

premissa, sugerimos que a “experiência” americana não alterou apenas as respostas

formuladas, mas foi fundamental para o próprio surgimento desta questão. Acreditamos

que, mais do que uma trajetória linear, progressiva e/ou coerente, as teorias sobre o

povoamento das Índias Ocidentais formuladas no período reforçam a percepção da

multiplicidade dos habitantes desta região. Em resumo, podemos identificar um aumento

expressivo de obras que possuem uma representação dos indígenas como sendo formados

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por grupos com características tão específicas ou diferentes entre si que dificultavam – ou

impediam – a identificação de uma origem única a todos eles.

No terceiro capítulo (“José de Acosta e as relações entre tradição e experiência

nas representações sobre os indígenas”), analisaremos os argumentos deste jesuíta espanhol

a respeito da procedência dos homens americanos presentes em duas de suas principais

obras, a De Procuranda Indorum Salute (1588) e a Historia Natural y Moral de las Indias

(1590). A decisão de centrarmos nossa atenção em um autor em particular se dá – como já

apontamos páginas atrás – pelo fato de suas reflexões sobre este tema terem sido

extremamente influentes tanto entre seus contemporâneos quanto entre autores de décadas

ou séculos posteriores (mesmo entre aqueles que discordavam de seus argumentos ou

defendiam teorias consideradas equivocadas por ele) além de muito elogiadas por parte da

historiografia como sendo mais “modernas” e/ou “corretas” do que as outras existentes no

período.

Com ele, encerramos nossa análise sobre o período colonial, propondo que o

estudo das diferentes repostas para a origem dos americanos permite a identificação não de

um processo progressivo em direção a respostas mais “verdadeiras”, que substituiriam a

tradição pela empiria na base de seus argumentos, mas sim que o prolongamento do contato

com os indígenas resultou em uma percepção da multiplicidade desses povos que gerou um

retorno aos clássicos greco-romanos e às Sagradas Escrituras em busca de elementos que

permitissem incorporar o “outro” dentro dos discursos elaborados pelos autores europeus.

Em outras palavras, sugerimos que há nestes autores uma relação menos linear e

progressiva na “troca” da tradição pela experiência ao tentarem responder como o novo

continente teria sido povoado.

A segunda parte da tese irá se concentrar nas reflexões produzidas sobre a

questão da origem dos índios ao longo do século XIX. Entretanto, consideramos necessário

fazer referências a algumas pesquisas e publicações produzidas em períodos posteriores e,

principalmente, anteriores. Assim, o quarto capítulo (“Entre bárbaros e civilizados: as

reflexões sobre as origens dos indígenas no século XIX”) irá abordar, inicialmente, os

relatos das expedições enviadas às ruínas da cidade maia de Palenque produzidos desde as

décadas finais do setecentos e as reflexões sobre a origem dos índios produzidas por três

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autores específicos (o historiador escocês William Robertson, o jesuíta Francisco Javier

Clavijero e o viajante prussiano Alexander von Humboldt) que, mesmo tendo sido escritas

na segunda metade do século XVIII, foram fundamentais para as reflexões produzidas

sobre os indígenas na centúria seguinte.

Novamente, centraremos nossa atenção nas três hipóteses específicas já

abordadas na primeira parte da tese. Neste capítulo, analisaremos mais detidamente as

reflexões que identificaram os judeus – em especial as dez tribos perdidas de Israel – como

ancestrais dos primeiros habitantes do continente americano, proposta que alcançou grande

destaque principalmente dentro dos Estados Unidos. Ao final, nos deteremos aos autores

que associaram a América e seus habitantes com a mítica ilha de Atlântida para, por

exemplo, “explicar” a existência de características “civilizadas” em algumas regiões do

continente.

O quinto e último capítulo da tese (“Os índios arianos: a construção de um

passado nacional através das reflexões sobre as origens dos americanos”) será dedicado aos

autores que associaram o processo de colonização das terras do Novo Mundo ao Oriente.

Para isso, consideramos necessário realizar um breve esboço sobre o desenvolvimento de

conceitos como o de línguas indo-europeias e raça ariana, que exerceram papeis

fundamentais dentro de muitas das reflexões sobre a ocupação inicial da América

produzidas no período. Em seguida, abordaremos três hipóteses específicas: as tentativas de

identificar “cientificamente” a que raças humanas os indígenas pertenciam (com destaque

para os estudos envolvendo medidas cranianas desenvolvidos por autores como o médico e

cientista norte-americano Samuel G. Morton), as teorias que propunham a existência de

uma ou mais migrações de povos asiáticos (como os mongóis e os arianos) em direção ao

continente americano e as propostas de uma origem autóctone dos indígenas, da

“civilização” ou, em alguns casos, de todos os seres humanos.

Antes de encerrarmos a introdução, consideramos importante fazer uma

ressalva. Ao longo de toda a tese, pretendemos demonstrar que pensar qual era a origem –

ou, mais comumente, as origens – do homem americano, seja no início do período colonial

ou após o processo de independência das colônias europeias no continente, foi um elemento

fundamental para reflexões mais amplas sobre quem seriam os índios e como eles poderiam

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ser incorporados e representados dentro das narrativas produzidas sobre o Novo Mundo e

seus habitantes.

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Capítulo 1

As origens dos índios: leituras e interpretações sobre uma questão

colonial

“[...] o problema fundamental da história americana

consiste em explicar satisfatoriamente o aparecimento

da América no seio da Cultura Ocidental, porque essa

questão envolve a maneira de se conceber o ser da

América e o sentido que se há de atribuir à sua

história” (Edmundo O’Gorman, A invenção da

América, p. 25).

Expedições em busca da verdade nos relatos coloniais

No dia 28 de abril de 1947, Thor Heyerdahl partiu do porto de Callao, no litoral

peruano, em direção ao oeste, em busca de respostas para questões como a origem dos

grupos indígenas americanos e polinésios bem como de suas crenças, línguas e construções.

Segundo o explorador norueguês, a decisão de empreender esta jornada teria ocorrido

durante sua lua de mel passada em ilhas do Pacífico, quando teve contato com tradições

orais dos nativos que teriam sugerido a existência de elementos em comum com povos do

continente americano.

Desde então, Heyerdahl passou a desenvolver a teoria de que os indígenas, em

especial os incas, teriam explorado as águas do Pacífico muito além do litoral americano

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séculos antes do contato com as expedições espanholas. Para ele, esta expedição seria

comprovada através de sua “constatação” de que as ilhas do Pacífico (como o Havaí, a

Polinésia e a ilha de Páscoa) derivariam do mesmo tronco linguístico de alguns povos do

Novo Mundo, como os que habitavam a Mesoamérica e a Cordilheira dos Andes. Além

disso, todas essas regiões possuiriam crenças religiosas e técnicas arquitetônicas

semelhantes entre si.

Contudo, para além desses indícios altamente questionáveis e muito criticados

por outros pesquisadores do período, Heyerdahl centrou sua argumentação no conteúdo das

narrativas de viajantes e exploradores europeus que tiveram contato com a região do Peru

durante o século XVI. Em especial, sua atenção recaiu em um evento específico: a mítica

exploração inca pelas águas do Pacífico descrita por autores como Pedro Sarmiento de

Gamboa e Miguel Cabello Valboa. Segundo Valboa, em sua Miscelánea Antártica (1586),

o líder inca teria organizado uma expedição marítima em direção a oeste após obter

informações sobre a existência de ilhas “fabulosas” nesta região. Depois de vários meses

em alto mar, a expedição teria retornado ao continente americano trazendo consigo “indios

prisioneros de color negra y mucho oro y plata y más una silla de latón y cuero de

animales como caballos” (apud FRANCH, 1985, 120).

Heyerdahl usou passagens como essa para dar sequência à sua teoria,

defendendo que a exploração do Pacífico por embarcações peruanas explicaria não só o

fato dos incas e polinésios possuírem uma mesma “língua mãe”, mas também a existência

de outros elementos em comum, como a utilização de nós semelhantes aos quipos peruanos

por parte de alguns ilhéus além da adoração a divindades equivalentes que teriam apenas

seus nomes alterados. Segundo o explorador norueguês, estes elementos seriam originários

de “uma das mais estranhas civilizações do mundo”, formada por grupos de pacatos e

sábios homens brancos vindos do norte, provavelmente através de expedições que teriam

partido do continente europeu (HEYERDAHL, 1952, 14-15).

Estes homens, entretanto, não seriam os responsáveis pelo povoamento do

Novo Mundo, mas apenas dos indícios de civilização existentes em regiões específicas do

continente. Os indígenas em geral seriam descendentes de pequenos grupos asiáticos de

caçadores e pescadores que teriam lentamente migrado para a América através das terras

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siberianas. A influência dessa misteriosa civilização só seria identificada entre os povos

considerados por Heyerdahl como os mais avançados do Novo Mundo, em especial, os

incas, maias e astecas, a quem teriam ensinado técnicas de arquitetura e bons costumes. A

transmissão de conhecimentos ficaria evidente através da inexistência de vestígios de

desenvolvimento gradual nas “altas civilizações” que outrora ocuparam as terras do México

até o Peru, o que indicaria uma origem anterior e exterior ao estabelecimento dos grupos

humanos nas regiões analisadas27

. Em outras palavras, para este explorador, os habitantes

do Novo Mundo teriam uma origem diferente e inferior a dos responsáveis pelos esparsos

sinais de civilização existentes em certas localidades do continente americano, o que

permitiria “explicar” a coexistência nessas terras de elementos considerados por ele como

“avançados” (construções de grande porte e sistemas de escrita, por exemplo) ao lado de

“sinais evidentes de barbárie”, como as práticas antropofágicas.

Após o período de contato e aprendizagem, todos os integrantes dessa avançada

civilização teriam abandonado o continente através do oceano Pacífico. As razões para esse

novo movimento migratório também estariam presentes em antigas tradições incas descritas

nos relatos coloniais: intensas disputas com outros grupos indígenas “inferiores” fizeram

com que a civilização dos homens brancos abandonasse o Novo Mundo em direção ao

oeste, passando por localidades como a ilha de Páscoa28

até chegar à Polinésia, liderados

pelo mitológico Kon-Tiki (identificado por Heyerdahl com Viracocha, divindade central

dentro da cosmologia dos grupos indígenas peruanos).

Baseado em formulações teóricas reconhecidas por ele mesmo como sendo

extremamente frágeis29

, Heyerdahl passou a buscar apoio financeiro e logístico além de

27 O autor é claro ao apontar uma origem exterior às características consideradas por ele como mais avançadas

encontradas entre os povos do Novo Mundo: “[...] é, por certo, circunstância digna de nota a não existência de

nenhum vestígio de desenvolvimento gradual nas altas civilizações, que outrora se estenderam do México ao

Peru. Quanto mais fundo cavam os arqueólogos, mais alta é a cultura, até ser atingido um ponto definido a

que as antigas civilizações nitidamente se elevaram sem qualquer base no meio de culturas primitivas”

(HEYERDAHL, 1952, 117).

28 As relações entre os habitantes da ilha de Páscoa e os incas a partir de uma civilização exterior a ambos os povos foram aprofundadas por Heyerdahl durante a expedição Aku-aku, também narrada em livro

(HEYERDAHL, 1969).

29 Ao descrever as opiniões de navegadores e estudiosos sobre a viabilidade de sua expedição, Heyerdahl

(1952, 59) reconheceu que: “Eu não podia contrastar as advertências uma por uma, porque não era

marinheiro. Tinha, porém, comigo, um único trunfo de reserva, no qual estava baseada toda a viagem. No

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voluntários para realizar uma expedição que “comprovasse” a possibilidade de ligação

entre os povos da costa oeste da América do Sul e as ilhas da Polinésia30

. Para isso, o autor

retornou mais uma vez aos relatos coloniais, em busca de descrições das jangadas utilizadas

pelos incas que serviram como base para a construção de uma embarcação à vela

empregando técnicas e materiais (nove toras de madeira amarradas entre si movidas por

uma vela) semelhantes aos existentes na região peruana há cerca de 1.500 anos31

.

Acompanhado por outros cinco exploradores, Heyerdahl permaneceu à deriva no Pacífico

sul durante mais de três meses até alcançar, no dia 7 de agosto de 1947, um recife próximo

ao Taiti32

.

***

Ainda que tenha tomado uma proporção extremada, que fez o autor chegar a

arriscar a sua vida e a de sua tripulação, a postura de Heyerdahl em relação às narrativas

coloniais é semelhante à adotada por muitos autores ao longo do século XIX (Cf. Capítulos

4 e 5) e em boa parte do século XX: tais relatos conteriam, ainda que de forma cifrada,

parcial ou mesmo errada, indícios que permitiriam responder as questões sobre a presença

meu íntimo havia uma voz que sempre me segredava que uma civilização pré-histórica se espalhara pelo Peru

e através do mar até as ilhas em uma época em que as jangadas como a nossa eram a única embarcação

naquele litoral”.

30 A viagem de Heyerdahl não foi a única expedição do período a cruzar longas distâncias oceânicas em busca de evidências sobre as possíveis rotas de migração utilizadas pelos grupos humanos há milhares de anos: “la

travesía del Atlántico Medio y Septentrional se ha experimentado multitud de veces en fechas recientes. Se

han empleado siempre embarcaciones de diferentes tipos – balsas, canoas, piraguas, etc. – propulsadas a

remo u otra clase de naves pequeñas de estilos muy diferentes. De todas las expediciones, quizás las más

ampliamente difundidas fueron las travesías llevadas a cabo por el Dr. Alain Bombard en 1952 y por el Dr.

Hannes Lindemann en 1958. Los viajes de R. Manry en 1966 y de J. Ridgeway y C. Blyth en 1967 vendrían a

probar que no sólo las aguas cálidas […] sino también las aguas frías del Norte del Atlántico eran capaces

de proporcionar la base alimenticia necesaria para completar la travesía con seguridad” (FRANCH, 1985,

170-171).

31 “A nossa intenção era por à prova o funcionamento e a qualidade da jangada inca, sua resistência no mar e

seu porte, e ver se os elementos realmente a impeliriam através do mar até a Polinésia com sua tripulação ainda a bordo” (HEYERDAHL, 1952, 30).

32 A expedição Kon-Tiki foi descrita pelo próprio Heyerdahl com fortes tintas epopeicas em um relato que

alcançou grande repercussão em seu lançamento (1952), sendo publicada em dezenas de países, além de

servir de base para um premiado documentário produzido e dirigido pelo explorador (1950) e um filme de

ficção (2013).

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de grupos humanos no Novo Mundo. Esta visão fez com que inúmeras obras sobre o tema

começassem com uma espécie de julgamento das teorias sobre a origem e o

desenvolvimento dos indígenas aventadas nos séculos anteriores. Julgamento este, que

serviria como um “filtro”, permitindo aos autores expor suas hipóteses a partir de premissas

mais “confiáveis”.

Como exemplo deste tipo de postura, podemos citar a obra de Henry Vignaud,

publicada no Journal de la Société des Américanistes (1922) pouco mais de duas décadas

antes da expedição de Heyerdahl. Nela, o estudioso francês aponta como seu objetivo

central mostrar de que forma a questão da origem dos índios se apresentava à luz das

pesquisas modernas. Contudo, para isso, seria necessário ter, além do contato pessoal com

os povos americanos, um conhecimento detalhado das hipóteses formuladas anteriormente,

o que permitiria estabelecer quais delas ainda teriam alguma validade.

Seguindo estes critérios, teorias que relacionavam os indígenas a determinados

descendentes de Noé, às dez tribos perdidas de Israel e a povos como os fenícios, tártaros e

atlantes foram denominadas por ele como “extravagantes e sem embasamento”33

. Por outro

lado, a leitura das obras de autores como Fernando Alvarado Tezozómoc, Diego Durán,

Bernardino de Sahagún e Juan de Torquemada, permitiria a identificação de elementos em

comum, o que aumentaria as chances de que eles fossem “verdadeiros”. No caso, Vignaud

afirma que esses relatos apontavam insistentemente para uma migração que teria ocorrido

poucos séculos antes do nascimento de Cristo. A partir desta “triagem” de teorias e

informações, o autor defende o que considera ser a verdadeira resposta para a questão: os

indígenas descenderiam majoritariamente de povos asiáticos que teriam alcançado o

continente americano através de uma ligação por terra34

.

33 “[...] car elles sont toutes basées sur des considérations étrangères à la connaissance des races et des

langues des Indiens, ainsi qu'à celle de la géographie et de l'ethnographie des contrées de l'Asie, d'où ils

pouvaient provenir” (VIGNAUD, 1922, 12).

34 Assim como no caso de Heyerdahl, Vignaud (1922, 55-57) tenta explicar a coexistência entre grupos

altamente desenvolvidos e outros com sinais evidentes de barbárie extrema a partir de uma origem múltipla. Para ele, o povoamento do Novo Mundo seria o resultado de quatro correntes migratórias distintas: os

construtores de montes ou mound builders (em especial na região que corresponde atualmente aos Estados

Unidos), os esquimós, os nahuatls (grupo mais desenvolvido que os outros e relacionado à origem e

desenvolvimento dos maias, incas e astecas) e o povo de Lagoa Santa, que seria o mais selvagem e primitivo,

ligado aos botocudos e aos tapuias.

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Outros exemplos de julgamento dos relatos coloniais em busca de elementos

“confiáveis” sobre a questão da origem dos indígenas são os dois volumes publicados por

José Imbelloni (1926 e 1956). Compêndios que analisam as principais teorias formuladas

sobre o tema desde os primeiros contatos dos espanhóis com o Novo Mundo até a primeira

metade do século XX, as obras deste escritor argentino não buscam identificar a verdadeira

resposta para o que ele denomina como a “esfinge indiana”, mas sim analisar os

argumentos de diversos autores (inclusive Henry Vignaud e Thor Heyerdahl) na tentativa

de “evitar el error, por lo menos en el mayor número posible de casos” (IMBELLONI,

1956, 11).

Com esse intuito, o pesquisador argentino elabora longas listas de autores a

partir de suas hipóteses de migração (fenícia, cartaginesa, hebraica, entre várias outras)

apontando os possíveis erros que cada um deles teria cometido. Isso faz com que ele passe

dezenas de páginas enumerando os autores que, desde o século XVI, associaram a bíblica

localidade de Ofir com o Peru ou as terras americanas com a mítica ilha de Atlântida, por

exemplo, para, posteriormente, afirmar que se tratam de teorias embasadas em premissas

infundadas (IMBELLONI, 1956, 37-45; 64-66). Essa depuração das teorias seria a forma

encontrada para discernir, dentro do que ele defende se tratar de um processo “lógico e

contínuo”, os elementos que permitiriam, a longo prazo, identificar a – ou as – verdadeiras

respostas para a origem do homem americano (1956, 85).

Um terceiro exemplo ainda é o longo texto de abertura escrito por Luis Pericot

y García para o manual espanhol América Indígena (1936). Assim como nos dois casos

anteriores, o autor retorna aos relatos coloniais tendo como objetivo identificar as principais

teorias e, a partir delas, arrolar as obras e argumentos de seus seguidores e detratores bem

como os erros e acertos que cada uma dessas hipóteses conteria. Este objetivo faz com que

o pesquisador espanhol estabeleça uma divisão entre as hipóteses “altamente ingênuas e

fantasiosas” (que, em geral, apontavam as terras próximas ao Mar Mediterrâneo ou locais

bíblicos como o ponto de partida dos ancestrais dos americanos) e outras “sensatas e

clarividentes”, como as elaboradas por José de Acosta (PERICOT Y GARCÍA, 1936, 359-

360).

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Os elogios feitos às reflexões do jesuíta espanhol evidenciam a forma como os

relatos coloniais foram interpretados dentro das três obras citadas nas páginas anteriores. A

partir de uma resposta alcançada por meios apontados pelos autores como mais

“científicos” e, consequentemente, mais “corretos”, tanto o espanhol Pericot y García

quanto o argentino Imbelloni e o francês Vignaud retornam às teorias formuladas em

períodos anteriores em busca daquelas que teriam, ainda que de forma precária e/ou

intuitiva, se aproximado mais da resposta considerada verdadeira ou, ao menos, mais

plausível segundo seus critérios.

A percepção de que os conteúdos das narrativas produzidas nas primeiras

décadas ou séculos de contato dos europeus com o Novo Mundo e seus habitantes

conteriam elementos úteis para a resolução da questão da origem dos indígenas foi negada

por outros autores, como Paul Rivet. Em seu Les origines de l’homme américain (1943), o

pesquisador francês aborda as teorias apresentadas nos relatos coloniais apenas como uma

“introdução histórica”, não fazendo parte das reflexões nem das propostas elaboradas por

ele sobre o tema, uma vez que “a maioria dessas soluções parece hoje demasiadamente

pueril” (RIVET, 1960, 25). Esta postura fica evidente quando o autor analisa os conteúdos

de publicações do século XIX e início do XX que davam continuidade às reflexões

formuladas durante o período colonial, descritos por ele como continuadores de “lindos

contos” “estéreis” e “fantasiosos” que refletiriam apenas a paixão dos seres humanos pelo

maravilhoso e o inverossímil35

.

Postura semelhante é adotada por José Alcina Franch em seus textos sobre o

tema. Assim como na obra de Rivet, o historiador espanhol afirma que os relatos coloniais

praticamente não possuem informações possíveis de serem aproveitadas pelos estudos

atuais nem pelo que ele considera como a hipótese mais plausível: a migração através de

contatos transatlânticos (FRANCH, 1988, 1-6; 40-75). Uma das únicas exceções seria José

de Acosta, autor “tan ponderado como lo pueda ser un cientifico de nuestro tiempo”, cuja

35 “[...] a imensa maioria [das hipóteses] pertence ao remoinho histórico que baralha os começos de todas as ciências, especialmente aquelas que se referem ao homem. Geralmente, com fundamento em preconceitos

tradicionais, em relações históricas discutíveis, e sobretudo apoiadas num conhecimento deficiente tanto do

passado americano como das populações indígenas supervenientes, não podem resistir à crítica e caem como

castelo de cartas ante os fatos acumulados pacientemente pela ciência moderna. Representam pois um período

caduco e, esperamos, definitivamente encerrado pelo americanismo” (RIVET, 1960, 25-28).

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“clarividência extraordinária” o teria levado a “predecir el descubrimiento del estrecho de

Bering” (1988, 65-66). Isto faz com que Franch repita a abordagem já apresentada em

outras das obras citadas anteriormente, ainda que com outras premissas, ao tentar mapear as

dezenas de teorias a partir de um “planteamiento lógico”. O historiador apresenta as

classificações feitas por autores como Pericot y García e Imbelloni36

para, em seguida,

propor sua própria organização das teorias “clássicas e fantásticas”, divididas em seis

grupos principais que se desdobram em quase vinte subgrupos37

.

A defesa de que as teorias apresentadas nos relatos coloniais são apenas

“elucubrações imaginativas” (FRANCH, 1992, 19-20) faz com que o pesquisador espanhol

aproxime uma série de obras com profundas diferenças temporais, regionais e de conteúdo

entre si tendo a resposta à questão da origem dos índios como o único princípio ordenador.

O item sobre a hipótese atlante é exemplar dessa postura. Franch resume as ideias de

autores como Gonzalo Fernández de Oviedo y Valdés, José de Acosta e Gregorio García

sem, no entanto, compará-los entre si nem relacionar os trechos das obras em que esta

hipótese é abordada com o restante dos relatos nem com outras questões centrais, como o

período em que esses textos foram produzidos ou os diálogos estabelecidos por eles (1988,

68-73).

É importante ressaltarmos que todos os autores citados até aqui estão – cada um

a sua maneira e com seus próprios objetivos e teorias – preocupados quase que

exclusivamente com as respostas apresentada nos relatos coloniais, não com a forma com

que esses autores abordaram o problema da origem dos índios nem as possíveis relações

estabelecidas por eles com outros temas relacionados ao Novo Mundo e seus habitantes.

Isto torna compreensível, por exemplo, o elogio ao “clarividente” Acosta (que teria dado

36 Pericot y García divide as hipóteses em sete grupos: I – origem bíblica ou mediterrânea (subdivida em:

semitas, cananeus, cartagineses, hebreus, gregos, espanhóis, egípcios e origem americana da cultura egípcia);

II – outras teorias de origem europeia; III – asiático (tártaros ou chineses/mongóis ou outras origens asiáticas);

IV – africano; V – oceânico; VI – continentes desaparecidos; VII – origem autóctone. Já José Imbelloni

organiza as hipóteses em quatro seções: I – imigrações de outros continentes (Europa-América, África-

América, Oceania-América e Ásia-América); II – povoadores autóctones; III – continentes imaginários; IV – origens múltiplas (FRANCH, 1988, 41).

37 I – Procedência europeia (escandinavos, nórdicos, ingleses e espanhóis); II – mediterrânea (troianos, filhos

de Jafé, cartagineses, egípcios, fenícios, judeus e cananeus); III – africana (semitas da costa atlântica); IV –

oceânica (Molucas e Polinésia); V – asiática (nordeste da Ásia, tártaros e chineses); VI – continentes

desaparecidos (Atlântida e Mu) (FRANCH, 2006, 15).

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uma resposta mais próxima da “verdadeira” do que seus contemporâneos) ou a elaboração

de tabelas com extensas listas de nomes de autores que defenderiam esta(s) ou aquela(s)

hipótese(s).

Acreditamos, no entanto, que citar as dezenas de autores que teriam

estabelecido uma ligação entre indígenas e judeus (como faz Pericot y García) ou com

qualquer outro povo real ou lendário elimina dissensões e as lógicas internas a cada obra

bem como outras possíveis análises, apontando o local de origem indicado como o único

elemento relevante. Em resumo, seja realizando julgamentos das narrativas coloniais em

busca de resquícios de informações verdadeiras ou considerando seus conteúdos como

meras curiosidades históricas inúteis às pesquisas “atuais” as obras citadas acima não

refletem sobre a produção dessas interpretações.

Para além da busca por respostas mais ou menos corretas para a questão da

existência de seres humanos no continente americano, pretendemos analisar os relatos de

diferentes autores coloniais que abordaram este tema a partir de questões como: De que

forma estas hipóteses foram construídas? Que tipos de argumentos foram utilizados? Quais

eram as fontes a que eles recorriam em busca de uma autoridade que reforçasse suas

afirmações? Qual é o papel da experiência americana dentro da elaboração destas teorias?

Dessa forma, o presente capítulo tem como objetivo central analisar a pequena bibliografia

que abordou as teorias formuladas durante o período colonial sobre a origem dos índios

tendo em vista não seu “resultado final”, a resposta em si sugerida em cada uma delas, mas

sim as formas e argumentos com que elas foram formuladas e, consequentemente, as

representações sobre as terras do Novo Mundo e seus habitantes que elas projetam,

reforçam ou problematizam. Em outras palavras, buscamos analisar as obras que não mais

pretendiam dar continuidade ao extenso debate sobre a questão da origem do homem

americano ao analisar estas teorias tendo em vista seus “acertos” ou “erros”, mas sim

aquelas que buscaram refletir sobre a própria existência deste debate, suas formas e

implicações ao longo do tempo. Para isso, será necessário fazermos referência aos

argumentos presentes em alguns relatos coloniais (como os de Oviedo, Acosta, Sarmiento

de Gamboa e Grotius), que serão abordados mais detidamente nos capítulos seguintes (Cf.

Capítulos 2 e 3).

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30

Hierarquização das fontes e tradições de pensamento

A partir de meados do século XX, começaram a surgir obras com reflexões

mais elaboradas sobre as teorias formuladas durante o período colonial para o povoamento

do continente americano. Um dos pioneiros foi o pesquisador norte-americano John H.

Powell que, em seu pequeno discurso proferido no Athenaeum da Filadélfia no ano de 1946

identificou a existência de dois tipos de postura em relação ao tema da origem dos índios:

de um lado, estaria o grupo dos “tradicionalistas” que, a partir de uma série de “ginást icas

intelectuais”, buscava incorporar as terras e grupos humanos recém-encontrados à história

europeia; do outro, encontravam-se os “intelectuais aventureiros”, que teriam sido os

primeiros a se emanciparem das formas de pensamento medievais (apud GLIOZZI, 2000,

15).

A divisão dos relatos coloniais a partir de suas hipóteses sobre os possíveis

ancestrais dos indígenas apontada por Powell também foi utilizada por outros

pesquisadores. O principal deles foi Lee Eldridge Huddleston, em seu The origins of the

American Indians (1967). Nesta, que é a primeira publicação dedicada exclusivamente ao

tema, o historiador norte-americano faz uma detalhada apresentação das principais teorias e

argumentos elaborados desde a chegada das embarcações capitaneadas por Colombo até as

primeiras décadas do século XVIII, tendo como ponto de partida a identificação de duas

tradições de pensamento “rivais”, “but not mutually exclusive” (HUDDLESTON, 1967,

viii).

A primeira delas teria como principal representante o jesuíta espanhol José de

Acosta (a partir, principalmente, dos argumentos presentes em sua Historia Natural y

Moral de las Indias) e seria caracterizada por “a moderate skepticism with respect to the

comparative and exegetical methodology of the day, by an adherence to geographical and

faunal considerations in theorizing, and by a reluctance to produce finished origin

theories” (HUDDLESTON, 1967, viii). Já a segunda tradição teria como maior exemplo o

dominicano Gregorio García, que em seu Origen de los indios de el Nuevo Mundo e indias

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occidentales compôs um vasto panorama de teorias sobre a existência de seres humanos no

continente americano. Para Huddleston, esta segunda forma de abordagem do tema era

caracterizada por uma forte adesão às comparações etnológicas além de uma “tendency to

accept trans-Atlantic migrations, and an acceptance of possible origins as probable

origins” (1967, 13)38

.

De acordo com o historiador norte-americano, as teorias formuladas ao longo

do século XVI e início do XVII eram extremamente simples e breves, pautadas quase que

exclusivamente pela tradição (seja ela clássica, cristã ou mesmo uma mistura de elementos

de ambas), o que teria resultado em uma notável unidade de argumentação a despeito da

grande variedade de hipóteses formuladas39

. Seguindo estes pressupostos, Huddleston

(1967, 48) descreve o método utilizado por esses autores, que seria baseado em

questionáveis semelhanças culturais, religiosas, linguísticas ou comportamentais entre os

indígenas e determinados povos do Velho Mundo justificadas a partir de teorias que

explicassem a migração desses grupos até o continente americano. Estas semelhanças

reforçariam uma perspectiva de estabilidade cultural, o que tornaria possível a identificação

de características atribuídas aos povos descritos na Bíblia ou em clássicos greco-romanos

entre os grupos americanos do século XVI.

Em contraposição a esta forma de pensamento, atrelada à obra do dominicano

García, estaria a desenvolvida pelo jesuíta José de Acosta. Para Huddleston, as ideias deste

religioso espanhol sobre a origem dos indígenas eram opostas às da maioria dos autores do

período que analisaram o tema, pois ele teria dado maior ênfase à sua experiência nas terras

38 Ainda que muitos dos autores identificados por Huddleston (1967, 76) a este método tenham elaborado suas

teorias antes da publicação da obra de García, o historiador justifica sua decisão de denominá-la como

“Garcían tradition” afirmando que, apesar de não ser o inventor dessa atitude, ele foi seu principal “exemplar”.

39 “The first two hundred years of investigation into the problems raised by the existence of unknown men in

America show a remarkable unity despite the fantastic variety of solution suggested. The methodology utilized

by a majority of the writers was essentially deductive and exegetical, with minimum reliance on or even

recognition of experience as a factor” (HUDDLESTON, 1967, 10-11).

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americanas e em seu contato pessoal com os nativos em detrimento dos aspectos

relacionados à tradição40

.

Tendo esta divisão como base para suas análises, Huddleston passa a descrever

de forma altamente elogiosa os argumentos e análises desenvolvidos por Acosta sobre a

origem dos indígenas41

, afirmando se tratar de uma postura mais cética e,

consequentemente, “mais avançada” do que a tradição personificada por Gregorio García.

Partindo dessa premissa, o historiador elogia o fato de Acosta atrelar suas reflexões ao que

pôde observar durante os anos em que esteve no continente americano e restringir as

hipóteses sobre a origem dos indígenas a partir de um “ceticismo constante” em relação às

possibilidades de migração aventadas por outros autores. Para Huddleston, os argumentos

formulados pelo jesuíta espanhol praticamente invalidariam a metodologia utilizada pela

outra tradição, descrita como “ingênua” e “acrítica”, por valorizar comparações

extremamente tênues entre características de povos do Novo Mundo e do Velho ao mesmo

tempo em que ignora ou minimiza diferenças inquestionáveis entre eles (HUDDLESTON,

1967, 48-76).

A dicotomia entre as formas de pensamentos personificadas em Acosta e

García, onde a primeira é interpretada como “melhor” ou – o que é visto como o mesmo

pelo autor – mais “moderna” do que a segunda permeia toda a obra de Huddleston. Ao

analisar as teorias formuladas ao longo do século XVII, por exemplo, o autor as apresenta a

partir de sua identificação a uma das duas tradições, eliminando ou relativizando boa parte

das especificidades presentes em cada uma das dezenas de obras produzidas durante este

período. Segundo o autor, não teria havido uma divisão igualitária entre os dois grupos42

.

40 “Acosta was the first to put all the elements producing restraint into a well-thought-out argument which

objectively exposed all the considerations necessary to a solution to the problem of American origins. For

that reason it seemed appropriate that the ‘scientific’ theme bear his name” (HUDDLESTON, 1967, 60).

41 Em especial, aspectos como sua invalidação das teorias que aproximavam a bíblica Ofir com o Peru ou as

que apontavam os habitantes da ilha de Atlântida ou descedentens das dez tribos perdidas de Israel como

ancestrais dos americanos (Cf. Capítulo 3).

42 Huddleston (1967, 105-106) enumera fatores que podem ter dificultado a disseminação dos argumentos de Acosta e que, por outro lado, explicariam parte do sucesso da tradição de García: “Several factors mitigated

against the success of the Acostan Tradition, and reveal [...] the revived and expanded Origen de los indios of

1729 as less anachronistic than the previous pages might indicate. The recent historical experience of Spain

itself constituted a strong argument for a trans-Atlantic migration. A pre-Columbian migration seemed not so

unreasonable when viewed against the vast numbers of Europeans who had gone to America since 1492 […]

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Poucos autores espanhóis teriam seguido o modelo consolidado por Acosta, como Juan de

Solórzano y Pereira e Antonio de Herrera y Tordesillas. Já em outras regiões,

especialmente no norte da Europa, as ideias do jesuíta espanhol – ainda que permanecessem

minoritárias – teriam obtido um número mais expressivo de seguidores, como os

holandeses Jean de Laet e Georg Horn, que trabalharam na tentativa de estabelecer

elementos mais confiáveis para a resposta sobre a migração dos índios até o continente

americano além de eliminar hipóteses consideradas por eles como “absurdas”

(HUDDLESTON, 1967, 126).

Por outro lado, a tradição de García teria tido muitos seguidores, principalmente

nas terras espanholas, que caminharam na direção oposta a dos autores influenciados por

Acosta, aumentando exponencialmente a quantidade de teorias para a origem dos índios

além de não eliminar as formuladas anteriormente. Para Huddleston, isto poderia ser

observado através da comparação entre as duas edições da Origen de los indios de Gregorio

García (1607 e 172943

): em pouco mais de cento e vinte anos, não apenas as doze principais

hipóteses aventadas pelo religioso na primeira publicação teriam permanecido sendo

interpretadas como plausíveis (a despeito do que ele considera como numerosas e

contundentes evidências em contrário44

), como dezenas de outras foram incorporadas ao

texto da segunda publicação.

Other factors retarding the success of the Acostan school were the inability of the writers to find a substitute

for the accepted methodology and the failure of Europeans in general to identify degrees of reliability and authority”.

43 Publicada em 1729, a segunda versão da Origen de los indios de el Nuevo Mundo e Indias occidentales foi

ampliada por seu editor (possivelmente Andrés González de Barcia), que incluiu dezenas de páginas e novos

capítulos além da análise de teorias e autores não mencionados na primeira edição da obra de Gregorio

García. Estas alterações levaram autores como Teresa Martínez Terán (2008, 121-142) a definí-la como uma

outra obra: “El hecho es que este texto, aunque incluye las páginas originales, ya no es el inicial sino que

ostenta otra estructura. Le fueron agregados casi todo el capítulo 22, casi todo el 23 y un capítulo completo

que es el 24 del libro IV, además de páginas, párrafos y apostillas intercalados en su redacción. El reeditor

advierte en el prólogo que hará múltiples adiciones y que las colocará entre corchetes, pero no siempre

mantiene su promesa […] La reedición de 1729 utiliza la de 1607 del Origen de los Indios a la vez que

corrige sus inconvenientes. Refuerza su orientación en dos sentidos: magnificar la actuación española en América y descalificar de nuevo a sus poblaciones junto con quienes, desde el exterior, escribían el capítulo

dos de ‘la leyenda negra’ y la idea de un ‘descubrimiento múltiple’”.

44 “[...] no matter how strong the evidence indicating an unknown Siberian tribe as the progenitors of the

American Indians, writers of the latter-day Garcían Tradition could bring their favorites across the Atlantic,

or from under the Atlantic, with impunity” (HUDDLESTON, 1967, 143).

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Este exemplo foi utilizado pelo historiador para reforçar sua visão oposta sobre

as duas tradições. A de García teria permanecido inalterada ao longo do tempo, apenas

adaptando ou somando novas teorias a partir de um mesmo método. Já a de Acosta, ainda

que com um número muito menor de adeptos, teria auxiliado no processo de depuração das

hipóteses, eliminando teses consideradas mais frágeis, o que permitiria a identificação de

uma espécie de “progresso” em relação ao tema da origem dos índios que culminaria, a

partir do século XVII, em uma forma mais “científica” de análise desta questão

(HUDDLESTON, 1967, 106-107).

É importante observarmos que a divisão estabelecida por Huddleston entre as

formas de se responder à questão da origem dos índios e a identificação dos locais onde

cada uma delas teria conseguido mais seguidores reforça uma divisão entre a Espanha e a

região norte da Europa que remete às imagens produzidas pela Legenda Negra. Ainda que

descreva Acosta como “the finest result of Spanish scholarship on the subject of the origins

of the American Indians” (HUDDLESTON, 1967, 77), o historiador afirma que, em solo

espanhol, o sucesso da obra de García teria levado a uma estagnação da intelectualidade

sobre as questões que envolviam o Novo Mundo e seus habitantes que resultou em um

isolamento crescente em relação ao restante do continente europeu45

. Em resumo, ao

estabelecer suas críticas à argumentação de García e os continuadores desta tradição,

majoritariamente espanhóis, e, por outro lado, elogiar as reflexões de Acosta e seu

“sucesso” em outros países, Huddleston reforça a associação entre a Espanha e valores

“medievais”, enquanto o norte da Europa desenvolvia uma forma de pensamento

“moderna”46

.

Além disso, ao analisarmos as conclusões formuladas por Huddleston em seu

estudo pioneiro podemos observar que, na tentativa de reforçar a existência de duas formas

distintas e antagônicas de abordagem sobre o tema, o pesquisador acaba eliminando ou, ao

45 “If Spanish scholarship stagnated, the reason may have been that García had done his job too well.

Acosta’s arguments, if followed, would lead to a search for new criteria or a refinement of the old. García, if followed, would lead to an uncritical acceptance of the old information and method and a growing isolation

from the mainstream of European Scholarship” (HUDDLESTON, 1967, 79).

46 Não por acaso, Huddleston (1967, 117; 126; 137) dá grande ênfase à influência das traduções da obra de

Acosta e sua difusão em locais como a Holanda e a Inglaterra, onde “the Acostan tradition appeared stronger

[...] than in Spain itself”.

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menos, desconsiderando as questões próprias de cada texto ou conjunto de textos (sejam

eles agrupados em relação ao período, local de produção ou tipo de narrativa). Ainda que

não possamos negar alguns dos diálogos e influências identificados pelo historiador entre

os argumentos expostos por autores como José de Acosta e Gregorio García em relação a

escritos anteriores e posteriores, acreditamos que a ênfase apenas neste aspecto

homogeneíza obras com conteúdos e lógicas muito distantes entre si em nome de uma

interpretação que privilegia a identificação de longas tradições e sequências “lógicas” ou

“progressivas” em relação ao tema.

Uma breve análise dos argumentos expostos por José de Acosta pode

exemplificar as limitações desta postura. Huddleston é claro ao apontar o jesuíta espanhol

como um autor que, ao refletir sobre o Novo Mundo e seus habitantes, ignoraria as técnicas

comparativas47

, mostrando-o como um exemplo da predominância da experiência sobre a

tradição (associada ao método adotado por García e seus seguidores). Para isso, no entanto,

o historiador norte-americano deixa de lado aspectos centrais para a reflexão de Acosta

sobre a origem dos americanos, como a tentativa de relacionar os estágios de

desenvolvimento de determinados grupos indígenas ao dos chineses, o que poderia ser

indicativo de uma ligação entre eles. Além disso, Huddleston minimiza as referências a

passagens bíblicas e a argumentos de base aristotélica feitos pelo jesuíta ao apontar os

indícios de uma possível ligação por terra ou estreito marítimo entre o extremo norte da

América e terras do Velho Mundo.

Como pretendemos deixar claro adiante (Cf. Capítulos 2 e 3) é evidente que

autores como Acosta apresentaram argumentos mais elaborados para a questão da origem

dos indígenas do que os presentes em outras obras do mesmo período. Entretanto,

acreditamos que retratá-los como mais “modernos” e, consequentemente, mais afastados de

uma tradição “medieval” (associada por muitos dos historiadores citados acima a um

pensamento calcado em premissas religiosas e, por isso, mais distante da “realidade”

americana), limita o escopo dos argumentos formulados no período e, em casos como o do

47 “Few Europeans in 1607 could, or would, follow Acosta to the conclusion that cultural similarities were

useless in determining the relation of one people to another”; “To Acosta the comparative technique seemed

useless because the Indians probably developed their own culture after arriving in America”

(HUDDLESTON, 1967, 74; 102).

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próprio jesuíta espanhol, deixa de lado elementos que consideramos fundamentais em sua

argumentação não apenas sobre a questão da existência de grupos humanos no Novo

Mundo, mas da própria representação destas terras e de seus habitantes presente em seus

escritos.

A divisão entre partidários da tradição de um lado e defensores da experiência

do outro, com o segundo grupo sendo visto como mais “moderno” e o primeiro mais

“medieval”, também foi adotada por outros autores. Entre eles, podemos citar Marcel

Bataillon, que em um pequeno artigo sobre a “unidade do gênero humano” publicado em

1966 aponta o “choc des connaissances nouvelles avec le mythe de l’arche et avec tout le

récit biblique de la création”. Segundo o historiador francês, o debate sobre o

monogenismo (origem dos seres humanos atrelada a um único ancestral) ou poligenismo

(origem a partir de múltiplos centros de criação) entre o final do século XVI e meados do

XVIII também poderia ser reduzido a dois grupos: o daqueles que buscam em passagens

bíblicas as bases para a origem dos seres humanos e os que “pour des ‘raisons

ethnographiques’, s’écartent de cette voie: jusqu’à ces esprits forts qui, se fiant ‘à la raison

plus qu’à l’autorité’, arrivent à entrevoir [...] les problèmes de la préhistoire et de la

paléontologie” (apud GLIOZZI, 2000, 16).

Processo semelhante ocorre na obra de Margaret T. Hodgen. Ao tentar

encontrar nos relatos do início da Idade Moderna indícios das estruturas que, mais tarde,

balizariam disciplinas como a Antropologia e a Etnologia, esta antropóloga norte-

americana divide as obras do período – ou mesmo trechos dentro de cada uma delas – entre

as que possuiriam informações etnológicas/confiáveis e as que seriam fruto da

tradição/imaginação. Esta postura fica visível durante a análise feita pela autora dos escritos

de Cristóvão Colombo. Para Hodgen (1971, 20), o navegador genovês era um exemplo de

homem “moderno” que realizava “realistic, down-to-earth judgements of the Caribs and

their culture” ainda que, em alguns momentos específicos, tenha feito concessões a

elementos da tradição “only under the pressure of circumstances, not because of ignorance

or credulity”.

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A origem dos americanos como ideologia colonial

A ênfase dada aos embates entre tradição e experiência por parte desses autores

é, entretanto, criticada em outras obras. A principal delas é a extensa e erudita tese

elaborada por Giuliano Gliozzi no final da década de 1970. Em seu livro, o historiador

italiano busca se afastar do que ele denomina como interpretações calcadas nos princípios

da história das mentalidades para a análise da presença do ser humano no continente

americano, que teriam sido formuladas por autores como Powell e Hodgen. Para Gliozzi,

estas interpretações dariam peso demais aos debates intelectuais travados na Europa do

período48

e deixariam de lado o que ele considera como essencial, as relações materiais

existentes tanto entre os povos do Velho Mundo quanto destes com suas colônias

americanas bem como a natureza ideológica das diferentes teorias sobre a origem dos

índios49

.

Estes pressupostos teóricos que, como apontado pelo próprio historiador, são

baseados em interpretações de cunho marxista para conceitos como o de ideologia, ficam

mais evidentes nas análises de teorias específicas sobre a origem dos indígenas, como a

passagem em que ele analisa os autores que, entre os séculos XVI e XVII, defenderam uma

ligação dos povos americanos com os judeus. Gliozzi é claro ao apontar que em sua

abordagem as questões econômicas, ou seja, os interesses materiais das Coroas europeias

sobre as terras recém-descobertas e seus habitantes, são os principais elementos que devem

ser levados em conta50

. Seguindo essa argumentação, a hipótese da ascendência judaica dos

48 “[...] même les recherches menées par des historiens professionnels n’ont pas suffi, souvent, pour conférer

à ce sujet une détermination satisfaisante. Les ‘historiens des idées’, qui ont pourtant le mérite d’avoir porté

leur attention sur ce problème, ont eu aussi le tort de le réduire à une dimension purement intellectuelle”

(GLIOZZI, 2000, 15).

49 Ao analisar o processo de invenção do “discurso ideológico sobre o selvagem”, logo no início de sua obra,

Gliozzi (2000, 13) afirma que ele “ne naît pas seulement – ni principalement – du sein de la lutte culturelle

qui marque, au cours des trois siècles qui nous intéressent, le processus d’émergence historique de la

bourgeoisie. Tout d’abord, ce discours naît des relations matérielles que les Européens ont instaurées au fur

et à mesure avec les ‘sauvages’ réels, ou, en d’autres termes, des différentes configurations historico-sociales

du rapport colonial”.

50 “[...] nous voulons montrer comment le probleme, abstraitement culturel en apparence, de la validité de la

sagesse antique en relation à la thématique américaine, subit des conditionnements idéologiques spécifiques

dont les racines réelles sont à rechercher dans la configuration historique des rapports coloniaux”

(GLIOZZI, 2000, 225).

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indígenas passa a ser interpretada como fruto direto da exigência que havia no período por

respostas que justificassem as relações estabelecidas pelos países europeus com suas

colônias americanas. Os aspectos denominados pelo historiador italiano como sendo

exclusivamente “culturais” poderiam até ser levados em conta, porém, apenas como

elementos acessórios, uma vez que esta perspectiva “comporte la nécessité de renoncer à

comprendre le sens réel des théories des XVIe et XVII

e siècles”

51.

A busca pelo “sentido real” das teorias a partir das disputas políticas e

econômicas entre os países europeus faz com que Gliozzi fundamente grande parte de suas

afirmações a partir da identificação de dois grandes grupos: o formado pelos espanhóis (que

se subdividiria entre os defensores dos interesses da Coroa e os dos conquistadores) e o

composto por seus opositores. O retorno ao trecho em que o historiador italiano analisa a

teoria que relaciona os primeiros indígenas aos judeus é esclarecedor a esse respeito.

Gliozzi afirma que esta hipótese foi interpretada seguidas vezes como “tipicamente

espanhola” e que, entre os espanhóis que a abordaram, houve uma divisão entre os

argumentos dos conquistadores (interessados na exploração do trabalho indígena e

descontentes com as mudanças introduzidas pelas Leyes Nuevas52

) e os dos partidários do

imperador53

.

51 “[...] ceux qui expliquent la présence, réelle ou supposée, d’analogies entre les Américains et les Hébreux

par l’hypothèse judéogénique, ne le font pas parce que cette hypothèse leur semble satisfaire de manière

adéquate à l’exigence intellectuelle de répondre au problème culturel que posent ces analogies, mais au contraire ils soulignent ces dernières et se posent ce problème culturel parce que, de la réponse qu’ils ont en

tête – et qu’ils chercheront à faire valoir en vertu de ses ‘raisons scientifiques’ intrinsèques – ils voient la

possibilité de déduire une justification idéologique d’intérêts matérieles déterminés” (GLIOZZI, 2000, 86-

90).

52 “Ce n’est pas un hasard si cette réponse a été élaborée au début des années 1540, au moment culminant de

la polémique lascasienne qui devait trouver une issue heureuse dans les Leyes Nuevas, et si elle a continué

d’être reprise et perfectionnée tout au long du siècle par les milieux les plus directement liés à la conquista,

lesquels s’efforçaient sans cesse et par tous les moyens d’arracher à la couronne un recul par rapport aux

positions de 1542. C’est justement en relation à la politique coloniale de la couronne que la théorie

judéogénique prend une signification mieux définie” (GLIOZZI, 2000, 59-60). Seguindo esta interpretação, os

sofrimentos dos indígenas seriam fruto do castigo divino imputado aos descendentes das tribos perdidas de Israel que teriam se afastado dos preceitos cristãos.

53 “Il suffit de rappeler que la thèse hébraïque, si elle naît au XVIe siècle comme expression des rapports

serviles instaurés par les conquistadores et conserve cette même forme dans ses principales expressions du

XVIIe, pourra aussi, au XVIIe siècle, prendre la forme d’une théorie subsidiaire pour l’affirmation des droits

de la couronne sur le Nouveau Monde” (GLIOZZI, 2000, 85).

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Esta divisão faz com que o autor recaia, em certos momentos de sua obra, em

essencialismos, como uma maneira espanhola ou antiespanhola de se responder à questão

da origem dos índios, que se subdividem em grupos menores: os conquistadores e os

defensores da Coroa entre os espanhóis e, no segundo caso, os holandeses, huguenotes,

ingleses, entre outros. Isto fica evidente quando o autor identifica uma forma “tipicamente

francesa” – que seria oposta, por exemplo, a dos conquistadores espanhóis – de se abordar a

hipótese que relaciona os americanos com Cam, filho de Noé. Segundo o historiador

italiano, a postura política dos huguenotes em relação à Espanha e ao poder da Igreja

Católica determinaram a adoção em massa da teoria camítica por parte dos autores

franceses (GLIOZZI, 2000, 116-117). Da mesma forma, quando os interesses desses grupos

se alteravam, as teorias defendidas por eles acabavam “caducando”, o que exigia a

formulação de novas hipóteses sobre a origem dos índios54

.

A ênfase dada por Gliozzi a certos determinismos – sejam eles derivados do

período, país ou grupo social a que o autor pertenceria – bem como a busca pelos motivos

ideológicos e, consequentemente, os “reais” objetivos de cada uma das hipóteses sobre a

origem dos índios fazem com que o autor, assim como no caso de Huddleston, ignore a

importância de outros aspectos a nosso ver imprescindíveis para a compreensão desses

relatos coloniais. Isto faz com que, em certos momentos, sua obra recaia no que o

historiador inglês Quentin Skinner apontou como sua principal autocrítica ao seu livro

sobre as fundações do pensamento político moderno: a tentativa de integrar uma série de

textos a uma narrativa coerente que deixava de lado outros elementos centrais55

. Em outras

palavras, Gliozzi é extremamente hábil ao relacionar mais de uma centena de obras em um

longo espaço de tempo identificando elementos em comum, debates internos e conexões

54 Gliozzi (2000, 123) identifica uma substituição dos argumentos relacionados à linhagem de Cam por

respostas mais “laicas” por parte dos autores franceses e ingleses com o passar do tempo: “Lorsque cette

dernière orientation se précisera d’un point de vue économique et juridique, la nécessité de faire appel à

cette malédiction spirituelle deviendra elle aussi caduque. On trouvera beaucoup plus convaincant de faire

reposer les droits des Français et des Anglais à s’approprier les plaines nord-américaines sur des arguments

se référant uniquement au droit naturel: et ce renoncement au droit sacré permettra de quitter le terrain biblique et d’élaborer une réponse laïque – plus crédible sur le plan scientifique et donc beaucoup plus

durable – au problème des origines des Américains”.

55 “Eu mais ou menos forcei os textos a contarem a minha história, esquecendo que havia outras histórias que

eles contavam e que tratavam de questões cruciais para eles [...] Eu, portanto, os recrutei para uma história

que não era a deles” (PALLARES-BURKE, 2000, 335).

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entre obras ou eventos ocorridos em diferentes regiões do globo. Entretanto, essa leitura faz

com que outros aspectos sejam deixados de lado, como o impacto da experiência americana

dentro do debate da origem dos indígenas e, mais amplamente, nas representações

produzidas sobre o Novo Mundo e seus habitantes56

.

A análise do opúsculo composto por Hugo Grotius em meados do século

XVII57

sobre este tema permite uma melhor visualização da forma como Gliozzi interpreta

os conteúdos dos relatos coloniais. Em seu De Origine Gentium Americanarum (1642), o

intelectual, embaixador e jurista holandês58

formula uma resposta tripla para a questão a

partir da comparação das características de diferentes grupos indígenas com a de povos do

Velho Mundo: os habitantes da porção setentrional do continente, ao norte do istmo do

Panamá, seriam versões degeneradas de grupos noruegueses cuja origem remeteria aos

antigos germanos descritos por Tácito; já a região da península de Iucatã teria grupos de

cristãos etíopes como seus ancestrais (o que explicaria o fato dos povos desta região

praticarem a circuncisão, por exemplo); por fim, os peruanos, que seriam um grupo mais

desenvolvido do que os demais do continente, teriam sua origem atrelada aos avançados

chineses, uma vez que ambos adoravam o sol e possuíam semelhanças entre suas línguas

(GROTIUS, 1884, 1-17).

Nas poucas vezes em que esta obra de Grotius foi analisada, os historiadores

centraram boa parte de seus esforços na tentativa de identificar o que teria motivado o autor

56 Benjamin Braude (1997, 106) também faz ressalvas em relação à interpretação feita por Gliozzi sobre os

relatos coloniais: “It gives little attention to the medieval context out of which this debate grew and thus is

unable to define what is truly new. Gliozzi also ignores the parallel discussion that arose over the origin and

identity of the peoples of Africa”.

57 Para uma análise mais detalhada das teorias e argumentações elaboradas por Hugo Grotius sobre a origem

dos indígenas e as reações e críticas feitas a ela por autores como Joannes de Laet e Isaac de la Peyrère, Cf.

KALIL, 2012.

58 Autor de uma vasta produção, que abrange os campos da Literatura, Religião, História e Direito, seus

escritos – em especial Mare Liberum e De Iure Belli ac Pacis – foram extremamente influentes na primeira metade do século XVII. Neles, Grotius analisa questões relativas à liberdade de navegação e o comércio entre

os povos, sendo apontado como o primeiro teórico a defender a liberdade comercial como um princípio

(BROOK, 2012, 73-75) e o responsável por elaborar as “bases filosóficas que sustentaram a aventura

neerlandesa no ultramar, bem como a montagem de um Império colonial articulado por duas companhias de

comércio” (GESTEIRA, 2006, 225).

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a dar uma guinada nas temáticas de suas reflexões já no final de sua vida59

. Entre as

hipóteses formuladas estão a que defende que o relato buscava rebater argumentos de

outros autores sobre o tema da origem dos índios e a que a aponta como uma defesa dos

interesses europeus pelos recursos do Novo Mundo (seja por parte da Holanda, terra natal

do autor, ou da Suécia, para quem ele prestava serviços no período60

). Gliozzi é partidário

da segunda opção. Para ele, o relato de Grotius teria sido elaborado para defender a atuação

da Coroa sueca no território americano61

, o que explicaria não apenas a suposta ligação

entre as regiões norte da América e da Europa apontada pelo jurista holandês, mas também

as disputas teóricas travadas por ele com Joannes de Laet, integrante da Companhia das

Índias Ocidentais e defensor da atuação holandesa nessas terras62

.

Contudo, ao remeter a obra de Grotius às disputas políticas e econômicas entre

as Coroas europeias, Gliozzi minimiza outros aspectos centrais da reflexão sobre os

indígenas feita pelo escritor holandês, como as implicações teológicas que cada uma das

origens imputadas aos americanos poderia gerar63

. Curiosamente, a hipótese de uma

migração tripla proposta por Grotius identifica no Novo Mundo ligações com grupos

59 Postura adotada por autores como Joan-Pau Rubiés (1991, 221). Entretanto, como apontamos em uma

publicação anterior, não partilhamos desta interpretação. Consideramos que as reflexões de Grotius sobre os

possíveis ancestrais dos indígenas se relacionam com conteúdos e questões já abordadas em outras de suas obras, como a unidade da humanidade e a unificação da cristandade (KALIL, 2012, 52-60).

60 Grotius exerceu o cargo de embaixador da Coroa sueca em Paris. Para informações biográficas sobre o

jurista holandês, Cf. GÓMEZ ROBLEDO, 1989.

61 Para Gliozzi, a obra de Grotius seria fruto de uma disputa entre suecos e holandeses pela posse de terras na

região norte da América que teria se iniciado na década de 1630. Após a tentativa fracassada de

estabelecimento no Delaware por parte dos holandeses, o governo sueco enviou uma expedição para a região

que fundou, em 1638, o povoamento de Nova Suécia, gerando intensos conflitos comerciais com os

holandeses (GLIOZZI, 2000, 373).

62 Para um resumo dos argumentos e críticas apresentados por Joannes de Laet aos argumentos de Hugo

Grotius em relação à questão da origem dos índios bem como a réplica e tréplica que eles suscitaram, Cf.

WRIGHT, 1917.

63 Gliozzi é claro ao negar a influência dos aspectos religiosos na obra de Grotius: “Proposer l’hypothèse d’un

peuplement du Yucatán et du Pérou par les Éthiopiens et les Chinois signifie pour Grotius, comme pour

Botero, fournir une explication des éléments de civilisation rencontrés dans les empires mexicain et inca qui

évite d’attribuer à ces peuples une origine trop ancienne, et exclue tout particulièrement une origine biblique

et hébraïque” (GLIOZZI, 2000, 375).

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descendentes dos três filhos de Noé que teriam repovoado o mundo após o dilúvio

universal64

.

A partir dessa premissa, Grotius passa a refletir sobre o estágio de

desenvolvimento alcançado pelos americanos e conclui que, ainda que diferentes entre si (o

que estaria relacionado às origens específicas de cada grupo65

), os indígenas teriam se

degenerado desde o estabelecimento nestas terras. As razões apontadas pelo jurista seriam a

inexistência de governos centralizados, a mistura entre povos de diferentes procedências e a

negligência generalizada em relação à manutenção de seus costumes. Entretanto, todos

esses fatores seriam desdobramentos de uma questão maior e anterior: o longo período que

esses homens ficaram sem ter contato com o cristianismo e seus predicadores. Em resumo,

para Grotius, a América seria o local onde as três linhagens de humanos posteriores ao

dilúvio teriam se encontrado e que, devido ao longo período de isolamento, teriam se

afastado do cristianismo. Isto reforçaria a necessidade iminente de atuação de religiosos

sobre esses homens assim como seria um indicador do sucesso dessa empreitada, que iria

apenas reavivar elementos já presentes – mas esquecidos há muito tempo – entre esses

povos.

Os aspectos teológicos da reflexão de Grotius sobre os indígenas ficam mais

claros quando analisamos o debate travado por ele com o cristão-novo francês Isaac de la

Peyrère em relação à origem e à unidade dos seres humanos. Para Peyrère, a leitura de

passagens da Epístola de Paulo aos romanos66

apontaria a existência de um período anterior

à lei introduzida no mundo após a expulsão de Adão e Eva do Paraíso. Isto seria indicativo

64 Sem teria colonizado o continente asiático e, consequentemente, seria ancestral dos chineses que

alcançaram o Peru; Cam seria ligado aos africanos, como os cristãos etíopes da região de Iucatã; Jafé estaria

relacionado aos povos europeus, entre eles os noruegueses/germanos que teriam migrado até as terras do novo

continente.

65 Os “avançados” peruanos, por exemplo, seriam fruto de uma migração dos também avançados chineses.

Grotius (1884, 15-16) chega a defender que “Mancaccapacus”, mítico líder inca, seria um chinês que teria

navegado até as terras do Novo Mundo para organizá-los e introduzir a noção de governo semelhante à

existente na China.

66 “Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado neste mundo, e pelo pecado a morte, e assim

passou a morte a todos os homens, no qual todos pecaram. Porque até à lei o pecado estava no mundo; porém,

o pecado não era imputado, não havendo lei. Todavia a morte reinou desde Adão até Moisés, mesmo sobre

aqueles que não pecaram por uma transgressão semelhante à de Adão, o qual é a figura do que havia de vir”

(Rom, 5, 12-14).

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da existência de seres humanos anteriores ao casal original criado por Deus, que, dessa

maneira, não seria o ancestral comum a toda a humanidade, mas apenas do povo hebreu.

Dessa forma, povos como os indígenas americanos teriam uma origem diferente e anterior,

sendo, por isso, denominados como “pré-adamitas”67

.

Ainda que não seja o objetivo central de sua obra, Peyrère dedica todo um

capítulo às teorias propostas por Grotius sobre os ancestrais dos indígenas, criticando

severamente as aproximações linguísticas e comportamentais ou a identificação de

vestígios materiais estabelecidas pelo jurista entre determinados grupos americanos e povos

do Velho Mundo68

para reforçar a independência da criação dos indígenas. Estes

argumentos fizeram com que Grotius reagisse com um novo texto onde reforçava sua

crença de que teses como a que advogava a existência de seres pré-adamitas representariam

uma séria ameaça à fé cristã. Por outro lado, suas teorias não apenas seriam “inofensivas”

às premissas religiosas, como explicariam a origem dos indígenas integrando-os à

cosmologia cristã69

.

Após esse longo parêntese dedicado aos argumentos formulados por Grotius

bem como ao debate que eles geraram no período, retornamos à análise da obra de Gliozzi

reforçando nossa crença na impossibilidade de se atribuir a uma teoria ou autor específico o

67 A exegese bíblica proposta por La Peyrère foi duramente combatida por outros autores, pelo governo

francês e pela Igreja Católica. Paolo Rossi (1992, 177) aponta a existência de dezessete obras editadas nos

anos que se seguiram a esta publicação que buscavam refutar “aquela sacrílega hipótese”. Seus escritos sobre

o tema também foram condenados pelo Parlamento de Paris, o que o levou a buscar refúgio em Bruxelas,

onde foi preso. La Peyrère conseguiu retirar as queixas que recaíam contra ele após se comprometer a se apresentar diante do Papa e publicar um novo escrito (Epístola a Filotino na qual expõe as razões próprias

pelas quais confuta a seita de Calvino e o livro dos pré-adamitas, de 1657). Nele, o autor negava seus

principais conceitos, em especial o que apontava para a existência de seres humanos anteriores a Adão,

argumentando que estas ideias seriam fruto de sua formação calvinista (Cf. POPKIN, 1987; PAPAVERO,

2003, 344).

68 “[…] and either from some ancient record, or some old tradition, or the similitude of some old and obsolete

name, or from any their conjecture: Some they imagine that landed at such or such a place, to have been the

authors or fathers of such a Nation. [...] Must needs Peru be thought to have had their Original from the

Chinesians, because a piece of a broken boat, like those of the Chinesians, was found on the banks of Peru?

Those who guesse so, seem to me to be like that two-peny Doctor, who told the sick man he had eaten an Asse,

because he saw de dorsers standing under the bed” (LA PEYRÈRE, 1656, 276-277).

69 “The consequence of which is that humankind is believed either to have existed eternally, as Aristotle

believes, or to have arisen from the land, as the legend about the Sparti says, or from the ocean, as Homer

wanted it; or that some men had been created before Adam, as recently someone dreamt in France. If these

things are to be believed, I see a great danger for Religion; if what I have said is believed, clearly there is

none” (apud RUBIÉS, 1991, 239-240).

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único elemento motivador que a explicaria totalmente ou, ao menos, essencialmente (no

caso do historiador italiano, os interesses políticos e econômicos dos países europeus sobre

o Novo Mundo). A esse respeito, as reflexões feitas por Dominick LaCapra (1998, 253-

255) são oportunas. Para ele, apresentar um texto exclusivamente como uma

“intencionalidade”: “impide la formulación como problema explícito de la cuestión de la

relación entre intenciones – en la medida en que se las puede reconstruir plausiblemente –

y lo que es posible sostener que el texto hace o revela […] En cualquier caso, creer que las

intenciones autorales controlan por completo el significado o funcionamiento de los textos

[…] es suponer una posición preponderantemente normativa”.

Isto não significa que esses interesses não estavam presentes em muitas das

reflexões feitas no período70

. Contudo, como apontamos no caso da obra de Grotius e do

consequente debate travado por ele com La Peyrère, acreditamos que restringir as

interpretações apenas a este aspecto traz consigo uma série de implicações questionáveis,

como o isolamento das reflexões sobre a origem dos indígenas do restante do conteúdo dos

relatos coloniais e a aproximação de textos a partir de critérios como a nacionalidade dos

autores ou o grupo social a que pertenceriam.

A análise da interpretação feita por Gliozzi sobre as hipóteses formuladas por

Gonzalo Fernández de Oviedo y Valdés em sua Historia general y natural de las Indias

(1535) reforça as afirmações feitas acima. O historiador italiano é claro ao defender que as

teorias sobre a origem dos americanos elaboradas pelo cronista de Índias tinham um

objetivo duplo: legitimar a atuação da Coroa espanhola no Novo Mundo ante as outras

potências europeias e, simultaneamente, rebater questionamentos internos sobre a posse

dessas terras71

. No entanto, uma análise mais detida indica que, novamente, esta

70 Como veremos adiante, autores como o religioso Pedro Simón (1882) estabeleceram relações diretas entre

os indígenas e animais de carga como parte de sua defesa da legitimidade da escravização desses grupos

humanos.

71 Como os realizados pelos descendentes de Colombo no que ficou conhecido como os pleitos de Colón:

“[…] la théorie d’Oviedo sur le peuplement américain n’épuise pas sa signification dans la polémique contre

les héritiers de Colomb: elle prende en outre une fonction idéologique dans le domaine du droit international,

eu égard aux nombreux contentieux que l’aggravation de la concurrence entre les puissances européennes

pour la domination coloniale sur le Nouveau Monde avait provoqués” (GLIOZZI, 2000, 26).

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interpretação deixa de lado elementos centrais da reflexão feita pelo cronista espanhol em

relação aos indígenas.

Em sua obra, Oviedo defende que as terras descobertas pelas embarcações

espanholas seriam, na realidade, as mitológicas ilhas das Hespérides descritas

anteriormente por diversos relatos gregos72

. O autor vai além, a partir das reflexões feitas

por Annius Viterbo73

, Oviedo traça uma genealogia dos governantes espanhóis que remonta

aos filhos de Noé e ao período de dispersão dos povos após o fracasso da construção da

Torre de Babel: Hespero seria o décimo segundo rei das terras espanholas e, ao mesmo

tempo, o soberano das Hespérides/América. Esta teoria faz com que Oviedo defenda que a

chegada das embarcações espanholas no litoral americano representaria o “retorno” dessas

terras, depois de tantos séculos de isolamento, para as mãos de seu legítimo e original

senhor74

.

A partir desses argumentos, fica evidente a tentativa do autor de legitimar a

posse da Coroa espanhola sobre as terras recém-descobertas75

. Contudo, esta interpretação

apontada por Gliozzi “fecha” a questão em si, eliminando possíveis relações com outros

72 Oviedo também cita um segundo contato do Velho Mundo com as terras americanas. Segundo o cronista

espanhol, a partir de uma lenda atribuída a Aristóteles, embarcações cartaginesas teriam alcançado regiões

distantes e fertilíssimas que, para ele, também se tratavam das Índias. Ao ser informado do feito, o senado de

Cartago teria proibido novas viagens além de punir com a morte àqueles que tinham tido contato com este

local, para evitar um despovoamento causado por migrações em massa em direção a estas terras paradisíacas

além de tentar evitar que elas fossem conquistadas por outras nações: “Esta es gentil auctoridad para

sospechar que esta isla que Aristóteles dice, podría ser una destas que hay en nuestras Indias, así como esta isla Española, o la de Cuba, o, por ventura, parte de la Tierra Firme” (OVIEDO Y VALDÉS, 1992, 17).

73 O Libro de Beroso babilônico, publicado por Annius Viterbo no final do século XV influenciou muitos

autores espanhóis do período. Sua autoria foi atribuída inicialmente a um sacerdote caldeu do século III, o que

foi negado por estudiosos da Escola de Salamanca (MARTÍNEZ TERÁN, 2001, 28-29).

74 “[…] las islas que se dicen Hespérides, que señalan Seboso e Solino e Plinio e Isidoro, segund está dicho,

se deben tener indubitadamente por estas Indias, e haber seído del señorío de España desde el tiempo de

Hespero, duodécimo rey della, que fue, segund Beroso escribe, mil seiscientos e cincuenta e ocho años antes

quel Salvador del mundo nasciese […] e así, con derecho tan antiquísimo, e por la forma que está dicha, o

por la que adelante se dirá en la prosecución de los viajes del almirante Cristóbal Colón, volvió Dios este

señorío a España a cabo de tantos siglos. E parece que, como cosa que fué suya, quiere la divina justicia que

lo haya tornado a ser e lo sea perpetuamente, en ventura de los bienaventurados e Católicos Reyes don Fernando e doña Isabel, que ganaron a Granada e Nápoles, etc.” (OVIEDO Y VALDÉS, 1992, 20).

75 A defesa da legitimidade da posse espanhola em relação às terras do Novo Mundo teria levado o imperador

Carlos V a enviar um agradecimento a Oviedo pelo fato dele ter conseguido demonstrar que “há três mil e

oitenta anos que essas terras pertencem ao apanágio real e que Deus, depois de tantos anos, as tenha

devolvido ao seu dono” (apud VIDAL-NAQUET, 2008, 84).

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temas abordados por Oviedo no restante de sua obra. Durante o desenvolvimento de sua

argumentação sobre o processo de povoamento das Índias Ocidentais, o cronista espanhol

afirma que a ligação com a Espanha seria evidência de que os indígenas já haviam tido um

contato anterior com a palavra de Deus76

. Esta última afirmação foi reforçada pelo autor em

outros momentos de sua obra não apenas para enfatizar a importância da atuação espanhola

na região, mas também para embasar descrições altamente negativas dos nativos, já que não

se tratavam de gentios, mas sim de homens que, apesar do contato com o cristianismo, o

tinham abandonado. Esta atitude não apenas reforçava a “culpa” dos indígenas diante do

estado de barbárie em que se encontravam, mas também poderia servir como justificativa

para eventuais fracassos dos esforços de conversão empreendidos pelos religiosos

espanhóis a partir do início do século XVI, uma vez que eles “ya tuvieron noticia de la

verdad evangélica y no pueden pretender ignorancia en este caso” (OVIEDO Y VALDÉS,

1992, 30)77

.

Outra implicação questionável decorrente da interpretação proposta por Gliozzi

que relaciona as respostas sobre a origem dos indígenas formuladas no período colonial

apenas aos interesses materiais é a busca pela(s) resposta(s) que cada um dos autores

“realmente” acreditava. Isto fica evidente em vários momentos de sua obra, como nos

trechos em que ele analisa o compêndio de teorias sobre a origem dos índios produzido por

Gregorio García. Em seu relato, o dominicano espanhol arrola uma série de hipóteses sobre

o tema e conclui defendendo que acredita na validade de várias delas (GARCÍA, 1729,

345)78

. No entanto, Gliozzi afirma que, a partir de argumentos como o maior espaço

dedicado à questão, é possível identificar, “au-delà de l’impartialité affichée avec laquelle

76 “[…] digo que en aquestas nuestras Indias, justo es que se tenga e afirme que fué predicada en ellas la

verdad evangélica; y primero en nuestra España por el apóstol Sanctiago, e después la predicó en ella el

apóstol Sanct Pablo, como lo escribe Sanct Gregorio. E si desde nuestra Castilla se cultivó acá e transfirió la

noticia del Sancto Evangelio en nuestro tiempos, no cesa por eso que, desde el tiempo de los apóstoles, no

supiesen estas gentes salvajes de la redempción cristiana e sangre que nuestro Redemptor Jesucristo vertió

por el humano linajes” (OVIEDO Y VALDÉS, 1992, 30).

77 É interessante observarmos que passagens de sua obra como a que o cronista espanhol aponta a dureza dos crânios dos indígenas, que chegavam a quebrar as espadas dos soldados espanhóis durante os conflitos, são

entremeadas por reflexões sobre a “dureza” de entendimento destes homens em relação à religião cristã

(OVIEDO Y VALDÉS, 1992, 111).

78 Utilizaremos a edição de 1729 todas as vezes em que passagens da obra de Gregorio García forem citadas,

fazendo referências, quando necessário, às passagens inseridas pelo editor nesta segunda versão.

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García examine toutes les hypothèses posibles”, quais delas seriam as que o religioso

“verdadeiramente” seguia, como as que relacionam os americanos aos ancestrais dos

espanhóis e aos judeus (GLIOZZI, 2000, 36; 67).

O trecho em que o historiador italiano analisa o manuscrito de Pedro Sarmiento

de Gamboa (escrito em 1572, mas publicado apenas no século XX) também é exemplar.

Segundo Gliozzi, ao relacionar os habitantes do Novo Mundo com a Espanha através da

mítica Atlântida (que teria servido de ponte para a migração79

) o viajante espanhol teria

como objetivo central garantir a legitimidade da posse de sua Coroa sobre as terras recém-

descobertas além de impedir que a hipótese atlante fosse utilizada por autores com

interesses contrários aos dos espanhóis80

.

É claro que este aspecto é importante para Gamboa e está presente em vários

momentos de sua obra81

. Entretanto, as reflexões deste viajante espanhol sobre a origem

dos índios não se limitam a esta teoria. Pelo contrário. Seu texto deixa claro que nem todos

os americanos seriam ligados à mítica ilha descrita por Platão. Para ele, após o dilúvio ter

submergido boa parte da Atlântida e isolado o restante (o continente americano), outros

homens teriam organizado expedições marítimas que alcançaram determinadas regiões

destas terras82

. Entre eles, estaria o herói grego Ulisses que, após ter povoado Portugal, teria

se aventurado através do oceano Atlântico chegando até a região de Iucatã, o que seria

comprovado por várias semelhanças linguísticas e religiosas.

79 A ligação entre a Atlântida e a Espanha seria confirmada pela existência de vestígios de “edificios muy

grandes y claramente formados de una argamasa cuasi perpetua” encontrados no litoral próximo a Cádiz,

cujo nome também indicaria “ser cierta la narración de Cricias en Platón”, já que ele seria derivado de

“Gadirum”, segundo dos dez filhos de Netuno que teria recebido das mãos de seu pai o controle de uma das

partes da mítica ilha (SARMIENTO DE GAMBOA, 1942, 38).

80 “Afin de neutraliser la possibilité d’exploiter en fonction anti-espagnole l’hypothèse [...] d’une assimilation

de l’Amérique à l’Atlantide, Pedro Sarmiento de Gamboa affirme, en 1572, que ceux qui avaient peuplé

l’Atlantide-Amérique étaient vraisemblablement les mêmes qui avaient peuplé l’Espagne, [c’est-à-dire] Tubal

et ses descendants” (GLIOZZI, 2000, 39; 168).

81 Logo no início, Gamboa afirma que seu relato visava dar tranquilidade ao rei espanhol diante dos ataques e

questionamentos à legitimidade de sua posse sobre estas terras: “tiene V. Magestad el más bastantísimo y

ligítimo título a todas las Indias que príncipe en el mundo tiene a señorío alguno” (SARMIENTO DE

GAMBOA, 1942, 31-33).

82 “Y puesto caso, questas naciones numerosísimas de los Atlánticos eran y fueron bastantes para poblar

todas estotras tierras de Indias Occidentales de Castilla, también vinieron otras naciones a ellas, que

poblarían algunas provincias desta tierra después de la destruición dicha” (SARMIENTO DE GAMBOA,

1942, 46).

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Segundo Gliozzi, ao identificar os índios da Nova Espanha com Ulisses,

Gamboa desejava “garantir une origine tout aussi noble à la civilisation américaine dans

son ensemble”. No entanto, o historiador italiano não se detém a este detalhe, uma vez que,

para ele, o centro da argumentação do soldado espanhol era a defesa da migração atlante

como base para que a Coroa espanhola pudesse fundamentar juridicamente seu direito

milenar de posse sobre estas terras (GLIOZZI, 2000, 167-168). Dessa forma, a questão da

origem dos índios é isolada dentro do relato de Gamboa. Não há, por exemplo, uma

ligação, a nosso ver central para a compreensão da representação do indígena construída

pelo viajante espanhol, com os três níveis de barbárie identificados por ele entre os nativos

americanos83

. Em resumo, Gamboa sugere que os peruanos – e, em menor escala, os

mexicanos – seriam os povos mais desenvolvidos do continente e, ao mesmo tempo, os

descendentes mais próximos da migração ocorrida há milhares de anos. Não por acaso,

esses herdeiros diretos dos atlantes teriam criado lendas sobre suas origens para reforçarem

o domínio sobre outros povos da região, mais afastados das raízes “nobres”84

e,

consequentemente, mais “bárbaros”.

Em sua conclusão, Gliozzi retoma vários dos pontos abordados ao longo de sua

extensa obra para defender que, acima dos recortes nacionais, que explicariam apenas parte

dessas questões, a grande divisão identificada por ele em relação às teorias sobre as origens

do homem americano, suas motivações ideológicas e implicações materiais ocorreria dentro

das próprias Coroas europeias, a partir dos interesses específicos de cada um dos grupos

que as compõem. Esta divisão poderia ser representada – ainda que com pressupostos e

objetivos diferentes – a partir da mesma dicotomia já identificada por outros historiadores

citados acima entre os relatos que estariam presos a uma forma de pensamento medieval (e,

83 A divisão em três níveis de barbárie proposta por Gamboa (grupos sem “senhor natural”, com líderes

temporários escolhidos durante os períodos de conflito contra povos vizinhos e os reinos estruturados, como

os dos incas e astecas) é muito semelhante à apresentada por José de Acosta em sua Historia Natural y Moral

de las Indias (Cf. Capítulo 3). Segundo Fermín del Pino Díaz (1978, 499-500), esta semelhança poderia ser

fruto do contato pessoal que ambos teriam mantido durante o período em que o jesuíta espanhol viveu no

Peru.

84 Ao descrever os relatos reproduzidos pelos incas sobre sua origem, o viajante espanhol afirma que “[...]

entendiendo, que la generalidad destos naturales es ignorante […] para ser tenidos y temidos, fingieron

ciertas fábulas de su nacimiento, diciendo, que ellos eran hijos del Viracocha Pachayachachi, su criador, y

que habían salido de unas ventanas para mandar a los demás. Y como eran feroces, hiciéronse creer, temer,

y tener por más que hombres y aun adorarse por dioses” (SARMIENTO DE GAMBOA, 1942, 60).

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não por acaso, mais religiosa de se analisar o tema), enquanto outros ocupariam o papel de

defensores das hipóteses mais avançadas, modernas e laicas:

“On entrevoit plutôt, sur le fond, une polarisation différente des

positions: les unes qui se rassemblent autour de la défense du système féodal, les

autres qui partent des exigences d’émancipation et des intérêts matériels de la

bourgeoisie naissante. Cette polarisation coïncide en partie avec l’opposition

entre l’Espagne et les puissances qui la concurrencent, entre structure féodale de

l’Amérique latine et inititative commerciale et capitaliste des colonies de

l’Amérique du Nord, mais en part seulement. Le clivage s’insinue vraiment au

sein même des colonies de chaque nation, non seulement parce que tendent à

s’opposer les intérêts de la colonie et ceux de la mère patrie, mais aussi parce

que divergent les méthodes et les aspirations des divers groupes sociaux engagés

dans la colonisation” (GLIOZZI, 2000, 513).

A busca pela natureza ideológica das teorias sobre a origem dos índios presente

na obra de Gliozzi também foi abordada por outros autores, como Horacio Capel. Em seu

Ideología y ciencia en los debates sobre la población americana durante el siglo XVI

(1986), o pesquisador espanhol procura examinar como os interesses dos grupos

dominantes e seus pressupostos ideológicos influem na percepção científica e popular da

realidade social americana ao longo do primeiro século de contato dos povos europeus com

estas terras. Com esse objetivo, Capel esboça um amplo panorama do conceito de ideologia

dentro da tradição marxista85

, para defender que: “Tanto la defensa de la inferioridad de las

poblaciones indígenas como la afirmación de su superioridad obedecían, en buena parte, a

intereses socioeconómicos no confesados, y en este sentido el debate puede ser calificado

de ideológico” (CAPEL, 1986, 27).

85 Desde as reflexões elaboradas por Marx e Engels na Ideologia Alemã até as análises feitas por autores como

Althusser, Gramsci e Lukács. Capel cita quatro pontos básicos sobre o conceito de ideologia que balizaram suas reflexões: 1) a aceitação da influência da classe social a que se pertence na percepção da realidade; 2) a

função da ideologia como legitimação e justificação da ordem social; 3) o papel de falseamento, ocultação e

simplificação da realidade, e, mais concretamente, da realidade social; 4) a aceitação que a deformação

ideológica não se refere somente às ideias populares, mas também ao conhecimento científico, que pode estar

impregnado de ideologia (CAPEL, 1986, 25).

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Tendo os argumentos apresentados por José de Acosta em seu De Procuranda

Indorum Salute como fio condutor, Capel defende que problemas como o da origem dos

índios e o da drástica diminuição no número de americanos em poucas décadas foram

respondidos pelos autores europeus do período com base em pressupostos ideológicos. Isto

faz com que sua obra também recaia na interpretação que limita as formulações sobre o

tema feitas pelos autores aos “verdadeiros” interesses econômicos que os teria motivado.

Além disso, Capel (1986, 90) acredita ser possível distinguir entre os relatos (e mesmo no

interior de cada um deles) o que seria “real” do que seria ideologia86

ou mesmo “puro

falseamiento consciente de la realidad, por parte de unos funcionarios que saben muy bien

donde están sus intereses y cuales son las medidas a adoptar para defenderlos”. Premissas

estas que, assim como no caso de Gliozzi, subordinam totalmente as teorias aventadas no

período aos interesses econômicos e políticos do próprio autor ou do grupo social ou Coroa

a que pertenceria.

O Novo Mundo e seus habitantes como problema teórico europeu

A contribuição mais recente à análise sobre a questão da origem dos índios nos

relatos coloniais é a tese de Teresa Martínez Terán, Los Antípodas: el origen de los indios

en la razón política del siglo XVI (2001). Nela, a pesquisadora mexicana analisa o

“pensamento ocidental sobre a natureza e a procedência do homem americano”. Segundo a

autora, este pensamento se configuraria em um discurso “pseudo-histórico e simbólico”

convertido em instrumento para uso das potências europeias que se encontravam em

processo de expansão: “este es el objeto a abordar en este libro: el pensamiento político

del siglo XVI que aplica los mitos genealógicos occidentales al hecho americano y crea

86 “[...] en el estudio de las ideas sobre la población [americana] – hay que distinguir claramente entre la

componente ideológica y la que no pertenece a esta esfera […] El concepto de ideología que aquí empleamos – a caballo entre la teoría marxista y la sociología del conocimiento – implica la existencia de ideas falsas y

simplificadas sobre la realidad, en relación con la posición social en que se encuentra el individuo, y con la

defensa de intereses sociales, económicos o personales. La función de la ideología es la de legitimar y

justificar el orden social, lo que se hace mediante un falseamiento y simplificación de la realidad” (CAPEL,

1986, 89).

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divisiones raciales conforme a proyectos específicos de dominación” (MARTÍNEZ

TERÁN, 2001, 9-14).

Com este intuito, Martínez Terán aponta quatro constantes que, ao longo do

tempo, teriam levado grupos ou pessoas a buscarem as origens. A primeira delas se trata de

uma:

“construcción fundacional e imaginaria con fines de dominación

[…] El discurso genealógico ha sido utilizado también por el grupo en el poder o

por un grupo con aspiraciones políticas como arma o instrumento de lucha

contra otros grupos […] otro caso en que se recurre al origen es cuando se trata

de establecer una identidad frente a referentes culturales extraños, sean

abiertamente hostiles o no. Sentimiento motivado por presiones concretas como

la imposición de una lengua, una religión, un derecho o un gobierno que, por no

ser los familiares, producen un desequilibrio en las posibilidades de inserción

[…] Pero también el tema de la identidad, en lo individual, social o estatal,

puede darse como simple manifestación de una manera de ser, como expresión

de una diferencia en el concierto de diversas presencias culturales receptivas,

polifónicas; y este uso del origen, puesto de manifiesto por la particularidad,

conduciría, o debería conducir, al aprendizaje de la convivencia con los otros en

el marco del respeto. Es decir, que existe una posibilidad de que el ser, y el ser

de una determinada manera por el lugar inmediato de procedencia, no sea una

ideologización pseudohistórica, sino que corresponda al hecho de portar una

particularidad cultural no inscrita en la escala antropológica de la superioridad-

inferioridad, puesto que su sentido sería el de las identidades convivientes y

igualitarias” (MARTÍNEZ TERÁN, 2001, 12-13).

A partir desta divisão, a pesquisadora mexicana afirma que, no caso dos índios,

a quase totalidade dos relatos coloniais que levantam hipóteses sobre a sua ancestralidade

se insere dentro do primeiro grupo, que recorre à construção de uma origem com o objetivo

de dominação. Isto faz com que a reflexão elaborada por José de Acosta sobre as prováveis

teorias e rotas para a migração humana até o Novo Mundo sejam descritas por Martínez

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Terán como uma defesa “nacionalista” da legitimidade da posse espanhola sobre as terras

encontradas no período87

.

Uma exceção seria o relato de Gregorio García, que é utilizado como fio

condutor da tese. A partir de uma análise minuciosa das diferenças de conteúdo entre as

duas edições da obra do dominicano espanhol, Martínez Terán chega à conclusão de que a

primeira versão da Origen de los indios, ao defender uma procedência múltipla para os

indígenas e, mais ainda, ao propor uma noção de “miscigenação universal”, se destacaria da

maioria de seus contemporâneos que analisaram a questão a partir de uma interpretação

“nacionalista”88

. Dessa forma, García é descrito pela pesquisadora mexicana como um dos

únicos autores que abordaram a questão da origem dos índios a partir de um viés não

colonialista e tolerante. Postura esta que, visivelmente, é descrita pela autora de forma

positiva89

.

O papel central e elogioso atribuído a García leva a historiadora mexicana a

dedicar várias páginas de sua obra aos argumentos de Huddleston, para quem este religioso

seria o exemplo de uma postura mais “ingênua” e “acrítica” do que a adotada pela tradição

comandada por Acosta. Para Martínez Terán, a divisão entre duas tradições de pensamento

sobre a origem dos índios proposta pelo historiador norte-americano era, no mínimo,

87 “El fondo político y de política colonial que alienta las ideologías sobre el origen americano queda al

descubierto en las palabras de Acosta. De acuerdo con su lectura, el reino prometido no sería para los

españoles de Sefarad que Luis de León está suponiendo judíos, ni siquiera para los otros europeos como los

franceses, a quienes aquí se califica de cananeos, sino para Cristo. Sin duda, Acosta quiere para España el mérito del primer descubrimiento de América y de la primera evangelización” (MARTÍNEZ TERÁN, 2001,

138-140).

88 Terán (2001, 67; 20) afirma que, com as inserções na segunda edição da obra, estes objetivos foram

descaracterizados: “el pluralismo de las migraciones múltiples es sustituido en 1729 por el fortalecimiento de

la información a favor de una sola hipótesis: la de la procedencia camítica de los indios a través del origen

fenicio-cartaginés y de las transmigraciones tártaras y escitas”; “[...] su escepticismo al considera que el

tema no era de ciencia ni de fe, sino que pertenecía al rango de la mera opinión, fue por ende también

solucionado mediante una pretendida fundamentación supuestamente etnohistórica”.

89 “Su ficción de una migración múltiple, en la que algunos investigadores han encontrado un escepticismo

acrítico, no le concede a ninguna nación privilegios sobre otra. El solo cree que un fenómeno de mestizaje

está en marcha y que terminará por fusionar a todas las poblaciones. Y no habría que subestimar este último rasgo porque es eso lo que aparta su propuesta de lo que será más tarde la ficción nacionalista del mestizaje

hispano-indios, cuya finalidad es negar las desigualdades y exclusiones reales para hacer pasar como unidad

étnica latinoamericana lo que es una pluralidad de grupos y de intereses […] La originalidad del ‘parecer’

de García no podría apreciarse si él mismo no hubiera recreado en el curso de su tratado sobre el origen de

los indios el ambiente colonial de la discriminación” (MARTÍNEZ TERÁN, 2001, 204).

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questionável, o que era agravado pela escolha de Acosta e García como representantes de

polos opostos. Entretanto, ao apontar suas críticas, a autora apenas inverte a lógica

valorativa, mantendo a visão dicotômica e hierarquizada. Assim, enquanto para Huddleston

os argumentos do jesuíta espanhol representariam uma postura mais avançada e “moderna”

em relação ao problema da origem dos indígenas, para Martínez Terán (2001, 22) este

papel seria ocupado pelas ideias do dominicano García90

, cuja "respuesta final es bastante

más singular y, a la larga, más interesante desde el punto de vista ideológico que la

aportada por el jesuita José de Acosta”.

A pesquisadora mexicana também faz ressalvas às conclusões defendidas por

Gliozzi sobre o tema, que tentaria “dar una coherencia lógica a algo que no la tiene”91

.

Porém, assim como no caso do historiador italiano, Martínez Terán também interpreta a

questão da origem dos indígenas como um debate teórico europeu que praticamente

prescinde do contato com o Novo Mundo e com seus habitantes. Para ambos, as mudanças

de teorias e argumentos sobre a chegada dos seres humanos ao novo continente seriam

apenas reflexos da influência dos pensadores clássicos e religiosos e das mudanças

políticas, sociais ou econômicas ocorridas no cenário europeu.

Além disso, a ênfase nas implicações políticas das teorias sobre o povoamento

do continente americano, ainda que relativizada em alguns momentos da obra92

, faz com

que ela minimize outras possibilidades de interpretação. Para Martínez Terán (2001, 103),

as múltiplas teorias formuladas ao longo do tempo sobre o tema seriam fruto da

“adaptabilidad de los esquemas a las necesidades políticas inmediatas de las naciones y

del império”. Ainda que a autora seja convincente em muitas de suas análises, acreditamos

90 Assim como no caso de Huddleston em relação a Acosta, Martínez Terán (2001, 62-63) elogia o “rasgo

escéptico” do pensamento de Gregorio García em sua abordagem sobre o problema da origem dos nativos

americanos, o que reforça a aproximação entre a postura adotada pelos dois historiadores.

91 A autora também critica a interpretação feita por Gliozzi sobre a obra de García, que o coloca como alguém

cujas ideias serviam “a dos poderes en contradicción: la Corona y los colonos” (MARTÍNEZ TERÁN, 2001,

69).

92 “No se puede afirmar que cada una de las hipótesis sobre el origen del indio responda a una clara línea

política nacionalista o imperialista. Pero tampoco se pueden negar los intereses de fondo, sobre todo si

vemos, como lo verá y explicitará Gregorio García, que una de las expresiones de la corriente hebraísta

proponía que los españoles, descendientes de Sem según esta versión, estaban llamados a conquistar y a

evangelizar a América” (MARTÍNEZ TERÁN, 2001, 27).

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não ser possível limitar a questão da origem dos índios a uma série de obras elaboradas para

atender aos interesses das respectivas Coroas europeias a que os autores estariam ligados.

Novamente, retornamos à análise da obra de Acosta. Descrever suas reflexões sobre os

indígenas como uma defesa nacionalista da legitimidade espanhola sobre o Novo Mundo

elimina diversos aspectos centrais do pensamento do jesuíta espanhol sobre os povos

americanos e suas possíveis origens.

A representação do indígena a partir de suas origens

Ao final do capítulo, podemos observar que, a despeito das importantes

contribuições trazidas pelos autores analisados (em especial as obras de Huddleston,

Gliozzi e Martínez Terán), a pequena historiografia que abordou as reflexões acerca da

origem dos indígenas produzidas durante o período colonial para além da mera compilação

de hipóteses buscou, cada um a seu modo, distinguir e hierarquizar grupos relativamente

homogêneos que, de certa forma, dariam coerência às dezenas de fontes analisadas. Porém,

acreditamos que tanto a divisão entre tradições de pensamento antagônicas quanto a

identificação dos interesses das Coroas europeias, dos religiosos ou dos exploradores que

pautariam as teorias ou mesmo a existência de alguns autores que se destacariam por seu

pensamento “cético” e/ou “moderno” em meio ao turbilhão de hipóteses formuladas ao

longo do período colonial forçam semelhanças em detrimento das especificidades de cada

texto.

Ainda que com ênfases diferentes, essas interpretações abordam a origem do

homem americano como uma questão “autossuficiente” (que estabeleceriam pouca ou

nenhuma relação com outras reflexões sobre os indígenas realizadas no período) e

essencialmente europeia. Assim, as mudanças nas teorias ou os debates travados entre

vários autores sobre o tema seriam o resultado de mudanças geopolíticas ocorridas no

Velho Mundo ou fruto de disputas entre diferentes grupos sociais e/ou religiosos.

Interpretações estas, que relegam ao segundo plano o contato com o Novo Mundo e os seus

habitantes.

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Além disso, há em todos esses autores um enorme esforço, a nosso ver pouco

produtivo, em busca da hipótese “realmente” defendida em cada um dos textos analisados.

Este processo se intensifica na medida em que os relatos coloniais vão multiplicando as

possibilidades aventadas. Como já apontamos anteriormente, não nos preocupamos em

hierarquizar nem identificar teorias mais ou menos verdadeiras entre aquelas elaboradas no

período. Pelo contrário. Centraremos nossa atenção na multiplicidade de respostas, pois

acreditamos ser este um campo fértil para a análise da representação dos indígenas. Por fim,

reiteramos que nossa análise não se centrará na busca pelo “índio” dentro dos relatos

europeus escritos no período, mas sim na análise de sua representação através de suas

abordagens em relação às dúvidas sobre suas origens. Para isso, torna-se necessário

apresentarmos as principais teorias e argumentos elaborados durante o século XVI, tema

das páginas seguintes.

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Capítulo 2

Sobre as ovelhas do outro aprisco: as teorias das origens dos índios

formuladas nos relatos coloniais europeus

“Tenho outras ovelhas que não são deste aprisco;

importa que eu as traga. Elas ouvirão a minha voz, e

haverá um só rebanho e um só pastor” (Jo, 10, 16).

Os debates sobre os índios espanhóis entre a Igreja e a Coroa

Em seu Tratado único y singular del origen de los indios occidentales del Piru,

México, Santa Fe y Chile (1681), Diego Andrés Rocha descreve os pormenores de um

debate travado entre representantes da Coroa espanhola e da Igreja Católica diante do Papa

Alexandre VII no ano de 1659. De acordo com a narrativa do jurista peruano93

, o centro da

discussão era a dúvida “si los privilegios concedidos á los reinos de España acerca del

modo y forma de recitar los oficios y misas de los santos particulares de cada provincia,

concedidos desde el Santísimo Pio V y Santísimo Gregorio XIII, se habían de entender en

ellos comprendidas estas Indias Occidentales” (ROCHA, 1891, II, 101).

A exposição dos funcionários espanhóis retomava os argumentos apresentados

por Gonzalo Fernández de Oviedo y Valdés aproximadamente um século e meio antes (Cf.

93 Para informações biográficas sobre Diego Andrés Rocha, Cf. FRANCH, 2006, 33-34.

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Capítulo 1). Para eles, os habitantes do continente americano tinham sua origem atrelada

aos ancestrais dos espanhóis que durante o reinado de Hespero teriam alcançado estas terras

até então desconhecidas e se fixado em locais como as ilhas de Cuba e Hispaniola (que, na

realidade, seriam as míticas Hespérides descritas por autores gregos). Esta teoria foi

reforçada pelos representantes reais com passagens dos relatos do dominicano Thomas

Malvenda, “varón de rara doctrina, virtud y erudición”, para quem a origem espanhola dos

americanos garantiria aos indígenas o direito de “gozar de los privilegios concedidos a

Espanha”. Garantia esta, que teria sido reforçada após o “retorno” dessas terras, depois de

centenas de anos de isolamento, ao seu legítimo detentor, o soberano espanhol (ROCHA,

1891, II, 102-103).

Do outro lado da contenda, os representantes da Igreja rebateram afirmando que

as concessões feitas pelo Sumo Pontífice à Espanha não mencionavam suas posses nas

Índias Ocidentais, o que seria um claro indicativo de que elas não faziam parte destes

privilégios. Além disso, as teorias elaboradas tanto por Oviedo quanto por Malvenda seriam

“lijeras”, o que dificultaria sua utilização como base para as atuais reivindicações da Coroa

espanhola.

Rocha afirma que as restrições levantadas pelos representantes apostólicos

quanto à procedência espanhola dos índios chegaram a ser defendidas por vários autores,

incluindo ele mesmo. Porém, sua pesquisa em dezenas de relatos que abordavam o tema

teria gerado “sólidos indícios” da ligação primordial entre a América e a Espanha94

.

Segundo sua hipótese, após o dilúvio universal, os três filhos de Noé iniciaram um processo

de dispersão e povoamento de diferentes partes do mundo: “de Jafet descendió Tubal quién

pobló á España como dice el P. Moret en la Historia de Navarra, y sus descendientes la

ocuparon y poblaron, y de ellos, como estaban vecinos á la isla Atlántida, vinieron

poblando por ella y llegaron á tierra firme, que corre por la parte de Cartagena”

94 Logo nas primeiras páginas de sua obra, Rocha lista outras seis hipóteses de migração e seus respectivos

partidários e críticos: as migrações cartaginesa, fenícia, chinesa/tártara, atlante, além das possíveis ligações com a Ofir bíblica e com regiões do norte da Europa. Contudo, o autor associa várias dessas teorias à

Espanha. Dessa forma, ainda que se confirmassem, hipóteses como a cartaginesa, a fenícia e a atlante teriam

as terras espanholas como ponto de partida ou, ao menos, como local de passagem das expedições que teriam

alcançado o continente americano, o que, segundo o autor, reforçaria sua legitimidade sobre estas terras

(ROCHA, 1891, I, 18-44).

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(ROCHA, 1891, I, 46-47). Para reforçar seus argumentos, o jurista elaborou uma longa

série de comparações de costumes, objetos, crenças religiosas, rituais, topônimos entre

outras características de diferentes grupos indígenas que seriam semelhantes às praticadas

pelos antigos espanhóis, o que confirmaria não apenas a ligação entre eles95

, mas a

“predestinação divina” da Espanha para povoar diferentes regiões do mundo, incluindo a

América96

.

Retornando ao debate travado entre representantes da Igreja Católica e da

Coroa espanhola, Rocha afirma que um dos pontos mais debatidos era a questão dos

animais selvagens. A partir da afirmação de que não seria factível supor que eles tivessem

sido transportados pelos espanhóis em sua longa migração, o autor questiona como esses

seres teriam chegado a uma região isolada por grandes porções de água. Contudo, ele indica

que estas dúvidas não teriam sido interpretadas pela Santa Sé como um obstáculo

intransponível para as reivindicações espanholas, pois documentos da Igreja já teriam feito

menção a uma provável ligação entre as terras do extremo norte da América com os limites

do nordeste asiático: “así el Sumo Pontífice concedió [...] que se entendiesen con las Indias

Occidentales, sus islas y tierra continente, lo mismo que estaba concedido á España […] y

si á noticia del fiscal hubiera llegado nuestro libro, sin duda no dijera que eran leves los

fundamentos” (ROCHA, 1891, II, 105).

Ainda que afirme não ter sido determinante para o veredito papal favorável à

Coroa espanhola, Rocha dedica longas páginas de sua obra a esta questão. Para ele, a

ligação entre o continente americano e o asiático explicaria não apenas a migração de

95 Entre dezenas de outros exemplos, podemos citar passagens como: “La consonancia de esta América con

España, en orden á la abundancia de mantenimientos y metales, bien nos lo enseña la experiencia”; “[…] los

españoles fueron de fieras costumbres, nada domésticos y que usaban mantenimientos indignos y groseros,

comiendo y durmiendo en el suelo, en todo esto se hallaron tan conformes los indios, que casi no es necesario

el probarlo, porque hasta hoy retienen estas propiedades”; “La […] proposición de que el mantenimiento de

los primitivos españoles era simple, corto y grosero, se ajusta mucho á los indios”; “La […] proposición de

que los primitivos españoles sacrificaban hombres á los ídolos, fue tan propio de los indios americanos, que

están llenas las historias de los execrables sacrificios que hacían de hombres y muchachos”; “La […]

proposición de que los primitivos españoles no tuvieron uso de moneda y se valían de permutar ó trocar unas cosas por otras, esto mismo se halló en los indios” (ROCHA, 1891, I, 52-61).

96 “[…] grande ha sido la misericordia de Dios con la nación española, aún en tiempo que eran idólatras,

porque miraba en ellos que habían de llegar a ser los más puros cristianos de su Iglesia, y así, en varios

tiempos, los ha hecho pobladores de grandes provincias del mundo como Toscana, Irlanda, Galia

Narbonense, Roma, (antes de la fundación de Rómulo), Sicilia” (ROCHA, 1891, I, 136).

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animais selvagens mas também permitiria o acesso de outros grupos humanos além dos

espanhóis ao Novo Mundo. A partir desta premissa, o jurista peruano passa a enumerar

indícios que poderiam indicar quais seriam estes outros povos que teriam alcançado a

América. Uma das hipóteses levantadas por ele é a da migração dos gigantes bíblicos

mencionados no Gênesis para as terras do México. Nesta região, estes seres teriam tido

contato com um segundo e mais importante grupo de imigrantes, os descendentes das dez

tribos perdidas de Israel97

. A conexão com os hebreus através de uma possível ligação por

terra com o extremo nordeste asiático tornaria compreensível a existência de certas

características identificadas pelo autor entre determinados grupos americanos. Entre elas, a

utilização de um “hebraico corrompido” por parte dos habitantes da região da Jamaica e a

alusão presente em narrativas indígenas sobre seu passado a eventos que corresponderiam

ao êxodo hebreu (ROCHA, 1891, I, 199-218).

A indicação de uma origem múltipla, entretanto, não retiraria a primazia dos

espanhóis e a consequente legitimidade de sua Coroa sobre essas terras. Rocha estabelece

uma divisão clara entre os habitantes do Novo Mundo a partir de suas origens: enquanto os

pioneiros espanhóis teriam sido responsáveis por povoar boa parte da região meridional do

continente (em especial o Peru), os hebreus, muitos anos depois98

, teriam se estabelecido na

parte setentrional, sendo os toltecas seus descendentes mais próximos.

Esta divisão estava diretamente atrelada a uma visão hierarquizadora tanto dos

indígenas quanto dos seus possíveis ancestrais. Os precursores espanhóis não apenas teriam

uma origem mais “nobre” dentro da tradição cristã (por estarem mais próximos dos

97 “[…] mientras las diez tribus y sus hijos los tultecas iban cultivando la tierra y abriendo los caminos,

pudieron venir los gigantes, que los hay en Islandia, que es la Noruega, la cual se comunica con la provincia

Quivira y reino de Anian, principio de la América, según tengo probado en los antecedentes, y que haya en la

Noruega ó Islandia gigantes, se podía ver en Marco Adamo” (ROCHA, 1891, II, 129-130).

98 Ainda que enfatize seguidas vezes em sua obra que os hebreus teriam chegado à América muitos anos

depois dos espanhóis, Rocha ressalta que esta migração teria ocorrido antes de Cristo, o que, segundo o autor,

os isentaria de “culpa” em relação à crucificação: “Engañase los que piensan que solo por descender mucha

parte de estos americanos de las tribus, por este origen contraen infamia […] porque aunque es verdad que están justamente notados los judíos que concurrieron y aprobaron la muerte de nuestro Redentor y Señor

Jesucristo […] estos son los infames, pues crucificaron á su Dios y Salvador. Pero los que no concurrieron

en esta infamia, como fueron estos americanos, y las diez tribus que más de mil años antes del nacimiento de

Nuestro Redentor habían venido á esta América por el destierro de Salmanasar, estos no contraen alguna

infamia” (ROCHA, 1891, II, 36-38).

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descendentes diretos de Noé99

), mas também dentro da tradição clássica, uma vez que seu

passado estaria relacionado à ilha de Atlântida. Por outro lado, os descendentes das tribos

perdidas de Israel seriam associados a povos “bárbaros” e “inferiores” (tártaros, medos e

assírios), o que seria responsável por características como a incredulidade, a ingratidão e a

inclinação à idolatria presentes tanto entre os indígenas quanto entre os judeus de sua época

(ROCHA, 1891, I, 220-221; II, 7-9)100

.

***

Os argumentos expostos pelos funcionários da Coroa espanhola e da Igreja

Católica, as teorias defendidas por Diego Andrés Rocha sobre as origens dos indígenas e,

mais amplamente, as implicações que esta questão tinha em relação às representações dos

grupos nativos e a repeito da legitimidade da posse espanhola sobre as terras recém-

descobertas e seus habitantes, descritas nas páginas anteriores, apresentam parte

significativa dos elementos que irão pautar os conteúdos deste e do próximo capítulo da

tese.

Em primeiro lugar, os argumentos e fontes utilizados pelos integrantes de

ambos os lados do debate travado diante do Sumo Pontífice e a própria publicação do relato

de Rocha, dedicado integralmente ao tema da origem dos povos americanos, demonstram a

permanência desta questão. Mesmo quase dois séculos depois dos primeiros contatos

estabelecidos pelas embarcações comandadas por Colombo101

, a origem dos índios

99 O autor defende que o quíchua seria a língua mais próxima do idioma original utilizado por Tubal, neto de

Noé (ROCHA, 1891, I, 76-77).

100 Não podemos associar as relações estabelecidas por Rocha e outros de seus contemporâneos entre povos e

determinadas características morais e/ou comportamentais a um discurso “racista” tal como ele viria a ser

estruturado a partir do século XIX (Cf. Capítulos 4 e 5). No entanto, algumas teorias formuladas neste período

foram utilizadas posteriormente por escritores que buscavam embasar historicamente suas descrições e

hierarquizações entre “raças”. As referências à obra de Isaac de la Peyrère são exemplares a este respeito. De

acordo com o filósofo Richard Popkin (1987, 146-164), autores como Alexander Winchell, no final do século

XIX, remetiam sua defesa da inferioridade dos negros (que não seriam descendentes de Adão, mas sim de uma raça próxima a dos chimpanzés) às teorias poligenistas formuladas no período colonial por este teólogo

francês.

101 Consideramos importante salientar que a busca pelas origens não se restringia neste período aos habitantes

do continente americano. Como apontado por autores como Benjamin Braude (1997, 127), entre os séculos

XVI e XVII foram produzidas teorias que buscavam determinar os ancestrais de povos de outras regiões,

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continua sendo interpretada como algo relevante e digno de ser analisado cuidadosamente

por gerar implicações na forma de se relacionar com os nativos americanos.

A disputa judicial narrada acima por Rocha demonstra também as principais

fontes utilizadas no período para embasar as diferentes teorias sobre a origem dos

indígenas. Como pretendemos reforçar adiante, grande parte dos autores que abordaram

esta temática remetia o cerne de suas reflexões a passagens bíblicas e a escritos da tradição

clássica greco-romana. No caso do jurista peruano, estas características são evidentes. Seja

em relação aos índios espanhóis, aos gigantes bíblicos ou às dez tribos perdidas de Israel, o

centro de sua argumentação sempre gira em torno de passagens das Sagradas Escrituras que

comprovariam ou prefigurariam estas hipóteses. Ao mesmo tempo, Rocha também recorre

– ainda que de forma indireta, em alguns momentos – a conceitos e interpretações

fornecidos por autores como Aristóteles (as indicações de um possível contato de

embarcações cartaginesas com terras distantes, por exemplo) e, principalmente, Platão e

seus relatos sobre a ilha de Atlântida, seus moradores e costumes.

Outro elemento central presente na obra de Rocha e que se repete em dezenas

de outros livros deste período que abordaram as possíveis procedências dos americanos é a

análise dos argumentos e hipóteses formulados anteriormente por outros autores sobre o

passado indígena. Em seu Tratado único y singular, Rocha realiza um levantamento das

teorias apresentadas por dezenas de viajantes, religiosos, funcionários reais e teóricos de

gabinete de diferentes locais e épocas, apresentando indícios que, para ele, corroborariam

ou negariam seus conteúdos.

O retorno à produção anterior sobre o tema efetuado por muitos autores

coloniais nos permite identificar a existência de alguns escritos e teorias que tiveram um

papel essencial dentro das abordagens realizadas no período sobre problema da origem dos

indígenas. Em especial, podemos identificar três autores centrais: Oviedo, Acosta e García.

Não por acaso, as proposições apresentadas por estes autores são fundamentais para a

argumentação de Rocha. Enquanto Gregorio García é constantemente citado como base

para as descrições sobre os costumes de grupos indígenas específicos e outras possíveis

como os africanos subsaarianos e os turcos, ainda que as reflexões sobre os indígenas fossem muito mais

numerosas.

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hipóteses sobre as origens dos americanos (bem como os argumentos de seus diversos

defensores e detratores), os outros dois são essenciais – cada um a seu modo – para a defesa

feita pelo cronista peruano da legitimidade da posse espanhola sobre as terras americanas e

seus habitantes102

.

É a partir destas características e informações que pretendemos abordar os

relatos que produziram teorias e reflexões sobre a procedência do homem americano. Esta

decisão, contudo, traz consigo uma série de escolhas e, consequentemente, de exclusões

que precisam ser explicitadas.

A primeira delas refere-se ao conjunto de obras analisadas. Seguindo as

ressalvas feitas pelo pensador francês Michel de Certeau a respeito da elaboração de uma

“coleção” de documentos apresentadas na introdução da tese, decidimos centrar o foco de

nossa análise nos relatos produzidos a partir do contato dos europeus com as terras do Novo

Mundo. Esta decisão fez com que obras de diferentes tipos (narrativas de viagem, textos

religiosos, crônicas oficiais, compêndios de relatos anteriores) e procedências (relatos

produzidos por navegadores europeus, missionários, pesquisadores de gabinete, criollos)

fossem agrupadas a partir de um elemento comum presente em todas elas: a reflexão acerca

da questão da procedência dos indígenas.

Além disso, optamos por incluir escritos que não foram publicados no período,

como os relatos de Pedro Sarmiento de Gamboa e Francisco Hernández, não apenas por,

assim como apontado por Fernando Bouza (2001), termos consciência da ampla difusão e

influência que os manuscritos continuaram tendo mesmo após o advento da imprensa, mas

também por se tratarem de interpretações sobre o tema que, ainda que indiretamente,

dialogavam com outras obras e teorias. A esse respeito, seguimos a afirmação feita por

Paolo Rossi (1992, 12) em seu livro sobre a obra de Vico e o início da representação

moderna da Terra e do ser humano nos séculos XVII e XVIII: “trata-se não de estabelecer

relações inexistentes mas de documentar eventuais identidades ou semelhanças de

102 Como indicamos nas páginas anteriores, a hipótese que relaciona a Espanha e um de seus míticos soberanos (Hespero) à ilha de Atlântida e às terras do Novo Mundo tem na obra de Oviedo sua principal

fonte. Já as reflexões de Acosta são centrais em vários momentos da obra de Rocha, especialmente nos

trechos em que o cronista peruano aborda a provável ligação por terra com o extremo leste asiático, as

possíveis relações com povos deste continente e a migração de animais selvagens através desta estreita faixa

de terra.

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problemas e de soluções”. Isto não significa que não haja diferenças significativas entre

estas narrativas em relação às temáticas abordadas e à própria forma de escrita e público

leitor a que se dirigiam. Entretanto, acreditamos ser possível agrupar o conjunto de relatos

coloniais selecionados para a presente análise a conceitos unificadores como o de

“crônica”103

ou o de “família textual” proposto por Walter Mignolo104

.

A segunda escolha a ser tomada girou em torno dos limites temporais de nossa

pesquisa. Como apontamos no capítulo anterior, autores como Horácio Capel e Teresa

Martínez Terán restringiram suas análises aos limites do século XVI (em outros casos,

como o de Giuliano Gliozzi, a decisão foi estender a obra até o final do século seguinte),

recorte que acreditamos restringir as interpretações a partir de uma estrita amarra temporal

que se mostra contraproducente. Assim, centraremos nossa análise nas décadas finais do

século XVI e as primeiras do século XVII, ainda que em determinados momentos sejam

feitas menções a obras e autores anteriores e posteriores a este período.

Isto faz com que a obra de Diego Andrés Rocha seja exemplo da longa

permanência desta questão como algo relevante dentro das representações sobre os

indígenas e também de um momento de inflexão. Após várias décadas com uma prolífica

produção sobre o tema, o Tratado único y singular do jurista peruano indica o início de um

período em que as reflexões sobre a origem dos americanos diminuem significativamente,

ainda que sejam retomadas de tempos em tempos (como na republicação do relato de

Gregorio García e na obra do beneditino espanhol Benito Geronymo Feijóo y Montenegro),

103 Para uma análise do conceito de crônica durante o período colonial Cf. FERNANDES e REIS, 2006;

FERNANDES e KALIL, 2012. José Carlos González Boixo também aborda este conceito. Para ele, ainda que

em sua pureza terminológica a crônica defina uma forma de escrita histórica do período medieval, ela também

poderia ser utilizada para denominar um conjunto de textos “preferentemente históricos” produzidos sobre o

Novo Mundo: “Si en pureza terminológica el título de ‘cronistas’ les correponde a estos autores en razón de

su cargo oficial, la generalización de su uso al resto de historiadores de Indias se observa ya desde las

primeras obras del siglo XVI. Vaciado semánticamente de su significado medieval, la ‘crónica de Indias’

equivale a ‘historia’ o ‘relación’. Así, es fácil observar ya desde los primeros cronistas la utilización

indistinta de estos términos al referirse a sus obras [...] las crónicas son obras de historia que quedan

fácilmente delimitadas por un espacio, los territorios bajo administración española en América – podemos

denominarlos ‘Indias’ –, y por un tiempo, el transcurrido mientras dura la situación señalada antes, es decir, los siglos XVI, XVII y XVIII” (BOIXO, 1999, 227-229).

104 “[…] el corpus textual en consideración constituye una unidad en la medida en que todos los textos tienen

en común tanto el referente como ciertas fronteras cronológico-ideológicas. Pero, por otro lado, por

pertenecer a tipos y a formaciones distintas, tal unidad puede mejor designarse como una familia textual en

la que encontraremos, como en toda familia diversidad de formas y de funciones” (MIGNOLO, 1998, 58).

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até receber novo e vigoroso impulso a partir do final do século XVIII (Cf. Capítulo 4). A

falta de interesse sobre o tema é identificada, inclusive, por autores do período, como o

geógrafo suíço Samuel Engel, que em seu Essai sur cette question: quand et comment

l’Amérique a-t-elle été peuplée d’hommes et d’animaux? (1767), afirma que este tema

havia sido intensamente debatido por filósofos, viajantes, teólogos e historiadores durante

muitas décadas, contudo: “Il paroît même qu’aujourd’hui on a entiérement abandonné ce

sujet, comme une énigme inexplicable” (ENGEL, 1767, 1-2).

A terceira escolha a ser tomada está relacionada à maneira como abordaremos

as fontes selecionadas. A este respeito, acompanhamos as críticas feitas por Joan-Pau

Rubiés (2000, 82) ao que ele denomina como formas simplistas e pouco úteis de

interpretação destes relatos: “First, it cannot be assumed that observers could

spontaneously describe what was there to be seen, as if only irrational prejudice prevented

travelers from perceiving reality […] Equally wrong is to assume that travelers created a

rhetoric merely as an extension of their political interests. There is much more to European

accounts of non-Europeans than a justification of Empire. Finally, it is equally misleading

to understand European perceptions as the simple imposition of European cultural

prejudices on non-European realities”. Seguindo estas ressalvas, nos aproximamos da

análise feita por François Hartog (1999) sobre as formas de tradução do “outro” a partir do

relato de Heródoto.

A impossibilidade de realizarmos um grande compêndio que analisasse

separadamente cada uma das teorias sobre a origem dos índios formuladas no período

analisado, bem como os argumentos de seus defensores e detratores (algo já realizado

durante o período colonial por alguns autores e por parte da bibliografia analisada

anteriormente), nos levou à decisão de selecionarmos três hipóteses específicas que

alcançaram grande repercussão entre os autores que se dedicaram ao tema durante estes

anos. Ainda que sejam feitas menções a outras hipóteses ao longo deste e do próximo

capítulo, centraremos nossa análise nas teorias que indicavam uma migração de judeus (em

especial, os pertencentes às dez tribos perdidas de Israel), atlantes (ou de povos que teriam

utilizado esta ilha como “ponte” para as terras do novo continente) ou de grupos asiáticos

para o Novo Mundo.

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As formas e as fontes utilizadas pelos autores para embasarem suas reflexões

sobre esta questão, contudo, tornam necessária a inclusão de dois itens que abordam mais

detidamente as relações estabelecidas pelos escritores do período com as Sagradas

Escrituras e a tradição clássica. Como pretendemos deixar claro nas páginas seguintes,

elementos de ambas as tradições estão profundamente imbricados dentro das reflexões e

teorias propostas sobre a origem e a natureza dos indígenas feitas por grande parte dos

autores analisados.

Por fim, é importante salientarmos que a decisão de analisarmos três teorias

específicas sobre a migração dos seres humanos até o Novo Mundo não implica a visão de

que a opção por uma delas por parte dos cronistas excluía todas as outras. Pelo contrário.

Acreditamos que a adoção de múltiplas respostas por uma parte crescente dos autores ao

longo dos séculos XVI e XVII indica não apenas o desenvolvimento da percepção de que

havia profundas diferenças entre as centenas de grupo indígenas que habitavam o

continente, mas também que essas diferenças passam a ser representadas pelos autores

através de hipóteses específicas para diferentes grupos indígenas a partir de uma visão

hierarquizadora dos grupos americanos e, consequentemente, de seus ancestrais no Velho

Mundo.

A construção de um problema

Dentro da pequena produção historiográfica que analisa a origem dos indígenas

há um extenso debate sobre quando esta questão teria começado a ser abordada pelos

cronistas coloniais. Como apontado por José Alcina Franch (1992, 19-20), para vários

autores a resposta poderia ser encontrada já nos primeiros escritos sobre o Novo Mundo e

seus habitantes: “El primero que se planteó el problema del poblamiento americano fue

don Cristobal Colón”. Partindo deste princípio, trechos dos diários do Almirante onde os

índios eram descritos como tendo a mesma cor de pele que a dos nativos das ilhas Canárias

ou passagens do seu Libro de las Profecias em que as localidades bíblicas de Társis e Ofir

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eram identificadas a regiões das Índias passaram a ser interpretadas como o início deste

debate105

.

Seguindo esta lógica, outros autores também foram citados como pioneiros na

abordagem deste tema nas décadas iniciais do século XVI. Entre eles, podemos citar o

suíço Paracelso106

e o humanista espanhol Alejo Vanegas del Busto, para quem o Novo

Mundo teria sido povoado por embarcações fenícias e cartaginesas cujas viagens teriam

sido descritas por Aristóteles107

. Segundo Vanegas del Busto, ainda que a questão da

origem dos índios permanecesse aberta à contribuição de outros autores, a hipótese

apresentada em sua obra poderia ser comprovada através da existência de grandes

semelhanças entre o sistema de escrita utilizado pelos cartagineses no passado com os de

determinados grupos indígenas do período108

.

No entanto, o principal autor das décadas iniciais do século XVI a ser apontado

como precursor das reflexões sobre a origem dos indígenas foi o já citado Oviedo, cuja

105 Postura criticada por Huddleston (1967, 5), para quem as obras de Colombo e também de Vespúcio (que

faz comparações entre os americanos e os tártaros) não abordavam diretamente a questão da origem dos

indígenas.

106 Paracelso, pseudônimo de Theophrast Bombast von Hohenheim, negava em seus escritos que todos os

homens descendiam de Adão e defendia o conceito de geração espontânea da vida. De acordo com este autor,

seres vivos como os índios, pigmeus e ninfas pertenceriam a uma classe diferente de criaturas “y nadie podría

fácilmente demostrar que están emparentados con nosostros en la carne y en la sangre” (apud MARTÍNEZ

TERÁN, 2001, 76). Estes seres teriam sido criados após o dilúvio não por ação divina, mas sim pela

influência dos astros sobre a matéria em putrefação. Outra hipótese aventada pelo autor é a de que os

americanos descendiam de outro Adão, que teria vivido fora do Paraíso Terrestre. Ao analisar as teorias de

Paracelso e o papel exercido pelos indígenas dentro delas, Richard Popkin (1976, 50-69) ressalta que: “It is

obvious in reading Paracelsu’s discussions, he was not really concerned with the American Indian problem, but rather with developing his own cosmology and theology, and incorporating the Indians into it”.

107 “Destas […] autoridades de Aristóteles es manifiesto, que las yslas que descubrio don Christobal Colon y

Vespucio Americo ya auían sido halladas mas ha de dos mil años. Por lo qual no sera juysio sin fundamento

dezir que de los moradores de estas yslas se poblarón las provincias de tierra firme. Pues es verdad que

todos los hombres descenden de Adam” (VANEGAS DEL BUSTO, 1572, 246-247). Atualmente, a atribuição

deste texto a Aristóteles é altamente questionada por diversos autores. Ente eles, podemos citar Germaine

Aujac (2005, 177), que aponta Teofrasto como o possível autor: “On pense aujourd’hui que le rédacteur de ce

petit traité serait un péripatéticien fortement influencé par le stoïcisme, peut-être un disciple proche ou

lointain de Poseidonios”.

108 “Una dificultad se ofrece, y es que como los Phenices inventaron las letras: paresce que los Indios como

descendientes dellos auian de tener algún uso o vestigio ó rastro de letras en planchas o en piedras […] [entretanto] las letras de que los Indios auian de usar auia de ser letras de Carthaginenses; de los quales yo

pienso que las tomaron, no de las que usan aora los Africanos, sino las que entõces usauan los Carthagineses

q eran las letras reales de cosas pintadas: como eran las pinturas en que leyó Eneas y a destruycion de Troya

en el templo de Carthago, como tenemos aca historias pintadas en retablos, paños y fargas; y destas letras

usan oy dia los Indios“ (VANEGAS DEL BUSTO, 1572, 249).

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teoria da ligação entre índios, espanhóis e a ilha de Atlântida gerou uma série de refutações

por parte de autores como Antonio Galvão109

, Bartolomé de Las Casas110

e, principalmente,

Fernando Colombo, que disputou juridicamente com a Coroa espanhola durante décadas

pela manutenção dos benefícios acordados por seu pai antes de suas viagens marítimas.

Para o filho de Colombo, a teoria do cronista de Índias buscava “disminuir el honor y la

gloria del Almirante”, o que o teria levado a analisar estes argumentos fantasiosos a partir

de interesses pessoais, má fé e erros de tradução e de lógica111

.

Giuliano Gliozzi (2000, 23) identifica nos Pleitos de Colón uma das primeiras

formulações sobre a questão da origem dos índios, visão também compartilhada por Lee

Eldridge Huddleston. Para este historiador, mesmo antes dos escritos de Oviedo, as dúvidas

sobre o povoamento da América já haviam sido analisadas por autores como Pedro Martir

de Anglería, que em suas Décadas del Nuevo Mundo faz ligações entre as terras recém-

encontradas e passagens bíblicas referentes à ilha de Ofir. Contudo, segundo o autor, esta

questão só passaria a ganhar contornos mais claros a partir de meados do século XVI, já

que até este período as discussões girariam não em torno da origem mas sim da natureza do

indígena112

.

109 Em seus Tratados dos descobrimentos antigos e modernos feitos até a era de 1550 (1555) o português

Antonio Galvão combate os argumentos de Oviedo que relacionavam as terras do Novo Mundo e seus

habitantes à Coroa espanhola. Para Galvão, as técnicas de navegação no passado não permitiriam viagens a

regiões tão distantes (as Hespérides seriam, na realidade, as ilhas portuguesas de São Tomé e Príncipe). Além

disso, Galvão defende que mesmo antes da chegada de Colombo já havia portugueses na América, o que lhes daria a legítima posse sobre estas terras (GLIOZZI, 2000, 23-28).

110 Ainda que não aborde diretamente a questão da origem dos índios em suas obras, Las Casas utiliza várias

páginas de sua Historia de las Indias (c. 1561) para refutar os argumentos de Oviedo. Segundo o dominicano

espanhol, para quem as Hespérides seriam as ilhas do Cabo Verde, haveria muitas evidências contrárias à

ligação das Índias com a Espanha durante o reinado de Hespero, como a inexistência de escritos

contemporâneos que descrevessem estas terras, a falta de tecnologia, tempo e interesse para organizar esta

expedição, além do fato do reinado deste soberano ter sido curto e marcado por guerras e invasões, o que

impediria o envio de homens para terras distantes (LAS CASAS, 1992, 73-81).

111 “Porque si los cartagineses, como él dice, arribaron a Cuba o a la Española, y encontraron que aquella

tierra no estaba poblada más que de animales, ¿cómo será verdad que los españoles la poseyeron mucho

tiempo antes, y que su rey Hespero le había dado el nombre? Salvo si por ventura no dice que algún diluvio la dejó desierta, y que después otro Noé la volvió al estado en que fue descubierta por el Almirante. Pero

porque ya estoy cansado de tal disputa, y me parece que están hastiados los lectores, no quiero extenderme

más sobre esto, sino seguir mi historia” (COLÓN, 2000, 77-83).

112 “The most vital questions concerning the Indians did not deal with their origins or how they got to the New

World. The questions focused on whether they should be converted peacefully or forcibly; whether they were

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Assim como apontado por Teresa Martínez Terán (2001, 61), discordamos das

afirmações de Huddleston que identificam uma cisão entre as análises sobre a origem dos

índios e as reflexões sobre a sua natureza e as formas como eles deveriam se relacionar com

a religião católica e os europeus. Mais do que isso, acreditamos que a própria busca pelo

momento e local de “nascimento” desta questão traz uma série de problemas e limitações à

análise do tema. Esta visão parte do princípio de que haveria uma pergunta (“Qual é a

origem dos índios?”) que surgiria em algum momento no início dos contatos dos europeus

com a América (seja já com Colombo ou em meados do século XVI) e que permaneceria

inalterada por décadas ou mesmo por séculos. Em outras palavras, esta interpretação – da

qual discordamos – parte do princípio de que ainda que as respostas variassem

profundamente até mesmo dentro de uma mesma obra, o sentido da questão permaneceu o

mesmo.

Em relação às dúvidas sobre a natureza dos indígenas, a bula papal Sublimis

Deus ocupa um lugar central. Publicada por Paulo III no ano de 1537, seu conteúdo é

enfático a respeito da humanidade dos habitantes do novo continente e, consequentemente,

de sua plena capacidade de conversão ao cristianismo:

“[...] é forçoso admitir que faz parte da condição e natureza humana

poder receber a fé em Cristo, e que todo aquele que compartilha a natureza de

homem haverá de ser apto a receber a mesma [fé] [...] O adversário do gênero

humano, que tudo faz para arruinar os bons conhecendo e invejando [essa graça],

imaginou um modo espantoso de impedir a pregação da palavra de Deus para

salvação dos povos. Incitou alguns sequazes seus que, desejosos de satisfazer a

própria cobiça, atrevem-se a afirmar por aí que os índios ocidentais e meridionais

(e outros povos cuja notícia presentemente chegou ao Meu conhecimento), sob

pretexto de que são incapazes de [receber] a fé católica, devem ser assujeitados,

como animais brutos, à nossa serventia, e os reduzem à servidão, infligindo-lhes

maus tratos que não fazem nem aos demais brutos que os servem. Nós, portanto,

que, embora sem merecimento, fazemos na terra as vezes do próprio Senhor

Nosso, procurando com todo o empenho conduzir ao mesmo aprisco as ovelhas

rational beings possessed of the rights of Europeans; whether they should be enslaved, or, if already slave,

liberated” (HUDDLESTON, 1967, 6-21).

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do seu rebanho a Nós confiadas, que se acham fora do redil113; e querendo trazer

o remédio adequado para essa situação, Nós, com autoridade apostólica, pela

presente Carta decretamos e declaramos: Os ditos índios e todos os demais povos

que no futuro vierem ao conhecimento dos cristãos, embora vivam fora da fé de

Cristo, não são nem deverão ser privados de liberdade e de propriedade de bens.

Pelo contrário, podem livre e licitamente usar, possuir, e gozar de tal liberdade e

propriedade, e não poderão ser reduzidos à escravidão; e tudo que se vier a fazer

de modo diferente há de considerar-se nulo, vão, de nenhum valor ou

importância; e que os ditos índios e os outros povos deverão ser atraídos à fé de

Cristo pela pregação da palavra de Deus e pelo exemplo de uma vida correta”

(SUESS, 1992, 273-274) 114.

A historiografia produziu uma série de estudos sobre os debates espanhóis

acerca da humanidade dos indígenas nas primeiras décadas do século XVI115

e os impactos

– ou não – que esta bula papal teve sobre o processo de cristianização116

e a atuação da

Coroa espanhola no Novo Mundo. Porém, independentemente das posições adotadas, há a

percepção de que, rapidamente, a questão da humanidade dos americanos foi substituída

113 É importante salientarmos que a referência no Evangelho de João às “ovelhas de outro aprisco” (que

deveriam ser convertidas) não está associada a uma questão geográfica (como ocorre na reapropriação desta

passagem na Bula papal citada acima), mas sim à defesa da pregação da fé cristã para além dos integrantes do

povo judeu.

114 Para uma breve análise das relações entre este documento e outra bula papal de mesma data (Veritas Ipsa)

e sobre sua “divulgação precária” nas colônias americanas de Portugal e Espanha, Cf. SUESS, 1992, 275;

498.

115 De acordo com Lewis Hanke (1985, 23; 50), esta bula papal foi determinante para as argumentações feitas

por autores como Las Casas nas discussões a respeito da natureza dos indígenas, uma vez que, segundo este

historiador, no início do século XVI havia dúvidas por parte de alguns espanhóis sobre a humanidade dos

indígenas e a capacidade de se converterem ao cristianismo: “It would be impossible to discover how many

conquistadores really believed the Indians to be animals. But there is no doubt that some did hold this view”

(HANKE, 1937, 71). Afirmação rebatida pelo franciscano espanhol Lino Gómez Canedo (1967, 50-51): “[…]

me inclino a sospechar que la controversia sobre la irracionalidad o bestialidad de los indios americanos es

una desorbitación histórica nacida inicialmente de las exageraciones de Las Casas […] Es muy creíble que

en el curso de estas controversias algunos hayan calificado a los indios no sólo de incapaces y bárbaros sino

de bestiales o bestias; pero no existe testimonio alguno seguro de que alguien responsable entendiese tales

expresiones en su sentido antropológico, es decir, en el de que los indios no eran hombres sino bestias”.

116 “Since the question of the Indians' potential to become Roman Catholics had been established by

Pontifical decree, and by several Church councils, the domain of ecclesiastical discourse shifted. After the

middle of the sixteenth century, it was no longer usual to explain indigenous resistance to conversion as

because they were 'animals without reason' or 'more stupid than asses', but because they consumed excessive

amounts of alcohol” (SEED, 1993, 647).

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pela busca por determinar que “gênero de gente” era aquele. Como apontado por João

Adolfo Hansen (1998, 361-362), autores contemporâneos como Anchieta, Nóbrega,

Vitoria, Las Casas e Sepúlveda admitiam que o selvagem fosse “gente”, entretanto, não

havia consenso sobre a qualidade dessa gente.

É evidente que a mudança da pergunta sobre “o que” para “quem” eram os

índios influenciou decisivamente as representações sobre eles e o desenvolvimento das

reflexões sobre a sua procedência, o que reforça nossa crença na impossibilidade de se

identificar uma origem da busca pela origem dos índios. Não acreditamos que esta questão

se apresente “completa” nos relatos de Colombo nem na década de 1550 ou em qualquer

outro marco que venha a ser selecionado, já que a imagem que se tinha sobre os indígenas

se alterou profundamente ao longo deste período, o que, em parte, deriva mas também se

reflete nas “respostas” formuladas para esta questão por seus contemporâneos. Não

acreditamos ser possível identificar uma trajetória linear para as abordagens sobre a origem

dos índios a partir de qualquer ponto de partida que se decida adotar, por esta questão ser

indissociável do contato com os nativos e com as representações produzidas sobre o Novo

Mundo e seus habitantes ao longo do tempo.

Assim, podemos concluir que não apenas as hipóteses produzidas na tentativa

de se solucionar o problema da procedência dos indígenas se alteraram com o passar do

tempo, mas também a própria pergunta e, em especial, os significados que ela trazia

consigo em relação às representações produzidas sobre os indígenas em diferentes épocas.

Em resumo, acreditamos que a questão da origem dos indígenas se desenvolve juntamente

com o prolongamento do contato entre europeus e indígenas. Ainda que muitos elementos

possam remeter a um período anterior a chegada dos europeus a estas terras (Cf.

O’GORMAN, 1992; BORJA GÓMEZ, 2002), este debate sobre a origem dos americanos

influencia e também é fruto de um processo constante de reconstruções da representação do

Novo Mundo e, mais especificamente, dos indígenas, que não prescinde da experiência

americana.

As premissas religiosas

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Como apontado por João Adolfo Hansen (1998, 348), as discussões

quinhentistas sobre os indígenas não foram antropológicas, mas teológicas. A partir desta

afirmação, podemos observar que nos relatos analisados nesta primeira parte da tese, as

Sagradas Escrituras foram, ao mesmo tempo, um ponto de partida e de chegada para as

reflexões acerca da procedência do homem americano. Ainda que alguns autores afirmem

não ter encontrado alusões ao Novo Mundo nos relatos bíblicos117

, episódios como o

dilúvio universal, a descendência de Noé e sua dispersão após a queda da Torre de Babel

foram fundamentais para o desenvolvimento de diferentes hipóteses sobre este tema. Mais

do que isso, as interpretações sobre estas passagens também foram fundamentais para as

refutações a outras teorias.

As implicações trazidas pelo conceito de monogenia atrelada ao casal original

são representativas da forma como os autores deste período se relacionavam com os

elementos da tradição cristã. As passagens do livro de Gênesis que descreviam a criação do

homem, sua expulsão do Paraíso e a genealogia até o dilúvio universal foram interpretadas

por praticamente todos os autores analisados como indicadores inequívocos de que os

indígenas seriam “filhos de Adão”118

. Com a destruição causada pelo dilúvio surge uma

nova contingência: como a linhagem de Noé teria sido a única sobrevivente, todos os

grupos humanos a partir de então descenderiam, necessariamente, de um de seus filhos

(Gên, 7, 23-24).

Como pudemos observar anteriormente, teorias que defendiam uma origem

múltipla dos seres humanos ou que excluíam determinados grupos da linhagem adâmica

foram extremamente raras e pouco influentes ao longo do século XVI (sendo Paracelso um

raro exemplo), ganhando corpo apenas na centúria seguinte, ainda que continuassem a ser

duramente combatidas pela Igreja Católica. Porém, mesmo no caso de autores como Isaac

117 Diego Andrés Rocha (1891, I, 18) é uma exceção a esse respeito, ao afirmar que: “no parece hay lugar en

las Escrituras, que nos enseñe este origen de los indios, ni de qué hijo de Noé desciendan, ni de qué parte viniesen; y si hay lugar en las divinas letras, estará en los Profetas, y muy escondido, y será menester la

gracia de Nuestro Señor Jesucristo que descubre todo lo que está oculto desde la constitución y origen del

mundo, como se dice en el Evangelio”.

118 Expressão presente em diferentes livros bíblicos (a depender da tradução utilizada). As referências mais

recorrentes são as passagens de Deuteronômio (32,8) e Eclesiástico (40,1).

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de la Peyrère (que defendia a existência de povos pré-adamitas), a força das premissas

bíblicas para as reflexões sobre o tema permaneceram intocadas, uma vez que seus

argumentos foram pautados pela exegese – ainda que considerada extremamente

heterodoxa por boa parte de seus contemporâneos – de trechos da epístola de Paulo aos

romanos.

i) a linhagem de Noé

A passagem que descreve o desenvolvimento da prole de Noé após o dilúvio

universal foi um dos principais excertos das Sagradas Escrituras analisados pelos autores

europeus que abordaram o tema da origem dos habitantes do Novo Mundo. Em muitos dos

casos, este evento bíblico foi utilizado como fonte de informações ou indícios que poderiam

estar relacionados ao continente americano e aos povos que nele habitavam. Isto fez com

que os três filhos deste patriarca (Sem, Cam e Jafé), bem como integrantes de várias das

gerações seguintes, passassem a ser apontados como possíveis ancestrais dos grupos

indígenas119

.

Um dos pioneiros na associação entre os americanos e a descendência de Noé

foi o padre Toríbio de Benavente, conhecido como Motolinía120

. Em uma breve passagem

de sua epístola proemial (1541), o missionário franciscano que atuou na Nova Espanha

durante a primeira metade do século XVI descreve a hipotética viagem feita por

embarcações cartaginesas rumo a distantes terras ocidentais e reconhece que elas poderiam

ter alcançado partes da América, como Cuba ou a ilha Hispaniola. Entretanto, “una tan

gran tierra, y tan poblada por todas partes, más parece traer origen de otras extrañas

partes; y aún en algunos indicios parece ser del repartimiento y división de los nietos de

119 É importante observarmos que a identificação de um grupo de pessoas com eventos ou personagens

bíblicos e as interpretações decorrentes desta associação para, por exemplo, determinar características dos

integrantes deste grupo ou as formas de contato que deveriam ser estabelecidas com eles não surge com as

reflexões sobre os indígenas. A utilização da Bíblia como base para interpretações históricas já estava

presente entre os europeus séculos antes do contato com o Novo Mundo. Na Península Ibérica, por exemplo, a

argumentação em torno da Guerra de Reconquista é permeada por leituras que relacionavam os muçulmanos a Ismael (filho de Abraão com sua serva egípcia Agar que teria dado origem às doze tribos ismaelistas,

ancestrais dos árabes), o que determinaria alguns de seus comportamentos e as formas com que se

relacionariam com os cristãos.

120 Para informações biográficas e uma análise de sua Historia de los indios de la Nueva España, Cf. REIS,

2012.

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Noé”. Após relacionar os índios à descendência de Noé, Motolinía (2001, 66) afirma que

alguns espanhóis, devido às comparações entre ritos, costumes e cerimônias, chegaram a

associar os americanos aos mouros e judeus, “mas la más común opinión es que todos ellos

son gentiles”.

Durante a segunda metade do século XVI e boa parte do século XVII, outros

autores também apontaram esta possível relação, como o escritor francês Guillaume Postel

(1561) e o já citado Hugo Grotius (1642). Segundo Postel, a existência de grupos com a

pele mais clara e outros com a pela mais escura entre os americanos poderia ser um

indicativo de que o continente havia sido colonizado simultaneamente pelas três linhagens

derivadas de Noé121

. Contudo, o controle sobre todas as terras recém-encontradas seria

exclusivo daqueles que tinham Jafé como seu ancestral comum (incluindo aquelas

ocupadas por descendentes dos outros irmãos)122

. Ainda que profundamente diferentes

entre si, as teorias formuladas por Postel e Grotius são representativas de uma tendência

que esteve presente em muitos dos relatos analisados: a hierarquização dos diversos grupos

indígenas a partir de suas origens específicas.

A este respeito, a descrição bíblica da embriaguez de Noé, da reação de seus

filhos e da difusão de seus descendentes exerceu um papel central123

. A maldição de Noé a

Canaã, um dos filhos de Cam124

(tema insistentemente abordado, com diferentes matizes,

121 De acordo com Gliozzi (2000, 32; 111; 132), Postel não defende que a América tenha sido inteiramente povoada por descendentes de Jafé: “outres les migrations abusives de ceux de Cham [...] il est possible que la

côte orientale du continent aid été légi timement peuplée par les descendants de Sem. Étant donné la

hiérarchie précédemment établie entre les fils de Noé, Japhet, de toute façon, exerce légitimement son

autorité, non seulement sur l’Europe mais aussi dans son [Nouveau Monde]”.

122 José Alcina Franch (1992, 20) aponta outros autores que também relacionaram os indígenas a Jafé, como

Fray Alonso de Zamora e Lucas Fernández Piedrahita.

123 O livro de Gênesis descreve que, após o dilúvio: “Noé, que era agricultor, começou a cultivar a terra, e

plantou vinha. E, tendo bebido vinho embriagou-se, e apareceu nu na sua tenda. E Cam, pai de Canaã, tendo

visto a nudez de seu pai, saiu fora a dizê-lo a seus dois irmãos. Porém Sem e Jafé puseram uma capa sobre os

ombros, e, andando para trás, cobriram a nudez de seu pai, tendo seus rostos voltados, e assim não viram a

nudez de seu pai. Quando Noé, despertando da embriaguez, soube o que lhe tinha feito o seu filho mais novo, disse: Maldito seja Canaã, ele será escravo dos escravos de seus irmãos. E disse: Bendito seja o Senhor Deus

de Sem, e Canaã seja seu escravo. Dilate Deus a Jafé, e habite Jafé nas tendas de Sem, e Canaã seja seu

escravo” (Gên, 9, 20-27).

124 É importante ressaltarmos que a tradição do Antigo Testamento faz diversas referências à noção de culpa

e/ou punição compartilhada por uma família, grupo ou povo, o que explicaria a maldição a um dos filhos de

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nos séculos posteriores125

), foi fundamental para as interpretações sobre as origens e

hierarquização dos indígenas feitas por vários autores não apenas durante o período

analisado126

. Entre outros exemplos, podemos citar passagens de obras como as do viajante

francês Jean de Léry, do mexicano Juan Suárez de Peralta e do cronista espanhol Antonio

de Herrera y Tordesillas.

Em uma breve passagem de sua Histoire d’un voyage faict en la terre de Brésil

(1578), o huguenote Jean de Léry conjectura sobre a possível procedência dos povos

americanos. Para ele, “é evidente que descendem de um dos três filhos de Noé, mas acho

difícil dizer de qual baseando-me nas Santas Escrituras ou nos doutores profanos” (LÉRY,

1980, 171). A partir desta premissa, o viajante francês aponta elementos que dificultariam a

ligação dos indígenas com Sem e Jafé: “Parece-me pois mais provável que descendam de

Cam”127

.

Já Juan Suárez de Peralta dedica o capítulo inicial de seu Tratado del

descubrimiento de las Yndias y su conquista (c. 1580, mas publicado apenas no século XX)

inteiramente ao tema. Para este criollo mexicano ligado à família de Cortés, o tamanho das

terras e a grande quantidade de grupos indígenas poderiam apontar para uma origem

Cam como resposta ao ato cometido por seu pai, além de eventos como o próprio dilúvio universal e a

destruição de Sodoma e Gomorra.

125 Ao longo do século XIX, esta passagem bíblica foi utilizada por alguns autores como base para a defesa da

escravidão africana (ainda que as interpretações bíblicas relacionassem os negros a Cush, outro filho de Cam).

Os ecos deste discurso racialista a partir de premissas bíblicas e, mais especificamente, da descendência de Noé ainda podem ser observados, inclusive, em debates entre parlamentares e religiosos brasileiros ocorridos

em passado recente.

126 As ligações e hierarquizações de grupos humanos a partir dos descendentes de Noé são muito anteriores ao

contato dos europeus com o Novo Mundo: “Depois das invasões germânicas, o Arcebispo Isidoro de Sevilha,

o autor mais erudito e mais influente da Europa pré-carolíngia, tomou a seu cargo emparentar o mais

estreitamente possível entre si os iberos invadidos e os visigodos invasores, ligando os primeiros a Tubal e os

segundos a Magog, ambos filhos de Jafé. Em seus escritos, não deixava de conceder a superioridade à raça

dos conquistadores, que há tempos tinham subjugado a Cidade Eterna, e portanto tinham adquirido os títulos

ao domínio mundial” (POLIAKOV, 1974, 3).

127 Em relação à ligação com Jafé, o autor afirma que a América não faz parte das “ilhas” que teriam sido

habitadas por seus filhos. Já no caso de Sem, “pai da geração bendita dos Judeus, mais tarde corrompida a ponto de a rejeitar o Criador, não me parece lógico”. Após estas reflexões, Léry (1980, 171-172) conclui ser

“verossímil que os avós e antepassados de nossos americanos, expulsos de Canaan pelos filhos de Israel,

tivessem embarcado e se deixado levar ao léu até aportar em terras da América [...] Mas como não quero

discutir o assunto deixarei que cada qual tenha a sua crença a esse respeito. Por mim reputo certo descender

essa pobre gente da raça maldita de Adão”.

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múltipla (tribos perdidas de Israel, navegações cartaginesas ou migrações de povos

africanos, como os egípcios e etíopes). Contudo, a prática generalizada de idolatria

indicaria que, acima de tudo, os americanos estariam relacionados a Cam/Canaã, cuja

maldição seria responsável, inclusive, pelo longo período em que a América permaneceu

isolada em relação ao restante do mundo128

.

Por fim, para o cronista mayor de las Indias Antonio de Herrera y Tordesillas,

os próprios relatos narrados pelos indígenas poderiam ser um indicativo, mesmo que com

diversas alterações, de sua ligação com Cam. Logo na primeira “década” de sua vasta obra,

o cronista afirma que os anciãos da região de Cuba narravam a história de um homem mais

velho que, sabendo da ocorrência em um futuro próximo do “grande dilúvio”, teria

construído uma nau utilizada para salvar sua família e muitos animais. Ainda segundo o

ancião indígena, após o dilúvio um dos dois filhos teria rido da embriaguez de seu pai, que

lhe amaldiçoou. Deste evento teriam resultado dois grandes grupos: o dos indígenas,

descendentes do filho maldito, e o dos espanhóis, ligados ao que teria recebido bênçãos por

parte de seu pai129

.

Ainda que com diferenças temporais, espaciais e de conteúdo entre si, os três

relatos acima descrevem os indígenas a partir de uma representação que dá grande destaque

a aspectos considerados negativos (como a idolatria, por exemplo) e os associa à linhagem

128 “Y como desechados, los primeros que empeçaron a ydolatrar fueron estos deçendientes de Chan. Y como

desamparados de la gracia y amor de Dios se derramaron por munchas partes del mundo. Y que de los tres hijos de Noé, los de Chan son los que más tierra poblaron […] Bista, pues, la grandeza y largura de las

Yndias, parece ser imposible querer dezir que de solo una colonia de jente se poblase toda aquella tierra tan

grande y tan dificultosa de pasar por ella de unas partes a otras. Porque no es de creer quel cauo del

Labrador y Bacallaos y Florida se poblasen de la misma jente quel estrecho de Magallanes, sino que Dios

embió y encaminó unos por una parte y otros por otra. Y así pueden ser en parte y no en todo verdad las

opiniones arriua dichas, las que proçeden de aquel hijo, o nieto de Noé, maldito, Chanaán. Porque gente que

Dios tubo tanto tiempo escondida y apartada de la noticia de su nombre, y fe, es de creer que no procede de

los hijos benditos” (SUÁREZ DE PERALTA, 1990, 49-50).

129 “[…] y que embió un cuervo, y no bolvió, por comer de los cuerpos muertos, y después embió una Paloma,

la cual bolvió cantando, y truxo una rama con oja que parecía de hobo, pero que no era hobo: el cual salió

del navío, y hizo vino de las parras monteses, y se embriagó, y teniendo dos hijos el uno fe rió, y dixo al otro: Echémonos con él, pero que el otro le riño, y cubrió al padre: el cual después de dormido el vino, y que

sabida la desverguença del hijo, le maldixo, y que al otro dio bendiciones, y que de aquel avían procedido los

Indios destas tierras, y que por esto no tenían sayos ni capa, pero que los Castellanos procedían del otro: por

lo cual andaban vestidos, y tenían caballos. Lo sobredicho refirió un Indio viejo, de más de setenta años á

Gabriel de Cabréra” (HERRERA Y TORDESILLAS, 1728, I, 196).

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amaldiçoada por Noé, o que resultaria em uma origem inferior a dos povos de outras

regiões do mundo.

No entanto, em outras obras Cam foi associado a apenas um grupo ou região

específica do novo continente. Este movimento traz uma série de implicações que se

refletem na representação dos indígenas presentes nos relatos analisados por partir do

princípio de que os índios não formariam – desde suas origens – um único grupo

homogêneo. Além disso, a divisão dos indígenas foi acompanhada por um processo de

hierarquização não apenas dos americanos, mas também dos povos do Velho Mundo de

quem seriam descendentes, o que nos permite vislumbrar os critérios utilizados por esses

autores para a estruturação destas divisões.

Um dos primeiros relatos a apresentar a origem camita como sendo apenas uma

das diferentes procedências dos indígenas foi a Monarquía Indiana composta por Juan de

Torquemada (1615). Fortemente calcados nas reflexões do jesuíta José de Acosta sobre o

tema (como os argumentos para negar a teoria atlante e as reflexões sobre a migração dos

animais selvagens, que serão abordados no capítulo seguinte), os escritos deste franciscano

espanhol indicam um vínculo com Cam a partir de evidências como a cor de pele dos

americanos130

. Porém, Torquemada (1975, 42-43) deixa claro em várias passagens de sua

obra que a questão sobre a origem dos índios permanece em aberto e que outras migrações

(como a de povos asiáticos através de uma ligação por terra com o Oriente ou através do

extremo sul da América) também poderiam ter ocorrido, uma vez que os índios não

formariam um único grupo homogêneo.

A multiplicidade de origens associada a uma hierarquia dos povos americanos

pode ser observada com mais detalhes no De Indiarum Iure, obra composta por Juan de

Solórzano y Pereira entre as décadas de 1620 e 1630131

. Assim como no caso de

Torquemada, há ligações estreitas entre a abordagem feita por este jurista espanhol sobre as

130 “[…] y según lo que tenemos dicho en otra parte acerca del color de estas gentes, no tendría por cosa

descaminada creer que son descendientes de los hijos o nietos de Cam, tercero hijo de Noé; y que hayan ido poblando el mundo estos hijos dichos desde entonces lo prueban hombres muy doctos” (TORQUEMADA,

1975, 46).

131 Para informações biográficas sobre o Consejero de Indias e Oidor de la Real Audiencia de Lima e uma

análise de sua obra bem como da influência exercida por ela entre os funcionários espanhóis que atuavam nas

colônias americanas, Cf. MALAGÓN; OTS CAPDEQUÍ, 1983.

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possíveis procedências dos grupos indígenas e a obra de Acosta. Porém, neste momento,

interessa-nos observar a divisão estabelecida por ele entre os americanos e seus possíveis

ancestrais.

De acordo com este autor, a crença na fé cristã faz com que todas as hipóteses

sobre a origem do ser humano aventadas por autores clássicos (como Lucrécio, Ovídio e

Plutarco) sejam deixadas de lado em nome da monogenia adâmica, o que seria reafirmado

em inúmeras passagens bíblicas. Já em relação à migração para a América, as dúvidas

seriam maiores132

. Solórzano y Pereira nega ou problematiza diversas hipóteses (como as

expedições marítimas, a ligação com a Espanha através da Atlântida e do rei Hespero entre

outras) partindo do princípio de que seria mais fácil apontar falhas nas teorias alheias do

que formular ou identificar a correta. Mesmo assim, o jurista não se furta a fazer uma série

de apontamentos. O primeiro deles, e fundamental para embasar todos os outros, diz

respeito à multiplicidade de origens: “los primeros pobladores de este Nuevo Mundo

pudieron propagarse no sólo a partir de un único pueblo ni tampoco por una única vía,

sino por todas las que hemos mencionado, por azar y por planificación, por mar y por

tierra” (2001, 355). A partir desta afirmação, ainda que deixe a questão em aberto, o autor

dedica várias páginas – e uma profusão de citações de obras anteriores que analisaram a

questão – à defesa de que o Novo Mundo teria sido povoado pelos três filhos de Noé ou, ao

menos, por Sem (através de uma possível ligação com as terras asiáticas) e Cam (através do

extremo sul americano) (2001, 367)133

.

132 “[...] todos los hombres proceden de Adán o de Noé y sus descendientes. De ellos sabemos que se

establecieron en aquellas tres partes: Asia, África y Europa, las únicas entonces conocidas […] Con razón,

pues, personas doctísimas suelen poner en duda cuál sea el origen de estos indios occidentales y

meridionales y de qué manera, por qué camino, bajo qué guía han podido llegar pueblos tan numerosos a

estas provincias separadas de las otras por casi todo el océano y, al parecer, totalmente ignoradas de los

antiguos” (SOLÓRZANO Y PEREIRA, 2001, 323-325).

133 “Agustín de Torniello [...] dice que si se pregunta de qué hijos o descendientes de Noé se pobló este Nuevo

Mundo, podemos responder que de los hijos de Sem a través de las regiones de la India Oriental, China y Japón con sus provincias e islas que están próximas a la América septentrional; también de los descendientes

de Jafet: después de haberse dispersado por las zonas septentrionales del Asia, que ahora habitan los

tártaros, llegaron finalmente hacia el norte a los límites orientales de la misma Asia que doblan un poco

sobre China, cerca del estrecho de Anian: por esta corta distancia precisamente, como dijimos, aparece

separada Asia de América. Por lo que se refiere, en cambio, a las provincias antárticas, que a nosotros nos

arecen totalmente meridionales y se hallan frente al último cabo de África que llaman Cabo de Buena

Esperanza, aunque todavía no nos son bien conocidas, se podría conjeturar con probabilidad que penetraron

en ellas por primera vez los descendientes de Cam” (SOLÓRZANO Y PEREIRA, 2001, 367).

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Em sua apresentação ao De Indiarum Iure, Jesús Bustamante García defende

que a origem dupla (Sem e Cam) proposta por Solórzano y Pereira como a mais provável

tem muito de cálculo político. A partir de uma interpretação que se aproxima da tese

desenvolvida por Giuliano Gliozzi, García afirma que a análise feita pelo jurista não é

“neutra”, mas sim um esforço para legitimar a atuação da Coroa espanhola sobre as terras

americanas e explicar possíveis dificuldades e fracassos134

. Assim como apontamos no

capítulo anterior, é evidente que não pretendemos invalidar este tipo de leitura. Contudo,

buscamos analisar este excerto da obra do jurista espanhol a partir de outras premissas.

Acreditamos que ao apontar uma origem dupla – ou até mesmo tripla – para os indígenas e

relacionar a uma delas os aspectos negativos, Solórzano y Pereira evidencia a percepção

crescente das dificuldades, ou mesmo da impossibilidade, de agrupar as diferentes

concepções sobre os americanos dentro de categorias e fórmulas generalizantes como a de

“índio”.

O retorno à narrativa bíblica do dilúvio universal em busca de informações

sobre a origem dos índios não se restringiu aos filhos de Noé, mas se estendeu a várias de

suas gerações seguintes135

. Entre outros personagens, foram feitas referências a Tubal (filho

de Jafé apontado por Diego Andrés Rocha como ancestral dos espanhóis e de ao menos

parte dos grupos indígenas) e Ofir. Este último se destaca não apenas pela quantidade de

obras que o identificam ao Novo Mundo mas também pelo grande número de autores que

se esforçaram para negá-la, como os acima citados Acosta e Solórzano y Pereira (2001,

469-487).

Antes de analisarmos as obras que associavam Ofir ao continente americano, é

importante ressaltar que esta palavra é utilizada na Bíblia tanto para denominar uma pessoa

(descendente de Sem) quanto uma rica localidade visitada por embarcações enviadas pelo

134 De acordo com Jesús Bustamante García: “Si la opción principal (‘hijos de Sem’) debería ser el

fundamento para articular la legislación indiana sobre los naturales; la opción secundaria (‘hijos de Cam’)

podía servir en todo momento para explicar – y legitimar – los fallos de esa misma legislación, la dificultad de imponerla y evitar abusos, lo que también se relacionaba – naturalmente – con el fantasma de una posible

desaparición física de los naturales. Nada de eso sería nunca imputable a la voluntad de los legisladores,

mucho menos a la del rey. Detrás de todo ello simplemente habría una maldición bíblica” (SOLÓRZANO Y

PEREIRA, 2001, 31-32).

135 Para a descrição das descendências de Sem, Cam e Jafé Cf. 1Crôn, 1,5-27.

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rei Salomão de onde teriam sido obtidas muitas riquezas minerais além das resistentes e

olorosas madeiras utilizadas na construção do Templo de Jerusalém136

. Em relação à

segunda acepção deste termo bíblico, as indicações de que as riquezas de Ofir ficaram

incomunicáveis por muito tempo seriam um indicativo de que esta região poderia fazer

parte do Novo Mundo137

.

Entre outros autores que abordam ou defendem a ligação entre Ofir e América

destacamos Benito Arias Montano, para quem a verdade de questões como a origem dos

índios só poderia ser alcançada através dos textos bíblicos, “que, al fin y al cabo, era nada

más y nada menos que la palabra misma de Dios” (apud CANSECO, 2007, 101). Isto faz

com que este humanista espanhol138

, que mesmo nunca tendo desembarcado nestas terras

manteve profundas relações com o Novo Mundo139

, tenha formulado a hipótese de que os

indígenas descenderiam do povo hebreu140

através de migrações marítimas e terrestres141

.

Mais especificamente, Arias Montano afirma que as frotas de Salomão teriam

alcançado a América, o que poderia ser comprovado através de aproximações linguísticas

136 Entre outras referências bíblicas a Ofir como um local repleto de riquezas naturais podemos citar: “Ora

também a frota de Hirão, que trazia o ouro de Ofir, trouxe de Ofir uma prodigiosa quantidade de ébano

odorífero e pedras preciosas. E o rei mandou fazer deste ébano odorífero os balaústres da casa do Senhor, da

casa real, cítaras e liras para os cantores; nunca mais foram transportadas nem vistas semelhantes madeira de

ébano odorífero até ao dia de hoje” (1Rs, 10, 11-12).

137 Juan Gil (1992, 53-54) afirma que as lendas sobre a região de Ofir não derivavam apenas de passagens

bíblicas mas também de fontes clássicas e circulavam intensamente entre os viajantes durante o período das

navegações ultramarinas: “todos habían oido hablar de Ofir [...] Una leyenda antiquísima, recogida por

Heródoto, relataba que al Norte de la India se extendía un desierto en el que unas hormigas, de tamaño mayor que una zorra, hacían sus galerías escarbando en arenas auríferas […] Cuando la leyenda en la edad

helenística llegó a conocimiento de los judíos, les vino de perlas para localizar en ese desierto la dorada

Ofir; pero un tanto descontentos con las prosaicas hormigas […] inventaron un curioso híbrido: la ‘hormiga-

león’ […] Esta rectificación pasó a San Jerónimo, que sitúa en la India ‘los montes de oro’, guardados por

dragones, grifos y monstruos de tamaño desaforado; de San Jerónimo copió la noticia San Isidoro, y de San

Isidoro ala tomaron las mapamundis medievales. Retocada como es debido la leyenda en este punto, pasó a

convertirse en doctrina canónica de los comentarios bíblicos”.

138 Para informações biográficas de Arias Montano além de uma lista de seus textos presentes em edições da

Bíblia, Cf. SÁENZ-BADILLOS, 1997.

139 Além de dezenas de obras sobre a América e seus habitantes, a casa de Arias Montano contava com uma

série de objetos indígenas e um jardim de plantas americanas.

140 “[…] también por la Sagrada Escritura podemos mostrar que aquella tierra fue muy conocida por los

israelitas, pues es sabido que ponían rumbo a ella con bastante frecuencia” (apud CANSECO, 2007, 127-

128).

141 O autor incluiu em sua obra um mapa indicando a possível ligação por terra que existiria entre a América e

o extremo leste da Ásia.

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(Ofir e Peru seriam derivações de uma mesma palavra) e da comparação do mundo natural

com o relato bíblico (tanto as madeiras do Templo de Jerusalém quanto as folhas com que

Adão e Eva se cobriram após cometerem o pecado original seriam naturais do Novo

Mundo). Contudo, há também uma associação com a personagem bíblica de mesmo nome.

Para Arias Montano, Ofir teria povoado as duas grandes regiões auríferas do Novo Mundo:

“una, la única que con el mismo nombre también hoy en día se llama Perú, y otra, la que

los navegantes han denominado Nueva España” (apud CANSECO, 2007, 128). Já outras

partes do continente teriam ancestrais diferentes, como Jobab, irmão mais novo de Ofir que

teria povoado o restante da América do Sul.

Fernando Montesinos é outro autor que também relaciona Ofir – principalmente

a personagem bíblica – ao continente americano e seus habitantes em suas Memorias

antiguas historiales y políticas del Perú (c. 1642)142

. Para este escritor e religioso espanhol,

que esteve na região peruana em meados do século XVII, os primeiros humanos a

alcançarem o Novo Mundo eram descendentes de Ofir que teriam se estabelecido em

Cuzco, informação esta que, ainda que de forma deturpada, estaria presente nos relatos

narrados pelos indígenas143

. Após esta primeira onda migratória, outros povos teriam

alcançado e povoado a América a partir da Fenícia e de diversas outras nações. Montesinos

(1882, 124), porém, é claro ao afirmar que estes eram grupos inferiores: uma “gente

bárbara” cuja vitória sobre os pioneiros destruiu a “monarquía peruana, y en más de

cuatrocientos años no volvió en sí, y se perdieron las letras”.

Juan Gil (1992, 226) afirma que a ligação entre o Novo Mundo e as localidades

bíblicas de Ofir e Társis permaneceu sendo repetida mesmo após o surgimento de muitas

evidências em contrário por facilitar o recrutamento de pessoas para a colonização: “la

aureola de tales quimeras resulta en definitiva irresistible, y constituye un excelente

142 Ao descrever a dispersão dos humanos pelo mundo após o dilúvio, Montesinos (1882, 47) chega a afirmar

que “no será dificultoso creer que Noé estuviese en el Perú”.

143 “Después de haber Ophir poblado la América, instruyó á sus hijos y nietos en el temor de Dios y

observancia de la Ley natural. Vivieron en ella muchos años, comunicándose de padres á hijos el respeto al Criador de todas las cosas, por los beneficios recibidos, en especial por el del Diluvio, de que libró á sus

progenitores. Duraron en este bien muchos años: y según el cómputo del manuscrito citado, serían

quinientos, contando los del libros, aunque por la cuenta de los amautas é historiadores peruanos, fue al

segundo sol después de la Creación del mundo; que computando el tiempo por los años comunes, vienen á

ser dos mil años” (MONTESINOS, 1882, 45).

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gancho, como bien dice Motolinía, para atraer a incautos pobladores a colonizar tierras

inhóspitas y malsanas”. Entretanto, para além dos fatores que teriam levado os autores a

abordarem este tema, é interessante observarmos que, em ambos os casos citados, a ligação

com Ofir é associada a uma hierarquização interna do Novo Mundo e dos grupos que o

habitam. No caso de Arias Montano, as regiões com os grupos considerados por ele como

mais avançados (Peru e Nova Espanha) seriam também as mais ricas e as que possuíam

origem anterior e superior a dos outros grupos humanos que povoaram o restante do

continente. Processo semelhante ocorre na obra de Montesinos. Para ele, caberia à região

do Peru e seus habitantes não apenas a primazia sobre estas terras, mas também uma

origem mais “nobre”.

ii) terra de gigantes

As descrições sobre o dilúvio e a dispersão da linhagem de Noé não foram os

únicos excertos bíblicos utilizados pelos autores do período em suas reflexões sobre o

povoamento do Novo Mundo. Para muitos, a existência de uma enorme porção de terra

habitada por centenas de grupos humanos teria que ser mencionada, ou ao menos aludida,

nas Sagradas Escrituras. Apenas como um dos vários exemplos que poderiam ser arrolados,

podemos citar a obra de Gregorio García. Nela, o religioso – ou o organizador da segunda

edição144

– identifica diversas passagens dos Evangelhos, Salmos e de outros livros

canônicos que fariam referência a estas terras e seus habitantes: “El mismo profeta Isaías,

según la interpretación de los Setenta Interpretes, dice: ‘Ai de la Tierra, que embia Navios

à la outra parte de Etiopia! Todo aquel capítulo lo declaran de las Indias autores mui

graves, i doctos” (GARCÍA, 1729, 61). Os desdobramentos ocorridos após o contato com

os europeus também deveriam estar presentes na Bíblia. Seguindo sua análise sobre o tema,

García conclui que “lo que dice el Profeta Abdias, en el fin de su profecía, prueba, que la

conversión de los Indios por Gente Española, fue profetiçada muchos años antes por estos

Profetas” (GARCÍA, 1729, 61).

144 Como apontamos anteriormente, a obra de García foi alterada e aumentada na segunda edição. O trecho

citado contém passagens entre colchetes, indicação feita pelo editor para sinalizar diferenças em relação ao

original.

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Contudo, o autor que mais se aprofundou nesta busca foi Juan de Solórzano y

Pereira, que dedica um extenso capítulo de sua obra à busca de “lugares de la Sagrada

Escritura que parecen predecir y reservar a los españoles el descubrimiento y conversión

de este Nuevo Mundo” (2001, 537-565). De acordo com o Consejero de Indias, que centra

sua atenção especialmente em passagens dos livros proféticos, muitas das referências

bíblicas aos eventos ocorridos na América teriam sido feitas de forma cifrada e seu

conteúdo só teria sido compreendido após a chegada dos espanhóis.

Outras referências bíblicas muito utilizadas pelos autores que analisaram as

possíveis origens dos indígenas foram as breves alusões à existência de gigantes, também

denominados em algumas versões como “nefilins”, durante o início dos tempos. Logo nos

primeiros capítulos do Gênesis há a menção à existência de criaturas gigantescas sobre a

terra que seriam fruto do relacionamento dos filhos de Deus com as mulheres humanas

(Gên, 6, 4). Estes seres teriam sido eliminados pelo dilúvio universal (Sab, 14, 6) ou

durante a conquista das terras de Canaã por parte do povo israelita (Bar, 3, 26-28). A

despeito das diferenças existentes entre as citações, os gigantes bíblicos são descritos como

criaturas dos primeiros tempos que teriam sido destruídos por Deus devido ao seu

comportamento “decaído”145

.

A alusão a gigantes na aurora dos tempos foi apropriada e adaptada por muitos

autores em suas descrições do início da presença humana nas terras americanas. Entre

outros casos, podemos citar o de Agustín de Zárate, que em seu Historia del

descubrimiento y conquista de la provincia del Perú (1555) afirma que os antigos nativos

da região mencionavam a existência de seres com estatura equivalente a de quatro

indígenas em suas histórias tradicionais. Porém, estes relatos só teriam passado a ser

encarados com seriedade pelos espanhóis após a descoberta durante escavações de grandes

ossos. Ainda segundo o cronista espanhol, um ser enviado dos céus, “resplandesciente

145 O termo nefilins teria origem no hebraico napal (cair), de onde provavelmente origina-se a menção a “os caídos”: “Não fica claro por que ou como os nefilins sobreviveram ao Dilúvio para se tornarem os cananeus

originais; provavelmente pode-se detectar uma dualidade de tradições orais mais antigas no choque entre

esses dois textos. Os nefilins parecem partilhar um destino comum [...] talvez gerado por seu nome – eles

existem apenas para morrer numa grande destruição, seja o Dilúvio ou a conquista israelita” (METZGER e

COOGAN, 2002, 229).

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como el sol”, teria destruído estas criaturas devido aos seus comportamentos “contra

natura” (ZÁRATE, 1555, 7-8).

As ligações entre os gigantes e a descoberta de ossos de grandes proporções no

território americano bem como da destruição destas criaturas com seu comportamento

altamente reprovável também foram apontadas por outros autores, como Fernando

Montesinos (para quem os ossos seriam exemplos deixados por Deus aos humanos146

), Juan

Suárez de Peralta (que relaciona estes seres a uma colonização antidiluviana na

América147

), Jerónimo de Mendieta148

, Juan de Torquemada (que afirma possuir um osso

desses seres que teriam habitado a América149

e travado conflitos com os indígenas mesmo

após o dilúvio), Juan de Solórzano y Pereira150

e o já citado Diego Andrés Rocha (1891, II,

128-130), entre outros.

A recorrente alusão à existência de gigantes bíblicos no Novo Mundo por parte

de diferentes autores nos permite levantar algumas hipóteses sobre as relações entre

tradição e experiência nas representações sobre os indígenas151

. É interessante observarmos

que as menções a esses seres ganham corpo mais de meio século após o desembarque de

Colombo. Além disso, há em praticamente todas elas o estabelecimento de uma ligação

146 Para este autor, os excessos praticados pelos gigantes teriam levado a “justiça divina” a enviar um fogo dos

céus que destruiu toda esta linhagem, restando apenas “los huesos que reservó Dios para ejemplo de los

venideros” (MONTESINOS, 1882, 54).

147 Ao refletir sobre a existência de seres na América antes do dilúvio, Suárez de Peralta (1990, 50) recorre ao capítulo de Gênesis que faz menção aos gigantes para concluir que: “como allí fuesen todos ahogados y

después del diluvio aca no se ayan bisto ombres de tanta grandeza como se hallan huesos en sepulturas, que

ponen gran admiración de berlos; parece un yndiçio y señal questos huesos fueron de hombres antes del

diluvio”.

148 Segundo o franciscano, os relatos dos indígenas sobre esses seres teriam sido confirmados pelas

descobertas de “huesos y muelas de terribles gigantes” (MENDIETA, 1973, I, 59-60).

149 “sin duda los hubo en estas provincias cuyos cuerpos han aparecido en muchas partes de la tierra

cavando por diversos lugares de ella”. Torquemada (1975, 52-54) afirma que as razões para o

desaparecimento desses seres ainda permaneciam obscuras: “Estos gigantes se acabaron de todo punto sin

quedar ninguna memoria de ellos. Dicen algunos que se murieron de hambre, porque no comían lo que el

cuerpo les demandaba y que andaban entre las gentes como bestias en el campo, no atendiendo a más que a comer y vivir la vida, hasta que les llegó la muerte”.

150 O jurista defende que a existência de gigantes no continente americano seria confirmada não apenas pelos

testemunhos de autores europeus (desde Vespúcio até Torquemada), mas também pelas narrativas dos grupos

indígenas sobre seu passado remoto (SOLÓRZANO Y PEREIRA, 2001, 371).

151 Tema este que será abordado mais detidamente no capítulo seguinte.

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com o encontro de ossos de grandes proporções que, em muitos casos, comprovariam

eventos narrados pelos grupos nativos. Independentemente da veracidade dessas

“descobertas arqueológicas” e da acuidade com que os relatos indígenas eram coletados e

interpretados, fica evidente que o prolongamento do contato com o Novo Mundo e seus

habitantes gerou uma nova hipótese sobre o início da presença humana na região. Ainda

que profundamente pautada na tradição cristã, a alusão a gigantes americanos é

indissociável da experiência dos europeus neste continente.

iii) as tribos perdidas de Israel

A Bíblia não foi a única fonte da tradição cristã a que os autores recorreram em

sua busca por possíveis indícios sobre o continente americano e seus habitantes. Entre

outras obras152

, o quarto livro de Esdras (considerado apócrifo pela Igreja Católica153

)

ocupa um papel fundamental, especialmente para o desenvolvimento da hipótese que

associa os ancestrais dos indígenas às migrações realizadas pelas dez tribos perdidas de

Israel a partir do Oriente.

De acordo com o relato bíblico, o povo hebreu descenderia dos doze filhos de

Jacó/Israel154

, que teriam gerado uma tribo cada um e se estabelecido nas terras de

Canaã155

. Após a morte do rei Salomão teria havido a fundação de dois reinos. Ao sul, o

reino de Judá (composto pelas tribos de Judá, Simeão e parte da de Benjamin), conquistado

152 Como veremos adiante, as reflexões de Santo Agostinho sobre a inabitabilidade das zonas tórridas também

foram muito analisadas.

153 Os apócrifos de Esdras também são conhecidos como os livros três e quatro de Esdras, já que 1Esdras e

2Esdras (ou livro de Neemias) são livros canônicos. É importante observarmos que os apócrifos foram – e

ainda são – largamente utilizados em debates teológicos.

154 “Os filhos de Jacó eram doze. Filhos de Lia: Rúben, o primogênito, Simeão, Levi, Judá, Issacar e Zabulão.

Filhos de Raquel: José e Benjamin. Filhos de Bala, escrava de Raquel: Dan e Neftali. Filhos de Zelfa, escrava

de Lia: Gad e Aser; estes são os filhos de Jacó, que lhe nasceram na Mesopotâmia da Síria” (Gên, 35, 22-26).

155 “A Bíblia não é coerente, porém, nem com relação ao número das tribos nem com relação a seus nomes.

Nas numerosas listas tribais encontradas nos seus vários livros o número varia de doze a treze. Essas

variações devem-se sobretudo ao aparecimento em algumas listas dos dois filhos de José, Efraim e Manassés, com tribos separadas, e à omissão de Simeão ou Levi de outras. No Cântico de Débora, que não é

necessariamente uma chamada completa das tribos, Judá e Gad estão ausentes, ao passo que Maquir, o filho

de Manassés, parece ter tomado o lugar de seu ‘pai’. Presume-se que as variações refletem flutuações na

constituição e história das tribos e seu tamanho e importância relativos” (METZGER e COOGAN, 2002,

325).

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posteriormente por Nabucodonosor, que deslocou grande parte das tribos derrotadas para a

região da Babilônia. Estas tribos só teriam conseguido regressar a Canaã décadas depois,

com a vitória do Império Persa comandado por Ciro sobre o exército babilônico. Na região

norte, o reino de Israel (composto pelas outras dez tribos restantes), atacado pelo rei assírio

Salmanasar que deportou sua população para regiões distantes a leste de onde se perdem

seus registros.

Ainda que os relatos bíblicos deixem de registrar informações sobre as dez

tribos “perdidas” após a vitória do exército assírio, há passagens que profetizam a reunião

de todas elas no futuro e as associa à proximidade do fim dos tempos156

, o que leva autores

como Carolina Depetris (2009, 239) a afirmar que: “aceptar su desaparición tornaba

imposible el cumplimiento de las profecías de corte mesiánico que hablaban del regreso

del pueblo elegido a Israel y el restablecimiento utópico de su reino, de modo que por

siglos no se abandonó su búsqueda”. Com isso, passa a haver uma busca por vestígios que

permitiriam indicar os possíveis rumos tomados por essas tribos bem como a localização de

seus descendentes. Busca esta, que encontra campo extremamente fértil no Novo Mundo

após os primeiros contatos com os europeus e que, ainda que limitada a pequenos esforços

pessoais, permanece sendo realizada até hoje157

.

A este respeito, o quarto livro apócrifo de Esdras passa a ser visto como uma

possível fonte para se determinar o itinerário percorrido por esses grupos. Nele, há a

indicação de que, após um longo período de exílio, as tribos perdidas teriam realizado

migrações através do rio Eufrates em direção a locais distantes e desconhecidos até então

pelo homem:

156 Entre outros exemplos, como trechos do livro de Isaías (11, 11-12), podemos citar passagens de Ezequiel

(37,15-17) onde há a relação entre a redenção final de Israel e a reunião de todas as tribos perdidas com os

descendentes do reino de Judá: “Foi-me dirigida a palavra do Senhor, a qual dizia: Tu, ó filho do homem,

toma um pedaço de madeira e escreve nela: A favor de Judá e a favor dos filhos de Israel, seus companheiros;

e toma outro pedaço de madeira e escreve nela: Por José, lenho de Efraim, e por toda a casa de Israel e dos seus companheiros. Depois junta estes dois pedaços de madeira um ao outro para os unir; e eles ficarão sendo

na tua mão um só pedaço de madeira”.

157 Em sua obra dedicada às tribos perdidas de Israel, Tudor Parfitt (2002) cita casos, como o dele próprio, de

pesquisadores que ainda no século XX permaneciam buscando indícios desses grupos em diferentes locais do

planeta.

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“[…] formed this plan for themselves, that they would leave the

multitude of the nations and go to a more distant region where mankind had

never lived, that there at least they might keep their statutes which they had not

kept in their own land. And they went in by the narrow passages of the Euphrates

River. For at that time the Most High performed signs for them and stopped the

channels of the river until they had passed over. Through that region there was a

long way to go, a journey of a year and a half and that country is called Arzareth.

Then they dwelt there until the last times and now when they are about to come

again the Most High will stop the channels of the river again so that they may be

able to pass over” (apud PARFITT, 2002, 5).

Estas indicações foram repetidamente abordadas por vários autores ao longo do

período colonial como sendo possíveis referências às terras americanas ou, mais

amplamente, às diferentes regiões do globo alcançadas durante o período das navegações.

Como exemplo, podemos retornar ao início do capítulo, ao relato de Diego Andrés Rocha

(1891, I, 156). Nele, o cronista faz uma defesa enfática da veracidade das profecias de

Esdras, ainda que elas fossem vagas e apócrifas, pois “tienen tanta autoridad, que excede á

la de cualquier doctor, por grande que sea, y así están entretejidos con los libros sagrados

de la Biblia”. Defesa semelhante é realizada por outros autores, como Gregorio García

(1729, 157), para quem “tambien la Iglesia Catolica honra, i autoriça este Libro”, e o

rabino português radicado em terras holandesas Menasseh ben Israel (cujas ideias serão

analisadas nas páginas seguintes): “[...] de cuyo texto se puede colegir, que parte dellos se

fueron a Nueva España y al Pirú, poblando estos dos Reynos que hasta entonces avían sido

inhabitables” (1650, 24).

Entretanto, para outros autores, como o franciscano Juan de Torquemada (1975,

39-41), a utilização de um apócrifo seria inaceitável. O religioso espanhol vai além,

afirmando que mesmo que se tratasse de uma obra reconhecida pela Igreja Católica seu

conteúdo não poderia ser associado às terras americanas, pois o profeta afirma que estas

tribos teriam rumado para regiões distantes na tentativa de manter suas leis, língua e

costumes, o que não poderia ser identificado aos comportamentos dos indígenas. Além de

Torquemada, outros autores combateram a ligação entre indígenas e as tribos perdidas,

como o jesuíta José de Acosta e o cosmógrafo e escritor espanhol Juan López de Velasco.

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Para este último, em sua Geografía y descripción universal de las Indias (c. 1574), as

semelhanças de ritos indígenas com os praticados pelos judeus não indicariam uma relação

direta entre eles, mas sim uma atuação do demônio no Novo Mundo, que sempre busca

“remedar en sus idolatrías las ceremonias del culto divino” (LÓPEZ DE VELASCO, 1894,

4).

Segundo o pesquisador inglês Tudor Parfitt (2002, 22), a busca por vestígios

das tribos perdidas alcançou um grande e duradouro sucesso entre autores europeus não

apenas em relação às terras americanas, mas a regiões distantes e relativamente

desconhecidas em vários continentes158

: “[...] in part because it has become such a useful

channel for understanding unknown peoples and races and a convenient means of labeling

human entities. This myth has been used in the Western world as a device for

understanding the ‘other’ – often the savage ‘other’ that is the imagined opposite of

ourselves”159

.

Este sucesso é perceptível quando analisamos os relatos do período que

abordaram o problema da origem dos indígenas. Antes, no entanto, consideramos

importante ressaltar que nem todos os autores que estabeleceram os hebreus como

ancestrais de alguns ou todos os indígenas os associaram às tribos perdidas. Como pudemos

observar algumas páginas atrás, escritores como o espanhol Benito Arias Montano

158 “[...] com efeito, se Cristóvão Colombo não esperava descobrir a América, muniu-se de um intérprete da

língua hebraica, na pessoa do médico de bordo: Luiz de Torres, judeu recém-convertido. Esperava, portanto, encontrar na Índia ou na China descendentes desses israelitas perdidos” (VIDAL-NAQUET, 2008, 83).

159 Buscou-se também por indícios destas tribos em regiões como a Índia, Japão, partes da África e da

Oceania. Juan Gil (1992, 218-220) mostra a associação entre as tribos perdidas e as lendas em torno da

expansão promovida por Alexandre, o Grande: “Según una antigua tradición de probable origen sirio, que

recogen el Pseudo-Calístenes y el Pseudo-Metodio, Alejandro Magno, espantado de la bestialidad de unos

pueblos que había encontrado en los confines del Asia, los venció y, acorralándolos en un circo de montañas,

cerró el único paso, para evitar futuros desmanes y desafueros, con una puerta de hierro dela que les era

imposible salir, pues el macedonio la untó con una mágica brea […] se trataba ni más ni menos que de los 22

pueblos que habrían de arras la tierra en las postrimerías del siglo, poco antes de la aparición del Anticristo;

encabezaban su lista los bíblicos Gog y Magog, pero también engrosaban la sombría hueste los más clásicos

y no menos monstruosos cinocéfalos, entre otras etnias de nombre más transparente, como sármatas y alanos […] El paso del tiempo introdujo en la leyenda otra variación fundamental. En un principio, los pueblos

encerrados por Alejandro no tenían nada que ver con los judíos; después, no obstante se tendió a unir las

diez tribus perdidas, separadas del común de los mortales, con aquellas salvajes hordas cuyo avance frenaba

la puerta del macedonio. A decir verdad, la tentación era demasiado fuerte para que no cayera en ella

cristiandad”.

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selecionaram outras passagens bíblicas, como as relacionadas a Ofir, para formularem suas

hipóteses.

Um dos primeiros autores a identificar relações entre as tribos perdidas e os

nativos americanos e formular hipóteses sobre a chegada dos humanos à América foi o

manuscrito produzido na década de 1540 atribuído ao “doutor Roldán”. Nesta obra, a

ligação entre americanos e judeus poderia ser identificada através de vários indícios, como

a análise de passagens bíblicas que abordariam o tema e as comparações dos costumes e

das línguas de ambos os grupos. Ao abordar o comportamento dos indígenas, Roldán

afirma que práticas degeneradas (como o canibalismo, por exemplo) seriam compreensíveis

a partir de sua origem judaica, pois procederiam das punições divinas que teriam recaído

sobre as tribos perdidas devido ao seu comportamento160

.

De acordo com Gliozzi (2000, 54), as ideias presentes no manuscrito de Roldán

estão associadas às de outros autores que estabelecerem esta ligação, como Motolinía (que

apenas cita a relação dos índios com os judeus como uma hipótese, ainda que não seja a

mais plausível) e Diego Durán. Em sua Historia de las Indias de Nueva España (1580, mas

publicada apenas no século XIX), o dominicano espanhol afirma que a questão da origem

dos índios é extremamente complexa e poderia ser respondida definitivamente apenas por

inspiração divina. Na falta dela, contudo, restaria aos autores que se dedicaram ao tema

estabelecer conjecturas a partir da leitura e interpretação de trechos da Bíblia que,

associados às pinturas e relatos realizados pelos anciãos indígenas sobre o passado remoto

de seu povo, indicariam a ligação com as tribos perdidas de Israel161

:

“y dado el caso que algunos cuenten algunas falsas fábulas,

conviene á saber: que nacieron de unas fuentes y manantiales de agua; otros que

nacieron de unas cuevas; otros que su generación es de los dioses, etc.; lo cual

160 Para uma análise detalhada das ideias e argumentos propostos por Roldán em seu manuscrito, Cf.

GLIOZZI, 2000, 50-54.

161 Segundo Durán (1867, 6-7), os relatos indígenas trariam vestígios, ainda que deturpados, de várias

passagens bíblicas, como as que descrevem a abertura do Mar Vermelho, o envio do maná dado por Deus

durante o Êxodo (descrito como uma chuva de areia por parte dos americanos) além de passagens que

misturariam dois eventos, como a que atribui a seres gigantescos a construção de uma torre para alcançar o sol

destruída por Deus.

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clara y abiertamente se ve ser fábula, y que ellos mismos ignoran su origen y

principio, dado caso que siempre confiesen aver venido de tierras estrañas, y así

lo he hallado pintado en sus antiguas pinturas, donde señalan grandes trabajos

de hambre, sed y desnudez, con otras innumerables aflicciones que en él pasaron,

hasta llegar á esta tierra y poblalla, con lo qual confirmo mi opinión y sospecha

de que estos naturales sean de aquellas diez tribus de Israel, que Salmanasar,

Rey de los Asirios, cautivó y trasmigró de Asiria en tiempo de Oseas, Rey de

Israel, y en tiempo de Ezequías, Rey de Jerusalén, como se podrá ver en el cuarto

libro de los Reyes, cap. 17, donde dize que fue trasladado Israel de su tierra á los

Asirios, hasta el dia de hoy etc., de los quales dize es tierra remota y apartada

que nunca había sido auitada. A la qual auia largo y prolijo camino de año y

medio, donde agora se hallan estas gentes de todas las islas y tierra firme del

mar Océano, hácia la parte de Occidente” (DURÁN, 1867, 2).

Seguindo esta hipótese, o religioso conclui com um retrato altamente negativo

dos indígenas e a afirmação de que os sofrimentos infligidos pelos espanhóis a eles162

e sua

determinação em permanecer praticando idolatrias derivariam da relação “original”

estabelecida com os judeus. Como estaria apontado nas Sagradas Escrituras, Deus teria

prometido castigos extremamente rigorosos às tribos perdidas devido ao seu

comportamento e atitudes reprováveis: “qual le vemos cumplido en estas miserables

gentes”. A partir desta leitura, Durán não apenas legitima as atitudes tomadas pelos

espanhóis no Novo Mundo como argumenta que os índios merecem – devido às ações

praticadas por seus ancestrais – os maus-tratos que vinham sofrendo nas últimas décadas

(DURÁN, 1867, 3).

Ao mesmo tempo em que Durán e outros de seus contemporâneos partem da

questão da origem dos índios para enfatizar uma representação extremamente negativa dos

162 A própria derrota dos astecas para Cortés e seu pequeno exército seria fruto desta fraqueza “original”: “Y es mucho de notar que entre los demás males que Dios á esta gente promete, es un corazón cobarde, y

pusilánime y temeroso, para que ellos, siendo muchos huyesen de los pocos, cosa cierto de notar, que

desembarcando el Marques del Valle en esta tierra con solos trescientos hombres […] se atreviesen á

acometer á millones de indios que en la tierra auia, encaminado todo por la mano de Supremo Señor, que fue

su divina voluntad se cumpliese lo á estas gentes prometido en la Sagrada Escritura” (DURÁN, 1867, 3-4).

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judeus163

que, em alguns casos, se estenderia a todos os nativos americanos164

, outros

escritores percorrem o caminho inverso: a ligação com os judeus teria exercido uma

influência “positiva” entre eles. Este é o caso de Francisco Hernández em seu Antigüedades

de la Nueva España (c. 1575, mas inédito até o século XVIII). Nesta obra, o estudioso

espanhol enviado por Felipe II ao Novo Mundo para pesquisar questões farmacológicas se

nega a produzir respostas para a origem de todos os indígenas, limitando suas teorias aos

habitantes da região da Nova Espanha. Segundo Hernández, haveria uma dupla migração

para estas terras, o que, mais uma vez, traz consigo a percepção de que os indígenas não

eram um grupo homogêneo e a consequente hierarquização a partir de suas diferentes

procedências. De um lado, estariam os “bárbaros” chichimecas, que desconheciam a

agricultura, a pecuária e até o domínio do fogo e teriam migrado a partir de terras do norte.

Do outro, haveria um povo relacionado às tribos perdidas e, consequentemente, mais

“civilizado”, o que seria reforçado por indícios como aproximações linguísticas, passagens

bíblicas e costumes semelhantes165

.

É interessante observarmos que Francisco Hernández e Diego Andrés Rocha

adotam uma postura semelhante e, ao mesmo tempo, oposta sobre a associação entre os

indígenas e as tribos perdidas de Israel. Ambos defendem que os indígenas não descendem

de um único grupo, o que seria evidente através da percepção de que há grupos mais

civilizados – ou menos “bárbaros” – do que outros. Entretanto, enquanto Rocha atribui a

163 Jean Delumeau em sua História do Medo no Ocidente (2009, 414) descreve o forte sentimento antijudaico

existente no período, relacionado especialmente ao plano religioso: “Na Europa ocidental, o antijudaísmo

mais coerente e mais doutrinal se manifestou durante o período em que a Igreja, percebendo inimigos por toda

parte, sentiu-se presa entre os fogos cruzados de agressões convergentes. De modo que, no começo da Idade

Moderna, o temor aos judeus se manifestou sobretudo no plano religioso. Foi a cultura no poder que parece

tê-lo então alimentado”.

164 Luis Pericot y García (1936, 366) faz um compêndio das características negativas identificadas entre os

indígenas que teriam uma origem judaica: “una de ellas es la de ser ambos pueblos medrosos y tímidos […] el

ser muy incrédulos, ingratos, poco caritativos con pobres y enfermos, idólatras […] el sacrificio de los niños;

las prácticas supersticiosas y adivinatorias, e incluso el usar la muerte en cruz”.

165 “Hay quienes aseguran que todos éstos [texcocanos, mexicanos entre otros] vinieron de Palestina, atravesando un angosto mar, de las diez tribus que Salmanazar, rey de los asirios, condujo cautivos a Asiria,

reinando en Israel Oseas y en Jerusalén Ezequías, como se Lee en el libro cuarto de los Reyes [...] lo cual

aunque sea incierto, no me parecen conjeturas que deben despreciarse del todo […] Y además aquello que

fue predicho por los profetas de Israel, parece corresponder a los acontecimientos de estas gentes de manera

admirable” (HERNÁNDEZ, 2000, 136).

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ligação com as tribos perdidas aos grupos “inferiores”, Hernández relaciona a

ancestralidade judaica aos povos mais avançados.

A relação entre todos os indígenas ou determinados grupos e as tribos perdidas

foi, muitas vezes, associada a uma visão milenarista, onde o contato com as embarcações

europeias e a chegada de missionários seriam sinais inequívocos da aproximação do Juízo

Final. Na última década do século XVI, Jerónimo de Mendieta, em sua Historia

Eclesiástica Indiana (1596), defendeu que a origem dos indígenas estava relacionada à

dispersão dos hebreus pelo mundo (ainda que houvesse dúvidas sobre a época em que esta

migração teria ocorrido)166

e também à proximidade do fim dos tempos. Segundo este

franciscano, a hipótese mais provável para a origem dos indígenas seria a ligação com as

tribos perdidas: “¿Y quién sabe si estamos tan cerca del fin del mundo, que en estos se

hayan verificado las profecías que rezan haberse de convertir los judíos en aquel tiempo?”

(1980, IV, 539-540).

Postura semelhante, ainda que com premissas e argumentações muito

diferentes, está presente na Esperança de Israel (1650), livro composto por Manuel Dias

Soeiro (também conhecido como Menasseh ben Israel). Nele, o rabino de origem

portuguesa radicado nos Países Baixos167

defende que “los primeros pobladores de la

América, fueron parte de los diez Tribus, y que después los de Tartaria [...] les siguieron, y

hicieron guerra”168

. Para embasar seus argumentos, ben Israel inclui em sua obra (que

alcançou grande sucesso editorial no período, com dezenas de edições e traduções para o

166 “[…] o que vinieron después, de tierra de Sichen en tiempo de Jacob, cuando dieron a huir algunos y

dejaron la tierra; o en el tiempo que los hijos de Israel entraron en la tierra de promisión y la debelaron y

echaron de ella a los cananeos, amorreos y jebuseos. También podrían decir otros, que vinieron en las

captividades y dispersiones que tuvieron los hijos de Israel, o cuando la última vez fue destruida Jerusalén en

tiempo de Tito y Vespasiano, emperadores romanos. Mas porque para ninguna de estas opiniones hay razón

ni fundamento por donde se pueda afirmar más lo uno que lo otro, es mejor dejarlo indeciso, y que cada uno

tenga en esto lo que más le cuadrare” (MENDIETA, 1973, I, 88).

167 Para referências biográficas sobre Menasseh ben Israel, seus princípios intelectuais e suas relações com o

Brasil (o autor chegou a expressar o interesse de se mudar para o Novo Mundo, onde seria o primeiro rabino

da colônia portuguesa nas Américas), Cf. FALBEL, 1999.

168 Na introdução de sua obra, Ben Israel (1650, v) cita várias outras teorias aventadas no período sobre os

primeiros povoadores do Novo Mundo: “unos dixeron, que procedían de los Cartaginenses; otros, de los

Fenicios, o Chenahaneos; otros, de los Indios, o Chinos; otros, de los Noroegios; otro de la Isla Atlántica;

otros de los Tártaros; y aún otros e los diez Tribus: y todos ciertamente apoyan la opinión que siguen no con

demostración aluna, mas con muy ligeras y flacas conjeturas”.

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espanhol, latim, hebraico, inglês e holandês) o relato de Antonio Montesinos (ou Aaron

Levi), cristão-novo português que, ao chegar em Amsterdam, teria difundido suas

descobertas realizadas durante viagem às terras do novo continente.

Segundo o relato atribuído a Montesinos, os índios que o acompanhavam em

suas expedições pela província de Quito teriam afirmado que os sofrimentos infligidos

pelos espanhóis eram merecidos, pois seriam uma represália ao tratamento que haviam

dado no passado a “una gente santa y la mejor del mundo” (BEN ISRAEL, 1650, 2).

Durante o período que permaneceu preso pela Inquisição em Cartagena das Índias,

Montesinos teria começado a proferir involuntariamente em voz alta que os índios eram

oriundos dos hebreus, o que o teria levado a suspeitar de sua sanidade.

Após ser libertado, o viajante espanhol teria encontrado um indígena,

Francisco, que o convidou a participar de uma dura viagem onde ele poderia encontrar as

respostas para as suas dúvidas. Ao alcançar as margens de um rio, teria sido dito a ele que

“aquí as de ver a tus hermanos”. Em seguida, alguns indígenas teriam se aproximado e o

abraçado, enquanto afirmavam serem filhos de Abraão e citavam passagens do

Deuteronômio que defendiam que “o Senhor nosso Deus é o único Senhor” (Dt, 6,4). Ao

questionar o indígena que o acompanhava, Montesinos teria sido informado que “tus

hermanos los hijos de Israel, los truxo Dios a esta tierra, haziendo con ellos grandes

maravillas, muchos asombros, cosas que si te las digo, no las as de crer, y esto me lo

dixeron asi mis padres”. No entanto, os outros grupos humanos que teriam chegado

posteriormente ao continente teriam sido estimulados por seus feiticeiros a causarem

muitos sofrimentos aos descendentes do povo hebreu (“tratamoslos peor de lo que

Españoles nos tratan”) que, antes de serem derrotados completamente, teriam profetizado

que: “al cabo de los tiempos, ellos serán señores de todas las gentes del mundo, vendrá a

esta tierra gente que os traiga muchas cosas, y después de estar toda la tierra abastecida,

estos hijos de Israel saldrán de donde están, y se enseñorearan de toda la tierra, como era

suya de antes” (BEN ISRAEL, 1650, 13-15).

A narrativa atribuída a Montesinos termina com a indicação de que os poucos

hebreus que teriam sobrevivido aos ataques inimigos passaram, a partir de então, a rechaçar

qualquer tentativa de contato com os grupos indígenas, estabelecendo exigências que, até

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aquele período, não teriam sido cumpridas integralmente. Contudo, os últimos tempos

teriam sido pródigos em novidades. Três delas se destacariam, pois teriam sido muito

festejadas pelos remanescentes das tribos perdidas: “la primera, la venida de los Españoles

a estos reynos, la segunda, la venida de navíos en la mar del Sur; la tercera, tu venida

[Montesinos]: todas tres las an festejado mucho, porque dizen se cumplen prophecias”. Por

fim, o viajante, antes de retornar à Europa, teria sido visitado por três dos hebreus

americanos que garantiram que, após a derrota dos espanhóis, seu povo seria retirado do

cativeiro em que se encontravam (BEN ISRAEL, 1650, 15-16).

A partir deste relato, Menasseh ben Israel passa a desenvolver suas hipóteses

sobre a questão da colonização inicial da América, reforçando a ideia de uma dupla

migração que, assim como em vários outros casos observados acima, seguia uma lógica

hierarquizadora. O rabino português é claro ao afirmar que as teorias que relacionam os

indígenas às tribos perdidas de Israel estão erradas, pois outro povo – os inferiores tártaros

– teria chegado à região, a conquistado e, por consequência, “empurrado” os hebreus para

algumas poucas terras distantes e isoladas no interior169

. Entretanto, o contato entre os dois

povos teria feito com que alguns dos “bárbaros” índios tártaros170

adotassem

comportamentos e costumes dos superiores hebreus. Não por acaso, os indígenas da Nova

Espanha, considerados mais avançados do que os outros grupos americanos, teriam sido os

que mais teriam absorvido características dos hebreus, como a circuncisão, a manutenção

de um fogo perene em seus altares além de notícias sobre eventos como a criação do mundo

e o dilúvio universal.

169 “[…] porque aun que estos a mi ver, fueron los primeros pobladores, después, a caso como sucedió a los

Espanoles, vinieron nuevas gentes de la India oriental, donde es fácil la navegación a la tierra de nueva

España, pasando a quel estrecho de mar que ay entre la misma India, y el reyno de Anian, que ya es tierra

firme, de nueva España: y de aquí fueron poblando las mas tierras hasta el fin del Piru. Estos pues

prevaleciendo en fuerças, les hizieron guerra, con que le fue necesario (como dize nuestro Montezinos)

retirarse a lo mas interior, y oculto de aquellas regiones, por permission divina: para que se cumpliesse la

Prophecia de Moseh, hare cessar de los hombres su memoria” (BEN ISRAEL, 1650, 23-24).

170 O autor é claro ao descrever as diferenças que separariam estes dois grupos desde suas origens: “Que sean israelitas, que ayan perdido sus ritos y ceremonias, claro está ser falso: por qué los judíos [...] fueran la

gente más dispuesta, de buen rostro, y lindo entendimiento del mundo: como pues estos pueden ser los indios,

qué carecen de todo esto: feos de cuerpo, y de rudo entendimiento? Y como se puede dar, que perdiesen de

todo su propia lengua, y los caracteres Hebraicos; Y sobre todo la religión, que fuera de la patria, se guarda

con mayor cuidado, como avemos mostrado” (BEN ISRAEL, 1650, 118).

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Ao final de sua obra, Menasseh ben Israel (1650, 97) sistematiza suas principais

conclusões171

e utiliza a questão da origem dos índios e o conteúdo do relato de Montesinos

em suas reflexões sobre a proximidade do fim do cativeiro dos judeus e, mais ainda, do fim

dos tempos172

. Segundo o rabino, ainda que não fosse possível afirmar categoricamente

quando estes eventos iriam acontecer, sua interpretação de passagens bíblicas e os últimos

eventos ocorridos no Novo Mundo e na Europa indicavam que eles estavam próximos, uma

vez que todas as profecias já teriam sido cumpridas.

As hipóteses formuladas por ben Israel são interessantes em relação à

percepção da multiplicidade dos nativos americanos, crescente ao longo do século XVI e

praticamente generalizada no século seguinte entre os autores que analisam as possíveis

origens destes grupos. Ainda que haja a defesa de uma procedência única a todos os

indígenas (uma vez que os hebreus americanos teriam permanecidos isolados em regiões do

interior do continente), o rabino enfatiza em vários momentos que há diferenças muito

grandes entre eles, o que impossibilitaria o agrupamento de todos os nativos em uma

mesma categoria e poderia ser explicado apenas por uma ação externa, no caso, o contato

com os superiores hebreus.

A teoria de que os indígenas em geral – ou grupos específicos de americanos

isolados – seriam descendentes dos hebreus e a interpretação de que o contato com eles

representaria um sinal da proximidade do fim dos tempos alcançou grande sucesso na

Inglaterra e em suas colônias americanas durante o século XVII173

. De acordo com

171 “De todo lo dicho se infieren las conclusiones siguientes: I. Que las Indias Occidentales, fueron

antiguamente habitadas de parte de los diez Tribus, que desde la Tartaria pasaron por el Estrecho de Anian,

o de la China y que aun oy viven ocultos por divina providencia, en las partes incognitas de la dicha

América. II. Que los Tribus no están solamente en un lugar, más en diversos: pues vemos que los Prophetas

predizen su restitución a la patria de varias regiones, y particularmente Esayas los coloca en ocho […] IV.

Que aún oy se consevan en su religión judaica. V. Que es fuerça se cumplan las Prophecias, de su reducción

a la patria […] VII. Que no tendrán como de antes Reyno separado de Iehuda, mas se unirán todos los doze

Tribus debaxo de un príncipe, que es el Messiah hijo de David, y nunca más serán expulsos de sus tierras”

(BEN ISRAEL, 1650, 114-115).

172 Para uma análise da visão milenarista da obra de Menasseh ben Israel e uma comparação com os escritos do padre Antônio Vieira, Cf. COSTIGAN, 2005.

173 “There was a acute sense of Messianic expectation among Christians, especially Protestants, during the

first half of the seventeenth century. These stirrings had been stimulated by the appearance of the great

comets in 1618, 1648 and 1652; by the devastating epidemics, especially in the United Provinces; by the mass

slaughter and loss of life of the Thirty Years War; by the Civil War in England, which overturned the

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Nachman Falbel, a interpretação feita por Menasseh ben Israel de que a redenção dos

hebreus e o fim dos tempos ocorreriam apenas quando o povo de Israel estivesse espalhado

pelos quatro cantos do mundo estaria associada não apenas às suas teorias sobre o

povoamento das Américas mas também a seu “esforço em convencer a Inglaterra de

Cromwell, onde seu livro tivera eco formidável entre religiosos e visionários174

, em obter

uma resolução do Parlamento britânico para readmitir oficialmente a volta dos judeus, após

a expulsão em 1290, no tempo de Eduardo I” (FALBEL, 1999, 171).

Dentre outros escritos175

, a obra do inglês Thomas Thorowgood, Jewes in

America (1650), se destaca. Nela, o pregador da região de Norfolk defende que os

indígenas seriam, muito provavelmente, de origem judaica: “for surely they are alike in

many, very many remarkable particulars, and if they be Jewes, they must not for that be

neglected”. Partindo deste princípio, o autor arrola uma longa série de argumentos que

comprovariam sua afirmação, desde associações entre passagens bíblicas com descrições

feitas pelos próprios grupos americanos até a identificação de que, apesar do longo período

de isolamento, “the rites, fashions, ceremonies, and opinions of the Americans are in many

monarchy and the natural order of things; and by the execution of King Charles I in 1649. For Jews the

massacres in the Ukraine in 1648-9 allied with the persecution of the Marranos in Spain and Portugal had a

similar effect” (PARFITT, 2002, 77).

174 Amy Sturgis (1999, 16-17) aventa algumas hipóteses para o grande interesse dos autores ingleses pelo

destino dos hebreus e sua possível ligação com o Novo Mundo em meados do século XVII: “By the mid–

seventeenth century, the English were exposed to several concepts that might have predisposed them to find

Jewish ancestry for the Native Americans a plausible or attractive theory. First, English thinkers had

considered Jewish ancestry before, but for the English rather than the Amerindians […] Second, linguists by

this time had suggested widespread comparisons with the Jews via the universal language theory […] Third,

the theory fit the preexisting cosmology of the millenarians in England, who believed the last days

approached”. Já para Lucia Helena Costigan (2005, 129), o sucesso da ligação entre judeus e indígenas também poderia estar relacionado à União Ibérica: “Uma vez que naquele momento um crescente número de

judeus sefarditas e de cristão-novos portugueses estava nos Países Baixos, não é difícil supor que no

imaginário europeu os sefarditas em geral passassem a ser vistos como originados das tribos de Benjamin e de

Jacó e os índios das Américas como descendentes das dez tribos perdidas de Israel”.

175 Um ano antes da publicação de Thorowgood, Edward Winslow lançou seu The Glorious Progress of the

Gospel Among the Indians in New England (1649), onde incluiu “several cultural examples of the native

Americans’ similarity to Jews, including how they followed ‘the ceremonial law of Moses’ by practising ritual

purifications, expressed sober interest in matters of spirituality, believed in eternal rewards and punishment,

and recounted a narrative of a great flood. From the evidence he saw and recounted, Winslow concluded that

the Amerindians were descendants of the lost Ten Tribes of Israel” (apud STURGIS, 1999, 17-18).

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things agreeable to the custome of the Jewes. Not onely prophane and common usages, but

such as be called solemn and sacred” (THOROWGOOD, 1650, 6)176

.

Além destes indícios, Thorowgood (1650, 42-43) analisa também outras

hipóteses sobre a origem dos indígenas, afirmando que elas não invalidariam sua hipótese.

Pelo contrário, ideias como as defendidas por José de Acosta, que apontava para uma

possível ligação por terra entre os continentes americano e asiático, reforçariam suas

conclusões, pois forneceriam a possível rota percorrida pelas tribos perdidas durante seu

longo processo de migração, uma vez que: “It is an indubitable thing, that the one world is

continued, and joyned with the other”. Em seguida, Thorowgood formula respostas para

questões que poderiam inviabilizar sua teoria, como o crescimento populacional vertiginoso

que seria necessário para que os hebreus povoassem todo o continente americano (algo que

poderia ser comprovado pelos relatos de viajantes que apontavam nativos com dezenas ou

até centenas de filhos) e as explicações para o profundo processo de barbarização que teria

ocorrido com os hebreus nestas terras (fruto das dificuldades do processo de migração)177

.

Por fim, o religioso inglês conclui sua obra com fortes ataques à atuação espanhola no

Novo Mundo (que teria incentivado práticas como o canibalismo ao invés de combatê-las),

declarações de apoio à atuação da Coroa inglesa nestas terras e a defesa de que a conversão

dos indígenas era uma necessidade e, seu sucesso, inexorável178

.

A obra de Thorowgood também alcançou grande repercussão entre os autores

ingleses do período. Entre outros, destacamos John Dury, clérigo escocês para quem o

reaparecimento das tribos perdidas ocorreria pouco antes do fim dos tempos, o que o levou

176 Na tentativa de reforçar as relações entre as práticas indígenas com as dos hebreus, Thorowgood (1650,

16) dedica várias páginas de sua obra à análise do canibalismo. Segundo o autor, o consumo de carne humana

teria sido uma das maldições que teria recaído ao povo de Israel devido à sua desobediência aos desígnios

divinos.

177 “It is no marvaile then, supposing the Americans to be Jewes, that there be so few mentionings of Judaicall

rites and righteousnesse among them; it maybe, and is, a wonderfull thing rather, that any footstep or

similitude of Judaisme should remaine after so many ages of great iniquity, with most just divine displeasure

therupon, and no possibility yet discerned how they should recover, but manifest necessities almost of precipitation into further ignorance, grossenesse and impiety” (THOROWGOOD, 1650, 52).

178 Thorowgood (1650, 62-63) chega a apontar em alguns momentos de sua obra a possibilidade dos índios, a

despeito das centenas de semelhanças arroladas ao longo do texto, não serem de origem judaica. Porém, isto

não alteraria suas descrições e análises sobre os grupos americanos bem como a necessidade urgente de uma

ação missionária inglesa.

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a escrever um discurso introdutório rapidamente incorporado ao livro de Thorowgood

(PARFITT, 2002, 74). Nele, Dury afirma que a teoria da ligação dos índios com os hebreus

poderia parecer, a princípio, incrível e extravagante, contudo, “when all things are laid

rationally and without prejudice together, there will be nothing of improbability found

therein”179

. Assim como Thorowgood, Dury conclui sua obra com uma reflexão onde

defende que a confirmação destas teorias seria um indicador de que o fim dos tempos

estava próximo, ainda que não fosse possível precisá-lo com acuidade.

Além do relato de John Dury, a obra de Thorowgood passou a incorporar

também descrições sobre a ação missionária nas terras americanas, em especial na região da

Nova Inglaterra, no que o escritor inglês denomina como “The sucesse of the Novangles in

Gospellizing the Indians” (1650, 104). Nestes relatos, o centro das atenções recai sobre a

atuação do missionário puritano John Eliot180

. Fortemente influenciado pela narrativa

atribuída a Antonio Montesinos e pelas teorias sobre a origem dos americanos formuladas

por autores como Menasseh ben Israel e Thomas Thorowgood, Eliot, inicialmente defensor

da origem tártara dos indígenas, passa a defender em seus sermões e escritos a hipótese de

que eles seriam hebreus, o que poderia ser comprovado através de passagens bíblicas e pela

existência de práticas como a circuncisão entre alguns grupos nativos. Segundo Eliot, os

indígenas teriam uma origem dupla, ainda que ambas derivassem do povo hebreu. Para ele,

os primeiros habitantes da América seriam os descendentes de Éber, da linhagem de Sem.

Posteriormente, a região teria sido colonizada por um segundo grupo de hebreus, os

179 Dury afirma que a ligação entre índios e judeus seria corroborada pelo relato atribuído a Antonio

Montesinos, que teria chegado até ele através das correspondências trocadas com Menasseh ben Israel

(THOROWGOOD, 1650, s/p).

180 Outros missionários protestantes que atuaram em terras americanas também formularam hipóteses sobre a

origem dos indígenas. No entanto, estas formulações não alcançaram a mesma repercussão obtida pelos

escritos de Eliot. Como exemplo, podemos citar Joseph Mede e Henry More, que em textos produzidos em

meados do século XVII (1634-35 e 1660, respectivamente), apresentam uma interpretação mais negativa

sobre os indígenas: “As Europe was, according to them, reaching its millenarian climax, that would occur

between 1650-1680, with the conversion of the Jews, God was revealing aspects of the world hitherto

unknown, through allowing for the increase of human knowledge, partly through the extension of navigation and commerce. The Indians, so discovered, were the children of Satan, who had been driven out of the Old

World when Jesus arrived, and now were to be destroyed by his Second Coming. The Indians were purely

malevolent beings whose total defeat was to be their only contribution to the course of divine history. Henry

More delighted in retelling the goriest Spanish tales about the Indians to show how demonic they were”

(POPKIN, 1989, 66).

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remanescentes das tribos perdidas. Porém, “the settlement of the Lost Tribes in the Eberite

lands did not lead to intermarriage, for the two peoples managed to preserve their

ancestral distinctions. Nevertheless the Tribes and the Eberites welcomed interaction

because they shared a similar ‘language and spirit’” (COGLEY, 1986-1987, 218).

É importante ressaltarmos que a ligação entre os indígenas e as tribos perdidas

de Israel não era uma unanimidade dentro da Inglaterra. Como apontado por Tudor Parfitt

(2002), alguns escritores identificaram um destino diferente para este grupo hebreu, como

Giles Fletcher, que os associa aos tártaros. Já outros, como Sir Edward Spencer e Thomas

Fuller, rebateram as argumentações a este respeito propostas por Menasseh ben Israel181

. A

crítica mais contundente a esta teoria, contudo, foi feita por Hamon L’Estrange, em seu

Americans no Jewes, or Improbabilities that the Americans are of that race (1651). Nesta

obra que, desde o título, é uma refutação direta aos argumentos elaborados por

Thorowgood182

, L’Estrange defende que a origem dos indígenas não estava associada às

tribos perdidas de Israel. Para ele, a resposta poderia ser encontrada na linhagem de Sem,

que teria se dispersado pelo mundo após a destruição da Torre de Babel (além desta

hipótese, o autor deixa o campo aberto para outras teorias, como a da ligação dos

americanos com os tártaros).

Até mesmo o clérigo puritano John Eliot, com o passar dos anos, passou a ser

menos categórico sobre esta possível ligação, ainda que não a tenha negado (COGLEY,

1986-1987, 221). Outro missionário inglês que atuou em terras americanas, John Cotton,

também apresentou ressalvas quanto a esta associação. A partir de interpretações de

passagens do livro de Apocalipse, Cotton propôs que os índios seriam gentios de origem

181 “Some conceive the modern Americans of the Jewish race, collecting the same from resemblance in rites,

community of customs, conformity of clothes, fragments of letters, foot-steps of knowledge, ruins of language

(though by casual coincidence some straggling words of the Athenians may meet in the mouth of the veriest

barbarians) […] and lately a Jewish Rabbi of Amsterdam tells us that beyond the Cordillera hills and river

Maragnon, a fair people are found […] different in religion from the rest of the Indians, whom he will have to

be the Ten Tribes there remaining in a body together […] For mine own part, I behold his report as the

twilight, but whether it will prove the morning twilight, which will improve into full light, or that of the evening, darkening into silence and utter obscurity, time will discover” (PARFITT, 2002, 85-86).

182 Para combater a hipótese judaica, L’Estrange rebate vários dos argumentos apresentados por Thorowgood

(afirmando que eles não existem ou não são indicativos de uma ligação entre índios e judeus) e conclui que

esta teoria foi criada pelos espanhóis para tentarem defender sua atuação no Novo Mundo (GLIOZZI, 2000,

345-348).

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tártara. A interpretação milenarista, porém, permanecia inalterada. Para este religioso, o

final dos tempos estaria se aproximando e a apresentação da palavra divina aos indígenas

seria parte dele, ainda que isto só pudesse ocorrer de forma maciça após a conversão dos

judeus183

.

Os debates sobre a ligação dos judeus com os indígenas foram analisados por

Richard Cogley como base para as diferentes posturas adotadas pelos ingleses em relação

aos grupos americanos. Segundo as interpretações deste historiador norte-americano,

argumentos como o de John Cotton, por enfatizarem a necessidade da conversão dos judeus

antes da salvação dos indígenas, teriam sido bem recebidos por um grande número de

colonizadores “because it provided another convenient excuse to keep on delay ing

evangelical activities”. Por outro lado, a hipótese de Eliot, ao relacionar os dois grupos

(índios e judeus) reforçaria a necessidade da atuação missionária e, consequentemente, a

conversão dos indígenas, uma vez que eles já estariam aptos. Ainda de acordo com Cogley,

independentemente da postura e das conclusões adotadas por ambos os autores, tanto

Cotton quanto Eliot identificam uma ligação indissociável entre o problema da origem dos

indígenas, as possibilidades e formas de conversão que deveriam ser efetuadas e a

proximidade do fim dos tempos184

.

Interpretação diferente é dada por Amy Sturgis, para quem a ênfase dada às

motivações missionárias e teológicas excluiria o cerne da questão, os objetivos políticos

que teriam pautado os autores que defenderam a ligação dos indígenas com os hebreus.

Segundo a pesquisadora, apenas os objetivos políticos explicariam o fato de personagens

tão díspares como o protestante pró-Cromwell John Dury e o rabino luso-holandês

Menasseh ben Israel defenderem interpretações semelhantes sobre a natureza dos

americanos: “the timing of their works suggests a political rationale” (STURGIS, 1999, 19-

183 “Cotton was claiming that the Almighty intended to impart his grace en masse to the Jews before he

granted it to the Indians and to the other Gentile nations. Since grace was God's alone to give, the Gentiles'

mass conversion was not possible prior to that of the Jews. In the expression of the day, there was ‘a seal set

upon the hearts’ of the Gentiles until after such future time as the Jews had been converted” (COGLEY, 1986-1987, 212).

184 Esta postura fica evidente logo na abertura de seu artigo. Ao descrever a falta de atenção dada ao tema da

origem dos indígenas por parte de Daniel Gookin em seu Historical Collections of the Indians in New

England (1674), Cogley (1986-1987, 210-211) afirma que isto só seria possível porque, neste período, os

puritanos já não tinham mais uma crença tão arraigada de que estavam vivendo a última era da história.

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20)185

. De um lado, os puritanos ingleses, ao defenderem esta hipótese, auxiliavam na

obtenção de fundos para o trabalho missionário no Novo Mundo advindos da liquidação de

bens da Coroa (através da Society for the Propagation of the Gospel in New England), o

que ia ao encontro dos objetivos de Cromwell. Do outro, para os judeus, esta teoria seria

uma forma de invalidar os argumentos que impediam seu retorno à Inglaterra, o que, mais

uma vez, seria positivo para os anseios políticos de Cromwell.

Já para John Leddy Phelan, as dúvidas em torno da procedência do homem

americano seriam apenas derivações de uma questão anterior e maior, a proximidade do fim

dos tempos. De acordo com o historiador norte-americano, a relação dos indígenas com as

tribos perdidas poderia ser compreendida “only after the equation ‘the New World equals

the end of the world’ is understood”. Phelan afirma ainda que, para além da explicação

sobre a origem dos indígenas, a popularidade desta teoria só poderia ser compreendida a

partir do “apocalyptical mood of the Age of Discovery. If the Indians were in reality the lost

tribes, such a discovery would be convincing evidence that the world was soon to end”

(PHELAN, 1970, 25).

Dessa forma, podemos observar que para alguns historiadores as premissas

bíblicas seriam apenas a base para argumentações pautadas por interesses econômicos ou

políticos. Já para outros, estas questões seriam irrelevantes – ou, ao menos, extremamente

secundárias – para as formulações sobre a natureza dos indígenas e, consequentemente, a

maneira com que o contato com os europeus deveria ocorrer e o processo de conversão.

Independentemente da postura adotada, fica evidente o processo constante de retorno a

diferentes elementos da tradição cristã em busca de personagens, locais ou eventos que

contivessem alusões, profecias ou explicações sobre as terras da quarta parte do Mundo e

seus habitantes.

iv) a tribo de Issacar

185 A autora reforça seu argumento apontando que as críticas a esta teoria feitas pelo monarquista Hamon

L’Estrange se dedicavam não apenas às aproximações feitas por Thorowgood entre judeus e índios, mas

também à atuação de Cromwell na Inglaterra (STURGIS, 1999, 19-20).

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Enquanto muitos escritores de diferentes épocas e regiões relacionaram a

origem dos indígenas às tribos perdidas de Israel como um todo, alguns poucos buscaram

associar os americanos a uma tribo específica, a liderada por Issacar. É evidente que esta

associação trazia consigo uma série de representações específicas que, antes de serem

analisadas, exigem um retorno ao texto bíblico. De acordo com o livro de Gênesis, ao

perceber que sua morte se aproximava, Jacó tomou uma série de medidas: pediu para não

ser sepultado em terras egípcias, adotou dois de seus netos (Manassés e Efraim, filhos de

José que passaram a liderar uma tribo cada um) e agrupou todos os seus descendentes para

que pudesse os abençoar e anunciar a cada um deles seus dias futuros. Em relação a Issacar,

as palavras teriam sido as seguintes: “Issacar é um asno forte, que está deitado dentro das

suas estacadas. Viu que o repouso era bom, e que a terra era ótima; curvou seus ombros

para levar pesos, e sujeitou-se aos tributos” (Gên, 49, 14-15).

A associação entre a imagem do líder de uma das tribos perdidas com a de um

asno forte e apto a suportar grandes cargas e tributos foi utilizada como base para a

representação dos nativos americanos pelo padre franciscano Pedro Simón. Em seu

Noticias Historiales de las conquistas de Tierra Firme en las Indias Occidentales (1626), o

religioso de Nova Granada defende que a América teria recebido três ondas migratórias: a

primeira teria ocorrido em período anterior ao dilúvio universal (composta pelos extintos

gigantes); em seguida, teria havido uma migração de ancestrais dos grupos indígenas

responsáveis pela colonização de todo o continente; e, por fim, “[...] la otra, la de nuestros

españoles”. Segundo o autor, haveria apenas duas hipóteses plausíveis para a origem dos

indígenas: a cartaginesa (através de embarcações que teriam alcançado estas terras186

) e a

relacionada à tribo de Issacar:

186 O autor deixa implícito que a escravidão dos nativos americanos poderia ser justificada historicamente.

Para ele, os espanhóis teriam sido espoliados e explorados pelos cartagineses (ancestrais dos índios) durante

séculos, agora estaria ocorrendo o contrário, com os espanhóis explorando os índios (descendentes dos

cartagineses): “si es verdadero que estas Indias se poblaron de los fenices ó cartaginenses, es una cosa harto

digna de advertir, que después de tantos años que los fenices fueron señores de España, y hacían á españoles como á sus vasallos, y gente simple, que era en aquel tiempo labrar las minas, romper y trastornar los

montes, y sacar la inmensidad de oro y plata que había en ellas, para llevar á su Cartago, haya revuelto Dios

los tiempos y estado de las cosas, de manera que vengan ahora los fenices por mandado de los españoles á

cavar sus minas y darles el oro y plata que tienen en su tierra, con que parecen les hacen pago de lo mucho

que de esto dieron los españoles en España á sus antecesores” (SIMÓN, 1882, 47).

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“[…] parecerme originarse estos indios de los hijos de Israel; pero

no de todas las diez tribus que se perdieron, sino sólo de la tribu de Isachar;

porque veo cumplida en ellas, cuanto al, sentido literal, la profecía que á la hora

de su muerte dijo el Patriarca Jacob había de sucederle á esta tribu entre las

demás cosas que profetizó á los demás sus hijos […] Isachar ha de ser un asno

fuerte, que ha de estar echado entre términos; vio la holganza que sería buena, y

la tierra bonísima; puso su hombro para llevar la carga, y sirvió para pagar

tributos” (SIMÓN, 1882, 48).

Para Simón, esta segunda hipótese seria comprovada por indícios como a

inexistência de animais de carga no continente, papel este que caberia aos indígenas, e

estaria diretamente relacionada ao comportamento “bárbaro e degenerado” destes homens

que, não por acaso, agiam como “asnos”187

, o que só poderia ser superado através da ação

missionária.

A ligação entre os habitantes do Novo Mundo e Issacar foi apontada por outros

autores, como Pedro Ruiz Bejarano (SOLÓRZANO Y PEREIRA, 2001, 349), Balthasar de

Medina188

, Antonio Leon Pinelo189

e Antonio Vázquez de Espinosa, que em seu Compendio

y descripción de las Indias Occidentales (c. 1630, mas publicado apenas no século XX)

analisa a “bien dificultosa” questão da origem dos índios. A partir da argumentação feita

por José de Acosta, o carmelita defende que os continentes americano e asiático eram

187 “[…] eran como asnos, abobados, alocados é insensatos, y que no tenían en nada matarse ni matar, ni

guardarían verdad si no era en su provecho; eran inconstantes, no sabían qué cosa eran consejos,

ingratísimos y amigos de novedades […] Cuanto más crecían se hacían peores: hasta diez ó doce años

parecía que habían de salir con alguna crianza y virtud, y de allí en adelante se volvían como brutos

animales, y en fin, dijo que nunca crió Dios gente más cocida en vicios y bestialidades sin mezcla de bondad

ó policía, y que se juzgase para qué podían ser capaces hombres de tan malas mañas y partes […] Todas

estas cosas, es cosa cierta se hallan en común en todos estos indios, como lo tenemos bien experimentado en

el trato que hemos tenido con ellos, sino otros particulares y peregrinos vicios, que en particulares

Provincias se han hallado” (SIMÓN, 1882, 31).

188 Segundo Huddleston (1967, 88), Medina também foi um dos defensores da ligação entre os indígenas e a

linhagem de Issacar. Contudo, há na obra deste religioso mexicano a defesa de uma origem múltipla dos americanos: os mexicanos seriam descendentes de Issacar, já os nativos de Iucatã e da América do Sul seriam

descendentes de Joctan, pai de Ofir.

189 Leon Pinelo inclui no frontispício de seu Tratado de las confirmaciones reales de encomiendas (1620) a

citação bíblica onde Issacar é associado por seu pai a um animal de carga sob a imagem de um indígena que

representaria a região do Peru.

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ligados – ou extremamente próximos – no período anterior ao dilúvio universal, o que teria

possibilitado a migração de grupos humanos e de animais. Em relação aos indígenas, a

hipótese mais plausível seria a de que esta migração teria sido feita pela “mejor gente que

en aquellos tiempos auia en el mundo, que eran de los diez Tribus de Israel”. Mais

especificamente, a ligação se daria com uma tribo específica, a de Issacar, o que poderia ser

confirmado pelas profecias bíblicas e pelo comportamento dos nativos, que carregam

grandes cargas e sofrem castigos sem se queixarem190

.

É importante observarmos que, ainda que defenda uma origem comum a todos

os indígenas, Vázquez de Espinosa deixa em aberto a possibilidade de uma migração

múltipla. Com isso, não apenas os descendentes de Issacar poderiam ter alcançado estas

terras, mas também Ofir e seus homens, além de grupos tártaros, chineses, cartagineses

entre outros povos, por terra ou mar e em diferentes épocas191

. A razão para esta origem

múltipla estaria presente nos próprios indígenas, cuja variedade de línguas, hábitos, leis e

crenças poderia indicar um contato com diferentes povos (VÁZQUEZ DE ESPINOSA,

1948, 42).

Por outro lado, esta associação entre os habitantes do continente americano e a

tribo de Issacar foi negada por outros autores. Entre eles, destacamos o padre agostiniano

Antonio de la Calancha192

e o já citado jurista Juan de Solórzano y Pereira (2001, 349), para

quem a existência de semelhanças entre o comportamento dos indígenas e as descrições

190 “[…] porque así como los asnos llevan la carga, y muchas vezes palos, sin volverse contra los que los cargan y maltratan, así los Indios son como asnos fuertes en llevar cargas de peso muchas leguas, que

admira y espanta, que con tanta carga y peso caminen tanto, que Españoles sin ella no pueden, como lo vi y

considere el tiempo que estuve en aquellos Reinos del Piru, Nueva-España, Honduras y Nicaragua, y las mas

vezes son tratados con aspereza, y aun llevan palos, coces, ó bofetadas, sin que se vuelvan contra los que los

maltratan, como note y advertí todo el tiempo que estuve en aquellos Reinos” (VÁZQUEZ DE ESPINOSA,

1948, 38).

191 “[…] parece que no solo preceden los Indios de las naciones que se han dicho passaron en diferentes

tiempos a poblar aquel Nueuo mundo sino tambien de otras por diferentes caminos y viages, vnos lleuados de

tormentas, otros buscando, e inculcando nuevas tierras, con nauegaciones de proposito, y las fueron

poblando, como algunos Escritores dizen, que los Cartagineses que fueron grandes y diestros marineros

descubrieron la isla Espanola [...] Otros pudieron ir por la parte de Sueuia, llamada Escandinauia, y de otras naciones Setentrionales de la Europa a poblar la tierra del Labrador […] Tambien pudieron passar del

Africa los de aquellas regiones, y los Tartaros y Chinos mezclados, y confederados con los de los diez Tribus,

y de otras naciones por los viajes y caminos referidos” VÁZQUEZ DE ESPINOSA, 1948, 42).

192 De acordo com Gliozzi (2000, 78-80), Calancha dedica várias páginas de sua Crónica moralizada de la

Orden de san Agustín en el Perú (1639) para rebater os argumentos utilizados por Simón em sua obra.

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bíblicas sobre esta tribo não poderiam ser utilizadas como fundamento para apontar uma

relação direta entre elas.

A pequena historiografia que abordou este tema interpretou esta hipótese como

sendo um reflexo dos interesses econômicos e políticos dos espanhóis sobre as terras e

habitantes do Novo Mundo. Seguindo este raciocínio, Gliozzi afirma que a alusão a Issacar

feita pelo padre Simón seria parte da disputa travada no período entre os interesses da

Coroa espanhola e os dos colonos que viviam na América. A representação dos índios

como uma espécie de animal de carga que aceitava passivamente esta função teria sido a

forma encontrada pelo religioso para defender a legitimidade da encomienda193

. Postura

semelhante é adotada por Teresa Martínez Terán, ainda que a autora não faça uma divisão

entre os interesses dos colonos e os da Coroa. Para ela, a ligação dos índios com Issacar

estabeleceria uma associação maior com o animal do que com os próprios hebreus, o que

faria “parte del proyecto de los conquistadores y expresa el sentir de una parte de las

órdenes monacales identificada con sus intereses” (MARTÍNEZ TERÁN, 2001, 153). Já

para Jorge Cañizares-Esguerra, esta associação seria ilustrativa da leitura tipológica

utilizada no período para se interpretar os eventos contemporâneos através de passagens

bíblicas que as prefigurariam194

, o que (no caso do frontispício da obra de Leon Pinelo,

analisado pelo autor) reforçaria a legitimidade da encomienda (CAÑIZARES-ESGUERRA,

2009, 248).

Contudo, para além da busca pelo que haveria de “verdadeiro” nos relatos do

período195

ou pelos “reais objetivos” dos autores196

ao associar os indígenas a Issacar, às

193 “En s’appuyant sur la prophétie de Jacob, Simón entend soutenir la légitimité de la concession des indios

en encomienda, la légitimité de la transformation des impôts dus à la couronne en services personnels pour

les colons, la necessite du travail force des indios et leur disposition naturelle pour l’esclavage” (GLIOZZI,

2000, 77).

194 “Typology became a particularly effective way of understanding the two worlds’ encounters across time

and space. The Bible, the classics, nature, and the Amerindian past could all be read together prefiguratively,

cast into a net of relations reinforcing discourses of possession and colonial legitimacy” (CAÑIZARES-

ESGUERRA, 2009, 264).

195 Como exemplo deste tipo de postura, podemos citar o artigo de Féliz Bolaños sobre a obra de Pedro Simón (1991, 20-27). Nele, o historiador esforça-se para defender que o relato deste religioso era verdadeiro: “la

presencia frecuente de fabulaciones en su obra es un producto de su esfuerzo por adaptar las tradiciones

historiográficas disponibles en el siglo XVII. No son deslices o intrusiones accidentales de la fantasía que lo

llevan a traicionar su proyecto histórico, como tienden a pensar algunos estudiosos de la literatura

hispanoamericana colonial […] tales elementos inverosímiles no son ficción o creación literaria. Son

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tribos perdidas de Israel ou a outras personagens e eventos bíblicos, pretendemos enfatizar

três outros aspectos. Em primeiro lugar, a impossibilidade de se atrelar uma hipótese sobre

a origem do homem na América a um determinado grupo, época ou interesse político,

econômico ou religioso. A análise da hipótese judaica é ilustrativa. Diferente do apontado

por autores como Juan Gil (que a associa a um grupo específico, os judeus197

), tentamos

demonstrar que a associação com os israelitas poderia evidenciar tanto o antijudaísmo

existente no período (onde os índios teriam herdado dos judeus uma série de características

negativas) como a ligação, ainda que distante, com princípios bíblicos fundamentais para a

conversão dos americanos (reminiscências de passagens centrais da cosmologia cristã), a

descoberta de uma nova terra prometida ou, ainda, um sinal inequívoco da proximidade do

fim dos tempos.

Em segundo lugar, acreditamos que a análise do papel exercido pelas premissas

bíblicas nestas obras reforça nossa percepção de que há, ao longo dos séculos XVI e XVII,

um aumento da representação dos indígenas não como um grupo homogêneo, mas sim

múltiplo, o que seria fruto indissociável – ainda que não exclusivo – da experiência dos

europeus na América. Como pudemos observar, autores distantes no tempo e no espaço

encontraram nos relatos bíblicos elementos que indicariam uma origem variada dos

americanos, desde gigantes, filhos abençoados ou amaldiçoados por Noé ou uma ou mais

tribos perdidas. Elementos estes que, ao definirem uma parcela dos habitantes da América,

automaticamente excluía outras e estabelecia entre elas uma hierarquia que poderia ser

explicada a partir de suas origens.

ejemplos de la rígida utilización de fuentes historiográficas y orales, proveídas por textos y testigos

‘presenciales’ de los hechos, que gozaban de credibilidad en su época”.

196 Já analisado no capítulo anterior, Gliozzi (2000, 78) trabalha com a noção de que havia por trás das

hipóteses sobre a origen dos índios um objetivo concreto e identificável: “Les véritables objectifs que se

proposait la théorie judéogenique ne sont pas seulement clairs pour nous, mais ils l’étaient aussi pour tous

ceux qui, défendant dans le Nouveau Monde des intérêts opposés à ceux des encomenderos, ne pouvaient

renoncer à défendre la liberté naturelle des indios et, par conséquent, leur origine païenne”.

197 “[…] en el siglo XVI es opinión generalizada que los indios americanos no son más que los restos de las

diez tribus perdidas de Israel. Se trata de una creencia extraña que mal pudo habérsele ocurrido a un cristiano: en cambio, dentro de las concepciones escatológicas judías el descubrimiento de las tribus

perdidas era fundamental, por ser previo a la magna concentración de Israel en Jerusalén. Me atrevo a

pensar que esta idea remonta a los primeros tiempos del descubrimiento, a Colón mismo, a ese Colón que

creía haberse aproximado al Paraíso Terrenal, a ese pragmático visionario que no veía la realidad sino a

través de la Biblia” (GIL, 1992, 217).

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Por fim, é importante salientarmos que a própria relação com os elementos da

tradição cristã variavam de acordo com o autor, o que, mais uma vez, também está

relacionado à experiência americana. Enquanto para alguns havia apenas a associação entre

os indígenas e passagens bíblicas que faziam referências a terras ou povos distantes, em

outros há a argumentação de que o contato com os americanos teria indicado respostas

possíveis, mas, ao mesmo tempo, excluído outras ou, como no caso da existência de

gigantes no continente, fornecido elementos que exigiam um retorno às Sagradas Escrituras

em busca de passagens e interpretações que pudessem “explicá-las”. Estas variações, a

nosso ver, dificultam – ou mesmo impedem – a elaboração de respostas homogeneizantes

(a forma criolla ou metropolitana, jesuíta ou franciscana, espanhola ou inglesa) de se

analisar o problema da origem dos indígenas.

A tradição clássica

Além da exegese bíblica e da análise de outros escritos cristãos, grande parte

dos cronistas dos séculos XVI e XVII também recorreu a obras pertencentes à tradição

clássica198

. Como apontado por Sergio Buarque de Holanda (2010, 274), “até os de mais

profundo e repousado saber se inclinavam a encarar os mundos novos sob a aparência dos

modelos antigos”. Dessa forma, há um retorno às obras gregas e romanas199

em busca de

possíveis indícios sobre a existência de uma grande porção de terra isolada e desconhecida

198 Seguimos o conceito de tradição clásica de Wolfgang Haase: “la tradición clásica debe ser entendida

como la relación continuada a través de los siglos que une la Antigüedad greco-latina con los diversos

‘presentes’ del mundo occidental, en los cuales se perciben huellas de aquella transcendente cultura” (apud

HAMPE MARTÍNEZ, 1999, 3).

199 Em artigo que aborda as possíveis referências à América na produção intelectual greco-romana, Germaine

Aujac (2005, 183) faz um balanço das obras mais citadas pelos autores coloniais: “[...] ce sont les mêmes

passages des mêmes auteurs anciens qui sont cités, à longueur de temps, même si chaque partisan d’une thèse ou de l’autre tentait d’apporter des arguments inédits; mais les textes littéraires, les seuls utilisés par les

humanistes (qui se désintéressent des traités scientifiques), ne sont ni très nombreux ni très explicites [...] Ce

sont en majeure partie des auteurs latins plus ou moins tardifs (mais on évoquait aussi à l’occasion les poètes

Virgile ou Ovide); les quelques auteurs grecs cités semblent l’avoir été le plus souvent à travers des

traductions latines”.

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bem como sobre a procedência de seus habitantes como um todo ou de grupos

específicos200

.

Antes de analisarmos narrativas específicas, é importante salientarmos que não

há uma postura uniforme no período diante destas obras. Em alguns momentos, os relatos

antigos foram interpretados como repositório de informações concretas sobre a América e

seus habitantes, o que indicaria não apenas a ligação, mas também o contato – em certos

casos, múltiplo e recorrente – entre o Novo Mundo e o Velho. Já em outros, a tradição

clássica faria alusão a locais míticos que seriam versões distorcidas pelo tempo do novo

continente ou conteriam profecias que poderiam ter inspirado as navegações através do

Atlântico.

Entre os exemplos de escritores que adotaram em suas obras abordagens

próximas à primeira interpretação, podemos citar os partidários da migração cartaginesa

para o Novo Mundo, como os espanhóis Alejo Vanegas del Busto e Juan Suárez de Peralta.

Como pudemos observar anteriormente, ambos afirmam que os relatos atribuídos a

Aristóteles conteriam uma descrição “real” das terras americanas, o que comprovaria um

contato com os europeus muito anterior a 1492.

Esta abordagem sobre a tradição clássica gerou refutações diretas por parte de

outros autores do período. Juan de Solórzano y Pereira é, novamente, um exemplo central.

Para ele, as hipóteses que buscavam associar a “descoberta” do continente americano aos

autores clássicos seriam uma forma encontrada por alguns de seus contemporâneos para

diminuir as glórias do feito espanhol bem como questionar a legitimidade de sua Coroa

200 Em seu As palavras e as coisas, Michel Foucault (1981, 50) analisa a relação estabelecida pelos autores do

século XVI com a tradição clássica e suas semelhanças com as interpretações feitas sobre os sinais divinos

existentes na natureza: “Não há diferença entre essas marcas visíveis que Deus depositou sobre a superfície da

terra, para nos fazer conhecer seus segredos interiores e as palavras legíveis que a Escritura ou os sábios da

Antiguidade, esclarecidos por uma luz divina, depositaram nesses livros que a tradição salvou. A relação com

os textos é da mesma natureza que a relação com as coisas; aqui e lá são signos que arrolamos. Mas Deus,

para exercitar nossa sabedoria, só semeou na natureza figuras a serem decifradas (e é nesse sentido que o

conhecimento deve ser divinatio), enquanto os antigos já deram interpretações que não temos senão que

recolher [...] A herança da Antiguidade é como a própria natureza, um vasto espaço a interpretar; aqui e lá é preciso arrolar signos e pouco a pouco fazê-los falar. Em outras palavras, Divinatio e Eruditio são uma

mesma hermenêutica [...] Entre as marcas e as palavras não difere a observação da autoridade aceita ou o

verificável da tradição. Por toda a parte há somente um mesmo jogo, o do signo e do similar, e é por isso que

a natureza e o verbo podem se entrecruzar ao infinito, formando, para quem sabe ler, como que um grande

texto único”.

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sobre estas terras201

. Ainda que negue esta interpretação, o jurista reconhece que poderia ter

havido entre os pensadores antigos algumas informações “confusas” e “inconclusivas”

sobre o Novo Mundo, o que não permitiria a identificação um contato direto202

, apenas

alusões que remeteriam ao início dos tempos e teriam sido esquecidas com o passar dos

séculos.

A interpretação que via na tradição clássica um compêndio de profecias e

referências à quarta parte do mundo pode ser identificada já nas primeiras décadas de

contato entre os dois continentes203

. Em sua Historia del Almirante, Fernando Colombo

defende que as expedições organizadas por seu pai teriam sido elaboradas a partir de três

fundamentos: as informações dadas por navegadores anteriores, os aspectos naturais e a

autoridade de antigos escritores. Em relação ao último aspecto, o filho de Colombo arrola

uma série de autores cujas obras teriam influenciado diretamente as atitudes tomadas por

seu pai (como Aristóteles, Sêneca, Estrabão e Plínio), concluindo que: “Esta autoridad y

otras semejantes de este autor fueron las que movieron más al Almirante para creer que

fuese verdadera su imaginación” (COLÓN, 2000, 65). No entanto, há um esforço do

cronista para evitar que essas alusões fossem interpretadas como a descrição de um contato

201 “[…] es verdad que, no obstante estos argumentos y testimonios, todavía podemos afirmar con razón que

la gloria de los españoles en el primero y verdadero descubrimiento y conocimiento de mundo tan grande

permanece intacta […] Pues aunque Cicerón y otros, cuyos testimonios hemos citado, llevados por conjeturas y razones filosóficas afirmasen la existencia de los antípodas […] sin embargo ellos mismos

confiesan con toda claridad en esos textos que las regiones australes habitadas por los antípodas eran

absolutamente desconocidas a causa del calor de la zona intermedia o por que el océano que se interponía

negaba a amabas estirpes humanas la posibilidad de relacionarse mutuamente” (SOLÓRZANO Y

PEREIRA, 2001, 447).

202 O autor dedica um longo capítulo de sua obra para refutar os argumentos dos defensores da opinião de que

os antigos já conheciam o Novo Mundo. Ao analisar a hipótese de migração cartaginesa através de

embarcações, o jurista é taxativo: “En cuanto al texto de Aristóteles, o de Teofrasto a quien otros atribuyen

ese libro de prodigiosos rumores, tampoco merece más atención: no habla del Nuevo Mundo sino de una isla

desierta como las muchas que también en nuestros tiempos se han encontrado en el océano, como dijimos

antes. Y además ese libro no tiene autoridad alguna, pues lo que contiene son más bien sueños y cuentos de vieja que cosas dignas de crédito y de autoridad histórica” (SOLÓRZANO Y PEREIRA, 2001, 439-441).

203 “Dans les siècles qui suivirent la découverte du Nouveau Monde en effet, nombreux furent ceux qui,

géographes, philologues, érudits, hommes de lettres, prirent parti dans ces débats en s’appuyant sur certains

passages des textes anciens, grecs ou latins, voire bibliques, auxquels on attribuait souvent une valeur

prophétique” (AUJAC, 2005, 163).

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anterior com as terras americanas, o que poderia ser utilizado como argumento para

“diminuir” o feito de seu pai204

.

Postura semelhante à adotada por Fernando Colombo está presente nos relatos

de outros autores. Entre eles, Gregorio García ocupa um lugar de destaque. Em seu

compêndio de teorias sobre a origem dos índios, o autor dedica vários capítulos à análise de

relatos “clássicos” que poderiam conter menções à América. Entre outros, o dominicano

espanhol inclui trechos da Medeia de Sêneca205

e de escritos de Plutarco para defender que

eles conteriam menções, mas não uma descrição específica do Novo Mundo. García sente a

necessidade de explicar a origem dessas alusões. Para ele, elas seriam resultado da

intervenção divina. Assim, a origem da América e dos americanos estaria relacionada à

tradição cristã mesmo nas obras de autores pagãos, pois suas ideias teriam sido infundidas

por Deus, “porque para cosa tan alta, no bastaba ingenio natural” (GARCÍA, 1729, 24-

25).

Outra interpretação é proposta por Diego Andrés Rocha. Ao buscar argumentos

que fortalecessem sua teoria sobre o pioneirismo espanhol na América, o jurista identifica

obras tanto da tradição clássica quanto da cristã que apontariam para o mesmo sentido:

todas elas conteriam referências a estas terras confirmadas posteriormente pelos

espanhóis206

. Para Rocha, isto não apenas legitimaria o controle espanhol sobre a região e

204 Nos embates que travou contra as teorias de Oviedo, Fernando esforça-se para desqualificar o conteúdo e a

autoria da narrativa que descreve as viagens cartaginesas que teriam alcançado as Índias ocidentais. O autor defende que Aristóteles – ou quem quer que tenha escrito este texto – estava possivelmente se referindo aos

Açores e a ignorância ou a má fé teriam levado Oviedo a interpretar esta passagem como sendo uma

referência ao Novo Mundo (COLÓN, 2000, 80).

205 “Tras luengos Años verna / Un siglo nuevo, i dichoso, / Que al Occeano anchuroso / Sus limites pasarà /

Descubriràn grande Tierra, / Veràn otro Nuevo Mundo, / Navegando el Mar profundo, / Que ahora el paso

nos cierra. / La Thule tan afamada, / Como del Mundo postrera, / Quedarà en esta carrera / Por mui cercana

contada” (GARCÍA, 1729, 24-25). Ao analisar as interpretações derivadas da obra de Sêneca, Huddleston

(1967, 26) afirma que: “Spanish writers who referred to Seneca understood him to mean ‘an other New

World’, rather than merely ‘an other world’. Since America was commonly called the New World, this

translation gave a slightly stronger argument to those who held that the ancients knew of America”.

206 “Antes que acabe y absuelva este cap. I, no puedo dejar de advertir haber sido sin fundamento lo que algunos escritores han dicho de que no fueron conocidas estas Indias occidentales y este Nuevo Mundo por

los antiguos, porque quedan convencidos de las autoridades que hemos referido, de Platón, de Aristóteles, de

Solon, de Cricias y de Plinio, demás de los lugares siguientes: El primero de San Clemente (á quien dejó

nombrado por Pontífice San Pedro), el cual dice en la Epístola: ‘El Occeano y los mundos que están allende

del’; El segundo, de San Jerónimo […] El tercer lugar, de Orígenes […] El cuarto es de Tertuliano […] El

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seus habitantes mas também inseria a atuação da Coroa nestas terras em uma narrativa

muito anterior.

i) as zonas tórridas

As dúvidas sobre a possibilidade de vida nas zonas tórridas e a possível

existência de seres antípodas também evidenciam as diferentes ligações estabelecidas por

autores do período entre argumentos presentes em obras da Antiguidade clássica e da

tradição cristã. Um dos pioneiros na divisão do planeta em zonas com características

específicas foi Aristóteles. Em seu Metereologica, o filósofo defende que a parte sólida do

planeta era dividida em cinco partes: duas regiões glaciais, duas temperadas e uma zona

tórrida no equador, cujas altas temperaturas impediriam a existência de vida (Cf. AUJAC,

2005).

A divisão do globo em diferentes zonas com características específicas, ainda

que refutada várias vezes desde a Antiguidade207

, continuou sendo defendida por autores

gregos, romanos e, posteriormente, cristãos, como Santo Agostinho, para quem a zona

tórrida impediria a existência de antípodas no lado oposto do mundo. De acordo com o

bispo de Hipona, esta afirmação seria comprovada pelas Sagradas Escrituras, que não

mencionam a existência destes homens além de fazerem referências claras a respeito da

monogenia, da associação com a descendência de Noé e à pregação universal da palavra

divina por parte dos apóstolos (PAPAVERO e TEIXEIRA, 2001, 1018).

A defesa da existência da zona tórrida e da impossibilidade de vida nas terras

antípodas alcançaram os séculos XVI e XVII208

. Contudo, parte significativa dos autores

quinto es de Luciano […] El sexto lugar de Plutarco […] El sétimo lugar es de Séneca” (ROCHA, 1891, I,

44-46).

207 Aujac (2005, 180) cita passagens da obra de Plínio, o velho, onde há a descrição de viagens em torno do

continente africano que comprovariam a possibilidade de vida nesta região: “Ainsi la circumnavigation de

l’Afrique, comportant un long séjour dans la zone torride, aurait eu lieu au moins deux fois, mais

probablement bien plus souvent. De quoi montrer que les Anciens ont su, par la pratique, que dans la zone située entre les tropiques la vie était possible, contrairement à ce que soutenaient les théoriciens comme

Aristote”.

208 Como exemplo, podemos citar a obra do carmelita Antonio Vázquez de Espinosa (1948, 4), para quem

“demás de lo cual se consideran en el mundo cinco zonas, ò faxas; las dos últimas frigidísimas, que son los

polos Ártico y Antártico del Norte y Sur, dos templadas, que son los trópicos de Cancro y Capricornio, hasta

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que abordaram a questão da origem dos índios buscou argumentar que as conclusões de

autores como Aristóteles sobre o tema não se confirmavam no continente americano. O

principal nome a abordar esta questão foi José de Acosta. Como poderemos observar com

mais detalhes no capítulo seguinte, para este jesuíta espanhol, ainda que os antigos

defendessem ser impossível, a zona tórrida era não só habitável como era densamente

povoada (ACOSTA, 1985, 34-35).

Além dele, vários outros autores do período defenderam pontos de vista

semelhantes, ainda que com argumentos e objetivos diferentes, como Francisco López de

Gómara209

, Juan de Torquemada210

, Juan de Solórzano y Pereira211

e Pedro Simón. Para

este último, o estagirita, bem como seus seguidores, teria errado ao defender que

argumentos como a maior proximidade do Sol e o possível relevo desta região impediriam

que ela fosse habitada: “Todo esto nos ha enseñado la experiencia contra la doctrina de

Aristóteles y los demás filósofos y teólogos que le siguieron, y así hallar habitables estas

tierras, fué novedad tal que por ellas se pudieron llamar Nuevo Mundo” (SIMÓN, 1882, 4-

5).

donde llega el Sol, que los tiene por limites y términos, sin poder pasar dellos, y la del medio del mundo, que

es la Equinoccial, llamada Tórrida zona”.

209 “Niegan todos los antiguos filósofos de la gentilidad el paso de nuestro hemisferio al de los antípodas, por

razón de estar en medio la tórrida zona y el océano, que impiden el camino […] De los filósofos cristianos,

Clemente dice que no se puede parar el Océano de hombre ninguno; y Alberto, que es muy moderno, lo

confirma. Bien creo que nunca jamás se supiera el camino por ellos, pues no tenían los indios a quien llamamos antípodas, navíos bastantes para tan larga y recia navegación como hacen españoles por el mar

Océano. Empero está ya tan andado y sabido, que cada día van allá nuestros españoles a ojos (como dicen)

cerrados; y así, está la experiencia en contrario de la filosofía” (GÓMARA, s/d, 15).

210 Logo no início de sua Monarquía Indiana, Torquemada (1975, 12-20) defende que autores como

Aristóteles erraram ao defender a inabitabilidade das zonas tórridas. Para ele, Deus teria agido para que a vida

fosse possível nestes locais (proporcionando chuvas abundantes e noites prolongadas, por exemplo), o que

poderia ser confirmado através do relato bíblico, em especial a partir da passagem do livro de Isaías em que

Deus afirma ter criado o mundo para que ele seja povoado: “De todo lo dicho concluimos con que las cinco

zonas no solo son habitables, sino que se habitan con grandísima frecuencia”.

211 Solórzano y Pereira (2001, 397) lista uma longa série de autores que defenderam a impossibilidade de vida

na zona tórrida: “Y hasta tal punto parece haberse grabado esta opinión en el espíritu de los hombres, que aun hoy dia están de acuerdo con Ella algunos escritores modernos al afirmar que la zona tórrida, abrasada

por el soplo del calor continuo, es absolutamente inhabitable e intransitable […] Pues las muchas y seguras

experiencias habidas en este último siglo evidencian que existen los antípodas y que todas las regiones del

mundo, tanto las que pertenecen a las zonas glaciales como a la tórrida, no sólo son habitables, sino que de

hecho están pobladas por el género humano y que incluso en muchos lugares, sobre todo precisamente bajo

la zona equinoccial, se hallan regiones llenas de riquezas y muy agradables y del todo accesibles para ser

pobladas y arribar a ellas”.

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As ideias e teorias citadas até aqui deixam claro que não havia no período uma

divisão intransponível entre os argumentos elaborados por autores gregos e romanos e a

Bíblia. Contudo, ambas as tradições não exerciam o mesmo papel nem possuíam o mesmo

peso dentro destas formulações. Como apontado pelo pesquisador francês Pierre Vidal-

Naquet (2008, 81): “os homens do século XVI abordam o Novo Mundo segundo dois

enfoques essenciais: um é o formado pela tradição greco-romana, com a qual se nutrem [...]

o outro é a tradição bíblica que, para eles, representa a verdade”. Com isso, pretendemos

deixar claro que, ainda que apresentados em itens separados, as premissas bíblicas e a

tradição clássica estabeleciam profundos laços entre si dentro das formulações elaboradas

no período sobre a origem dos indígenas.

ii) América e Atlântida

Um dos temas mais evocados durante as primeiras décadas de contato entre

europeus e americanos e base para muitas reflexões sobre a origem dos indígenas é o da

Atlântida, apontada tanto como sendo a própria América quanto como local de passagem

utilizado por diferentes grupos humanos para alcançar as terras do novo continente. A fonte

primordial deste tema são dois diálogos de Platão, Timeu e Crítias. Neles, a Atlântida é

descrita a partir de informações que teriam sido obtidas por Sólon com sacerdotes

egípcios212

. A população desta enorme ilha (que servia de passagem para outras regiões

insulares e terras além-mar) teria tentado uma invasão ao continente frustrada pela cidade

de Atenas. Tempos depois, suas terras e habitantes teriam sido rapidamente engolidos pelo

oceano após intensos tremores de terra e cataclismos (Cf. AUJAC, 2005; VIDAL-

NAQUET, 2008, 23-44).

Para além do conteúdo dos diálogos platônicos em si, é interessante obervarmos

a forma como as histórias sobre a Atlântida alcançaram os viajantes, cronistas oficiais e

212 Pierre Vidal-Naquet (2008, 27) mapeia a trajetória das informações sobre a Atlântida descrita no diálogo

platônico: “[Crítias] começa dizendo que o relato em que a Atlântida aparece é feito ‘segundo uma tradição oral antiga’ (Timeu, 20d), mas esse relato, ‘mesmo sendo completamente estranho, é absolutamente

verdadeiro’ (20d). O relato tem fontes escritas que são egípcias (24a-27b), mas é igualmente transmitido

oralmente, de Sólon até Crítias, o Velho, e deste a seu neto homônimo; repetido pela primeira vez por este

último a Timeu e Hermócrates, por uma segunda vez em presença de Sócrates, e uma terceira vez, com mais

detalhes, no diálogo que leva seu nome”.

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religiosos no período das navegações ultramarinas. De acordo com Luis Enrique Tord

(1999, 35-45), “fueron los cronistas de Indias los primeros en recuperar la narración de

Platón que parecía explicar algo para ellos decisivo: la vinculación que había entre los

aborígenes del Nuevo Mundo y los descendientes de Adán y Eva”. Ainda segundo o escritor

peruano, esta tradição teria não apenas inspirado, mas também determinado decisões e

atitudes tomadas pelos europeus durante suas viagens ao Novo Mundo. Ao analisar a obra

de Pedro Sarmiento de Gamboa, por exemplo, Tord afirma que este explorador espanhol

“insistía en proseguir la navegación en dirección suroeste, más allá de las Islas Salomón,

con la intención de descubrir las tierras de las que hablaba la tradición clásica y la

medieval” (1999, 45). De nossa parte, porém, não pretendemos dar seguimento a este tipo

de interpretação que busca as verdadeiras motivações dos autores analisados (algo que

acreditamos ser altamente questionável), mas sim analisar de que forma esses relatos foram

utilizados pelos europeus em suas representações sobre as terras recém-encontradas e seus

habitantes.

A esse respeito, as obras de Francisco López de Gómara e Bartolomé de Las

Casas são exemplares. Produzidas em meados do século XVI, a História General de las

Indias do cronista espanhol e a Historia de Las Indias do padre dominicano descrevem as

notícias sobre esta localidade mítica:

“Platón cuenta, en los diálogos Timeo y Critias, que hubo

antiquísimamente en el mar Atlántico y Océano grandes tierras y una isla dicha

Atlántide, mayor que África y Asia, afirmando ser aquellas tierras de allí

verdaderamente firmes y grandes, y que los reyes de aquella isla señorearon

mucha parte de África y de Europa. Empero que con un gran terremoto y lluvia

se hundió la isla, sorbiendo los hombres, y quedó tanto cieno, que no se pudo

navegar más aquel mar Atlántico. Algunos tienen esto por fábula, y muchos por

historia verdadera; […] Pero no hay para qué disputar ni dudar de la isla

Atlántide, pues el descubrimiento y conquistas de las Indias aclaran llanamente

lo que Platón escribió de aquellas tierras, y en México llaman a la agua atl,

vocablo que parece, ya que no sea, al de la isla” (apud FERNANDES, 2009, 69).

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“[…] cuenta Platón de una isla que estaba cerca de la boca del

estrecho de Gibraltar, la cual llama Isla del Atlántico, que fue el primero rey

della y de quien todo o casi todo el mar Océano se nombró Atlántico; y dice que

era mayor que Asia y África, el sitio de la cual se extendía la vía del Austro. En

esta isla eran muchos reyes y príncipes y por ella diz que se podía ir y navegar

para otras islas comarcanas, y de aquéllas para la tierra firme, que de la otra

parte estar se creía […] Pero después que aquellos ejercicios y solicitud

virtuosa, con sus corruptas afecciones y costumbres culpables, dejaron y

olvidaron, con un diluvio y terrible terremoto de un día y una noche, la isla tan

próspera y felice y de tan inmensa grandeza, con todos sus reinos, ciudades y

gentes, sin quedar rastro de todos ellos ni vestigio, sino todo el mar ciego y

atollado, que no se pudo por muchos tiempos navegar, se hundieron” (LAS

CASAS, 1992, 49-50).

É importante salientarmos que, mesmo possuindo diversos elementos em

comum, as referências à Atlântida feitas pelos dois autores espanhóis servem como

subsídio para pontos de vista extremamente diferentes. Enquanto Gómara associa

diretamente as terras americanas à mítica ilha, o que contribuiria para legitimar a atuação

de Hernán Cortés entre os indígenas213

, o dominicano Las Casas percorre um caminho

inverso. Ainda que ele defendesse ser possível acreditar que ao menos uma parte do

continente descrito por Platão tivesse escapado da destruição214

, esta ligação não poderia

ser utilizada como justificativa para os atos cometidos pelos espanhóis nas terras

americanas.

Vários outros escritores do período também fizeram referências à Atlântida em

seus escritos. Em boa parte dos casos analisados, a trajetória da ilha é associada à questão

213 “En leur opposant la thèse de l’Atlantide, Gómara souligne l’indépendance de sa démarche – la même que

Cortés – à l’pegard des deux pôles opposés de la dispute. Cela est parfaitement compréhensible si l’on

considère – comme nous l’avons fait – que le pouvoir de Cortés était menacé aussi bien par l’extension des

droits de Diego Colomb sur la terre ferme américaine, que par toute théorie juridique attribuant a priori à la

couronne espagnole une domination légitime sur le Nouveau Monde. Le choix de l’Atlantide est donc, pouc Gómara, un choix tout à fait clairvoyant qui vise justifier idéologiquement la position de Cortés comme les

théories auxquelles il s’opposait cherchaient à le faire à l’avantage de la couronne ou de la famille Colomb”

(GLIOZZI, 2000, 161).

214 Las Casas (1992, 50) afirma que, no início, acreditou que a Atlântida fosse uma fábula antiga. Sua opinião

teria se alterado após o contato com diversos autores que teriam legitimado as palavras do filósofo grego.

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da origem dos americanos. Um dos primeiros relatos a apontar a relação índios-atlantes foi

o poema Syphilis, sive morbus Gallicus (A sífilis, ou o mal francês), de 1530, composto

pelo veneziano Gerólamo Fracastore. Nele, um sacerdote indígena descreve a ruína dos

atlantes, povo cuja riqueza havia suscitado a cólera divina que teria resultado em um

castigo duplo: a destruição da ilha e a difusão da sífilis entre os sobreviventes da tragédia,

os ancestrais dos indígenas que teriam povoado o Novo Mundo (VIDAL-NAQUET, 2008,

82)215

.

A obra de Agustín de Zárate também se destaca (1555, 21-24). Para este

cronista e funcionário da Coroa espanhola, o Novo Mundo era a ilha descrita por Platão,

cuja narrativa era “cierta y verdadera, en tal manera que los más dellos [...] no quieré

admitir que tenga sentido alegorico”. Zárate defende que muitos dos costumes atlantes

apontados pelo pensador grego poderiam ser encontrados entre os índios peruanos216

.

Seguindo este argumento, o cronista espanhol afirma que os navegadores europeus que

teriam alcançado as terras americanas no final do século XV e no início do XVI teriam sido

guiados pelo conteúdo do relato platônico217

. Além disso, a concretização deste contato

teria sido profetizada por escritos de diversos autores da Antiguidade clássica, como

Horácio e Sêneca.

Ao analisar os defensores da hipótese atlante para a origem dos indígenas,

Gliozzi (2000, 160) defende, ainda que com algumas ressalvas, que esta teoria

“emancipava” o Novo Mundo da jurisdição bíblica. A esse respeito, é interessante

215 “Talvez haja chegado a vossos ouvidos o nome de Atlântida; pois provinha dessa antiga descendência

racial (do rei Atlante). Também nós (os índios americanos), diz-se, saímos dessa estirpe, através de uma longa

sucessão de gerações desse povo a um tempo feliz e querido dos deuses, enquanto seus maiores veneravam o

céu e costumavam fazer aos deuses, piedosamente, gratas oferendas. Mas depois que os descendentes, com o

fausto e os dissolutos costumes, começaram a ofender os deuses, tais e tantas calamidades os perseguiram;

por essa causa, difícil ser-me-ia abarcá-la em meu relato. A ilha, então chamada Atlântida, do nome de um

antigo rei, sacudida por um grande terremoto, afundou, tragada pelo oceano, que ela sulcava com seus navios,

rainha da terra e do mar” (apud PAPAVERO, 2003, 341-342).

216 Ainda que aborde apenas o passado dos índios da região do Peru, Zárate faz indicações de que sua resposta

poderia ser expandida para todo o continente.

217 “[…] y lo creo que comprendió el descubrimiento de aquellas partes debaxo desta autoridad de Platón, y

así aquella tierra se puede claramente llamar la Tierra continente, de que trata Platón [...] Pues si todo esto

es verdad, y concuerdan también las señas dello con las palabras de Platón, no sé porque se tenga dificultad

a entender que por esta via ayan podido pasar al Peru muchas gentes, assi desde esta grande isla Athlantica,

como desde las otras islas” (ZÁRATE, 1555, 23-24).

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retornarmos aos escritos de Zárate. Tanto para este cronista como para outros autores

(como o flamengo Goropius Becanus218

e o espanhol Pedro Sarmiento de Gamboa219

) não é

possível dissociar a tradição cristã da clássica ao elaborar reflexões sobre o Novo Mundo e

seus habitantes. Como apontamos anteriormente, além da Atlântida, Zárate relata a

presença de gigantes bíblicos (que teriam sido destruídos por um ser divino), o que faz do

Novo Mundo um local que “confirmaria” tanto a narrativa platônica quanto as Sagradas

Escrituras220

.

As associações entre o Novo Mundo e a Atlântida se mantiveram ao longo de

todo o período colonial221

e mesmo além (Cf. Capítulo 4). Por outro lado, desde as

primeiras décadas do século XVI, vários autores apontaram em suas narrativas elementos

que, para eles, desqualificariam esta associação. Ainda que tenha havido obras anteriores

que negavam a ligação entre a Atlântida e o Novo Mundo, como a de Juan López de

Velasco222

, são os argumentos de Acosta que, mais uma vez, encontram maior ressonância.

Para este jesuíta espanhol, a narrativa de Platão conteria uma série de indícios (como as

dimensões exageradas atribuídas à ilha e a inexistência de vestígios após o seu

desaparecimento) que o levaram à conclusão de que se tratam de “cosas tan de burla

218 O súdito espanhol J. Van Gorp, também conhecido como Goropius Becanus, em um texto publicado

postumamente (1580) “explica que a Társis antiga, aquela da Bíblia e de Heródoto (Tártessos), ancestral da

Espanha moderna e capital de Atlântida, fora fundada por dois irmãos, Atlas-Tártessus e Ulisses-Hésperus, ambos netos de Jafé. É o mais velho, Atlas, que goza de prioridade e seus sucessores, os reis de Espanha, têm

assim direitos evidentes sobre a África atlântica e sobre a América” (VIDAL-NAQUET, 2008, 84).

219 Cujos argumentos já foram abordados no capítulo anterior.

220 As ligações entre elementos da tradição cristã e clássica também podem ser identificadas entre os autores

que, assim como apontado por Pierre Vidal-Naquet (2008, 83), desenvolveram a hipótese de que as dez tribos

perdidas de Israel seriam as verdadeiras responsáveis pela destruição da ilha-continente de Atlântida e de seus

habitantes.

221 Aujac (2005, 163) faz referência a um planisfério impresso em Pádua no ano de 1700 que denominava o

continente americano como “Atlantis, l’île de Platon” e Tord (1999, 41) identifica uma estreita relação entre a

Nova Atlântida de Francis Bacon e o relato de Pedro Sarmiento de Gamboa.

222 “Y aunque algunos tienen por cierto lo que escribe Platón en el Thimeo, que el mar Atlántico, que es el golfo de las Yeguas hasta las Canarias y de allí adelante al occidente para las Indias, fué tierra firme más

grande y espaciosa que es África y Europa, y que se vino á hundir toda en la mar, y que de allí quedaron

pobladas las Indias; no se tiene por historia auténtica, ni consta que Platón en el dicho diálogo quiere que lo

sea, ni tampoco cuadra á la orden y constitución del Universo, que una tan grande parte de él pereciese y se

viniese á anegar” (LÓPEZ DE VELASCO, 1894, 3).

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considerándose un poco, que más parecen cuentos o fábulas de Ovidio, que historia o

filosofía digna de cuenta” (ACOSTA, 1985, 60).

Argumentos estes, que serão reproduzidos nas décadas seguintes à publicação

de suas obras por diferentes autores, o que reforça o papel central exercido pelo inaciano

nas questões referentes ao Novo Mundo e, mais especificamente, à origem de seus

habitantes. Entre outros exemplos, podemos citar escritores muito distantes tanto no tempo

quanto em suas argumentações, como o missionário espanhol Juan de Torquemada (1975,

45), o editor inglês Samuel Purchas223

e o rabino de origem portuguesa Menasseh ben

Israel224

. Postura alternativa é defendida por Gregorio García, para quem as dúvidas sobre a

ligação ou não entre a América e a ilha do mito platônico assim como dos indígenas com os

atlantes seriam irrelevantes: “solo hace al caso lo que de ello se infiere, i es, que por las

señas tan ciertas, i verdaderas que allí da Platón, tuvo noticia de las Indias, con la qual

pudieron navegar à ellas los primeros Pobladores, con determinación particular”

(GARCÍA, 1729, 55).

A percepção da multiplicidade dos indígenas

A referência à obra de García pode ser utilizada como ponto de partida para

retomarmos várias das questões abordadas até o momento e finalizarmos o capítulo. Ao

arrolarmos a longa lista de autores que analisaram hipóteses alheias ou formularam suas

próprias teorias sobre a origem dos índios, podemos observar que esta questão,

223 “Comme Acosta, Purchas rejette toutes les hypothèses d’un peuplemnet ancien du Nouveau Monde: ni

l’histoire de l ‘Atlantide, qui est ‘allégorique [ou] du moins non historique, ni les diverses versions d’antiques

navigations ne lui paraissent ‘se rapporter à ces régions’” (GLIOZZI, 2000, 330).

224 “Lo de la Isla Atlántica de Platón en el Timeo, aún que Gómara y Zárate sienten, que desta Isla tan

famosa, y decantada de Cricias, se pasaron a las de Barlovento, que estaban cerca della, antes que se hundiese, y destas, a tierra firme de América; y de aquí al Pirú, y Nueva España, Acosta se rie desto, y tiene

por fabula lo de esta Isla; y Marcilio Ficino, para salvar la autoridad de Platón, con el parecer de sus

mismos discípulos […] considerando la poca verosimilitud desta historia, dize, que todo aquellos de Cricias,

y del siguiente Dialogo de la Isla Atlántica, se ha de entender por alegoría. Donde se ve, la poca

probabilidad desta sentencia” (BEN ISRAEL, 1650, 117).

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praticamente ausente nas primeiras décadas de contato com o Novo Mundo225

, ganha corpo

a partir de meados do século XVI e se torna quase incontornável (ainda que alguns autores

façam apenas menções esparsas) até meados do século seguinte. Este aumento de interesse,

contudo, não significou o abandono de “velhas” teorias em nome de outras hipóteses, mas

sim o aumento progressivo de regiões e povos do velho continente, passagens bíblicas e

referências clássicas que estariam, de alguma forma, associados à América e seus

habitantes.

Até o momento, pudemos observar que a questão da origem dos indígenas não

pode ser resumida a uma trajetória “lógica” ou linear. Pelo contrário. Hipóteses como a

associação dos americanos com grupos hebreus ou atlantes, por exemplo, serviram como

base para as mais diversas interpretações sobre a procedência e a natureza dos povos

americanos. Dessa forma, acreditamos que, para além do conteúdo das teorias em si, o

problema da origem dos índios possibilita a análise de outra questão central sobre os

americanos: seriam todos descendentes de um único grupo colonizador ou fruto de

múltiplas migrações?

Como apontamos no capítulo anterior, os argumentos apresentados por

Gregorio García em seu Origen de los indios de el Nuevo Mundo e indias occidentales

foram analisados, negados ou corroborados posteriormente por muitos autores, o que levou

historiadores como Huddleston a defini-lo como o principal representante de uma das duas

tradições de pensamento sobre o problema da origem dos índios que teriam se desenvolvido

no período. Em sua obra, o dominicano espanhol analisa esta questão a partir de alguns

pressupostos considerados por ele como fundamentais. Em primeiro lugar, García afirma

que a monogenia associada ao casal original criado por Deus e à linhagem de Noé é

inquestionável. Em seguida, defende que os americanos descenderiam – necessariamente –

de povos oriundos de uma das três partes do Velho Mundo, negando qualquer possibilidade

de hipótese que advogasse o autoctonismo indígena. Por fim, o religioso afirma que o

conhecimento podia ser obtido através de quatro vias (fé divina e humana, ciência e

opinião) e que, no caso em questão, apenas a última opção, descrita como sendo a mais

225 As obras de Oviedo e Fernando Colombo se apresentam como raras exceções que abordam

tangencialmente o tema.

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especulativa, poderia ser utilizada: “lo que sabemos por opinión, es dudoso, é incierto,

porque procede de fundamentos probables, que pueden ser, i no ser verdaderos, o falsos, o

estimados por tales, i así cada uno sigue la opinión, que le parece verdadera, conforme a

las raçones en que se funda, que ve, juzga, i conoce, o le parecen verdaderas” (GARCÍA,

1729, 7-9).

Partindo desses princípios, García aborda doze teorias sobre a origem dos

indígenas226

, seguindo um modelo comum de análise: seu texto inicia expondo argumentos

e nomeando os defensores de cada uma das hipóteses: “en cada opinión hablo en nome de

su autor, reforçando aquel parecer con cosas que en otras están dichas” (GARCÍA, 1729,

131). Em seguida, o autor retorna à tradição clássica e cristã em busca de elementos que a

corroborassem e, ao final, expõe as dúvidas levantadas por seus principais críticos227

. No

entanto, esta postura não fez com que ele considerasse válidas todas as teorias sobre a

origem dos indígenas difundidas no período. Hipóteses que negavam ao menos um dos

fundamentos expostos acima, em especial o primeiro, como as teorias poligenistas e pré-

adâmicas, foram duramente criticadas pelo autor228

.

226 Sendo elas: 1) colonização por mar através de embarcações como as de Salomão que teriam alcançado

Ofir; 2) os grupos humanos teriam vindo contra a sua vontade pelo mar, devido a uma tormenta; 3) chegada

dos homens por terra através de ligação no extremo norte entre o Novo Mundo e o Velho ou existência de um

estreito oceânico de pequenas dimensões que permitiria sua travessia por embarcações primitivas; 4)

cartagineses; 5) ligação com as dez tribos perdidas de Israel; 6) índios seriam descendentes da linhagem de

Ofir; 7) origem relacionada à Atlântida; 8) migrações oriundas de diferentes regiões da Europa e da África; 9)

gregos; 10) fenícios; 11) chineses e/ou tártaros; 12) análise das narrativas indígenas sobre suas próprias

origens (GARCÍA, 1729).

227 “Refiero muchas opiniones, con sus fundamentos, i raçones, i pongo las objeciones, i dudas, que contra

ellas se pueden ofrecer, con su respuesta, i solución. Acerca de todo lo cual ha de notar, i advertir el Lector,

que aunque algunas Opiniones, que refiero tienen Autores, que realmente fueron de aquel parecer, pero les

añado Yo muchos fundamentos, i dudas, con sus soluciones, i replicas, i otras cosas, que con grandísimo

trabajo, cuidado, i costa he visto en el Perú, Nueva España, Tierra-Firme, i Islas de aquel paraje, de que

tomé motivo, i ocasión, para fundar otras Opiniones, de las cuales puedo decir, con verdad, que soy Yo el

Autor, hablando particularmente como tal, en cada una, no obstante mi sentencia, opinión, i parecer, que

después de todas ellas pongo: para todo lo cual me ayudó mucho lo que he leído en Libros Impresos”

(GARCÍA, 1729, 36).

228 “Aun no quisiéramos acordarnos de los pareceres indignos, de algunos verdaderamente blasfemos, i más

barbaros que los Indios, que no merecen nombre de Opiniones, sino de locuras: así es decir, que por ventura se engendrarán de la Tierra, o de su putrefacción, aiudada de calor del Sol, los primeros Indios, como

(concediendo Avicena ser fácil en los Hombres esta producción) intentó hacer creíble Andrés Cisalpino […]

No es aquel desatino inferior à los que intentaron formar Hombres por Arte Chimica, ó Mágica (que refiere

Solorçano) dando à entender puede haver otros que los descendientes de Adán, contra lo que enseña la

Escritura […] No menos escandaloso fue el error del ignorante Paracelso […] que dejo à la posteridad

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García argumenta que a escolha por essa estrutura em sua obra teria como

objetivo central permitir que os leitores agissem como “juízes” e decidissem qual(is)

respostas seriam consideradas verdadeiras por cada um deles229

. Contudo, o religioso

afirma que foi instado por vários de seus contemporâneos a expor suas opiniões particulares

sobre o tema. De acordo com o cronista, não seria possível identificar uma reposta única

para uma questão tão complexa. Por isso, ele defende que os índios seriam descendentes de

diversos povos que teriam migrado para o Novo Mundo em épocas e a partir de locais

diferentes. Entre outros, estariam os cartagineses (ligados às ilhas de Cuba e Hispaniola), as

tribos perdidas de Israel (responsáveis pela colonização das regiões do Peru e da Nova

Espanha), os atlantes e aqueles que utilizaram a ilha como “ponte” entre os dois mundos,

além dos gregos, fenícios, chineses e tártaros:

“Y así digo, que los Indios que hoy hay en las Indias Occidentales,

i Nuevo Mundo, ni proceden de una Nación, i Gente, ni à aquellas partes fueron

de sola una de las del Mundo Viejo, ni tampoco caminaron, ó navegaron para

allá los primeros pobladores por el mismo camino, i viaje, ni en un mismo

tiempo, ni de una misma manera, sino que realmente proceden de diversas

Naciones, de las cuales unos fueron por Mar, forçados, i hechados de Tormenta,

otros sin ella, i con Navegación, i Arte particular, buscando aquellas Tierras, de

que tenían alguna noticia. Unos caminaron por Tierra, buscando aquella, de la

qual hallaron hecha mención en Autores graves: otros aportando à ella, acaso, ò

compelidos de hambre, como dice Heringio, ò de Enemigos circunvecinos, o

iendo caçando para comer, como gente salvagina; que este es el discurso que

hace el P. Acosta, acerca de este intento” (GARCÍA, 1729, 314-315).

escrita la creación de dos Adanes, uno en Asia, i otro en las Indias Occidentales: locura sin disculpa, en

quien tuvo (aunque viciosamente) noticia de la Doctrina Católica. Ni es menor el de Isaac de la Peyrère, que

dio Gentes en el Mundo antes que Adán fuese criado […] Estas, i otras semejantes no se pueden tener por Opiniones, sino ceguedades, publicadas por Hombres dudosos en la Fé, sabios en su presunción, i

engañadores del Mundo, que con mentiras, i fraudes se oponen à la palabra Divina” (GARCÍA, 1729, 248).

229 “Yo folgaria, que de tal manera fuesen fundadas aquestas opiniones, que cada qual de los Lectores hallase

alguna que quadrase à su entendimiento, convencido de las raçones, i fundamentos, que en ellas pongo,

porque siendo asi, darè por bien empleado mi trabajo” (GARCÍA, 1729, 37).

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Através desta passagem, podemos observar que García defende a multiplicidade

dos indígenas em seu relato230

. Ainda que ao longo de seus escritos o autor – bem como o

editor da segunda versão da obra – tenha identificado elementos em comum entre todos os

americanos (ou ao menos entre boa parte deles231

), há em sua conclusão uma defesa

enfática de que eles não poderiam ser relacionados a um único grupo ou região do Velho

Mundo. Segundo o dominicano, múltiplas evidências o teriam levado a esta conclusão:

“La primera raçon, i fundamento, que para esto tengo es hallar en

estos Indios tanta variedad, i diversidad de Lenguas, de Leies, de Ceremonias, de

Ritos, Costumbres, i Trages. El segundo fundamento es, la dificultad que tiene,

creer que todos los Indios proceden de Gente que fuese à aquel Nuevo Mundo de

sola una parte del Viejo, i con solo un modo, u manera de Viage. El tercer

fundamento es, que (como consta de lo que he referido en las Opiniones

precedentes) se hallan en aquellas Partes, Costumbres, Leies, Ritos, Ceremonias,

i Vocablos, i otras cosas de Cartagineses, de Hebreos, de Atlanticos, de

Españoles, de romanos de Griegos, de Fenicianos, de Chinos, i de Tartaros:

argumento de mucha fuerça para probar, que los Indios, por su comunicación, i

trato amigable, ò por via de Conquista, i Guerra, se fueron mezclando de tal

manera, que en el Linage, Costumbres, Lenguas, i Leies han escapado Mestiços

de diversas Naciones, quales son las sobredichas” (GARCÍA, 1729, 315-316).

A defesa de uma origem múltipla dos indígenas, ainda que com exceções, é

apontada por um número crescente de autores no período analisado. Retornando aos

cronistas apresentados até o momento, observamos que, em grande parte deles,

230 Teresa Martínez Terán (2001, 20) defende que a resposta “múltipla” para a origem dos índios foi alterada

pelo editor da segunda edição do relato de García: “la posibilidad del origen múltiple propuesta por García es

eliminada en provecho de una sola hipótesis; su escepticismo al considerar que el tema no era de ciencia ni

de fe, sino que pertenecía al rango de la mera opinión, fue por ende también solucionado mediante una

pretendida fundamentación supuestamente etnohistórica”.

231 Em algumas passagens de sua obra, García identifica características comuns aos grupos americanos,

principalmente entre incas e astecas: “Quien huviere tratado los indios del Perú i Nueva-España, hallará, que reducidos á su natural, i costumbres, todo es un Indio, porque en todos ellos se hallan muchas cosas en que

convienen, i de que usavan generalmente en tiempo de su Gentilidad” (1729, 54); “i quando en tanta

diversidad de ellas, de Alimentos, de Trages, de Regiones, se conforman en las modales todos los Indios; de

manera, que como vá expresado, separadas algunas particularidades de maior advertência en ellos, por el

Culto, o de Barbaridad, por su descuido, todos son un Indio” (1729, 312).

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principalmente a partir da segunda metade do século XVI, há uma divisão “original” entre

os habitantes de diferentes regiões do Novo Mundo. Assim, Benito Arias Montano associa

os americanos aos personagens bíblicos Ofir e Jobab, Pedro Sarmiento de Gamboa

identifica descendentes de Noé e do herói grego Ulisses na América, Francisco Hernández

vê entre os mexicanos uma divisão entre nativos procedentes dos hebreus e de “bárbaros”

vindos de terras distantes ao norte, Juan Suárez de Peralta aceita a possibilidade de uma

origem múltipla associada à linhagem de Cam/Canaã, Hugo Grotius identifica herdeiros

dos três filhos de Noé no continente, Fernando Montesinos descreve uma disputa entre os

nobres descendentes de Ofir contra os inferiores fenícios nas terras incas, além de Gregorio

García e de Diego Andrés Rocha, entre outros.

Este processo, a nosso ver, é indissociável de uma visão hierarquizadora tanto

dos americanos quanto de seus ancestrais do Velho Mundo. Assim, povos indígenas

identificados a elementos considerados pelos autores como mais “avançados” (que podem

ir desde a existência de grandes construções ao desenvolvimento de formas de registro, à

vida em grandes comunidades e à existência de idolatrias) descenderiam de povos

diferentes dos grupos vistos como “inferiores”. Novamente, a hipótese que associa os

indígenas aos hebreus é exemplar. A depender do autor analisado, ela poderia tanto ser

associada aos grupos mais desenvolvidos como ser apontada como responsável pelos

comportamentos mais “bárbaros” praticados por determinados grupos humanos nas terras

americanas.

Há também autores, como Juan de Torquemada e Juan de Solórzano y Pereira,

que mesmo enfatizando alguma teoria específica em suas análises, ressaltam a dificuldade

de se responder de forma satisfatória a esta questão. Dificuldade que os leva a deixar o

caminho aberto para a ocorrência de outras possíveis migrações, que poderiam “explicar” a

grande variedade de características e costumes identificados por eles em suas obras entre os

diferentes grupos americanos.

Há ainda os autores que defendem abertamente uma origem única para todos os

americanos, mas, mesmo assim, elaboram explicações para a sua multiplicidade de

características. Entre eles, podemos citar Antonio Vázquez de Espinosa, Pedro Simón e

Menasseh ben Israel. Para os dois primeiros, ainda que a ligação com as tribos perdidas de

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Israel (ou com uma em especial, a de Issacar) fosse vista como a hipótese mais provável, a

origem múltipla não poderia ser descartada. Já para o rabino português, mesmo que todos

os índios tivessem uma origem única e comum a todos, alguns deles teriam adotado

comportamentos “superiores” aprendidos através do contato com os remanescentes dos

grupos hebreus que teriam povoado o Novo Mundo há dezenas de séculos.

Até mesmo cronistas que se eximem de apontar resposta(s) definitiva(s) ao

tema ou não o abordam diretamente ressaltam a multiplicidade de grupos humanos que

habitavam o continente. Este é o caso do jesuíta português Simão de Vasconcellos232

, um

dos raríssimos exemplos de autor português que se dedicou à questão da origem dos índios.

Em suas Noticias curiosas e necessárias das cousas do Brasil (1668), o religioso português

afirma que os europeus questionavam os nativos em relação aos seus ancestrais, porém, a

falta de outras ferramentas além da memória dificultava a obtenção de respostas233

. O tema,

dessa forma, deveria ser analisado a partir de duas premissas básicas: a colonização teria

ocorrido após o dilúvio universal e em data desconhecida. Isto leva o autor a analisar nove

hipóteses de migração234

que estariam relacionadas à diversidade de grupos indígenas.

Porém, os parcos indícios encontrados impossibilitariam uma resposta definitiva sobre o

tema, que permanecia em aberto235

. Já Garcilaso de la Vega, em seus Comentarios reales

de los Incas (1609), afirma que não irá abordar questão tão incerta “porque tengo menos

232 Para uma análise da obra de Simão de Vasconcellos e sua relação com o pensamento jesuítico do século

XVII e o conceito de “modernidade medieval”, Cf. DOMINGUES, 1999, 105-139.

233 De acordo com o autor, os índios respondiam que a tradição de seus antepassados apontava que eles vieram de outra terra desconhecida, que era gente de cor branca e que vieram em embarcações pelo mar: “e

aportaram em uma paragem que eles por suas semelhanças descreviam, e os portugueses entenderam que

vinha a ser do Cabo Frio” (VASCONCELLOS, 1668, 80-82).

234 1) Ofir, filho de Joctan, que teria povoado o continente a partir das terras do Peru e do México; 2)

remanescentes da Torre de Babel; 3) hebreus enviados por Salomão em suas embarcações; 4) Naus enviadas

por Salomão até Ofir (que, neste caso, se situaria na África) mas que teriam se desgarrado e parado no Novo

Mundo; 5) troianos contemporâneos de Eneias que se espalharam pelo mundo após a destruição de Troia; 6)

Africanos que teriam migrado após a destruição de Cartago; 7) dez tribos perdidas de Israel; 8) fenícios; 9)

existência de uma ligação por terra por onde teria ocorrido a imigração (VASCONCELLOS, 1668, 88-100).

235 “Do acima dito se tira também a resolução das outras três perguntas. Porque a segunda, de que parte do

mundo vieram aqueles primeiros? Poderá responder cada um segundo a opinião que seguir, ou que de Judeia, ou que de Tróia, ou que de Cartago, ou que de Fenícia, etc. A terceira de que nação eram? Responderão uns,

que dos índios, outros que dos judeus, outros que dos Troianos, outros que dos Cartagineses, outros que dos

fenícios, etc. E finalmente à quarta pergunta: porque parte e de que maneira passaram a estas partes? Dirão

uns, que em naus a isso destinadas, outros que em naus desgarradas, outros por terra, ou breve estreito, etc.

que tudo são opiniões, e poderá seguir cada um o que melhor lhe parecer” (VASCONCELLOS, 1668, 100).

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suficiencia que otro para inquirirlas”. O “inca”, entretanto, é claro ao afirmar que estas

terras foram povoadas por gentes “tantas y de tan diversas lenguas y costumbres”

(GARCILASO DE LA VEGA, 1991, 11).

Antes de encerrarmos, consideramos necessário realizar duas ressalvas. Em

primeiro lugar, é importante observar que não pretendemos analisar neste capítulo “todos”

aqueles que se dedicaram à questão da origem dos índios. Entre vários outros autores que

não foram abordados, podemos citar Philippe du Plessis-Mornay, Marc Lescarbot, Robert

Le Comte, Jean-Baptiste Poisson, Georg Horn e Mathew Hale (Cf. HUDDLESTON, 1967;

ROSSI, 1992; GLIOZZI, 2000; MARTÍNEZ TERÁN, 2001). Além disso, é evidente que

continuaram existindo escritores que defendiam uma procedência única para todos os

grupos americanos. Contudo, o aumento significativo das reflexões sobre a origem dos

indígenas em confluência com a percepção crescente de sua diversidade que, em muitos

casos, remeteria a uma origem múltipla abre caminhos profícuos dentro do campo de

análise da representação europeia sobre o Novo Mundo e seus habitantes.

Acreditamos que as reflexões sobre a procedência dos habitantes do continente

americano descritas acima estão profundamente relacionadas à dificuldade de muitos

autores de articular diferentes grupos e costumes dos indígenas dentro de uma única

procedência. Para eles, a origem múltipla poderia ser a resposta para a existência de povos

tão díspares como os grandes reinos inca e asteca em contraposição aos pequenos grupos

nômades que povoavam a região amazônica e o extremo sul do continente, ou mesmo

características dentro de um mesmo grupo (práticas como o canibalismo poderiam ter uma

raiz diversa dos conhecimentos que possibilitaram a existência de grandes feitos

arquitetônicos ou de governos centralizados). Em resumo, acreditamos que o

prolongamento da experiência dos europeus na América bem como o contato com distintas

representações produzidas sobre eles estariam relacionados a um aumento das hipóteses

sobre os ancestrais dos americanos e, ao mesmo tempo, a adoção de respostas múltiplas

para esta questão.

Não por acaso, uma das análises mais influentes no período sobre a origem dos

índios, presente na Historia Natural y Moral de las Indias do jesuíta espanhol José de

Acosta, está profundamente associada às reflexões sobre o lugar ocupado por esses

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humanos dentro da cosmologia cristã a partir de uma visão hierarquizante dos diferentes

tipos de “bárbaros”, as relações com seus possíveis ancestrais do Velho Mundo e as

consequências que esta divisão exerceria na forma como eles deveriam se relacionar com

os europeus e no próprio processo de conversão. Temas estes, que serão abordados no

capítulo seguinte.

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Capítulo 3

José de Acosta e as relações entre tradição e experiência nas

representações sobre os indígenas

“Cierto es cosa maravillosa considerar que al

entendimiento humano por una parte no le sea posible

percibir y alcanzar la verdad, sin usar de

imaginaciones, y por otra tampoco le sea posible dejar

de errar si del todo se va tras la imaginación” (José de

Acosta, Historia Natural y Moral de las Indias, p. 28).

Acosta e os relatos sobre o Novo Mundo

Como pudemos observar nas páginas anteriores, cerca de um século após a

chegada das embarcações capitaneadas por Cristóvão Colombo na costa americana, as

dúvidas sobre a origem dos indígenas já contavam com um vasto repertório de análises e

respostas. A princípio ignorada ou limitada a alguns parágrafos nas partes introdutórias dos

relatos coloniais, esta questão gerou, em poucas décadas, teorias que iam da ligação com

remanescentes das tribos perdidas de Israel até grupos de sobreviventes do cataclismo que

destruiu a mítica ilha de Atlântida, entre várias outras possibilidades. A multiplicação de

hipóteses ocorria, muitas vezes, dentro de uma mesma obra, onde o autor atribuía

procedências específicas a determinados povos ou regiões do continente americano

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hierarquizando-os a partir de critérios como as diferentes formas de governo, o

desenvolvimento de crenças religiosas que pudessem ser identificadas como idolatrias ou a

existência de grandes construções ou sistemas de escrita.

Neste período, o jesuíta José de Acosta finalizou sua Historia Natural y Moral

de las Indias (1590), obra comumente apontada por parte considerável da historiografia

acerca da natureza e procedência dos indígenas como um referencial para as reflexões

elaboradas sobre este tema. Para estes autores (Cf. Capítulo 1), os escritos do religioso

espanhol poderiam ser apresentados tanto como exemplo de uma tradição considerada

como mais “avançada” de pensamento sobre os nativos do continente americano (que seria

pautada pela experiência obtida durante os anos em que viveu em diferentes regiões do

Novo Mundo236

) quanto como uma defesa dos interesses materiais da Coroa espanhola nas

terras recém-descobertas.

Ainda que tenhamos restrições com relação a estas interpretações, em especial

àquelas que identificam em Acosta uma descrição mais “real” dos indígenas (postura que

questionaremos nas páginas seguintes), concordamos que as reflexões apresentadas por este

jesuíta são praticamente incontornáveis quando analisamos o problema da origem dos

americanos e, mais amplamente, sua natureza e as formas como deveriam se relacionar com

a religião cristã e com a Coroa espanhola. Mesmo não sendo o primeiro autor a elaborar

hipóteses sobre uma possível ligação por terra entre os extremos dos continentes asiático e

americano ou a refutar teorias como a da origem atlante ou hebraica dos indígenas, os

comentários de Acosta sobre estes temas exerceram uma inegável influência em autores tão

distantes no tempo, no espaço e nas argumentações quanto Juan de Torquemada, Antonio

236 Acosta embarcou para a América em 1571, se estabelecendo em Lima no ano seguinte. Enquanto esteve

em terras peruanas, o religioso viajou para diversas localidades (como Cuzco, La Paz, Potosí e Arequipa),

exerceu os cargos de provincial da Companhia de Jesus no Peru e de reitor do Colégio de Lima, organizou a reunião da Primeira Congregação Provincial em Cuzco e participou do processo inquisitorial de quatro freis

dominicanos. Entre 1586 e 1587 (ano em que retornou à Europa), Acosta se mudou para a Nova Espanha,

onde teve contato com diversos religiosos e também com relatos sobre as terras americanas que foram

utilizados por ele na elaboração de sua Historia. Para informações biográficas sobre o inaciano, Cf.

NATALINO DOS SANTOS, 2002, 161-168; O’GORMAN, 1985, lvii-lx.

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Vázquez de Espinosa237

, Juan de Solórzano y Pereira238

, Menasseh ben Israel239

, entre

outros apontados nas páginas anteriores (Cf. GLIOZZI, 2000).

Um dos exemplos mais ilustrativos desta influência é o debate travado entre

Hugo Grotius e Joannes de Laet através de suas publicações sobre a origem dos índios.

Iniciada pelo jurista holandês com seu De Origine Gentium Americanarum (1642), esta

disputa intelectual gerou réplicas e tréplicas de ambas as partes. Em sua resposta a Grotius,

que já havia utilizado a obra de Acosta para formular a hipótese de uma migração tripla

associada a diferentes regiões do Novo Mundo, Laet corrobora várias das afirmações feitas

pelo jesuíta espanhol240

. Além disso, o integrante da Companhia das Índias Ocidentais

afirma que, ao receber de um amigo um manuscrito anônimo sobre o tema (que, meses

depois, viria a saber se tratar da obra de Grotius), teria enviado um volume da Historia de

Acosta ao autor para que sua leitura pudesse auxiliar na correção dos diversos erros

identificados por ele (WRIGHT, 1917, 270-271).

Mesmo entre autores que apontam outras teorias ou discordam das reflexões

formuladas pelo jesuíta espanhol, sua obra continua exercendo um papel fundamental.

Jerónimo de Mendieta é um dos exemplos. Ainda que tenha deixado a questão em aberto

em sua Historia eclesiástica indiana (c. 1596), o franciscano espanhol aponta em vários

momentos os judeus como os possíveis ancestrais dos americanos. Hipótese esta, que,

como veremos adiante, foi enfaticamente negada por Acosta. Entretanto, segundo John

Leddy Phelan (1970, 104), o seráfico milenarista teria sido impelido pelos argumentos

237 Em seu Compendio y descripción de las Indias Occidentales (c. 1620-30, mas publicado apenas no século

XX), Vázquez de Espinosa (1948, 32-35) arrola as mesmas hipóteses e muitos dos argumentos formulados

por Acosta a respeito das possíveis rotas migratórias percorridas pelos grupos humanos até o Novo Mundo.

238 Ainda que com conclusões diferentes em determinados momentos, Solórzano y Pereira (2001) não apenas

cita os argumentos de Acosta dezenas de vezes ao longo de sua obra como repete muitas de suas críticas a

determinadas teorias sobre a origem dos índios que circulavam no período (como a possível migração judaica

ou atlante) além de apontar a proposta de ligação por terra feita pelo jesuíta espanhol como sendo a mais

plausível.

239 O rabino português repete em sua Esperança de Israel (1650) várias das afirmações feitas por Acosta

acerca das dificuldades de se explicar a migração de animais selvagens por vias marítimas bem como suas críticas à hipótese atlante, além de concordar com o jesuíta a respeito da existência de uma possível ligação

por terra entre o Novo Mundo e o continente asiático.

240 Em seu L'Histoire du Nouveau Monde ou description des Indes Occidentales, publicado originalmente em

holandês anos antes da contenda com Grotius (1625), Laet afirma que não abordou a questão da origem dos

índios pois ela já havia sido analisada por Acosta, a quem remete os leitores interessados no tema.

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“racionalistas” do inaciano a alterar suas associações entre judeus e índios nas páginas

finais de sua obra, passando de uma ligação literal entre os dois grupos para um sentido

mais “místico”.

Thomas Thorowgood também pode ser apontado como exemplo. O pregador

inglês recorre constantemente ao relato de Acosta para reforçar algumas de suas ideias

sobre o Novo Mundo e seus habitantes, como a defesa de uma ligação por terra entre os

continentes asiático e americano e a ênfase na possibilidade de conversão dos nativos.

Contudo, como indicado já no título (Jewes in America), o cerne do relato deste autor é a

defesa da origem judaica dos indígenas, o que não o impede de utilizar os argumentos do

religioso espanhol como base para suas afirmações241

.

A grande influência de Acosta sobre seus contemporâneos pode ser explicada,

ao menos em parte, pela ampla difusão alcançada por sua obra. A Historia Natural y Moral

de las Indias foi uma das narrativas sobre o continente americano e seus habitantes mais

lidas e debatidas na Europa ao longo de todo período colonial242

. Em tempos de forte

controle por parte das autoridades reais sobre a divulgação de informações a respeito de

suas colônias (no que ficou conhecido como o “sequestro da crônica”), o relato de Acosta

foi um dos poucos a obter o imprimatur por parte do Conselho de Índias243

. Publicada em

espanhol em 1590244

, sua obra foi reimpressa seguidas vezes e rapidamente traduzida para

diversas línguas245

.

241

Thorowgood (1650, 6-10) cita trechos da Historia de Acosta que indicam a prática da circuncisão entre

alguns grupos indígenas além das reminiscências de passagens bíblicas existentes entre os nativos para

defender uma conclusão oposta à do jesuíta espanhol.

242 De acordo com Anthony Pagden (1988, 201), a obra de Acosta “dominó las especulaciones sobre los

indios americanos y su cultura en la última parte del siglo XVI y la mayor parte del XVII”.

243 É evidente que obras não autorizadas para publicação continuaram sendo lidas em forma manuscrita na

Europa e mesmo no Novo Mundo (Cf. BOUZA, 2001), entretanto sua circulação era muito mais restrita do

que a obtida por publicações como a de Acosta.

244 Versões em latim com título e conteúdo ligeiramente modificados já haviam sido publicadas em

Salamanca no final da década de 1580.

245 María de la Luz Ayala (2002, 26) identifica entre o final do século XVI e meados do XVII edições em

Barcelona (1591), Madri (1608), Veneza (1596), Paris (1598, 1606 e 1661), Colônia (598), Ursel (1605),

Frankfurt (1617), Londres (1604) e Enchuysen (1598), além da versão em latim da obra ter sido incluída nas

Grands Voyages, célebre coletânea de relatos de viajantes organizada pela casa impressora de Theodor de

Bry.

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Nossa decisão de analisar o relato de Acosta separadamente não está

relacionada, contudo, apenas à ampla difusão e influência alcançada por ele entre seus

contemporâneos. É importante ressaltarmos também o próprio conteúdo de suas reflexões,

onde o jesuíta articula grande parte dos temas e questões abordados nos capítulos anteriores

de nossa tese, como a influência decisiva de elementos das tradições clássica e cristã e das

análises presentes em outros relatos coloniais sobre a origem dos indígenas. No entanto,

não nos limitaremos à análise desta questão especificamente. Acreditamos que a defesa

feita pelo inaciano da especificidade e, mais importante ainda, das diferenças e

hierarquizações identificadas por ele entre os povos que habitavam as terras do novo

continente foram conceitos fundamentais não apenas para compreendermos suas

conclusões sobre a natureza dos americanos e a forma como deveriam se relacionar com os

europeus, mas também para outras representações realizadas no período acerca do Novo

Mundo e de seus habitantes.

Partindo deste princípio, o presente capítulo se centrará nos dois livros

iniciais246

que compõem a Historia de Acosta, onde o jesuíta aborda algumas teorias que

circulavam no período a respeito da procedência dos nativos, apresenta restrições e formula

sua hipótese sobre o tema. Como demonstrado anteriormente, não acreditamos ser

produtiva a abordagem que interpreta esta questão como algo com lógica própria e restrita a

ela mesma. Dessa forma, procuramos observar como a análise de Acosta sobre este tema se

relaciona com suas reflexões a respeito da natureza dos americanos. Para isso, analisaremos

outros trechos desta obra (em particular as passagens em que o autor hierarquiza os grupos

americanos em três níveis de barbárie). Faremos referência também a outra obra de Acosta,

seu De Procuranda Indorum Salute, escrito em meados da década de 1570 e publicado

apenas em 1588 com várias alterações exigidas pela censura real247

. Neste texto, o religioso

246 A divisão de conteúdos feita por Acosta em sua obra, a interação existente entre eles e com outros escritos

do religioso e as interpretações realizadas por alguns historiadores serão analisadas nas páginas seguintes.

247 Em sua apresentação do De Procuranda Indorum Salute, Luciano Pereña (1984, I, 3-46) traça o itinerário

do manuscrito até sua publicação. Para este historiador, há uma proximidade muito grande entre a obra de

Acosta e as atas da primeira sessão da Congregação Provincial organizada pelo jesuíta no Peru (ambas teriam

sido enviadas conjuntamente para Roma). Ainda segundo o autor, os principais cortes feitos pela censura

estavam relacionados à violência praticada pelos conquistadores, o que teria “despolitizado” a obra. Na

presente tese, utilizaremos a tradução para o espanhol da versão considerada original, sem as alterações impostas pela censura (ACOSTA, 1984).

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espanhol avalia a colonização e o projeto missionário além de sistematizar o processo de

catequese na América, tendo as terras peruanas como foco de sua narrativa (Cf. REIS,

2007)248

.

Pretendemos com estas páginas finalizar a análise sobre a questão da origem

dos índios nos escritos produzidos entre meados dos séculos XVI e XVII observando a

influência exercida pelas reflexões de Acosta para o desenvolvimento de uma visão que

enfatiza a multiplicidade dos indígenas. Entretanto, acreditamos que, apesar de estar

profundamente relacionado ao prolongamento do contato entre europeus e americanos, o

fortalecimento da visão da multiplicidade dos americanos não é o resultado de uma

“vitória” da experiência dos europeus no Novo Mundo sobre a tradição, mas sim de um

processo de interação entre estes dois elementos que produziu novas representações sobre

os indígenas.

A origem dos índios na Historia Natural y Moral de las Indias

Antes de abordar diretamente a questão da origem do homem americano,

Acosta faz uma série de reflexões sobre a geografia e a natureza do Novo Mundo que são

determinantes para suas conclusões sobre o tema. Logo nas primeiras páginas, o religioso

analisa as opiniões difundidas entre os “antigos” para defender que a existência de gentes e

porções de terras ainda desconhecidas eram negadas, e “lo que es más de maravillar, no

faltó quien también negase haber acá este cielo que vemos”. Após citar passagens bíblicas

e a opinião de alguns autores sobre o tema, Acosta se detém nas reflexões de Santo

Agostinho, que permanecia cauteloso quanto à existência de um céu que rodearia todas as

partes do planeta249

. Para concluir a questão, o jesuíta espanhol afirma não ter dúvidas

248 As estreitas ligações estabelecidas entre os dois textos são explicitadas pelo próprio autor: “sólo me contentaré con poner esta historia o relación a las puertas del Evangelio, pues toda ella va encaminada a

servir de noticia en lo natural y moral de Indias, como está largamente explicado en los libros que

escribimos: De Procuranda Indorum Salute” (ACOSTA, 1985, 216).

249 Para Acosta (1985, 15-17), estas reticências não diminuíam a importância de sua obra: “[…] no se ha de

ofender nadie ni tener en menos los santos Doctores de la Iglesia, si en algún punto de filosofía y ciencias

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quanto ao movimento e formato do céu, o que teria sido comprovado por seus próprios

olhos durante os anos vividos nas terras do Peru: “harto más manifiesta por la experiencia

de lo que nos pudiera ser por cualquiera razón y demostración filosófica” (ACOSTA,

1985, 15-17).

A apresentação das reflexões dos antigos em relação à abrangência dos céus, a

justificação da postura adotada por Agostinho e, principalmente, a importância atribuída

por Acosta à sua experiência250

no Novo Mundo são fundamentais para compreendermos a

sequência de sua argumentação. Após defender a existência do céu e da terra para além dos

limites do Velho Mundo, o religioso espanhol passa a abordar as opiniões de autores

clássicos (como Lactâncio), acerca da existência de gentes nestas localidades, os

“antípodas”. Novamente, Agostinho ocupa um lugar central em suas reflexões. De acordo

com o bispo de Hipona, os relatos sobre esses seres não deveriam ser levados em

consideração, pois seriam pautados apenas em ilações filosóficas. Ainda que discorde

destas afirmações, Acosta ressalta que, em seus escritos, o ilustre doutor da Igreja não

afirma ser impossível haver seres humanos nestas regiões, apenas aponta a monogenia

como um elemento incontornável para qualquer reflexão sobre o tema e aponta como

obstáculo as enormes porções de água que separariam estas terras das partes habitadas do

mundo (ACOSTA, 1985, 29-31).

naturales sienten diferentemente de lo que está más recibido y aprobado por buena filosofía; pues todo su

estudio fue conocer y servir y predicar al Creador, y en esto tuvieron grande excelencia”.

250 É importante salientarmos que, ao apontar a experiência como elemento crucial para a fundamentação de

seus argumentos, Acosta se alinha à reflexão aristotélica e, posteriormente, tomista, que interpreta a

experiência (empeiria) como etapa fundamental do processo de conhecimento, sendo o resultado das relações

estabelecidas entre os dados obtidos pelos sentidos e retidos pela memória. De acordo com Guilherme Amaral

Luz, na obra de Acosta, em especial em seu De Procuranda Indorum Salute, “os novos assuntos do Novo

Mundo requerem juízos para os quais não basta o bom domínio das Escrituras e da tradição, mas necessitam

também do conhecimento das particularidades da terra, o que só se adquire pela experiência”. Ainda segundo

o historiador, apesar de “colocar-se como observador autopsial das informações que provê, ele não atuava

como missionário junto aos índios e não é inverossímil pensar que muitas de suas informações (ou mesmo a

sua maioria) tenham sido retiradas de fontes escritas anteriormente [...] Assim, a experiência não pode ser

entendida como o ponto inicial para o recolhimento de informações, mas como lugar, no discurso, de autorização das informações como fidedignas”. No entanto, a experiência não é interpretada pelo jesuíta

espanhol como sendo o único elemento necessário para a compreensão dos novos assuntos, havendo o que

Luz denomina como “uma perfeita harmonia, expressa hierarquicamente, entre experiência e formação

teológica para a realização da finalidade máxima da Companhia de Jesus na América: ajudar o próximo (o

índio americano) a conhecer o amor de Deus e alcançar a salvação da alma” (2003, 106-127).

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A partir destas afirmações, Acosta busca formular uma hipótese sobre a origem

dos indígenas que não negasse os preceitos religiosos apontados por Agostinho: “La razón

porque nos hallamos forzados a decir que los hombres de las Indias fueron de Europa o de

Asia, es por no contradecir a la Sagrada Escritura, que claramente enseña que todos los

hombres descienden de Adán”251

. A defesa da origem única faz com que o religioso

espanhol identifique a presença do que ele denomina ser um “luz natural”252

em todos os

seres humanos, inclusive entre os antípodas253

. É importante observarmos que estes são

aspectos centrais não apenas para as reflexões de Acosta sobre a colonização inicial do

continente americano, mas também para suas afirmações em relação à natureza dos índios

presentes em sua Historia. A “luz natural” e a origem única poderiam explicar a presença

de reminiscências de eventos bíblicos, como o dilúvio universal (ainda que distorcidos pela

distância espacial e temporal254

), em algumas narrativas indígenas sobre seu passado

remoto além de confirmarem a total capacidade dos nativos americanos de se converterem

à fé cristã.

Em seguida, o religioso aborda a geografia do Novo Mundo, na tentativa de

identificar uma possível rota de migração até estas terras. Novamente, sua reflexão se inicia

251 Processo semelhante é apontado pelo religioso em relação aos animais que habitavam as regiões recém-

descobertas: “[...] la misma Divina Escritura también nos dice que todas las bestias y animales de la tierra

perecieron, sino las que se reservaron para propagación de su género en el Arca de Noé” (ACOSTA, 1985,

54).

252 “[…] hay en nuestras almas cierta lumbre del cielo, con la cual vemos y juzgamos aún las mismas imágenes y formas interiores que se nos ofrecen para entender; y con la dicha lumbre interior aprobamos o

desechamos lo que ellas nos están diciendo. De aquí se ve claro cómo el ánima racional es sobre toda

naturaleza corporal, y cómo la fuerza y vigor eterno de la verdad preside en el más alto lugar del hombre; y

vese cómo muestra y declara bien que esta su luz tan pura, es participada de aquella suma y primera luz; y

quien esto no lo sabe o lo duda podemos bien decir que no sabe o duda si es hombre” (ACOSTA, 1985, 28).

253 A humanidade dos indígenas é reafirmada por Acosta em vários momentos. Como exemplo, podemos citar

a passagem onde o jesuíta descreve a realização de sacrifícios humanos em determinadas localidades: “[...] lo

que más es de doler de la desventura de esta triste gente, es el vasallaje que pagaban al demonio,

sacrificándole hombres, que son a imagen de Dios y fueron creados para gozar de Dios”. Em outro trecho, o

religioso faz referência a um grupo indígena extremamente bárbaro que, em sua ignorância, chegava a negar a

sua humanidade: “Son estos uros tan brutales, que ellos mismos no se tienen por hombres. Cuéntase de ellos que preguntados qué gente eran, respondieron que ellos no eran hombres sino uros, como si fuera otro

género de animales” (ACOSTA, 1985, 248; 72).

254 Estes aspectos são ainda mais importantes dentro de seu De Procuranda Indorum Salute. Nesta obra,

Acosta (1984, I, 77) faz uma defesa enfática de que “no hay raza ninguna de hombres que este excluida de la

predicación del Evangelio y de la fe”.

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com um retorno à tradição, mais especificamente, aos autores que apontavam a

inabitabilidade das zonas tórridas. Suas atenções se concentram nos escritos de Aristóteles,

para quem as altas temperaturas impossibilitariam a existência de vida nestas regiões.

Acosta afirma que chegou a rir das afirmações do filósofo que, neste aspecto, teria se

enganado completamente (ACOSTA, 1985, 77). Porém, seu erro deveria ser “perdoado”, já

que o estagirita teria apenas seguido opiniões equivocadas disseminadas entre seus

contemporâneos. Mais uma vez, o jesuíta espanhol defende que a experiência teria sido a

responsável por fornecer informações que negavam conceitos provenientes da tradição,

pois, sem ela, eles ainda estariam sendo repetidos “porque veamos cuán flaco es nuestro

entendimiento para alcanzar aún estas cosas naturales” (1985, 35).

Apesar das negativas acima, Acosta reconhece que possa haver “notícias” sobre

o Novo Mundo nas obras de alguns autores antigos. Entre outros, o jesuíta aponta

passagens escritas por São Clemente sobre mundos além do oceano, de Plínio sobre longas

navegações em águas desconhecidas além das recorrentes referências feitas por muitos

autores às viagens de cartagineses a terras distantes para concluir que, “de todo esto se

puede bien colegir que hubiese en los antiguos algún conocimiento del Nuevo Mundo”

(ACOSTA, 1985, 38-39).

Por fim, o religioso espanhol se detém em duas profecias sobre o Novo Mundo,

uma clássica e outra cristã. A primeira delas teria sido feita por Sêneca que, em sua Medeia,

aponta a existência no futuro de embarcações capazes de cruzar os oceanos e encontrar

novas terras255

. Já a segunda está relacionada às passagens bíblicas onde os profetas

Isaías256

e Abdias falam sobre terras que poderiam ser interpretadas como referências às

Índias Ocidentais: “Quien quisiere declarar en esta forma la profecía de Abdías, no debe

ser reprobado, pues es cierto que el Espíritu Santo supo todos los secretos tanto antes y

255 “Tras luengos años verná / un siglo nuevo y dichoso / que al Océano anchuroso / sus límites pasará /

Descubrirán grande tierra, / verán otro Nuevo Mundo / navegando el gran profundo /que ahora el paso nos

cierra” (ACOSTA, 1985, 37).

256 De acordo com o religioso espanhol, “autores muy doctos” defendem que todo o capítulo 18 do livro de

Isaías faria referência à América, além de outras passagens atribuídas ao mesmo profeta, como, por exemplo:

“Porei entre eles um sinal e os que dentre eles forem salvos, eu os enviarei às nações dalém mar, à África, e à

Lídia, cujos povos atiram com setas, à Itália e à Grécia, às ilhas longínquas, àqueles que nunca ouviram falar

de mim, nem viram a minha glória. E eles anunciarão a minha glória às gentes” (Is, 66, 19).

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parece cosa muy razonable que de un negocio tan grande como es el descubrimiento y

conversión a la Fe de Cristo, del Nuevo Mundo, haya alguna mención en las Sagradas

Escrituras” (ACOSTA, 1985, 44).

i) as teorias refutadas

Ao formular suas próprias reflexões sobre a origem dos indígenas, Acosta

apresenta argumentos que, em sua opinião, invalidariam três hipóteses amplamente

difundidas entre seus contemporâneos. A primeira teoria rejeitada é a que associa as terras

peruanas com a bíblica Ofir. De acordo com o autor, sua experiência na região teria

indicado que estas terras não possuíam as riquezas naturais e minerais encontradas pelas

embarcações do rei Salomão descritas nas Sagradas Escrituras. Além disso, o religioso nega

também as aproximações linguísticas defendidas por alguns autores entre os topônimos

“Peru” e “Ofir”: “Ni basta haber alguna afinidad o semejanza de vocablos, pues de esa

suerte también diríamos que Yucatán es Yectan, a quien nombra la Escritura, ni los

nombres de Tito y de Paulo que usaron los reyes ingas de este Pirú, se debe pensar que

vinieron de romanos o de cristianos, pues es muy ligero indicio para afirmar cosas tan

grandes” (ACOSTA, 1985, 40-41).

O jesuíta nega também as hipóteses que associavam o Novo Mundo à Atlântida

ou, ao menos, apontavam a ilha como local de passagem de animais e seres humanos do

Velho Mundo para a América. Após descrever a narrativa platônica sobre as míticas terras

atlantes, Acosta afirma não ter tanta reverência por Platão (“por más que le llamen divino”)

nem por seus seguidores, que interpretam as descrições feitas pelo filósofo grego como

sendo referentes a uma localidade real. O religioso se empenha em mostrar que,

independente de terem sido escritas como história ou alegoria, as narrativas platônicas

sobre este local não poderiam ser interpretadas como repositório de informações confiáveis

sobre o Novo Mundo, pois “más parecen cuentos o fábulas de Ovidio que historia o

filosofía digna de cuenta”. Entre os argumentos apontados por ele, está o fato do mito

afirmar que estas terras teriam sido destruídas em um único dia sem deixar vestígios, o que

seria inviável devido às suas dimensões continentais, e o fato de Plínio fazer referência a

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uma ilha próxima à Mauritânia, “muy pequeña y muy ruin”, que teria o nome de Atlântida

(ACOSTA, 1985, 58-60).

A terceira teoria contestada é a que identifica uma origem judaica para os

indígenas – ou, ao menos, para alguns grupos específicos – a partir das passagens dos

apócrifos de Esdras sobre as dez tribos perdidas de Israel. Ao negar esta hipótese, Acosta

faz uma descrição extremamente negativa dos judeus (medrosos, mentirosos, decaídos e

“amigos do dinheiro”) e afirma que a possível existência de alguns desses costumes

reprováveis entre os indígenas não poderia ser utilizada como evidência de uma ligação

direta entre os dois povos. Segundo o autor, esta associação não se confirmaria, pois seria

inexplicável que um povo tão cioso de suas tradições tivesse abandonado completamente

suas leis, cerimônias, costumes e língua ao se estabelecerem no território americano: “pues

ya la historia de Esdras (si se ha de hacer caso de escrituras apócrifas) más contradice que

ayuda su intento, porque allí se dice que las diez tribus huyeron la multitud de gentiles, por

guardar sus ceremonias” (ACOSTA, 1985, 60-62).

ii) a migração asiática para o Novo Mundo

As refutações feitas a algumas teorias e, principalmente, a falta de sistemas

eficientes de escrita que permitiriam a manutenção do passado remoto entre os grupos

indígenas257

são apontados por Acosta para defender que era mais fácil identificar as

hipóteses falsas e os erros de interpretação do que determinar qual seria a “verdadeira”

origem dos americanos (ACOSTA, 1985, 62). Mesmo assim, o jesuíta espanhol faz

afirmações sobre o tema. Em primeiro lugar, tenta deixar claro que, apesar das imposições

257 A falta de meios de manutenção de registros sobre o passado entre os indígenas é apontada pelo religioso

como sendo responsável por sua decisão de ignorar o conteúdo dos relatos indígenas ao refletir sobre a origem

destes povos: “Saber lo que los mismos indios suelen contar de sus principios y origen, no es cosa que

importa mucho; pues más parecen sueños los que refieren, que historias [...] Lo que hombres doctos afirman

y escriben es que todo cuanto hay de memoria y relación de estos indios, llega a cuatrocientos años, y que

todo lo de antes es pura confusión y tinieblas, sin poderse hallar cosa cierta. Y no es de maravillar

faltándoles libros y escritura, en cuyo lugar aquella su tan especial cuenta de los quipocamayos, es harto y muy mucho que pueda dar razón de cuatrocientos años. Haciendo yo diligencia para entender de ellos, de

qué tierras y de qué gente pasaron a la tierra en que viven, hallélos tan lejos de dar razón de esto que antes

tenían por muy llano que ellos habían sido creados desde su primer origen en el mismo Nuevo Orbe, donde

habitan, a los cuales desengañamos con nuestra fe, que nos enseña que todos los hombres proceden de un

primer hombre” (ACOSTA, 1985, 64).

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estabelecidas pelos relatos bíblicos, seu esforço foi o de formular uma explicação para este

“segredo de Deus” “conforme a razón y al orden y estilo de las cosas humanas”. Isto fez

com que hipóteses como a existência de uma segunda arca de Noé ou a migração através de

intervenções divinas diretas258

fossem descartadas previamente.

Segundo o autor, restariam apenas três rotas plausíveis de migração: por mar,

através de navegações “conscientes” ou desviadas de sua trajetória por tormentas, ou por

terra: “Fuera de esas tres maneras, no me ocurre otra posible si hemos de hablar según el

curso de las cosas humanas y no ponernos a fabricar ficciones poéticas y fabulosas”

(ACOSTA, 1985, 46). Para ele, a hipótese inicial até poderia ser considerada, devido aos

relatos antigos que falavam sobre navegações em direção a terras distantes, mas não é

aprofundada, sob o argumento de que os antigos ignoravam a existência de utensílios como

a bússola, o que inviabilizaria viagens marítimas de longas distâncias que se afastassem das

regiões litorâneas.

Sobre as migrações acidentais de embarcações, Acosta é mais tolerante. O

religioso afirma ser plausível que algumas naus tivessem se desgarrado de sua trajetória

inicial a ponto de alcançarem terras distantes como as Índias Ocidentais, fato este

repetidamente citado por autores antigos e contemporâneos259

. Entre os possíveis migrantes

acidentais, o autor faz referência a um grupo de gigantes bíblicos cujos ossos ainda seriam

encontrados em algumas regiões do Peru260

. Estes seres, porém, não seriam os ancestrais

258 Acosta faz referência nesta afirmação à passagem do livro de Daniel (14, 32-38) onde o profeta Habacuc

(possivelmente uma personagem diferente do profeta a quem se atribui o livro de Habacuc) é transportado

pelos cabelos por anjos até a Babilônia, onde é instado por Deus a alimentar Daniel, então aprisionado na

cova dos leões.

259 Acosta (1985, 52) afirma que algo semelhante teria ocorrido antes da chegada de Colombo: “así sucedió en

el descubrimiento de nuestros tiempos, cuando aquel marinero (cuyo nombre aún no sabemos, para que

negocio tan grande no se atribuya a otro autor sino a Dios) habiendo por un terrible e importuno temporal

reconocido el Nuevo Mundo, dejó por paga del buen hospedaje a Cristóbal Colón la noticia de cosa tan

grande”.

260 O jesuíta também aponta a existência de gigantes na região da Nova Espanha. Estes seres teriam sido

destruídos pelos tlascaltecas após serem atraídos para um banquete com promessas de paz e, já embriagados, serem desarmados e assassinados: “Nadia se maraville ni tenga por fábula lo de estos gigantes, porque hoy

día se hallan huesos de hombres de increíble grandeza. Estando yo en México, año de ochenta y seis, toparon

un gigante de estos enterrado en una heredad nuestra, que llamamos Jesús del Monte, y nos trajeron a

mostrar una muela, que sin encarecimiento sería bien tan grande como un puño de un hombre, y a esta

proporción lo demás, la cual yo vi y me maravillé de su disforme grandeza” (ACOSTA, 1985, 323).

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diretos dos americanos, pois teriam chegado a terras já habitadas, onde guerrearam com os

nativos até serem destruídos por um fogo enviado dos céus como punição aos seus

numerosos pecados261

.

Entretanto, esta teoria não poderia responder à questão por completo, pois ela

ainda deixava perguntas em aberto. Em especial, restava explicar como os animais

selvagens teriam migrado para estas terras, uma vez que eles não poderiam ser

autóctones262

e, dificilmente, teriam sido transportados pelos humanos. Acosta conclui suas

conjecturas sobre o tema defendendo a existência de uma ligação por terra ou de um

pequeno estreito marítimo que teria permitido a migração de homens e animais do Velho

Mundo para o continente americano. Segundo o autor, esta hipótese ganha força quando

determinados aspectos são levados em consideração, como a ausência de grandes

embarcações entre os grupos americanos e a existência de ilhas desabitadas em alto mar (o

que indicaria que os antigos não possuíam meios que permitissem alcançá-las):

“Si esto es verdad como en efecto me lo parece, fácil respuesta

tiene la duda tan difícil que habíamos propuesto, cómo pasaron a las Indias los

primeros pobladores de ellas, porque se ha de decir que pasaron no tanto

navegando por mar como caminando por tierra. Y ese camino lo hicieron muy

sin pensar mudando sitios y tierras su poco a poco, y unos poblando las ya

halladas, otros buscando otras de nuevo, vinieron por discurso de tiempo a

henchir las tierras de Indias de tantas naciones y gentes y lenguas” (ACOSTA,

1985, 56).

Após determinar a rota terrestre ou a travessia através de um pequeno estreito

marítimo como sendo as respostas mais satisfatórias para explicar a migração entre os

continentes, Acosta tenta definir o período em que este evento teria ocorrido. Mais ainda, o

261 Mesmo não apontando os gigantes como os ancestrais dos indígenas, o autor afirma que estes seres teriam

sido responsáveis pelas grandes construções existentes na região do Peru (ACOSTA, 1985, 53).

262 Para o religioso, apenas animais inferiores e imperfeitos poderiam ser criados espontaneamente, todos os

outros deveriam estar associados à Arca de Noé: “no es conforme al orden de la naturaleza ni conforme al

orden del gobierno que Dios tiene puesto, que animales perfectos como leones, tigres, lobos, se engendren de

la tierra sin generación. De ese modo se producen ranas y ratones, y avispas y otros animalejos imperfectos”

(ACOSTA, 1985, 55).

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autor busca determinar que grupo – ou grupos – teria(m) realizado este feito. Em relação ao

aspecto cronológico, o jesuíta é peremptório ao afirmar que isto teria ocorrido “no ha

muchos millares de años”. Já a respeito da segunda questão, sua resposta é mais vaga. Para

ele, os primeiros colonizadores “más eran hombres salvajes y cazadores que no gente de

república y pulida; y que aquéllos aportaron al Nuevo Mundo por haberse perdido de su

tierra o por hallarse estrechos y necesitados de buscar nueva tierra”. Entretanto, o

religioso deixa espaço para a migração de povos mais desenvolvidos, que, ao se

estabelecerem nestas terras isoladas, teriam lentamente abandonado seus costumes: “así

que por este camino vino a haber una barbaridad infinita en el Nuevo Mundo”263

.

iii) entre o natural e o moral

As reflexões sobre a existência de terras para além do Velho Mundo e as

possíveis origens dos grupos humanos que as habitavam compõem parte significativa do

livro inicial da Historia de Acosta. Seu conteúdo, porém, é anterior a esta obra, sendo parte

do De Natura Novi Orbis264

, tratado escrito originalmente em latim pelo religioso no início

da década de 1580. Poucos anos depois, em 1588, estas páginas foram republicadas em um

volume conjunto com o seu De Procuranda Indorum Salute265

.

Mesmo estando relacionado diretamente às duas principais obras de Acosta, o

tema da origem dos americanos foi pouco abordado pela historiografia que analisa os

escritos deste jesuíta. Uma das raras exceções é Edmundo O’Gorman, que atrela as

hipóteses do religioso espanhol sobre a procedência dos indígenas ao conteúdo apresentado

nos quatro livros iniciais de sua Historia. Segundo o historiador mexicano, haveria uma

263 Acosta (1985, 63) afirma que este processo não teria ocorrido exclusivamente no Novo Mundo. Regiões da

Espanha e da Itália também teriam sido povoadas por grupos humanos que, devido aos longos períodos de

isolamento, se tornaram extremamente selvagens “que si no es el gesto y figura, no tienen outra cosa de hombres”.

264 Este tratado corresponde aos dois primeiros livros da Historia, onde também há uma série de capítulos

dedicados às características da zona tórrida.

265 Segundo o próprio autor, a decisão de publicá-lo em conjunto com seu outro tratado seria “para despertar

interes por el De Procuranda” (apud O’GORMAN, 1985, xxvii).

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“liga conceptual”266

entre as questões abordadas nestas páginas: a história natural. Ele

defende que, para Acosta, havia uma separação clara entre os conteúdos “naturais” e

“morais”, que possuiriam lógicas próprias e independentes267

. Isto faz com que O’Gorman

(1985, xxxi-xxxii) remeta a origem dos índios a um problema eminentemente geográfico,

que não estabeleceria relações com as questões acerca da natureza dos indígenas: “[…] a

poco que se considere el asunto se advierte que aquel problema está visto como tema de

geografía humana y no de ‘historia moral’, de suerte que no sólo se justifica el lugar donde

se halla, sino que se percibe su secuencia lógica con respecto al tema inmediato anterior

que trata de América, precisamente, desde el punto de vista geográfico”.

É evidente que Acosta segue uma lógica no encadeamento dos temas

apresentados nos capítulos e livros de seu tratado, o que é identificado e analisado em

detalhes por O’Gorman. Contudo, ainda que o próprio jesuíta identifique uma divisão entre

o natural e o moral268

já no título de sua obra269

, acreditamos que ela é menos estanque do

que o apontado pelo historiador mexicano. De acordo com Fermín del Pino Díaz (1978,

487), esta leitura compartimentada segue critérios (como as divisões atuais dentro da

academia entre Ciências e Humanidades) inexistentes no período em que a obra foi

composta270

. Dessa forma, pretendemos demonstrar que, ao longo de sua Historia, Acosta

266 Para uma descrição dos conteúdos e da divisão dos livros da Historia, Cf. NATALINO DOS SANTOS,

2002, 172-173.

267 Postura semelhante é adotada por María de la Luz Ayala (2005, 27), para quem: “Lo que distingue esta

Historia de la de Oviedo es que aquí se hace la separación tajante entre lo natural y lo moral. Cada parte es tratada por separado en libros distintos”.

268 Guilherme Amaral Luz (2003, 110) descreve as acepções dadas pelo inaciano para os dois termos: “[...] em

Acosta, quando falamos em História Natural, supomos a descrição edificante da dinâmica dos vários entes do

mundo, subordinada ao fim (previsto teleologicamente) que eles tendem a realizar. Já História Moral refere-se

aos movimentos arbitrários do homem que, igualmente, devem levar ao fim previsto pelo Criador ou, como o

missionário diz em relação ao índio, à sua ‘vocação do Santo Evangelho’”.

269 No prólogo do quinto livro, que dá início às questões morais, o religioso aponta os critérios seguidos por

ele na divisão interna de seu tratado: “Habiendo tratado lo que la historia natural de Indias pertenece, en lo

que resta se tratará de la historia moral, esto es, de las costumbres y hechos de los indios. Porque después

del cielo y temple, y sitio y cualidades del Nuevo Orbe, y de los elementos y mixtos, quiero decir de sus

metales, y plantas y animales, de que en los cuatro libros precedentes se ha dicho lo que se ha orecido; la razón dicta seguirse el tratar de los hombres que habitan el Nuevo Orbe” (ACOSTA, 1985, 215).

270 Pino Díaz (1978, 488) reforça suas conclusões ao analisar as interpretações feitas sobre um capítulo

específico da obra de Acosta: “[o botánico Álvarez López e o paleontólogo Emiliano Aguirre] han intentado

probar la existencia de una teoría evolucionista en un capítulo especial de la historia natural, aquel titulado

‘Cómo sea posible haber en Indias animales que no hay en otra parte del mundo’. En mi opinión, ninguno de

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estabelece relações entre os dois termos que consideramos fundamentais para a

compreensão de aspectos como a natureza, a diversidade e o local que os povos indígenas

ocupariam dentro da hierarquia identificada pelo religioso entre os “bárbaros”.

Interpretação esta, que dificulta as leituras que interpretam estes dois campos como polos

autônomos ou, até mesmo, opostos.

Como poderemos observar mais detidamente no próximo item, Acosta defende

em sua obra a existência de uma hierarquia rigidamente organizada entre os grupos

humanos, o que é parte fundamental de sua interpretação sobre as questões morais das

Índias. Porém, esta divisão também é observada pelo autor no campo natural. Como

exemplos, podemos citar as passagens onde o jesuíta identifica aspectos inferiores na

natureza do Novo Mundo em relação a do Velho, como o céu271

e os animais. No segundo

caso, Acosta vai além. Ao identificar a existência de animais comuns às duas porções de

terra (o que reforçaria sua hipótese de uma ligação terrestre ou através de um pequeno

estreito marítimo), o inaciano é claro ao afirmar que os “leões” oriundos da América “no

igualan en grandeza y braveza [...] a los famosos leones de Africa”. O autor chega a

afirmar que esta divisão também ficava evidente na relação dos animais selvagens com os

humanos: os ferozes “tigres” americanos instintivamente atacariam mais aos indígenas do

que aos espanhóis (ACOSTA, 1985, 56-58).

As descrições feitas por Acosta sobre os alimentos consumidos pelos

americanos também ilustram as relações entre aspectos naturais e morais dentro de seu

relato. Os diferentes estágios de desenvolvimento identificados pelo autor entre os grupos

indígenas se refletiriam não apenas na alimentação, mas na própria natureza das regiões que

habitavam. Segundo o jesuíta, o pão é a forma básica de alimento dos seres humanos e, por

isso, deveria ser consumido por todos, inclusive os americanos. Porém, nenhum dos grãos

ellos ha demostrado que exista en este capítulo esta teoría, ni mucho menos que haya ejercido alguna

influencia en algún botánico o paleontólogo posterior; y este fracaso en la demostración se debe justamente

a que han prescindido de buscar esta teoría en la historia moral de Acosta, la que trata de los hombres

americanos, dono no solo se halla repetidamente expuesta, sino que su influencia es manifiesta en autores posteriores de considerable importancia en la historia de la Etnología”.

271 “Los que de nuevo navegan a estas partes suelen escribir cosas grandes de este cielo; es a saber: que es

muy resplandeciente y que tiene muchas y muy grande estrellas. En efecto, las cosas de lejos se pintan muy

engrandecidas; pero a mí, al revés me parece y tengo por llano que a la otra banda del Norte, hay más

número de estrellas y de más ilustre grandeza” (ACOSTA, 1985, 24).

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utilizados pelos europeus para a fabricação deste alimento era encontrado ou se desenvolvia

satisfatoriamente nas terras do Novo Mundo. Esta dificuldade teria levado os nativos a

buscarem outras matérias-primas, onde se destaca o milho, interpretado como uma dádiva

divina que teria permitido a produção do “pão das Índias”272

.

A partir destas afirmações, Acosta estabelece uma série de equivalências entre o

papel exercido pelo milho na América com o do trigo na Europa e, ainda, o arroz entre os

grupos asiáticos. Contudo, este grão não existia em todo o continente americano, mas

apenas em regiões habitadas por povos com costumes e governos mais desenvolvidos, em

especial os incas e astecas. Já os indígenas mais “bárbaros” (como os nômades e selvagens

habitantes de Cuba e da América Portuguesa) baseavam sua alimentação na mandioca,

vegetal descrito pelo jesuíta como um substituto inferior ao milho e ao trigo (ACOSTA,

1985, 169-173). Seguindo estas afirmações, Acosta estabelece uma relação direta entre os

diferentes níveis de desenvolvimento alcançados pelos grupos americanos (algo

relacionado à história moral) com elementos do mundo natural, uma vez que a qualidade

inferior das terras das regiões mais “bárbaras” impossibilitaria o desenvolvimento de

alimentos “superiores”273

.

iv) a multiplicidade dos indígenas

272 “En fin, repartió el Creador a todas las partes de su gobierno; a este orbe dio el trigo, que es el principal

sustento de los hombres; a aquel de las Indias dio el maíz, que tras el trigo tiene el segundo lugar para el

sustento de hombres y animales” (ACOSTA, 1985, 172). O religioso afirma que, além do pão, o milho

também era matéria-prima para a produção de uma espécie de vinho (com que alguns grupos nativos se

embriagavam), ambos alimentos simbólicos dentro da tradição cristã. No entanto, ele também teria sido

utilizado pelo demônio, que instigava os nativos a construírem ídolos com uma massa feita deste grão que

eram utilizados em cerimônias religiosas em sua homenagem. Para uma análise das relações entre

alimentação e religiosidade nos relatos coloniais, Cf. PANEGASSI, 2008; KALIL e SILVA, 2014.

273 A hierarquia entre os seres vivos a partir da alimentação é reforçada em outros trechos da obra do jesuíta:

“[...] los animales exceden a las plantas, que como tienen ser más perfecto, tienen necesidad de alimento también más perfecto, y para buscarle les dió la naturaleza movimiento, y para conocerle y descubrirle,

sentido. De suerte que la tierra estéril y ruda es como materia y alimento de plantas; as mismas plantas son

alimentos de animales, y las plantas y animales alimento de los hombres, sirviendo siempre la naturaleza

inferior para sustento de la superior y la menos perfecta subordinándose a la más perfecta” (ACOSTA,

1985, 140).

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Nas páginas de sua Historia dedicadas ao segundo termo do binômio adotado

como eixo de sua obra, Acosta identifica três estágios de desenvolvimento que poderiam

ser identificados entre os habitantes das Índias Ocidentais:

“[…] se han hallado tres géneros de gobierno y vida en los indios.

El primer y principal, y mejor, ha sido de reino o monarquía, como fue el de los

Ingas, y el de Motezuma, aunque éstos eran en mucha parte tiránicos. El segundo

es de behetrías o comunidades, donde se gobiernan por consejo de muchos, y son

como consejos. Estos, en tiempo de guerra, eligen un capitán, a quien toda una

nación o provincia obedece. En tiempo de paz, cada pueblo o congregación se

rige por sí, y tiene algunos principalejos a quienes respeta el vulgo; y cuando

mucho, júntanse algunos de éstos en negocios que les parecen de importancia, a

ver lo que les conviene. El tercer género de gobierno es totalmente bárbaro, y

son indios sin ley, ni rey, ni asiento, sino que andan a mandas como fieras y

salvajes. Cuanto yo he podido comprender, los primeros moradores de estas

Indias, fueron de este género, como lo son hoy día gran parte de los brasiles y los

chiriguanas y chunchos, e yscaycingas y pilcozones, y la mayor parte de los

floridos, y en la Nueva España todos los chichimecos. De este género, por

industria y saber de algunos principales de ellos, se hizo el otro gobierno de

comunidades y behetrías, donde hay alguna más orden y asiento, como son hoy

día los de Arauco y Tucapel en Chile […] y en todos los tales se halla menos

fiereza y más razón. De este género, por la valentía y saber de algunos excelentes

hombres, resultó el otro gobierno más poderoso y próvido de reino y monarquía

que hallamos en México y en el Pirú” (ACOSTA, 1985, 304).

É importante observarmos que esta gradação identificada pelo jesuíta entre os

indígenas está relacionada a uma divisão anterior, referente a todos os grupos “bárbaros”274

.

Em seu De Procuranda, Acosta identifica três estágios de barbárie, “a las que se pueden

reducir casi todas estas naciones indianas”. O primeiro e mais desenvolvido nível era

formado por grupos que “no se apartan gran cosa de la recta razón”, marcados por, entre

outros fatores, governos estáveis, cidades fortificadas, leis comuns, comércio organizado e,

274 Acosta (1984, I, 61) define bárbaro como, “según la definición de prestigiosos autores […] aquéllos que se

apartan de la recta razón y de la práctica habitual de los hombres”.

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principalmente, uso das letras. Como exemplos de povos que integravam este estágio, o

jesuíta cita os chineses e japoneses, que, não por acaso, teriam tido contato anterior com

elementos da “cultura europeia” (ACOSTA, 1984, I, 63).

A segunda categoria de “bárbaros” identificada pelo religioso espanhol era

representada pelos incas e astecas: nações que teriam superado “deficiências” como a falta

de escrita e conseguido guardar algumas informações (ainda que reduzidas a poucos

séculos) sobre suas histórias, ritos e leis. Além disso, estes povos possuíam um governo

central, habitações fixas, líderes militares, cultos religiosos e normas de comportamento.

Porém, Acosta ressalta que, a despeito destas características “positivas”, “están todavía

muy lejos de la recta razón y de las prácticas propias del género humano” (ACOSTA,

1984, I, 63).

Já o terceiro e último estágio de barbárie era composto por homens “selvagens”,

com comportamento semelhante aos dos animais. Estes grupos nômades tinham como

principais características a ausência de fé, lei ou rei, restando apenas alguns poucos

aspectos como evidências de que se tratavam de seres humanos275

. De acordo com o

religioso espanhol, este estágio inferior era abundante no Novo Mundo, estando presente

em incontáveis nações de diferentes regiões, como o Caribe, a Flórida e partes da América

Portuguesa.

Ao compararmos as duas divisões estabelecidas por Acosta (entre os indígenas

e, mais amplamente, entre todos os “bárbaros”), alguns aspectos se destacam. Em primeiro

lugar, devemos observar que, para o jesuíta, apesar de serem os grupos mais desenvolvidos

da América, incas e astecas não teriam alcançado o estágio superior de barbárie, restrito a

alguns povos asiáticos276

. Além disso, o autor trabalha com a noção de que havia

mobilidade entre os estágios de barbárie ocupados pelos americanos277

. Por fim, fica claro

275 Dentro deste campo, poderíamos incluir a “luz natural” atribuída pelo religioso a todos os seres humanos.

276 Cañizares-Esguerra (2011, 80) afirma que os jesuítas foram os principais responsáveis por introduzir a

ideia de que a sociedade chinesa era um sistema de governo clássico e virtuoso.

277 De acordo com o jesuíta, a atuação de “grandes homens” poderia fazer com que grupos inferiores se

desenvolvessem e ascendessem aos níveis superiores de barbárie: “El tercer género de gobierno es totalmente

bárbaro, y son indios sin ley, ni rey, ni asiento, sino que andan a mandas como fieras y salvajes. Cuanto yo

he podido comprender, los primeros moradores de estas Indias, fueron de este género […] De este género,

por industria y saber de algunos principales de ellos, se hizo el otro gobierno de comunidades y behetrías,

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que, para o religioso, esta divisão não se restringia a uma mera ordenação dos “bárbaros”

dentro de uma escala, mas se estendia a muitos outros aspectos da natureza destas gentes e

de suas terras. Afora outros elementos (como as questões associadas à alimentação,

apontadas nas páginas anteriores), esta divisão está diretamente relacionada às diferentes

formas como os “bárbaros” deveriam ser introduzidos à fé cristã278

.

Isto fica evidente nos trechos em que o autor estabelece uma relação direta

entre a existência de governos centralizados e a velocidade e qualidade do processo de

conversão destes grupos. De acordo com Acosta, a existência de senhores temporais com

grande poder “hizo que el Evangelio se pudiese comunicar con facilidad a tantas gentes y

naciones”. O fato dos reinos inca e asteca estarem em expansão no momento da chegada

dos espanhóis teria sido providencial para a disseminação da fé cristã, pois os líderes

indígenas, ao conquistarem novas terras, introduziam sua língua, o que facilitava

sobremaneira a atuação dos missionários: “De cuánta ayuda haya sido para la predicación

y conversión de las gentes la grandeza de esos dos imperios que he dicho, mírelo quien

quisiere en la suma dificultad que se ha experimentado en reducir a Cristo, los indios que

no reconocen un señor. Véanlo en la Florida y en Brasil, y en los Andes y en otras cien

partes, donde no se ha hecho tanto efecto en cincuenta años, como en el Pirú y Nueva

España en menos de cinco se hizo” (ACOSTA, 1985, 374).

Não por acaso, Acosta dá grande destaque em seu De Procuranda às diferentes

formas de idolatria praticadas pelos gentios279

. A partir da obra de João Damasceno280

e de

donde hay alguna más orden y asiento, como son hoy día los de Arauco y Tucapel en Chile […] y en todos los

tales se halla menos fiereza y más razón. De este género, por la valentía y saber de algunos excelentes

hombres, resultó el otro gobierno más poderoso y próvido de reino y monarquía que hallamos en México y en

el Pirú” (ACOSTA, 1985, 305).

278 Ao analisar as hierarquizações estabelecidas por Acosta, Anthony Pagden (1988, 252) afirma que, mais do

que a forma de governo, o jesuíta espanhol articula outras questões: “las tres categorías de bárbaros

establecidas por Acosta se componen de tres niveles de organización social impuestos sobre tres niveles de

observancia religiosa y tres fases de desarrollo lingüístico”.

279 O jesuíta volta a analisar os diferentes tipos de idolatria em sua Historia. Nela, o jesuíta trabalha com

conceitos e critérios semelhantes, mas chega a conclusões ligeiramente diferentes: “reduciendo la idolatría a cabezas, hay dos linajes de ella: una es cerca de cosas naturales; otra cerca de cosas imaginadas o

fabricadas por invención humana. La primera de estas se parte en dos, porque o la cosa que se adora es

general como sol, luna, fuego, tierra, elementos, o es particular como tal río, fuente o árbol […] El segundo

género de idolatría, que pertenece a invención o ficción humana, tiene también otras dos diferencias: una de

lo que consiste en pura arte e invención humana, como es adorar ídolos o estatua de palo, o de piedra o de

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trechos bíblicos que abordam este tema, o jesuíta identifica três tipos de idolatria que, de

acordo com Anthony Pagden (1988, 227), correspondem aos três principais níveis

hierárquicos do mundo natural. A primeira delas era associada aos fenômenos naturais e

seria praticada por grupos como os caldeus, que idolatravam as esferas celestes, os signos e

elementos da natureza; em seguida, estariam as relacionadas aos animais, adotada, por

exemplo, pelos egípcios, que “rinden honores divinos a los animales sórdidos y viles y a

las mismas piedras y leños que no tienen vida”; por fim, havia a idolatria associada aos

seres humanos, seja aos mortos (como a praticada pelos gregos) ou a ídolos

antropomórficos (ACOSTA, 1984, II, 251).

Após estabelecer sua tipologia, o religioso espanhol, ainda seguindo os escritos

de João Damasceno, afirma que a idolatria relacionada às coisas humanas é a mais grave de

todas281

. A partir destas afirmações, Acosta passa a analisar a existência destas práticas

entre os grupos indígenas, em particular os peruanos282

, que, para ele, praticariam as três

formas de idolatria283

. A associação entre os diferentes tipos de idolatria e os estágios de

oro, como de Mercurio o Palas, que fuera de aquella pintura o escultura, ni es nada ni fue nada. Otra

diferencia es de lo que realmente fue y es algo, pero no lo que finge el idólatra que lo adora, como los

muertos o cosas suyas que por vanidad y lisonja adoran los hombres. De suerte que por todas contamos

cuatro maneras de idolatría que usan los infieles” (ACOSTA, 1985, 219).

280 Doutor da Igreja que, apoiado nas obras de Aristóteles, respondeu a acusações de idolatria no ambiente

islâmico da região de Damasco, onde viveu entre os séculos VII e VIII.

281 Argumentação também presente no livro deuterocanônico da Sabedoria: “Se eles, encantados com a beleza

de tais coisas, as julgaram deuses, reconheçam quanto é mais formoso do que elas o que é seu Senhor; porque

foi o autor da formosura que criou todas estas coisas [...]. Todavia, estes homens são menos repreensíveis, porque, se caem no erro, é talvez buscando a deus e desejando encontrá-lo. Porquanto eles buscam-no pelo

exame das suas obras, e são seduzidos pela beleza das coisas que veem. Mas, por outra parte, nem estes

merecem perdão, porque, se chegaram a ter luz bastante para poderem fazer uma ideia do universo, como não

descobriram mais facilmente o Senhor dele? São, porém, desgraçados, e fundam em coisas mortas as suas

esperanças, aqueles que chamaram deuses às obras das mãos dos homens, ao ouro e à prata, às invenções da

arte, às figuras de animais, ou a uma pedra inútil, obra de mão antiga” (Sab, 13, 3-10).

282 É importante lembrarmos que, em alguns trechos de suas obras, Acosta afirma que suas análises são

referentes apenas aos peruanos. Contudo, a própria construção dos argumentos feita pelo jesuíta – buscando

hierarquizações amplas, que transcendem o continente americano – permite que algumas de suas

interpretações, como a divisão das práticas idolátricas em três níveis, sejam ampliadas para todos os

indígenas.

283 “Nuestros peruanos tributan la mayor veneración al sol y, después de él, al trueno: al sol lo llaman

Punchao, y al trueno, Llapa. También adoran, como hacían los caldeos, a Quilla, es decir, a la luna […]

Además convierten en dioses a sus reyes, hombres de primera categoría, y los adoran […] Tanto es así que

podrían competir en ingenio con todos los griegos en el arte de conservar la memoria de sus mayores. Por lo

que se refiere a las supersticiones de los egipcios, están tan extendidas entre nuestros bárbaros que no se

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barbárie em que se encontravam os indígenas é utilizada como base pelo autor para

defender formas específicas de conversão à fé cristã. Grupos mais avançados – com

governos centralizados, vida sedentária e sinais evidentes de idolatria, como os chineses –

estariam mais propensos a receber a “verdadeira religião”284

. Ainda que entre eles a atuação

do demônio tenha alcançado um êxito considerável, com a elaboração de cerimônias e

costumes que deturpavam ritos cristãos285

, haveria um caminho mais curto a ser percorrido

até a conversão.

Em resumo, para Acosta, mesmo os corrompendo com imitações e distorções

dos princípios cristãos, a atuação do demônio aproximava os indígenas da verdadeira fé.

Neste caso, o jesuíta defende que a conversão deveria ser semelhante à realizada entre os

gregos e romanos no início do cristianismo. Devido ao desenvolvimento e à sabedoria

destes povos, o uso da violência deveria ser evitado a todo custo: “y es sobre todo por su

propia razón, con la actuación interior de Dios, como se ha de lograr la Victoria sobre

ellos y su sumisión al Evangelio. Si nos empeñamos en someterlos a Cristo por la fuerza y

el poder, no conseguiremos más que apartarlos totalmente de la ley cristiana” (ACOSTA,

1984, I, 63)286

.

Entre os grupos que ocupavam o estágio intermediário de barbárie, como os

habitantes da Nova Espanha e da região andina, Acosta defende que a conversão seja

associada à ação efetiva da Coroa. Para o religioso, a instituição de um governo com força e

puede llegar a contar las clases de sacrificios y de guacas […] En definitiva, y para decirlo todo de una vez, en cuanto los bárbaros descubren que algo sobresale y resalta entre los demás seres de su especie,

instantáneamente reconocen allí una divinidad y la adoran sin dudar un momento” (ACOSTA, 1984, II, 255).

284 Nas duas obras analisadas, Acosta associa diretamente a atuação do demônio à existência de governos

centrais: “se ha observado que las naciones de los indios que tenían más y más graves clases de diabólicas

supersticiones eran aquellas que más adelantaron a las otras en el poder y capacidad organizadora de sus

reyes y Estados”; “Y es de advertir que donde la potencia temporal estuvo más engrandecida, allí acrecentó

la superstición” (ACOSTA, 1984, II, 259; 1985, 267).

285 O jesuíta identifica em determinados grupos indígenas a existência de uma espécie de confissão que já

seria praticada em período anterior ao contato com o cristianismo: “mucho antes de tener noticia del

Evangelio de Cristo, haya proliferado una práctica notable de confesar sus pecados incluso los ocultos y

graves […] Y a cada pecado manifestado el sacerdote, quebrando una paja de un manojo de hierbas, lo declaraba absuelto de aquel crimen” (ACOSTA, 1984, II, 425).

286 O religioso retoma suas críticas ao uso da força sobre os nativos em capítulo onde defende que a violência

inicial e a conversão forçada gerou o fortalecimento da infidelidade entre os indígenas, um dano difícil de ser

superado: “Nada se opone tanto a la recepción de la fe como todo lo que sea fuerza y violencia. Pues la fe no

puede ser sino voluntaria” (ACOSTA, 1984, I, 197).

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autoridade seria necessário para estabelecer entre os nativos uma forma de vida digna e

honrada, “o, una vez recibida [la fe cristiana], se prevé que difícilmente perseverarían en

Ella; con razón la situación misma exige y la autoridad de la Iglesia así lo establece que, a

quienes de ellos hayan dado el paso a la vida cristiana, se les ponga bajo la autoridad de

príncipes y magistrados cristianos”. No entanto, o jesuíta defende que os bens materiais

destes povos, assim como os costumes que não fossem considerados contrários à “natureza

do Evangelho”, deveriam ser mantidos, para que o processo de conversão e manutenção da

fé cristã fosse bem sucedido (ACOSTA, 1984, I, 65).

Ao abordar o terceiro e último estágio de barbárie, Acosta defende não apenas o

auxílio direto das autoridades seculares como o uso da força física287

, algo restrito a este

grupo. O jesuíta afirma que, mais do que apresentar a verdadeira fé, seria necessário

primeiro ensiná-los a ser homens para depois transformá-los em cristãos: “si se resisten con

terquedad a su propia regeneración y desvarían contra sus propios maestros y médicos,

hay que obligarles por la fuerza y hacerles alguna conveniente presión para que no pongan

obstáculos al Evangelio […] y convendrá hacerles fuerza para que se trasladen de la selva

a la convivencia humana de la ciudad y entren, aunque sea un poco a regañadientes, en el

reino de los cielos” (ACOSTA, 1984, I, 69)288

.

Por fim, ao encerrar sua reflexão sobre o tema, Acosta conclui que “no

conviene, si no queremos errar gravemente, aplicar unas mismas medidas a todos los

pueblos de las Indias” (ACOSTA, 1984, I, 69). Passagens como esta reforçam uma das

teses centrais formuladas pelo jesuíta: a multiplicidade dos indígenas. Para este religioso,

seria impossível abarcar todos os habitantes do Novo Mundo dentro de uma única

representação: “o” índio. Teoria esta, defendida já no proêmio de seu De Procuranda, onde

o religioso aponta as dificuldades de se falar sobre a salvação dos índios:

287 Acosta, entretanto, limita a atuação da força física sobre os nativos: “no debe pensarse que en la guerra

contra estos bárbaros está permitido todo tipo de muertes y servidumbres, sino cierta coacción moderada con

vistas a persuadirles a vivir en adelante como hombres y no como bestias” (ACOSTA, 1984, I, 285).

288 Ao descrever os conflitos entre espanhóis e chichimecas em sua Historia, Acosta reforça muitas das

conclusões apontadas em sua obra anterior. Segundo o autor, a falta de líderes e de vida sedentária impediam

a atuação dos religiosos e que, por isso, “tienen necesidad de ser compelidos y sujetados con alguna honesta

fuerza, y que es necesario enseñarlos primero a ser hombres, y después a ser cristianos” (ACOSTA, 1985,

320).

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“En primer lugar, por ser innumerables estos pueblos de bárbaros

y muy diferentes entre sí tanto por el clima, regiones y modo de vestir como por

su ingenio, costumbres y tradiciones […] Resulta, pues, poco menos que

imposible establecer en esta materia normas fijas y duraderas. Uno es el vestido

que hay que ajustar a la niñez y otro el que conviene a la juventud; no puede

haber una misma medida para todas las edades. Así también al ir pasando la

república indiana de tiempo en tiempo por diversas edades, por así decir, en sus

instituciones, religión y procedencia de sus habitantes, no es de extrañar que los

que tienen la misión de instruir empleen distintos procedimientos pastorales. Ello

explica que nuestro tiempo no tenga ya mucha estima a escritores de antes,

insignes, por otra parte, por su religiosidad y sabiduría, que publicaron estudios

y comentarios sobre temas indianos: se da en ellos un notable desajuste a la

situación presente. Es de presumir, en consecuencia, que también publicistas que

hoy día están en actualidad, dentro de no mucho tiempo dejen de estarlo […] Es

un error común limitar con estrechez las Indias a una especie de campo o ciudad

y creer que, por llevar un mismo nombre, son de la misma índole y condición

[…] Los pueblos indios son innumerables, tiene cada uno de ellos determinados

ritos propios y costumbres y se hace necesaria una administración distinta según

los casos” (ACOSTA, 1984, I, 55-59).

Como apontado por Anderson Roberti dos Reis (2007, 109-123), Acosta

acreditava que a divisão entre os diferentes estágios de desenvolvimento dos gentios era um

elemento fundamental para determinar as formas específicas de contato com os diferentes

grupos indígenas. Mais do que isso, segundo o historiador: “a classificação da barbárie feita

por Acosta no início da obra deu o tom a toda reflexão ética elaborada no restante do

texto”. Seguindo esta afirmação, Reis conclui que, para o religioso espanhol, a experiência

do Novo Mundo tem um papel fundamental nas formas de interação e, mais

especificamente, no estabelecimento da norma entre os nativos americanos: “o jesuíta tocou

num ponto central da nossa reflexão: as normas rígidas trazidas na bagagem dos colonos e

missionários europeus não eram suficientes para dar conta da normatização da América”.

A partir destes argumentos, podemos observar que, para Acosta, o contato com

os indígenas foi determinante para sua crença de que as representações produzidas na

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Europa sobre o Novo Mundo eram insuficientes. A experiência era um elemento

indispensável às suas reflexões sobre a natureza múltipla e hierarquizada dos americanos, o

que estaria relacionado não apenas a aspectos morais, mas também aos naturais. Isto

reforça a importância de suas reflexões e teorias sobre a procedência dos indígenas. A

migração de povos em diferentes estágios de desenvolvimento reforçaria

“historicamente”289

a multiplicidade dos indígenas apontada pelo jesuíta em diversas

passagens: “siendo aquestas regiones larguísimas y habiendo en ellas innumerables

naciones, bien podemos creer que unos de una suerte y otros de otras se vinieron en fin a

poblar” (ACOSTA, 1985, 62-63).

Esta associação entre a diversidade dos americanos e sua origem em Acosta, já

apontada por autores como Anthony Pagden (1988, 254), também é perceptível nas

passagens onde o jesuíta estabelece um padrão de colonização do continente americano que

se repetiria em várias regiões. Em um primeiro momento, as terras seriam habitadas por

“bárbaros” grupos nômades destruídos por povos mais avançados que conquistam e se

estabelecem no local. Este processo é identificado pelo religioso principalmente na Nova

Espanha, onde os gigantes chichimecas, primeiros povoadores, teriam sido suplantados

pelos tlascaltecas através de uma armadilha (ACOSTA, 1985, 323).

v) os índios orientais

As relações estabelecidas por Acosta entre a procedência dos indígenas e sua

natureza ficam ainda mais evidentes quando observamos as associações estabelecidas por

ele entre os povos americanos e asiáticos. Como apontamos anteriormente, a “resposta”

formulada pelo jesuíta para a ocupação da América era a existência de uma ligação por

terra ou de um pequeno estreito marítimo que tivesse permitido a migração de homens e

animais a partir da Ásia. Isto faz com que as informações obtidas pelo religioso sobre o

Oriente exercessem um papel fundamental em sua narrativa sobre o Novo Mundo, o que já

foi apontado por autores como Andres Prieto (2010): “From the idea of the Asian origins of

289 Ao comparar as posturas de Acosta e Las Casas, Anthony Pagden (1988, 202) defende que “ambos

basaron sus teorías antropológicas en la igualdad esencial de todas las mentes humanas, en la capacidad

innata del hombre para la educación moral y en la necesidad de una explicación esencialmente histórica de

las diferencias culturales”.

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the native peoples, Acosta could explain the different degrees of civilization he had

identified in his missionary treatise simply as a consequence of the successive migratory

waves from an original point”.

Os chineses e, em menor grau, os japoneses, são fundamentais na obra de

Acosta para sua representação dos indígenas290

. Nela, os povos orientais são utilizados

tanto para apontar semelhanças com os encontrados por ele na América quanto para

estabelecer diferenças, onde os americanos, em geral, ocupam um estágio inferior291

. O

retorno ao trecho do De Procuranda em que o religioso analisa as diferentes estratégias de

evangelização dos gentios é exemplar. Acosta afirma que a predicação sem o auxílio de

forças militares, à semelhança da praticada pelos apóstolos, obteve um grande sucesso entre

os avançados grupos “bárbaros” das Índias Orientais292

. Contudo, o estágio de

desenvolvimento dos americanos impediria a utilização deste método entre os indígenas293

.

Esta postura fica evidente quando nos detemos sobre a análise feita por Acosta

sobre a utilidade dos milagres para a introdução dos “bárbaros” ao cristianismo. Segundo o

religioso, estes fenômenos foram extremamente úteis no passado para a conversão tanto dos

gregos quanto dos romanos e continuavam sendo eficientes entre os chineses. Contudo, eles

eram de pouca valia no Novo Mundo. A razão seria que os povos deste continente

ocupariam um estágio inferior de barbárie em relação aos seus contemporâneos chineses e

290 Não por acaso, o jesuíta compôs dois tratados sobre a China, ambos de 1587: Parecer sobre la guerra de

China e Respuesta a nuestro padre; fundamentos que justifican la guerra contra China.

291 Como exemplo, podemos citar a passagem da Historia em que o autor descreve a existência de rituais

semelhantes à confissão praticados pelos gentios. Para “explicar” este ritual, o jesuíta recorre à carta de um

missionário que havia identificado algo semelhante entre os japoneses: “Vese por esta relación bien claro,

cómo el demonio ha pretendido usurpar el culto divino para sí, haciendo la confesión de los pecados que el

Salvador instituyó para remedio de los hombres, superstición diabólica para mayor daño de ellos, no menor

en la gentilidad del Japón que en la de las provincias del Collao, en el Pirú” (ACOSTA, 1985, 261-262).

292 A atuação de Francisco Xavier entre os povos asiáticos ocupa lugar central em vários momentos dos

escritos de Acosta. Neles, o missionário é apresentado como uma espécie de norte moral que deveria ser

seguido por todos os padres que atuassem entre os gentios. Entre outras passagens, Acosta faz alusões aos

grandes feitos alcançados por este religioso no Oriente, que superou dificuldades linguísticas (1984, I, 161),

realizou milagres (1984, I, 327) e fez com que idólatras acorressem até ele em busca de salvação (1984, II, 207).

293 “[…] sin embargo, quien quiera seguir, en todos sus pormenores, este método de evangelización con la

mayor parte de los pueblos de este mundo occidental, por nada más debe ser condenado que por su extrema

estupidez, y no sin razón. La experiencia misma, gran testigo de excepción, lo ha denunciado sobradamente”

(ACOSTA, 1984, I, 307).

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aos gregos e romanos do início da era cristã, que eram capazes de julgar os milagres a partir

de sua razão e, consequentemente, se convertendo (ACOSTA, 1984, I, 319).

É evidente que o papel exercido pelas Índias Orientais no relato de Acosta está

relacionado, entre outros fatores294

, ao grande número de missionários jesuítas enviados a

esta região no período, bem como ao eficiente sistema de trocas de correspondências entre

inacianos de diferentes partes do globo organizado pela Companhia de Jesus295

. Fatores

estes que, acreditamos, foram fundamentais não apenas para as reflexões feitas por Acosta

sobre os diferentes tipos de “bárbaros”, mas também para o desenvolvimento de sua

hipótese sobre a origem dos índios. Se os americanos procediam do Oriente, deveria haver

entre eles elementos que indicassem esta associação, o que é “encontrado” pelo autor, por

exemplo, na identificação de sistemas de escrita semelhantes, ainda que inferiores aos dos

chineses, entre os peruanos e mexicanos296

.

Esta associação entre asiáticos e americanos através de um longo processo de

migração por terra ou mar foi citada por muitos escritores nas últimas décadas como sendo

uma das maiores contribuições “científicas” dadas por Acosta. Partindo, mais uma vez, da

visão de que aspectos naturais e morais não estabeleciam relações entre si297

, os autores

destes “elogios” veem na ligação entre a Ásia e a América uma identificação prematura

realizada pelo religioso do que séculos depois viria a ser “confirmado” com a descoberta do

294 Murguía (2006, 7) afirma que grande parte das informações sobre o Oriente utilizadas por Acosta foi

obtida através de Alonso Sánchez, jesuíta que havia se estabelecido no México após abandonar as Filipinas

por ser contrário à política de evangelização pacífica defendida pela Companhia de Jesus em relação à China

e ao Japão.

295 Reis (2011, 69) demonstra que a circulação de documentos e informações entre os membros da Companhia

era estipulada pelas Constituições da Ordem, que enfatizavam a importância do intercâmbio frequente de

informações entre diferentes regiões, “para que em cada lugar se possa saber o que se faz nas outras partes”.

296 Em sua Historia, Acosta dedica dois capítulos exclusivos sobre as letras, livros e estabelecimentos de

ensino desenvolvidos pelos chineses durante sua análise das formas de escrita existentes entre alguns grupos

americanos: “entendí que aunque no tenían tanta curiosidad y delicadeza como los chinas y japonés, todavía

lo les faltaba algún género de letras y libros con que a su modo conservaban las cosas de sus mayores” (ACOSTA, 1985, 285-288).

297 Fermín del Pino Díaz (1978, 485-486) remete ao século XIX a abordagem que dissocia o conteúdo natural

do moral na obra de Acosta. Esta interpretação estaria relacionada tanto à ascensão do nacionalismo

romântico quanto ao prestígio das Ciências naturais existente no período e à incipiente divisão dos estudos

universitários.

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estreito de Bering298

. Em outras palavras, para estes pesquisadores, Acosta teria sido o

cronista seiscentista que teria alcançado a resposta mais próxima da “verdadeira” origem

dos índios.

Entre vários outros exemplos, podemos citar autores já analisados

anteriormente (Cf. Capítulo 1), como Luis Pericot y García (para quem Acosta, diferente de

muitos de seus contemporâneos, teria formulado teorias “sensatas e clarividentes”) e José

Alcina Franch (que descreve o religioso como um autor tão ponderado quanto um “cientista

atual”). Além deles, Ralph Beals299

, María Rivara de Tuesta300

e Saul Jarcho também

adotam postura semelhante. A análise deste último autor é ilustrativa das interpretações

realizadas sobre a obra do jesuíta em relação aos papeis exercidos pela tradição e a

experiência. Para ele, a permanência de elementos da tradição teria obrigado o religioso a

fazer desvios e concessões em suas reflexões. Seguindo esta opinião, o autor afirma que

Acosta teria se sentido obrigado a abordar teorias fantasiosas, como a da migração judaica

para o Novo Mundo, provavelmente, por ser um clérigo. Com isso, Jarcho (1959, 430-438)

estabelece que a experiência do jesuíta teria gerado uma resposta mais correta,

“impressionantemente similar à dos cientistas do século XX”, fruto de seu pensamento

engenhoso, agudo e lógico, que possuiria semelhanças notáveis com o de um antropólogo

contemporâneo.

Percurso semelhante é adotado mesmo por aqueles que chegam a conclusões

opostas, como Helga Gemegah. Enquanto para os autores citados acima a hipótese da

migração asiática proposta por Acosta é elogiada por sua “exatidão científica”, fruto direto

298 Ainda que existam indícios de expedições anteriores que alcançaram a região, o estreito que separa os

extremos da Ásia e da América começou a ser explorado mais detidamente a partir da primeira metade do

século XVIII.

299 Em seu breve manifesto, este pesquisador faz uma defesa enfática da primazia de Acosta em relação à

hipótese asiática de migração terrestre, o que estaria sendo negligenciado por alguns autores (que remeteriam

os primórdios desta teoria a obras do século XVIII): “So far as I know not for about a century and a half did

any writer come as close to modern views about the origin of the American Indian” (BEALS, 1957, 182-183).

300 A autora defende que sua teoria sobre a chegada dos homens à América é o ponto máximo da contribuição científica deste “humanista y científico”: “En verdad todo este gran marco de análisis, expuesto en las

refutaciones de Acosta a los clásicos, de las cuales hemos tratado atrás, no son sino la preparación lógica

adecuada para, finalmente, exponer su gran teoría sobre un punto de unión entre los continentes en donde se

habría producido el paso de los hombres, hoy reconocido y ubicado por paleontólogos, antropólogos,

etnólogos e historiadores, como el estrecho de Bering” (RIVARA DE TUESTA, 2006, 31-32).

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155

de sua experiência no continente americano, para Gemegah ela teria sido formulada sem

qualquer base “empírica ou científica”. Para esta arqueóloga alemã, é óbvio que o religioso

sabia que a América não era parte da Ásia, o que seria indicativo de que seu único objetivo

ao divulgar esta hipótese era a defesa dos interesses da Coroa Espanhola sobre suas

colônias301

.

Ao analisarmos os argumentos tantos dos autores que elogiam quando dos que

criticam a teoria asiática da origem dos índios sugerida por Acosta, podemos observar que

as duas leituras excluem as questões morais da reflexão do jesuíta sobre este tema. Em

especial, as implicações teológicas são deixadas de lado (como vimos, para alguns, além de

não fazerem parte da “resposta” do religioso, elas o teriam “atrapalhado”). Interpretações

estas, que cindem não apenas os aspectos naturais dos morais, como também as questões

referentes à experiência das associadas à tradição, binômios estes que consideramos

indissociáveis dentro da obra do jesuíta e que pretendemos analisar nos itens finais do

capítulo. Entretanto, antes de retornarmos ao caso específico da obra de Acosta,

acreditamos ser necessário fazer uma breve análise das reflexões envolvendo os conceitos

de tradição e experiência dentro da bibliografia atual sobre as relações entre o Novo Mundo

e o Velho.

América como novidade ou domínio da tradição

No início da década de 1970, John H. Elliott publicou uma série de

conferências onde refletia sobre os possíveis impactos que o Novo Mundo teria gerado na

consciência europeia. Segundo o historiador inglês, a descoberta da América teve

importantes consequências intelectuais (o contato com novas terras pôs em debate certezas

301 “His statements about the origin of the American “Indians”, Historia Natural y Moral de las Indias […]

however, mainly served to propagate the idea of the land connection between America and Asia and it was an instrument for Spanish territorial claims”. Ainda segundo a autora, a Coroa espanhola agia com mão de ferro

na tentativa de orquestrar a teoria da ligação entre os dois continentes e a consequente origem asiática dos

americanos não apenas através do relato de Acosta, mas também forçando outros autores (como Bartolomé de

Las Casas) a defenderem esta teoria além de forjar mapas fictícios que apontavam a união entre as duas

porções de terra (GEMEGAH, 2002, 3-16).

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europeias quanto à geografia, teologia, história e natureza humana), econômicas (por se

constituir como fonte de produtos e campo promissor para o aumento das trocas

comerciais) e políticas (por produzir alterações no equilíbrio de poder). Contudo, Elliott

ressalta que a busca por indícios de uma influência externa traz consigo a tentação de

encontrar traços desta em todos os lugares, o que não se confirmaria. O acentuado

desinteresse por parte considerável do público erudito europeu pela “novidade” americana

associada à insistência com que obras e conceitos clássicos eram reimpressos e utilizados

ao longo do século XVI são identificados pelo autor como evidências da forma com que a

maioria dos europeus leu e representou o Novo Mundo e seus habitantes: “É como se, a

certa altura, se baixassem as persianas mentais; como se, havendo demasiado para ver e

assimilar, fosse de repente um esforço demasiado para eles e os europeus se retirassem para

a média luz tradicional do seu mundo mental” (ELLIOTT, 1984, 16-25).

Os argumentos de Elliott, reforçados pelo próprio historiador em textos

posteriores302

, foram utilizados por vários autores em suas análises sobre as relações entre o

Velho Mundo e o Novo. Entre outros exemplos, podemos citar os escritos de Peter

Burke303

, Sabine MacCormack304

e Michael T. Ryan. Para este último, a América causou

pouco impacto na Europa por, principalmente, ser abordada a partir da fixação pelas

origens existente durante o Renascimento, que associava os indígenas com os antigos povos

pagãos. Segundo o autor, a genealogia se constituía em um poderoso “antídoto” contra as

confusões introduzidas pelas novidades, “and it served as an effective prophylaxis against

302 Um exemplo é o debate travado com o historiador Joan-Pau Rubiés nas páginas da coletânea organizada

por Anthony Pagden: “The evidence of sixteenth-century treatises on manners and moral suggests that, with

the occasional distinguished exception like Montaigne, most authors felt that the Christian and classical

traditions were sufficient to enable them to explore mysteries of human behavior without any need for

recourse to the new worlds overseas” (ELLIOTT, 2000, 159-183).

303 Em artigo provavelmente inspirado no lamento feito por Elliott (1970, 22) sobre a falta de dados

estatísticos que confirmassem o desinteresse do público erudito europeu pela descoberta do mundo

americano, Burke (1995, 35) cria uma situação hipotética (um estudioso do século XVI que entrasse em uma

biblioteca em busca de informações sobre a América) para defender “that sixteenth-century views of world

history were relatively unaffected by the flood of information about the New World”.

304 Em sua análise das associações entre o paganismo ameríndio e greco-romano tendo a região de Cuzco

como base para suas conclusões, MacCormack (1995, 79-119) defende que “these comparisons did not on

their own lead to a significantly new perception either of Greco-Roman antiquity or of the Americas [...]

Within less than a generation, however, the Andean supernatural universe had been reformulated to match

European conceptions of early human history”.

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the impact of the new worlds [...] In the triangular relationship among Europe, its own

pagan past, and the exotic, the principal linkage was between Europe and antiquity”

(RYAN, 1981, 519-538).

A grande maioria dos autores citados acima defende que o impacto do

continente americano entre os europeus só poderia ser observado em período muito

posterior à chegada das embarcações capitaneadas por Colombo. Os escritos de Elliott,

novamente, exercem influência notável. Para ele, mesmo avançando até meados do século

XVII, as “potencialidades explosivas” vislumbradas durante os primeiros contatos com o

Novo Mundo ainda não tinham começado a ser entendidas. Os “limites mentais

tradicionais” da Europa só teriam começado a se alargar a partir de 1650 e apenas com a

obra de Alexander von Humboldt, em meados do século XIX, é que “as reações dos

europeus, sobretudo dos espanhóis, ao mundo estranho da América assumiram o seu devido

lugar na grande síntese histórica e geográfica e se fizeram algumas tentativas para meditar

no que a revelação do Novo Mundo significara para o Velho” (ELLIOTT, 1984, 12)305

.

Postura oposta foi defendida por outros autores, para quem a Europa foi afetada

pelo contato com terras até então desconhecidas de forma mais aguda em período muito

anterior ao apontado pelos autores apresentados acima. Ao abordar o debate entre estas

duas interpretações, Karen Kupperman (1995, 2-8) destaca alguns exemplos, como os de

Stephen Greenblatt, Germán Arciniegas e David Armitage, que identificam, cada um a seu

modo, “a vast shaking up of the world” desde a chegada das primeiras embarcações

europeias a estas terras.

Além deles, podemos citar Joan-Pau Rubiés que, em debate direto com as

formulações propostas por Elliott, defende que as percepções dos europeus sobre o Novo

Mundo não são a simples imposição de elementos de sua cultura sobre realidades alheias.

Para este historiador, a análise dos relatos coloniais permite observar o lento surgimento de

uma percepção da multiplicidade de mundos durante a Renascença: “despite orthodox

attempts to suppress it, because the traditional strategies of natural religion could no

305 Ainda que com pequenas diferenciações, esta datação é corroborada por Ryan (1981, 524), para quem

apenas a partir do final do século XVII “exotic peoples slowly began to assume distinct cultural shapes”, e

Peter Burke (1995, 47): “In the eighteenth century, for some intellectuals at least, the discoveries were

coming to dwarf the Incarnation. But only in the eighteenth century”.

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longer hold together the new cultural discourses [...] The understanding of human society

as primarily a Christian community, as opposed to idolatrous gentiles, unfaithful Jews and

heretical Muslims, gave way to a systematic mapping of human difference in natural and

historical terms” (RUBIÉS, 2000, 81-121).

Anthony Grafton também se dedica a esta questão. Em seu New World, Ancient

Texts (1995), o historiador norte-americano identifica uma lenta substituição dos elementos

associados à tradição pelos da experiência a partir de meados do século XVI, o que faz com

que o continente americano surja como algo “novo”. De acordo com seus argumentos, o

Novo Mundo lentamente ocupou o lugar retórico ocupado pelos clássicos greco-romanos e

pela Bíblia. Transição esta que, mesmo não sendo linear e progressiva, poderia ser

identificada entre os argumentos de alguns autores centrais do período: Colombo, por

exemplo, seria um herdeiro da tradição, enquanto Sebastian Münster ocuparia um lugar

intermediário e Jean Bodin, ainda que utilizasse modelos clássicos, seria um representante

da experiência306

.

Seguindo estas premissas, Grafton (1995, 1-6) dá grande destaque à obra de

Acosta. O historiador inicia sua obra apresentando o religioso como um exemplo de autor

marcado de forma determinante pela experiência, o que poderia ser observado através de

suas críticas acerca da impossibilidade de vida nas terras localizadas nas zonas tórridas:

“The classics dissolve as rapidly under Acosta’s laughter as the emperor’s clothes in the

fairy tale”. Entretanto, poucas páginas adiante, o autor matiza suas afirmações,

identificando no jesuíta espanhol uma relação mais complexa do que a sugerida

inicialmente, “he was delighted not only that his experience contradicted Aristotle, but also

that it supported the authority of other, more prescient ancients”. Dessa forma, o autor

apresenta uma postura menos dicotômica ao afirmar que, para muitos escritores do período,

Acosta entre eles, tradição e inovação eram interpretadas como elementos compatíveis.

Em seu breve balanço bibliográfico sobre o tema, Karen Kupperman (1995, 2-

8) defende que as diferentes interpretações sobre o impacto do Novo Mundo na consciência

europeia, apesar de indicarem caminhos opostos, não são incompatíveis, “because we are

306 O historiador identifica também exceções, como Giordano Bruno, um dos poucos casos mais radicais de

rejeição de toda a narrativa clássica (GRAFTON, 1995).

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studying multilayered consciousness. Reverence for ancient knowledge, for example, may

have operated as an obstacle, but it also offered pathways and techniques for

understanding the new. What matters is the way in which America was assimilated”. Além

disso, a historiadora norte-americana identifica como outro ponto em comum a percepção

de que, em um primeiro momento, a resposta às novidades do Novo Mundo foram

autorreferenciais.

Dentro deste campo, as repostas formuladas para o problema da procedência do

homem americano, ao recorrerem a dezenas de eventos, personagens e obras relacionadas à

tradição clássica e cristã, corroboraria esta afirmação. Contudo, acreditamos que a

identificação de um componente autorreferencial na base destas teorias não esgota a

questão. Pelo contrário. Sugerimos que, ao realizar constantes retornos aos mesmos ou a

outros elementos da tradição em busca de novas hipóteses sobre a origem dos indígenas

como um todo ou, o que era cada vez mais comum, de grupos específicos, os autores

analisados neste capítulo e também nos anteriores fornecem um campo profícuo para a

análise das representações dos indígenas realizadas no período.

Novos Mundos

Ao retomarmos os escritos de Acosta, podemos observar que a existência de

uma ligação por terra ou pequeno estreito marítimo entre a Ásia e a América, identificada e

elogiada por diversos autores como resultado de sua experiência no continente americano,

elimina elementos centrais de sua argumentação.

Em primeiro lugar, o religioso é menos enfático do que boa parte desta

bibliografia sugere. De acordo com o seu relato, os problemas relativos à migração de

animais selvagens, entre outros fatores, o teriam levado a conjecturar que o “nuevo orbe,

que llamamos Indias, no está del todo diviso y apartado del outro orbe” (ACOSTA, 1985,

56). O jesuíta espanhol passa então a apontar o desconhecimento que havia no período

sobre os limites territoriais ao norte, aventando a possibilidade de que regiões como as da

Flórida ou próximas ao Mar do Sul poderiam se estender por longuíssimas distâncias.

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Entretanto, Acosta também sugere que esta ligação poderia ser localizada no extremo sul

americano307

, algo praticamente ignorado pela historiografia que busca no religioso

espanhol alguém que teria “antecipado” as descobertas realizadas séculos depois por

expedições como a comandada por Vitus Bering.

Além do desconhecimento geográfico sobre os extremos do continente

americano, Acosta aponta como outro indício de ligação com as terras do Velho Mundo a

existência de terras equivalentes em diferentes partes do planeta. Para o jesuíta, haveria

uma simetria entre as disposições das porções de terra e água, o que poderia ser

comprovado nas Índias Ocidentais308

. Assim, a descoberta de um estreito ao sul realizada

pela expedição de Fernão de Magalhães indicaria uma possível equivalência ao norte, que

já teria suscitado algumas expedições na região da Flórida, como a organizada pelo

adelantado Pedro Meléndez, que acreditava que “como había comunicación y paso entre

los dos mares al polo Antártico, así también la hubiese al polo Artico, que es más

principal” (ACOSTA, 1985, 111).

Não apenas as terras, mas também muitas de suas características seriam

correspondentes, o que pode ser observado na passagem onde o religioso espanhol afirma

que as localidades opostas ao Chile que teoricamente existiriam e ainda seriam descobertas,

teriam condições semelhantes às melhores partes da Europa309

. Interpretação esta, que o

307 “Volviendo al otro polo del Sur, no hay hombre que sepa donde para la tierra que está de la otra banda

del Estrecho de Magallanes. Una nao del Obispo Plasencia, que subió del Estrecho, refirió que siempre había visto tierra, y lo mismo contaba Hernando Lamero […] Así que ni hay razón en contrario, ni

experiencia que deshaga mi imaginación u opinión, de que toda la tierra se junta y continúa en alguna parte;

a lo menos se allega mucho. Si esto es verdad como en efecto me lo parece, fácil respuesta tiene la duda tan

difícil que habíamos propuesto, cómo pasaron a las Indias los primeros pobladores de ellas, porque se ha de

decir que pasaron no tanto navegando por mar como caminando por tierra”. Poucas páginas depois, o jesuíta

retoma o assunto e reafirma sua teoria de que o continente deveria estar ligado ou próximo a outras terras,

mas sem apontar o norte como resposta (ACOSTA, 1985, 56-58).

308 A defesa da equivalência faz com que o jesuíta defenda a possibilidade da existência de outras porções de

terra ainda desconhecidas que corresponderiam ao Novo Mundo: “Y porque se ha observado y se halla así,

que doquiera que hay islas muchas y grandes, se halla no muy lejos tierra firme, de allí viene que muchos, y

yo con ellos, tienen opinión que hay cerca de las dichas islas de Salomón, tierra firme grandísima, la cual responde a la nuestra América por parte del Poniente […] Así que es muy conforme a razón que aún está por

descubrir buena parte del mundo” (ACOSTA, 1985, 25-27).

309 “Aunque hay muchos que tienen por opinión, y de mí confieso que no estoy lejos de su parecer que hay

mucha más tierra que no está descubierta, y que ésta ha de ser tierra firme opuesta a la tierra de Chile que

vaya corriendo al Sur, pasado el círculo o Trópico de Capricornio; y si la hay, sin duda es tierra de excelente

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jesuíta atribui à obra de Aristóteles310

, utilizada por ele como base para defender que “no

hay duda sino que en todo ha de proceder el otro mundo como este de acá en todas las

demás cosas, y especialmente en el nacimiento y orden de los vientos” (ACOSTA, 1985,

31-34).

Contudo, Acosta remete todas estas características à atuação da Providência

Divina. Ao falar sobre a possibilidade dos homens terem alcançado as terras do novo

continente por acaso, através de tormentas que teriam desviado as rotas de algumas

embarcações, o jesuíta defende que “lo que a nuestro parecer sucede acaso, eso mismo lo

ordena Dios muy sobre pensado” (ACOSTA, 1985, 53)311

. Assim, as equivalências entre as

proporções de terra e água e suas principais características312

, a existência de uma ligação

entre os continentes que permitisse a migração de homens e animais, as alterações no clima

e na natureza que permitiriam o desenvolvimento destes seres nas zonas tórridas313

e a

chegada dos espanhóis, responsáveis por romper com o longo período de isolamento

enfrentado por esses grupos e por apresentá-los à fé cristã, seriam resultado direto da ação

divina.

condición, por estar en medio de los dos extremos y en el mismo puesto, que lo mejor de Europa. Y cuanto a

esto, bien atinada anduvo la conjetura de Aristóteles” (ACOSTA, 1985, 34).

310 Ao analisar a passagem de Aristóteles em que o autor defende a continuidade entre a região vizinha às

Colunas de Hércules com a Índia a partir da existência de elefantes tanto no continente asiático quanto no

africano, Pierre Vidal-Naquet (2008, 52) afirma que, para o estagirita, “os extremos deixam de ser extremos, pois se tocam”.

311 Esta visão providencialista é reforçada nos trechos em que o religioso defende que a chegada dos europeus

a estas terras – e dos espanhóis, em especial – também havia sido fruto direto da vontade divina, estando

inclusive profetizadas em alguns trechos bíblicos: “Siendo determinación del cielo que se descubriesen las

naciones de Indias, que tanto tiempo estuvieron encubiertas” (ACOSTA, 1985, 49).

312 “[…] de suerte que a todas partes del mundo la tierra y el agua se están como abrazando y dando entrada

la una a la otra, que de verdad es cosa para mucho admirar y glorificar el arte del Creador soberano”

(ACOSTA, 1985, 25-27). Outro exemplo é a passagem onde ele critica as tentativas de se alcançar o oceano

Pacífico através de rotas terrestres na região do Panamá: “tengo por cosa vana tal pretensión [...] pero es lo

para mí que ningún poder humano basará a derribar el monte fortísimo e impenetrable que Dios puso entre

los dos mares, de montes y peñas durísimas que bastan a sustentar la furia de ambos mares. Y cuando fuese a hombres posible, sería a mi parecer muy justo temer del castigo del cielo, querer enmendar las obras que el

Hacedor, con sumo acuerdo y providencia, ordenó en la fábrica de este Universo” (ACOSTA, 1985, 108).

313 “Fue providencia del gran Dios creador de todo, que en la región donde el sol se pasea siempre, y con su

fuego parece lo había de asolar todo, allí los vientos más ciertos y ordinarios fuesen a maravilla frescos,

para que con su frescor se templase el ardor del sol” (ACOSTA, 1985, 83).

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É interessante observarmos que, nestas passagens, os aspectos naturais e morais

voltam a se tocar. Acosta defende que as riquezas minerais existentes em diferentes regiões

do Novo Mundo seriam fruto da ação divina que buscava, através delas, aumentar o

interesse dos europeus por estas terras e, consequentemente, favorecer o processo de

expansão do cristianismo para além do Atlântico. Não por acaso, o jesuíta defende que os

locais onde o processo de conversão alcançou maior êxito foram os que possuíam grandes

quantidades de ouro e prata. Para reforçar esta afirmação314

, o religioso compara a

existência desses minerais no Novo Mundo à decisão de um pai que, na tentativa de casar

uma filha que considera feia, oferece um grande dote para atrair possíveis pretendentes

(ACOSTA, 1985, 142).

É importante ainda ressaltar que a identificação de uma ligação com a Ásia já

havia sido apontada por outros autores315

e foi fruto de uma série de interpretações que, de

acordo com alguns historiadores, remetiam ao relato de Marco Polo. Godfrey Sykes, por

exemplo, defende que, desde a década de 1530, mas principalmente a partir de 1560,

cartógrafos e escritores interligaram os limites do Novo Mundo aos da Ásia316

através de

uma ligação de terra entre os dois continentes identificada como Anian, topônimo cuja

314 “Mas es cosa de alta consideración que a sabiduría del eterno Señor quisiese enriquecer las tierras del

mundo más apartadas y habitadas de gente menos política, y allí pusiese la mayor abundancia de minas que

jamás hubo, para con esto convidar a los hombres a buscar aquellas tierras y tenellas, y de camino

comunicar su religión y culto del verdadero Dios a los que no le conocían, cumpliéndose la profecía de

Isaías, que la Iglesia había de extender sus términos no sólo a la diestra, sino también a la siniestra, que es

como San Agustín declara haberse de propagar el Evangelio no sólo por los que sinceramente y con caridad

lo predicasen, sino también por los que por fines y medios temporales y humanos lo anunciasen” (ACOSTA, 1985, 142). Afirmação semelhante é feita em seu De Procuranda (1984, I, 533).

315 Em sua Geografía y descripción universal de las Indias (c. 1574), o cosmógrafo espanhol Juan López de

Velasco (1894, 23-25) defende que, apesar da região ainda não ter sido explorada por nenhuma embarcação, a

existência de uma ligação entre a Ásia e a América se apresentava como a explicação mais provável para a

colonização do Novo Mundo: “Y así solo queda que creer, hasta que haya mayor averiguación, que aquel

Nuevo Mundo se junta con estotro por alguna parte, como de ello da indicio la costa de la China y de la

Nueva España, que van corriendo en viaje de juntarse por la parte del septentrión”. Benito Arias Montano

também aponta a ligação entre os dois continentes, tanto em seus textos sobre o tema quanto em um mapa

onde o noroeste americano se confunde com o extremo norte asiático, local identificado pelo autor como

ponto de passagem dos hebreus (CANSECO, 2007, 101-136).

316 “Giacomo di Gastaldi, the Venetian cosmographer, has left two maps having a bearing upon the subject of the Asia-American connection. The earlier of these is a map of the world, dated 1550, which shows a

continuous body of land uniting the two continents […] It is in this 1561 map of Gastaldi's that the name

‘Ania’ first definitely occurs, being applied to a province in the extreme northern part of the map”. A ligação

entre os dois continentes e a identificação da localidade de Ania(n) nesta região também foi reproduzida por

outros cartógrafos, como Ortelius e Mercator (Cf. SYKES, 1915).

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origem remeteria à grafia de uma província chinesa mencionada em uma das edições do

relato do comerciante veneziano.

Acreditamos que, independentemente do fato de Acosta ter tido ou não acesso

aos relatos e mapas que, antes dele, apontaram uma possível ligação entre os extremos do

leste asiático e do noroeste americano317

, fica evidente que a associação identificada pelo

jesuíta espanhol entre estas duas terras remete a uma série de conceitos derivados das

Sagradas Escrituras e de autores da tradição clássica, o que dificulta a interpretação de que

a teoria da origem dos indígenas proposta por ele seria fruto de uma “vitória” da

experiência.

A este respeito, aproximamos nossas conclusões da leitura proposta por Andres

Prieto (2010), para quem “Unlike modern scientists, however, for Acosta the origin of the

American peoples was more a theological challenge than an anthropological mystery”. É

claro, entretanto, que estes aspectos não eliminam o papel central atribuído pelo religioso à

experiência americana tanto para a elaboração de suas obras quanto para as relações que

deveriam ser estabelecidas com os grupos indígenas (Cf. REIS, 2007), o que o leva a

concluir que “las ventajas y dificultades de las Indias no hay que medirlas según leyes o

costumbres de otras naciones, sino según las suyas propias. Con el celo de Dios por

delante y con la experiencia con guía, lo que debemos pretender en todas las cosas es esto:

no busquemos nuestro provecho, sino el de la mayoría para que se salven” (ACOSTA,

1984, II, 353)318

.

Discordamos, contudo, das interpretações que identificam nestes aspectos um

pensamento que, em última análise, foi descrito como sendo o de um “cientista” avant la

317 Autores como Thayne R. Ford (1998, 28) defendem o ineditismo da teoria de Acosta afirmando que ele

não teve acesso às obras de Velasco e Gastaldi enquanto produzia sua Historia. A este respeito, Andres Prieto

(2010) defende que “Acosta's originality lays not so much in the thesis he advocated as on its integration

within a coherent theological frame that viewed both nature and human activity as following a divinely pre-

ordained plan, a plan that would eventually lead to the dissemination of the divine word to every corner of the

Earth”.

318 Entre outros exemplos, podemos citar também a passagem em que o jesuíta aborda a imagem que se tinha

na Europa sobre os indígenas da região do Peru: “algunos de nuestros padres más graves y juiciosos aseguran

en las cartas que escriben no haber visto en ninguna parte una mies evangélica más fácil ni mejor. Y eso que

la venir de España sostenían la opinión común, esto es, la contraria, que al fin desecharon completamente

tras contrastarla con una larga experiencia” (ACOSTA, 1984, I, 235).

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lettre. Podemos observar que os elogios feitos a Acosta por ter sido um dos precursores319

da identificação de uma ligação por terra entre a Ásia e a América se estruturam a partir de

uma leitura teleológica e pautada em uma visão cumulativa e progressiva da ciência. A

partir da teoria – até hoje questionada por alguns pesquisadores (Cf. Introdução) – de que o

homem americano teria alcançado este continente através de um estreito de terra que teria

se formado no limite noroeste, estes autores encontram em Acosta uma resposta mais

“correta” e, o que é visto por eles como uma consequência direta, menos associada aos

elementos da tradição.

No entanto, procuramos demonstrar que tal interpretação se baseia apenas na

“resposta final” (a existência de uma ligação entre os dois continentes através do extremo

norte) que, como vimos, não chega a ser defendida diretamente pelo autor e que deixa de

lado os argumentos e fontes utilizados por ele para embasar suas reflexões sobre a

existência de homens e animais nas terras das Índias Ocidentais. Neste aspecto, nos

aproximamos da afirmação feita por Anthony Grafton (1995, 157) ao analisar os abalos à

autoridade dos textos antigos sofridos no período. Segundo o historiador: “The discoveries

provided a clinching piece of evidence to those who wished to argue for a new vision of

history, for the superiority of modern to ancient culture. But the substance of that vision,

ironically enough, often came from the very ancient writers whose supremacy it denied”.

Com isso, aproximamos nossas conclusões da leitura feita por Reinhart

Koselleck (2006, 305-327) para a modernidade a partir do binômio “espaço de

experiência”320

e “horizonte de expectativa”. De acordo com este autor alemão, no mundo

anterior à modernidade “as pessoas se adaptavam [às inovações] sem que o arsenal da

experiência anterior se modificasse”. Contudo, a partir de eventos como a Reforma

Religiosa e a colonização ultramarina, teria começado a surgir um lento processo de tensão

entre a experiência transmitida e a nova expectativa que se manifestava, gerando um

distanciamento progressivo entre os dois conceitos. Dentro desta lógica, a adoção de

319 A própria utilização do conceito de “precursor” para denominar a posição ocupada por Acosta traz consigo

uma forte carga teleológica da qual discordamos.

320 É importante observar que o conceito de “experiência” adotado por Koselleck (2006, 305-327) não se

restringe ao sentido de vivência pessoal, mas inclui também a “experiência transmitida” ou “experiência dos

antepassados”.

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respostas múltiplas para a origem dos índios refletiria a dificuldade crescente dos autores

do período em incorporar esta “inovação” (a existência de diferentes grupos humanos em

uma porção de terra até então desconhecida) aos parâmetros da “experiência transmitida”,

ainda que ela não tenha sido abandonada. Esta “experiência dos antepassados” continua

fornecendo os eventos, personagens e teorias que embasam as “respostas” sobre a

procedência dos indígenas. Contudo, isto passa a ocorrer dentro de um processo de tensão

que dificulta respostas homogêneas e categóricas causado pela inovação e exige um retorno

constante em busca de outros elementos que pudessem “dar conta” da multiplicidade

crescente de representações que circulavam entre os europeus sobre os indígenas.

Dessa forma, acreditamos ser mais interessante analisarmos como Acosta

desenvolveu suas reflexões sobre o tema e a representação dos indígenas daí decorrente do

que a resposta em si proposta pelo religioso para as suas origens. Esta decisão faz com que

as relações estabelecidas pelo religioso entre os americanos e os asiáticos dentro de uma

hierarquia de povos bárbaros e a sua defesa de que os índios possuíam características tão

distintas entre si que não poderiam ser atreladas a um único grupo ganham relevância. Em

resumo, há na obra de Acosta uma defesa da multiplicidade dos indígenas que, mesmo não

tendo sido sugerida pela primeira vez pelo jesuíta, encontra em seus escritos uma

argumentação e um arcabouço teórico que será reproduzido por diversos autores ao longo

do século XVII e em períodos subsequentes.

Assim, podemos sugerir que, para além de outros aspectos (como o fato da

Historia de Acosta ter sido um dos poucos relatos sobre o Novo Mundo a obter autorização

da Coroa espanhola para ser publicada no período), parte do sucesso das reflexões

elaboradas por este jesuíta espanhol sobre o problema da origem dos índios recai em sua

divisão dos “bárbaros” em diferentes grupos hierarquizados. Argumento este, que foi

utilizado por vários autores – até mesmo por defensores da origem única dos indígenas (Cf.

Capítulo 2) – como base para “explicar” a existência de elementos tão díspares e, em alguns

casos, até mesmo opostos, entre os diferentes grupos que habitavam as terras americanas.

Com isso, encerramos a primeira parte de nossa tese. Nela, pretendemos

demonstrar que a questão da origem dos indígenas não surge assim que os europeus

desembarcam nas terras americanas, mas é fruto da própria experiência americana. Para um

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número crescente de autores, a partir de meados do século XVI, o contato direto com os

indígenas e/ou com as representações que circulavam na Europa sobre estas terras e seus

habitantes não apenas gerou o interesse pelas suas origens, mas também a percepção de que

as diferenças entre eles eram tão profundas que dificultavam ou mesmo impediam a

identificação de uma única onda migratória. Este processo, consequentemente, gerou

propostas que hierarquizavam os grupos americanos a partir de suas origens específicas

(indígenas “superiores” procediam de povos mais avançados do que os ancestrais dos

nativos americanos mais “bárbaros”), o que foi utilizado por vários autores no século XIX

para o desenvolvimento de conceitos como o de índio “nacional” ou de “raça americana”,

temas das páginas seguintes.

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Capítulo 4

Entre bárbaros e civilizados: as reflexões sobre as origens dos indígenas

no século XIX

“[…] pero aseguro a usted, que esto del Palenque no

es cosa de Indios” (Fernando Gómez de Andrade,

Memoria, apud ROMERO SANDOVAL, 1997, 12).

Palenque, a origem dos índios e a de seus construtores

“Serían romanos los que aquí dominaron? O españoles venidos de la

dominación de los moros hasta este puerto o surgidos de Catazajá? Cartagineses de los

que se dice vinieron a América? Nada sé?” (apud ESPONDA JIMENO, 2011, 181). Com

estas palavras, José Antonio Calderón conclui seu breve relato321

sobre as ruínas de

Palenque, um dos principais sítios arqueológicos da cultura maia322

. Nele, o oficial

321 A versão dos escritos de Calderón que chegou ao século XXI é uma cópia incompleta do original

produzido entre 1784-85: “al parecer es una versión abreviada de dicho expediente que sólo reproduce el

‘informe’ de los monumentos y omite los pormenores de la exploración; de hecho esta versión es sui géneris

en su redacción y parece que el copista se tomó ciertas libertades en su traslado” (ESPONDA JIMENO,

2011, 178).

322 “Rodeadas por los ríos Michol y Chacamas, las llamadas ruinas de Palenque se encuentran a 10km al

sudoeste de Santo Domingo de Palenque, villa establecida a inicios del siglo XVIII en el actual estado

mexicano de Chiapas. Por tierra, hasta fines del siglo XIX, el camino que conducía de la villa homónima a

las ruinas no era más que un sendero bajo la vegetación de los trópicos que, en cada visita, debía ser abierto

a golpes de machete. Este camino solo se consolidaría a raíz de las visitas periódicas de un inspector de

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espanhol levanta hipóteses sobre os criadores das “suntuosíssimas” obras, esculpidas com

“muito primor”, existentes na antiga cidade maia explorada por ele em 1784. Poderiam se

tratar de descendentes de romanos, espanhóis ou cartagineses, no entanto, em nenhum

momento, o autor cogitou a possibilidade delas terem sido elaboradas pelos ancestrais dos

grupos indígenas que habitavam a região.

Ainda que a expedição comandada por Calderón tenha sido a primeira

exploração oficial às ruínas de Palenque, ela não foi a pioneira323

. Mais de uma década

antes, em 1773, a antiga cidade maia já havia sido visitada por representantes da Coroa

espanhola. Entre os integrantes desta expedição encontrava-se Fernando Gómez de

Andrade, alcaide maior de Ciudad Real, capital de Chiapas, e autor da afirmação escolhida

como epígrafe deste capítulo. Para ele, as grandiosas e elaboradas construções existentes

em Palenque não poderiam ser “coisas de índios”, restando aos que se interessavam pelo

tema, buscar uma origem externa ao continente americano, ou seja, uma origem relacionada

aos povos do Velho Mundo.

José de Estachería, então presidente da audiência da Guatemala, que já havia

organizado a expedição de Calderón, decidiu enviar novos homens à região. Liderados por

Antonio Bernasconi, arquiteto de origem italiana responsável pela criação e construção de

várias obras reais na cidade da Guatemala, os exploradores alcançaram Palenque em 1785.

Entre as principais questões que deveriam ser analisadas por esta nova empreitada estava a

relacionada à origem de seus antigos habitantes. A este respeito, Bernasconi afirma ser

“muy probable que fuesen indios, según la figura de las estatuas, modo de fabricar […] Sin

embargo de que la construcción de los edificios no hace del todo incultos en el arte a los

que lo fabricaron” (apud GARZA, 1981, 48). A postura adotada por este autor ia de

encontro às opiniões anteriores, como a elaborada por Calderón, que indicavam para os

ruinas establecido en los inicios de la década de 1880 por el gobierno mexicano” (PODGORNY, 2008, 585-

586).

323 O clérigo Pedro Lorenzo de la Nada chegou a ser apontado como o primeiro europeu a ter alcançado

Palenque, em 1567. No entanto, ainda persistem dúvidas sobre o itinerário percorrido por este religioso. Além disso, este possível primeiro contato não gerou maiores desdobramentos, o que só veio a ocorrer no século

XVIII. Para uma descrição e análise das principais expedições a Palenque realizadas entre os séculos XVIII e

XIX, Cf. GARZA, 1981; ROMERO SANDOVAL, 1997. Jorge Cañizares-Esguerra (2011, 383-409), que

também analisa esta questão, utiliza os debates travados em torno das ruínas palencanas como um “estudo de

caso” do encontro paradoxal do barroco com o Iluminismo na América espanhola.

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construtores da cidade uma origem externa ao continente americano e diferente da dos

atuais habitantes da região324

.

As reflexões de Estachería sobre o tema foram enviadas para a Coroa junto com

os escritos de Calderón e Bernasconi além de imagens retratando algumas das ruínas

existentes no local. Já na Espanha, chegaram às mãos do Cronista Real das Índias, Juan

Bautista Muñoz. Para este autor, as edificações e ornamentos encontrados em Palenque

indicavam que os construtores da cidade eram superiores aos indígenas que tiveram contato

com as embarcações europeias a partir de 1492, ainda que não fosse possível determinar

claramente qual seria a sua origem. O grande interesse demonstrado por Muñoz, para quem

os estudos sobre estas ruínas poderiam “ilustrar los orígenes i la historia de los antiguos

Americanos” (apud PEDRO ROBLES, 2014, 73), estimulou a organização de uma nova

campanha ao local.

Comandada pelo capitão Antonio del Río325

, a nova expedição, que danificou

seriamente algumas das construções326

, alcançou a antiga cidade maia em 1787. Em seu

relato sobre o local (que alcançou uma ampla difusão entre seus contemporâneos e ajudou a

divulgar as notícias sobre as ruínas de Palenque para além do império espanhol327

), del Río

dedica um espaço significativo às questões envolvendo a origem de seus habitantes, que,

para ele, poderiam também esclarecer a procedência das técnicas de construção utilizadas.

De acordo com o militar espanhol, as edificações encontradas apresentavam características

em comum com as projetadas pelos antigos romanos (como, por exemplo, a existência de

um aqueduto subterrâneo).

324 Segundo Cañizares-Esguerra (2011, 389), Estachería teria privilegiado em suas conclusões as

interpretações de Bernasconi sobre o tema. Já para Garza (1981, 48), o oficial da Coroa espanhola

permaneceu com dúvidas quanto à possibilidade destas construções terem sido feitas pelos próprios indígenas.

325 Entre os membros da expedição estava Ricardo Almendáriz, responsável por elaborar imagens das ruínas

do local cujos originais se perderam.

326 Várias edificações foram derrubadas ou tiveram partes escavadas em busca de informações sobre as técnicas de construção e os materiais utilizados além da procura por possíveis reservas de metais preciosos.

Alguns dos vestígios extraídos das ruínas foram enviados para a Coroa espanhola.

327 Os escritos de Antonio del Río foram traduzidos para o inglês e publicados em 1822, se tornando (junto

com a obra de Pablo Félix Cabrera, publicada no mesmo volume) o primeiro relato sobre Palenque a alcançar

o mercado editorial europeu (DEL RÍO; FÉLIX CABRERA, 1822).

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Entretanto, o oficial afirma não acreditar que os romanos tenham sido os

responsáveis diretos por elas, mas sim que integrantes deste povo teriam passado pela

Mesoamérica em um período muito distante onde transmitiram aos índios que já habitavam

a região parte de suas avançadas técnicas como forma de retribuir a hospitalidade com que

teriam sido recebidos. É importante observarmos ainda que o autor não restringe sua

“resposta” apenas aos romanos, afirmando ter encontrado também indícios da influência de

outros povos da Antiguidade, como os gregos e os fenícios. Seguindo esta lógica, os

ornamentos considerados por ele como mais “rudes” e “primitivos” seriam fruto da ação

direta dos nativos americanos, sobre os quais ele não elabora uma provável hipótese sobre

sua procedência. Já as obras mais complexas seriam versões rudimentares de outras

existentes em determinados locais do Velho Mundo (DEL RÍO; FÉLIX CABRERA, 1822,

1-21).

A teoria de Del Río sobre a origem externa ao Novo Mundo das construções de

Palenque foi criticada por alguns de seus contemporâneos. Entre eles, podemos citar

Vicente José Solórzano, para quem estas obras teriam sido realizadas pelos próprios

indígenas que habitavam a região328

. No entanto, mesmo para este autor, a preocupação em

identificar a procedência destes grupos continua sendo fundamental, o que o leva a

defender que descendentes das dez tribos perdidas de Israel teriam se estabelecido em um

passado distante nestas terras.

Um dos autores mais ativos dentro dos debates sobre as construções

descobertas em Palenque foi Ramón Ordóñez y Aguiar. Contudo, apesar de se

autodenominar como o “motor” que alimentou o interesse por estas ruínas329

, este erudito

328 “Antonio del Río en su regreso de dicha comisión, en este mes, me flanqueó la vista de algunos fragmentos

de amoldadas figuras de las arruinadas casas, y de que se inclina, con otros, a la idea de que los factores

primitivos de dichas fábricas arruinadas, fueron fenicios, godos o cartagineses o romanos, no soy de este

sentir al presente, y sí digo que sus constructores fueron los primeros indios gentiles” (apud ROMERO SANDOVAL, 1997, 16).

329 “Podría justamente lisonjearme de ser el motor de la antigua expectación en que ha puesto a toda la

Monarquía y acaso a todo el mundo, la plausible novedad de un descubrimiento tan ruidoso” (apud GARZA,

1981, 47). Para informações biográficas sobre Ramón Ordóñez y Aguiar, Cf. ESPONDA JIMENO, 2011,

175-178.

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padre nunca realizou uma viagem à região que tanto admirava330

. Mesmo assim, foi um dos

principais divulgadores de informações e formulador de hipóteses sobre este local, que

contribuíram decisivamente para a organização de novas expedições (como a comandada

por Calderón).

Em seus escritos, Ordóñez y Aguiar também dedica um espaço significativo

para a questão da origem dos indígenas. Neles, o autor defende que os povos que habitavam

o Novo Mundo descendiam da linhagem de Cam (mais especificamente, de seu filho

Canaã), tendo a Caldeia como ponto de partida para este longo processo de migração. Isto

faria com que a rica e desenvolvida Palenque, cujos indícios sugeriam se tratar da lendária

Ofir bíblica, se tornasse o primeiro centro urbano do continente, além de atuar como “eixo

de uma economia global ligando ao Velho Mundo os romanos, os hititas e os cartagineses

exilados na América”331

. Este autor também organizou na Cidade da Guatemala um grupo

de pessoas interessadas em pesquisar questões relacionadas ao passado americano, em

especial, a partir do campo da filologia. Entre os integrantes, encontrava-se Pablo Félix

Cabrera, erudito de origem italiana que habitava a região e que travou duros embates

teóricos com Ordóñez y Aguiar na última década do século XVIII (chegando a ser acusado

de plágio por ele).

Em 1794, Félix Cabrera concluiu seu Theatro Crítico Americano, onde elabora

uma série de reflexões sobre os povos responsáveis pelas edificações encontradas nas

grandes cidades maias exploradas nos últimos anos. Mais uma vez, as origens são um

elemento incontornável332

. A partir da análise de relatos de alguns de seus contemporâneos,

330 Ordóñez y Aguiar defendia que o primeiro espanhol a ter alcançado Palenque teria sido seu tio avô,

Antonio de Solís, por volta de 1730.

331 “Ordóñez y Aguiar enfatizava as diversas influências evidentes nas ruínas. Traços mouriscos podiam ser

encontrados nos anéis das paredes das câmaras subterrâneas [...] Influências romanas podiam ser encontradas

em toda parte, em particular no suposto palácio, que Ordóñez y Aguiar afirmava ser um templo romano [...]

Os romanos também haviam deixado para trás um aqueduto. Os hebreus deixaram sua marca no tamanho das

pedras usadas nas construções: enormes, para significar magnanimidade. O palácio-templo também se

assemelhava ao lendário templo de Jerusalém. Por fim, Ordóñez y Aguiar afirmava que a influência egípcia era avassaladora” (CAÑIZARES-ESGUERRA, 2011, 384-394).

332 Félix Cabrera afirma que, apesar de haver várias obras que analisaram esta questão, ela ainda se

encontrava envolta em dúvidas. Isto teria estimulado o surgimento de repostas que afrontavam preceitos

religiosos, como a “ímpia doutrina” pré-adamita formulada por Isaac de la Peyrère que, segundo ele, ainda

contava com vários defensores (DEL RÍO; FÉLIX CABRERA, 1822, 28).

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como Del Río e Ordóñez y Aguiar, mas também de obras do período dos descobrimentos e

da tradição clássica, Félix Cabrera defende que os primeiros grupos a alcançarem a

América eram de origem hitita e teriam se estabelecido em Palenque cerca de quatro

séculos antes de Cristo333

. No entanto, esta migração não seria responsável pela colonização

de todo o continente, apenas desta região específica, que, não por acaso, era mais

desenvolvida do que as outras. Para este autor, o fundador de Palenque teria viajado de

volta à Europa para divulgar informações sobre as terras encontradas e colonizadas por seus

homens. Estas notícias teriam estimulado a migração de outros povos em direção ao Novo

Mundo (inclusive por outras rotas que não a navegação atlântica, como as migrações

asiáticas através de Bering), o que explicaria a existência de características tão diversas

entre os grupos indígenas334

.

Após a expedição de Del Río, as ruínas de Palenque permaneceram cerca de

vinte anos sem receber novas explorações. Contudo, nas primeiras décadas do século XIX,

o interesse por estas construções reascendeu335

– em parte, pela publicação em inglês dos

relatos de Del Río e Cabrera – o que levou à organização de várias expedições em direção

às ruínas do local. Entre outras, podemos citar a organizada pelo militar espanhol de origem

francesa Guillermo Dupaix (1897)336

, a de Jean Frédéric Maximilien de Waldeck (1832), a

dos ingleses John Herbert Caddy e Patrick Walker (para quem os construtores de Palenque

333 Após citar uma série de eventos do passado remoto dos indígenas da região, Félix Cabrera conclui que:

“these incidents appear to be the same as those which happened to the Canaanites generally, and to the Hivites in particular along the whole coast of Africa, until their passing into America and arrival at the lake

of Mexico” (DEL RÍO; FÉLIX CABRERA, 1822, 65).

334 “I have now ascertained the origin, if not of all the Americans, at least of those who inhabited the

countries bordering on the gulph of Mexico and the adjacent islands; and I have cleared up such other points

as I proposed to examine. From various accidents, since the introduction of the arts of navigation, it is

probable that many other families besides those alluded to, may have been conveyed to different parts of

America and have formed settlements, the numerous dialects known in America, as well as their superstitious

religion and rites of exotic origin, which they continued to practice and diffuse, will warrant such a

supposition” (DEL RÍO; FÉLIX CABRERA, 1822, 101).

335 Segundo Podgorny (2008, 580), o interesse por Palenque neste período era tão grande entre as sociedades

de antiquários e de geografia da Europa que a Société de Géographie de Paris chegou a estabelecer uma recompensa de 2.400 francos para obter uma descrição “confiável” destas ruínas.

336 De acordo com Romero Sandoval (1997, 19), Dupaix “reconoce la originalidad de la cultura palencana,

no obstante relacionarla con migraciones de la Atlántida y aceptar su posible parentesco con los egipcios”.

Para uma análise das expedições americanas organizadas por Guillermo Dupaix, Cf. FRANCH, 1988, 221-

279.

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poderiam ter uma origem relacionada ao Egito e ao Hindustão) e a comandada pelo norte-

americano John Lloyd Stephens e pelo inglês Frederick Catherwood (as duas últimas

realizadas em 1840). Ainda que haja grandes diferenças entre os escritos destes autores –

algo que não pretendemos analisar nestas páginas – fica evidente que, ao refletirem sobre as

possíveis procedências dos antigos construtores de Palenque, a grande maioria aponta a

existência de uma diferença “original” entre eles e os grupos indígenas que teriam passado

a habitar a região nos últimos séculos337

.

As opiniões de Waldeck são exemplares a esse respeito. Em seu Viaje

pintoresco y arqueológico a la Provincia de Yucatán (1838), este artista e explorador

francês, que também produziu imagens sobre os locais que visitou durante sua expedição,

afirma que as obras encontradas em Palenque tinham características “visivelmente”

próximas às existentes entre alguns povos asiáticos (ainda que também existissem

elementos relacionados aos egípcios), o que o leva a concluir que “en somme, tout, jusqu’à

présent, dans les figures et les hiéroglyphes des Mayas, me révèle une origine asiatique”

(apud DEPETRIS, 2009, 233). Ao mesmo tempo, entretanto, o autor reforça a imagem do

continente americano como um local de extrema ignorância e barbárie. A partir dessas

informações, Waldeck formula uma resposta, baseada fundamentalmente em análises

filológicas, que associam a origem dos indígenas aos hebreus e, mais precisamente, às dez

tribos perdidas de Israel (o topônimo “Iucatã”, por exemplo, seria uma referência a Joctan,

pai de Ofir). Contudo, o autor ressalta que esta associação não diz respeito a todos os

americanos, mas apenas a um grupo determinado, que teria povoado as regiões de Palenque

e Uxmal: “Je ne trouve des traces des Hébreux qu’à Palenqué; là, du moins, elles sont

manifestes” (apud DEPETRIS, 2009, 238).

*** 337 “Sin embargo, el rasgo esencial de la historiografía y la protoarqueología en torno a Palenque de los

siglos XVIII y XIX es que no se acepta que los antecesores de los indígenas de la región, ellos solos, hayan

creado la ciudad, pues aunque algunos consideran que Palenque si fue fundada por indígenas, el alto nivel cultural que las ruinas revelan solo pudo haberse logrado, para ello, con la influencia de las grandes

culturas del Viejo mundo. Muchos de aquellos estudiosos y viajeros, sin más referencia histórica que la

cultura occidental, no podían aceptar que los oprimidos indígenas de la región pudieran ser los

descendientes de ésa que consideraban ‘una maravillosa raza que creó la gran civilización manifiesta en las

ruinas’” (GARZA, 1981, 63).

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É evidente que as expedições que exploraram as ruínas de Palenque não se

restringem aos exemplos apontados acima338

. No entanto, consideramos válido iniciar o

capítulo indicando as diversas teorias elaboradas entre as últimas décadas do século XVIII

e as primeiras do século XIX acerca dos possíveis responsáveis por estas construções pelo

fato delas apresentarem uma série de elementos fundamentais para as reflexões formuladas

no período a respeito da origem dos indígenas e que serão analisados neste capítulo e no

próximo.

Em primeiro lugar, podemos observar em praticamente todos os autores citados

acima que, a despeito do local de origem dos construtores de Palenque identificado por

cada um deles, há uma clara dicotomia entre estes indígenas e os outros habitantes do

continente americano. Esta divisão pode ser observada no tempo e/ou no espaço e carrega

consigo um claro viés hierarquizador. Em muitos casos, os “avançados” grupos apontados

como responsáveis por erigirem as elaboradas edificações existentes no local teriam uma

origem diferente da dos povos que se estabeleceram em outras partes do continente

americano e, principalmente, daqueles que passaram a habitar a região de Palenque após a

cidade ter sido abandonada e que ainda estariam nestas terras quando da chegada das

expedições exploratórias. Na grande maioria das vezes, o índio “vivo” ou, ao menos, o

índio que estabeleceu contato com os europeus a partir do final do século XV, teria

características consideradas como incompatíveis com as dos responsáveis por estas

construções. Postura esta, resumida na afirmação de Fernando Gómez de Andrade com que

abrimos este capítulo, para quem as construções existentes nesta cidade não poderiam ser

“coisas de índios”.

Os relatos sobre as ruínas de Palenque também indicam que, mais do que

determinar a procedência de todos os americanos, havia a preocupação no período de se

refletir sobre a origem de um grupo – ou região – específico, em geral, identificados como

mais “avançados” do que os outros. Diante dos escassos indícios – que, muitas vezes, ainda

338 Segundo Garza (1981, 63), houve um interesse crescente por esas ruínas: “[No final do século XIX] casi

todos los grandes americanistas [...] visitaron Palenque; entre ellos destacan Maler, Seler, Homes, Saville y

Forstemann, cuyos trabajos contribuyeron a crear una nueva imagen de Palenque, que sustituyó a las

aproximaciones interpretativas de los siglos XVIII y XIX”.

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se mostravam conflitantes – sobre o passado remoto do continente e da dificuldade de se

associar todos os americanos a um único ancestral, vários autores concentraram suas

atenções àqueles grupos considerados por eles como pertencendo a um estágio mais

“civilizado”.

Dessa forma, podemos observar que o conceito de “civilização” e,

consequentemente, o de “barbárie” foram fundamentais para as reflexões sobre os

indígenas elaboradas no período. Mais do que isso, ao associar estes conceitos às diferentes

origens atribuídas aos povos americanos, com os mais “civilizados” tendo ancestrais

diferentes e “superiores” aos dos demais habitantes do continente, há, ao mesmo tempo,

uma hierarquização dos povos do Velho Mundo. Como apontado por Luiz Estevam de O.

Fernandes (2009, 54), os conceitos de civilização e barbárie remontam à Antiguidade

clássica339

e, a partir dos primeiros contatos dos europeus com o Novo Mundo, tornaram-se

formas de interpretar a nova realidade americana, ainda que houvesse variações nos

significados dados a eles pelos autores do período. Contudo, a partir do século XVIII, os

termos deste binômio, em especial o primeiro, sofreram uma alteração, “por um lado, o

conceito [de civilização] indicava o movimento pelo qual a humanidade havia saído de seu

estado inicial, a barbárie original, e se orientara na via do aperfeiçoamento coletivo e

ininterrupto. Por outro lado, o mesmo vocábulo podia designar um estado de coisas, um

degrau na escala da civilização, em que um povo (europeu) se encontrava”.

Esta mudança no conceito pode ser identificada nas reflexões sobre as origens

dos construtores de Palenque citadas anteriormente. Nelas, podemos observar que, em

vários casos, as hipóteses que defendem origens múltiplas para os americanos distinguem

entre eles aqueles que possuiriam sinais de “civilização” e os associam a povos

considerados “civilizados” do Velho Mundo. Este processo permite a identificação de uma

339 “Civilização tem raiz política, originando-se do latim civis, uma tradução do grego polités, cidadão. Por

volta de 1300, a palavra civilitas havia se tomado um conceito amplamente usado no latim medieval para

designar uma comunidade política [...] Porque era tradicionalmente usado em contraste com o “não cívico”,

com vida no campo e com os camponeses, civilita também passou a significar o oposto de inumano, animalidade e barbarismo. Civilitas/civilis gradualmente tornou-se um conceito útil na construção de uma

identidade, sendo usado para distinguir nós dos outros, à maneira de outros pares antitéticos da antiguidade,

como grego/bárbaro, romano/bárbaro e cristão/pagão [...] Barbárie também tem origem clássica.

Originalmente, o bárbaro era quem falava mal o grego, quem balbuciava ou gaguejava [...] Para o grego, o

bárbaro é o homem rude, o não grego, o estrangeiro” (FERNANDES, 2009, 51-52).

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“marcha da civilização” que, para muitos autores, se ramificaria para as outras regiões do

planeta a partir de um ou poucos “berços” de origem, o que poderia ser reconhecido, por

exemplo, a partir de semelhanças linguísticas, físicas, comportamentais, religiosas,

arquitetônicas, entre outras.

As hipóteses formuladas sobre os construtores de Palenque permitem ainda

identificar outro elemento central para as reflexões sobre a(s) origem(ns) dos indígenas –

ou de um grupo específico – realizadas no período. Através delas, podemos observar que,

com raras exceções, os ancestrais dos povos considerados como os mais “avançados” do

Novo Mundo são identificados, em última instância, ao Oriente. Como analisaremos mais

detidamente no capítulo seguinte, a partir do século XVIII, em especial na sua segunda

metade, há um aumento exponencial do interesse europeu pela exploração do Oriente que

está associado às muitas expedições, investigações e estudos sobre a região que vinham

ocorrendo nesta época. Para um número crescente de autores, o Oriente passa a ser

apontado como o “berço” da civilização que, milhares de anos depois, culminaria nas

nações europeias.

Retornando aos relatos sobre a antiga cidade maia de Palenque, podemos citar

como exemplo desta visão a apresentação da pioneira edição inglesa dos relatos de Antonio

Del Río e Pablo Félix Cabrera composta por Henry Berthoud. Nela, fica evidente a ligação

estabelecida pelo autor entre as descobertas que estavam sendo realizadas no Oriente neste

período e as reflexões desenvolvidas sobre algumas das culturas americanas analisadas

nesta obra: “we must now look for a development of the hieroglyphic characters traced

throughout this ruined city, as well as in various other parts for the Mexican continent;

which when compared with the important discoveries effected of late years in Africa, Egypt,

etc. from thence perhaps may be demonstrated, beyond the possibility of doubt, that such a

striking analogy exists between the vestiges of those nations as to draw this inference”

(DEL RÍO; FÉLIX CABRERA, 1822, x-xi).

É a partir dessas questões que pretendemos estruturar a segunda parte de nossa

tese. Nela, nosso objetivo central será analisar as reflexões sobre as origens dos indígenas

elaboradas – em especial, mas não exclusivamente – ao longo do século XIX, tendo como

eixo central as divisões estabelecidas pelos autores entre grupos mais e menos

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desenvolvidos e seus ancestrais específicos. Além disso, pretendemos apontar como estas

divisões sofreram uma forte influência dos estudos realizados no período sobre sociedades

e “civilizações” orientais.

É interessante observarmos que, mais ainda do que em relação ao século XVI, a

bibliografia que analisa a produção oitocentista sobre a procedência dos ancestrais dos

americanos é escassa e esparsa. As poucas obras que se dedicaram a este tema, na grande

maioria das vezes, resumem-se a extensas listas de autores e argumentos associados a cada

uma das hipóteses defendidas (Cf. FRANCH, 1985) ou a estudos de um relato, teoria ou

região específica (Cf. MATOS MOCTEZUMA, 1987; QUIJADA, 1996; DEPETRIS,

2009). Acreditamos que parte significativa desse desinteresse pelo tema está relacionado à

postura que identifica nas obras produzidas neste período um arrazoado de hipóteses

“fantasiosas”, “erradas” ou “superadas” pelas descobertas arqueológicas e os estudos mais

recentes sobre o tema. Interpretação que, como já apontamos anteriormente (Cf. Capítulo

1), discordamos.

Consideramos que ignorar essas obras a partir de critérios elaborados mais de

um século depois implica eliminar das análises sobre as representações dos indígenas

realizadas no século XIX um elemento fundamental para muitos autores do período e que

gerou intensos e duradouros debates. Os casos do nobre inglês Lord Kingsborough e do

padre e escritor francês Charles Étienne Brasseur de Bourbourg são exemplares. Autores

que alcançaram grande repercussão entre seus contemporâneos – ainda que, em alguns

casos, para serem refutados – são quase que totalmente ignorados pela historiografia atual,

pois, entre outros aspectos, defenderiam teorias “extravagantes” e equivocadas sobre a

procedência dos indígenas.

Dando continuidade à estrutura adotada no segmento anterior, dedicado ao

século XVI, abordaremos inicialmente as hipóteses judaica e atlante de migração,

principais objetos do presente capítulo, e, no seguinte, as obras de autores que atribuíram

uma origem oriental aos povos americanos ou, ao menos, a uma parte significativa dos

habitantes deste continente. Faremos, por fim, referência a algumas teorias que

identificavam o surgimento da espécie humana – ou, ao menos, da “civilização” – em uma

região específica do Novo Mundo (que poderia ser a Argentina, a Cordilheira dos Andes ou

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a Mesoamérica, entre outras), hipótese que gerou intensos debates nas últimas décadas do

século XIX.

A decisão de concentrarmos nossa atenção nessas hipóteses, especialmente a

que associava os americanos ao Oriente, foi baseada em duas constatações principais.

Primeiramente, a questão quantitativa. Como veremos adiante, entre as últimas décadas do

século XVIII e em todo o século XIX, a teoria dos índios judeus praticamente se restringiu

à intelectualidade norte-americana (com raras exceções, das quais destacamos a coletânea

organizada pelo nobre inglês Lord Kingsborough). Em relação às hipóteses que

reconheciam a Atlântida como local de origem ou ponto de passagem para os primeiros

habitantes do Novo Mundo, identificamos um número ainda menor de obras (sendo as de

Paul Gaffarel e Alfredo Chavero as que mais se destacaram). Já as teorias que relacionavam

os americanos – ou parte significativa deles – aos povos orientais, ultrapassam as várias

dezenas.

Em segundo lugar, levamos em consideração também a repercussão alcançada

por estas hipóteses340

. As teorias de uma origem oriental foram muito mais debatidas,

aprofundadas e alteradas do que as outras neste período. Acreditamos que isto decorra,

entre outros fatores, por ela acabar associando aos americanos termos e conceitos

extremamente caros aos intelectuais do período, como o de línguas indo-europeias e o de

povo ou raça ariana. Não por acaso, vários autores que advogavam uma origem atlante,

judaica ou mesmo uma “migração invertida” dos indígenas (do Novo Mundo para o Velho),

dedicavam uma grande atenção ao Oriente.

Como já apontado em capítulos anteriores, não nos restringiremos aos limites

estritos de um único século. Acreditamos ser fundamental abordarmos as obras de autores

como o historiador escocês William Robertson, o jesuíta exilado em terras italianas

Francisco Javier Clavijero e o viajante prussiano Alexander von Humboldt, que refletiram

sobre a natureza dos indígenas e suas possíveis origens durante a segunda metade do século

340 Neste aspecto, guardadas as diferenças, aproximamos nossa postura da adotada por Stephen Jay Gould (1999, 12) ao analisar estudos científicos sobre os seres humanos realizados no século XIX e início do XX:

“Uma vez que, segundo os critérios atuais, muitos dos casos aqui apresentados são tão patentes, e até risíveis,

quero enfatizar que não selecionei figuras marginais e alvos fáceis [...] [que] apesar de divertidos, são

efêmeros e de mínima influência. Neste livro, concentrei-me nos cientistas mais importantes e influentes de

cada época, e analisei suas obras mais importantes”.

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XVIII, para melhor compreendermos alguns dos principais debates sobre o tema travados

nos anos seguintes. Da mesma forma, faremos – poucas – referências a obras publicadas já

nas primeiras décadas do século XX. Contudo, o centro de nossa análise será as décadas

centrais do século XIX, em especial, até a de 1870.

Por fim, consideramos necessário reforçar algumas das ressalvas apresentadas

no início da tese. Não pretendemos neste capítulo e no seguinte analisar “todas” as obras

que produziram teorias sobre a origem dos indígenas em um período que extrapola um

século (algo inviável diante das limitações desta pesquisa), mas sim como algumas dessas

hipóteses, principalmente as que associavam os americanos aos judeus, atlantes ou povos

orientais, foram interpretadas por um grande número de autores como sendo capazes de

“responder” a esta questão – ainda que, muitas vezes, limitada a um determinado grupo – e

de que forma elas atuaram nas representações dos indígenas presentes nestes escritos. Para

isso, não nos limitaremos a um único tipo de fonte nem a uma procedência específica dos

autores, seja ela espacial ou social.

Os debates sobre os primeiros americanos no século XVIII

Como apontamos anteriormente, as análises sobre a origem dos índios

diminuíram significativamente a partir das últimas décadas do século XVII até meados do

XVIII (Cf. Capítulo 2)341

. Entre os poucos autores que abordaram o tema nestes anos,

341 É importante ressaltarmos que, neste período, as reflexões sobre o passado remoto dos seres humanos

foram influenciadas – especialmente na França, mas não apenas – por obras de autores como Joseph François

Lafitau e Voltaire. No primeiro caso, o missionário jesuíta, como o próprio título de seu livro indica (Moeurs

des sauvages américains comparées aux moeurs des premiers temps), estabelece uma comparação entre os

costumes dos “selvagens” americanos e os praticados pelos povos antigos: “Lafitau não somente cria ideias

favoráveis aos selvagens e dignifica a presença do ‘selvagem’ na literatura mas, por meio da constante

analogia e contínua referência aos costumes selvagens como uma ‘imitação’ dos antigos, acaba por conceber

a ideia de uma continuidade histórica entre selvagens e civilizados. Assim, Lafitau constrói uma ‘ponte’ entre

selvagem, ou bárbaro, e o civilizado, porque todos os povos são primitivos em sua origem e todos os homens primitivos possuem traços culturais semelhantes”. Já para Voltaire, em especial em seu Essai sur les moeurs

et l’esprit des nations et sur les principaux faits de l’histoire depuis Charlemagne jusqu’à Louis XIII, “se [...]

em vários momentos, o homem americano exemplifica o homem dos primeiros tempos, não há nada de digno

– moral e historicamente – nem único nisso, pois os selvagens europeus são para Voltaire muito mais

bárbaros” (CHACHAM, 2003, 97-98).

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podemos citar o beneditino espanhol Benito Geronymo Feijóo y Montenegro, o italiano

radicado no México Lorenzo Boturini, o jesuíta Francisco Xavier Alejo de Orrio, o

orientalista francês Joseph de Guignes e o geógrafo suíço Samuel Engel342

.

Em seu Theatro Critico Universal (uma das obras mais lidas na Espanha do

século XVIII), publicado entre 1726-1740, Feijóo dedica um de seus discursos à análise da

Solución del gran problema histórico sobre la población de la América y revoluciones del

orbe terráqueo. Segundo o escritor espanhol, mesmo após ter contato com as dezenas de

hipóteses arroladas na republicação da obra de García, o problema da origem dos

americanos permanecia sem uma solução definitiva. A falta de uma resposta satisfatória ao

tema, para ele, trazia uma série de dificuldades, haja vista ser este um “punto en que se

interesa infinito la Religión”343

. Diante desta conclusão, o autor elabora algumas propostas

que reproduzem vários dos argumentos desenvolvidos anteriormente pelo jesuíta espanhol

José de Acosta344

. Para Feijóo, teria existido em um passado remoto um estreito de terra

entre a Ásia e a América utilizado pelos seres humanos e animais selvagens para realizarem

a migração entre os dois continentes. Esta afirmação poderia ser “comprovada” pelas

mudanças geográficas ocorridas ao longo dos séculos, visíveis, por exemplo, através de

evidências como a descoberta de fragmentos de conchas em locais muito distantes dos

oceanos345

.

342 Podemos indicar ainda a já mencionada segunda edição da Origen de los indios de el Nuevo Mundo e

Indias occidentales de Gregorio García, publicada em 1729.

343 As implicações religiosas identificadas por Feijóo estão diretamente relacionadas às fortes críticas feitas

por ele à teoria pré-adamita de Isaac de la Peyrère, “el qual, á la mitad del siglo pasado, vomitó tan

pernicioso error en un libro escrito á este intento”, que teria gerado uma “seita de hereges” (FEIJÓO Y

MONTENEGRO, 1769, 298).

344 Feijóo (1769, 302) faz referência às reflexões de Acosta sobre a origem dos índios em vários momentos de

seu discurso. Como exemplo, podemos citar as passagens onde o autor aponta as dificuldades para se explicar

a migração de animais selvagens ao Novo Mundo através de embarcações, seus argumentos contra a hipótese

de uma origem atlante e a possibilidade – negada pelo jesuíta – de que anjos poderiam ter realizado o

transporte dos seres vivos até as terras americanas.

345 “[…] la disposición exterior del Orbe Terráqueo es hoy bastantemente distinta de la que hubo en otro

tiempo. Puesto esto, es fácil concebir, que aunque hoy los dos continentes están separados, en los tiempos antiquísimos estuviesen unidos, ó se comunicasen por tierra; por consiguiente, que por aquella parte, donde

había la comunicación por tierra, pasasen hombres, y brutos á la América […] Estos antecedentes infieren

como consecuencia necesaria, que es ocioso buscar en los mapas el rumbo por donde los primeros

pobladores de la América pasaron á aquellas Regiones. Estaba la superficie del Globo diferentísima entonces

que ahora. El tránsito de los animales inútiles, feroces, ó nocivos, prueba invenciblemente, que había paso

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Poucos anos depois, foi publicada em Madri a Historia de la América

Septentrional (1746), de Lorenzo Boturini. Também para este cortesão de origem italiana

enviado ao México para tratar de questões financeiras de herdeiros da antiga realeza asteca

(CAÑIZARES-ESGUERRA, 2011, 172), a questão da origem dos índios ainda permanecia

“obscura”, a despeito dos vários escritores que haviam se dedicado a ela nos últimos

séculos346

, o que teria despertado seu interesse pelo tema. Tendo os relatos narrados pelos

próprios grupos americanos sobre seu passado, em especial os que habitavam a região da

Mesoamérica, como principal fonte para suas teorias, Boturini, de forma extremamente

confusa e dispersa, afirma que sete ancestrais dos toltecas que participavam da construção

da Torre de Babel, “viendo que no se entendían con los demás, se apartaron con sus

mujeres, e hijos, y después de haber peregrinado en Asia [...] por fin llegaron a las tierras

de la Nueva España, que entonces se dijo Anahuác, y fueron internándose hasta llegar a

Tula, que hicieron corte y cabeza de su Imperio” (apud MATOS MOCTEZUMA, 1987,

93).

Para Boturini, entretanto, esta migração não teria dado origem a todos os

habitantes do continente. Outros povos – assim como personagens bíblicos, como São

Tomé347

– teriam alcançado estas terras. O autor é claro ao afirmar que os americanos não

formariam um todo homogêneo, mas se dividiriam em vários grupos com características e

trajetórias específicas348

. Afirmação esta que, possivelmente, está relacionada ao fato dele

por tierra. No se halla ahora. Qué contradicción hay en esto? Ninguna. Así se resuelve fácilmente esta

cuestión, tenida hasta ahora por dificilísima, y se corta de un golpe el nudo Gordiano, que tantas plumas

tentaron inútilmente desatar” (FEIJÓO Y MONTENEGRO, 1769, 304-323).

346 De acordo com Boturini, os autores que abordaram o tema até então teriam embasado as suas reflexões a

partir de três eixos principais considerados inadequados por ele (a comparação entre diferentes línguas, das

leis dos índios com as praticadas por alguns povos no Velho Mundo e dos costumes dos americanos com o de antigos povos idólatras) (MATOS MOCTEZUMA, 1987, 85-88).

347 Para o autor, a América já teria tido contato com o cristianismo antes da chegada das embarcações

europeias. São Tomé teria atuado entre os indígenas do Peru e da Nova Espanha, o que poderia ser

“comprovado” de duas maneiras: teriam sido encontradas pinturas de cruzes feitas pelo próprio santo nestas

regiões do continente, além de alguns povos americanos apresentarem reminiscências de eventos bíblicos em

suas crenças.

348 “[...] así entre los mismos indios se halla gran diferencia de costumbres, pues los de tierra caliente son

flojos, lánguidos, e inermes; los de tierra fría, robustos, fuertes, y que aguantan grandes trabajos; los de la

templada participan de uno y otro; los de las partes mediterráneas tienen un genio, otro los de las costas

marítimas” (apud MATOS MOCTEZUMA, 1987, 92-109).

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defender que os habitantes do continente americano não descenderiam apenas de um dos

netos de Cam, Nefetuim, como apontado por Carlos de Sigüenza y Góngora e Sor Juana

Inés de la Cruz, mas sim de muitos deles349

.

Cerca de duas décadas depois das publicações de Feijóo e Boturini, outro

religioso dedicou sua atenção ao tema. Em 1763, o jesuíta mexicano Francisco Xavier

Alejo de Orrio escreveu um pequeno texto que reproduz muitos dos argumentos elaborados

pelo beneditino espanhol350

, como a influência dos escritos de Acosta, as duras críticas à

teoria pré-adamita e as ponderações sobre a presença de animais selvagens no continente

americano bem como as implicações que a presença deles trazia para aqueles que se

propunham explicar a existência de seres vivos nestas terras. Ainda que afirme deixar o

campo aberto para novas teorias, Orrio reforça os argumentos de Feijóo sobre uma ligação

por terra em período próximo ao dilúvio bíblico que teria se desfeito com o passar dos anos.

Contudo, nas páginas finais de seu relato, o autor criollo se distancia de seu grande

inspirador espanhol ao afirmar ser possível identificar a linhagem dos americanos. Assim

como para Boturini, Orrio defendia que os indígenas eram descendentes de Cam, contudo,

para ele, isto deveria ser motivo de orgulho para os americanos, pois indicaria a extrema

antiguidade dos habitantes deste continente351

.

349 “[…] yo me inclino a creer, que también desciendan de los demás hermanos Ludim, Amanim, Phetusim, y

Cabtborim por dos razones, la primera, porque Nicolás de Lira [...] dice que no se sabe el paradero de esas

gentes [...] La segunda, porque no consta hasta lo presente, que nuestros indios desciendan individualmente

del solo Nephetuim”. O autor afirma também que a América havia sido povoada por alguns dos gigantes

mencionados nas Sagradas Escrituras, que teriam sido destruídos posteriormente pelos indígenas (apud MATOS MOCTEZUMA, 1987, 102-103).

350 A influência de Feijóo pode ser identificada já no título escolhido por Orrio para seu texto (Solución del

gran problema acerca de la población de las Américas), muito semelhante ao do beneditino.

351 “De aquí resulta un grande honor á los Americanos: porque los Reinos principalmente han pretendido sus

ventajas por la mayor antigüedad de su establecimiento; y nadie debe con fundamento podido gloriarse de

más antiguo, que la América, á excepción de aquella parte de Asia, de donde á un tiempo salieron los

Pobladores, y Fundadores de todos los Imperios. De aquí mismo se desvanecen los ruines principios, que

algunos les atribuyen, dando por sus primeros Colonos unos pobres Navegantes, sin nombre, ni mérito, que

el acaso llevó á la América […] Los más graves Autores, principalmente los que han tenido oportunidad de

conocer, y tratar á los Indios, observar sus ritos, y costumbres, y su bajeza de ánimo, conspiran uniformes á

que son descendientes de Cham […] por la que juzgo, que habiéndole tocado á Japheth la Europa, á Sem la Asia, y á Cham la África, de este último se propagó la América, habiendo sido Continente con la Costa

Occidental de Guinea, donde se estableció Chus su Hijo, y por consecuencia tienen su ascendencia de los

primeros Patriarcas. Conspiran á esto, y á su antigüedad primeramente la Lengua Mexicana, cuya pulidez

[…] denota muy bien, que es Lengua Matriz conducida de Babel. Lo segundo, que las Escrituras de estos

Indios eran todas simbólicas, y su explicación figurada en lienzos, según el estilo de los Egipcios […] y

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Neste mesmo período, Joseph de Guignes publicou na França suas Recherches

sur les navigations des chinois du côté de l’Amérique (1761). Neste estudo, espécie de

desdobramento de sua pesquisa anterior sobre os povos tártaros352

, o orientalista francês

defende que diversas embarcações chinesas teriam alcançado as terras americanas (mais

precisamente, a região da Califórnia) a partir do ano de 458, onde passaram a realizar trocas

comerciais com os habitantes do local. Estas afirmações poderiam ser “confirmadas”

através das várias semelhanças de comportamento que existiriam entre chineses e

determinados povos americanos além das referências que persistiriam nas narrativas

históricas dos povos de ambas as regiões353

. No entanto, Guignes enfatiza que os chineses

não foram os pioneiros na ocupação do Novo Mundo, que já teria sido colonizado por

hordas bárbaras que habitavam a região norte da Ásia. Para o autor, caberia aos chineses o

papel de introdutores da “civilização” nestas terras354

, razão esta porque as “regiões mais

policiadas” do continente, como o México e o Peru355

, se encontravam próximas ao litoral

do Pacífico: “ce qui me porte à croire que les Chinois, qui abordoient dans cette partie

septentrionale de l’Amérique, ont dû contribuer à les civiliser”356

.

habiendo sido Mesrain, como ya notamos, hijo de Cham, quien fundó, y gobernó esta Monarquía, estos, y no

otros deben tenerse por legítimos Ascendientes de los Americanos” (ORRIO, 1902, 406-407).

352 A obra de Guignes que alcançou maior repercussão no período foi sua extensa Histoire générale des Huns,

des Mongoles, des Turcs et des autres Tartares occidentaux, publicada na França entre 1756 e 1758.

353 Segundo o autor, a América seria denominada como a terra de Fou-sang nas antigas narrativas chinesas.

354 Guignes defende que a civilização chinesa seria fruto de migrações egípcias para a Ásia. Na tentativa de

respaldar esta teoria, o autor afirma ter identificado semelhanças entre os símbolos utilizados nas escritas

destes dois povos.

355 As indicações de uma migração proveniente de terras ao norte presentes nos relatos astecas sobre seus

primórdios seriam, segundo o autor, uma referência aos navegadores chineses. Em relação às terras peruanas,

Guignes afirma que: “[...] si sur le témoignage de la carte Japonoise, nous plaçons le royaume de Tchang-gin

au midi du détroit de Magellan, il est certain alors que les Chinois et les Coréens ont connu la partie

méridionale de l'Amérique; que leurs navigateurs l'ont fréquentée; que, par ce moyen, ils auroient pu policer

les Péruviens, chez lesquels certains arts étoient florissans et ne se ressentoient en rien de la barbarie”

(GUIGNES, 1761, 523).

356 “Les Chinois ont pénétré dans des pays très-éloignés du côté de l'orient; j'ai examiné leurs mesures, et

elles m'ont conduit vers les côtes de la Californie, j'ai conclu de-là qu'ils avoient connu l'Amérique l'an 458

de J. C. Dans les contrées voisines de l'endroit où ils abordoient, on trouve les nations les plus policées de

l'Amérique; j'ai pensé qu'elles étoient redevables de leur politesse au commerce qu'elles ont eu avec les

Chinois. C'est tout ce que je me suis propose d’établir dans ce Mémoire” (GUIGNES, 1761, 520-521).

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Pouco tempo depois, foi publicado na França o Essai sur cette question: quand

et comment l’Amérique a-t-elle été peuplée d’hommes et d’animaux? (1767), de Samuel

Engel. Apesar do título escolhido, a origem dos americanos ocupa um espaço secundário

dentro da obra deste erudito cartógrafo suíço, que centra suas atenções em questões

teológicas, como as teorias que advogavam a não universalidade do dilúvio bíblico e, mais

amplamente, a fiabilidade das Sagradas Escrituras. Assim como muitos autores dos séculos

anteriores, Engel (1767, 40-71) identifica uma origem múltipla e hierarquizada dos

indígenas que teria ocorrido, majoritariamente, antes do dilúvio universal, possivelmente

através de uma ligação por terra com o continente asiático. Segundo o autor, não teria

havido tempo, a partir da descendência de Noé, para que ocorresse o longo processo de

migração, o estabelecimento dos grupos humanos nas novas terras, o desenvolvimento

necessário para que as grandes obras existentes na América fossem construídas, o processo

de decadência dos povos indígenas e a posterior retomada do “progresso” com os incas e

astecas.

Esta postura adotada por Engel se acentua no verbete sobre a América

composto pelo autor em conjunto com o escritor prussiano Cornelius de Pauw para o

Supplément à Encyclopédie, publicado entre 1776 e 1777 como desdobramento da célebre

enciclopédia francesa organizada por Diderot e D’Alambert. Neste texto, o ilustrado suíço

afirma que os índios de “nation policée” (como os mexicanos e os incas, que possuíam

formas de governo centralizado) tinham ancestrais de origem chinesa, diferente dos grupos

bárbaros que teriam migrado posteriormente para as terras americanas357

.

A referência a Cornelius de Pauw, um dos principais autores envolvidos no

“debate do Novo Mundo” (Cf. GERBI, 1996), evidencia que, ainda que não fosse o centro

das argumentações, a questão da origem dos índios permeia boa parte das obras que

tiveram um papel fundamental dentro desta disputa intelectual sobre a América e seus 357 “Si les Mexicains le sont [trés anciens dans l’Amérique], la nation policée dont ils sortoient devoit l'être

de même. Celle-ci a pu changer étant séparée depuis près de mille ans des autres. Elle aura pu prendre

d'autres moeurs, une autre langue, faire de nouvelles inventions différentes de celles des Mexicains, en oublier quelques-unes, &c. l'histoire nous en fournit des exemples. Ils ont pu se mêler, au moins quelques-

uns, soit avec des voisins, soit avec des peuples qui les ont subjugués. Je crois donc que les hommes barbus,

dont on parle en diverses contrées, à ce qu'il paroît, sont d'anciens habitans policés de l'Amérique, & que les

autres, les têtes pélées, & ceux de Moncacht-Apé, sont des étrangers d'origine, ou mêlés avec des naturels du

pays” (ENGEL; PAUW, 1776-1777).

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habitantes358

. Obras estas, que influenciaram decisivamente as reflexões sobre o tema

desenvolvidas no século seguinte. Entre elas, destacamos as de William Robertson,

Francisco Javier Clavijero e Alexander von Humboldt.

i) William Robertson

Como apontado por Vera Chacham (2003, 103-104), o interesse pelos povos

primitivos, dentre os quais estariam os americanos, foi em parte canalizado ao longo do

século XVIII para o campo da história natural. Esta mudança encontra na obra de Georges-

Louis Leclerc, o conde de Buffon, e, posteriormente, nos polêmicos escritos de Cornelius

de Pauw uma argumentação central359

. Para Buffon, os indígenas seriam versões

degeneradas da espécie humana que não teriam conseguido vencer a hostil e insalubre

natureza do Novo Mundo. As diferenças ressaltadas por este autor entre os próprios

americanos (como a identificação de grupos indígenas com sinais de “civilização” em

regiões do México e do Peru360

) não impediriam sua defesa da origem única para todos os

habitantes deste continente, haja vista que os “desenvolvimentos desses povos seriam tão

recentes que não chegariam a ser uma exceção entre os americanos. Todos os americanos

possuem, portanto, não apenas a mesma origem mas são, sobretudo, povos jovens e pouco,

ou não, civilizados”.

Contudo, a defesa de uma procedência única e o argumento de que as

diferenças existentes entre os vários grupos que habitavam o continente seriam fruto de um

358 “A polêmica estava longe de ter um caráter apenas acadêmico. Ocultas por detrás das grandes questões

teóricas, debatiam-se, na realidade, os interesses das potências europeias no continente americano, desejosas

de substituir uma Espanha em declínio na exploração de seus domínios” (DOMINGUES, 2007, 17).

359 “[...] seus escritos reúnem de forma coerente e científica, pela primeira vez, observações, conceitos e

preconceitos que até então se expressavam como surpreendentes notícias de terras longínquas, nas narrativas

pioneiras de viajantes e naturalistas sobre o Novo Mundo [...] e sobretudo porque apenas a partir de Buffon a

tese da inferioridade das Américas possui uma história ininterrupta, uma trajetória precisa que, passando por

De Pauw, alcança seu ápice com Hegel e a seguir se prolonga em sua decadência”. Sobre as comparações

com a obra de De Pauw, Gerbi afirma que: “Buffon limitara-se à fauna, e a discutira como um segmento da

fauna de todo o mundo. De Pauw coloca os americanos no centro de sua investigação e desta forma atrai sobre suas teses e sobre si as atenções públicas, as réplicas e as reações iradas” (GERBI, 1996, 15; 64).

360 “L’on n’a rencontré dans toute l’Amérique septentrionale que des sauvages, on a trouvé au Mexique et au

Pérou des hommes civilisez, des peuples polices, soumis à des lois et gouvernes par des Rois, ils avaient de

l’industrie, des arts, et une espèce de religion, ils habitaient dans des villes où l’ordre et la police étaient

maintenus par l’autorité du Souverain” (apud CHACHAM, 2003, 103).

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desenvolvimento – ou, mais precisamente, de um processo de degeneração – posterior ao

seu estabelecimento nestas terras não diminui a importância dada à questão da origem dos

americanos. Pelo contrário. A busca pelo local ou povo do Velho Mundo que seria

responsável pela colonização da América – e, também, a preocupação em identificar

aqueles que, por possuírem determinadas características, não poderiam ser apontados como

possíveis ancestrais – continua sendo fundamental para muitas das representações dos

indígenas realizadas no período.

Este é o caso, por exemplo, da obra de William Robertson. Em seu The History

of America (1777), o historiador escocês se aproxima das ideias propostas por Buffon ao

indicar uma origem única para todos os habitantes do continente americano361

. De acordo

com o autor, a “resposta” para esta questão não deveria ser baseada em conjecturas362

ou

frágeis comparações entre o modo de agir ou as crenças religiosas de diferentes povos (o

que, para ele, seria feito por autores como Lafitau e, antes ainda, por Gregorio García). Em

especial, Robertson afirma que os ancestrais dos indígenas não deveriam ser associados a

nenhuma nação civilizada do Velho Mundo, já que, ainda que houvesse diferenças entre os

diversos grupos americanos363

, todos eles se encontravam ainda na “infância da

humanidade”:

361 “[…] there is such a striking similitude in the form of their bodies, and the qualities of their minds, that, notwithstanding the diversities occasioned by the influence of climate, or unequal progress in improvement,

we must pronounce them to be descended from one source. There may be a variety in the shades, but we can

everywhere trace the same original color. Each tribe has something peculiar which distinguishes it, but in all

of them we discern certain features common to the whole race” (ROBERTSON, 1777, 280).

362 Robertson enumera várias teorias aventadas anteriormente sobre a(s) procedêcia(s) dos ancestrais dos

indígenas e desqualifica várias delas como “quiméricas” e “fabulosas”: “Some have presumptuously

imagined, that the people of America were not the offspring of the same common parent with the rest of

mankind, but that they formed a separate race of men, distinguishable by peculiar features in the constitution

of their bodies, as well as in the characteristic qualities of their minds. Others contend, that they are

descended from some remnant of the antediluvian inhabitants of the earth, who survived the deluge, which

swept away the greatest part of the human species in the days of Noah; and preposterously suppose rude, uncivilized tribes, scattered over an uncultivated continent, to be the most ancient race of people on the

earth” (ROBERTSON, 1777, 266).

363 Para ele, grupos que organizaram monarquias, como os mexicanos e peruanos, apresentariam traços

distinguíveis de “progresso” e “aperfeiçoamento”. Já os nativos da planície sul-americana ocupariam os

estágios mais “bárbaros” (ROBERTSON, 1777, 257; 325).

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“We may lay it down as a certain principle in this inquiry, that the

America was not peopled by any nation of the ancient continent, which had made

considerable progress in civilization. The inhabitants of the New World were in a

state of society so extremely rude, as to be unacquainted with those arts which

are the first essays of human ingenuity in its advance towards improvement. Even

the most cultivated nations of America were strangers to many of those simple

inventions, which were almost coeval with society in other parts of the world, and

were known in the earliest periods of civil life. From this, it is manifest, that the

tribes which originally migrated to America, came off from nations which must

have been no less barbarous than their posterity, at the time when they were first

discovered by the Europeans” (ROBERTSON, 1777, 270).

A partir desta ressalva, Robertson passa a apontar possíveis indícios (como as

semelhanças entre as faunas de diferentes regiões) de que este continente se aproximaria ou

teria contato com o Velho Mundo em seu extremo norte. O escritor escocês ressalta que,

apesar de haver a possibilidade de ligação com o Novo Mundo tanto pelo leste (Ásia)

quanto pelo oeste (Europa), a provável origem da maior parte dos americanos deveria estar

relacionada apenas à primeira opção364

, o que seria reforçado pelas narrativas astecas sobre

seu passado remoto que faziam referência a esta migração. Estabelecida a possível rota

migratória, o autor afirma que o mais provável seria que: “Some tribe, or some families of

wandering Tartars, from the restless spirit peculiar to their race, might migrate to the

nearest islands, and, rude as their knowledge of navigation was, might, by passing from

one to the other, reach at length the coast of America, and give a beginning to population

in that continent” (ROBERTSON, 1777, 277).

Com isso, fica evidente que, tão ou mais importante do que indicar quem

seriam os ancestrais dos americanos, havia em vários autores do período analisado a

preocupação em ressaltar os locais e povos que não poderiam ser associados a estes

“bárbaros” grupos humanos. Tomando a abordagem feita por Robertson sobre este tema

como exemplo, podemos observar que, em um primeiro momento, a natureza dos indígenas

é dissociada das dúvidas sobre sua(s) procedência(s), com a identificação de um processo

364 Os esquimós, descritos por Robertson (1777, 277-279) como claramente distintos dos outros americanos,

seriam uma exceção, pois descenderiam de europeus do norte.

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de degeneração que teria ocorrido já no Novo Mundo relacionado, entre outros fatores, ao

clima e à natureza do local365

. No entanto, em seguida, as reflexões sobre a origem dos

americanos são retomadas para ressaltar não apenas a separação “original” que haveria

entre eles e os povos mais desenvolvidos do Velho Mundo como também sua ligação com

grupos “bárbaros” e periféricos. Isto faz com que Robertson, ainda que descreva a questão

da origem dos indígenas como um “mero objeto de curiosidade”, afirme que ela foi

considerada por muitos autores ao longo do tempo como algo de “muita importância”, que

não poderia ser omitido por ele em sua obra mesmo que não fosse possível indicar uma

resposta definitiva.

ii) Francisco Javier Clavijero

Poucos anos depois, o jesuíta Francisco Javier Clavijero, em sua Historia

Antigua de México (1780-81)366

, voltou a abordar o tema. Para este filho de pai espanhol e

mãe criolla exilado em terras italianas após ser expulso da América junto com todos os

outros inacianos pelo rei Carlos III, em 1767, seria praticamente impossível obter uma

resposta definitiva sobre esta questão “em meio ao acumulado de erros” que havia.

Entretanto, isto não o impede de dedicar a primeira “dissertação” (Sobre el origen de la

población de América, y particularmente de la de México) de sua obra ao tema, ainda que

com a ressalva de que se tratavam apenas de conjecturas deixadas “ao juízo de leitores

sensatos”.

365 Segundo o autor, um dos principais fatores (ainda que não o único, pois regras políticas e morais também

exerceriam influência) que poderiam explicar estas diferenças era o clima: “In surveying the rude nations of

America, this natural distinction between the inhabitants of the temperate and torrid zones is very

remarkable. They may, accordingly, be divided into two great classes. The one comprehends all the North-

Americans […] together with the people of Chili, and a few small tribes towards the extremity of the southern

continent. To the other belong all the inhabitants of the islands, and those settled in the various provinces

which extend from the isthmus of Darien almost to the southern confines of Brazil, along the east side of the

Andes. In the former, the human species appears manifestly to be more perfect. The natives are more robust,

more active, more intelligent, and more courageous. They posses, in the most eminent degree, that force of mind, and love of independence”, which I have pointed out as the chief virtues of man in his savage state”

(ROBERTSON, 1777, 415-416).

366 A primeira edição do relato de Clavijero foi lançada em três tomos. Os dois primeiros foram publicados

em 1780, já o terceiro, que continha suas Dissertações (onde o autor dedica maior atenção à questão da

origem dos índios), saiu apenas no ano seguinte.

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Em clara oposição às críticas ao Novo Mundo e seus habitantes formuladas por

autores como de Pauw e Robertson (Cf. GERBI, 1996, 159-167)367

, Clavijero apontava

para uma origem múltipla e extremamente recuada no tempo para os indígenas. Segundo o

jesuíta, ainda que alguns autores defendessem esta hipótese, não seria possível afirmar que

as terras americanas haviam sido povoadas antes do dilúvio universal (ainda que se tratasse

de algo plausível devido à ligação por terra que existiria entre os continentes asiático e

americano no passado). Mesmo os “vestígios de gigantes” encontrados nestas terras

poderiam derivar de seres posteriores a este evento bíblico que, por ação divina, ainda era

lembrado pelos americanos em suas cerimônias e narrativas religiosas. Assim, mesmo que

limitado temporalmente pelo dilúvio368

, o jesuíta afirma que três grandes motivos o teriam

levado a defender que a colonização americana foi um processo antiquíssimo:

“1° Porque los americanos carecían de ciertas artes o inventos,

como la aplicación de la cera y del aceite al alumbrado, que por una parte son

muy antiguos en Asia y en Europa, y por otra, tan necesarios, que una vez

aprendidos no se olvidan jamás. Luego, los que pasaron del antiguo al nuevo

continente, y propagaron en éste la especie humana, verificaron su emigración

antes de aquellos descubrimientos. 2° Porque las naciones del Nuevo Mundo que

vivían en sociedad, y especialmente las de México, conservaban en sus pinturas y

tradiciones la memoria de la creación del mundo, del Diluvio, de la torre de

367 Luiz Estevam de O. Fernandes (2009, 221) discorda da interpretação dada por Gerbi aos escritos de

Clavijero, descritos pelo historiador italiano como uma mera resposta conservadora aos detratores europeus: “Em um sentido mais macroscópico, as discussões de Clavijero acerca do território da Nova Espanha, bem

como sobre os índios que nele habitavam em tempos remotos e ainda no que dizia respeito ao índio vivo,

continuavam a se inserir em um debate de matriz eurocêntrica. Em contrapartida, seu livro voltava-se a outra

tarefa, mais à ordem do dia: uma defesa, equiparável em racionalidade ao ataque, que estava imbuída em um

sentimento desenvolvido ao longo de séculos: o criollismo”. Para outras análises da obra de Clavijero e os

debates em que ele estava inserido, Cf. GERBI, 1996; DOMINGUES, 2007; CAÑIZARES-ESGUERRA,

2011.

368 Beatriz H. Domingues (2007, 190-191) analisa a relação estabelecida por Clavijero com as Sagradas

Escrituras ao abordar a questão da origem dos índios: “Clavijero argumenta que as Sagradas Escrituras têm

dupla finalidade: oferecem luz para descobrir a última ascendência do índio e servem para elucidar o

problema da origem da vida no continente americano. A Bíblia funcionaria, segundo ele, como um ‘critério de investigação negativo’, uma vez que, a verdade do livro santo não pode ser questionada e não podem ser

admitidas soluções, ainda que lógicas, que contradigam a palavra revelada [...] Mas as Sagradas Escrituras

não são apenas um critério negativo: proporcionam também dados positivos para solucionar o problema. Em

alguns casos pode-se deduzir dela, racionalmente, aspectos da vida humana no planeta anteriores à descoberta

da América”.

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Babel, de la confusión de las lenguas y de la dispersión de las gentes, aunque

alterada con algunas fábulas, y no tenían noticia de los sucesos ocurridos

después en Asia, África y Europa; habiendo algunos tan grandes e importantes,

que no era fácil echarlos en olvido. 3° Porque ni los americanos tenían la menor

idea de los pueblos del mundo antiguo, ni éstos de aquéllos, ni en unos ni en

otros se halla el menor recuerdo del tránsito de los hombres a América. Estas

razones hacen, si no cierta, verosímil al menos mi opinión” (CLAVIJERO, 1917,

II, 219).

Após estabelecer alguns parâmetros temporais, Clavijero passa a abordar os

possíveis povos responsáveis por este longo processo migratório. Mais uma vez, as

hipóteses que apontavam para a existência de humanos pré-adamitas são fortemente

criticadas. Segundo o religioso, estas ideias, baseadas no “descabellado sistema del francés

La Peyrère”, seriam desmentidas não apenas pelas Sagradas Escrituras, mas também pelas

narrativas dos povos indígenas sobre seu passado remoto369

. A partir daí, o autor faz um

breve apanhado das dezenas de hipóteses que já haviam sido levantadas sobre o tema370

,

identificando um erro básico que teria sido cometido em quase todos os casos: a crença de

que a “nação originária” poderia ser identificada através de algumas semelhanças entre as

línguas, ritos ou costumes dos diferentes grupos que povoavam a América com os de

determinados povos do Velho Mundo.

Após estas ressalvas, Clavijero enumera as suas conclusões sobre o tema. Em

primeiro lugar, a multiplicidade dos indígenas indicaria que os americanos descenderiam de

diversas nações ou famílias que teriam se dispersado pelo mundo após a destruição da

369 De acordo com Clavijero (1917, I, 93), muitos grupos, especialmente da Nova Espanha, apontavam em

suas tradições que seus ancestrais provinham de outras terras localizadas ao norte, o que, para o jesuíta,

indicaria claramente um processo de migração, não uma origem autóctone.

370 “Unos creen descubrir sus progenitores en Asia, otros en África, otros en Europa. Entre los que abrazan

esta última opinión, unos dicen que eran griegos, otros que eran romanos; otros los hacen españoles,

irlandeses, curlandeses, y aun rusos. De los que prefieren el origen africano, unos lo atribuyen a los egipcios,

otros a los cartagineses, otros a los númidas. Pero aun es mayor la variedad entre los partidarios del origen

asiático. Los israelitas, los caldeos, los asirios, los fenicios, los persas, los tártaros, los indios orientales, los chinos, los japoneses, todos tienen sus abogados entre los historiadores y los filósofos de estos dos últimos

siglos. Otros hay que, no hallando lo que buscaban en los países conocidos, sacan de las aguas la famosa

Atlántida, para enviar de allí colonos al continente occidental; y aun esto es poco, pues ha habido escritores,

que para quedar bien con todos, afirman que los americanos provienen de todas las naciones de la tierra”

(CLAVIJERO, 1917, II, 222-223).

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Torre de Babel371

. Em seguida, o autor enfatiza que os americanos não teriam sua origem

ligada a nenhum dos povos atuais do Velho Mundo. Estas afirmações trazem consigo a

ideia de que o desenvolvimento em determinadas regiões do continente, como a Nova

Espanha, seria fruto da ação dos próprios grupos americanos, não resquícios trazidos por

seus ancestrais372

. Clavijero chega a sugerir a hipótese de que os indígenas poderiam ser

descendentes de ramos específicos da linhagem de Noé, o que daria a eles uma origem

exclusiva em relação aos povos que habitavam os outros continentes (CLAVIJERO, 1917,

II, 227-228).

Por fim, o autor passa a abordar a possível rota percorrida por estes grupos em

direção ao Novo Mundo. Além de citar algumas hipóteses, Clavijero se preocupa em

invalidar outras como ponto de partida para estabelecer suas conclusões sobre o tema373

.

Entre elas, estaria a de que a migração para o continente americano poderia ter ocorrido por

terra, gelo ou através de embarcações em um período posterior ao dilúvio universal. Outro

ponto central indicado por ele é a existência de uma equivalência entre as terras ocupadas

pelos grupos tanto no Novo Mundo quanto no Velho374

. Os habitantes da região da Nova

Espanha, dessa maneira, “pasaron de los países septentrionales de Europa a los

septentrionales de América, o más bien, de los más orientales del Asia a los más

371 “No podrá dudar de esta verdad el que tenga alguna idea de la muchedumbre, y de la extraña diversidad

de las lenguas americanas [...] Así que, sería un despropósito decir que las lenguas americanas no son más

que dialectos de una misma. ¿Cómo es posible que una nación altere de tal modo su idioma, o lo multiplique en tantos dialectos, y tan diferentes, que no conserven muchas voces comunes, o a lo menos alguna afinidad o

traza de su origen?” (CLAVIJERO, 1917, II, 226).

372 Esta postura fica evidente quando observamos a análise feita pelo jesuíta sobre as pirâmides encontradas

na América em comparação às existentes no Egito. Para Clavijero (1917, II, 224), haveria tantas diferenças

entre elas que as primeiras deveriam ser consideradas “como invención original de los toltecas, o de otros

pobladores más antiguos”.

373 A principal hipótese mencionada pelo autor é a que defende a existência de uma ligação entre os extremos

norte do Novo Mundo e do Velho, que ele afirma ter sido defendida por “grandes homens” como Feijóo,

Acosta, Grotius e, até mesmo, Buffon. Já em relação às teorias que considera inválidas, Clavijero é mais

prolixo. Entre outras, o autor faz menção à origem atlante (que se nega a analisar) e àqueles que defendem

uma criação divina separada para os animais do Novo Mundo. Em especial, o jesuíta se detém aos argumentos de Buffon (para quem a passagem teria se dado através da Tartária Oriental), afirmando que, neste ponto, o

“grande filósofo” se “contradiz abertamente” (CLAVIJERO, 1917, II, 229-230).

374 Processo que, como vimos anteriormente, estabelece laços estreitos com a argumentação de base

aristotélica apresentada pelo também jesuíta José de Acosta em suas reflexões sobre o problema da origem

dos índios (Cf. Capítulo 3)

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occidentales de América”. Isto faz com que a relação entre a multiplicidade dos indígenas e

suas diferentes origens seja reforçada:

“Yo conjeturo que los que poblaron el mediodía, tomaron la misma

dirección que los animales propios de los países calientes, y que las naciones que

habitan la parte situada entre las Floridas y lo más septentrional de América,

deben su origen a gentes que pasaron del septentrión de Europa. La diversidad

de caracteres que se descubren entre aquellas tres clases de americanos, y la

situación de los países que ocuparon, me inclinan a creer que no son del mismo

origen, y que no pasaron por los mismos puntos sus fundadores; mas esto no

pasa de conjeturas” (CLAVIJERO, 1917, II, 232).

Em resumo, ao analisar a questão da origem do homem americano, Clavijero,

ainda que afirme não ter a pretensão de fornecer a seus leitores a resposta “definitiva” sobre

este tema, estabelece alguns pontos fundamentais para compreendermos suas

representações sobre os indígenas. Em primeiro lugar, o jesuíta tenta deixar claro que eles

não são versões inferiores, degeneradas ou bárbaras de povos do Velho Mundo. À sua

origem específica, corresponderia um desenvolvimento próprio que não seria homogêneo

em todo o continente. Pelo contrário. Clavijero é claro ao apontar as diferenças existentes

entre os diversos grupos americanos, o que, novamente, poderia ser explicado através de

suas origens específicas e correspondentes a regiões equivalentes do Velho Mundo.

Com isso, podemos observar que, tanto para autores que buscavam ressaltar a

predominância da barbárie na América, como no caso de Robertson, quanto para aqueles

como Clavijero que identificavam traços de civilização ao menos entre alguns grupos

indígenas, a questão das origens ocupa um papel fundamental, seja para associá-los a

determinados grupos como também, o que era tão relevante quanto, para negar as relações

que poderiam existir com outros.

iii) Alexander von Humboldt

No início de 1799, após longas negociações, o rei Carlos IV autorizou que o

nobre prussiano Alexander von Humboldt, juntamente com o francês Aimé Bonpland,

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tivessem trânsito livre pelas terras controladas pela Coroa espanhola no continente

americano, algo extremamente raro no período por se tratar de uma expedição formada por

viajantes estrangeiros375

. Poucos meses depois, Humboldt e Bonpland embarcaram para o

Novo Mundo, onde permaneceram por aproximadamente cinco anos. Durante esta longa

estada, organizaram viagens e expedições a localidades que iam das ilhas de Cuba até o

Peru, Nova Espanha e Estados Unidos, além de manterem contato com diversos

naturalistas, intelectuais, políticos, assim como com crônicas, documentos e livros que

abordavam diferentes aspectos do continente americano: sua natureza, seus habitantes e as

informações sobre seu passado376

.

A experiência americana acumulada pelo prussiano resultou em uma vasta

produção bibliográfica (que alcançou cerca de 30 volumes) extremamente influente entre

seus contemporâneos e que continuou sendo central para os estudos sobre a América e os

indígenas ao longo das décadas seguintes377

em questões como o “debate do Novo

Mundo”378

. Já no caso da origem dos indígenas, como poderemos observar com mais

detalhes nas páginas abaixo, seus escritos ocuparam um papel fundamental em uma parcela

significativa das obras que abordaram este tema posteriormente, que faziam referência aos

375 Humboldt não teve o mesmo êxito em sua negociação com a Coroa portuguesa, que impediu seu acesso ao

território brasileiro: “Suas ideias e teorias pareciam prejudiciais aos interesses da Coroa a qual, apesar de

incentivar a exploração do território para promover a imagem de um país vasto, diversificado, cheio de

riquezas naturais, também procurava impedir novas ideias que fortalecessem o incipiente nativismo

brasileiro” (BARRETO, 1999-2000, 35-36).

376 Para breves informações biográficas e um esboço do itinerário percorrido pelo prussiano em terras americanas, Cf. PRATT, 1999, 204-212.

377 Mary Louise Pratt (1999, 196-197), que define a obra de Humboldt como um “monumento impresso

responsável por estabelecer as linhas para a ‘reinvenção da América’”, dá exemplos desta influência: “Ele foi

celebrado tanto na América europeia quanto na Europa, e seus escritos foram a fonte de novas e seminais

visões da América nos dois lados do Atlântico. Para as elites da Europa setentrional, a reinvenção é ligada a

prospectos de grandes possibilidades expansionistas para o capital, tecnologia, mercadorias e sistemas de

conhecimento europeus. As elites recém-independentes da América espanhola, por outro lado, se deparavam

com a necessidade de uma autoinvenção no que se referia às massas europeias e não europeias que

procurariam governar. Não deixa de ser fascinante, assim, que os escritos de Alexander von Humboldt

tenham fornecido enfoques fundamentais para estes dois grupos”.

378 “Antonello Gerbi chega a considerar a extensa obra de Humboldt sobre a América como uma contribuição anômala e quase marginal à ‘Disputa do Novo Mundo’. Outros autores como Mary Louise Pratt tratam os

escritos do viajante e os textos da Disputa como ‘fenômenos que se cruzam e que são moldados por

preocupações e ansiedades européias comuns em relação à América’. Logo, não é de todo descabido, nem na

acepção de Gerbi, nem da de Pratt, ver Humboldt como mais um europeu em uma longa lista de detratores do

Novo Mundo. Ainda assim, essa explicação é extremamente reducionista” (FERNANDES, 2009, 61).

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escritos do prussiano tanto para corroborar suas informações e reflexões, quanto para negá-

las ou mesmo como fonte de dados e informações “confiáveis” sobre o início da ocupação

humana no continente.

Antes de analisarmos as teorias de Humboldt sobre a procedência dos

americanos, consideramos importante ressaltar que suas reflexões sobre o Novo Mundo e

seus habitantes, fortemente calcadas em sua leitura dos relatos coloniais379

permeadas por

sua experiência pessoal nestas terras, foram interpretadas por muitos autores como sendo

representantes de uma nova forma de se pensar o Novo Mundo e seus habitantes. Jaime

Labastida, por exemplo, de forma altamente elogiosa, identifica nas reflexões deste viajante

prussiano sobre a América um “espírito científico romântico” pertencente a uma “nova

atmosfera”380

, diferente da adotada por autores anteriores – e também posteriores, como

Lord Kingsborough e sua busca por associar os indígenas aos judeus (que será analisada no

379 A relação de Humboldt com os relatos coloniais foi analisada por autores como Flávia Godoy (2010) e

Jorge Cañizares-Esguerra (2011, 82-83), para quem: “Com Humboldt, a historiografia europeia sobre o Novo Mundo parecia ter chegado ao fim de um ciclo. Além de restaurar o valor das testemunhas europeias do

século XVI, em particular dos caluniados espanhóis, ele continuou também a tradição erudita, inaugurada por

Buffon e De Pauw, que recorria antes de tudo a evidências extraliterárias. Além disso, Humboldt fortaleceu o

novo gênero de histórias filosóficas das Américas”. Já Sandra Rebok (2001) vai além ao defender a existência

de uma profunda continuidade entre os autores do século XVI e a obra do prussiano, onde a Historia do

jesuíta espanhol José de Acosta ocupa um lugar central: “Las referencias […] ya en sí son suficientes para

comprobar una conexión estrecha – conceptual y del pensamiento – entre Alexander von Humboldt y José de

Acosta en su función de representante del modelo HNM. No obstante […] estas vinculaciones no se limitan a

mencionar a Acosta, sino que Humboldt además parte del mismo planteamiento, de que en sus obras sigue un

esquema descriptivo parecido y que existe una semejanza real entre Acosta y Humboldt, tanto en su práctica

como en su manera de concebir la ciencia”.

380 “[…] en Humboldt no encontramos otra preocupación que no sea la de comprender racionalmente (y en ciertos casos intuitivamente), él fenómeno que estudia”, o que o leva a denominar seu método como um

“empirismo razonado”: “[Humboldt] busca, primero, comprender el fenómeno en sí mismo, sin ‘agregados

extraños’, pudiéramos decir, para luego compararlo con fenómenos que considera similares en el viejo

mundo. Pero no siempre extrae de esta comparación la consecuencia de que se trata de un ‘préstamo

cultural’ hecho por el viejo mundo al nuevo. Humboldt es lo suficientemente cauto para no incurrir en error

tan grosero. Su método no es ‘apriorístico’ y no parte de un esquema previamente formulado por el que,

pongamos por caso, se intentara demostrar que cuanto existe en el mundo precolombino ha debido venir del

Asia, no. En este sentido, su posición no es difusionista, como sostiene Ignacio Bernal; ni antidifusionista: se

limita a mostrar las analogías, cuando las encuentra, y a evitar una falsa generalización o una concusión

apresurada […] Humboldt, además, no es un materialista vulgar, que considere el ‘clima’ o el conjunto de

los factores externos como la causa de que un pueblo produzca determinadas obras de arte o tenga un concepto específico a propósito del tiempo o el espacio. Por el contrario, el sabio prusiano advierte que, a

pesar de que las condiciones externas son, en algunos países como Grecia y Egipto, las mismas en su tiempo

que en siglos anteriores, los pueblos que en ellas habitan, sin embargo, no tienen la misma mentalidad ni

producen la cultura de antaño. Humboldt dice que es necesario ver el conjunto, la totalidad de los factores”

(LABASTIDA, 1995, xlii).

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próximo item). Postura semelhante é adotada pelos historiadores Luiz Estevam de O.

Fernandes381

e Jorge Cañizares-Esguerra (2011, 19), para quem “uma nova historiografia

europeia do Novo Mundo mais positiva e menos cética foi inaugurada com Humboldt, em

boa parte porque agora as sociedades ameríndias antigas apareciam como regimes asiáticos,

‘orientais’”.

Ainda que, como apontado por alguns autores, o centro de sua análise seja a

natureza americana e não seus habitantes382

, Humboldt dedica atenção à questão da origem

dos índios em várias passagens de sua vasta obra. A principal delas está inserida nas

páginas iniciais de seu Vues des Cordillères et monuments des peuples indigènes de

l’Amérique (1810)383

. Nesta obra, o autor afirma que, apesar de serem comumente

denominadas como “Novo Mundo”, existem nestas terras evidências de instituições, ideias

religiosas e construções “qui semblent remonter, en Asie, à la première aurore de la

civilisation”. Isto o leva a defender que “rien ne prouve que l'existence de l'homme soit

beaucoup plus récente en Amérique que dans les autres continens” (HUMBOLDT, 1816, 8;

19).

No entanto, o autor deixa claro que a monogenia era algo inquestionável para

ele. Todos os seres humanos deveriam, necessariamente, possuir uma mesma origem

comum, ainda que existissem raças diferentes espalhadas pelo mundo384

, que seriam o

381 “Humboldt inaugurou uma nova prática científica na Nova Espanha”, em contraposição à postura adotada

por autores como Servando de Mier: “No final do século XIX, todos os homens das ciências que queriam se fazer ouvir passaram a adotar as mesmas metodologias de Humboldt e não as de Mier. Esse modus operandi,

em última instância, consistia na comparação dos idiomas, costumes, traços físicos e analogias das histórias

locais com outras de regiões distantes” (FERNANDES, 2009, 75).

382 “Como sugerem os títulos de seus trabalhos, Alexander von Humboldt reinventou a América do Sul antes

de tudo enquanto natureza [...] Não uma natureza que senta e espera ser conhecida e possuída, mas uma

natureza em movimento, impulsionada por forças vitais em grande parte invisíveis para o olho humano; uma

natureza que apequena os homens, determina o seu ser, excita suas paixões, desafia seus poderes de

percepção” (PRATT, 1999, 212).

383 De acordo com Duviols e Minguet (1995, xi-xiii), a publicação da Vues des Cordillères, com suas 69

lâminas retratando vestígios de construções e obras realizadas pelos grupos indígenas pré-colombianos, pode

ser considerada como um marco devido às suas imagens: “Antes de 1810, América era sobre todo imaginada y soñada”. Já Pratt (1999, 209) afirma que esta obra, junto de algumas poucas outras, formaram o grupo de

escritos não técnicos composto pelo prussiano cujo impacto na imaginação do público da Euro-América foi

muito maior do que o alcançado por seus tratados científicos.

384 “O próprio conceito de ‘raça’ foi empregado de forma polissêmica ao longo da história. No início do

século XVI, estava ligado indissoluvelmente à categoria ibérica de Limpeza de sangue [...] Já em fins do

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resultado de adaptações locais. Estas premissas o levam a identificar a existência de uma

ligação entre os continentes em um passado remoto. Com argumentos que, em alguns

momentos, se aproximam dos formulados por Clavijero, Humboldt identifica uma ligação

entre a América e a Ásia. Ligação que poderia ser comprovada, entre outros fatores, através

de comparações linguísticas, vestígios materiais ou pelas narrativas dos indígenas sobre

suas origens385

. Assim, os mongóis asiáticos e os índios americanos, apesar de serem

classificados como duas raças separadas, teriam mantido estreitas relações entre si durante

um longo período, uma vez que os americanos seriam descendentes de grupos mongóis que

teriam migrado para o Novo Mundo e, ao se adaptarem ao novo ambiente, teriam dado

origem a uma nova raça386

.

A associação com a raça mongol, contudo, não seria suficiente para “explicar”

as diferenças existentes entre os americanos. Como apontado por Jean-Paul Duviols e

Charles Minguet (1995, xvi), “para Humboldt, las culturas americanas y entre ellas

especialmente la mexicana, no son un producto importado en un bloque monolítico de Asia

a América. Si bien encuentra semejanzas estructurales, considera a esas culturas

americanas como autóctonas y expresiones verdaderamente originales del medio natural y

humano de América”. O autor também reluta em atribuir a um desenvolvimento autóctone

alguns aspectos identificados por ele entre determinados grupos americanos. Isto faz com

século XVIII, ‘raça’ tornou-se um conceito mais secularizado e era utilizado para referir-se à linhagem à qual

um indivíduo pertencia. Também em fins da mesma centúria, mas principalmente no século seguinte, emergiu uma noção de ‘raça’ baseada em distinções genéticas e biológicas” (FERNANDES, 2009, 162).

385 “Si les langues ne prouvent que foiblement l'ancienne communication entre les deux mondes, cette

communication se manifeste d'une manière indubitable dans les cosmogonies, les monumens, les hiéroglyphes

et les institutions des peuples de l'Amérique et de l'Asie” (HUMBOLDT, 1816, 31).

386 “Les nations de l'Amérique, à l'exception de celles qui avoisinent le cercle polaire, forment une seule race

caractérisée par la conformation du cràne, par la couleur de la peau, par l'extrême rareté de la barbe et par

des cheveux plats et lisses. La race américaine a des rapports très-sensibles avec celle des peuples mongols

qui renferme les descendans des Hiong-nu, connus jadis sous le nom de Huns, les Kalkas, les Kalmuks et les

Burattes. Des observations récentes ont même prouvé que non seulement les habitans d'Unalaska, mais aussi

plusieurs peuplades de l'Amérique méridionale, indiquent, par des caractères ostéologiques de la tête, un

passage de la race américaine à la race mongole. Lorsqu'on aura mieux étudié les hommes bruns de l'Afrique et cet essaim de peuples qui habitent l'intérieur et le nordest de l'Asie, et que des voyageurs systématiques

désignent vaguement sous le nom de Tartars et de Tschoudes, les races caucasienne, mongole, américaine,

malaye et nègre paroîtront moins isolées, et l'on reconnoitra, dans cette grande famille du genre humain, un

seul type organique modifié par des circonstances qui nous resteront peut-être à jamais inconnues”

(HUMBOLDT, 1816, 21-22).

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que o prussiano argumente que, em locais como o Peru e a Nova Espanha, os “evidentes

sinais de civilização” teriam sido trazidos por um povo cuja origem – ainda que

desconhecida – seria diferente da dos ancestrais dos outros grupos que habitavam o

continente387

.

Através destes argumentos, podemos observar que, em vários momentos,

Humboldt oscila sua representação dos indígenas entre duas imagens. Por um lado, os

americanos possuiriam muitos elementos em comum, sejam eles físicos ou culturais, o que

seria compreensível, haja vista pertencerem a um único grupo: a “raça americana”. Por

outro lado, a existência de vestígios de construções, objetos, crenças e narrativas

identificadas por ele entre alguns povos específicos do continente388

o levam a estabelecer

diferenças internas, onde os grupos considerados como mais “civilizados” ganham

contornos e, em alguns casos, origens específicas389

.

387 É importante observarmos que Humboldt (1816, 56) acredita que a “civilização americana” descenderia de

uma “civilização primitiva” localizada, possivelmente, na região da Ásia central: “En remontant aux temps les

plus reculés, l'histoire nous indique plusieurs centres de civilisation, dont nous ne connoissons pas les

rapports mutuels, tels que Méroé, l'Egypte, les bords de l'Euphrale, l'Indostan et la Chine. D'autres foyers de

lumières, encore plus anciens, étoient placés peut-être sur le plateau de l'Asie centrale; et c'est au reflet de

ces derniers que l'on est tenté d'attribuer le commencement de la civilisation américaine”.

388 Humboldt (1816, 32-33) associa os povos mais avançados do continente às regiões de maior altitude, que

possuiriam clima semelhante ao de sua terra de origem: “Lors de la découverte du nouveau monde, ou, pour

mieux dire, lors de la première invasion des Espagnols, les peuples américains, les plus avancés dans la culture, étoient des peuples montagnards. Des hommes nés dans les plaines sous des climats tempérés,

avoient suivi le dos des Cordillères qui s'élèvent à mesure qu'elles se rapprochent de l'équateur. Ils trouvoient

dans ces hautes régions une température et des plantes qui ressembloient à celles de leur pays natal. Les

facultés se développent plus facilement partout où l'homme, fixé sur un sol moins fertile, et forcé de lutter

contre les obstacles que lui oppose la nature, ne succombe pas à cette lutte prolongée. Au Caucase et dans

l'Asie centrale, les montagnes arides offrent un réfuge à des peuples libres et barbares. Dans la partie

équinoxiale de l'Amérique où des savanes toujours vertes sont suspendues au-dessus de la région des nuages,

on n'a trouvé des peuples policés qu'au sein des Cordillères”.

389 Neste aspecto, nos aproximamos da análise feita por Ottmar Ette e Vera M. Kutzinski (2012, xviii), que

identificam uma rede dual de analogias dentro da obra do prussiano: “for one, there is a web of intra-

American – what we have come to know as inter-American or ‘hemispheric’ – relations that encompass the entire continent; for another, there is also a web of external relations that enabled Humboldt to connect

American phenomena with events and experiences from very different regions of the world without running

the risk of homogenizing the wealth of distinct cultural developments […] In this way, he could address the

specific relations within the American hemisphere and embed those relations within transregional global

contexts”.

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Estas diferenças não eram exclusivas do continente americano, sendo também

identificada por ele entre grupos de mesma origem do Velho Mundo390

. Entretanto, em

alguns casos, esta dupla representação poderia estar relacionada a contatos específicos com

determinados povos de outras raças. Em seu Ensayo Político sobre el Reino de la Nueva

España, publicado em 1822, Humboldt defende uma origem singular para os avançados

toltecas:

“La forma de su gobierno indicaba que descendían de un pueblo

que había experimentado ya grandes vicisitudes en su estado social. Pero ¿de

dónde les venía esta cultura? ¿Cuál es el país de donde salieron los toltecas y los

mexicanos? […] No nos es lícito ventilar aquí el gran problema del origen

asiático de los toltecas y de los aztecas: la cuestión general del primer origen de

los habitantes de un continente excede los límites prescritos a la historia, y acaso

no es sino una cuestión filosófica. Sin duda había ya otros pueblos en México

cuando se presentaron en este país los toltecas; por consiguiente, el indagar si

los toltecas son una casta asiática, no es preguntar si todos los americanos

descienden de la alta meseta del Tibet o de la Siberia Oriental […] Parece

preciso reconocer por cierto, que la especia humana no presenta razas más

aproximadas entre sí, que las de los americanos, los mongoleses, los manchúes y

los malayos; pero la semejanza de algunas facciones no constituye identidad de

raza. Si las pinturas jeroglíficas, si las tradiciones de los habitantes de Anáhuac,

recogidas por los primeros conquistadores, indican al parecer que un enjambre

de pueblos errantes se esparció desde el N. O. hacia el Sur, no por eso debe

inferirse que todos los indígenas del Nuevo Continente seña de origen asiático.

En efecto, la osteología nos enseña que el cráneo del americano es esencialmente

distinto de la raza mongolesa” (HUMBOLDT, 1966, 53; 59)391.

390 “[…] los europeos que han navegado por los grandes ríos del Orinoco y de las Amazonas, los que han

tenido ocasión de ver muchas tribus diversas, reunidas bajo la jerarquía monástica en las misiones, habrán

observado que hay pueblos de la casta americana, tan esencialmente distintos en sus facciones, como se

diferencian entre sí las numerosas variedades de la raza del Cáucaso, por ejemplo, los circasianos, los moros

y los persas” (HUMBOLDT, 1966, 55-56).

391 A origem específica de determinados grupos indígenas que habitavam a região da Nova Espanha é reafirmada pelo autor em outras partes de seu Ensayo: “Habiéndose verificado las emigraciones de los

pueblos americanos, constantemente de Norte a Sur, al menos desde el siglo VI al XII, es claro que la

población india de la Nueva España debe componerse de elementos muy heterogéneos. A proporción que la

población ha refluido hacia el Sur, algunas tribus se han detenido en su marcha y se han mezclado con los

pueblos que venían de cerca detrás de ellas. La grande variedad de lenguas que aún hoy se hablan en el

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As passagens acima nos permitem observar que, para Humboldt, havia uma

associação entre origem e “civilização”. Esta associação é reforçada pelo autor, por

exemplo, na passagem onde ele faz grandes elogios aos conhecimentos astronômicos de

determinados grupos indígenas, que em alguns aspectos (como a marcação da passagem

dos anos) suplantaria os alcançados pelos gregos, romanos e egípcios, o que o leva a “creer

que estos progresos no son efecto del desarrollo de las facultades intelectuales de los

mismos americanos, sino que los debían a su comunicación con algún pueblo muy

adelantado del Asia Central” (HUMBOLDT, 1966, 61). Assim, podemos observar que,

para este autor, refletir sobre a(s) procedência(s) dos americanos serve, ao mesmo tempo,

como base para identificar uma origem única e as diferenças e especificidades existentes

entre os grupos indígenas.

Antes de nos debruçarmos sobre as teorias formuladas no período que

apontavam uma procedência judaica ou atlante aos habitantes do continente americano,

gostaríamos de enfatizar que, nas décadas finais do século XVIII e em boa parte do XIX, as

reflexões sobre este tema estavam intimamente relacionadas com a percepção de que os

povos americanos apresentam grandes diferenças e especificidades entre si. A distância

identificada por Humboldt entre a avançada cultura dos toltecas e astecas em relação aos

outros locais do continente que ele havia visitado não é uma exclusividade do pensamento

do prussiano e irá se tornar um aspecto central nas reflexões sobre o indígena e seus

possíveis ancestrais, sendo, inclusive, incorporado dentro dos discursos que pretendiam

criar ou reforçar uma memória nacional para as nações americanas recém-formadas (Cf.

Capítulo 5).

Distância esta que, em muitos casos, foi interpretada como sendo “original”, o

que implicaria em uma migração múltipla para o Novo Mundo que teria dado origem a

grupos em diferentes estágios de desenvolvimento. No entanto, mesmo entre aqueles que

reino de México, prueba una grande diversidad de razas y de origen”. Ao apontar as diferenças existentes entre a cor da pele dos habitantes da Nova Espanha com os de Quito e de Nova Granada, regiões de climas

análogos, o prussiano ressalta novamente sua teoria de origens múltiplas para os americanos: “Todos estos

hechos concurren para probar que a pesar de la variedad de los climas y de las alturas en que habitan las

diferentes castas de hombres, la naturaleza no se separa nunca del tipo a que se sujetó de miles y miles de

años a esta parte” (HUMBOLDT, 1966, 54; 57).

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advogam uma procedência única, as relações entre a origem e a multiplicidade dos

indígenas também são relevantes. O caso de Robertson é exemplar, ainda que ele atribua a

existência de povos com “traços distinguíveis de progresso” enquanto outros ocupariam os

“estágios mais bárbaros” à atuação de fatores como o clima, há em sua obra uma

preocupação em determinar tanto de onde poderiam quanto de onde não poderiam ter

partido os ancestrais dos americanos.

Associada a esta questão está a divisão estabelecida por muitos autores entre os

índios do “passado” e os do “presente”, onde o primeiro grupo, quase que invariavelmente,

ocupa um estágio mais avançado, sendo o responsável, por exemplo, pela construção das

grandes construções arquitetônicas e pela elaboração dos complexos conhecimentos

astronômicos. Assim, tanto para autores que enfatizam o processo de degeneração ocorrido

na América (Cf. GERBI, 1996), quanto para aqueles que apontam o desenvolvimento

“autóctone” de determinados grupos, o auge do continente americano é localizado no

passado, seja nos primórdios da ocupação destas terras ou em um período posterior, mas,

ainda assim, recuado no tempo.

Os índios judeus

Como pudemos observar nos capítulos anteriores, a hipótese que identificava os

judeus – particularmente aqueles ligados às dez tribos perdidas de Israel – como os

ancestrais dos indígenas alcançou grande repercussão durante os séculos XVI e XVII. No

entanto, no final do setecentos, esta teoria já não despertava o mesmo interesse, o que levou

pesquisadores como David Katz e Tudor Parfitt (2002, 87-88) a afirmarem que, neste

período, a identificação dos índios com as tribos perdidas encontrava-se em “total

descrédito”.

Ainda que muitos autores continuassem incluindo a hipótese judaica em suas

reflexões sobre o problema da origem dos indígenas, poucos a abordavam como sendo a

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“verdadeira” ou, ao menos, uma das mais prováveis respostas para esta questão392

. Um dos

raros exemplos é o líder quaker William Penn que, no final do século XVII, continuava

identificando uma estreita relação entre os povos americanos e os judeus associada à

migração de alguns descendentes das tribos perdidas até o novo continente em um passado

remoto393

.

Novos estudos mais amplos sobre esta teoria só iriam surgir nas décadas finais

do século XVIII. Entre eles, destacamos as Noticias Americanas, de Antonio de Ulloa,

publicado em 1772. Nesta obra, o explorador e representante oficial da Coroa espanhola é

enfático ao afirmar que os indígenas seriam muito semelhantes entre si, o que o teria levado

a apontar que, em aspectos como a cor da pele, se “visto um índio de qualquer região, pode-

se dizer que se viram todos” (ULLOA, 1772, 308). Segundo o autor, estas semelhanças

estariam diretamente associadas à origem única de todos os nativos americanos. Em

primeiro lugar, Ulloa defende que, independentemente de quem fossem os povoadores

destas terras, este processo de migração deveria ter sido muito numeroso, o que explicaria a

manutenção de seus costumes a despeito do longo período de isolamento. A identificação

de elementos em comum entre o quíchua e o hebraico, contudo, faria com que os judeus

fossem apontados como um dos mais prováveis responsáveis pela colonização do Novo

Mundo394

.

392 Justin Winsor (1889, 116) cita alguns autores que, ainda que restritos a grupos específicos, estabeleceram

uma ligação entre os judeus e o Novo Mundo. Entre eles, estaria Charles Beatty que, em relato publicado em

1768 sobre sua atuação entre os nativos da região da Pensilvânia, defende haver traços das tribos perdidas entre os índios Delaware; Gerard de Brahm e Richard Peters, que teriam encontrado indícios desta ligação

entre os índios do sul das 13 colônias inglesas; e Jonathan Edwards que, em 1788, identificou semelhanças

entre o hebraico e as línguas faladas em algumas tribos indígenas.

393 “For their origin I am ready to believe them of the Jewish race; I mean of the stock of the ten tribes, and

that for the following reasons; first they were to go to a ‘land not planted or known’ which, to be sure, Asia

and Africa were, if not Europe; and He that intended that extraordinary judgment upon them, might make the

passage not uneasy to them, as it is not impossible in itself, from the Easternmost parts of Asia, to the

Westernmost of America. In the next place, I find them of like countenance, and their children of so lively a

resemblance, that a man would think himself in Duke’s Place or Bury Street in London […] But this is not all;

they agree in rites, they reckon by moons; they offer their first fruits; they have a kind of Feast of

Tabernacles; they are said to lay their altar upon twelve stones” (apud PARFITT, 2002, 88-89).

394 “[…] por estas circunstancias se hace juicio de ser [el quichua] una de las [lenguas] primitivas,

participando de algunas palabras de la Hebrea, según se ha dicho: de lo que se puede inferir haberlas

tomado muy en su origen, y que el Pueblo de donde salieron aquellos primeros Pobladores, si en el todo no

eran Hebreos, era alguna otra Nación de las que vivían contiguas á ellos; con cuyo motivo, conservando su

lengua natural, tomaron parte de los que estaban en mas inmediación. Para prueba de ello hay algunas otras

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Esta colonização teria sido realizada através de embarcações inspiradas

diretamente pela Arca de Noé395

, o que implicaria em uma migração ocorrida pouco tempo

depois do dilúvio universal. Em clara oposição aos argumentos que indicavam uma ligação

por terra através das regiões geladas no extremo noroeste americano, muito repetidos no

período e que encontravam na obra de José de Acosta um de seus principais defensores,

Ulloa afirma que havia tecnologia e condições materiais suficientes para que estas

embarcações primitivas transportassem tanto seres humanos (possivelmente judeus) quanto

animais, da mesma forma que os espanhóis teriam introduzido através de seus barcos novos

elementos à fauna americana396

.

A igualdade existente entre todos os indígenas apontada pelo autor, no entanto,

é negada em outros aspectos. Ao descrever os usos e costumes dos nativos americanos,

Ulloa ressalta que “teniendo todas [las gentes] un mismo origen, es tan extraordinaria la

variedad que se reconoce entre unas y otras, que parece a primera vista difícil combinar la

evidencia de aquel principio con la diversidad de propiedades que en muchas se advierte”

(ULLOA, 1772, 308; 305). A aparente contradição entre semelhanças muito grandes entre

os indígenas, especialmente na parte física, o que seria fruto de uma origem comum, com

elementos específicos em seus costumes pode ser compreendida quando observamos as

descrições que este autor faz sobre o estágio de desenvolvimento em que se encontrariam

alguns dos grupos que habitavam o continente. Os americanos seriam todos “bárbaros” que

não teriam conseguido se desenvolver durante o longo de período em que permaneceram

señales en las propensiones y costumbres que se observen en los Indios, que se acercan á las de los Hebreos”

(ULLOA, 1772, 388).

395 “[…] y así por todas razones parece no dexar duda, que los primeros vivientes fueron conducidos por el

agua, que es lo más natural, mayormente si se sigue el orden de la semejanza: pues habiendo Dios elegido

para conservar las especies el medio del Arca [...] parece regular que por el mismo medio volviesen á

poblarse las tierras que habían quedado sin habitantes, y estaban separadas de las otras, inspirándolo así á

las gentes para que lo pusiesen en planta, y dándoles por norma el mismo Arca donde se conservaron tan

prodigiosamente las criaturas y animales, cuyo portento fue, á imitación del de la Creación, la Obra de la

Omnipotencia, y una de las maravillosas señales que dexó en el Mundo de la Sabiduría infinita, y de sus

incomprehensibles providencias, con las quales reparó piadoso lo que el brazo de su Justicia había exterminado” (ULLOA, 1772, 407).

396 Ulloa (1772, 392-394) afirma que, como estas embarcações não retornaram ao Velho Mundo, teria surgido

um temor entre a população de que elas haviam fracassado, impedindo novas viagens para a América, o que

gerou o esquecimento das técnicas de construção das grandes embarcações e isolou o novo continente por

tantos séculos.

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isolados no Novo Mundo397

. A despeito desta barbárie generalizada, Ulloa afirma que

alguns nativos, especialmente os que se encontravam sob o domínio dos incas, possuíam

aspectos mais avançados que os outros povos americanos. Não por acaso, é na região do

Peru que o autor identifica o local onde os primeiros colonizadores do Novo Mundo teriam

se estabelecido. Além disso, os líderes desta região deveriam ter uma origem diferente da

dos outros habitantes do continente, “alguna raza más culta y civilizada que la de los

demás indios comunes, de la cual no se percibe conservarse algunos” (1772, 323).

Dessa forma, podemos observar em Ulloa uma postura que irá se repetir – ainda

que com diferenças – em vários autores posteriores. Em sua obra, a questão da colonização

do Novo Mundo está atrelada a uma dupla diferenciação em relação aos nativos do

continente. Os indígenas do “presente” seriam inferiores e mais bárbaros do que os do

“passado”, pois o desenvolvimento não teria apenas sido interrompido após a migração e

consequente isolamento desses homens em relação ao Velho Mundo, mas também teria se

iniciado um processo de degeneração. Além disso, existiriam entre os povos do passado

grupos mais desenvolvidos, com alguns sinais de “civilização”, que, em último caso, são

atribuídos pelo autor a uma origem externa, fruto de uma procedência diferente para os seus

principais líderes.

Outro autor cuja obra relacionava diretamente os indígenas aos judeus foi

James Adair, aristocrata britânico nascido na Irlanda que se mudou para a América e

passou décadas comerciando com grupos nativos que habitavam as colônias inglesas do sul.

De acordo com Parfitt (2002, 96), dois fatores exerceram papel determinante na obra deste

autor: o clima de disputas entre as colônias norte-americanas e a Inglaterra e a crença de

que os índios da Flórida deveriam ser retirados do jugo espanhol. Neste segundo caso, a

origem judaica serviria como argumento para impedir a atuação de uma Coroa católica na

região. 397 “Si hay gentes que conserven parte del primitivo estado de los hombres, deben ser los Indios; y es la

razón, porque habiéndose mantenido en una situación que les separaba del comercio y comunicación de las

demás, es natural que mantuviesen entre sí algunas cosas de las que llevaron los pobladores, mayormente no manifestando disposición ni talentos para inventar, ni para hacer novedades, en las que son regulares al uso

preciso de la vida; y así puede inferirse de lo que se reconoce en ellos, hablando de los que subsisten en la

total incultura, lo que serían los hombres en lo primitivo, antes que empezasen á civilizarse con el ejercicio

de las ciencias naturales, por cuyo medio consiguieron el adelantamiento que se ha dicho” (ULLOA, 1772,

xiii).

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Seguindo esses critérios, Adair defende que as décadas de contato pessoal que

ele manteve com diferentes grupos indígenas o teriam levado a crer que todos eles

descenderiam, necessariamente, de um único povo398

e que esta migração inicial não

poderia ser atribuída a povos pré-adamitas (ADAIR, 1775, 2-11). Para ele, a única

característica que diferenciaria os índios do restante da humanidade era a cor da pele.

Contudo, este aspecto não indicaria uma origem diferente – o que contrariaria as Sagradas

Escrituras – sendo apenas o resultado de seus costumes e modos de vida específicos, uma

vez que: “Their own traditions record them to have come to their present lands by the way

of the west, from a far distant country, and where there was no variegation of color in

human beings” (1775, 11).

A partir destes princípios, o autor nega outras hipóteses (como as que

associavam os ancestrais indígenas aos chineses, tártaros e citas) para expor sua teoria:

“From the most exact observations I could make in the long time I traded among the Indian

Americans, I was forced to believe them lineally descended from the Israelites, either while

they were a maritime power or soon after the general captivity, the latter however is the

most probable. This descent, I shall endeavor to prove from their religious rites, civil and

martial customs, their marriages, funeral ceremonies, manners, language, traditions, and a

variety of particulars” (ADAIR, 1775, 13-14). Assim como em vários outros autores

posteriores que advogavam uma associação entre índios e judeus, Adair descreve os nativos

americanos de forma altamente elogiosa, o que seria fruto direto de sua origem

“superior”399

. A partir daí, o autor arrola 23 argumentos que confirmariam sua resposta para

o problema da origem dos índios, tendo os relatos de cronistas espanhóis (particularmente

398 “All the various nations of Indians, seem to be of one descent; they call a buffalo, in their various dialect,

by one and the same name, ‘Yanasa’. And there is a strong similarity of religious rites, and of civil and

martial customs, among all the various American nations of Indians we have any knowledge of, on the

extensive continent, as will soon be shown” (ADAIR, 1775, 10).

399 “[…] it is incontrovertible, that the Spanish monks and Jesuits in describing the language, religion, and

customs, of the ancient Peruvians and Mexicans, were both unwilling, and incapable to perform so arduous an undertaking, with justice and truth [...] they artfully described them as an abominable swarm of idolatrous

cannibals offering human sacrifices to their various false deities, and eating of the unnatural victims.

Nevertheless, from their own partial accounts, we can trace a near agreement between the civil and martial

customs, the religious worship, traditions, dress, ornaments, and other particulars of the ancient Peruvians

and Mexicans, and those of the present North-American Indians” (ADAIR, 1775, 197).

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Acosta) como fontes de informação, além de sua experiência pessoal e as comparações

linguísticas como uma de suas principais ferramentas400

.

As ideias de Adair não alcançaram grande repercussão entre os autores

europeus. Uma rara exceção foi a inglesa Barbara Anne Simon, que em seu The hope of

Israel (1829) segue seu relato muito de perto. Para a autora, existiam dezenas de evidências

entre os indígenas de sua ligação ancestral com as dez tribos perdidas de Israel. No entanto,

esta migração não teria sido responsável pela colonização de todo o continente. Alguns

povos, particularmente do extremo norte, seriam descendentes de grupos tártaros que

teriam acompanhado a migração judaica401

. Assim como Adair, Anne Simon identifica os

habitantes das regiões do Peru e do México como diferentes dos do restante da América,

por terem características comuns entre si e mais “avançadas” do que as existentes entre os

outros habitantes do continente. Contudo, diferente de seu grande inspirador, a autora faz

um retrato altamente negativo dos indígenas. Para articular estas duas ideias, a autora parte

do princípio de que, em essência, os índios seriam muito capazes, mas faltava algo para que

eles se desenvolvessem: a religião. Os anos de isolamento na América em relação ao Velho

Mundo402

, fruto do afastamento das tribos perdidas em relação aos preceitos divinos, teriam

400 Hubert Howe Bancroft (1876, 91-93), cerca de um século depois, fez um resumo dos principais

argumentos utilizados por Adair para defender sua teoria: “‘The Israelites were divided into Tribes and had

chiefs over them, so the Indians divide themselves: each tribe forming a little community within the nation –

and as the nation hath its particular symbol, so hath each tribe the badge from which it is denominated'. If we

go from nation to nation among them we shall not find one individual who doth not distinguish himself by his

family name. Every town has a state house, – or synedrion, the same as the Jewish sanhedrim, where almost

every night the headmen meet to discuss public business. The hebrew nation were ordered to worship Jehovah the true and living God, who by the Indians is styled Yohewah. The ancient heathens, it is well known

worshiped a plurality of Gods: but these American Indians pay their religious devoir to loak Ishtohoollo Aba,

the Great Beneficent Supreme Holy Spirit of Fire. They do not pay the least perceptible adoration to images.

Their ceremonies in their religious worship accord more nearly with the Mosaic institutions, which could not

be if they were of heathen descent. The American Indians affirm, that there is a certain fixed time and place,

when and where everyone must, die, without, the possibility of averting it; such was the belief also of the

ancient Greeks and Romans, who were much addicted to copying the rites and customs of the Jews. Their

opinion that God chose them out of all the rest of mankind as his peculiar and beloved people, fills both the

white Jew and the red American, with that steady hatred”.

401 “The esquimaux and Tartars who are round in Labrador, Greenland, and round Hudson’s Bay are a

different race of men – many of the Tartar race, had undoubtedly accompanied the exiles to their banishment. Those of Hebrew derivation seem in general to have gone to the South, and to those degrees of latitude in the

North, most resembling their original climate and oriental constitution, - whereas the race is evidently mixed

with Tartar blood, in the colder latitude of the north” (ANNE SIMON, 1829, 116).

402 “Outcast from the inhabited earth, deprived of letters, and even of the means and materials necessary to

civilized life, they must without doubt have retrograded to a barbarous, and finally, in many parts of that

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provocado um longo processo de degeneração que, entretanto, seria reversível (ANNE

SIMON, 1829).

i) a teoria dos índios judeus nos Estados Unidos

Diferente do ocorrido na Europa, a teoria proposta por James Adair alcançou

ampla repercussão nos Estados Unidos, gerando obras que repetiam ou aprofundavam seus

argumentos, mas também outras que criticavam frontalmente suas análises403

, além de ter

sido muito utilizado como fonte de informações sobre os índios da região em que ele

comerciava. Em boa parte destes escritos, as ainda recentes disputas travadas entre as ex-

colônias norte-americanas contra a Inglaterra ocupam espaço central nas reflexões sobre a

possível procedência judaica dos americanos.

As hipóteses sobre a origem dos índios e suas possíveis associações com os

judeus formuladas por Adair chegaram a ser debatidas por dois dos principais líderes

políticos do ainda jovem país: Thomas Jefferson e John Adams. Em cartas trocadas em

meados de 1812, os dois ex-presidentes norte-americanos analisam algumas obras que

abordam o passado remoto dos nativos americanos404

. Ao citar os escritos de Adair,

Jefferson faz duras críticas, acusando-o de criar grandes generalizações sobre os índios a

‘large place’ or vast continent where they were to wander, have subsided into a demi-savage state, in which they could no longer (having ceased to know it) make use of that appeal which their forefathers so often found

irresistible” (ANNE SIMON, 1829, 39).

403 Um dos principais críticos de Adair – e, por extensão, da própria teoria da origem judaica dos índios – em

solo norte-americano foi John McIntosh (1843, 75-76), que será abordado no capítulo seguinte. Para ele, esta

hipótese “so possessed the mind of Adair, that, although he had the greatest opportunity of obtaining

knowledge, his book is comparatively of little use. We are constantly led to suspect the fidelity of his

statements, because his judgment had lost its equipoise, and he saw everything through a discolored

medium”. Ainda segundo McIntosh, a trágica trajetória das tribos perdidas e a escassez de informações sobre

seu paradeiro teriam estimulado autores, marcados pelo sentimento de compaixão combinado ao de

curiosidade, a identificar traços destes povos no Novo Mundo: “It is, therefore, on the resemblance which a

few words in the languages of the Indians of North America bear to the Hebrew, that some authors have contended with a great deal of confidence, that the lost tribes of Israel are the red men of North America”.

404 Além de Adair, Jefferson (1812) fala sobre a coletânea ilustrada organizada pelo ateliê de Theodore de Bry

e a obra de Lafitau, que teria “in his head a preconcieved theory on the mythology, manners, institutions and

government of the antient nations of Europe, Asia, and Africa, and seems to have entered on those of America

only to fit them into the same frame, and to draw from them a confirmation of his general theory”.

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partir de poucos indícios na tentativa de associá-los aos judeus405

. Segundo autores como

Harold Hellenbrand e Richard Popkin (1989, 74), debates como este teriam fortalecido a

opinião de Jefferson, apresentada em outros de seus escritos, de que os índios, muito

possivelmente, não fariam parte de nenhum projeto providencialista.

Esta postura, contudo, batia de frente com parte significativa das obras

publicadas nos Estados Unidos no período sobre os primeiros habitantes da América, que

interpretavam os argumentos e “evidências” apontados por Adair como “justification for a

Providential interpretation of what was happening in the colonies” (POPKIN, 1989, 72). É

importante observarmos que esta leitura que associava elementos religiosos e políticos foi

marcada por um movimento de reavivamento da fé com forte teor milenarista ocorrido nos

Estados Unidos na primeira metade do século XIX, conhecido como Second Great

Awakening406

.

Como exemplo deste tipo de interpretação, podemos citar Charles Crawford.

Em seu An Essay on the Propagation of the Gospel, in which are numerous facts and

arguments adduced to prove that many of the Indians in America are descended from the

Ten Tribes (1799), este nobre inglês que se estabeleceu em terras norte-americanas defende

405 “[…] he writes particularly of the Southern Indians only, the Catawbas, Creeks, Cherokees, Chickasaws

and Choctaws, with whom alone he was personally acquainted, yet he generalizes whatever he found among

them, and brings himself to believe that the hundred languages of America, differing fundamentally everyone

from every other, as much as Greek from Gothic, have yet all one common prototype. He was a trader, a man

of learning, a self-taught Hebraist, a strong religionist, and of as sound a mind as Don Quixote in whatever did not touch his religious chivalry. His book contains a great deal of real instruction on its subject, only

requiring the reader to be constantly on his guard against the wonderful obliquities of his theory”

(JEFFERSON, 1812).

406 O nome é uma referência ao Great Awakening, movimento religioso ocorrido na Europa protestante e, com

maior intensidade, nas colônias inglesas do continente americano durante a primeira metade do século XVIII.

De acordo com Marcus Vinícius de Morais e Luiz Estevam de O. Fernandes, esse “novo despertar” começou

em regiões como a fronteira sul e o baixo Meio Oeste norte-americano e foi marcado por emotivas reuniões

campais organizadas, em sua maioria, por metodistas ou batistas: “Essas reuniões cumpriam uma dupla

função religiosa e social [...] Para muitos, as reuniões representavam a única maneira de conseguir se batizar,

casar ou ter uma experiência religiosa comunitária [...] O renascimento religioso na fronteira fortaleceu

sentimentos de piedade e moralidade pessoal, mas não chegou a estimular a benevolência organizada ou manifestações por uma reforma social generalizada. As tendências reformistas foram mais evidentes no tipo

de renascimento religioso surgido na Nova Inglaterra e na parte ocidental do estado de Nova York. Em sua

maioria congregacionais e presbiterianos, fortemente influenciados pelas tradições puritanas, os evangelistas

do Norte promoviam reuniões menos emotivas do que as da fronteira, e encontraram terreno fértil nas cidades

de tamanho pequeno e médio” (KARNAL, 2007, 117-118).

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a existência de uma associação direta e “original” entre judeus e indígenas407

. Suas

conclusões, com forte teor milenarista, o levaram a identificar o Novo Mundo como o palco

onde se desenrolariam os principais eventos que antecederiam o fim dos tempos (a

libertação dos escravos, a redescoberta das tribos perdidas de Israel e a conversão dos

judeus).

Outra obra que alcançou relativa repercussão dentro do território norte-

americano no período – e que também foi muito influenciada pelas teorias de Adair – foi A

Star in the West (1816), de Elias Boudinot. De acordo com este advogado líder religioso408

e político com participação ativa no processo de independência das 13 colônias, o contato

com informações sobre grupos indígenas isolados associado à leitura de trechos dos

apócrifos de Esdras que descrevem a dispersão dos judeus aprisionados pelos assírios o

teria levado a formular sua teoria de que os ancestrais dos americanos seriam descendentes

diretos das tribos perdidas409

. Esta associação seria reforçada pelos relatos de dezenas de

autores desde o século XVI até os seus dias (como os de Acosta410

, Gómara, Clavijero,

entre outros), que apontavam a existência de dezenas de semelhanças entre indígenas e

judeus. Em sua obra, Boudinot resume os principais elementos que, para ele, reforçariam a

associação entre os habitantes do continente americano e grupos de descendentes das tribos

perdidas, uma vez que os próprios indígenas, devido ao longo processo de degeneração

407 “There is a strong argument in favor of the Indians being converted to Christianity, their being descended

from the Jews […] the aborigines of America were probably the descendants of Noah, that is, America was

first peopled by the sons of Noah, before the divisions of the globe […] Afterwards, it is probable that America was further peopled by the ten tribes, who were taken captive by Shalmaneser, King of Assyria”

(apud PARFITT, 2002, 96).

408 Boudinot participou da fundação de duas importantes organizações religiosas norte-americanas: a

American Bible Society, ainda em atividade, e a Society for ameliorating the condition of the Jews.

409 “The writer will not determine with any degree of positiveness on the fact, that these aborigines of our

country are, past all doubt, the descendants of Jacob, as he wishes to leave every man to draw the conclusion

from the facts themselves. But he thinks he may without impeachment of his integrity or prudence, or any

charge of over credulity, say, that were a people to be found, with demonstrative evidence that their descent

was from Jacob, it could hardly be expected, at this time, that their languages, manners, customs and habits,

with their religious rites, should discover greater similarity to those of the ancient Jews and of their divine

law, without supernatural revelation, or some miraculous interposition, than the present nations of American Indians have done, and still do, to every industrious and intelligent enquirer”. O autor se esforça em negar a

hipótese formulada pelo orientalista William Jones (Cf. Capítulo 5) de que as dez tribos perdidas teriam se

estabelecido na região do Afeganistão (BOUDINOT, 1816, 281; 30-31).

410 Autor que, como vimos anteriormente, negava veementemente a hipótese judaica, o que não impede

Boudinot (1816, 246-247) de usá-lo como base para reforçar sua teoria.

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ocorrido durante o período de isolamento enfrentado por eles no Novo Mundo, eram

incapazes de fornecer informações confiáveis sobre seus mais antigos ancestrais: “In our

opinion, a strict enquiry into the following particulars, would be the best means of

accomplishing this valuable purpose. Their language; Their received traditions; Their

established customs and habits; Their known religious rites and ceremonies; And, lastly,

their public worship and religious opinions and prejudices” (BOUDINOT, 1816, 88-89).

Assim como no caso de Crawford, a obra de Boudinot também possui um forte caráter

milenarista. Esta postura fica evidente já no subtítulo de sua obra411

e é continuamente

reforçada pelo autor, que interpretava os recentes eventos ocorridos na América como

evidências da aproximação do fim dos tempos. Isto o leva a estabelecer uma descrição

altamente elogiosa dos indígenas – assim como Adair – e, ao mesmo tempo, a criticar

fortemente a forma como eles vinham sendo tratados desde a chegada das primeiras

expedições europeias.

Em meados do século XVIII, a hipótese da origem judaica continuava sendo

central para os debates realizados em solo norte-americano sobre os primeiros americanos,

ainda que fora dele se resumisse a um número muito restrito de obras que – com exceção da

coletânea de Kingsborough (sobre a qual falaremos em seguida) – alcançaram pouca ou

nenhuma repercussão. Entre vários outros escritos412

, destacamos dois que, mais uma vez,

reforçam as interpretações de cunho milenarista sobre os indígenas e que obtiveram grande

destaque dentro dos Estados Unidos.

O primeiro deles está associado ao surgimento da Igreja de Jesus Cristo dos

Santos dos Últimos Dias, fundada pelo religioso norte-americano Joseph Smith nas

primeiras décadas do século XIX. De acordo com a teologia mórmon, o Novo Mundo teria

sido povoado inicialmente por um grupo de hebreus que, liderados por Jared e com auxílio

411 A humble attempt to discover the long lost ten tribes of Israel, preparatory to their return to their beloved

city, Jerusalem

412 Tudor Parfitt (2002, 100) chega a afirmar que houve uma “inundação” de novas publicações sobre o tema

no país, citando como exemplos as obras de E. Howitt (Selection from Letters, de 1820), Ethan Smith (View of the Hebrews or the Tribes of Israel, de 1823), Israel Worsley (A view of the American Indians: their

general character, customs, language, public festivals, religious rites and traditions shewing them to be the

descendants of the ten tribes of Israel, de 1828), Joshua Priest (American Antiquities, de 1834), J. Finlay (On

the Jews and Wyandottes, de 1840) e G. Catlin (“Letters and notes on the manners, customs and conditions of

the North American Indians, de 1841).

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divino, teria navegado até o continente no período da queda da Torre de Babel. Na América

do Norte, os jareditas teriam construído grandes cidades, formando uma desenvolvida

civilização. Contudo, após um longo processo de degeneração, este povo teria sido

destruído através de intervenção divina por volta de 600 a.C. Neste mesmo período, uma

nova leva de migrantes teria alcançado estas terras413

. Leí (ou Lehi), descendente da tribo

de Manassés, teria recebido uma mensagem divina alertando que Jerusalém seria invadida e

destruída em breve. Por isso, ele e seus homens deveriam migrar para uma “land of

promise”, o Novo Mundo. Já em solo americano, teria havido uma divisão deste grupo em

dois: os nefitas e os lamanitas. O primeiro foi responsável pelas construções de grandes

cidades localizadas em diferentes regiões do continente (em especial nos Andes, em partes

da América Central e nas regiões da América do Norte onde existiam montículos414

),

enquanto o segundo teria se degenerado ao longo do tempo.

413 O processo de migração de determinados grupos hebreus, descrito pelo livro dos mórmons, não teria se encerrado na América. Poucas décadas antes de Cristo, alguns integrantes desse grupo teriam partido pelo

Pacífico até a região da Nova Zelândia, além de colonizarem algumas ilhas pelo caminho. Crença esta, que

teria estimulado o envio de missionários mórmons a estes locais desde os primeiros anos da Igreja.

414 Os montículos (mounds) eram montes artificiais feitos com materiais como terra, areia e rochas

encontrados em uma larga extensão de terra na América do Norte que vai do estado de Nova York até o de

Nebraska. Suas dimensões, formatos e funções variavam, servindo desde local de realização de cerimônias

religiosas até parte de um sistema de defesa, mas, geralmente, tinham finalidades funerárias. Parte

considerável dos milhares de montículos encontrados nesta região tinha o topo plano, o que levou alguns

autores (como o líder mórmon Joseph Smith) a sugerir que, em um passado distante, cidades chegaram a ser

construídas nestes locais. Adovasio mostra que estas construções pré-colombianas foram utilizadas por

antiquários e patriotas norte-americanos como evidências do desenvolvimento dos primeiros habitantes do

território que viria formar os Estados Unidos, uma vez que os montículos “quase se equiparavam às estruturas monumentais do México”. Assim como em outros locais do continente, ao mesmo tempo em que estas

construções foram interpretadas como evidências de desenvolvimento em um passado remoto, surgiram

também, dentro da intelectualidade norte-americana, debates sobre quem seriam os seus construtores. Para

alguns, como os mórmons, se tratariam de edificações tão elaboradas que não poderiam ter sido realizadas

pelos antepassados dos atuais indígenas. Já para outros, como Thomas Jefferson (que, em 1784, escavou e

analisou um montículo de pequenas proporções localizado em uma de suas propriedades), tratava-se de obra

de ancestrais diretos dos indígenas. É importante ressaltarmos que as ideias de Joseph Smith sobre os

primórdios da ocupação do continente americano foram influenciadas por obras que propunham teorias sobre

a origem dos povos construtores de montículos. Entre elas, uma se destaca, a American Antiquities and

discoveries in the West, publicada com grande sucesso na década de 1830 por Josiah Priest. Nela, o autor

identificou a existência de descendentes dos exércitos de Alexandre no continente além de apontá-lo como o local onde a Arca de Noé teria aportado. Sobre os montículos, Priest afirma que alguns deles remeteriam a

períodos anteriores ao dilúvio universal, e não teriam sido construídos pelos indígenas que, posteriormente,

teriam colonizado a região: “Ele não conseguia, porém, escolher dentre os nomes da longa e hipotética lista de

prováveis construtores de montículos, que incluía egípcios, gregos, israelitas, escandinavos, escoceses,

chineses e polinésios” (ADOVASIO, 2011, 31-40).

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De acordo com a crença mórmon, após a ressurreição, Jesus teria se

estabelecido durante algum tempo na América, onde pregou para os descendentes dos

primeiros colonizadores do local que se identificaram como sendo as “ovelhas de outro

aprisco” anunciadas nas Sagradas Escrituras. Sinais desta pregação poderiam ser

observados, por exemplo, em algumas construções e objetos produzidos pela cultura maia

(sendo as ruínas de Palenque, em especial o “Templo da Cruz”, uma das principais

evidências). Após a passagem de Jesus pelas terras americanas, os embates entre nefitas e

lamanitas teriam se aprofundado, com a vitória do segundo grupo e a completa destruição

do primeiro (entre os poucos sobreviventes nefitas estava Mórmon, cujos escritos teriam

sido encontrados por Joseph Smith em 1827). Por fim, a acentuação do processo de

“barbarização” dos lamanitas teria gerado como punição divina a alteração da coloração de

suas peles, que teriam ficado escurecidas e avermelhadas415

, dando origem aos indígenas

que ainda habitavam o continente416

.

A segunda obra do período a identificar os antigos hebreus como os ancestrais

dos primeiros habitantes do continente americano que destacamos foi a de Mordecai

Manuel Noah. Em seu Discourse on the evidences of the American Indians being the

descendants of the lost tribes of Israel (1837), este influente líder judeu afirma ter havido

um longo processo de migração dos descendentes destas tribos pela Ásia até alcançarem a

região de Bering, por onde teriam chegado ao Novo Mundo. Assim como outros autores

antes dele que advogavam a hipótese judaica dentro de uma visão milenarista, o autor tece

grandes elogios aos indígenas (NOAH, 1837, 8) e afirma que suas crenças e cerimônias

religiosas confirmariam a procedência de seus ancestrais417

, algo que já teria sido apontado

por dezenas de autores desde o século XVI418

.

415 Até meados do século XX, pregadores mórmons defendiam que negros e indígenas “embranqueceriam”

gradualmente caso se convertessem à Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (ADOVASIO, 2011,

41).

416 É importante observarmos que, de acordo com alguns autores (Cf. POPKIN, 1989), os mórmons não

defendem que todos os indígenas são descendentes dos judeus.

417 “It is clearly evident, therefore, that the tribes, in their progress to a new and undiscovered country, left

many of their numbers in China and Tartary, and finally reached the straits of Behring, where no difficulty

prevented their crossing to the north-west coast of America, a distance loss than thirty miles, interspersed

with the Copper Islands, probably frozen over; and reaching our continent, spread themselves in the course

of two thousand years to Cape Horn; the more hardy keeping to the north, to Labrador, Hudson's Bay and

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Assim como em muitos dos casos analisados no início deste capítulo, as

grandiosas e elaboradas construções existentes na cidade de Palenque ocupam um espaço

central na argumentação de Noah. Mais uma vez, há neste autor a preocupação de distinguir

os criadores desta cidade dos demais indígenas: ela teria sido construída por um grupo de

fenícios que haviam migrado para estas terras em pequenas embarcações que,

posteriormente, teriam sido povoadas pelos descendentes das tribos perdidas, ancestrais dos

“atuais” indígenas419

. As ideias de Noah sobre a origem judaica dos índios não se

restringiram ao campo da palavra escrita. Além das inumeráveis pregações e palestras sobre

o tema realizadas por ele em diferentes partes dos Estados Unidos, Noah também planejou

a criação de Ararat, uma cidade localizada às margens do rio Niágara que funcionaria como

um refúgio temporário para os judeus de todas as partes do mundo até que o retorno

definitivo às terras de Israel fosse alcançado. No entanto, apesar de uma grandiosa

inauguração do local ter sido realizada em 1825, este projeto nunca foi colocado em prática

(POPKIN, 1989, 78-79).

Ao final deste item, podemos observar que, nos Estados Unidos do final do

século XVIII até meados do XIX, a teoria dos índios judeus alcançou uma repercussão que

não encontrou paralelos em outros locais. A despeito das grandes diferenças e

particularidades existentes entre cada uma das obras citadas nas últimas páginas, há em boa

parte delas a relação com questões políticas (tratava-se, na realidade, de determinar como

teriam sido dados os “primeiros passos” da nação420

) e religiosas (especialmente

milenaristas).

Greenland, the more cultivated fixing their residence in the beautiful climate and rich possessions of Central

America, Mexico and Peru” (NOAH, 1837, 6).

418 Entre vários outros autores, como López de Gómara, Menasseh ben Israel e William Penn, Noah (1837,

10) dedica um grande espaço de seu ensaio a James Adair, descrito como um autor “in whom I repose great

confidence”.

419 Segundo Noah (1837, 25), os embates entre judeus e fenícios na América seriam apenas a repetição de eventos ocorridos anteriormente no Velho Mundo: “The descendants of Joshua a second time fell on the

Canaanites on another continent, knowing them well as such, and burn their temples, and destroy their

gigantic towers and cities”.

420 Algo que, como veremos no capítulo seguinte, também ocupou espaço central dentro da intelectualidade

de outros países americanos, ainda que, neles, a hipótese judaica tenha sido pouco – ou nada – analisada.

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Contudo, a existência de algumas premissas e pontos em comum não levou a

uma produção homogênea sobre o tema. Por um lado, a identificação dos judeus como

ancestrais dos americanos gerou, em alguns autores, representações dos indígenas – ou ao

menos de parte deles – como seres avançados e civilizados, o que ficaria evidente através

das grandes construções existentes em determinadas regiões do continente e seria fruto

direto de sua origem “nobre” (como James Adair e Elias Boudinot). Por outro lado, a

migração hebraica também foi utilizada para embasar uma imagem altamente depreciativa

dos povos americanos, descritos como bárbaros e degenerados que seriam incapazes de

realizar obras mais complexas, como os montículos ou edificações existentes em locais

como Palenque.

ii) Lord Kingsborough, os índios e os judeus que colonizaram a América

Em 1837, em uma cadeia de Dublin, faleceu um ainda jovem nobre político

britânico devido ao tifo. Boa parte dos infortúnios sofridos por ele em seus últimos anos de

vida decorreu de sua obsessão pelo passado dos povos americanos, em especial os da região

do México. Interesse este, que remontava ao seu período de formação na Universidade de

Oxford, quando teve contato com um códice mesoamericano que o teria deixado fascinado.

Desde então, Edward King, conhecido como Lord Kingsborough, devotou parte

significativa de seu tempo e praticamente todas as suas posses em pesquisas e viagens em

busca de relatos sobre esta região e seus habitantes421

.

Sua extensa pesquisa teve como resultado a publicação de uma grande

coletânea contendo narrativas indígenas, crônicas escritas por autores europeus e imagens

de diversas procedências sobre o Novo Mundo e seus habitantes permeados por

comentários e interpretações do próprio editor. Intitulada The Antiquities of Mexico, a obra

organizada pelo nobre irlandês ao longo de quase duas décadas422

foi editada a partir de

421 Kingsborough nunca esteve na América, porém manteve contato com estudiosos e viajantes, como o já citado explorador francês Jean Frédéric Maximilien de Waldeck. De acordo com Sylvia D. Whitmore (2009,

11), Waldeck teria chegado a nomear uma das pirâmides encontradas por ele nas ruínas da cidade maia de

Uxmal como “Le Pyramid de Kingsborough”.

422 Os dois primeiros volumes do The Antiquities of Mexico foram publicados em 1830. No ano seguinte,

foram editados outros seis. Os dois últimos foram lançados apenas postumamente.

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1831 em nove volumes423

de grandes dimensões (os livros chegavam a pesar quase 30

quilos), com dezenas de ilustrações copiadas dos originais pelo artista italiano Agostino

Aglio.

O interesse obsessivo de Kingsborough pelos relatos que narravam o passado

remoto do continente americano estava estreitamente relacionado com sua interpretação

sobre a origem dos indígenas. De acordo com o nobre britânico, o Novo Mundo teria sido

colonizado por integrantes das dez tribos perdidas de Israel. Para tentar comprovar esta

hipótese, o autor inclui nos volumes de sua coleção dezenas de comentários e notas de

rodapé424

que relacionavam o conteúdo das obras publicadas à teoria dos índios judeus425

.

423 “The nine volumes of the Antiquities of Mexico contain facsimiles and texts descriptive of ancient Mexican

manuscripts and paintings preserved in the royal libraries of Paris, Berlin, and Dresden, the Imperial library

of Vienna, the Vatican library, the Borgian Museum at Rome, the library of the Institute of Bologna, and the

Bodleian Library at Oxford. These include, among others, facsimiles of sixteen significant manuscripts such

as the Codex Mendoza, the Dresden Codex, and the Telleriano-Remensis. Facsimiles of drawings from the

Monuments of New Spain by Dupaix are also included. It is considered that the first three volumes of the

Antiquities of Mexico contain facsimiles of almost all of the known ancient pictorial Mexican manuscripts and paintings that were accessible to Kingsborough at the time” (WHITMORE, 2009, 8). Kingsborough

distribuiu exemplares de sua coletânea para várias casas reais europeias além de diversas bibliotecas, museus

e universidades do continente.

424 Em alguns volumes da coletânea, como o sétimo, há comentários de Kingsborough (1831, 56-75) em

relação à ascendência judaica dos índios em praticamente todas as páginas. Entre dezenas de outras

afirmações, citamos algumas delas referentes à forma de relacionamento com os filhos (“In everything

relating to the treatment of their children, even in their mode of punishing them, the Mexicans resembled the

Jews”), as formas de punição (“Beating with a stick was a very common punishment amongst the Jews”) e de

combate (“The military tactics and articles of war of the Mexicans nearly resembled those of the Jews. Both

nations were in the habit of sending spies to report the strength and condition of the cities which they

intended to attack”) e as crenças religiosas (“The priests of Huitzilopochtli, like the Levites, succeeded also to

their office by belonging to a certain tribe”).

425 O autor reforça seus argumentos afirmando ter identificado 17 indícios que comprovariam que os

espanhóis teriam encontrado características judaicas no Novo Mundo: “First: the admission of the Best

informed Spanish historians, who were ecclesiastics, that the Indians generally throughout the continent of

America had some knowledge of the true God […] The second reason […] is that they used circumcision. The

third, that they expected a Messiah; The fourth, that many words incorporated in their languages and

connected with the celebration of their religious rites, were obviously either of Hebrew or of Greek

derivation. The fifth, that Las Casas the bishop of Chiapas, who had the best means of verifying the fact, was

of this opinion. The sixth, that the Jews themselves, including some of their most eminent rabbis, such as

Menasseh ben Israel and Montecinio […] maintained it both by verbal statement and in writing; The seventh

is the dilemma in which the most learned Spanish authors, such as Acosta and Torquemada, have placed their

readers by leaving them no other alternative than to come to the decision whether the Jews had colonized America and established their rites amongst the Indians, or whether the Devil had counterfeited in the New

World the rites and ceremonies which God gave to his chosen people. The eight is the resemblance which

many of the Indian rites and ceremonies bore to those of the Jews. The ninth is the similitude which existed

between many of the Indian and many of the Hebrew moral laws. The tenth is the knowledge which the

Mexican and Peruvian traditions implied that the Indians possessed of the history contained in the

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215

Como exemplo, podemos citar as observações feitas por ele sobre a obra do cronista oficial

espanhol Antonio de Herrera y Tordesillas. De acordo com Kingsborough, a hipótese

defendida por este e vários outros escritores de uma migração para a América através do

oeste era totalmente improvável. Para embasar esta afirmação, o autor inicia uma extensa e

intrincada análise etimológica de topônimos mesoamericanos para concluir que eles

apresentavam grandes semelhanças com palavras do antigo idioma egípcio, indicando uma

migração através do oceano Atlântico de judeus oriundos de Alexandria.

Além das notas e adendos feitos aos relatos de outros escritores, Kingsborough

também decidiu incluir no sétimo volume de sua coletânea um texto onde abordava

exclusivamente a questão da procedência dos primeiros americanos e as relações que ao

menos alguns deles teriam com os judeus. Sob o título de Arguments to show that the Jews

in early ages colonized America, o nobre britânico passa cerca de uma centena de páginas

analisando trechos de relatos de autores de diferentes épocas (desde os séculos XVI e XVII,

como Acosta, Torquemada e García, até alguns de seus contemporâneos, como o líder

quaker William Penn, Lorenzo Boturini e James Adair426

) para defender que grande parte

deles possuem passagens e descrições de eventos muito semelhantes, o que aumentaria sua

veracidade e reforçaria sua teoria dos índios judeus.

Contudo, Kingsborough ressalta que esta origem não poderia ser atribuída a

todos os habitantes do continente. A procedência judaica seria limitada apenas a

determinadas regiões e povos do Novo Mundo. Não por acaso, os considerados por ele

Pentateuch. The eleventh is the Mexican tradition of the Teoamoxtli or divine book of the Tultecas. The

twelfth is the Mexican history of their famous migration from Aztlan. The thirteenth is the traces of Jewish

superstitions, history traditions, laws, manners, and customs, which are found in the Mexican paintings. The

fourteenth is the frequency of sacrifices amongst the Indians, and the religious consecration of the blood and

the fat of the victims. The fifteenth is the style of architecture of their temples. The sixteenth is the fringes

which Mexicans wore fastened to their garments. The seventeenth is a similarity in the manners and customs

of Indian tribes far removed from the central monarchies of Mexico and Peru (but still within the pale of

religious proselytism) to those of the Jews” (KINGSBOROUGH, 1831, 113-116).

426 Assim como para vários outros autores, o relato de Adair exerce grande influência nas reflexões de

Kingsborough sobre os indígenas e suas origens, o que o teria levado a incluir trechos dos escritos deste

mercador inglês no oitavo volume de sua coleção. No entanto, é importante observarmos que, a despeito de advogarem a mesma teoria (judeus teriam colonizado o Novo Mundo), Adair e Kingsborough possuem

argumentos diferentes. Enquanto o primeiro identifica uma origem judaica para as tribos com quem teria feito

comércio, o segundo argumenta que estes indígenas não teriam origem judaica e que as possíveis semelhanças

com características deste povo teriam sido transmitidas por grupos mais avançados, estes, sim, descendentes

diretos dos judeus.

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como os mais “civilizados” (como os toltecas e os peruanos427

), que teriam características

muito semelhantes às existentes entre os judeus do tempo dos profetas

(KINGSBOROUGH, 1831, 372). Seguindo esta lógica, o autor atribui a construção das

obras mais complexas encontradas em determinadas regiões da América aos povos

provenientes da migração judaica. Assim, locais como Palenque e partes do antigo império

inca teriam sido criados por descendentes de judeus (1831, 291). Ainda de acordo com o

autor, estes povos “avançados” teriam transmitido algumas de suas características aos

grupos “inferiores” (frutos, provavelmente, de migrações vindas do oeste), o que explicaria

a identificação de alguns elementos “judaicos” entre indígenas que não os teriam como seus

ancestrais diretos. Dessa forma, podemos obervar que, assim como vários outros autores

antes e depois dele, há nas reflexões de Kingsborough sobre o Novo Mundo uma

diferenciação “original” entre americanos mais e menos avançados.

Por fim, o autor passa a desqualificar os argumentos de autores que criticavam a

hipótese de uma migração judaica para as terras americanas. Neste ponto, Acosta ocupa um

lugar central, o que reforça, mais uma vez, a centralidade das reflexões feitas por este autor

em sua Historia mesmo séculos depois de sua publicação. Para Kingsborough, que utiliza

intensamente os escritos do jesuíta espanhol em suas descrições sobre o comportamento dos

indígenas e as características da natureza do Novo Mundo, o fato deste importante autor

negar sua teoria dos índios judeus não a invalidaria, pois a negativa de Acosta poderia ser

justificada e, seus argumentos contrários, relativizados428

.

427 “The Tultecas were most probably Jews who had colonized America in very early ages, bringing along

with them the knowledge of various mechanical arts, and instructing the Indians in them; but especially

propagating amongst them their own religious doctrines, rites, ceremonies, and superstitions, which seem to

have pervaded the New World from one end of that vast continent to the other; and even to have extended to

some of the islands in the Pacific Ocean” (KINGSBOROUGH, 1831, 255). A ligação dos “avançados”

peruanos e mexicanos com os judeus faz com que o autor ressalte a existência de características semelhantes

entre estes dois povos, o que seria fruto de sua origem comum: “It has elsewhere been observed, that the deity

worshiped by the Peruvians under the names of Pachacama and of Viracocha (the former of which signifies

the Creator) was probably the same as Texcatiploca” (1831, 365).

428 Kingsborough (1831, 331) levanta três hipóteses que explicariam o fato de Acosta negar a existência de

uma migração judaica para a América: 1) o jesuíta teria visitado o Novo Mundo em um período onde a ação missionária já teria apagado muitas das características judaicas identificadas entre os índios por autores

anteriores; 2) ele teria negado esta hipótese por ela ser considerada intolerável no período em que ele

escreveu; 3) Acosta não teria tido acesso a documentos e informações que comprovariam a ligação entre

índios e judeus que teriam chegado às mãos de outros autores, como Las Casas. Em outros trechos de sua

coletânea, o autor acusa o jesuíta espanhol de plágio, porque teria copiado longas passagens da obra de Diego

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O método utilizado por Kingsborough para tentar comprovar sua teoria para a

origem dos índios, a comparação exaustiva de toda e qualquer característica dos americanos

presente nos relatos incluídos em sua coletânea com elementos considerados por ele como

característicos dos judeus, foi descrita por autores como Jaime Labastida (1995, xliii) como

“prehumboldtiana”, ainda que seus escritos tenham sido publicados muitos anos depois das

primeiras obras do viajante prussiano sobre o Novo Mundo. No entanto, ainda que a partir

de epistemologias diferentes, Kingsborough e Humboldt chegam a uma conclusão

semelhante quanto às diferenças de desenvolvimento que existiriam entre os povos

americanos e as relações que elas teriam com a questão da colonização inicial do

continente. Em ambos os casos, povos mais “avançados”, como os toltecas, seriam

“originalmente” diferentes dos outros grupos, que apresentariam comportamentos mais

“bárbaros”.

A partir da segunda metade do século XIX, particularmente em suas décadas

finais, o interesse pela hipótese da migração judaica para o Novo Mundo diminuiu

consideravelmente. Para Richard Popkin, a perda de força desta teoria estaria relacionada

ao aumento exponencial no número de obras que associavam os americanos a povos que

habitavam o leste asiático, como os mongóis, que seria resultado de uma “mudança do foco

de atenção” da intelectualidade europeia para o Oriente (que teria como um de seus marcos

iniciais a expedição comandada por Napoleão para o Egito). Outro elemento que teria

contribuído para este declínio da teoria judaica, de acordo com o filósofo norte-americano,

foi a ascensão do pensamento científico: “The immense change in the evaluation of peoples

left the Jewish Indian theory a bad joke, an anachronistic hangover from an unfortunate

religious past. If anyone still believed it, he or she was a menace to the scientific

understanding of man. The theory which in Dury and Thorowgood’s version, or in

Menasseh’s, was to intensify the pursuit of the millennium, made no sense anymore”

(POPKIN, 1989).

Durán sem fazer referência. Esta afirmação teria sido respondida anos depois pelo erudito pesquisador

mexicano Joaquín García Icazbalceta. Para uma análise dos debates em torno da importância atribuída à obra

de Acosta durante o século XIX, Cf. O’GORMAN, 1984, xv-xxiii.

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Os americanos atlantes

Ainda que apontada de tempos em tempos por alguns autores, a hipótese que

associava a América à Atlântida ou, ao menos, que identificava a mítica ilha de Platão

como “ponte” utilizada por grupos humanos de diferentes procedências para alcançar as

terras do novo continente obteve pouca repercussão durante o período analisado. Negada

por muitos autores429

ou deixada de lado por se tratar de uma “área perigosa” (Cf.

VARNHAGEN, 1876), a teoria atlante foi abordada mais detidamente por um pequeno

número de obras.

Entre os raros exemplos do século XVIII, podemos citar a obra do conde

italiano Gian Rinaldo Carli, descrita por Vidal-Naquet (2008, 105-108) como um

“surpreendente” e “inesperado” caso de mistura entre um mito nacional e as reflexões sobre

a América que alcançou grande repercussão dentro do “debate do Novo Mundo”. Para este

nobre italiano, que publicou suas Lettere americane em 1780, a Atlântida unia as terras do

litoral do Mar Mediterrâneo à América e teria sido o local de onde partira Saturno levando

consigo os povos atlantes e a “civilização” em direção às terras italianas430

.

Neste período, o já citado cartógrafo e ilustrado suíço Samuel Engel também

abordou esta teoria. Como apontamos anteriormente, para este escritor os indígenas teriam

múltiplas e hierarquizadas origens. Seguindo esta lógica, Engel defende que os indícios da

existência da Atlântida seriam mais bem aceitos caso fossem identificados com o período

anterior ao dilúvio universal, época em que ele localiza as principais migrações para o

Novo Mundo431

. Além disso, o autor defende que os habitantes desta ilha seriam ancestrais

429 Dentre muitos outros exemplos, podemos apontar os já citados Feijóo e Clavijero, no século XVIII. Já no

século XIX, podemos indicar as obras de John McIntosh (1843, 42), para quem a Atlântida era uma narrativa

fabulosa que não poderia ser relacionada com a América, e Hubert Howe Bancroft (1876, 124-127), que faz

fortes críticas às teorias defendidas por Brasseur de Bourbourg, um dos principais defensores desta teoria.

430 Para una descrição e análise do conteúdo das cartas de Carli, e os debates travados com autores como De Pauw e Robertson, Cf. GERBI, 1996, 185-189.

431 “Il est donc avéré que l’Atlantide a existé; qu’elle étoit très-voisine de l’Europe; que les Rois de cette Isle

ont dominé sur la Lybie & l’Espagne; qu’ils ont pu faire la guerre aux Grecs, même aux Egyptiens [...] que

par conséquent elle étoit fort peu éloignée de la terre ferme de ces deux continens de l’Europe & de l’Afrique,

& fort peu encore des Isles & du continent de l’Amérique, jusqu’où ils ont étendu leur domination; ainsi elle

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apenas de determinados grupos americanos, em especial, daqueles considerados por ele

como sendo os mais avançados, responsáveis, por exemplo, pela construção das pirâmides

que existiam em algumas partes do continente. Segundo o autor, essas grandes obras

arquitetônicas seriam muito complexas para terem sido construídas pelos “atuais” indígenas

que habitavam estas regiões ou mesmo por seus ancestrais diretos, o que indicaria a

existência de um povo anterior e “très civilisés”432

. Dessa forma, haveria uma ligação entre

determinados povos do Novo Mundo, a Atlântida e o Egito, transformando a ilha em um

local de passagem de um povo com conhecimentos e costumes “originalmente” diferentes

dos outros habitantes da América433

.

Novas associações mais elaboradas entre a América e a Atlântida só voltariam a

ocorrer quase um século depois, em obras como o Étude sur les rapports de l’Amérique et

de l’ancien continent avant Christophe Colomb, publicado por Paul Gaffarel em 1869.

Ainda que apresentada como pertencente ao campo das hipóteses, a existência da Atlântida

é apontada por este historiador francês como algo que já teria sido “comprovado”434

pelas

histórias narradas por anciãos indígenas sobre o passado remoto de seus povos.

fournit un trajet facile aux nations anté-diluviennes, pour se rendre dans ce monde perdu, & recouvré depuis

deux ou trois siecles” (ENGEL, 1767, 14).

432 “Les habitans nomment ces pyramides, Coa; on attribue leur construction aux Ulmecos, Colonie de

l’Atlantide, dont les habitans doivent eux-même avoir été une Colonie venue d’Egypte”. Esta teoria faz com

que o autor identifique esta mesma origem a povos de outras regiões da América que também teriam sinais

semelhantes de “civilização”: “Cela nous mene à une conjecture probable; que les Natchez, ayant leurs grands Soleils autrefois du cote du Mexique, comme nous le verrons ci-après, doivent être une Colonie de ces

anciens Mexicains [...] Que même les Yncas & leurs ancêtres doivent aussi en descendre, que ceux-ci ont

passé l’Isthme de Darien, puis la riviere des Amazones, & qu’enfin Manco-Copac a pénétré dans le Pérou”

(ENGEL, 1767, 23-24).

433 É interessante observar que a hipótese atlante foi negada no verbete da Supplément à Encyclopédie escrito

por Engel e De Pauw. No trecho composto pelo segundo autor há a defesa de que “il ne faut pas, à l'exemple

de quelques savans, vouloir appliquer au nouveau monde les prodiges qu'on trouve dans le Timée & le

Critias au sujet de l'Atlantique noyé par une pluie qui ne dura que vingt-quatre heures. Le fonds de cette

tradition venoit de l'Egypte; mais Platon l'a embellie ou défigurée par une quantité d'allégories, dont

quelques-unes sont philosophiques, & dont d'autres sont puériles, comme la victoire remportée sur les

Atlantides par les Athéniens, dans un temps où Athenes n'existoit pas encore” (ENGEL; PAUW, 1776-1777).

434 “Les communications entre l'Amérique et notre continent étaient alors facilitées par l'interposition d'une

grande île, aujourd'hui disparue, l'Atlantide. L'antiquité grecque avait conservé le souvenir de cette île

immense. Son existence, niée par les uns, acceptée avec hésitation par les autres, est reconnue par beaucoup

comme un fait indubitable. Nous nous rangeons de l'avis de ces derniers, et, après avoir passé en revue les

systèmes bizarres ou extravagants qu'on a émis sur la position de l'Atlantide, nous montrons, en nous

appuyant surtout, sur ia géologie, et aussi sur la tradition, qu'elle s'étendait jadis au milieu de l'Atlantique”

(GAFFAREL, 1869, 335-336).

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Tendo Humboldt, Brasseur de Bourbourg (sobre quem falaremos a seguir) e

relatos sobre o Palenque como algumas das principais fontes de informação, as associações

entre os “americanos atlantes” com os egípcios e etruscos (que também seriam

descendentes da mítica ilha) ocupam um lugar central na argumentação de Gaffarel435

.

Assim como para Engel, este autor argumenta que os povos “mais desenvolvidos” da

América (em especial os incas, maias e astecas) teriam uma origem associada à

Atlântida436

, o que não poderia ser estendido para os outros habitantes do continente. Ainda

que o pesquisador francês afirme não ter sido seu objetivo determinar a origem dos

americanos, a multiplicidade dos indígenasé, mais uma vez, associada a procedências

específicas, onde povos do Velho Mundo considerados como mais “avançados” seriam os

ancestrais diretos dos indígenas mais “civilizados”, enquanto os outros nativos seriam

descendentes de grupos “inferiores”437

.

Também para Charles Étienne Brasseur de Bourbourg a Atlântida poderia ter

servido como uma ligação entre os continentes através do oceano Atlântico. Antes de

iniciarmos a análise dos argumentos deste abade francês, entretanto, é importante

observarmos que ele alterou suas conclusões sobre este tema – assim como em outras

questões (Cf. Capítulo 5) – ao longo de suas obras. Enquanto em sua Histoire des nations

civilisées du Mexique et de l’Amérique-Centrale (1857) o autor critica os argumentos de

Gian Rinaldo Carli sobre a existência da Atlântida438

, em seu S’il existe des sources de

435 “Si donc les Etrusques eurent avec les Egyptiens des rapports si fréquents, et s'ils conservèrent longtemps l'empire des mers; si, d'un autre côté, leurs traits physiques, lenrs monuments et leur religion présentent des

analogies avec certains peuples américains, n'est-ce point une conclusion légitime d'avancer que les uns et

les autres sont issus de ce grand peuple auquel Platon donna le nom qui lui reste dans l'histoire, le peuple

atlante?” (GAFFAREL, 1869, 56).

436 Esta associação fica visível quando o autor estabelece uma mesma periodização histórica para o Novo

Mundo e o Velho: “Les Chichimèques, de même que les Romains en Europe, avaient fondé un empire tout

éclatant de gloire, et dont la civilisation rappelait ces fameux Atlantes dont ils étaient peut-être les

descendants. Mais, avec le triomphe des barbares toltèques, tout cet éclat disparut. A peu près au moment ou

la féodalité remplaçait en Europe les anciennes monarchies, les Toltèques s'emparaient enfin de ces belles

régions du Sud, qui toujours ont exercé sur les hommes du Nord un irresistible attrait. Par une singulière

concordance, ce qu'on est convenu d'appeler le moyen âge s'établissait donc en même temps et par les mêmes causes dans les deux mondes” (GAFFAREL, 1867, 235).

437 Entre outras hipóteses “confirmadas” ou consideradas como muito prováveis, Gaffarel (1867) aponta

migrações ou expedições ao Novo Mundo de judeus, fenícios, bascos, irlandeses e gauleses.

438 “Les traditions américaines font allusion à une inondation ou déluge partiel, qui aurait améanti

anciennement une vaste contrée et fait périr beacoup de monde. Cette circonstance, non plus que les

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l’histoire primitive du Mexique dans les monuments égyptiens et de l’histoire primitive de

l’ancien monde dans les monuments américains? (1864) a mítica ilha passa a ocupar um

papel fundamental em suas reflexões sobre a influência da “civilização” que teria se

desenvolvido na América.

Nesta obra, Bourbourg defende que, a despeito do sarcasmo com que a hipótese

atlante vinha sendo abordada desde as últimas décadas do século XVIII, havia fortes

indícios de que ela poderia ser verdadeira. Ainda que faça algumas resalvas em suas

conclusões, o autor afirma que as narrativas mitológicas de povos americanos (como os

astecas) e também do Velho Mundo (especialmente os egípcios, descritos como um povo

isolado e excepcional, sem semelhanças com nenhum de seus vizinhos) citavam terras

engolidas pelo mar que seriam referências explícitas à mítica ilha platônica. Além disso,

semelhanças linguísticas439

, entre outros fatores440

, reforçariam sua tese de que haveria uma

estreita conexão entre estas regiões, possível apenas pela existência de uma ligação entre os

continentes americano e africano: a Atlântida (BOURBOURG, 1864, 63-64).

Esta tese estaria relacionada, segundo o autor, à existência de revoltas

organizadas por “povos do oeste” que teriam resultado em um processo de migração em

direção a leste. Assim, o Egito se configuraria como a “porta de entrada” para a civilização

que teria vindo da Atlântida e que, posteriormente, teria se disseminado para várias regiões

do Velho Mundo, como a Grécia. Esta civilização, ainda que implicitamente, foi apontada

várias vezes pelo autor como tendo se originado em determinadas regiões do Novo Mundo

(Cf. Capítulo 5). Com isso, podemos observar que, tanto para Engel quanto para Bourbourg

rapprochements ingénieux de l’auteur des Lettres Américaines [Gian Rinaldo Carli] et le talent avec lequel

in travaille à faire sortir des profondeurs de l’Océan l’Atlantide de Platon, ne suffisent pas pour faire

admettre cet immense bouleversement d’une vaste terre engloutie dans les flots et qui aurait jadis uni le

Brésil à la côte d’Afrique, ces conjectures n’étant appuyées sur aucune donnée historique” (BOURBOURG,

1857, 6).

439 A origem do nome do mítico primeiro faraó Menés, por exemplo, estaria associada a elementos da cultura

maia. Bourbourg (1864, 60-62) faz também outras associações, como a existência de um rio que seria

denominado como “Nilo” pelos habitantes da região da Guatemala.

440 O autor afirma que as ilhas Canárias seriam, provavelmente, restos da Atlântida (o que explicaria o fato de

seus moradores possuírem semelhanças tanto com os americanos quanto com os egípcios) para concluir que

algumas peças do acervo do Museu do Louvre sobre os egípcios seriam o indício mais visível desta

associação, por representarem os egípcios com características muito próximas às dos indígenas

(BOURBOURG, 1864, 56-81).

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um século depois, há uma ligação estreita entre “civilização” e Atlântida, assim como entre

egípcios e índios mais “avançados”. Contudo, enquanto para o ilustrado suíço há uma

migração do Velho para o Novo Mundo, o religioso francês sugere em alguns de seus

escritos que este movimento poderia ter sido inverso.

Poucos anos após os escritos de Bourbourg sobre o tema terem sido publicados,

uma nova obra reafirma a ligação entre os índios “civilizados” e a Atlântida. Trata-se do

compêndio de história mexicana México a través de los siglos, publicado em vários tomos

entre os anos de 1884 e 1889441

. Nele, Alfredo Chavero, então responsável pelo conteúdo

referente ao período anterior ao contato com os europeus até a Conquista espanhola,

defende que existiam no Novo Mundo quatro grupos humanos identificáveis, dos quais

apenas três poderiam ser classificados como “civilizações”. Estes grupos seriam

descendentes de povos do Velho Mundo, uma vez que “Hay que advertir que, en edad

anterior, nuestro continente no estaba aislado de los otros [...] Solamente así se explica la

existencia de hombres de determinada raza en esos diferentes lugares”442

.

O primeiro e mais antigo grupo identificado pelo autor é o dos otomís, cuja

presença se estenderia por boa parte do continente americano (no norte, dos apaches até o

Mississipi, passando por regiões do México e do Peru, com exceção dos incas) e teria

ligações com os chineses. Estes laços poderiam ser “comprovados” pelo fato dos otomís e

chineses possuírem línguas monossilábicas e também por estes americanos produzirem

apenas objetos feitos de pedra lascada (o que indicaria sua grande antiguidade). Em

seguida, haveria uma “civilização intermediária”, da qual restariam poucos vestígios que,

no entanto, indicam se tratar de povos que já haviam desenvolvido a agricultura. A terceira

“civilização” seria composta pelos nahuas, povo mais avançado do continente que teria se

441 Para uma descrição e análise do conteúdo desta que foi considerada como a primeira grande síntese

histórica do México, Cf. FERNANDES, 2009.

442 “Conocidas son las tradiciones clásicas sobre su unión por el oriente, y hoy la ciencia la determina

también por el occidente […] Mucho importa la unión de las tierras, pues así acabaremos de una vez con las

absurdas hipótesis de inmigraciones por lo que hoy es estrecho de Bering, de viajes de cartagineses, de barcos extraviados é impelidos por las tempestades, de tribus judías peregrinantes, y hasta de expediciones al

país de Fou-Sang”. Chavero (1984, 61-62) defende ter havido no passado uma ligação entre os continentes

que se estendia do País de Gales até a Nova Zelândia incluindo o continente americano “desde la Patagonia

hasta el Perú. Por otra parte, las tierras debieron estar unidas hacia el norte, de la Nueva Guinea á la Nueva

Caledonia, á las islas Marquesas, á California y á las praderas de Nebraska”.

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estabelecido na região do México (mas também teria alcançado terras ao sul, dando origem

aos incas). Este grupo se diferenciaria dos anteriores por possuírem uma língua

polissilábica aglutinante (considerada por Chavero como mais complexa do que as

outras443

) e por terem sido os únicos a desenvolverem objetos de pedra polida. Por fim,

existiriam ainda os grupos negros, cuja presença poderia ser identificada através de

determinados objetos, costumes e a presença de esculturas com características “que no

podrían aplicarse sino á individuos de raza negra”. De acordo com o autor, os negros

seriam mais primitivos do que todos os outros habitantes do continente e sua presença

remontaria aos primórdios da colonização destas terras444

.

Dentro desta hierarquização estabelecida por Chavero, apenas o grupo mais

avançado teria os atlantes como seu ancestral direto445

. Enquanto deixa em aberto a

possibilidade dos otomís serem autóctones da América (o que transformaria os chineses em

seus descendentes446

), Chavero é claro ao defender que os ancestrais dos nahuas provinham

de outras terras, muito possivelmente, a Atlântida, o que poderia ser confirmado através de

“provas científicas”. A origem específica e superior desta “civilização” – descrita como

“más perfecta y más poderosa” do que as outras que habitavam o continente – é apontada

443 Sobre a influência da linguística para os estudos sobre a origem dos índios, Cf. Capítulo 5.

444 Chavero (1984, 64) questiona qual dos quatro grupos poderia ser considerado como o do “homem

autóctone” do Vale do México. Para ele, ainda que os negros fossem os pioneiros, algo não confirmado pelo

autor, caberia aos otomís esta “honra”: “En efecto, aun cuando la raza negra sea la primera que se extiende

en la tierra, aun cuando la admitiéramos como primitiva habitadora de nuestro continente, es, sin embargo,

en El un ave de paso, y debemos buscar otra raza para llamarla autóctona. Hablando Motolinía de los otomíes, los presenta como generación bárbara y de bajo metal; dice expresamente que de ellos descienden

los chichimeca […] Estas pocas indicaciones nos suministran datos importantes sobre esa raza. Todas las

tribus emigrantes que fundaron los últimos y más grandes centros de civilización, como México, Texcuco y

Tlaxcalla, pretendían descender de los chichimeca, y éstos proceden de los otomíes, según Motolinía, que les

da así el primer lugar en antigüedad”.

445 “Hoy creemos poder contestar á la pregunta, apoyados en los descubrimientos y progresos de la ciencia,

que los nahoas vinieron por la Atlántida. Lo que fué en un principio, según se creía, sueño de Platón, va

tornándose en realidad: la Atlántida, que se dibujaba apenas al nacer en el cerebro del poeta, toma ya forma

en el dominio de las investigaciones humanas” (CHAVERO, 1984, 71).

446 “El pueblo monosilábico ocupa en la antigüedad todo nuestro continente; los chinos ocupan

primitivamente una pequeñísima parte del Viejo Mundo, y es natural deducir que lo menor salió de lo mayor. Las tradiciones de los chinos nos los presentan, en un principio, como una colonia que se establece en medio

de pueblos extraños, lo que acredita que llegaba de otros lugares; y como el monosilabismo no pertenecía á

los pueblos entonces existentes en el mundo á que llegaban, hay que creer que lo llevaban del mundo en que

era la lengua natural. Los chinos pugnaron por extenderse y se extendieron á su occidente; luego iban de un

lugar que estaba al oriente de ellos, es decir, de nuestro continente” (CHAVERO, 1984, 70).

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pelo autor como a chave para se compreender as razões que a teriam levado a dominar os

territórios ocupados anteriormente pelos outros grupos (CHAVERO, 1984, 72-76)447

.

Os argumentos de Chavero deixam evidente que a ligação estabelecida por

vários autores entre a hierarquização das origens e a identificação de procedências

específicas para os grupos de determinadas regiões estava inserido neste período no

processo que buscava criar uma memória nacional para as ex-colônias europeias da

América. Assim, o índio “nacional” – no caso de Chavero, o nahua/atlante/mexicano – seria

superior a todos os outros indígenas, o que resultaria em uma origem e, consequentemente,

em uma trajetória singular.

Hipótese contrária é sugerida por Jean-François-Albert du Pouget de Nadaillac,

em seu L’Amérique Préhistorique (1883), raro caso de obra francesa do período que

abordava o passado remoto do Novo Mundo (Cf. CORDIER, 1996, 325-330). Para este

nobre francês, a unidade do ser humano tendo a Ásia como “berço” era algo indiscutível.

Contudo, as profundas diferenças existentes entre os indígenas impediriam a ligação de

todos eles a um único ancestral comum, o que o leva a defender a existência de uma origem

múltipla dos povos americanos448

. Assim, aqueles considerados por Nadaillac como os

mais avançados do continente teriam uma origem ariana (Cf. Capítulo 5). Já os outros

grupos teriam uma origem anterior e inferior que, possivelmente, teria ligações com a

Atlântida449

.

447 A identificação de uma origem atlante para os índios mais “avançados” continuou sendo utilizada por autores posteriores, como o filósofo e político mexicano José de Vasconcelos, que em seu La Raza Cósmica

(1925) reafirma a existência e a superioridade dos descendentes de Atlântida no Novo Mundo: “La raza que

hemos convenido en llamar atlántida prosperó y decayó en América. Después de un extraordinario

florecimiento, tras de cumplir su ciclo, terminada su misión particular, entró en silencio y fue decayendo

hasta quedar reducida a los menguados Imperio azteca e inca, indignos totalmente de la antigua y superior

cultura” (apud FERNANDES, 2009, 77-78).

448 “Les premiers hommes. Européens, Asiatiques ou Africains, qui abordèrent en Amérique, appartenaient

certainement à des peuples différents [...] Il est évident que bien des races, bien des peuples ont contribué au

peuplement de ces immenses régions que nous avons appelées le Nouveau-Monde”. Esta afirmação é

reforçada pelo autor páginas depois: “Si donc la race américaine offre des différences typiques aussi

importantes qu'indéniables, ce n'est pás un seul, mais un nombre indéterminé de centres de création qui seraient nécessaires; or nous ne connaissons aucun fait anthropologique, géologique, historique ou

linguistique qui puisse justifier cette assertion” (NADAILLAC, 1883, 536; 570).

449 “Nous croyons seulement que les documents historiques, les faits anthropologiques et géologiques que

nous avons cités, prouvent l'existence de vastes terres disparues, soit par une de ces catastrophes brusques,

rares dans l'histoire moderne du globe, soit par un affaissement lent et continu que la géologie permet

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Assim, podemos observar que a hipótese atlante, ainda que ocupando um

espaço lateral dentro das discussões do período sobre as origens dos americanos, foi

fundamental dentro das representações do Novo Mundo realizadas por alguns autores seja

para enaltecer o índio “nacional” em detrimento do índio “estrangeiro” ou para “explicar” a

existência de sinais de “civilização” ou “barbárie” em algumas regiões da América. Com

exceção do último exemplo apresentado, associar determinado grupo indígena à Atlântida

servia como ponto de partida para diferenciá-lo positivamente em relação aos outros

habitantes do continente e, ao mesmo tempo, às obras, línguas e costumes considerados

pelos autores do período como desenvolvidos. Além disso, esta hipótese reforçava a

dissociação entre os índios “do passado” e os “do presente”, com o segundo grupo sendo

visto como incapaz de elaborar as complexas construções, crenças e formas de governo que

teriam existido no continente. Processo este, que encontra na identificação de descendentes

dos arianos no Novo Mundo – um dos temas do próximo capítulo – um campo

extremamente fértil.

d'affirmer dans le passe et qui s'accomplit sous nos yeux, sur tant de points différents [...] En poursuivant cette voie féconde, les recherches ultérieures de la science permettront de pénétrer les secrets que l'Océan

garde encore dans ses eaux. Peut-être, d'ailleurs, si la vie persiste assez longtemps sur notre globe, nos

arrièreneveux verront-ils l'Atlantide, par un relèvement semblable à son affaissement, reparaître à leurs yeux

et justifier d'une manière éclatante les hypothèses de leurs ancêtres sur les premiers hommes qui ont peuplé le

continent américain” (NADAILLAC, 1883, 560-567).

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Capítulo 5

Os índios arianos: a construção de um passado nacional através das

reflexões sobre as origens dos americanos

“Quando desejou possuir uma história, a América

naturalmente encontrou-a, e antiga, inclusive

antiquíssima” (Antonello Gerbi, O Novo Mundo, p.

418-419).

Os arianos e as línguas indo-europeias

Em seu Les époques de la nature, publicado em 1780, o já citado conde de

Buffon defende que o primeiro povo a apresentar sinais de desenvolvimento no planeta

teria surgido há milhares de anos no Oriente, a leste do Mar Cáspio. Segundo o autor, este

grupo pioneiro, formado por homens “sábios e felizes”, havia sido responsável pelo

desenvolvimento inicial das ciências, das artes e de “todas as instituições úteis”. Contudo,

esta “civilização” teria sido completamente destruída por povos de outra procedência,

“ainda ignorantes, ferozes e bárbaros”, trazendo de volta as “trevas da ignorância”.

Restariam apenas alguns resquícios desta “civilização primordial” entre os bramas da Índia

(POLIAKOV, 1974, 162).

As reflexões de Buffon não foram as únicas do período a relacionarem as

questões em torno dos primórdios da humanidade e do desenvolvimento da(s)

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civilização(ões) às terras do Oriente. Há, a partir do século XVIII450

e em boa parte do XIX,

um interesse crescente por estes temas em vários países da Europa (como a Inglaterra, a

França e a Alemanha), onde os estudos sobre o passado “oriental” dos seres humanos

ocuparam um espaço central dentro de alguns dos principais debates intelectuais travados

no período.

Ao apresentar as ideias propostas por Edward Said em seu Orientalismo,

Carolina Depetris (2009, 233) afirma que a atração exercida pelo Oriente na consciência

“neoclássica e romântica” da Europa do período estava atrelada a dois sentidos

complementares: um “Oriente real”, pautado pelos interesses políticos, científicos e

comerciais, e um “Oriente imaginário“, “de interés estético, lugar donde Occidente busca y

encuentra fuentes de inspiración, temas, modelos que dan forma a una necesidad de

misterio, exotismo y pintoresquismo”. Seguindo estes conceitos, acreditamos que o

interesse crescente dedicado ao Oriente e aos seus habitantes, especialmente concentrado

no passado remoto desta região, está estreitamente associado às descobertas arqueológicas

ocorridas no período em vários continentes e à ascensão de um novo discurso científico,

relacionado ao surgimento de teorias como a da hierarquia das raças humanas e,

posteriormente, da evolução das espécies.

Este interesse encontrou na linguística e na filologia451

campos férteis para o

surgimento de novas interpretações sobre o desenvolvimento dos grupos humanos. Dentro

450 Léon Poliakov aponta outros autores do período que relacionavam o início da trajetória humana ao Oriente

(mais especificamente, à região indiana), como Diderot e Voltaire. Sobre este último, o historiador afirma que, mesmo não associando a Índia ao “berço da humanidade” (por se tratar de um defensor das teorias

poligenistas), Voltaire esforça-se por identificar estas terras como o local onde teria surgido uma nação

primitiva que teria se expandido para outras regiões do globo. Em carta endereçada ao astrônomo Jean Bailly,

o iluminista francês resume suas ideias sobre o tema: “Sou inteiramente de vosso parecer sobre a vossa

afirmação de não ser possível que diferentes povos tenham concordado sobre os mesmos métodos, os mesmos

conhecimentos, as mesmas fábulas e as mesmas superstições, se tudo isso não foi haurido de uma nação

primitiva que ensinou e desencaminhou o resto da terra. Ora, há muito tempo que considero a antiga dinastia

dos brâmanes como essa nação primitiva” (apud POLIAKOV, 1974, 163).

451 É importante observarmos que, para muitos autores do século XIX, havia uma divisão entre filologia

(interpretada como o estudo do grego e do latim) e linguística (estudo das outras línguas). Postura que foi

combatida por alguns estudiosos do período, como o alemão August Fuchs, que, em 1844, defendeu a eliminação desta barreira, “visto que lembra bastante a antiga unilateralidade e o espírito de dominação dos

primeiros [filólogos], pois julgavam que fora o latim e o grego não havia nenhuma outra língua culta e

olhavam com pena e desdém a preocupação com outras línguas, como se se tratasse de uma aberração. Os

pesquisadores que se julgavam privilegiados foram punidos por sua arrogância, uma vez que tiveram que

reconhecer que, graças justamente aos linguistas menosprezados, uma mudança salutar operou-se na filologia

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deste campo, destacamos a atuação de dois autores cujas publicações alcançaram grande

repercussão no século XIX. O primeiro deles foi o soldado, viajante e estudioso francês

Abraham-Hyacinthe Anquetil du Peyron, descrito por Said (1996, 85) como “um excêntrico

teórico do igualitarismo, um homem que conseguia reconciliar na própria cabeça o

jansenismo com o catolicismo ortodoxo e o bramanismo”. Ainda de acordo com este autor,

du Peyron tinha entre seus objetivos iniciais ao explorar determinadas regiões da Ásia

reforçar a veracidade dos relatos bíblicos e comprovar a existência de um povo eleito. No

entanto, grande parte destes objetivos teria sido deixada de lado quando, em 1771, foi

publicada sua tradução para o francês do Avesta (coletânea de narrativas sagradas do

zoroastrismo)452

.

Esta publicação alcançou grande repercussão no período. De acordo com o

pesquisador inglês Raymond Schwab, até então, a busca por informações sobre o passado

remoto do planeta e de seus habitantes se dava, exclusivamente, através do retorno às

Sagradas Escrituras, aos clássicos greco-romanos e a algumas obras de autores judeus e

árabes. Contudo, a obra de du Peyron teria chamado a atenção para um universo de escritos

que permanecia ignorado: “Ele introjetou uma visão de inúmeras civilizações de épocas

passadas de uma infinidade de literaturas; além disso, as poucas províncias europeias não

eram os únicos lugares a terem deixado sua marca na história”. Isto fez com que esta obra

fosse utilizada por alguns autores, entre eles Voltaire, como base para uma crítica dos

textos bíblicos que “até então tinham sido considerados como textos revelados” (apud

SAID, 1996, 85-86).

Nos anos seguintes, novos estudos chamaram ainda mais a atenção dos

estudiosos europeus para o Oriente, como os do inglês William Jones, descrito como o

“indiscutível fundador do orientalismo” (SAID, 1996, 87). Em 1783, este jurista, poeta,

linguista e funcionário da Companhia das Índias Orientais chegou à Índia. Durante sua

longa estada nestas terras, o então fundador da Sociedade Asiática de Bengala pesquisou as

[...] É necessário, portanto, acabar com essa separação odiosa e falsa da filologia e da linguística, dos

filólogos e dos linguistas. Estes não podem dispensar aqueles e vice-versa” (apud SWIGGERS, 1998, 9-10).

452 Em 1786, du Peyron publicou uma nova obra, sua tradução para o francês dos Upanixades (coletânea de

textos hindus).

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semelhanças que existiriam entre o sânscrito, o grego e o latim, além de tentar identificar

elementos em comum entre as mitologias indiana, grega e romana. Outros autores antes

dele já haviam sugerido haver associações entre determinadas características destes três

povos453

, entretanto, Jones foi um dos primeiros a defender a existência de uma língua

anterior – ainda desconhecida – que teria dado origem aos idiomas falados por estes e por

outros grupos:

“[…] the Sanskrit language, whatever be its antiquity, is of a

wonderful structure; more perfect than the Greek, more copious that the Latin

and more exquisitely refined than either; yet bearing to both of them a stronger

affinity, both in roots of verbs and in forms of grammar, than could possibly have

been produced by accident; so strong, indeed, that no philologer could examine

them all three, without believing them to have sprung from some common source,

which perhaps, no longer exists” (apud MUKHERJEE, 1997-1998, 72).

A identificação de uma família linguística “indo-europeia”454

feita por William

Jones, trazia consigo a crença de que o Oriente, em especial as terras indianas, possuíam

vestígios de uma cultura que, possivelmente, indicavam o local de origem da civilização455

.

Esta postura, que apresenta alguns elementos em comum com as ideias do conde de Buffon

apresentadas no início do capítulo, foi reproduzida e aprofundada por diversos autores ao

longo do século XIX. A este respeito, é importante ressaltarmos que, como apontado pelo

453 Entre outros exemplos, podemos citar o mercador florentino Filippo Sassetti que, em meados do século

XVI, já havia apontado a existência de elementos em comum entre o italiano/latim e o sânscrito. Já na

segunda metade do setecentos, o médico e antiquário inglês, James Parsons, ao dividir os grupos humanos e

suas linguagens entre os três filhos de Noé, atribuiu aos descendentes de Jafé as línguas faladas em regiões

como a Alemanha, Itália, Pérsia e Índia (MUKHERJEE, 1997-1998).

454 Ainda que William Jones tenha trabalhado com a ideia de uma família linguística que unia línguas como o

sânscrito, o grego e o latim a um ancestral comum, ele não utilizou a expressão “indo-europeu” em seus

escritos. Este termo só foi criado no início do século XIX, em 1813, pelo físico, linguista e egiptólogo inglês

Thomas Young. Outros autores do período, em particular os alemães Friedrich Schlegel e Franz Bopp,

utilizaram a expressão “indo-germano” para denominar esta família linguística.

455 Apesar dos estudos de Jones terem sido identificados por Said como um dos principais responsáveis por

“retirar os véus” do Oriente, expandindo-o para além do relativo abrigo do Oriente bíblico, autores como

Díaz-Andreu (2007, 223) enfatizam que ele continuava profundamente influenciado pelas teorias bíblicas:

“[Jones] used his research on languages as a mean to identify the descendants of Noah and their dispersal

throughout the world”.

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estudioso alemão Hans Arens (1975, 211), a convicção de que o hebreu era a língua

original falada entre os primeiros humanos e base para todas as outras permaneceu intocada

ao menos até os estudos de Leibniz, o que reforça o impacto das teorias propostas por

Jones.

Esta opinião foi corroborada e aprofundada por Edward Said. Para ele, as

publicações de Jones – e também de du Peyron – teriam sido responsáveis por revelarem

pela primeira vez o Oriente à Europa “na materialidade dos seus textos, línguas e

civilizações”. Além disso, estes autores teriam sido responsáveis pelos dois únicos grandes

projetos “orientalistas” anteriores à invasão do Egito comandada por Napoleão Bonaparte

em conjunto com uma extensa comitiva de estudiosos de diferentes áreas, ocorrida em

1798456

. Juntos, estes eventos teriam dado início ao que Said denomina como “orientalismo

moderno”, momento em que “a Ásia adquiriu urna dimensão histórica e intelectual precisa,

com a qual podia escorar os mitos da sua distância e vastidão geográficas” (SAID, 1996,

84-86).

As ideias de William Jones, ainda que tenham sido alvo de algumas críticas e

contestações457

, foi adotada e aprofundada por grande parte da intelectualidade europeia no

início do século XIX, particularmente na região da Alemanha. Neste período, ganham

destaque os estudos de Karl Wilhelm Friedrich Schlegel458

, filólogo romântico, poeta,

filósofo e diplomata alemão que associou as semelhanças linguísticas identificadas pelo

estudioso inglês – e corroboradas por ele459

– a um parentesco de raça. Assim, o estudo das

456 Para uma análise e descrição da expedição napoleônica ao Egito e suas relações com o orientalismo, Cf.

SAID, 1996; DÍAZ-ANDREU, 2007.

457 Um dos principais críticos das ideias defendidas por Jones foi o gramático alemão Adelung, “que defendia

a tese de uma língua original comum, surgida, ao mesmo tempo que o gênero humano, em Cachemira (onde

situava o jardim do Éden bíblico)” (POLIAKOV, 1974, 169). A própria noção de que as terras indianas eram

o “berço” da civilização não era unânime no período. Como exemplo, Romila Thapar (1996, 4) cita o

economista e filósofo escocês James Mill, que descreve esta região “as backward and stagnant and Hindu

civilisation as inimical to progress”.

458 Mukherjee (1997-1998, 72) afirma que, além de Schlegel, outros três autores foram fundamentais para o

desenvolvimento dos estudos acerca do conceito de línguas indo-europeias: Jakob Grimm, Rasmus Rask e Franz Bopp.

459 “El antiguo sánscrito de la India, que quiere decir culto o perfecto […] tiene enorme parentesco con las

lenguas latina y griega, así como con la germánica y persa. El parecido reside no sólo en el gran número de

raíces que tiene en común con ellas, sino que se extiende también a lo más íntimo de su estructura y

gramática. La coincidencia no es, pues, coincidencia casual que pudiera explicarse por mezcla, sino esencial,

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línguas seria fonte para a identificação de diferenças muito mais profundas entre os grupos

humanos.

De acordo com Schlegel, a crença de que a língua e a evolução espiritual

desenvolveram-se igualmente em todas as partes é “completamente errônea e caprichosa”.

Seus estudos teriam indicado a existência de uma origem superior para a “família

linguística do sânscrito”:

“[...] cómo se ha originado aquella lengua que, si no de todas las

otras, sí fue la lengua originaria y la fuente común de esta familia? Una cosa por

lo menos se puede contestar con certidumbre a esta importante pregunta: se ha

originado no por simples gritos físicos y conatos lingüísticos onomatopéyicos de

todas clases o que consisten en ruidos en los que luego poco a poco intervendría

alguna forma de raciocinio. Más bien esta lengua constituye una prueba más, si

es que no es suficiente el testimonio de tantas otras, de que la condición humana

no comenzó en todas partes con estupidez bestial a la que luego, tras lento y

trabajoso ejercicio, se haya aplicado un poco de actividad intelectiva; revela

además que, si bien no en todas partes, sí por lo menos allí adonde esta

investigación nos conduce, ya desde el principio, tuvo lugar la más lúcida e

íntima reflexión; pues producto y testimonio de la misma es esta lengua que,

hasta en sus partes componentes primeras y más simples, expresa no con

imágenes, sino con claridad inmediata, los más elevados conceptos del mundo de

las ideas y todo el horizonte de la conciencia” (apud ARENS, 1975, 224)460.

y que revela un origen común. De la comparación se infiere, además, que la lengua india es la más antigua,

las otras más recientes y derivadas de aquélla” (apud ARENS, 1975, 217).

460 Ao defender a existência de um grupo linguístico associado ao sânscrito que teria uma origem específica e

superior, Schlegel cita as línguas faladas pelos índios americanos como indícios que confirmariam

definitivamente a impossibilidade de se atrelar todas as línguas existentes no mundo a uma única origem

comum. De acordo como Mónica Quijada (1996, 253), Schlegel chegou a se surpreender com as analogias

que existiriam entre a cultura quíchua e a indiana. Contudo, estas associações não poderiam ser utilizadas para defender uma ligação direta entre povos tão distantes (ainda que o estudioso alemão aceite a possibilidade de

uma migração de grupos estrangeiros para o Novo Mundo como resposta para estas semelhanças): “[...] los

nativos americanos habían sido relegados de la Historia Universal porque, como el propio Friedrich

Schlegel sostuviera años antes, sólo las naciones de origen indoeuropeo y los pueblos vinculados a ese origen

formaban parte integral de la Historia Universal. Aquellos otros que carecieran de ese vínculo original

pertenecían, no a la Historia del Hombre, sino a la Física, a las Ciencias Naturales porque, incultos y

aislados, eran curiosidades sin relación con ‘la totalidad’, y en la Historia Universal sólo podían incluirse

pueblos y acontecimientos que hubieran ejercido influencia sobre ‘el conjunto del linaje humano’. Esos

pueblos marginados de la Historia Universal, según Schlegel, eran los Tártaros, los Etíopes y los Indígenas

Americanos”.

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Assim, o autor estabelece uma clara oposição. De um lado, estariam os grupos

que possuíam línguas associadas ao sânscrito, descritos como mais desenvolvidos do que os

outros existentes no período. Partindo da noção de que “tudo, absolutamente tudo, é de

origem indiana”, Schlegel defende que esta região teria sido o local onde havia surgido um

povo que, impelido “por alguma coisa de mais elevado [...] do que o aguilhão da

necessidade” teria empreendido um longo processo de imigração em direção ao oeste sendo

responsável pela criação de civilizações como a egípcia, cujas amplas e complexas

construções refletiriam sua grandeza “original”: “Assim, não acharemos estranha esta ideia

[...] que as maiores nações saíram de um mesmo tronco, e que as nações, tomando-as em

sua origem direta ou indiretamente, não são mais do que colônias indianas” (apud

POLIAKOV, 1974, 169-170). Do outro lado, estariam povos como os semitas,

denominados como bárbaros e atrasados. Esta inferioridade, segundo o autor, poderia ser

“confirmada” através do idioma falado por eles, o hebraico, descrito como uma língua

aglutinante (o que, como veremos a seguir, foi interpretado por muitos autores como

evidência de um desenvolvimento limitado) e feita para a expressão profética e a

adivinhação.

Como apontado por Said, as ideias de Schlegel, em particular suas restrições

aos semitas e aos outros povos orientais “inferiores”, estavam amplamente difundidas na

cultura europeia. Contudo, há neste período, pela primeira vez, a transformação de um

discurso baseado no conceito raça em um tema “científico”461

. Processo que pode ser

observado em áreas como a da linguística comparada e a da filologia: “linguagem e raça

pareciam indissoluvelmente ligadas, e o ‘bom’ Oriente era invariavelmente um período

clássico em algum lugar de uma Índia havia muito desaparecida, enquanto o Oriente ‘ruim’

pairava na Ásia atual, em partes da África do Norte e no islã por toda a parte” (SAID, 1996,

108).

461 De acordo com Lilia Moritz Schwarcz (1993, 47), o “termo raça é introduzido na literatura mais

especializada em inícios do século XIX por Georges Cuvier, inaugurando a ideia da existência de heranças

físicas permanentes entre os vários grupos humanos”.

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Associado a estas ideias, há, neste período, uma disseminação crescente do

conceito de povo/raça “ariano” (termo já utilizado anteriormente com outros sentidos por

autores como Anquetil du Peyron e cujas origens remontam aos escritos de Heródoto).

Ainda que Schlegel nunca tenha utilizado esta expressão em seus livros, a ideia de que

existia uma raça ariana originária das regiões da Pérsia e da Índia que teria migrado em

direção ao continente europeu e cuja trajetória e principais características poderiam ser

inferidas através da análise das línguas faladas por seus descendentes foi profundamente

influenciada por suas teorias e interpretações.

A defesa da existência de uma língua primordial que teria dado origem ao

sânscrito e, posteriormente, ao grego, ao latim e a outros idiomas existentes na Europa

associada a uma raça específica e superior a todos os outros grupos humanos, a ariana,

encontrou em Max Müller um de seus principais defensores e divulgadores. Para este

filólogo e orientalista de origem alemã que atuou boa parte de sua vida na Inglaterra, os

estudos produzidos nas décadas iniciais do século XIX462

teriam evidenciado, para além de

qualquer dúvida, a existência de um “ramo linguístico”463

– e, consequentemente, de uma

raça – superior a todos os outros, que encontraria no sânscrito um de seus elementos mais

antigos, ainda que não o original (MÜLLER,1944, 168).

Segundo este autor, havia uma lógica no desenvolvimento das línguas, que

poderiam ser divididas em três estágios de complexidade464

. Esta divisão foi incorporada

462 Em suas “lições”, proferidas em universidades inglesas na década de 1860 e publicadas posteriormente, Müller defende que as obras produzidas no início do século XIX foram fundamentais para o que ele denomina

como o “descobrimento de um novo mundo”. Em relação a Schlegel, o autor é extremamente crítico,

definindo-o como um autor “pouco sábio” cujas obras e argumentos poderiam ser facilmente

“ridicularizados”, “pero era un hombre de genio, y, cuando se trata de crear una ciencia nueva, la

imaginación del poeta es más necesaria aún que la exactitud del sabio”. Dessa forma, apesar dos muitos

erros, as ideias de Schlegel teriam atuado como uma “varinha mágica”, indicando o local correto onde os

outros autores deveriam concentrar seus esforços, o que teria sido feito por, entre outros, Franz Bopp, descrito

por Müller (1944, 163-166) como o responsável pela “primera comparación detallada y verdaderamente

científica que se ha establecido entre la gramática del sánscrito y la del griego, del latín, del persa y del

alemán”.

463 Faremos menção a expressões como “ramo”, “família” e “tronco” linguístico de acordo com os termos utilizados pelos autores analisados.

464 Para Müller, assim como para outros autores antes dele (como os já citados Schlegel e Bopp), as línguas

poderiam ser divididas em três grupos: as “isolantes”, como o chinês, onde todas as palavras eram raízes; as

“aglutinantes” (também denominadas por alguns autores como turânicas), como o turco, o mongol e o

quíchua, que se caracterizavam pela incorporação de afixos que não modificavam formalmente a raiz das

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pelo autor a uma interpretação hierarquizadora, onde o grupo ariano465

ocupa o ápice da

escala de desenvolvimento não apenas no campo linguístico, mas também no

desenvolvimento intelectual, o que se refletiria em seus costumes, construções e crenças.

Seguindo esses critérios, Müller estabelece uma correspondência entre as línguas e as

formas de organização social dos grupos humanos. Para ele, as línguas “isolantes” ocupam

um estágio inferior, denominado como “fase familiar”. Já as “aglutinantes” seriam

associadas a povos nômades. Por fim, teriam surgido as línguas “reflexivas”, mais

complexas e avançadas, restritas apenas aos arianos e seus descendentes, que teriam

alcançado o auge do desenvolvimento intelectual, político e estatal.

De acordo com Müller, as diferenças de desenvolvimento existiam até mesmo

dentro da raça ariana. Ainda que houvesse elementos em comum responsáveis por fazer

com que “when a Briton confronted a Greek, a German, or an Indian, we recognize him as

one of ourselves” (apud DÍAZ-ANDREU, 2007, 224), os arianos possuíam características

díspares entre si, o que o teria levado a identificar a existência de dois subgrupos. Um

deles, o mais combativo, teria partido em direção a oeste, alcançando a Europa através de

diferentes vias que culminavam nas regiões da França e da Alemanha (MÜLLER, 1944,

palavras; e as “flexivas”, onde as raízes eram modificadas pelos afixos, que correspondiam à família das

línguas indo-europeias ou arianas (QUIJADA, 1996). Segundo o próprio filólogo alemão, “todas las lenguas

aglutinantes han empezado por ser monosilábicas. He dicho nuestra teoría; pero es más que una teoría: es la

única manera posible de explicar los fenómenos gramaticales que nos ofrece el sánscrito o cualquier otra

lengua de flexiones. En lo que toca a la forma del lenguaje, llegamos infaliblemente a esta conclusión: que

las flexiones han sido precedidas por la aglutinación, y la aglutinación por el monosilabismo”. Dessa forma:

“Un chino apenas puede comprender que sea posible el lenguaje se todas las sílabas no llevan consigo su significación; un turanio menosprecia todos los idiomas en que cada palabra no deja ver distintamente su

elemento radical y significativo; mientras que nosotros, acostumbrados a servirnos de lenguas de flexiones,

nos enorgullecemos de una gramática de que no harían ningún aprecio un chino y un turanio” (MÜLLER,

1944, 317).

465 Müller (1944, 232-241) dedica grande esforço à tentativa de definir a origem da palavra “ariano”,

associando-a a um grupo humano específico: “Aria es una palabra sánscrita, y en el sánscrito de la época

que llamaremos moderna significa noble, de buena familia. Pero originalmente era un nombre nacional […]

en los himnos de los Vedas, aria se encuentra frecuentemente como el nombre de una nación, como un título

de honor, que designa a los adoradores de los dioses que invocan los brahmanes, y que los distingue de sus

enemigos; a éstos se los llama en los Vedas Dasyus […] Pero de donde había venido primitivamente ese

nombre de arya es una cuestión cuyo examen profundo nos pediría demasiado tiempo. Por ahora debo limitarme a decir que la significación etimológica de arya parece ser ‘el que labra o cultiva’, y que esa voz se

liga a la raíz de arare. Quizá los arios mismos elegirían ese nombre para distinguirse de las razas nómadas,

los turanios, cuyo nombre primitivo tura expresa la velocidad del jinete”. Ainda segundo o autor, esta palavra

teria se perdido na Índia, sendo utilizada por muitos anos apenas pelos discípulos de Zoroastro que teriam

migrado para terras a noroeste.

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236

238). Já o segundo, descrito como mais passivo e meditativo, teria rumado para a Pérsia, se

fragmentando ainda mais neste local (THAPAR, 1996, 5). Novamente, podemos observar

que Müller reforça uma visão hierarquizadora dos grupos humanos que poderia ser

atribuída às suas origens, localizando na Europa o fim de um longo processo de migração e

o auge do desenvolvimento de uma raça/civilização.

Postura e ideias semelhantes às de Müller foram reproduzidas por dezenas de

outros autores ao longo de praticamente todo o século XIX466

. Entre eles, podemos citar a

obra de Adolphe Pictet, Les origines Indo-Européennes ou les Aryas Primitifs (1859)467

.

Nela, o linguista genebrino faz uma defesa enfática da associação identificada por ele entre

raça, língua, civilização e – ainda que indiretamente – religião. Para este autor, graças à

Providência Divina468

, os avançados e sábios povos arianos teriam se espalhado pelo

mundo, subjugando raças bárbaras e inferiores469

.

Em sua obra, assim como em boa parte dos exemplos citados acima, a

comparação linguística ocupa um papel fundamental como base para as conclusões. Para

ele, a palavra teria o mesmo poder de transmitir informações sobre o modo de vida dos

povos ancestrais quanto um vestígio material (como um osso humano), o que o leva a

466 A atuação de Müller como propagandista do arianismo na Inglaterra é comparada por Poliakov (1974, 246)

a de Ernest Renan nos países latinos: “Em torno deles, multidão de autores menores alardeavam seu

imperialismo linguístico de uma forma mais ingênua”.

467 Segundo Pictet, sua obra havia sido planejada em dois volumes. No primeiro, citado acima, seu foco seria

a análise linguística, já o segundo se concentraria nas reflexões sobre o estágio de civilização que teria sido alcançado pelos arianos antes do início do longo processo de expansão e fragmentação.

468 Poliakov (1974, 247) afirma que, ao defender que foram povos de origem ariana que sustentaram o

cristianismo (os gregos teriam acolhido esta crença, os romanos, a propagado, e os germânicos, a reforçado),

Pictet estabelece em sua obra uma confusão entre a raça ariana e o povo cristão.

469 “A une époque antérieure à tout témoignage historique, et qui se dérobe dans la nuit des temps, une race

destinée par la Providence à dominer un jour sur le globe entier, grandissait peu à peu dans le berceau

primitif où elle préludait à son brillant avenir. Privilégiée entre toutes les autres par la beauté du sang, et par

les dons de l’intelligence, au sein d’une nature grandiose mais sévère, qui livrait ses trésors sans les

prodiguer, cette race fut appelée dès le début à conquérir par le travail les conditions matérielles d’une

existence assurée, à mettre en jeu les ressources d’une industrie persévérante pour s’élever au-dessus des

premières nécessités de la vie [...] Tout en croissant ainsi joyeusement en nombre et en prospérité, cette race féconde travaillait à se créer, comme puissant moyen de développement, une langue admirable par sa

richesse, sa vigueur, son harmonie et la perfection de ses formes [...] D’abord une et homogène, cette langue,

déjà parvenue à un très-haut degré de perfection, servit d’organe commun à ce peuple primitif tant qu’il ne

dépassa pas les limites de son pays natal. Mais un accroissement constant et rapide de la population dut

amener bientôt des migrations graduelles, et de plus en plus lointaines” (PICTET, 1859, 1-2).

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defender o conceito de “paleontologia linguística”, uma vez que “la langue d’un peuple

présent l’image la plus fidèle de toute sa manière d’être” (PICTET, 1859, 6-7). Seguindo

estas premissas, o autor defende que o zend e o sânscrito seriam as línguas mais próximas

da “original”, ainda desconhecida, que só poderia ser apreendida indiretamente através de

suas derivações470

. Na tentativa de reforçar sua teoria e anular possíveis críticas, Pictet

afirma que qualquer palavra, conceito ou característica presente em um povo reconhecido

por ele como de origem ariana que não possuísse uma raiz comum identificável teria sido

fruto de um desenvolvimento posterior à dispersão empreendida pelos grupos arianos

originais ou de uma degeneração causada pelo distanciamento temporal, que teria feito os

descendentes destes povos esquecerem seu nome original. Dessa forma, as semelhanças

reforçam sua teoria e as diferenças, também.

Ainda que Müller tenha renegado posteriormente algumas de suas hipóteses,

em especial as que associavam a raça ariana às línguas indo-europeias471

, o que, para alguns

autores, seria resultado de seu contato com os estudos de Charles Darwin (DÍAZ-

ANDREU, 2007, 224-225), a ligação entre raça, língua, civilização e o conceito de povo

ariano permaneceram sendo muito utilizados ao longo do século XIX e em parte do XX,

com implicações em campos que iam desde a política inglesa em relação às suas colônias472

470 Pictet (1859, 38) resume seu método de análise linguística a algumas regras: 1) reunir a mesma palavra em

várias línguas; 2) usar o sânscrito como base para as comparações; 3) na falta do sânscrito, procurar a palavra

em outras línguas orientais e compará-la com as raízes do sânscrito; 4) analisar as leis fônicas que explicam as

mudanças de letras; 5) levar em conta constantemente o acaso; 6) ter cautela ao formular conclusões, tendo

em mente seu valor relativo.

471 Em conferência proferida na Universidade de Estrasburgo, em 1872, Müller alerta que a linguística e a

etnologia deveriam ser interpretadas como campos separados, o que evitaria a associação entre língua e raça:

“Existem línguas arianas e semíticas, mas é anticientífico falar, a menos que nos demos conta da licença que

nos permitimos, de raça ariana, de sangue ariano, ou de crânios arianos”. Poliakov (1974, 194), entretanto,

ressalta que estas ressalvas obtiveram repercussão praticamente nula, fazendo com que as ideias expostas

anteriormente por Müller continuassem sendo divulgadas em manuais e enciclopédias. Além disso, Romila

Thapar (1996, 6) afirma que, mesmo depois de recuar em relação às ligações entre raça e língua, Müller

continuou a escrever obras que associavam diretamente estes dois conceitos: “as is evident from his

description of Raja Ram Mohan Roy in an Address delivered in 1883: ‘[He] was an Arya belonging to the

south-eastern branch of the Aryan race and he spoke an Aryan language, the Bengali… We recognize in Ram

Mohan Roy’s visit to England the meeting again of the two great branches of the Aryan race, after they had been separated so long that they had lost all recollection of their common origin, common language and

common faith’”.

472 Mukherjee (1997-1998, 74) cita o caso de J. Wilson que, em 1838, declarou que os ingleses seriam

descendentes do mesmo povo – os arianos – que, milhares de anos antes, teriam invadido e conquistado a

Índia: “So the British were the legal and justifiable successors of the early Aryans in India”. As questões em

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238

até o fortalecimento de um discurso antissemita e a ascensão do regime nazista na

Alemanha (Cf. POLIAKOV, 1974). De nossa parte, acreditamos que estes conceitos

também foram fundamentais para muitas das reflexões sobre a questão da origem dos

indígenas produzidas no período.

***

Ainda que praticamente não haja menções à América e a seus habitantes nas

páginas anteriores, consideramos fundamental iniciar o último capítulo da tese com um

breve esboço sobre o surgimento de conceitos como o de línguas indo-europeias e de raça

ariana473

por uma série de razões. Em primeiro lugar, esta decisão decore da percepção de

que eles foram intensamente utilizados por dezenas de autores em suas reflexões sobre o

Novo Mundo, tanto para reforçar a imagem dos índios como grupos inferiores e

“originalmente” afastados da civilização (como no caso de Schlegel, citado em nota acima)

quanto para, como pretendemos demonstrar adiante, identificar entre os americanos – ou ao

menos em alguns grupos específicos – uma ligação direta com os povos mais

desenvolvidos e “civilizados” do mundo, ou, até mesmo, para localizar neste continente o

“berço” da civilização “original” que teria, posteriormente, migrado em direção às terras do

Velho Mundo.

torno das origens teriam influenciado até o alistamento militar, que privilegiava indianos oriundos de regiões

como o Nepal, Punjab e Rajastão que, teoricamente, teriam ascendência ariana (DÍAZ-ANDREU, 2007, 224).

É interessante observamos que o conceito de ariano também foi utilizado por grupos indianos. No final do

século XIX, indianos que ocupavam as camadas médias da população buscaram elementos identitários nos

primórdios do processo de ocupação do território indiano: “It was assumed that only the upper caste Hindu

could claim Aryan ancestry. This effectively excluded not only the lower castes but also the non-Hindus, even

those of some social standing. Aryanism therefore became an exclusive status. In the dialogue between the

early nationalists and the colonial power, a theory of common origins strengthening a possible link between

the colonizers and the Indian elite came in very useful. For early nationalism, Aryan and non-Aryan

differentiation was of an ethnic and racial kind, but was also beginning to touch implicitly on class differentiation” (THAPAR, 1996, 9).

473 Consideramos importante ressaltar que não pretendemos abordar nestas poucas páginas todos os

estudiosos, teorias e desdobramentos em torno destes conceitos. Nosso critério foi o de fazer referência aos

textos e autores citados com maior frequência pelas obras que analisaram o problema da origem dos indígenas

neste período.

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239

Um segundo aspecto que reforça nossa decisão é a identificação nos relatos que

abordam os primórdios da ocupação humana na América de uma estreita relação entre as

ideias de “raça” e “civilização” semelhante à presente em boa parte dos escritos citados nas

páginas anteriores. Seja através de medições cranianas ou comparações de hábitos, crenças,

construções ou línguas, muitos autores do século XIX identificaram os americanos como

uma raça com características específicas e, em muitos casos, exclusivas, ou, o que também

foi bastante comum, a existência de mais de uma raça entre os indígenas.

Em ambos os casos, há em comum uma visão hierarquizadora atrelada às

origens, presente tanto entre aqueles que atribuem aos indígenas como um todo um estágio

intermediário dentro da escala de grupos humanos quanto entre os que identificam

determinados povos americanos como “originalmente” superiores ou inferiores aos outros.

Através dessas diferenciações, fica evidente que, em muitas das obras que abordaram o

processo de colonização do continente americano, a procedência dos primeiros

colonizadores e as possíveis ligações existentes entre eles e os povos do Velho Mundo, se

parte do princípio de que a “civilização” possui um local de origem de onde teria se

expandido para outras regiões do planeta, o que teria deixado marcas indeléveis em todos

os seus descendentes, diferenciando-os do restante da humanidade.

A associação entre raça e civilização também traz consigo a ideia de

degeneração. Para muitos dos autores citados acima, este conceito é fundamental para as

suas interpretações sobre as diferenças que existiriam entre os povos474

. Processo

semelhante ocorreu entre aqueles que analisaram a colonização do continente americano.

Em muitos casos, a degeneração, que seria fruto de fatores como o prolongado isolamento

474 Entre outros exemplos, podemos citar Adolphe Pictet, que, como vimos acima, identifica um processo de

degeneração ocorrido entre alguns povos arianos como resposta para a existência de características e

comportamentos distantes do “esperado” para estes grupos. O conceito de degeneração também teria sido

fundamental para as reflexões sobre as diferenças que existiriam entre os atuais e os pioneiros habitantes da

Índia: “Several scholars – including some interested in coins and monumental art – argued that the Aryans

had degenerated in India. This was the case with James Tod […] It was also the case with James Fergusson

(1808–86), one of the most influential scholars of the time […] In his History of Indian and Eastern Architecture (1876), Fergusson saw Indian monuments as reflecting miscegenation (not his word), that is,

racial intermarriage between Aryans and people belonging to inferior races […] However, some scholars

proposed that, although the Indian Aryans had diverged from the path of progress, their decline was only

momentary, as they shared the capacity for regeneration inherent within all Aryans. Among those expressing

that opinion was, in 1862, Samuel Laing (1780–1868)” (DÍAZ-ANDREU, 2007, 224-225).

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do Novo Mundo em relação ao Velho e a mistura entre povos de diferentes origens e graus

de desenvolvimento, foi apontada como “resposta” para as características de determinados

grupos indígenas.

A este respeito, é importante ressaltarmos que, como apontado por Quijada

(1996, 245-254), o anseio de classificação que veio do século XVIII, presente em autores

como Lineu e Buffon475

, se misturou no XIX com a busca pela hierarquização onde

“subyacía el interés por resaltar la superioridad propia en contraste con la inferioridad

ajena”, o que leva a historiadora a concluir que “en la construcción de la diversidad

jerarquizada el pensamiento científico había asumido que la supremacía actual

determinaba la supremacía original”. Esta hierarquização teria encontrado no discurso

científico sobre as diferentes raças humanas um campo fértil, onde, pela primeira vez, a

humanidade dos indígenas passou a ser questionada (CUNHA, 1992, 134).

De acordo com Poliakov, boa parte do sucesso do “mito ariano” como algo

comprovado “cientificamente” poderia ser explicado pelo desejo existente no período entre

muitos autores de se distanciar da “antropodiceia da Bíblia”476

. Entretanto, isto não

significa que as questões religiosas tenham sido abandonadas. Como pudemos observar,

para autores como Adolphe Pictet os conceitos de línguas indo-europeias e, principalmente,

de raça ariana estavam profundamente associados à trajetória do cristianismo477

. Processo

semelhante também pode ser identificado entre os autores que abordaram a questão da

origem dos índios a partir dessas premissas. Persiste, em muitos deles, a tentativa de

integrar o passado remoto dos americanos à cosmologia cristã, ainda que, muitas vezes, a

partir de premissas e conceitos diferentes dos utilizados anteriormente. Não por acaso,

475 “[...] os teóricos raciais do século XIX referiam-se constantemente aos pensadores do século XVIII, mas

não de maneira uniforme. Enquanto a literatura humanista e em especial Rousseau apareciam como seus

principais antagonistas – em sua defesa de uma humanidade una –, autores como Buffon e De Pauw eram

apontados como grandes influências quando se tratava de justificar diferenças essenciais entre os homens”

(SCHWARCZ, 1993, 43).

476 “A teoria ariana inscreve-se, pois, efetivamente na tradição anticlerical ou antiobscurantista e faz parte das primeiras tentativas das ciências humanas, que, procurando tomar como modelo as ciências exatas, se

empenhavam nesta época em seu secular impasse mecanicista e determinista” (POLIAKOV, 1974, 327).

477 Díaz-Andreu (2007, 227) cita autores do período, como Alexander Cunningham e Frederic Farrar, para

quem “the adoption of Christianity had stimulated the European Aryans towards progress, and therefore it

was their duty to convert Indians, especially the more Aryan upper castes, to the faith of Christ”.

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foram produzidas neste período obras que, por exemplo, identificavam determinados

grupos indígenas como mais próximos da criação divina do que os outros habitantes do

continente, a existência de um “casal original” criado por Deus exclusivamente para o

Novo Mundo ou, ainda, que estas terras teriam sido o local de criação da língua falada por

Adão.

Outro elemento presente entre os autores citados nas páginas anteriores que

também foi fundamental para as obras que abordaram o início da ocupação humana do

continente americano e, particularmente, a origem desses grupos pioneiros, é a associação

entre o passado remoto da humanidade e a construção de uma memória nacional a partir do

conceito de civilização. Em muitos dos casos mencionados acima há o estabelecimento de

uma relação direta entre os primeiros povos identificados como “civilizados” e o processo

de formação dos países europeus. A própria utilização de conceitos como o de “indo-

europeu” e “indo-germano” é exemplar a este respeito. No primeiro caso, a civilização que

teria surgido na região da Índia há milhares de anos teria percorrido um longo caminho até

alcançar a Europa. Já no segundo, há uma interpretação ainda mais específica, uma vez que,

dentro do continente europeu, a região da Alemanha seria aquela onde culminaria esta

“marcha da civilização”.

As reflexões de Mónica Quijada (1996, 243-269) sobre este tema são

esclarecedoras. De acordo com a pesquisadora argentina, a história, neste período,

funcionou como um dos pilares da elaboração de mitologias e visões seletivas do passado

destinadas a reforçar os mecanismos de identificação grupal e traçar uma linha divisória

que singularizava uma comunidade determinada em relação às outras. Esta busca estava

diretamente associada a uma “vontade de hierarquização”, com o estabelecimento de

características e valores relacionados ao grupo original selecionado que seriam

fundamentais para o desenvolvimento, uma vez que “los que no compartían esas raíces

eran inferiores, precisamente porque no compartían la misma capacidad para la

civilización”. Assim, ao empreender uma busca seletiva no passado remoto, a história podia

auxiliar na determinação do “impulso inicial”, o momento em que se situa a origem de uma

comunidade própria: “Por ello, la definición de ese grupo primigenio, cuna de la

nacionalidad, no era inocente ni neutral, porque él era portador de las cualidades

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específicas que, a su vez, se proyectaban sobre el presente y permitían trazar augurios

para el porvenir” (1996, 244)478

.

Esta forma específica de instrumentação das origens, característica – mas não

exclusiva – do século XIX, também esteve presente nos processos de construção de uma

identidade nacional nas colônias americanas recém-independentes que, mesmo distantes

geograficamente da Europa, "se hallaban inmersa en las corrientes del pensamiento

occidental y formaba parte intrínseca de ellas” (QUIJADA, 1996, 244-245). No entanto, é

preciso ter em mente que o processo de formação dos países latino-americanos possui

especificidades. Como apontado por François-Xavier Guerra, a construção das nações

modernas479

na América Ibérica precede a da maioria dos estados europeus (como a

Alemanha e a Itália) e se constitui como um dos primeiros casos de países que, para

fundamentarem sua existência, apelaram à soberania da nação e à vontade de seus

habitantes.

O surgimento das nações na América Ibérica, contudo, não teria sido precedido

por movimentos “nacionalistas”. Como apontado por José Carlos Chiaramonte (1993, 50),

as interpretações que identificam uma “sequência” entre nacionalidade, Estado nacional e

nação “no nos parece que refleje el caso de los países que surgen del colpaso de la

dominación hispana”. Para este historiador argentino, esta perspectiva seria fruto da

vontade nacionalizadora da “primeira historiografia nacional” do século XIX, que

influenciou de maneira decisiva boa parte da historiografia latino-americanista posterior:

478 Processo resumido pela historiadora em texto posterior: “si la nación fue el producto de una creación

histórica moderna, lo que le dio fuerza y continuidad fue la desaparición en el imaginario colectivo de su

carácter de ‘invención en el tiempo’, y su consecuente sustitución por una imagen de la nación propia como

algo inmanente, además de singular y auto afirmativo y, en tanto tal, receptáculo de todas las lealtades”

(QUIJADA, 2003, 289).

479 Guerra (2003, 8) define o conceito de nação moderna como: “una nueva manera de concebir una

colectividad, como una forma ideal e inédita de organización social, como un nuevo modo de existir al cual

pueden aspirar grupos humanos de naturaleza muy diferente. La nación aparece así como un nuevo modelo

de comunidad política, síntesis de diversos atributos ligados entre sí; como una combinatoria inédita de

ideas, imaginarios, valores y, por ende, de comportamientos, que conciernen la naturaleza de la sociedad, la

manera de concebir una colectividad humana: su estrutura íntima, el vínculo social, el fundamento de la obligatoriedad política, su relación con la historia, sus derechos…”. Já Quijada (2003, 289), a partir dos

argumentos de Anthony D. Smith, afirma que existem dois conceitos de nação atualmente, o cívico/territorial

e o étnico/genealógico: “El primer concepto de nación suele identificarse con el sistema francés; el segundo,

con el alemán. Sin embargo, como el proprio Smith ha señalado, ambos conceptos están lejos de constituir

departamentos estancos, puesto que uno y otro están presentes en los procesos de construcción nacional”.

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“El afán por afirmar los débiles estados surgidos del derrumbe ibérico, fomentando la

conciencia de una nacionalidad distinta, propósito explícito en esa historiografía, facilitó

la generalizada suposición de que la Independencia fué fruto de la necesidad de autonomía

de nacionalidades ya formadas”.

Este “nascimento precoce”, nos dizeres de Guerra, evidenciaria “la distancia

que separa la nación como comunidad política soberana de la nación como una asociación

de individuos-ciudadanos y de la nación como identidad colectiva, con un imaginario

común compartido por todos sus habitantes. De ahí que la nación sea en los países latino-

americanos a la vez un punto de partida y un proyecto todavía en parte inacabado”

(GUERRA, 2003, 9). Dessa forma, o historiador defende que as nações americanas sofriam

de um “déficit de legitimidade” que, entre outras ações, gerou um retorno ao passado pré-

colombiano – onde as expedições às ruínas de antigas cidades indígenas como Palenque,

descritas no capítulo anterior, ocupam um papel central – em busca de elementos que

pudessem fazer parte da identidade nacional480

.

O retorno aos primórdios da ocupação humana no Novo Mundo tendo como

base conceitos como o de nação e civilização, porém, trazia consigo algumas dificuldades.

Novamente, Quijada (1996, 246) nos auxilia a este respeito. Situar a origem em um período

anterior à chegada das embarcações europeias ao Novo Mundo “entrañaba una

contradicción con las clasificaciones que adscribían a una escala rígidamente jerárquica

la supuesta capacidad – o incapacidad – para la civilización y la libertad de los diversos

pueblos, razas o naciones. Escala en cuyos peldaños superiores nadie había situado a los

pueblos nativos del Nuevo Mundo”.

480 “En Hispanoamérica [...] se añade ahora, de manera mucho más fuerte que anteriormente, una revisión

del pasado precolombino, revalorizado para convertirlo en una antigüedad clásica, análoga y compatible

con la grecorromana, con el fin de darles a los americanos un pasado propio y glorioso y permitirles

distinguirse, una vez más, de los europeos. Esta revalorización es, sin embargo, una empresa difícil, puesto

que es realizada por los criollos, cuyo estatuto social superior en la sociedad procede de su condición de ‘españoles’, descendientes de los conquistadores y pobladores de las Indias, en contraposición con los

pueblos conquistados. La unificación de ambos grupos es en buena medida retórica, ya que se funda

solamente en el nacimiento en el mismo suelo, pero, a pesar de ello, tiene la ventaja de hacer posible un

discurso unificador de todos los habitantes de América por oposición a los peninsulares, discurso que será

utilizado con cierto éxito en las guerras de Independencia” (GUERRA, 2003, 203-204).

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244

Como poderemos observar com mais detalhes adiante, as respostas formuladas

por muitos autores do período para esta “contradição” foram as mais diversas. Todavia,

podemos identificar um aspecto comum a praticamente todas elas: o estabelecimento de

divisões entre os indígenas levando-se em conta tanto o tempo quanto o espaço. Neste

ponto, mais uma vez, a questão das origens do homem americano ocupa um papel

determinante. Grupos nativos com grandes obras arquitetônicas, governos relativamente

centralizados e vestígios de escrita, interpretados por grande parte dos autores do período

como evidências de civilização, teriam uma origem diferente da atribuída aos “bárbaros”

povos nômades que habitariam outras regiões do continente. Da mesma forma, outros

autores defendiam que estes “civilizados” construtores se limitariam ao passado, não

podendo ser associados aos atuais habitantes destas terras. Através destes exemplos – e

outros, que serão apresentados nas páginas seguintes – pretendemos deixar claro que a

multiplicidade “original” dos indígenas foi um conceito fundamental para as reflexões

elaboradas no período sobre o Novo Mundo e seus habitantes.

Um último aspecto presente nas reflexões sobre o Oriente citadas no início do

capítulo que também exerceu influência nas representações dos indígenas feitas no período

foi a visão da língua como fonte confiável para se obter informações sobre o passado

distante da humanidade e as diferenças que existiriam entre seus diversos grupos. Como

apontado por Pedro Paulo Funari (1999), os estudos e teorias sobre as línguas ocuparam um

papel central a partir do final do século XVIII e ao longo de todo o XIX, época fortemente

marcada pelos ideais românticos que as associavam a locais, paisagens e climas

determinados: “expressões individuais de povos específicos, a serem guardados

ciosamente”.

Este interesse, impulsionado por obras como as de Anquetil du Peyron e

William Jones e por descobertas arqueológicas em locais como o Egito (em especial a

pedra de Roseta481

), teria levado ao desenvolvimento da filologia histórica que, a partir dos

conceitos de troncos e famílias linguísticas, defendia haver em todas as línguas elementos

481 Segundo Pratt, descobertas como essa indubitavelmente inspiraram os interesses de autores como

Humboldt, que viajaram e escreveram textos sobre o continente americano: “Um poderoso modelo para a

redescoberta arqueológica da América foi o Egito. Lá também os europeus estavam reconstruindo uma

história perdida por meio da e como ‘redescoberta’ de monumentos e ruínas” (PRATT, 1999, 231).

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245

que permaneceriam inalterados mesmo após grandes períodos. As características imutáveis

atribuídas às línguas permitiriam identificar com precisão seus locais de origem bem como

seus processos de dispersão para outras regiões. Ainda segundo Funari (1999), os

linguistas, “ao relacionarem o grego ao sânscrito e ao criarem a noção de indo-europeus,

elevaram, paralelamente, a Philologie ao estatuto de ciência exata (Wissenschaft), acima da

necessidade de evidências históricas externas que validassem seus esquemas

interpretativos”482

.

A associação estabelecida por muitos autores do século XIX entre língua e raça

aproximou a linguística a áreas como a da antropologia. Em ambos os casos, havia um

grande interesse em identificar diferenças e hierarquias entre os diversos grupos humanos,

onde a “raça branca” era interpretada como sendo a “portadora de una cultura que se

manifestaba a través de una misma familia de lenguas, las lenguas indogermánicas o

indoeuropeas, y que era la única que llevaba en sí el germen de los más altos desarrollos

en el proceso de las civilizaciones. Quedaba así consagrada la convergencia de la

diversidad cultural jerarquizada con la diversidad biológica jerarquizada” (QUIJADA,

1996, 252). Seguindo estes critérios, os estudos e comparações entre diferentes línguas

permitiriam obter informações mais “confiáveis” do que as fornecidas por outras fontes,

como os relatos de viajantes coloniais483

sobre o passado remoto da humanidade. Esta

postura pode ser observada em vários estudiosos europeus do período, como Friedrich

Schlegel484

e Max Müller485

, e também esteve presente em muitas das obras que abordaram

482 Ao analisar a importância da filologia para os intelectuais do século XIX, Said (1996, 141) destaca o papel

de Ernest Renan. Para este filósofo e historiador francês, “os fundadores da mente moderna são filólogos”: “A

filologia, continua, é ao mesmo tempo uma disciplina comparativa possuída apenas por modernos e um

símbolo da superioridade moderna (e europeia) [...] A tarefa da filologia na cultura moderna (uma cultura que

Renan chama de filológica) é continuar a ver a realidade e a natureza claramente, expulsando assim o

sobrenaturalismo, e continuar a acompanhar o ritmo das descobertas das ciências físicas. Mais que tudo isso,

porém, a filologia permite uma visão geral da vida humana e do sistema das coisas: ‘Eu, estando lá, no centro,

inalando o perfume de tudo, julgando, comparando, combinando, induzindo desta maneira poderei chegar ao

próprio sistema das coisas”.

483 Para uma análise das mudanças epistemológicas ocorridas a partir do século XVIII, Cf. CAÑIZARES-ESGUERRA, 2011.

484 Para quem, entre os principais objetivos das “ciências da linguagem” estava o de elucidar as origens

históricas e os progressos das nações (ARENS, 1975).

485 “Aunque se destruyesen todos los documentos históricos y todos los libros [...] el lenguaje, por

degenerado que estuviese, conservaría aún los secretos del pasado, y daría a conocer a las generaciones

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o passado americano. Não por acaso, autores com escritos que alcançaram grande

repercussão entre seus contemporâneos, como o francês Charles Étienne Brasseur de

Bourbourg, o argentino Vicente Fidel López e o brasileiro Francisco Adolpho de

Varnhagen (que serão analisados mais detidamente em item posterior do capítulo),

embasam suas teorias sobre a origem dos americanos a partir, principalmente, de

comparações linguísticas.

As aproximações entre os critérios e conceitos que envolviam os estudos sobre

o Oriente com as reflexões sobre os indígenas apontados acima reforçam o argumento de

que o processo descrito por Edward Said como o de “criação do Oriente a partir do

Ocidente” é importante também para as análises de relatos do período que abordam outras

regiões e continentes. Ao observarmos o grande número de obras elaboradas ao longo do

século XIX que identificaram uma procedência oriental para todos os indígenas ou para

alguns grupos específicos, podemos perceber que as reflexões sobre os povos e terras

orientais foram fundamentais para as representações realizadas sobre o Novo Mundo e seus

habitantes.

Este tema, contudo, foi pouco abordado pela historiografia. Uma exceção é a

análise feita por Oliver Lubrich (2002, 3-28) sobre alguns dos escritos de Humboldt, onde

poderia ser identificada uma “visão orientalista” da América486

. A partir da busca por

referências a elementos orientais que estariam presentes nos relatos deste viajante prussiano

(como comparações entre as características da geografia americana e egípcia, entre outros

exemplos), este pesquisador alemão conclui que “Alejandro de Humboldt describe el

‘Nuevo Mundo' como un segundo Oriente. Su viaje por Sudamérica es puesto en escena

abiertamente como un viaje imaginario por esa región. Humboldt orientaliza a América,

convierte lo que ve en objeto de su mirada ‘orientalista’” (2002, 6). Outro raro caso de

futuras la patria y las emigraciones de sus ascendientes desde las Indias Orientales hasta las Indias

Occidentales” (MÜLLER, 1944, 223).

486 Não por acaso, antes de partir para a América, Humboldt chegou a tentar – sem sucesso – participar da expedição comandada por Napoleão ao Egito: “Me creía muy próximo al momento de partir para Egipto

cuando los acontecimientos políticos me hicieron abandonar un plan que me prometía tantas satisfacciones.

La situación del Oriente era tal, que un simple particular no podía esperar la prosecución de trabajos que

aún en los tiempos más pacíficos exponen con frecuencia al viajero a la desconfianza de los gobiernos” (apud

LUBRICH, 2002, 5).

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autor que aborda este tema é Carolina Depetris (2009, 227-246). Em sua análise sobre o

relato da expedição comandada por Jean Frédéric M. de Waldeck às ruínas de Palenque

(Cf. Capítulo 4), esta pesquisadora mexicana defende que: “Lo interesante es que, como

forma específica de interpretar y explicar una realidad, el orientalismo trasciende las

amplias fronteras de Oriente y tiñe la mirada y la razón de viajeros que van a otras tierras.

Así ocurrirá con Humboldt en América y con Waldeck en Yucatán” (2009, 235-236).

Ainda que concordemos, ao menos em parte, com as interpretações feitas por

Lubrich e, principalmente, por Depetris, pretendemos nestas páginas expandir a influência

dos conceitos relacionados ao Oriente para além dos viajantes europeus que

desembarcaram em terras americanas e, posteriormente, publicaram relatos sobre estas

viagens. Como esperamos demonstrar adiante, a identificação de determinados grupos

indígenas como descendentes dos arianos ou a defesa de que haveria em algumas línguas

americanas palavras de origem indo-europeia foram repetidamente apontadas por autores

argentinos, brasileiros, mexicanos, entre outros, como evidências de que a “civilização

original” surgida no Oriente teria alcançado as terras americanas, ou, ainda, invertendo o

processo de migração, que ela teria sido gerada no Novo Mundo.

Dessa forma, o presente capítulo será dividido em três partes. Em um primeiro

momento, dedicaremos nossa atenção aos pesquisadores, especialmente norte-americanos,

que formularam hipóteses sobre a origem dos índios a partir de critérios “científicos” como

o das medições de crânios. Em seguida, apresentaremos os argumentos de autores de

diferentes países487

que, ao longo do século XIX, identificaram regiões e povos do Oriente

como os responsáveis pelo processo inicial de colonização do Novo Mundo. Por fim,

abordaremos o pequeno grupo de estudiosos do período que propuseram teorias onde o

487 A este respeito, aproximamos nossa postura da proposta de “internacionalismo” feita por Margarita Díaz-

Andreu (2007, 24-25) em sua análise sobre a arqueologia no século XIX: “The account found in this book

differs from others in that it will demonstrate that, despite nationalism – and imperialism and colonialism

linked to it – being a key issue in the understanding of the development of nineteenth-century archaeology,

internationalism should not be forgotten. It will be stressed that, despite the usefulness of national histories, they only highlight a small component of broader international trends. In order to appreciate the reasons

behind transformations in one single nation or colony, these need to be decentred and contextualized in the

framework of what was happening in other parts of the world. This is because there are interdependencies

and rivalries between countries with respect to the new discoveries and proposals which transformed the

narrative of the past”.

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Novo Mundo passa a ser identificado como o local de origem dos seres humanos ou da

civilização “original”. Ainda que façamos menção a alguns estudos posteriores,

restringiremos o centro de nossa análise até a década de 1870, uma vez que, a partir desse

período, novas teorias, como as propostas por Charles Darwin em seu A Origem das

Espécies (1859), alcançam ampla difusão488

e incorporam novas questões e conceitos ao

debate sobre a procedência dos indígenas489

.

Os crânios indígenas como evidências de suas procedências

Como pudemos observar no item anterior, houve durante o século XIX uma

ascensão dos estudos raciais com a introdução de novos elementos aos debates sobre a

origem da humanidade e, em particular, dos indígenas. A identificação de diferenças

profundas entre os grupos humanos, interpretados como raças, pauta boa parte das reflexões

formuladas neste período. De um lado, os defensores de teorias monogenistas sustentavam

que esta diversidade era fruto de adaptações, transformações ou degenerações –

especialmente associadas ao clima, algo já recorrente no século XVIII (Cf. Capítulo 4) –

ocorridas após a criação única. Do outro, um número crescente de autores, ainda que sua

quantidade permaneça inferior a de monogenistas, passa a defender teorias poligenistas,

que atribuíam procedências específicas a cada uma das raças, tornando-as “originalmente”

diferentes.

Segundo Margarita Díaz-Andreu (2007, 345-347), a classificação dos seres

humanos em raças já havia sido proposta anteriormente por autores europeus490

como

488 Lilia Moritz Schwarcz (1993, 43) afirma que teorias como a do evolucionismo e do darwinismo só

começaram a ser conhecidas entre os intelectuais brasileiros a partir da década de 1870.

489 Como exemplo, podemos citar as – questionáveis – alterações feitas por Max Müller às suas conclusões

sobre a linguagem apontadas acima.

490 Em seu artigo sobre o conceito de “astrologia patriótica”, Jorge Cañizares-Esguerra (1999, 33-68) defende

que o conceito de raça humana a partir de determinismos biológicos teria surgido na América durante o século

XVII, particularmente nas colônias espanholas, através de obras como as de Buenaventura de Salinas y

Cordova e Antonio León Pinelo. O historiador, contudo, ressalta que estas reflexões não alcançaram o Velho

Mundo.

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249

Lineu491

e Blumenbach, cuja divisão da humanidade em cinco raças alcançou grande

popularidade no período. Ao abordar esta questão, o paleontólogo Stephen Jay Gould

(1999, 20-21) cita passagens de líderes políticos norte-americanos de diferentes períodos,

como Benjamin Franklin (para quem a inferioridade de determinadas raças estava associada

a aspectos culturais), Thomas Jefferson e Abraham Lincoln (que atribuía as diferenças

raciais a questões biológicas) para evidenciar como a hierarquização racial foi interpretada

por muitos autores neste período como um conceito que poderia ser comprovado

“cientificamente”.

No entanto, ao longo do século XIX, os critérios para a diferenciação das raças

passaram a incorporar outros elementos: “o preconceito racial pode ser tão antigo quanto o

registro da história humana, mas a sua justificação biológica impôs o fardo adicional da

inferioridade intrínseca aos grupos menos favorecidos e descartou a sua possibilidade de se

redimir através da conversão ou da assimilação” (GOULD, 1999, 18). Dentro deste campo,

áreas de estudo como a frenologia492

e a craniometria ganharam destaque. Contudo,

enquanto a primeira foi duramente questionada e rejeitada por muitos de seus

contemporâneos a segunda alcançou reconhecimento crescente em determinados meios

acadêmicos, como o norte-americano.

De acordo com Ales Hrdlicka (1914), as dúvidas sobre a(s) origem(ns) dos

primeiros habitantes da América exerceram um papel fundamental nos estudos sobre o

restos mortais dos indígenas. No caso específico dos Estados Unidos, estas dúvidas teriam

estimulado a criação de sociedades frenológicas em cidades como Boston e Washington

que, desde as décadas iniciais do século XIX, recolheram e analisaram dezenas de crânios

de diferentes épocas e locais. Posteriormente, estes vestígios passaram a ser pesquisados

491 Na segunda edição de seu Systema Naturae (1735), Lineu não apenas incluiu os seres humanos na ordem

dos quadrúpedes como identificou a existência de cinco raças.

492 De acordo com um panfleto anônimo publicado em 1825, a frenologia partia do princípio de que “a

particular form of brain is the invariable concomitant of particular dispositions and talents, and this holds in

the case of nations as well as of individuals” (apud DÍAZ-ANDREU, 2007, 345).

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por autores como Samuel George Morton493

, então dono da maior coleção de crânios

humanos do mundo494

.

Em seu Crania Americana (1839), este médico e cientista norte-americano

defende a existência de uma “singular harmony between the mental character of the Indian,

and his cranial developments as explained by Phrenology” (MORTON, 1839, i). Para ele,

haveria cinco raças entre os seres humanos: a caucasiana, a mongólica, a malaia, a etíope e

a americana, que se subdividiriam em dezenas de grupos menores, as “famílias”495

. Estas

divisões formariam um grande panorama hierarquizado da humanidade que estaria

diretamente atrelado às origens específicas de cada um dos grupos496

. A hierarquia

identificada por Morton pode ser observada através das breves descrições feitas por ele

logo no início de sua obra a respeito das cinco raças humanas: a raça caucásica se

distinguiria “for the facility with which it attains the highest intellectual endowments”; a

mongólica seria “ingenious, imitative, and highly susceptible of cultivation”; a malaia

“possesses all the habits of a migratory, predaceous and maritime people”, além de ser

“active and ingenious”; já os integrantes da raça americana seriam “averse to cultivation,

and slow in acquiring knowledge; restless, revengeful, and fond of war, and wholly

493 Hrdlicka (1914) afirma que Morton não foi o pioneiro da craniometria nos Estados Unidos. Em 1822, John

C. Warren já havia realizado medições de crânios humanos. Em seu Account of the crania of some of the

Aborigines of the United States, este médico e pesquisador norte-americano defendia que os indígenas

construtores de montículos (mound builders) tinham uma origem diferente da dos habitantes destas regiões

que teriam estabelecido contato com os exploradores europeus.

494 Morton chegou a possuir cerca de mil crânios humanos de diferentes épocas e regiões. Após sua morte, os exemplares desta coleção foram comprados por um grupo de filantropos que os doaram à Academia de

ciências naturais da Filadélfia.

495 A associação entre a raça caucasiana identificada por Morton com o conceito de línguas indo-europeias

fica evidente quando observamos as subdivisões identificadas pelo autor. Para ele (1839, 5), os caucasianos se

dividiriam em sete famílias (caucasiana, germânica, celta, árabe, líbia, nilótica e indostânica), que vão da

Europa até a região indiana.

496 Seguindo estes critérios poligenistas, Morton (1839, 31; 75) se preocupa em elaborar uma longa nota

explicativa negando veementemente qualquer possível ligação entre os desenvolvidos egípcios (pertencentes à

família nilótica da raça caucasiana) e os negros da raça etíope: “It is easy to prove, that whatever may have

been the hue of their skin, they belonged to the same race with ourselves. I have examined in Paris, and in the

various collections of Europe, more than fifty heads of mummies, and not one amongst them presented the characters of the Negro or Hottentot”. As diferenças “originais” também estariam relacionadas à maior ou

menor aptidão aos trabalhos forçados: “it must be borne in mind that the Indian is incapable of servitude, and

that his spirit sunk at once in captivity, and with it his physical energy; while, on the other hand, the more

pliant Negro, yielding to his fate, and accommodating himself to his condition, bore his heavy burthen with

comparative ease”.

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destitute of maritime adventure”; por fim, a raça etíope “present a singular diversity of

intellectual character, of which the far extreme is the lowest grade of humanity” (1839, 5-

7).

A partir destas descrições, podemos observar que a raça americana ocuparia

dentro da hierarquia proposta por Morton o quarto e penúltimo grau de desenvolvimento da

espécie humana. Esta raça, por sua vez, se subdividiria em duas famílias, a “americana” e a

“tolteca”, que estariam diretamente associadas aos diferentes níveis de desenvolvimento

alcançados pelos grupos americanos497

. Segundo o autor, “it is in the intellectual faculties

that we discover the great difference between the Toltecan and American families”

(MORTON, 1839, 84).

De um lado, encontrava-se a família americana, formada por grupos “bárbaros”

que teriam se instalado em diferentes partes do continente. Ela se subdividiria em quatro

ramos: os “apalaches” (nativos da América do Norte – com exceção dos avançados

mexicanos –, do norte do Amazonas e da região a leste dos Andes), descritos como

violentos, cruéis e avessos à civilização; os “brasileiros” (habitantes das terras que iam do

Amazonas ao Prata), extremamente bárbaros e com sérias dificuldades para se desenvolver,

mesmo com os grandes esforços missionários dos jesuítas (“none of the American tribes

are less susceptible of cultivation than these”); os “patagônicos” (localizados ao sul do

Prata e na região do Chile), mais altos e corajosos que os outros498

; e, por fim, os

“fuegianos” da região da Terra do Fogo, que possuem características físicas “repulsivas”,

hábitos que refletem a escassez e os defeitos da natureza local e condições mentais que

ocupariam “the last degree, slow and stupid”. Estas limitações “originais” fariam com que

os indígenas da família americana, independentemente do ramo a que pertencessem, fossem

“for the most part incapable of a continued process of reasoning on abstract subjects”, o

497 Morton (1839, 249) defende que, além destas duas famílias, o continente americano também teria sido povoado por alguns grupos de origem mongol, especialmente no extremo norte, o que poderia ser

comprovado através dos crânios humanos encontrados nestas terras: “[...] the Eskimaux are the only people

possessing Asiatic characteristics on the American continent”.

498 O único ramo da família americana descrito de forma relativamente elogiosa pelo autor (1839, 64), que

atribui a resistência aos europeus realizada pelos araucanos a estas características “positivas”.

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que explicaria a pequena ou nula mudança de comportamento ocorrida após séculos de

contato com os povos europeus (MORTON, 1839, 83-85).

Já do outro lado, encontravam-se os integrantes da família tolteca, considerados

pelo autor como povos “semicivilizados”, como as “nações” das regiões do México, Peru e

Bogotá. Estes grupos teriam dominado os integrantes da família americana por séculos, em

uma espécie de relação feudal entre nobres e plebeus destruída apenas com a chegada das

expedições europeias. A conquista espanhola, ao encerrar esta divisão entre as duas

famílias, também teria sido responsável por acabar com praticamente todos os sinais de

civilização que havia entre os toltecas, restando apenas vestígios deste passado glorioso em

suas narrativas e nas ruínas de suas grandes e complexas obras arquitetônicas.

Dessa forma, os índios do “presente” – ao menos desde o século XVI – não

podiam ser associados aos desenvolvidos grupos que teriam habitado estas terras no

passado (MORTON, 1839, 84). A passagem em que Morton aborda a prática de sacrifícios

humanos em determinadas regiões do México é exemplar. De acordo com o autor, estes

bárbaros rituais não poderiam ser atribuídos aos avançados toltecas, mas sim aos outros

povos que teriam chegado à região posteriormente, cuja origem estaria associada à família

americana (1839, 148).

Após estabelecer as diferenças e as hierarquias existentes entre toltecas e

americanos, Morton passa a apontar medidas cranianas que as “comprovariam”499

. Assim, o

autor esforça-se para mostrar que os crânios dos antigos peruanos e toltecas possuíam

características e medidas muito semelhantes500

. A análise que o autor faz sobre alguns

499 O método utilizado por Morton para aferir o volume dos crânios consistia, a princípio, em encher a

cavidade craniana com sementes de mostarda branca peneirada e, em seguida, despejar seu conteúdo em um

cilindro graduado. Posteriormente, na tentativa de obter resultados mais precisos e uniformes, o pesquisador

passou a utilizar balas de chumbo com um oitavo de polegada de diâmetro. Além da aferição da capacidade

cúbica dos crânios, outras medidas cranianas também foram criadas no período e utilizadas como

“comprovação” da existência de diferentes raças humanas. Entre elas, podemos citar o “índice craniano”,

criado pelo cientista sueco Anders Retzius em 1845. Este índice era obtido através do cálculo da proporção

entre a largura e o comprimento máximos do crânio (os relativamente longos eram chamados de dolicocéfalos

e os relativamente curtos, braquicéfalos): “[Retzius] estabeleceu uma teoria da civilização baseada nele. Acreditava que os povos da Idade da Pedra da Europa eram braquicéfalos, e que posteriormente essa

população autóctone e mais primitiva foi substituída por elementos mais avançados (dolicocéfalos indo-

europeus ou arianos), que já se encontravam na Idade do Bronze” (GOULD, 1999, 42; 93).

500 “I have not succeeded in obtaining an adequate series of Mexican skulls, and of those in my possession but

eight are older than the conquest. No one of them is altered by art, and they present a striking resemblance,

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crânios de indígenas peruanos ilustra exemplarmente muitas das posturas e interpretações

propostas por ele. O autor mostra-se profundamente espantado com o fato dos peruanos,

ainda antes dos incas, terem desenvolvido traços de civilização mesmo tendo cabeças tão

pequenas501

. Em seguida, Morton passa a defender a existência de uma divisão entre os

índios do “presente” (os incas que tiveram contato com as primeiras embarcações

europeias) e os povos que habitaram a região no passado, vistos como responsáveis pelos

grandes e elaborados complexos arquitetônicos cujos vestígios ainda eram encontrados

nestes locais. Esta civilização antiga teria sido destruída pelos incas, cujas origens

remeteriam a migrações a partir do México de grupos toltecas, o que explicaria as

semelhanças entre os crânios destes dois povos.

Ao analisar os resultados das pesquisas realizadas por Morton como base para

suas conclusões sobre as divisões raciais que existiriam entre os humanos, Stephen Jay

Gould (1999, 39-62) afirma que eles formam “uma colcha de retalhos de falsificações e

acomodações evidentemente destinadas a verificar determinadas crenças a priori”. Este

paleontólogo norte-americano identifica uma série de problemas nas análises de Morton,

como o estabelecimento de médias equivocadas da capacidade craniana dos indígenas

(distorcida, por exemplo, pelo peso excessivo dado pelo autor aos crânios incas, que

possuíam medidas inferiores aos outros grupos nativos) até a exclusão de exemplares com

medidas que não se “encaixassem” à hierarquia proposta pelo autor502

.

both in size and configuration, to the heads of the Ancient Peruvians, In examining the delineations in Del Rio's account of Palenque, I observed in the corner of his fifth plate, a small, inverted skull, which is so

completely characteristic of these nations that I have had it drawn on a larger scale, preserving, however, the

exact proportions of the original. On comparing this skull with those of the Peruvians already figured, a

striking resemblance is manifest in the great lateral swell of the head, the rather expanded forehead, and the

prominent aspect of the vertex or crown” (MORTON, 1839, 144).

501 “It would be natural to suppose, that a people with heads so small and badly formed would occupy the

lowest place in the scale of human intelligence. Such, however, was not the case; and it remains to show, that

civilization existed in Peru anterior to the advent of the Incas, and that those anciently civilized people

constituted the identical nation whose extraordinary skulls are the subject of our present inquiry”

(MORTON, 1839, 118). No entanto, é curioso observarmos que, ao estabelecer as médias finais da

capacidade craniana de cada uma das raças e famílias humanas, Morton identifique as tribos bárbaras pertencentes à “família americana” como possuidoras de cérebros maiores (84 polegadas cúbicas) não apenas

do que os dos peruanos (75), mas também dos mexicanos (79) (GOULD, 1999, 44).

502 Gould (1999, 58-59) resume suas conclusões sobre os equívocos de Morton a quatro categorias gerais:

incongruências tendenciosas e critérios desiguais; subjetividade orientada para a obtenção de resultados

preconcebidos; omissões de procedimento; erros de cálculo e omissões convenientes.

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No entanto, o pesquisador ressalta que, em sua reavaliação dos estudos de

Morton, não identificou sinais de fraude deliberada por parte do autor: “[ele] nunca tentou

apagar suas pegadas [...] A única coisa que posso perceber é uma convicção a priori com

relação à hierarquia racial, e tão poderosa que conseguiu orientar suas tabulações num

sentido preestabelecido”. Independentemente das ressalvas feitas por Gould (1999, 58), ele

próprio afirma que os dados e análises realizados por Morton, tanto neste estudo sobre os

indígenas quanto em outros503

, permaneceram sendo interpretados durante um longo

período como “sólidas e irrefutáveis provas do diferente valor mental das raças humanas

[...] Morton foi unanimemente saudado como um modelo de objetivismo para sua época, e

como o homem que havia resgatado a ciência americana do pântano da especulação

infundada”504

.

A influência de Morton entre os acadêmicos norte-americanos foi descrita por

Ales Hrdlicka (1914) como a de um “pai” (ainda que tivesse deixado “many friends to the

science and even followers, but no real progeny”). Entre outros exemplos, este pesquisador

cita autores como J. Aitken Meigs, Josiah Nott e George Robins Gliddon505

como exemplos

de continuadores das ideias de Morton dentro dos Estados Unidos. Em alguns casos, como

nos de Nott e Gliddon, houve uma tentativa de ampliação das implicações racistas506

que

haviam sido minimizadas pelo autor em seus estudos (POPKIN, 1987, 151)507

.

503 Poucos anos depois do lançamento de sua obra mais divulgada, Morton publicou Crania Aegyptiaca (1844), nova pesquisa onde o autor faz medições e análise de crânios egípcios: “He reiterated his claim that

the cranial characteristics of racial groups, in this case Egyptians and Negroes, had stayed constant from the

time of the oldest records of the human species. Morton also added a new point, namely that the Negro had

been a slave from ancient times in Egypt up to the nineteenth century in America. His new scientific effort was

widely hailed by the learned world” (POPKIN, 1987, 150-151).

504 Como exemplo de autor que interpretava os dados de Morton como “provas” das diferenças entre os seres

humanos, podemos citar William Prescott. Ao comparar os incas com outros povos indígenas da região, este

historiador norte-americano afirma que o estudo de Morton “provava” que “los cráneos [de los Incas]

manifiestan una superioridad indudable sobre las demás razas del país en cuanto a expresión de la

inteligencia […] el ángulo facial en el primero, aunque no muy grande, era mucho mayor que en el segundo,

que era extraordinariamente chato y escaso de carácter intelectual” (apud QUIJADA, 1996, 254).

505 Diplomata norte-americano que forneceu os crânios egípcios para Morton realizar suas pesquisas.

506 A obra Types of Mankind (1854), publicada por Nott e Gliddon como uma homenagem póstuma a Morton

(que havia falecido três anos antes), alcançou grande sucesso entre seus contemporâneos (com dez edições até

o ano de 1871). Nesta coletânea de artigos de diversos pesquisadores (como o próprio homenageado e Louis

Agassiz, sobre quem falaremos em seguida), a ligação estabelecida entre raça e língua fica novamente

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Outro estudioso que deu seguimento aos estudos realizados por Morton foi o

pesquisador escocês George Combe. Em seu Phrenological remarks on the relation

between the natural talents and dispositions of Nations, and the developments of their

brains508

, este importante líder do movimento frenologista509

na Europa defende que

existiam entre os grupos humanos diferenças naturais entre suas constituições mentais,

cabendo aos pertencentes à raça caucasiana o estágio mais avançado, por serem marcados

por uma forte tendência “towards moral and intellectual improvement” além de uma

“elasticity of mind incapable of being permanently repressed”. Sua postura é crítica aos

nativos americanos, definindo-os como extremamente bárbaros (mesmo os mais

“avançados”, como os mexicanos) e fadados ao desaparecimento510

.

evidente. Entre estudos que abordam a diversidade das raças humanas e as características cranianas de cada

uma delas, há um artigo que analisa a distribuição e a classificação das línguas.

507 É importante observarmos que, apesar de suas hierarquizações e o estabelecimento de diferenças

“originais” entre as raças humanas, onde os índios ocupavam o penúltimo estágio de desenvolvimento,

Morton preocupa-se em rebater afirmações feitas por autores como William Robertson sobre a inferioridade

física dos americanos: “[...] it is evident that where the Indian can be stimulated by ambition or the hope of

reward, his bodily strength is equal to great and protracted exertion [...] The structure of his mind appears to

be different from that of the white man, nor can the two harmonize in their social relations except on the most

limited scale. Everyone knows, however, that the mind expands by culture; nor can we yet tell how near the

Indian would approach the Caucasian after education had been bestowed on a single family through several

successive generations” (MORTON, 1839, 70-82).

508 Texto incluído como apêndice ao Crania americana.

509 Combe (1839, 282) faz uma defesa enfática da fiabilidade dos dados obtidos pela frenologia, que poderiam

“explicar” eventos como a derrota dos grandes impérios inca e asteca para um pequeno número de espanhóis: “The Peruvians and Mexicans, subdued by the Spaniards, and the Hindoos subdued by the British in India,

afford examples. In them the aggregate size of the whole brain is less than the aggregate size of the whole

brain in the Spaniards and English; but in them also the moral and intellectual regions of the brain are larger

in proportion to the animal region, than in the Caribs and the Iroquois Indians”.

510 “The aspect of America is still more deplorable than that of Africa. Surrounded for centuries by European

knowledge, enterprise, and energy, and incited to improvement by the example of European institutions, many

of the natives of that continent remain, at the present time, the same miserable, wandering, houseless and

lawless savages as their ancestors were, when Columbus first set foot upon their soil. Partial exceptions to

this description may be found in some of the southern districts of North America; but the numbers who have

adopted the modes of civilized life are so small, and the progress made by them so limited, that speaking of

the race, we do not exaggerate in saying, that they remain to the present hour enveloped in all their primitive savageness, and that they have profited extremely little by the introduction amongst them of arts, sciences and

philosophy […] But all has been unavailing; and it now seems certain that the North American Indians, like

the bears and wolves, are destined to flee at the approach of civilized man, and to fall before his renovating

hand, and disappear from the face of the earth along with those ancient forests which alone afford them

sustenance and shelter” (COMBE, 1839, 252).

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256

No entanto, o autor que estabeleceu relações mais profundas com as

argumentações de Morton foi Louis Agassiz, naturalista suíço que se mudou para os

Estados Unidos na década de 1840, onde se tornou um dos principais defensores do

poligenismo. Além de seus estudos prévios realizados na área de biologia511

, outro fator

teria levado o autor a defender a origem múltipla do ser humano: o contato pessoal com os

negros. Entre outras situações, o próprio autor narra em carta endereçada à sua mãe que, em

um jantar com Samuel Morton, a presença de um garçom negro o teria convencido: “that

the Negro belonged to a different species than the Caucasian, and that the Negro was

naturally inferior” (apud POPKIN, 1987, 153).

As ideias poligenistas de Agassiz foram apresentadas por ele em dois artigos

publicados no periódico científico norte-americano Christian Examiner no ano de 1850. No

primeiro deles, Geographical Distribution of Animals, o pesquisador argumenta que

evidências geológicas apontariam para uma origem múltipla da vida no planeta, incluindo

os seres humanos. Além disso, ele defende que as Sagradas Escrituras poderiam ser

utilizadas como base para as teorias poligenistas. A trajetória de Caim após assassinar Abel,

por exemplo, seria uma das evidências bíblicas da existência de outros povos para além dos

filhos de Adão512

.

No segundo, intitulado The Diversity of Origin of the Human Species, Agassiz

estabelece uma divisão entre a unidade da humanidade e a diversidade de raças513

. De

511 Segundo Gould (1999, 30-32), o poligenismo de Agassiz estaria associado a dois aspectos de suas teorias e métodos pessoais: “1) Ao estudar a distribuição geográfica dos animais e das plantas, Agassiz desenvolveu

uma teoria sobre os ‘centros de criação’. Ele acreditava que as espécies foram criadas em seus devidos lugares

e, via de regra, não migraram desses centros [...] 2) Agassiz era um taxonomista propenso a levar em conta o

máximo de distinções [...] Um campeão do separacionismo, que acreditava que os organismos haviam sido

criados em toda sua gama, podia muito bem se sentir tentado a considerar as raças humanas como criações em

separado”.

512 “We hope, however, to be able to show that there is no such statement in the book of Genesis; that this

doctrine of a unique centre of origin and successive distribution of all animals is of very modern invention,

and that it can be traced back for scarcely more than a century in the records of our science […] That Adam

and Eve were neither the only nor the first human beings created is intimated in the statement of Moses

himself” (apud POPKIN, 1987, 153).

513 “We recognize the fact of the unity of Mankind. It excites a feeling that raises men to the most elevated

sense of their connection with each other. It is but the reflection of that Divine nature which pervades their

whole being. It is because men feel thus related to each other, that they acknowledge those obligations of

kindness and moral responsibility which rest upon them in their mutual relations. And it is because they have

this innate feeling, that they are capable of joining in regular societies with all their social and domestic

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257

acordo com o autor, os estudos “científicos” deveriam ser totalmente dissociados das

questões religiosas. Assim, mesmo que houvesse a confirmação da existência do casal

original, as pesquisas deveriam continuar sendo realizadas, uma vez que o livro sagrado

não abordaria a origem dos povos que habitam as diferentes regiões do planeta514

. Além

disso, o autor dedica parte significativa de seu texto para negar que suas ideias embasavam

argumentos escravistas, afirmando que suas pesquisas eram relacionadas a questões muito

mais amplas do que a da origem dos negros.

Seguindo estas premissas, Agassiz passa a analisar a diversidade humana e sua

disseminação pelo mundo. A partir de exemplos dos reinos animal e vegetal, o autor

conclui que a distribuição diferenciada das espécies – incluindo os seres humanos – não

seguiria critérios climáticos ou naturais, mas sim os desígnios divinos (AGASSIZ, 1850,

14). Esta afirmação leva o autor a se concentrar nos processos migratórios de uma raça

humana específica, a branca, que teria se espalhado pela Europa, norte da África, Arábia,

Pérsia, parte da Índia entre outras regiões, sem nunca perder suas principais características,

como o aspecto físico comum e o grande desenvolvimento intelectual. Dessa forma,

Agassiz defende que as diferenças entre as raças seriam imutáveis515

, o que geraria uma

affinities. This feeling unites men from the most diversified regions. Do we cease to recognize this unity of

mankind because we are not of the same family?” (AGASSIZ, 1850, 2).

514 “Do we find in any part of the Scriptures any reference to the inhabitants of the arctic zone, of Japan, of China, of New Holland, or of America? Now, as philosophers, we ask, Whence did these nations come? And if

we should find as an answer, that they were not related to Adam and Eve, and that they have an independent

origin, and if this should be substantiated by physical evidence, would there be any thing to conflict with the

statements in Genesis? We have no narrative of the manner in which these parts of the world were peopled.

We say, therefore, that, as far as the investigation will cover that ground, it has nothing to do with Genesis”.

Ainda segundo o autor, as histórias narradas no Gênesis deveriam ser interpretadas como exclusivas da raça

branca e, mais especificamente, aos judeus (AGASSIZ, 1850, 3-4; 29).

515 Segundo Agassiz (1850, 16), estas diferenças poderiam ser observadas, por exemplo, ao se comparar as

construções feitas pelos “brancos egípcios” com a dos povos da raça negra que habitavam outras regiões do

continente africano “[…] taking them together as types, as races, we find that the differences characterizing

them are of a very different order from the differences existing between the several nations within the limits of each race. The monuments of Egypt teach us that five thousand years ago the negroes were as different from

the white race as they are now, and that, therefore, neither time nor climate nor change of habitation has

produced the differences we observe between the races, and that to assume them to be of the same order, and

to assert their common origin, is to assume and to assert what has no historical or physiological or physical

foundation”.

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258

hierarquia “original” e intransponível516

entre elas que deveria ser alvo de estudo por parte

dos filósofos517

.

Ao falar especificamente sobre os habitantes do continente americano, Agassiz

(1850, 35-36) afirma que os índios (grupo que teria mais semelhanças entre si do que

qualquer outro) não pertenciam à raça branca, o que poderia ser reforçado através das

diferenças existentes entre as línguas faladas pelos integrantes destes dois grupos. Isto leva

o autor a identificar os habitantes do continente americano como integrantes de uma raça

específica – o que ele afirma já ter sido “comprovado” pelos estudos de Morton – com

características próprias e superiores às existentes entre as raças mongol e negra. Assim, o

autor identifica os “corajosos e orgulhosos” americanos como uma raça intermediária:

inferior à branca, onde as qualidades humanas se apresentavam de maneira mais harmônica,

mas superior aos negros e mongóis518

.

Segundo Stephen Jay Gould (1999, 30), as teorias desenvolvidas por estes

autores norte-americanos, ainda que não se resumissem a este aspecto, estavam diretamente

relacionadas ao movimento de expansão para o oeste existente no período e à escravidão

negra que permanecia nos estados sulistas. Para ele, “obviamente não é acidental que uma

nação que ainda praticava a escravidão e expulsava os aborígenes de suas terras tenha

favorecido o estabelecimento de teorias que sustentavam que os negros e os índios eram

516 Agassiz era extremamente crítico à “mistura de raças”, o que fica evidente em texto, de 1868, onde

descreve suas impressões sobre o Brasil visitado por ele três anos antes: “[...] que qualquer um que duvide dos

males da mistura de raças, e inclua por mal-entendida filantropia, a botar abaixo todas as barreiras que as separam, venha ao Brasil. Não poderá negar a deterioração decorrente da amálgama das raças mais geral aqui

do que em qualquer outro país do mundo, e que vai apagando rapidamente as melhores qualidades do branco,

do negro e do índio deixando um tipo indefinido, híbrido, deficiente em energia física e mental” (apud

SCHWARCZ, 1993, 13).

517 “Whether the different races have been from the beginning what they are now, or have been successively

modified to their present condition (a view which we consider as utterly unsupported by facts), so much is

plain, – that there are upon earth different races of men, inhabiting different parts of its surface, which have

different physical characters; and this fact, as it stands, without reference to the time of its establishment and

the cause of its appearance, requires farther investigation, and presses upon us the obligation to settle the

relative rank among these races, the relative value of the characters peculiar to each, in a scientific point of

view. It is a question of almost insuperable difficulty, but it is as unavoidable as it is difficult; and as philosophers it is our duty to look it in the face” (AGASSIZ, 1850, 33).

518 Ainda que Agassiz se descreva como um continuador das divisões raciais estabelecidas por Morton através

das medições cranianas, eles divergem em relação ao local ocupado pelos indígenas dentro da hierarquia das

raças. Para Morton, os americanos estariam acima apenas dos negros (raça etíope), já para Agassiz eles

estariam acima também dos mongóis.

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espécies à parte, inferiores aos brancos”. Apesar da grande maioria dos poligenistas norte-

americanos terem atuado no norte do país519

, estas ideias não teriam se difundido apenas

nesta região, mas também receberam uma recepção calorosa no sul escravista. Ainda que

Morton e Agassiz fizessem ressalvas em seus textos em relação ao trabalho forçado dos

negros, enfatizando que seus estudos abordavam outras questões, eles foram interpretados

como “evidências” da superioridade da raça branca em relação aos negros e índios, o que

fica evidente, por exemplo, através do obituário de Morton escrito pelo Charleston Medical

Journal, em 1851: “Nós, do Sul, deveríamos considerá-lo como um benfeitor, por ter

contribuído com a ajuda mais substancial para que se mostrasse ao negro sua verdadeira

posição de raça inferior”520

.

Os pontos em comum entre as ideias poligenistas de Morton, Agassiz e outros

autores norte-americanos levaram muitos pesquisadores a utilizar a expressão “escola

americana” ao fazerem referência a estes estudos e os impactos que eles causaram no

período (Cf. POLIAKOV, 1974; POPKIN, 1987). Ainda que a poligenia tivesse

antecedentes europeus (que poderiam ser recuados até o século XVII, com os estudos de

Isaac de la Peyrère sobre a existência de humanos pré-adamitas521

), nos Estados Unidos

519 Morton nasceu e atuou como médico e pesquisador na Filadélfia, mesma região onde atuaram Nott e

Gliddon. Agassiz se estabeleceu na Universidade de Harvard e atuou intensamente dentro do meio acadêmico

da Nova Inglaterra.

520 Gould (1999, 60-62), entretanto, afirma que o poligenismo proposto por Morton, Agassiz e seus seguidores

não ocupou um lugar relevante na defesa da escravidão dentro dos estados sulistas, que baseavam seus

argumentos em aspectos religiosos: “Os poligenistas colocavam num dilema os defensores da escravidão:

Deveriam eles aceitar um argumento oferecido pela ciência, com isso limitando a esfera religiosa? Na maioria dos casos, o dilema se resolveu em favor da Bíblia. Afinal de contas, não faltavam argumentos bíblicos para

justificar a escravatura. Sempre se podia recorrer ao velho, e sem dúvida funcional, expediente da

degeneração dos negros em consequência da maldição de Cam. Além disso, a poligenia não era o único

argumento quase científico disponível [...] Os defensores da escravatura não precisavam da poligenia. A

religião ainda era uma fonte de legitimação da ordem social mais poderosa que a ciência. Mas a polêmica

americana a respeito da poligenia talvez tenha sido a última ocasião em que os argumentos de estilo científico

não constituíram uma primeira linha de defesa do status quo e do caráter inalterável das diferenças entre os

homens”.

521 Richard Popkin (1987, 155) afirma que, neste período, alguns autores – tanto norte-americanos quanto

europeus – recuperaram o conteúdo das obras de Peyrère na tentativa de encontrarem “pioneiros” dentro de

suas áreas de estudo. Como exemplo, o autor cita N. L. Frothingham que, em 1851, publicou um artigo intitulado Men before Adam. Nele, o autor faz uma defesa enfática das teorias propostas no ano anterior por

Agassiz no mesmo periódico e identifica Peyrère como o primeiro autor a sugerir hipóteses poligenistas para

a origem dos seres humanos: “The point of recovering a past hero, La Peyrère, was not to claim that He had

already advanced the theory of the Mortonites with its great detail in terms of skull measurements, analysis of

hybrids, fixity of species, etc. Instead to point out that the polygenetic theory had already been presented in

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esta teoria foi modificada e ampliada, através de uma série de investigações que utilizavam

as medidas cranianas como principal fonte de dados. Estes estudos teriam criado uma

dinâmica interna própria na América, se tornando “uma das primeiras teorias de origem

quase totalmente americana a receber a atenção e o respeito de cientistas europeus, e de tal

forma que estes se referiam à poligenia como a ‘escola antropológica americana’”

(GOULD, 1999, 30).

As ideias poligenistas norte-americanas exerceram grande influência entre os

pesquisadores europeus, chegando a ser identificadas por alguns autores como sendo as

principais responsáveis pelo desenvolvimento do “racismo secular” (POPKIN, 1989, 76).

Isto não significa que elas não tenham recebido fortes críticas por parte de autores como

James C. Pritchard522

e Alexander von Humboldt. A postura do viajante prussiano diante

dos estudos de Morton é interessante a este respeito. Ao mesmo tempo em que elogia os

esforços do pesquisador norte-americano em reunir fontes e analisá-las de forma

objetiva523

, ele define este poligenismo racista como uma teoria “désolante”, que

condenaria boa parte da humanidade a uma inferioridade e escravidão perpétuas524

.

rudimentary form two hundred years earlier was to give the theory a significant history and a martyr-hero

from almost the same epoch as Galileo. Also, by starting the consideration of the theory from its ‘theological’

form in La Peyrère’s work, one could then portray how it developed into the wonderful ‘scientific’ theory of

the American ethnologists”.

522 Morton também foi criticado por autores norte-americanos, como o escritor, político e importante líder

abolicionista Frederick Douglass, para quem a origem múltipla não suplantaria a natureza comum a todos os humanos.

523 “Os tesouros craniológicos que o senhor teve a sorte de reunir em sua coleção encontram em sua pessoa

um digno intérprete. Sua obra é igualmente notável pela profundidade das ideias anatômicas que propõe, pelo

detalhe numérico das relações apresentadas pela conformação orgânica, bem como pela ausência daqueles

devaneios poéticos que constituem os mitos da moderna psicologia” (apud GOULD, 1999, 39-40).

524 Em carta enderaçada a George Robins Gliddon, escrita em 1846, Morton lamenta as críticas feitas por

Humboldt e faz alguns comentários sobre elas: “Humboldt’s word ‘désolante’ is true in sentiment and in

morals – but, as you observe, it is wholly inapplicable to the physical reality. Nothing so humbles, so crushes

my spirit, as to look into a mad-house, and behold the driveling, brutal idiocy so conspicuous in such places;

it conveys a terrific idea of the disparity of human intelligence. But there is the unyielding, insuperable

reality. It is so ‘désolante’ indeed to think, to know, that many of these poor mortals were born, were created so, but it appears to me to make little difference in the sentiment of the question whether they came into the

world without their wits, or whether they lost them afterwards. And so, I would add, it makes little difference

whether the mental inferiority of the Negro, the Samoiyede or the Indian, is natural or acquired; for if they

ever possessed equal intelligence with the Caucasian, they have lost it; and if they never had it, they had

nothing to lose. One party would arraign Providence for creating originally different; another for placing

them in circumstances by which they inevitably became so. Let us search out the truth and reconcile it

afterwards” (apud POPKIN, 1987, 156).

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Entretanto, a postura favorável às teorias mortonianas foi a mais comum. Como apontado

por Poliakov (1974, 204; 252) esta escola exerceu influência nos estudos de vários autores

europeus, como os do alemão Carus (que se apoiava nos dados fornecidos pela pesquisa de

Morton para demonstrar a desigualdade das raças humanas) e os do francês Renan, que

proclamava seu acordo com a classificação racial proposta por Nott e Gliddon: “No espaço

de uma dezena de anos, toda a Europa erudita havia aceitado a ideia de que os crânios

permitiam definir as raças humanas – e suas respectivas qualidades – de uma forma mais

exata do que as línguas”.

É evidente que as discussões sobre a validade da craniometria e as implicações

que os dados fornecidos por estas pesquisas tinham em questões como a escravidão negra, a

legitimidade da posse de terras por parte das tribos indígenas ou a forma como os países

europeus deveriam se relacionar com as populações de suas colônias, por exemplo, não se

limitam aos autores citados acima. Como já demonstrado por vários outros pesquisadores

(Cf. POLIAKOV, 1974; GOULD, 1999; DÍAZ-ANDREU, 2007), a crença de que as

medidas de determinados ossos humanos poderiam indicar características específicas a

algum grupo ou raça permaneceu em debate por décadas tanto na Europa quanto na

América (não se limitando aos Estados Unidos), tendo sofrido grande impacto a partir da

difusão das ideias evolucionistas525

.

No entanto, estes temas fogem do escopo do presente capítulo. Nosso objetivo

ao fazermos referência aos estudos craniométricos de Morton e aos de alguns de seus

contemporâneos foi demonstrar como a questão da origem dos indígenas não foi

interpretada no período como algo “fechado em si”, mas estava associada a outros debates

considerados extramente relevantes por muitos de seus contemporâneos, como a unidade ou

não da criação humana e a legitimidade da escravidão africana em terras americanas.

525 “A teoria evolucionista eliminou a base criacionista que sustentava o intenso debate entre os monogenistas

e os poligenistas, mas satisfez ambas as partes proporcionando-lhes uma justificação ainda melhor para o

racismo de que ambas compartilhavam. Os monogenistas continuaram a estabelecer hierarquias lineares das

raças segundo seus respectivos valores mentais e morais; os poligenistas tiveram então de admitir a existência de um ancestral comum perdido nas brumas da pré-história, mas afirmavam que as raças haviam estado

separadas durante um tempo suficientemente prolongado para desenvolver diferenças hereditárias

significativas quanto ao talento e à inteligência” (GOULD, 1999, 65). David Livingstone (1992, 1-78), por

sua vez, afirma que, com a ascensão do conceito de evolução, as ideias poligenistas foram recuperadas por

alguns autores na tentativa de sustentarem suas explicações criacionistas.

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Identificar o estágio ocupado pelos indígenas dentro da hierarquia dos grupos humanos

através do volume de seu crânio, muitas vezes, implicava em reconhecer a existência de

grupos linguísticos como o indo-europeu e a existência de raças como a ariana. Conceitos

estes, que “explicariam”, através dos movimentos migratórios, a existência de

características “civilizadas” em algumas regiões do continente, perceptíveis nas ruínas de

grandes construções, nos vestígios de vida urbana e na existência de complexos mitos

cosmogônicos, ao mesmo tempo em que, em outras partes da América ou em outros

períodos, havia apenas evidências da presença de povos “bárbaros”. Não por acaso, grande

parte dos autores que atribuíram uma origem oriental para os indígenas “mais avançados”

recorreram a estes conceitos ao tentarem embasar suas teorias.

O Oriente como origem

Como pudemos observar acima, o Oriente foi comumente interpretado no

século XIX como o “berço” da humanidade, o local identificado como sendo o da origem

dos seres humanos ou, ao menos, da civilização que teria se espalhado posteriormente para

as outras partes do mundo. Esta interpretação está associada ao fato de alguns autores do

período fazerem referências à raça ariana ao analisarem o processo de colonização do

continente americano. Contudo, antes de analisarmos alguns desses exemplos, precisamos

ressalvar que nem todos aqueles que associaram a origem indígena ao Oriente utilizaram o

conceito de ariano em suas interpretações. Entre outros exemplos, podemos citar obras

como a Historical researches on the conquest of Peru, Mexico, Bogota and Talomeco in the

thirteenth century by the Mongols (1827), do inglês John Ranking, a An inquiry into the

origin of the Antiquities of America (1839), do escritor norte-americano John Delafield

Junior e a The origin of the North American Indians (1843), do também norte-americano

John McIntosh.

Para o pesquisador inglês John Ranking, os mongóis foram os colonizadores do

Novo Mundo responsáveis pela introdução da “civilização” nestas terras. Os povos

desenvolvidos do continente, como os incas e os mexicanos, teriam uma ligação direta com

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os avançados mongóis que alcançaram estas terras por volta do século XIII, durante o

governo dos poderosos Khans. No entanto, estes grupos invasores não teriam sido os

pioneiros na ocupação destas terras. Para o autor, a América havia sido colonizada

anteriormente por grupos de “rudes tártaros” provenientes do extremo leste da Ásia. Esta

migração, segundo Ranking, já fora apontada por “eminentes autoridades” no assunto,

como Robertson, Humboldt e Clavijero, que teriam identificado uma série de evidências de

que "the natives are descended from the rude asiatics, north of the latitude of China; until

the conquest of Peru and Mexico, at which period China was governed by those rude

Tartars” (RANKING, 1827, 463-464). A colonização inicial teria gerado sociedades muito

primitivas, sem a presença de características consideradas pelo autor como “civilizadas”,

algo que só teria sido alterado com a chegada de uma segunda onda migratória, comandada

pelos desenvolvidos grupos mongóis que se estabeleceram em regiões como o México e o

Peru526

.

Ao falar sobre a “civilização inca”, Ranking afirma que ela foi criada por

Manco Capac, identificado como um dos filhos de Kublai Khan. Já em relação aos líderes

“mexicanos”, o autor aventa a possibilidade de eles serem descendentes de um “Mongol

grandee from Tangut, very possibly Assam” (RANKING, 1827, 22). A procedência dos

líderes indígenas responsáveis pelo surgimento das “sociedades avançadas” do Novo

Mundo faz com que o autor atribua as características identificadas por ele como positivas a

uma origem mongol527

, enquanto as negativas teriam uma origem diferente e anterior. Com

526 “When these Mongols arrived, America, we shall see, was in the rudest condition. Suddenly, two empires

are founded with the pomp, ceremonies, and grandeur, of Asiatic sovereigns: architecture, that rivaled the

stupendous works of the Romans; elegance in the arts of goldsmiths, surpassing the most delicate works o

Europeans; order, justice, and subordination: all of whose laws, military and civil institutions, religion, and

customs, are so faithful in every respect to those of Genghis Khan’s family, that their descent cannot for a

moment be doubted. The Bogotans, the Natchez, and the people of Talomeco on the Ohio, all bear the

strongest proofs of the same origin” (RANKING, 1827, 21-22).

527 “This grandeur of Montezuma is almost an exact copy of that of the Incas: and both of them are known in America, only since the arrival of Mango Capac, which was forty-two years before the foundation of Mexico.

The arms are exactly the same as those used by the Mongols; and most of the rest of the arts and customs are

so faithfully copied from the manners of the Moguls and the Grand Khans in Kublai’s time, that it is only

necessary to refer the reader to Marco Polo, and Sir John Mandeville to be convinced that it is quite

impossible the similitude should have arisen suddenly and from chance” (RANKING, 1827, 351-352).

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isso, as línguas528

, as técnicas e formatos das construções529

, as táticas de guerra, a adoração

ao sol e muitas das características físicas (como a falta de barba), são interpretadas como

tendo sido transportadas até a América por este grupo. Já os sacrifícios humanos, por

exemplo, seriam um costume praticado desde muito antes da chegada da civilização através

dos mongóis, que não apenas condenavam esta prática como a teriam combatido (1827,

232).

Interpretação oposta – ainda que semelhante em alguns aspectos – foi sugerida

alguns anos depois por John Delafield Junior. Enquanto Ranking descreve os mongóis

como um povo avançado responsável por introduzir a civilização no continente americano,

Delafield, ainda que faça referências às propostas de Ranking em sua obra, associa a

presença deste grupo às regiões e comportamentos considerados por ele como mais

atrasados e inferiores que existiriam no Novo Mundo. Em seu estudo sobre a origem dos

índios, Delafield afirma que seu objetivo central foi identificar os possíveis ancestrais dos

povos que teriam construídos as complexas obras arquitetônicas localizadas em algumas

partes do continente americano. Segundo o autor, este avançado povo, descrito como uma

“família civilizada”, teria se espalhado por terras que iam desde partes do território dos

Estados Unidos e do México em direção ao sul até o Peru, algo que poderia ser observado

através da presença de características comuns entre os habitantes destes locais530

.

528 Ao comparar as línguas dos incas com a dos mongóis, Ranking (1827, 145) faz referência aos estudos de

William Jones (ainda que não identifique características indo-europeias, mas sim de línguas utilizadas na

região da Tartária entre os povos americanos) e, principalmente, de Humboldt. Além das comparações

linguísticas, o autor recorre várias vezes aos escritos do prussiano na tentativa de reforçar sua teoria das

migrações asiáticas ao Novo Mundo.

529 Ranking (1827, 363) defende a hipótese de que os mongóis que haviam migrado para a América teriam

sido os responsáveis por criar as construções piramidais encontradas em algumas regiões do continente, que

apresentariam uma ligação direta com as pirâmides egípcias, uma vez que “the Mongols in the twelfth and

thirteenth [centuries], who resided near the rivers Irtish and Tula, had embassies and communication with

the nations who possessed Egypt”.

530 A passagem em que o autor analisa as semelhanças entre os “mexicanos” e os “peruanos” é ilustrativa a

este respeito. Delafield (1839, 15-16) afirma que, até o momento, nenhuma das narrativas indígenas

pesquisadas por ele ou por outros autores indicava uma conexão entre os habitantes destas duas regiões,

porém, “their languages, and manners and customs, as well as their anatomical developments and equal

advance in the progress of civilization, indicate a common origin”.

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Na tentativa de reforçar sua hipótese, Delafield enumera seis argumentos que a

comprovariam531

. Além destas características, o autor defende a existência de origens

comuns para as línguas americanas. As análises filológicas são utilizadas por ele como base

para a identificação de dois grupos ancestrais dos indígenas. Para ele, três quintos dos

americanos falariam línguas associadas aos mongóis do nordeste asiático e o restante seria

formado por derivações das línguas copta e cita. Esta divisão seria correspondente ao nível

de desenvolvimento alcançado por estes povos e, consequentemente, às suas origens

específicas:

“On the discovery of America, two distinct races were found

inhabiting the continent532; – one civilized, comprehending the Mexicans and

Peruvians, with their neighbors; – the other, savage and nomadic, embracing all

the families of the North American Indians. The civilized inhabitants came

originally from the north, where they constructed the ancient remains yet

existing; and they were expelled thence by the subsequent immigration, and

successive conquests of the Indian tribes, who came from the north of Asia, and

appear to be of Mongolian origin” (DELAFIELD JR, 1839, 102).

A partir desta afirmação, o autor passa a buscar elementos que a confirmariam

através de análises em diferentes áreas, como a própria filologia, a anatomia, a mitologia, a

escrita hieroglífica, a astronomia, a arquitetura e os costumes dos indígenas. Para evitar

531 A presença de construções tumulares com as mesmas características em regiões do oeste dos Estados Unidos, México e Peru; a presença de povos civilizados nestas regiões “while all around them was

enshrouded in mental darkness”; o conteúdo das narrativas indígenas de muitos grupos da América do Norte;

as referências a uma migração vinda do norte presente em relatos astecas; as tradições entre os peruanos que

indicariam a chegada de povos civilizados vindos do México; e, por fim, a presença de medidas similares

entre os crânios dos “mound builders” mexicanos e peruanos (DELAFIELD JR, 1839, 18).

532 Ao final de sua obra, Delafield (1839, 108-139) incluiu como apêndice um longo artigo de James Lakey

utilizado para reforçar sua teoria sobre a origem dupla dos indígenas. Em seu texto, Lakey argumenta que os

habitantes do hemisfério norte seriam superiores aos do sul. Esta diferença estaria atrelada a questões

climáticas (associada a verões menores, ao ângulo dos raios solares e à “desproporção” entre água e terra no

hemisfério sul) e poderia ser “comprovada” quando se comparava o desenvolvimento de locais como o Brasil

e a região do Prata, mais atrasados do que os Estados Unidos ainda que tenham sido colonizados pelos europeus muito tempo antes. Esta divisão estaria presente até mesmo entre os povos identificados por

Delafield como mais avançados. Ainda que faça uma descrição elogiosa da região do Peru, Lakey argumenta

que ela era inferior ao México, o que não impediria uma origem única para ambos os povos: “As the Mexicans

and Peruvians descended from the same people, the superiority of the former in the sixteenth centurv was the

effect of climate”.

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uma longa e repetitiva lista de argumentos, faremos referência a apenas alguns desses

aspectos. Ao analisar as mitologias dos povos americanos considerados por ele como mais

avançados (tendo os estudos de William Jones como base), Delafield (1839, 85) identifica a

presença de crenças e rituais hindus entre os peruanos e mexicanos (culto a Vishnu e Shiva,

respectivamente) além de encontrar referências a eventos bíblicos533

. Já ao abordar as

construções existentes em determinadas partes do continente, o autor afirma que elas eram

complexas demais para terem sido feitas pelos próprios indígenas, o que indicaria a

presença de um grupo mais civilizado nestas terras, que seria resultado de uma imigração

“from Babylon to Egypt, Egypt to Caucasus, and Caucasus to Siberia, of a learned,

warlike, and great nation”.

Outro autor que associa os mongóis aos povos “inferiores” do Novo Mundo é

John McIntosh. Em seu estudo sobre a origem dos índios publicado em 1843, este autor

defende que os indígenas apresentavam estágios de desenvolvimento tão díspares entre si

que poderiam ser divididos em dois grupos distinguíveis geograficamente: os “bárbaros”

habitantes das regiões setentrionais do continente e os povos mais “civilizados” ao sul, em

locais como o México. Segundo McIntosh (1843, 35), estas diferenças também poderiam

ser identificadas através da aparência física, das crenças religiosas e das línguas específicas

de cada um dos grupos, e seriam tão profundas que, necessariamente, deveriam ser o

resultado de origens diferentes para cada uma delas.

A defesa de uma procedência múltipla dos índios feita por McIntosh,

entretanto, não o leva a defender teorias poligenistas, que se encontravam em voga nos

Estados Unidos neste período (Morton havia publicado seu Crania americana quatro anos

antes). Através de uma argumentação extremamente atrelada às Sagradas Escrituras, este

533 Ao utilizar as Sagradas Escrituras como base para suas afirmações, Delafield (1839, 103-104) afirma que a

história desse povo original civilizado estaria atrelada a linhagem de Noé, mais especificamente a Kush, cujos

descendentes teriam colonizado o Egito: “In the civilized aboriginal race of America, we find traces of the

very language of the Cuthite race. Curious resemblances are detected in cranial formation. Their mythology,

of which some instances have been given, offers strong testimony as to original unity. They possessed the

same system of hieroglyphic inscription. Their astronomical divisions of time, and zodiacal signs, are one and the same. The same genius and peculiar taste mark their various specimens of architecture. And, finally, in

many points their customs were alike”. A este respeito, é interessante observarmos que o autor incluiu um

prefácio em sua obra, escrito pelo bispo da diocese de Ohio P. McIlvaine, onde o religioso argumenta que

todo conhecimento é derivado da Bíblia, resultando que “the most valuable discoveries in antiquity must

appeal to the Bible for interpretation” (1839, 5).

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autor ressalta que a descendência do casal original descrita no Gênesis seria a única

resposta válida para a origem dos seres humanos e, consequentemente, dos índios. A

diversidade teria sido fruto dos acontecimentos associados à construção da Torre de Babel e

à multiplicação das línguas ocorrida após sua queda. Seguindo estes critérios, McIntosh

passa parte considerável de sua obra tentando determinar de qual filho de Noé os

americanos seriam descendentes534

, até concluir que os indígenas “inferiores” do norte

estavam atrelados a Jafé (particularmente a seu filho Magog) a partir de migrações de

“bárbaros grupos tártaros”. Já os desenvolvidos habitantes das terras ao sul seriam

descendentes de Sem, através de Joctan535

, que teria gerado grupos como os “civilizados”

chineses de onde teriam partido os primeiros colonizadores da América.

Esta diferenciação foi utilizada por McIntosh para “explicar” a presença de

características tão díspares entre as regiões americanas. Assim, o fato de terem sido

encontrados indícios de vida urbana e de grandes construções em determinadas partes do

continente enquanto em outras os nativos se mostravam “utterly unacquainted with the art

of constructing them” seria resultado desta origem dupla, uma vez que, “the descendants of

Shem were certainly the first of the posterity of Noah that arrived at a state of civilization,

and consequently might be looked upon as the authors of the innumerable monuments of

antiquity which are scattered over this vast continent” (MCINTOSH, 1843, 35). Em

seguida, o autor passa a apresentar argumentos que “comprovariam” esta divisão. Neste

momento, características como raça, cor da pele e língua ganham destaque. McIntosh

afirma que existiam alguns poucos “índios brancos” nas terras a oeste que eram bem mais

desenvolvidos do que os de “raça vermelha” que habitavam a porção setentrional do Novo

534 A identificação dos ancestrais dos americanos a partir da linhagem de Noé é fundamental não apenas para

sua representação dos indígenas, mas também para a de outros povos. Para McIntosh (1843, 29), a maldição

de Cam teria sido responsável, por exemplo, pela escravidão dos negros: “[…] the slavery of the African

negroes would seem to be fulfillments of the Curse pronounced on Canaan, the son of Ham, as these people

were evidently his descendants”.

535 McIntosh (1843, 37-91) se preocupa também em analisar outras teorias sobre a origem dos indígenas para

apresentar elementos que as invalidariam ou as tornariam altamente improváveis. O autor afirma que os defensores de uma migração cartaginesa estavam totalmente enganados (uma vez que não haveria nenhum

indício de que descendentes de Cam tivessem alcançado estas terras), assim como os que indicavam uma

origem atrelada aos noruegueses (que, mesmo que tivessem alcançado o continente, teriam se limitado à

região de Labrador) e às tribos perdidas de Israel (especialmente aqueles que se pautavam na obra de James

Adair, descrita por ele como “um apanhado de afirmações suspeitas”).

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Mundo. Além disso, o autor inclui tabelas comparando palavras em diferentes línguas

americanas com outras utilizadas na Ásia, o que reforçaria a associação entre os dois

continentes. Ao final, McIntosh afirma ter encontrado “provas irrefutáveis” de que teria

havido um conflito entre os integrantes destes dois grupos, onde os mais “bárbaros” teriam

saído vencedores. Esta destruição, contudo, não teria sido completa, pois restavam ainda

alguns “vestígios” deste povo superior entre os mexicanos, que teriam migrado de terras do

norte após sofrerem os ataques, o que explicaria a existência de grandes construções e

“pinturas hieroglíficas”, entre outras características “civilizadas”, nestas regiões.

Através desses argumentos, podemos observar que McIntosh utiliza a questão

da colonização do continente como ponto de partida para reflexões mais amplas sobre os

indígenas. Em primeiro lugar, o autor estabelece que eles eram radicalmente diferentes

entre si, o que, necessariamente, indicaria origens específicas. Em seguida, ele hierarquiza

os americanos a partir de critérios como a cor da pele, a língua falada e a complexidade de

sua organização social e de suas obras arquitetônicas. Hierarquização esta, que resulta em

uma diferenciação entre os índios do “presente” e os do “passado”, cabendo

exclusivamente ao segundo grupo a responsabilidade pelas características identificadas por

ele como “civilizadas” e relacionadas a determinadas regiões do Novo Mundo, que não

poderiam ser associadas aos índios “vivos”, descritos como invasores “bárbaros”

descendentes de Magog através dos citas, mongóis e tártaros, que estavam fadados ao

desaparecimento em um futuro próximo (MCINTOSH, 1843, 73).

Ao compararmos as reflexões elaboradas por Ranking, Delafield e McIntosh

para o problema da origem dos índios, podemos observar que, apesar das divergências,

existem diversos pontos em comum entre as representações dos indígenas presentes nestes

relatos. Em todos os casos, há a identificação de níveis de desenvolvimento entre os grupos

americanos que seriam reflexos de suas origens particulares relacionadas a determinados

povos do Oriente. Além disso, ainda que sugiram procedências diferentes, todos eles

identificam regiões como o Peru e o México, com grandes construções, governos

relativamente centralizados e indícios de escrita, entre outros fatores, como tendo sido

colonizadas por grupos “civilizados”. Por fim, nas obras destes autores os “inferiores”

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índios “vivos” do século XIX não podiam ser associados aos avançados índios “mortos” do

passado.

É interessante observarmos que alguns desses aspectos persistem mesmo nas

representações dos indígenas feitas por autores que defendiam uma origem única para todos

os americanos. Este é o caso, por exemplo, de Alexander W. Bradford. Em seu American

Antiquities and researches into the origin and history of the red race (1841), este

pesquisador norte-americano defende que tanto as pesquisas científicas sobre o ser humano

quanto as narrativas bíblicas indicavam a existência de três raças claramente

hierarquizadas: a branca, a vermelha e a negra, “and that the American, Malay, Polynesian,

and Mongolian nations are members of the red race, and retain in various degrees the

characters of its original type” (BRADFORD, 1841, 292). Esta divisão leva o autor a

defender que os indígenas – ainda que apresentassem muitas características em comum536

não poderiam ser apontados como uma raça específica (como proposto por Morton, entre

outros) nem como descendentes de múltiplas origens. Partindo destas premissas, Bradford

(1841, 15-16) enfatiza que a diferenciação existente entre os índios se daria entre os “do

passado”, mais avançados, e os “do presente”. As pesquisas arqueológicas – área de grande

interesse do autor – deixariam evidente a existência destes dois grupos: quanto maior a

profundidade dos vestígios encontrados, mais características desenvolvidas e civilizadas537

poderiam ser identificadas.

536 A unidade indígena seria não apenas física, mas também linguística e religiosa, entre outros aspectos: “No

portion of the globe, of the same extent, presents so striking a uniformity in the physical conformation of its

inhabitants; and, without excepting those varieties which may have arisen from climate and peculiar modes of

life, all the aborigines of both Americas, barbarous or cultivated, in their features, color, and other

characteristic indications, exhibit the clearest evidence of belonging to the same great race of the human

family […] Broken and scattered as were the natives, into so many distinct communities, we are astonished to

find the great congruity which exists between the religious belief and ideas of all tribes, inclusive even of the

Mexicans and Peruvians. Through the whole extent of both continents this uniformity is of so decisive a

character, as to demonstrate a single primitive source” (BRADFORD, 1841, 180-181).

537 A partir da descrição do México no período da chegada dos espanhóis, Bradford (1841, 72) estabelece uma

lista de elementos que configurariam um povo civilizado: “regularly organizes states [...] established systems of Law and religion – immense cities, rivalling in the style, character and magnificence of their edifices and

temples, those of the old world; and roads, aqueducts and other public works, seldom excelled in

massiveness, durability, and grandeur. The inhabitants were clothed, the soil was tilled, many of the arts had

been carried to a high degree of advancement, and their knowledge in some of the sciences equaled, if nor

surpassed that of their conquerors”.

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A ligação dos indígenas à raça vermelha – particularmente aos mongóis538

– faz

com que o autor se preocupe em determinar o local onde teriam chegado os primeiros seres

humanos ao Novo Mundo e, mais importante ainda, qual teria sido o caminho percorrido

por esta civilização dentro do continente. Ainda que não apresente uma resposta definitiva,

Bradford afirma que a rota mais provável percorrida pelos mongóis até estas terras era

através do oceano Pacífico (a civilização não conseguiria sobreviver às baixas temperaturas

de Bering), o que iria ao encontro de muitas narrativas indígenas sobre seu passado. Esta

hipótese seria corroborada também pelo fato dos locais identificados por ele como os mais

civilizados da América estarem todos próximos ao litoral.

Para Bradford (1841, 169-171), haveria três “polos de civilização” no Novo

Mundo: determinadas regiões do atual território dos Estados Unidos, o Peru e o México.

Regiões estas, que teriam muitas características em comum e cujas diferenças seriam

pequenas e restritas a “desimportantes detalhes”. Dentre elas, o México, seguido do Peru,

seriam os “polos” mais antigos e, provavelmente, os locais de origem dos índios539

.

Entretanto, com o passar dos séculos, teria ocorrido um progressivo processo de

degeneração entre os americanos, fazendo com que as obras, características e

comportamentos mais civilizados ficassem restritos ao passado. Esta decadência, ainda que

com intensidades diferentes, já havia atingido todo o continente no período em que os

europeus chegaram a estas terras, o que o leva a concluir que: “The old system, – its moral

and social elements,– its capacity for self-improvement,– had thus been fairly tried and

tested; and the time had arrived when a new race, and the Christian religion, were

appointed to take possession of this soil”. Através destas palavras, que encerram seu livro,

podemos observar que, para Bradford (1841, 435), a chegada da raça branca e,

538 Bradford (1841, 433), contudo, não descreve os americanos como descendentes de algum povo específico

da raça vermelha, como os chineses ou egípcios, mas sim como frutos de um mesmo e antiquíssimo processo

de migração ocorrido logo após o dilúvio, que gerou civilizações com características semelhantes tanto no

Novo Mundo quanto no Velho.

539 “[…] these facts may perhaps afford a basis for a reasonable conjecture, that the first seat of American

civilization was in Central America: that from the first colony there planted, population was diffused northwardly into the United States, whence, at a subsequent period, the tide of emigration rolled back; and

southwardly, along the Cordilleras, into South America: and that at this remote period, various tribes, rapidly

declining in civilization as they separated from their parent stock, expanded over the vast territory stretching

before them in both continents, until the whole western hemisphere was peopled by one great race”

(BRADFORD, 1841, 213-214).

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consequentemente, do cristianismo foi algo muito positivo para o continente americano e,

principalmente, para seus habitantes, por se tratar do início de um processo inexorável de

substituição de uma civilização decadente por uma “nova era de civilização”.

Um último exemplo de autor que relaciona a origem dos índios ao Oriente sem

fazer referência aos arianos é Charles Schoebel. Contudo, para ele, as migrações

provenientes desta região estariam associadas apenas aos grupos mais bárbaros do

continente. Em seu artigo Étude sur l'antiquité américaine, publicado na Revue Orientale &

Américaine em 1862, este autor parte das análises de duas obras de Brasseur de Bourbourg

(que serão abordadas posteriormente) para concluir que a presença de características

civilizadas no Novo Mundo (como as grandes construções e a vida urbana) ao mesmo

tempo em que costumes bárbaros (como o canibalismo e os sacrifícios humanos)

continuavam sendo praticados deveria ser atribuída a uma origem dupla dos indígenas: os

povos “avançados” descenderiam de povos europeus enquanto os grupos “inferiores”

teriam ancestrais asiática (SCHOEBEL, 1862, 174-191; 287-305).

A análise que o autor faz das migrações dos “civilizados chichimecas” para a

América do Sul é exemplar desta divisão. Para Schoebel (1862, 292-293), estes grupos

teriam retornado ao estado selvagem ao se estabelecerem na região do Peru, com exceção

de uma tribo, a dos Vitznahuas/quíchuas, que teriam mantido as características civilizadas

de seus ancestrais europeus540

ao construírem grandes obras como as existentes em

Tiahuanaco. Já os rituais antropofágicos e sacrifícios que seriam realizados nestes locais

seriam fruto de outra migração, dos toltecas de ascendência asiática541

. Dessa forma,

podemos observar que, mesmo para este autor, que adota a postura incomum entre seus

540 Nas páginas finais de seu artigo, Schoebel (1862, 295) afirma que também foram encontrados indícios de

que os chichimecas teriam uma origem asiática, mas ressalta que eles são vagos e não permitem fazer nenhum

tipo de afirmação.

541 Schoebel (1862, 305) defende que a inferioridade deste grupo estaria relacionada aos tempos bíblicos:

“[...] si enfin nous considérons la possibilité que fait ressortir M. Brasseur de Bourbourg de l’immigration de la race nahuatl dans l’Amérique par le nord-est de l’Asie, nous nous voyons conduit en quelque sorte comme

par la main à conclure que les Nahuas-Toltèques appartiennent à cette race que le texte de notre Genèse

nous montre comme n’ayant pas été atteinte, dans sa totalité, par le déluge qui engloutit tous les Sethites, à

l’exception de quelques personnes seulement, et cette race est la race Caïnite, drâvidienne, céphène,

n’importe le nom. La race caïnite verse le sang humain dès son origine”.

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contemporâneos de associar apenas as características inferiores ao Oriente, persiste a

percepção dos índios como originalmente diferentes entre si.

i) o Novo Mundo e as terras de Fou-sang

Postura semelhante à da maioria dos autores citados acima, ainda que resulte

em uma hipótese totalmente diferente, é adotada por Gustave D’Eichtal em seu Étude sur

les origines bouddhiques de la civilisation américaine (1865)542

. Ao defender as origens

budistas543

da civilização no Novo Mundo, este helenista francês afirma ter utilizado o

plural para falar da procedência dos indígenas “parce que la civilisation américaine [...] me

paraît avoir eu des origines diverses, même du cote de l’Asie” (D’EICHTAL,1865, 1-2). A

teoria elaborada por D’Eichtal sobre a colonização americana segue muito de perto os

escritos de Humboldt544

e, especialmente, as propostas feitas por Joseph de Guignes na

segunda metade do século XVIII, para quem a América teria sido colonizada por povos

bárbaros do norte da Ásia e, posteriormente, por grupos chineses responsáveis pela

introdução da civilização neste continente. Isto leva o autor a dedicar muitas páginas à

tentativa de comprovar que as pesquisas e expedições ocorridas posteriormente teriam

reforçado a veracidade das hipóteses de Guignes, além de apontar contradições e erros entre

os argumentos dos críticos da teoria que identificava a América como as terras de Fou-sang

descritas em algumas antigas narrativas chinesas (Cf. Capítulo 4).

Dando seguimento a esta teoria, D’Eichtal (1865, 19-20) defende que os

chineses que teriam alcançado as terras americanas eram de origem budista (algo não

apontado por Guignes em seus escritos), o que explicaria o grau de desenvolvimento

alcançado por grupos de regiões como o México e o Peru. A partir desta premissa, o autor

542 Esta obra é uma compilação de artigos publicados nos anos anteriores por D’Eichtal na Révue

Archéologique.

543 Díaz-Andreu (2007, 225-226) afirma que houve ao longo do século XIX um aumento dos estudos sobre o

budismo a partir da arqueologia em detrimento das pesquisas sobre o hinduísmo iniciadas no século anterior

por autores como William Jones: “the focus was on looking for the origins of Buddhism, and in this context the earliest periods were favored; later periods were considered to show a degeneration from an initial, more

pure form of Buddhism”.

544 Na tentativa de reforçar seus argumentos, D’Eichtal (1865, 35-45) retoma os argumentos expostos pelo

prussiano em seu Vues des Cordillères, descrito por ele como a primeira obra que comprovaria a colonização

oriental do Novo Mundo a partir de critérios “científicos”.

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passa a descrever o itinerário percorrido pelas crenças budistas a partir da Índia em direção

ao Oriente até alcançar as terras do Novo Mundo, processo que teria sido realizado por

missionários que não seriam “seulement des théologiens, ce sont des artistes, souvent même

des artisans, des mathématiciens, des astronomes; ils elèvent des temples, fondent ou

sculpetent des statues, sculpetent des ornements utiles, les théories et les procédés

scientifiques qui servent à régler le cours du temps; ils apportent des livres et des images

en grand nombre” (1865, 34-35).

De acordo com o autor, apenas a presença de povos budistas – integrantes da

“raça branca” – poderia explicar a existência de características civilizadas em determinadas

partes do continente, uma vez que os primitivos habitantes destas terras seriam incapazes de

desenvolver costumes e crenças elaboradas, métodos cronológicos “engenhosos” e

construções tão complexas545

. Neste ponto, as ruínas de Palenque ganham papel central.

D’Eichtal (1865, 75-76) dedica um de seus artigos apenas aos vestígios encontrados neste

local que, para ele, conteriam evidências contundentes da presença budista e de sua ação

civilizadora. Tendo como base a obra Parallèle des anciens monuments mexicains avec

ceux de l’ancien monde, do arqueólogo francês Alexandre Lenoir, o autor vai além, ao

afirmar que sua análise indicaria a existência não apenas de um “paralelo”, mas sim de uma

“véritable identité”.

A hipótese que associava a América à China através das lendas sobre as terras

de Fou-sang foram debatidas por outros autores além de D’Eichtal, seja para negá-la ou

para apoiá-la. Do primeiro grupo, destacamos Julius Heinrich Klaproth, linguista e

545 Ao falar sobre os conhecimentos cronológicos presentes em alguns grupos indígenas, D’Eichtal é

categórico ao afirmar que “[...] cette conaissance si approchée de la durée exacte de l’année, n’étaient

évidemment pas, sur le sol américain, des créations indigènes”. A ligação entre raça e civilização associada a

determinadas características físicas e morais a partir da crença budista que teria se introduzido no Novo

Mundo pode ser observada, por exemplo, na passagem em que o autor descreve os índios Mandans

(habitantes da região do Missouri, na América do Norte), raro caso de grupo de peaux-rouges que teriam

práticas civilizadas: “[...] ce n’est pas seulement à raison de leurs caracteres physiques, soit de leurs

croyances et de leurs pratiques religieuses que Catlin croit reconnaître chez les Mandans les traces d’un

contact avec une race non américaine, avec une race blanche et civilisée; c’est aussi à raison de leurs moeurs

plus douces et plus polies, et de leur industrie bien plus développée que celle de leurs voisins [...] Sans doute, il y a dans ces vertus quelque chose qui appartient à l’héroïsme guerrier, tel qu’il existe chez tous les Indiens

du Nord. Mais cette grande douceur de moeurs, cette disposition si affectueuse viennent d’une autre source;

et puisque nous avons reconnu l’influence manifeste du Bouddhisme dans les pratiques religieuses, dans les

croyances, peut-être même dans la race, pourquoi craindrions-nous de la reconnaître aussi dans le caractère

moral de ces hommes?” (D’EICHTAL, 1865, 42; 62).

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orientalista alemão que, na década de 1830, publicou vários textos onde procurava rebater

os argumentos apresentados por Guignes e para defender que a lendária Fou-sang seria uma

referência ao Japão. Já entre os apoiadores546

, podemos citar Charles Hippolyte de Paravey

que, em 1844, publicou seu L’Amérique sous le nom de pays de Fou-sang. Assim como

D’Eichtal afirmaria anos depois, este engenheiro francês, orientalista e pensador cristão547

,

argumenta que a América teria sido povoada por “nações ferozes” e, posteriormente,

embarcações chinesas teriam introduzido a civilização a estas terras, o que poderia ser

comprovado pelas ruínas das cidades de Palenque e Iucatã descritas por Waldeck em seu

relato de viagem548

.

ii) os índios arianos

Apesar de ser abordada por vários autores, a hipótese que associava a América

às terras de Fou-sang permaneceu secundária e limitada a poucos estudos durante todo o

século XIX. Por outro lado, obras que identificaram o conceito de raça ariana como base

para as suas “respostas” em relação à(s) origem(ns) do homem americano foram mais

numerosas e alcançaram maior repercussão entre seus contemporâneos. Na impossibilidade

546 O historiador norte-americano Justin Winsor (1889, 76-81) cita obras de diversos autores que, entre as

décadas de 1860 e 1880, se dedicaram à hipotética identificação da América como a Fou-sang chinesa, como

E. Bretschneider, Lucien Adam, Léon de Rosny, Charles Godfrey Leland, Hervey de Saint Denis e E. P.

Vining.

547 Parte significativa das obras de Paravey foi publicada originalmente nos Annales de philosophie

chrétienne. A nota introdutória do diretor deste periódico deixa evidente as implicações com a teologia cristã que as reflexões sobre a origem dos índios e da civilização na América poderiam suscitar: “En lisant cette

curieuse dissertation de M. de Paravey, nos lecteurs ne doivent pas oublier que sa principale importance,

pour nous, est qu'elle fournit les moyens d'expliquer comment quelque connaissance du Christianisme a pu

arriver dans le Nouveau-Monde, beaucoup avant le voyage des Espagnols; et comment, par conséquent, on a

pu trouver des souvenirs de la Bible au Mexique, des croix et autres symboles chrétiens sur les monumens

découverts à Palenque et aiIIeurs" (PARAVEY, 1844, 5).

548 “Nous ne pourrions affirmer cependant que ces temples du Yucatan fussent aussi anciens que cette relation

du Fou-sang, pays où l'on ne nous montre encore que des cabanes en bois; mais, persécutés par les Brahmes

dans l'Inde et le Sind, les Bouddhistes ont dû, à plusieurs reprises, chercher un asile dans le Fou-sang ou

l'Amérique, et peut-être même fuir à Bogota et jusqu'au Pérou, où les moeurs ont été trouvées si douces et si

analogues à leurs moeurs [...] Monumens bouddhiques au Yucatan; histoires conservées par les Toltèques du Japon venus en Amérique; relations chinoises du pays de Ta-Han et du vaste pays de Fou-sang, et qui nous

sont donnée par les Bouddhistes, partis de ce pays d'Amérique, et qui par le Japon, venaient en Chine: tout

est donc parfaitement d'accord; ce passage, par le Japon, expliquant d'ailleurs comment nous avons pu

montrer, dès 1835, que les noms de Nombre et beaucoup de Mots de la langue des Muyscas sur le plateau de

Bogota se retrouvent encore dans la langue actuelle dos Japonnais” (PARAVEY, 1844, 18-19).

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de analisarmos um grande número delas, centraremos nossa atenção nas produzidas por

dois historiadores: o argentino Vicente Fidel López e o brasileiro Francisco Adolpho de

Varnhagen.

Esta escolha deriva de alguns aspectos que gostaríamos de ressaltar. Em

primeiro lugar, as reflexões sobre a procedência do homem americano feitas por López e

Varnhagen são contemporâneas (ambas foram publicadas na década de 1870549

) e

trabalham com obras, conceitos e métodos semelhantes em suas representações dos

indígenas e de seu passado remoto (como o de civilização e o de raça ariana além do papel

central dado aos estudos linguísticos – especialmente às línguas indo-europeias – em ambos

os casos). Estas obras também percorreram uma trajetória semelhante. Apesar de terem sido

escritas por historiadores que exerceram grande influência dentro da historiografia

argentina e brasileira respectivamente, elas tiveram uma repercussão majoritariamente

negativa quando lançadas. Ambas também permaneceram pouco estudadas posteriormente,

em muitos casos, por serem interpretadas como “desvios” ou “equívocos” dentro das

produções destes autores. Por fim, estas obras foram publicadas na França, sem traduções

para o espanhol e o português, o que ressalta a tentativa de uma interlocução mais estreita

com os intelectuais europeus associada à busca por uma “legitimação” do passado de seus

países para além do território nacional.

Entretanto, é importante fazermos algumas ressalvas. Em primeiro lugar, não

procuramos identificar como a origem dos índios foi abordada nestes dois países nem

realizar uma análise comparada entre eles, mas sim observarmos as formas como autores de

diferentes locais associaram os primórdios da presença humana na região ao conceito de

civilização e à “história nacional” a partir de uma representação hierarquizada dos grupos

indígenas. Além disso, como apontado por Lilia Moritz Schwarcz (1993, 15-17) em sua

análise sobre a influência que os modelos raciais produzidos durante o século XIX tiveram

na produção científica e cultural brasileira do período, discordamos das interpretações que

549 Díaz-Andreu (2007, 167) identifica esta década como o período onde “the local scholarly pride for the

pre-Hispanic past re-emerged”. De acordo com a autora, após os anos iniciais do século XIX, marcados pelos

movimentos de independência das colônias ibéricas na América Latina, houve um período de retração do

interesse pelo passado remoto dos indígenas, influenciado pela emergência do pensamento racial, que só

voltaria a ganhar destaque por volta de 1870.

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identificam os autores que adotaram conceitos formulados na Europa, como o de raça e de

línguas indo-europeias, como “cópias inautênticas, reprodutores de modelos que se

refeririam a realidades, por essência, díspares da nossa” ou como uma mera decorrência do

imperialismo sobre estas terras.

Vicente Fidel López

Entre 1865 e 1869, o já reconhecido advogado, político e historiador argentino

Vicente Fidel López publicou diversos artigos na Revista de Buenos Aires onde abordava a

questão da origem dos índios e defendia a existência de descendentes da raça ariana na

região do Peru. Em 1871, estas reflexões, descritas como “extremamente áridas”

(SCHAVELZON, 2004) e “particularmente atrevidas” (QUIJADA, 1996), foram

publicadas em Paris com o título Les Races Aryennes du Pérou; leur langue, leur religion,

leur histoire. Entre as razões para editar sua obra em francês550

, López (1871, 1-3) aponta

uma questão prática (não havia na América imprensas que possuíssem os “caracteres

peculiares” de idiomas como o grego e o sânscrito presentes em seu texto), mas ressalta sua

busca por uma maior interlocução com autores para além da Argentina: “El idioma francés

es además el vehículo mas generalmente conocido en el mundo para los trabajos

científicos, y en nuestro mismo país es entendido por todos cuantos habrían podido

estudiar mi libro en español”.

Em seguida, López (1871, 11-12) passa a expor sua teoria de que a civilização

ariana teria alcançado o continente americano há milhares de anos. O autor ressalta que,

diferente do apontado por muitos “sábios europeus”, a América do Sul não seria um local

formado apenas por povos com línguas bárbaras “dépourvus de toute culture politique et

littéraire”. Dentre os grupos que habitavam esta região, o historiador destaca os incas,

descritos como uma “civilização desenvolvida e poderosa”551

cuja língua seria uma

550 À exceção do prefácio, mantido em espanhol, o conteúdo foi publicado em francês a partir da tradução

feita pelo egiptólogo Gaston Maspero. Para informações biográficas sobre Maspero e López (que, durante parte do período de produção desta obra, encontrava-se exilado em Montevidéu, de onde chegou a se

candidatar – sem sucesso – à presidência da Argentina) e o processo de produção desta obra, Cf.

SCHAVELZON, 2004.

551 A descrição feita por López (1871, 13) do império inca permite observarmos algumas das características

identificadas por ele como “civilizadas”: a existência de um império de grandes proporções territoriais e

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derivação do ariano552

que teria permanecido inalterada mesmo após mais de trezentos anos

de contato com os espanhóis (sendo ainda utilizada em algumas partes do continente sob a

denominação de quíchua). Sua descrição extremamente positiva dos incas e a associação

com a raça ariana levam o historiador argentino a argumentar que, a despeito do que muitos

autores apontavam desde o período colonial, este grupo indígena tinha uma origem muito

antiga, que poderia ser “comprovada” através dos estudos linguísticos realizados por

autores como Max Müller e Franz Bopp553

.

Após dezenas de páginas dedicadas às questões linguísticas, López (1871, 123)

inicia a segunda parte de sua obra, cujo objetivo seria “prouver, par l'examen des traditions

historiques et mythiques du Pérou, que les habitants de l'Amérique du Sud ont avec les

colons de l'Europe et de l'Inde une communauté d'origine indiscutable”. Neste trecho, o

autor passa a estabelecer equivalências entre características atribuídas por ele aos arianos e

aos incas. Assim, as observações astronômicas realizadas pelos nativos desta parte da

América seriam idênticas não apenas às feitas por seus ancestrais arianos, mas também às

dos egípcios, o que, mais uma vez, “prouve leur communauté d’origine” (1871, 175). A

análise feita pelo autor sobre as crenças religiosas dos peruanos é exemplar a este respeito.

Para López (1871, 195), a divindade Viracocha não teria sido criada no Peru nem estaria

populacionais; um líder poderoso que controlaria um exército permanente e uma frota naval numerosa; uma

religião “pure” com sacerdotes de “morale élevée”; uma nobreza intrépida e instruída; um povo inteligente,

trabalhador e submisso; um terreno fértil e com grande presença de metais preciosos, entre outros aspectos.

552 López (1871, 20-21) retoma a divisão das línguas em três níveis (isolantes, aglutinantes e reflexivas) proposta por autores europeus como Schlegel e Müller para justificar a associação da língua falada pelos incas

com o ariano apesar das grandes diferenças que existiriam entre elas: “[...] pour expliquer les divergences

capitales que présente sa constitution grammaticale, il faut ajouter qu'il a dù se séparer de la langue mère à

une époque où cette langue ne se servait pas encore d'un système accompli de flexions et cherchait sa forme

définitive: pour tout dire en deux mots, le quichua est une langue arienne aggluinante”. Para ele, o longo

período de isolamento no Novo Mundo teria feito com que esta língua, a despeito de sua “inquestionável”

origem ariana, tivesse também alguns elementos associados às línguas turanianas (conceito que será abordado

no item seguinte).

553 Para López, os estudos linguísticos eram capazes de fornecer informações abundantes, precisas e

confiáveis sobre as trajetórias percorridas pelas sociedades humanas. Esta postura leva o autor a realizar

longas análises sobre a formação de palavras quíchuas que, segundo ele, reforçariam seus argumentos: “para dar un giro ‘científico’ a su trabajo, López adaptó inicialmente sus argumentos al modelo formal de los

primeros capítulos de la Gramática Comparada de Franz Bopp, en su edición francesa de 1865. Como Bopp,

el historiador argentino comenzó su análisis por el sistema fonológico, procurando adaptar lo que él llama

‘abecedario’ quechua a los planteamientos del citado lingüista, y utilizando los comentarios de éste para sus

propios fines” (QUIJADA, 1996, 258).

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associada às crenças existentes na região da Nova Espanha (hipótese, segundo ele, sugerida

por vários autores), mas seria “purement asiatique, et vint à travers l'océan établir ses

autels au pied des Cordillères péruviennes”. Em seguida, o historiador retorna às análises

linguísticas para identificar semelhanças entre os nomes de divindades de diferentes locais

(como Grécia, Egito e Peru, entre outras) e defender a existência de crenças comuns a todas

elas. Este argumento leva o autor a criticar duramente as teorias do escritor francês Charles

Étienne Brasseur de Bourbourg de que haveria uma noção da trindade entre os nativos554

para defender que:

“Chez les peuples civilisés du Pérou, l'idée de l'Ètre suprème

revètait deux formes bien distinctes: d'un côté l'on trouvait un idéalisme

monothéiste, un Dieu révélateur et pur esprit, capable néanmoins de s'incarner

dans une nature indépendante et de se créer lui-même en dehors de lui-même,

comme le Dieu père du dogme catholique555; de l'autre le panthéisme, la

divinisation des forces vives de la nature, dont l'activité s'exerce toujours, sans

pouvoir jamais s'élever jusqu'à l'état de pur esprit, indépendant de la matière. La

première de ces formes est Illa-Tksi Huira-Kocha, le Jèhova hébraïque; la

seconde est Papacha-Kamak, analogue au Ptah des Égyptiens” (LÓPEZ, 1871,

217).

Mais do que isso, López passa a identificar entre os incas uma trajetória

equivalente à dos povos europeus, que também seriam descendentes dos arianos556

. O autor

estabelece uma divisão em dinastias dentro da história destes indígenas. A primeira delas

seria a dos Pirhuas, descrita como uma espécie de Antiguidade clássica americana, onde

554 Bourbourg, cuja análise será retomada ao final do capítulo, é um dos autores mais criticados por López em

sua obra. Entre outros aspectos, por defender uma origem recente da civilização inca e associá-la a migrações

de povos oriundos da região da Nova Espanha, retirando a primazia da civilização no Novo Mundo atribuída

pelo historiador argentino aos incas (Cf. LÓPEZ, 1871, 201; 216; 261; 292).

555 A associação entre as “crenças incas” e o cristianismo leva o autor a estabelecer uma série de equivalências, como, por exemplo, entre o costume dos cristãos de se persignarem e o dos indígenas peruanos

de carregarem consigo bezoares (pedras encontradas nos estômagos de alguns animais ruminantes) (LÓPEZ,

1871, 246).

556 Esta associação entre as duas trajetórias faz com que López (1871, 306) chegue a identificar um “Carlos

Magno” peruano além de um líder inca contemporâneo a Jesus que teria realizado uma série de avanços.

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teria ocorrido uma série de inovações (como uma forma de escrita anterior aos quipus).

Este período teria sido interrompido por invasões bárbaras que simbolizariam o início da

dinastia dos Amautas, marcada pela forte religiosidade, corrupção de valores e conflitos

constantes557

. Por fim, com a dinastia Inca teria se iniciado uma espécie de renascimento

(1871, 278). Com isso, o autor conclui: “j'ai toutefois la conviction que, pour des gens non

prévenus, cette exposition aura prouvé que, par leur religion et par leurs superstitions

mêmes, comme par leur langue et leurs coutumes, les Péruviens se rattachent étroitement à

cette race aryenne dont nous nous vantons à si juste titre d’être les descendants” (1871,

252).

López se preocupa em advertir que esta representação altamente elogiosa dos

incas refere-se apenas ao passado deste povo. Para ele, os nativos que ainda viviam nestas

terras durante o século XIX seriam, devido a um longo processo de degeneração, um “parco

reflexo” daquela grande civilização (1871, 181). Mesmo assim, estes grupos ainda seriam

superiores aos outros americanos. Isto faz com que o historiador argentino defenda que os

índios/arianos teriam características diferentes de todos os povos do Novo Mundo558

, o que

seria fruto de uma origem particular. Para ele, seria até possível discutir se o ser humano

surgiu em uma ou em várias partes do mundo simultaneamente, contudo, afirmar que povos

desenvolvidos como os incas teriam alcançado este avançado grau de civilização de forma

autônoma era inadmissível. Seguindo esta premissa, a origem deste povo deveria ser

externa559

, sendo necessário expandir a busca para o Velho Mundo.

557 O autor afirma que, durante a dinastia Amauta: “La civilisation antique fut étouffée par les tribus sauvages

du continent; les rois abandonnèrent Cuzco, l'empire se divisa, les lettres se perdirent. Le Pérou passa, de

mème que l'Europe, par une série de transformations que l'on pourrait appeler son moyen âge” (LÓPEZ,

1871, 177).

558 “La couleur est notablement uniforme chez les individus de race pure; elle n'est ni rouge, ni cuivrée,

comme celle qu'on attribue généralement aux Indiens de l'Amérique du Nord, ni jaunàtre comme chez les

Indiens du Brésil [...] M. Pritchard assure, de son côté, que les qualités morales des Quichuas forment le plus

complet contraste avec celles qu'on prête généralement aux autres races du nouveau monde” (LÓPEZ, 1871,

332).

559 López (1871, 334) ressalta que a origem dos incas não podia ser associada aos povos da Nova Espanha por

estes serem mais recentes. Ainda que não afirme categoricamente, o autor chega a aventar a possibilidade

inversa, com os mexicanos como descendentes da civilização andina: “M. Fergusson rattache-t-il les

Toltèques aux races du Sud. Hua-Tamala veut dire la race du ponent; Yucatan est un composé de Yak-Atan,

racines quichuas qui signifient ‘les compagnies guerrières’. Que de telles coïncidences soient casuelles ou

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Por fim, o autor encerra sua obra560

com uma passagem de Plutarco onde são

narrados os contatos que os gregos teriam mantido em seus primórdios com terras distantes,

defendendo que o mais provável é que elas se tratavam do Novo Mundo: “Plaçons Ariens

où Plutarque met Grecs, examinons les langues, les théogonies, les légendes, les arts,

l'industrie, la science, et nous ne pourrons plus nier l'unité des deux races qui ont, depuis

des siècles, peuplé et civilisé les deux grands continents dont se forme notre monde” (1871,

341). Dessa forma, López conclui que, independentemente da origem dos outros indígenas

(apontada como necessariamente diferente da dos incas, mas não abordada pelo autor em

sua obra), os civilizados peruanos seriam descendentes diretos dos arianos, assim como os

gregos, cuja trajetória no Velho Mundo seria muito semelhante à destes indígenas na

América561

.

Ao analisar este livro de López, Mónica Quijada afirma que, nele, o autor

buscou remeter a origem da comunidade nacional às glórias do passado incaico a partir de

um propósito duplo: “1) la incorporación de una civilización americana a la historia

universal, ubicándola en los peldaños más altos de la escala jerárquica acuñada por la

época, y 2) la fundamentación de esto a partir de una metodología ‘científica’ [...] Y

recurrió para ello a una de las ciencias punteras del momento: la Lingüística”562

. A

associação com a cultura andina já havia sido realizada por outros autores durante os

non, on peut expliquer ces noms par le quichua, tandis que nul des noms péruviens ne peut s'expliquer par les

langues mexicaines”.

560 O livro de López contém ainda uma terceira parte (um vocabulário ario-quichua) e alguns apêndices, onde

o autor inclui trechos do poema La Argentina, de Martín del Barco Centenera, descrições coloniais sobre as

dinastias incas e observações sobre o quíchua.

561 Em um de seus artigos que antecederam a publicação desta obra, López é taxativo ao afirmar que: “No

pertenece a la conquista española el mérito de haber transformado el desierto argentino formando en él los

puestos civilizados que hoy existen. Esos puestos la precedieron: y esa transformación, cuando vino a

usufructuaria, estaba ya consumada por el Culto del Sol. [... ] Los telares, la agricultura, la metalurgia, la

minería, la irrigación, la vida civil, las artes, las postas: todo estaba formulado y resuelto” (apud QUIJADA,

1996, 249).

562 De acordo com a historiadora, as referências ao passado incaico como base da nacionalidade argentina,

argumento defendido por López nesta obra, trazia consigo três problemas: justificar a referência a um grupo ancestral externo aos limites geográficos argentinos (o que teria levado o autor, através da toponímia, a

associar parte significativa do território argentino ao “grande império peruano”); lidar com uma produção

científica que associava as culturas americanas aos degraus inferiores da humanidade e, por fim, encontrar

uma forma – no caso, a filologia – de demonstrar a grandiosidade da cultura andina (QUIJADA, 1996, 247-

249).

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conflitos no início do século XIX que resultaram na independência das colônias americanas

em relação à Espanha563

. No entanto, elas teriam perdido força com o passar do tempo564

,

só retornando décadas depois através de obras como esta.

Ainda de acordo com Quijada, López teria utilizado os conceitos raciais e

linguísticos então em voga na Europa como base para elaborar uma “resposta científica”

aos argumentos de autores como Max Müller. O escritor argentino teria se aproveitado das

dificuldades de adaptação da cultura quíchua à escala hierárquica dos grupos humanos

(como já pudemos observar acima no caso de Schlegel) para associá-la aos povos mais

avançados. Sua teoria partia da divisão proposta por diversos autores europeus de uma

sequência evolutiva entre as línguas isolantes, aglutinantes e reflexivas para defender que o

quíchua era a língua ariana, ou indo-europeia, em sua remota fase aglutinante: “En otras

palabras, eran los propios desarrollos de la lingüística comparada los que proporcionaban

a Vicente Fidel López la justificación y los medios para intentar demostrar el origen ario

de la lengua quechua y del pueblo que la hablaba” (QUIJADA, 1996, 254-257). Através

das reflexões de Quijada, podemos retomar as afirmações feitas por Lilia M. Schwarcz

(1993, 17) algumas páginas atrás para reforçarmos nossa interpretação de que “o que se

pode dizer é que as elites intelectuais não só consumiram esse tipo de literatura [europeia],

como a adotaram de forma original”.

563 De acordo com Jesús Díaz-Caballero (2005), o “incaísmo” surgido na região da Argentina estava associado a elementos como as antigas relações entre os vice-reinos do Prata e do Peru, a influência da

Universidade de Chuquisaca na formação de alguns líderes argentinos do período e na ressonância que ainda

havia da revolta de Tupac Amaru II. Para ele, a identificação de um passado inca atuou “como una ficción

orientadora provisional de la legitimación política y simbólica de una nación criolla que todavía no tenía

límites territoriales definidos”. O autor faz ainda referência ao projeto monarquista incaico proposto pelo

criollo exilado Francisco de Miranda, que inspirou as discussões travadas durante o Congresso de Tucumán,

em 1816, sobre a possibilidade de se estabelecer uma monarquia incaica como forma de governo. É

interessante observamos ainda que o hino nacional argentino, denominado inicialmente Marcha Patriótica,

faz referência aos incas em uma de suas estrofes (“Marte mismo parece animar / la grandeza se anida en sus

pechos: / a su marcha todo hacen temblar. / Se conmueven del Inca las tumbas, / y en sus huesos revive el

ardor, / lo que va renovando a sus hijos / de la Patria el antiguo esplendor”) e foi composto pelo pai de Vicente Fidel López, o escritor, advogado e político argentino Vicente López y Planes, em 1813. Para uma

lista de referências ao “tema del Inca” na região do Prata durante as décadas de 1810 e 1820, Cf. RÍPODAS

ARDANAZ, 1993.

564 Díaz-Caballero (2005) identifica o ano de 1826, com a criação da Bolívia, como um marco de inflexão em

relação ao interesse pelo incaísmo no Prata.

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O livro de López sobre as raças arianas do Peru obteve uma recepção mista

entre os poucos contemporâneos que a analisaram. De um lado, autores como o peruano

José Fernández Nodal, o brasileiro Couto de Magalhães e alguns participantes do primeiro

Congresso de Americanistas realizado em 1875 na cidade francesa de Nancy elogiaram e

chegaram a adotar algumas de suas ideias. Já na Argentina, contudo, com exceção de

alguns poucos autores (como Juan María Gutiérrez), ele foi criticado ou ignorado,

encontrando na figura de Bartolomé Mitre um de seus maiores opositores (QUIJADA,

1996, 261-263)565

.

Em relação às teorias de López sobre uma ligação entre a raça ariana, os incas e

o passado “nacional” argentino, este célebre historiador e político566

afirma em nota

manuscrita à margem de seu exemplar do Les races aryennes que:

"Si la sociabilidad peruana hubiese contenido alguna vez un

principio de desarrollo moral siquiera, daría testimonio de ello su lengua, la cual

por el contrario nos dice, y nos enseña, que no solo no tenía ningún abstracto, ni

aun siquiera para generalizar las cosas materiales, pero que ni aun tenia los

elementos para levantarse de la abstracción […] Si en 4000 años la civilización

peruana no pudo llegar sino al estado en que la encontraron los españoles,

quiere decir que no llevaba en sí el germen del progreso, y que lo mismo que su

lengua no podía dar ya nada” (apud QUIJADA, 1996, 262-263).

Como apontado por Freitas Neto (2009, 399-401), Mitre chega a associar o

passado argentino aos incas, mas “busca estabelecer diferenças entre o processo platino e o

da região andina, embora reconheça que foram ‘impulsionados pelos mesmos objetivos’”.

565 É importante ressaltarmos que as disputas teóricas entre Mitre e López travadas especialmente na década

de 1880 já foram analisadas por uma série de autores (Cf. HALPERIN DONGHI, 1994; DEVOTO e

PAGANO, 2009) e não são o objetivo deste item. Sobre elas, Freitas Neto (2011, 81-82) aponta que: “Mitre

afirmava que a investigação do historiador devia ‘constituir uma crônica dos sucessos passados, não como

uma encarnação de uma capacidade adivinhatória ou intuitiva do historiador, mas como um produto do

trabalho de comprovação’ [...] Fidel López, por sua vez, passou para a tradição historiográfica chamada ‘erudita’ ou ‘científica’ e representada por Mitre, como um oponente que expressaria um jogo simplificador,

com ‘sentimento, paixão e subjetividade’, um modelo ‘filosófico’”. Ainda segundo este historiador, a partir da

afirmação de Elias Palti, “as duas perspectivas não eram tão díspares, pois nem López era alheio ao rigor

heurístico, nem Mitre carecia de uma dimensão filosófica”.

566 Entre outros vários cargos políticos, Mitre foi presidente da República Argentina entre 1862 e 1868.

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Contudo, o historiador ressalta que, em vários momentos, os escritos de Mitre descrevem os

indígenas como inaptos para a vida civilizada.

Algumas interpretações feitas por Mitre sobre os indígenas e, em especial, seu

passado remoto, podem ser observadas em Las ruinas de Tiahuanaco (1879), relato de sua

breve passagem pelas ruínas desta cidade pré-incaica realizada mais de trinta anos antes

quando o então jovem militar e jornalista foi obrigado a deixar o território boliviano e se

exilar no Peru devido às disputas políticas internas daquele país. Nesta obra, o influente

historiador argentino estabelece uma clara divisão entre os índios do “presente”, os

“semicivilizados” incas e seus descendentes e os pioneiros moradores desta cidade, “una

raza constructora, más adelantada que la que encontraron los descubridores españoles en

el Perú”567

.

Ao abordar as ruínas, o autor é extremamente elogioso, comparando-as com a

arte egípcia e grega, ainda que ressalte se tratar de “una obra original con tipos únicos, que

se contempla con creciente asombro”568

. Estas características indicariam para o autor que o

“verdadeiro homem americano primitivo” estaria relacionado a Tiahuanaco e teria

alcançado estas terras durante o período Quaternário (MITRE, 1954, 140). Contudo, esta

avançada cultura teria se degenerado dando origem a “imbéciles descendientes”. De acordo

com o autor, os grupos indígenas americanos, mesmo aqueles considerados mais

adiantados, não possuíam condições físicas, mentais e materiais que permitissem seu

aperfeiçoamento, “por eso las dos civilizaciones de Tiahuanaco estaban fatalmente

567 O autor chega a afirmar que mesmo cidades como Cuzco teriam uma origem anterior aos incas, sendo

construídas por outro povo mais desenvolvido. Da mesma forma, Mitre (1954, 103) também nega que

Tiahuanaco estava associada aos ancestrais dos aimarás.

568 Mitre (1954, 190) chega a identificar através dos vestígios materiais a presença de duas culturas sucessivas

em Tiahuanaco, o que não seria uma contradição: “La existencia de una raza que hubiese alcanzado el grado

de cultura moral de que las estatuas dan muestra, y que profesara el culto humano de los antepasados o de los héroes, podría ser el punto de partida de esta evolución de retroceso. La invasión de otra raza extraña,

menos culta, pero más enérgica, más guerrera, trayendo o imponiendo el culto primitivo y severo de los

ídolos geométricos y edificando su templo sobre los escombros del antiguo culto, explicaría el retroceso

mismo. Tal es por otra parte la marcha que la evolución social ha seguido en América, desde sus tiempos

prehistóricos hasta los últimos días de la época antecolombiana”.

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destinadas a morir por esterilidad, cualquiera que fuese el orden cronológico en que se

sucedieran” (1954, 191)569

.

Dessa forma, as ruínas de Tiahuanaco seriam, para Mitre, uma evidência de

que, sem a influência direta da “civilização europeia”, o homem americano “habría

vegetado como sus árboles, propagándose como sus especies animales, sin asimilarse

nuevas fuerzas reproductoras, y fatigando hasta las fuerzas espontáneas de la naturaleza

misma, como el salvaje de Montesquieu que derribaba la palma para coger su fruto. Tal es

la filosofía histórica que las ruinas de Tiahuanaco me enseñaron” (1954, 198). Por fim, o

autor relaciona estas características atribuídas por ele aos indígenas com a questão de sua

origem. A presença humana na região seria muito anterior ao que vinha sendo sugerido por

outros pesquisadores nas últimas décadas, chegando aos 57.000 anos. Mitre deixa em

aberto a possibilidade destes homens não terem migrado até o continente americano, mas

serem autóctones, criados separadamente por Deus, o que “explicaria” a existência de

diferenças tão profundas em relação aos habitantes do Velho Mundo570

.

Ainda que existam grandes divergências entre as interpretações dos dois

autores em relação ao papel atribuído aos indígenas dentro da história nacional571

, podemos

569 Esta descrição altamente negativa dos indígenas é retomada por Mitre (1954, 196-197) em outras

passagens de sua obra, como no trecho em que ele lista uma série de elementos que faltariam aos americanos

e cuja ausência estaría associada à decadência inexorável que marcou a trajetória deste continente até a

chegada das embarcações europeias: “Con estas materias primas y estos pobres instrumentos de trabajo, sin

capital social, sin iniciativa individual, sin lenguas orgánicas, sin cohesión moral, sin el conocimiento del

hierro, sin más animal de carga que la llama, sin la posesión del alfabeto y sin medios en su organización

para alcanzar por sí sola esta noción elemental, la América era fatalmente, lógicamente estéril […] Pensar que con estos elementos y en este medio, pudo incubarse y expandirse una inspiración como la de Homero

[…] doctrina como la de Jesús, un binomio como el de Newton, un método como el de Descartes […] una

teoría vital como la de Darwin, o un carácter de grandeza moral como el de Sócrates o de Washington, sería

más que pedir peras al olmo”.

570 “La fuerza inicial con que el primer salvaje americano arrojó a los aires la piedra de la honda, o el hacha

de piedra con que tronchó el primer árbol, no hay necesidad de ir a buscarla en las cavernas del viejo mundo

cuando el hombre era bestia confundido con las bestias […] La potencia de aquel Dios que creó hombres y

moscas debió hacerse sentir en América lo mismo que en el resto del mundo, si bien no dio al insecto las

proporciones del elefante, ni al indígena americano las aptitudes con que las razas superiores se labran su

propio destino y engendran los fenómenos del genio trascendental“ (MITRE, 1954, 200-201).

571 Quijada (1996, 263) aponta as divergências com as ideias de Mitre em relação ao processo de construção do imaginário nacional como uma das principais razões do pequeno êxito alcançado pelas teorias propostas

por López em seu país de origem: “López había intentado dotar de clasicismo a la nacionalidad argentina,

vinculándola a la tierra y por ende al concepto tradicional de ‘patria’. Mitre pertenecía a esa corriente

mayoritaria de ‘nation builders’ que, como Alberdi o Sarmiento, aspiraban a ‘europeizar’ su país, tanto

cultural como biológicamente”. Ainda segundo a historiadora, “la reivindicación de un origen indígena no

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observar que há, tanto em Mitre quanto em López, uma divisão “original” entre os

avançados grupos do passado e os “degenerados” americanos do presente. Em ambos os

casos, há a percepção de que o continente americano possui, simultaneamente,

características consideradas por eles como “bárbaras” e “civilizadas”, o que dificultaria –

ou mesmo impossibilitaria – a atribuição de todas elas a um único grupo. Pelo contrário,

López e Mitre estabelecem uma hierarquia espacial e, principalmente, temporal entre os

americanos. Hierarquização e divisão estas, que, como pretendemos reforçar até o final do

capítulo, foi identificada pela ampla maioria dos autores do período.

Francisco Adolpho de Varnhagen

Em 1876, já no final de sua longa trajetória acadêmica, o historiador, diplomata,

monarquista, patriota e católico Francisco Adolpho de Varnhagen publicou um pequeno

livro em francês onde abordava os primórdios da ocupação humana – mais

especificamente, dos Tupi – no continente americano e suas possíveis procedências a partir

dos povos do Velho Mundo572

. Intitulada L’Origine touranienne des Americains Tupis-

Caribes et des Anciens Egyptiens montrée princialement par la philologie comparé, a

“mais enigmática” (CÉZAR, 2007, 184) e “quase esquecida” (RODRIGUES, 2008, 342)

das obras de Varnhagen nunca foi traduzida para o português, permanecendo à margem dos

estudos que abordavam a prolixa e influente produção deste historiador573

.

entraba en sus intereses”, o que é explicitado pelo próprio autor, anos depois, em carta enviada a Joaquín V. González: “Los sudamericanos, ni física ni moralmente somos descendientes de los pampas, los araucanos,

los quichuas, etc., como los norteamericanos no son de los iroqueses ni de los mohicanos, aun cuando allá,

como acá, se operó el consorcio de la raza conquistada y conquistadora” (apud DÍAZ-CABALLERO, 2005,

106).

572 Esta obra de Varnhagen possui duas edições distintas, ambas de 1876. De acordo com Temístocles Cézar

(2008, 50), a primeira versão estava repleta de erros de escrita e não incluía a conclusão incorporada na

tiragem seguinte, o que seria indicativo da pressa do autor em publicá-la. Para informações biográficas e

sobre a formação teórica de Varnhagen, Cf. CÉZAR, 2007.

573 Esta obra de Varnhagen foi pouco abordada também por seus contemporâneos: “L’insistance de

Varnhagen à publier un livre, en français, ce qui devait en principe augmenter sa capacité à interpeller

l’opinion savante, sur la base d’un modèle explicatif tombé en désuétude et sans crédibilité en Europe depuis les années 1850 (par exemple, la thèse de Christian Karl von Bunsen concernant l’unité linguistique des

Américains, des Malais, des Polynésiens et des Australiens au moyen de la catégorie turanienne ou du

schéma prichardien de l’ère victorienne qui recherchait la définition d’une grande famille indo-européenne)

rencontra peu d’interlocuteurs tant au Brésil qu’à l’étranger” (CÉZAR, 2008, 64-65). Entre os poucos

autores que fizeram referência a este livro, podemos citar Silvio Romero, que, ao criticá-lo, faz comparações

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Antes de analisarmos seu conteúdo, porém, consideramos necessário retroceder

algumas décadas para obervarmos outro texto de Varnhagen, sua História Geral do Brazil,

onde o autor também faz algumas reflexões sobre os indígenas e seu passado remoto574

. No

primeiro tomo desta obra, publicado em 1854, o historiador afirma que os nativos que

habitavam o território brasileiro eram “gentes vagabundas” que seriam “verdadeiras

emanações de uma só raça ou grande nação; isto é, procediam de uma origem comum e

falavam dialetos provenientes de uma mesma língua”575

. A descrição extremamente crítica

dos americanos – influenciada diretamente por Carl Friedrich von Martius576

– leva

Varnhagen a recriminar interpretações como a de Rousseau577

, que via “no estado selvagem

com a obra de Vicente Fidel López sobre a presença de arianos na América: “A doutrina da origem dos Tupis

e Carahibas, que o historiador faz provirem dos Carios da Ásia-Menor, a despeito da erudição que revela, não

nos parece absolutamente provada. É livro no gosto de Les Races Aryennes du Perou de Fidel López”

(ROMERO; RIBEIRO, 1906, 330).

574 Não pretendemos analisar como Varnhagen representou os indígenas ao longo de sua vasta produção

acadêmica, mas sim tomarmos dois momentos específicos de sua trajetória onde ele faz reflexões sobre a origem dos americanos.

575 Postura esta que, como veremos adiante, se altera em sua obra sobre as origens dos índios tupis.

Varnhagen (1854, 99; 447) aponta algumas exceções, “tribos de nacionalidade diferente e que no grande

terreno que nos ocupa formavam, permita-se a expressão, como pequenos oásis ilhados e sobre si, em que se

haviam estabelecido caravanas refugiadas ou transmigradas”. Contudo, em nota, o autor afirma que estes

grupos teriam alcançado o território “brasileiro” apenas após a chegada dos europeus, devido à atuação

espanhola em algumas regiões do continente.

576 A influência de Martius se dá, principalmente, através de seu Como se deve escrever a História do Brasil

(1844), declarado pelo IHGB em 1847 como o vencedor do concurso lançado pelo Instituto para que fossem

elaborados planos de escrita da história do Brasil. Neste texto, o escritor alemão defende a mescla das três

raças (branca, americana e negra), no que Guimarães (1988, 16) identifica como o alicerce para a construção

do mito da democracia racial. Em relação aos indígenas, Martius ressalta a importância de se pesquisar sua origem: “De onde vieram eles? Quais as causas que os reduziam a esta dissolução moral e civil, que neles não

reconhecemos senão ruínas de povos? A resposta a esta e outras muitas perguntas semelhantes deve

indubitavelmente preceder ao desenvolvimento de relações posteriores. Só depois de haver estabelecido um

juízo certo sobre a natureza primitiva dos autóctones brasileiros, poder-se-á continuar a mostrar, como se

formou o seu estado moral e físico por suas relações com os emigrantes”. Ainda de acordo com Martius, os

estudos linguísticos eram determinantes para o estabelecimento de informações confiáveis sobre os

primórdios da ocupação humana no continente, o que também foi defendido por Varnhagen. Ao comparar o

tupi com outras línguas, como o quíchua, o autor conclui que “não podemos duvidar que todas as tribos, que

nela sabem fazer-se inteligíveis, pertençam a um único e grande Povo, que sem dúvida possuiu a sua história

própria, e que de um estado florescente de civilização, decaiu para o atual estado de degradação e dissolução,

do mesmo modo como o observamos entre os Povos ocidentais, que falavam a língua dos Incas, ou o Aimará” (MARTIUS, 1845, 381-403).

577 “Não: o filósofo de Genebra, guiado pelo seu gênio e pelas suas filantrópicas intenções, ideou, não

conheceu o selvagem!” (VARNHAGEN, 1854, 133). É interessante observarmos que Varnhagen atribui ao

contato pessoal com os indígenas uma mudança em sua postura em relação a eles. Ao descrever uma viagem

realizada no ano de 1840, onde foi ameaçado por grupos nativos enquanto percorria a estrada real, o

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a maior felicidade do homem”, para defender que, “sem os vínculos das leis e da religião, o

triste mortal propende tanto à ferocidade que quase se metamorfoseia em fera”

(VARNHAGEN, 1854, 133). Nesta obra, o historiador ressalta que não iria conjecturar

sobre a origem dos americanos, afirmando apenas que eles eram descendentes de Adão.

Mesmo assim, ele adverte que os poucos traços de civilização que haveria entre os índios –

mais especificamente, aqueles que habitavam o território brasileiro – seriam resultado da

atuação entre eles de um agente externo: Sumé, “um barbado alienígena de quem

conservavam grata memória”578

.

No segundo tomo de sua História, publicado três anos depois (1857),

Varnhagen retoma suas reflexões sobre os indígenas, descritos como os “invasores

nômades, que ocupavam em geral o território que hoje chamamos Brasil” (1857, ix). Em

seu Discurso Preliminar579

, o autor destaca sua discordância em relação à postura que

identifica nos índios os “verdadeiros brasileiros puritanos, e os mais legítimos

representantes, no passado, da nacionalidade atual”. Segundo o historiador, sua pesquisa

sobre as tradições tupis indicavam que eles não eram “naturais” do solo brasileiro, mas sim

os últimos invasores deste território, cujo estágio de desenvolvimento não poderia nem ser

denominado como bárbaro, mas sim “selvagem”. Tendo Buffon como uma de suas

principais fontes neste trecho de sua obra, o autor inverte algumas das premissas de

Rousseau e identifica estes homens no “estado natural” como seres decaídos e manchados

historiador afirma ter passado por um processo de “conversão” em relação aos nativos americanos: “o meu

horror pela selvageria nasceu em mim em meio dos nossos sertões, e em presença, digamos assim, dessa

mesma selvageria [...] as ilusões com que havia embalado o espírito no seio das grandes cidades se dissiparam

n’um só dia” (apud CÉZAR, 2007, 168). John Monteiro (2003,126) afirma que, além das preferências teóricas

do autor e de sua experiência pessoal, a “aversão ao indígena” por parte de Varnhagen também poderia ser

associada “à situação política do Império em meados do século XIX, quando várias províncias conduziam

guerras não declaradas contra povos indígenas”.

578 Varnhagen (1854, 135-137) afirma que “Sumé” não deveria ser associado a São Tomé (o que teria sido

comum por parte de muitos jesuítas) e defende que sua presença também podia ser identificada entre índios de outras regiões do continente: “Em todo caso como esta questão de origem das antigas civilizações americanas

é secundária para o Brasil, pois que naturalmente não a recebera ele doutro continente em primeira mão”.

579 Cujo subtítulo é “os índios perante a nacionalidade brasileira”. De acordo com Rodrigo Turin (2010, 137),

este discurso teria sido composto por Varnhagen na tentativa de responder às críticas que havia recebido em

relação ao conteúdo do primeiro tomo de sua obra.

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pelo pecado original580

. Varnhagen defende ainda que, sem o contato externo, que poderia

ser realizado através da força e da escravidão581

, esta condição selvagem não se alteraria,

uma vez que “a raça humana abandonada a certo grau de barbárie e degradação [...] pode

chegar a exterminar-se e a tragar-se a si própria”582

. Por fim, o historiador recorre às

hierarquias raciais para defender que os índios eram inferiores aos brancos e negros e, por

isso, teriam sido “absorvidos fisicamente pelos outros dois elementos, como o foram

moralmente” (1857, xxv)583

.

Algumas das teorias sobre os indígenas e seu passado expostas por Varnhagen

em sua História foram desenvolvidas e, outras, alteradas em sua obra dedicada

exclusivamente aos primórdios da presença humana no Novo Mundo e, mais

especificamente, no “território brasileiro”. Nela, o historiador afirma que os Tupi – centro

de sua análise – eram os “senhores do país”, com comportamentos, características e

utensílios superiores aos dos outros habitantes destas terras. Sobre eles, Varnhagen afirma

que, desde o início de sua formação, acreditava se tratar de um povo “provenant de l’ancien

continent” (VARNHAGEN, 1876, v-vii).

580 “Se percorremos o sagrado texto, foi nesse regime de tribo que o inocente Abel pereceu vitima da inveja

do irmão, que o velho Noé se viu escarnecido pela família, e que as filhas de Lot pecaram incestuosamente”

(VARNHAGEN, 1857, xvii)

581 Esta postura se repete em outras obras deste historiador: “Varnhagen, em várias publicações [...] faz-se o

porta-voz de toda uma corrente que preconiza o uso da força contra os índios bravos, sua distribuição como

recompensa aos que os cativarem, sua fixação e trabalho compulsórios” (CUNHA, 1992, 136).

582 “Esta verdade foi reconhecida pelos antigos, de modo que só por ela se explica a humilhação dos Párias na

Ásia, a escravidão dos ilotas e outros bárbaros na Grécia; a clientela ou feudalismo da Roma liberal e da Idade

Média. E tanto a reconhecemos nós mesmos que só por ela podemos explicar o mantermos a escravidão dos

nossos africanos (aliás, com demasiado severas condições não essenciais) [...] Assim longe de condenarmos

que se fizesse uso da coação pela força para civilizar os nossos índios, estamos persuadidos que não era

possível haver empregado outro meio; e que dele havemos ter que lançar mão nós mesmos, em proveito do

país, que aumentará seus braços úteis, em favor da dignidade humana, que se vexa em presença de tanta

degradação, e até em beneficio desses mesmos infelizes, que ainda quando nas nossas cidades passassem à

condição em que se acham os nossos africanos, viveriam nelas mais tranquilos e mais livres do que vivem,

sempre horrorizados na sua medonha liberdade dos bosques, temendo a cada momento ser apanhados e

trucidados por seus vizinhos. Sim: acudamos, enquanto é tempo, a esses infelizes, que se estão exterminando e devorando mutuamente, e que todos são nossos parentes por Adão” (VARNHAGEN, 1857, xxi).

583 John Monteiro (2003, 131-132) afirma que a História de Varnhagen recebeu algumas críticas logo após ser

publicada, por parte de autores como Domingos José Gonçalves de Magalhães e João Francisco Lisboa, “mas

para a maioria dos historiadores brasileiros, tornou-se corriqueiro o pressuposto de que o início da história do

Brasil significava o fim dos índios”.

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A origem externa dos grupos tupis poderia ser identificada principalmente

através da filologia (denominada por ele como uma “ciência moral”), que apontaria

elementos em comum entre idiomas como o tupi, o grego, o latim e o egípcio. Estas

semelhanças, segundo Varnhagen, o teriam levado a duas conclusões: “de ce que le peuple

en question était de la même famille que l’égyptien ancien, et que l’un et l’autre

appartenaient à ces races que l’on dit généralement touraniennes”. A identificação do tupi

como uma das línguas turanianas584

leva Varnhagen a identificar no Oriente elementos

fundamentais para a sua reflexão sobre a América, “ainsi, les Orientalistes viendront en

aide aux Américanistes, et les Américanistes se feront à leur tour Orientalistes; et les uns et

les autres n’auront qu’à y gagner, en voyant s’augmenter le nombre de leurs élèves et

s’étendre bien plus l’horizon de leurs recherches” (1876, v-xii).

Após o estabelecimento destas premissas, o historiador passa a analisar mais

detidamente as migrações tupis e as invasões que teriam sido realizadas por este povo

através de navegações transatlânticas. Segundo o autor, os índios de origem tupi seriam

representantes de uma cultura superior à dos bárbaros nativos que colonizaram inicialmente

as terras “brasileiras” a partir de migrações de mongóis da Ásia central que teriam cruzado

o estreito de Bering, o que poderia ser observado, por exemplo, através de suas

características físicas585

. Dessa forma, assim como vários outros autores do período,

Varnhagen estabelece uma origem múltipla e hierarquizada para os índios:

584 O conceito de raça/língua “turaniana” não alcançou grande repercussão ao longo do século XIX.

Mencionado por autores como Max Müller (para se referir a povos nômades da Ásia central, em oposição à

terra dos árias), von Bunsen (para quem ele se referia a um grupo linguístico formado por línguas americanas,

malaias, polinésias e australianas) e André Retzius (que identificava seus integrantes como portadores de

crânios braquicéfalos, em oposição aos dolicocéfalos arianos), este conceito foi geralmente utilizado como

indicativo de procedência oposta a dos “arianos”. Contudo, no caso de Varnhagen, como veremos adiante, os

turanianos foram representados como um grupo que, apesar de distinto dos arianos, chegou a estabelecer

relações com eles, o que poderia ser identificado através de determinadas semelhanças linguísticas. Sobre o

conceito de turaniano, Cf. RODRIGUES, 2008, 342; TURIN, 2006, 106; POLIAKOV, 1974.

585 “Ce type physique se caractérise surtout par l’angle formé par la ligne des yeux, par l’abondance et le lissé de la chevelure et par la couleur plus ou moins foncée de la peau, allant du brun jaunâtre au rouge

cuivré”. Outra característica que confirmaria esta migração mongol original era a presença de objetos

semelhantes em diferentes regiões do continente, como uma espécie de banco inteiriço de madeira encontrado

em “Toutes las nations indiennes de l’Amérique, depuis le nord jusqu’au sud, barbares ou demi-civilisées”

(VARNHAGEN, 1876, 10-12).

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“Si donc les analogies anthropologiques, physiologiques et même

quelquer-unes philologiques nous font supposer que l’Amérique, et aussi

l’Océanie, ont été peuplées d’abord presque en même temps que l’orient de

l’Asie, tous les vestiges des civilisations que l’on a rencontrés en Amérique, et les

monuments surtout, rattachent les origines des mêmes civilisations aux nations

occidentales du continent asiatique et du nord de l’Afrique” (VARNHAGEN,

1876, 18).

Esta divisão faz com que o autor deixe de lado as indagações sobre como e

quando teria ocorrido a colonização pioneira da América e tente estabelecer o caminho

percorrido pelas “émigrations civilisatrices” dentro do continente586

. Para ele, a rota mais

provável teria como ponto de partida alguma região da América Central ou do México

(cujas descobertas arqueológicas apontavam uma notável semelhança com os egípcios) que

estivesse próxima ao litoral, onde teriam chegado as embarcações do Velho Mundo. Em

seguida, o autor passa a fazer uma longa série de comparações de palavras tupis com outras

de várias línguas, como o grego, o egípcio, o basco e o árabe, até concluir que: “[...] toutes

les analogies de langage, que nous avons réussi à presenter dans ce chapitre, ne peuvent

que montrer l’existence de rapports entre les deux continents, et la provenance de l’ancien

monde des Tupis d’Amérique; puisqu’il est certain que la parenté dans les mots, comme

entre les individus, implique toujours la descendance d’un ancêtre commun”

(VARNHAGEN, 1876, 42).

De acordo com os critérios estabelecidos pelo autor, as equivalências

linguísticas deveriam ser acompanhadas por outras características semelhantes. Isto faz

com que Varnhagen dedique dezenas de páginas à busca por elementos em comum – que

iam desde os meios de transporte, alimentos e armas até utensílios domésticos,

instrumentos musicais e rituais funerários – que reforçassem esta origem única e específica

entre os poucos índios “menos selvagens” e determinados povos do Velho Mundo,

586 “Toutefois, il n’entre pas dans nos vues de nous occuper ici de l’origine des différentes migrations, qui

auront pu avoir lieu vers le quatrième continent [...] notre principal but dans cet opuscule est de nous

occuper d’une emigration que a dû être réalisée en grand, aussi à travers l’Atlantique, avec nombre de

navires à la fois, et ceci par un peuple aussi de l’ancien continent, aujourd’hui anéanti, mais qui a réussi

alors à implanter sa langue en Amérique; Cette langue est la tupi” (VARNHAGEN, 1876, 21).

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particularmente os egípcios587

. Neste ponto, o autor passa a analisar as questões religiosas.

Além de retomar suas reflexões sobre “Sumé”588

, Varnhagen faz uma análise sobre Tupã

que é ilustrativa de sua visão sobre a “marcha da civilização” que teria ocorrido em tempos

remotos. Para ele, esta divindade estaria associada a espíritos malignos adorados pelos

egípcios primitivos. Contudo, a medida em que este povo foi se civilizando, “l’être malin

avait été remplacé par d’autres divinités, plus en rapport avec le degré de culture du

peuple déjà moins barbare”. Já no Novo Mundo, esta crença teria permanecido inalterada

durante os vários séculos de isolamento (1876, 63).

Nos capítulos finais de sua obra, Varnhagen passa a tentar estabelecer como os

povos civilizados teriam chegado a este continente. A partir da palavra “Cari”, que seria

utilizada pelos Tupi para se autodenominarem, o historiador identifica a existência de um

povo extremamente hábil nas navegações, os Cariens (ou Carios), povo turaniano da região

da Ásia Menor que manteria relações com os grupos arianos de quem teriam adotado a

língua589

e cuja migração poderia ser identificada tanto em relatos de autores clássicos

(como Tucídides e Heródoto) como nos mitos mexicanos em torno de Quetzalcóatl. Os

relatos clássicos indicariam também o possível momento em que a migração transatlântica

teria ocorrido: a conquista do Egito pelo imperador persa Cambises II por volta do século

VI a.C. teria, segundo Diodoro Sículo, levado à expulsão dos Cariens da região e gerado

expedições marítimas pelo litoral africano que, para Varnhagen, poderiam ter se desviado

587 “Nous sommes convaicu, qu’à une même époque donnée, les armes, les inventions et les industrie d’une importance générale, auraient été autrefois presque identiques chez tous les peuples civilisés, en rapports

fréquents entre eux [...] Nous recourrons donc à l’Egypte, parce que, grâce à ses monuments [...] et surtout à

son climat essentiellement conservatif, c’est le pays qui nous a procuré aujourd’hui les modèles dont nous

avions besoin” (VARNHAGEN, 1876, 44).

588 Assim como ele já havia afirmando rapidamente décadas antes em sua História, a crença nesta personagem

religiosa teria sido introduzida nas terras brasileiras pelos ancestrais dos Tupi. Segundo o autor, os vestígios

desta crença indicavam a possível rota percorrida por estes homens civilizados: “[...] elle avait accompagné

les envahisseurs dans les Antilles, à Cuba et à Haïty, sous les noms de Cemi, Tzemes et Cimi [...] Il est

cependant question, parmi les Egyptiens même, d’un dieu incertain Smot. Si c´était un dieu seulement des

étrangers, il pourrait bien être celui des ascendants des Tupis” (VARNHAGEN, 1876, 62).

589 Varnhagen (1876, 142) defende que a influência ariana entre os Tupi poderia ser observada através da análise linguística: “Si la langue tupi démontre dans les flexions des verbes l’influence de l’arien, ella a un

mot das lequel cette influence est encore manifeste: c’est le mot goyava. Dans un dialecte sibérien [...] go

signifie ‘le fruit des champs’. En sanscrit et en zend le mot yava a précisément la même signification; de

manière que dans ce mot l’on pourrait croire que les émigrants auraient fait, avec l’union des deux langues,

le même pléonasme que l’on remarque [...] en Portugal, Portus-cale, port-port, et autres”.

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para o Atlântico e, através da corrente do Golfo, alcançado o Novo Mundo

(VARNHAGEN, 1876, 88).

Esta migração, independentemente de sua datação, teria ocorrido em uma única

e numerosa leva formada majoritariamente por soldados590

, o que, segundo o autor,

explicaria a ausência de classes sociais entre os Tupi. A partir das Antilhas, provável local

de desembarque, os Cariens teriam migrado para diferentes regiões do continente. Uma

parte significativa deles teria se estabelecido próximo ao rio Negro, na região amazônica,

onde teriam formado a “nação tupi” que passou a invadir terras de povos inimigos

(especialmente tapuias) até ocuparem um território que abarcava as “melhores terras” dos

atuais Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai (VARNHAGEN, 1876, 106). Por fim, o autor

conclui sua obra retomando e reforçando alguns de seus argumentos centrais, como o de

que os egípcios e os Tupi tinham uma mesma origem associada a “nombreux peuples

nomades du nord de l’Asie, que les modernes, en généralisant, ont voulu appeler de

Touran, et que les anciens ont connus sous les noms de Scythes, de Sarmathes, et de

Kimmériens, selon le lieu qu’ils habitaient” (1876, 133).

Através dos argumentos e teorias expostos por Varnhagen nesta obra podemos

observar o diálogo estabelecido pelo autor com os debates que estavam sendo travados

dentro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e com alguns conceitos e obras

produzidos na Europa no período. Como já apontado por pesquisadores como Manoel Luis

Salgado Guimarães (1988, 5-27), desde sua criação, em 1838, o IHGB buscou “pensar o

Brasil segundo os postulados próprios de uma história comprometida com o

desvendamento do processo de gênese da Nação”. Já em suas primeiras reuniões surgiram

questionamentos sobre o passado dos indígenas “brasileiros”591

, o que levou Rodrigo Turin

590 A migração de soldados teria estimulado a ocorrência de um “nouvel enlèvement des Sabines” em terras

“brasileiras”, cujo objetivo central era capturar mulheres tapuias em número suficiente para “la conservation

de la race” (VARNHAGEN, 1876, 99).

591 Na quarta reunião do IHGB, em fevereiro de 1839, o secretário geral do Instituto Januário da Cunha

Barbosa leu seis questões que deveriam orientar os futuros debates. Entre elas, algumas versavam sobre os indígenas e seu passado remoto: “[...] se essa população era formada somente por grupos nômades, ‘e no

primeiro grau de associação’, ou se era descendente de alguma ‘das grandes nações do resto da América’,

guardando traços dessas civilizações” (apud TURIN, 2010, 134). Ao analisar o conteúdo da Revista trimestral

do IHGB, Guimarães (1988, 20) identifica a temática indígena como um de seus três temas fundamentais,

junto com as viagens e explorações científicas e o debate da história regional.

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(2006, 86-113) a identificar algumas questões que permearam as discussões realizadas entre

os integrantes do Instituto, como a busca pela especificidade histórica dos índios brasileiros

e a possibilidade ou não de catequizá-los: “A interrogação sobre sua origem e o debate

sobre sua catequização traduziam as preocupações dos sócios do IHGB em atribuir aos

indígenas tanto um passado quanto um futuro – ou, mais especificamente, um passado que

lhes possibilitasse sua inclusão ou exclusão do futuro nacional” (TURIN, 2010, 134). Em

relação à segunda questão, o historiador afirma que Varnhagen ocupou um papel central

entre aqueles que negavam a possibilidade de conversão dos indígenas ao cristianismo,

apontando sua incapacidade em sair do estado de natureza.

Como pudemos observar acima, os indígenas seriam para Varnhagen versões

degeneradas de povos do Velho Mundo que teriam alcançado o continente americano. No

entanto, mesmo para ele, há a identificação de uma origem múltipla para os habitantes

destas terras. Os grupos considerados como os mais avançados – ou menos selvagens –

teriam herdado estas características “civilizadas” de ancestrais específicos e diferentes dos

outros habitantes. Ainda que, de acordo com alguns autores, haja nesta interpretação

elaborada por Varnhagen uma “primitivização dos indígenas e, por consequência, dos

antigos” (TURIN, 2010, 143; CÉZAR, 2008), o historiador se preocupa em diferenciar os

Tupi dos outros nativos americanos: “Incomodava-lhe, apesar do seu não escondido

desprezo pelos indígenas, que outros países americanos592

tivessem tal primazia frente ao

Brasil” (RODRIGUES, 2008, 342)593

. Não por acaso, mesmo que sejam apontados como

descendentes dos “bárbaros turanianos”, Varnhagen identifica elementos que os

592 É importante ressaltarmos que, ao longo do Império, o projeto de construção de uma identidade e memória

nacional proposto por alguns integrantes do IHGB identificava o “outro” às repúblicas latino-americanas, não

à antiga metrópole (GUIMARÃES, 1988, 7).

593 Postura semelhante pode ser identificada na obra de Cândido Costa publicada duas décadas depois. Em seu

O Descobrimento da América e do Brasil (1896), o autor, apesar de descrever os indígenas de forma

altamente negativa e de deixar em aberto quais seriam as suas origens, defende a possibilidade da “história do

Brasil” ser mais antiga do que a do Peru e a do México: “O descobrimento feito em 1845 no interior do país,

das ruínas de uma grande cidade com soberbos edifícios e inscrições de língua desconhecida parece confirmar

esta opinião”. O autor cita também a existência de um templo antigo às margens do rio São Francisco e de “hieróglifos que parecem demonstrar vestígios de um povo civilizado, que habitou o Brasil em épocas antigas,

ou egípcios ou fenícios”, para concluir que “se se conseguir demonstrar que a construção desse templo é obra

humana, ficará provada assim a civilização pré-histórica do Brasil”. Ainda segundo Costa, os índios não

seriam os responsáveis pela construção das grandes ruínas encontradas em diferentes partes do continente,

mas sim uma “raça superior” que, por algum motivo, extinguiu-se (COSTA, 1896, 24; 42).

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associariam aos “civilizados arianos” e, consequentemente, aos grupos humanos mais

desenvolvidos. Interpretação esta, que dava seguimento a várias das questões já abordadas

pelo historiador em sua vasta produção anterior, “ou seja, a origem dos Tupi não parece ser

o produto de uma mente senil, mas a consequência de inquietações que acompanham há

muito tempo sua trajetória como historiador” (CÉZAR, 2006, 33).

É importante observarmos que a “invenção” dos Tupi como índio nacional e

superior aos outros habitantes do território brasileiro não se limita à obra de Varnhagen.

Como indicado por autores como John Monteiro (2003, 124), essa diferenciação já havia

sido apontada em obras do início do século XIX, como as de Robert Southey e Ferdinand

Denis. Ainda de acordo com este historiador, a falta de antigas civilizações e,

consequentemente, de vestígios de grandes complexos arquitetônicos ou outras

características consideradas no período como “civilizadas”594

associada aos conflitos

acirrados com as populações nativas contemporâneas teria feito com que “a geração das

elites que atingia a maioridade junto com o próprio Imperador” começasse a esboçar uma

“mitografia nacional que colocava os nobres, valentes e, sobretudo, extintos Tupi no centro

do palco”. Processo este, denominado por João Paulo Rodrigues (2008, 328) como

“tupifilia imperial”, que, “por ser profundamente informada pelo elemento da língua, tem

que ser entendida também no contexto do desenvolvimento da etnologia, da linguística e do

racismo em seus circuitos internacionais”.

Dessa forma, podemos observar que, ao identificar o Tupi como o “índio

nacional”, superior aos outros habitantes destas terras e com origem específica atrelada,

ainda que indiretamente, aos civilizados arianos, Varnhagen se baseava em conceitos e

obras desenvolvidos na Europa ao mesmo tempo em que buscava interlocução e

legitimação de sua representação do passado nacional. No entanto, assim como apontamos

acima no caso do argentino Vicente Fidel López, não há uma mera adoção e repetição de

594 Em suas primeiras décadas de existência, ocorreram diversos debates dentro do IHGB acerca da existência de ruínas de antigas cidades em território “brasileiro”: “Ao citar estupendas descobertas arqueológicas em

países muito próximos do Brasil, como Palenque no México e fortificações no Peru, Januário Barbosa deixou

claro que tais vestígios também podiam ser encontrados no Brasil: ‘As trevas da antiguidade, e talvez as da

ignorância, têm abafado monumentos preciosos, cujos restos serão iluminados pela sabedoria de mais

circunspectos investigadores’” (LANGER, 2001, 51).

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conceitos “europeus”595

, mas sim a produção de uma interpretação que os integrava a

debates centrais entre os autores do período que refletiam sobre a história da nação596

, no

que Rodrigues (2008, 328) define como “um processo de diálogo entre cientistas e sábios

do Brasil, dos Estados Unidos e da Europa”.

iii) os índios arianos na Europa

A identificação entre os indígenas americanos de descendentes dos grupos

arianos que teriam migrado até estas terras em um passado distante continuou sendo

apontada por alguns estudiosos no último quarto do século XIX e mesmo no início do XX.

Como exemplo, podemos citar o diretor do Museu Nacional de México, Gumesindo

Mendoza (que publicou um artigo onde apontava correspondências entre as línguas indo-

europeias e o nahuatl), e os estudos do linguista amador norte-americano Thomas S.

Denison no início do século XX (Cf. QUIJADA, 1996, 261). Para este último, teria

ocorrido em um passado remoto uma migração ariana para o continente americano através

do extremo norte, provavelmente proveniente da Europa, que seria responsável pela

introdução da civilização em partes específicas da América, como o México (DENISON,

1913)597

.

595 Como apontado por John Monteiro (2001, 172-172), mesmo antes da penetração definitiva de teorias e

técnicas para o estudo das raças, os estudos etnográficos dos meados do século XIX realizados no Brasil

estabeleceram algumas questões de fundo que acabaram condicionando o consumo das teses estrangeiras

referentes às raças humanas e a análise de Varnhagen sobre os Tupi: a construção da dicotomia tupi/tapuia (com o primeiro associado ao índio nobre do passado e o segundo ao índio “vivo”), a política indigenista do

Império, em especial a partir da década de 1840 (com o aumento da tensão entre os que advogavam a

catequese e civilização e os que defendiam a remoção e até o extermínio dos indígenas), e o impacto da

abolição do tráfico a partir de 1850.

596 Para uma análise do longo processo de contatos, viagens e intercâmbios que colocaram a França como

modelo a ser seguido no campo da História dentro do IHGB, seu papel legitimador exercido principalmente

pelo Institut Historique de Paris e sua influência sobre a visão que se construiu sobre a origem dos índios e

suas relações com as grandes civilizações do Velho Mundo, Cf. GUIMARÃES, 1988; 1989.

597 Outro autor que deu continuidade a esta teoria foi H. W. Magoun, compilador da obra de Denison após a

morte do pesquisador. Para ele, as associações entre os arianos e determinados grupos indígenas (seu texto

deixa claro que os outros habitantes do continente – denominados como “americanos primitivos” – tinham uma origem diferente) poderiam ser reforçadas não apenas pelas semelhanças linguísticas, mas também por

outros elementos, como a existência de narrativas maias que descreviam a chegada de embarcações com uma

“raça superior”, a descoberta de suásticas em território norte-americano e de complexas ruínas encontradas

em algumas regiões: “The strange white men, then, were Aryans, and they have left their architectural

achievements behind them for the world to wonder at. They became the dominant factor in the land of their

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Esta associação entre índios e arianos também foi defendida por autores

europeus, como Jean-François-Albert du Pouget de Nadaillac (1883). Como apontamos no

capítulo anterior, este nobre francês defendeu em sua obra sobre a América “pré-histórica”

que os indígenas mais avançados descendiam possivelmente dos arianos (descritos como

“les plus illustres parmi nos ancêtres”) enquanto os grupos “inferiores” tinham os atlantes

como seus prováveis ancestrais diretos.

Outro estudioso europeu que associou os indígenas aos arianos foi Dabry de

Thiersant, em seu De l’Origine des indiens du Nouveau-Monde et de leur civilisation

(1883). Nesta obra, o pesquisador francês critica duramente as hipóteses poligenistas e

autóctones (que serão analisadas no final deste capítulo) e defende que os indígenas seriam

descendentes de povos e raças do Velho Mundo, o que poderia ser comprovado através da

análise de características como a cor da pele e o formato dos crânios (THIERSANT, 1883,

8-9). Para este autor, a mistura de elementos das raças “amarela” e “branca” seria o

resultado de dois processos migratórios distintos. Em primeiro lugar, alguns grupos

mongóis teriam alcançado e colonizado o continente, seguidos, tempos depois, por uma

migração ariana, possivelmente através de Bering ou de navegações a partir das ilhas

Aleutas. Thiersant, no entanto, dedica muito mais espaço às reflexões sobre a origem da

civilização no Novo Mundo do que à questão da colonização inicial do continente. Com

este objetivo, o autor passa a comparar as narrativas religiosas de alguns grupos indígenas e

asiáticos, identificando temas e abordagens comuns entre obras como o Popol Vuh e o

Avesta, para concluir que:

“ce sont bien les Aryens, Iraniens, Perses, Touraniens, Scythes,

qui, partis du même point et poussés par une volonté supérieure à la leur, ont

porté à toutes les nations non éclairées le flambeau de la vieille civilisation

asiatique. Qu'y a-t-il d'étonnant après cela qu'une colonie de cette même famille

adoption, as the monuments clearly show, and they must, therefore, have affected its language” (DENISON,

1913, 20).

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ait été choisie par la providence pour remplir un rôle analogue auprès des tribus

sauvages du Nouveau-Monde?” (THIERSANT, 1883, 34)598.

A civilização teria chegado ao Novo Mundo por volta do século VII como

resultado da fuga empreendida por arianos perseguidos por grupos islâmicos. Estas

migrações não teriam alcançado todo o continente, mas locais e povos específicos (como o

México e outras partes da América do Norte e os incas e aimarás ao sul), o que já teria sido

apontado por outros autores do período (como Varnhagen, López e Bourbourg) e poderia

ser observado através de análises linguísticas e da comparação das construções realizadas

na América e no Oriente, entre muitos outros fatores599

. Contudo, o autor ressalta que, com

a chegada das embarcações europeias a partir do final do século XV, teria se iniciado um

processo de destruição e degeneração dos indígenas responsável por levá-los de volta a um

estágio “pré-civilização”600

.

598 A descrição que o autor faz das mudanças introduzidas pelos arianos nos costumes dos habitantes

primitivos do continente ressalta a diferença “original” identificada pelo autor entre os índios americanos. Ao

falar sobre a chegada dos turanianos Hue Hue na porção norte do continente (para o autor, os turanianos

seriam descendentes diretos dos arianos ancestrais), Thiersant (1883, 49) afirma que: “Les quarante ou

cinquante premières années après l'arrivée des Hue hue (Touraniens) furent consacrées par eux à apprendre

aux tribus encore sauvages de l'Amerique septentrionale à se vêtir, à cuire leurs aliments, à construire des

demeures, à cultiver le sol, à fabriquer des armes et des ustensiles, à élever des temples, à faire des sacrifices,

à parler leur idiome et à se servir de l'écriture. D'après les traditions, ils restèrent concentrés pendant ce

temps dans I’espace compris entre le lac Salé au nord, le golfe de Californie ou le lac de Chapala au sud, les

Montagnes Rocheuses à lest et la mer Pacifique à l’ouest. C'est là que les tribus se multiplièrent; quand la ruche fut trop pleine, les essaims s'en échappèrent, se répandant, comme autrefois les Aryas en Europe et en

Asie, sur toute la surface du Nouveau-Monde où l’histoire, ainsi que les ruines de monuments qu’ils ont

laissés, permettent de suivre leurs traces depuis le rio Gila jusqu’à la terre de Feu”.

599 Thiersant (1883, 112-113) embasou seus argumentos a partir da análise de cinco campos específicos: arte,

religião, filologia, comparação de modos e costumes e das instituições e leis. As ruínas de Palenque, por

exemplo, seriam ilustrativas desta migração. Para o autor, suas técnicas de construção eram idênticas às

empregadas por outros povos que também descenderiam dos arianos, como os persas.

600 “Les Indiens de toute l'Amérique sont redevenus ce qu'ils étaient avant l'arrivée des Touraniens, de

véritables sauvages; mais leurs oppresseurs ont été punis eux-mêmes. Ils ont perdu peu à peu toutes ces

magnifiques possessions, et les descendants des Conquistadores qui sont restés dans le pays, à moitié Indiens

aujourd'hui, semblent expier encore les fautes de leurs ancêtres”. Para Thiersant (1883, 208; 354-356), outros fatores também teriam dificultado o desenvolvimento da civilização no continente, como a grande influência

do clero dentro das sociedades indígenas (“la cause première de la stagnation du progrès et de la décadence

de ces peuples”), que promovia rituais bárbaros como os sacrifícios humanos e a antropofagia, o poder

centralizado nas mãos de um monarca absoluto, o militarismo das nobrezas indígenas, o rigor das leis e a

hereditariedade das profissões.

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De acordo com Thiersant, após esta “époque terrible” os indígenas não teriam

conseguido retomar a “marcha da civilização”, mantendo-se em um estado de barbárie,

miséria e selvageria permanente, situação que iria perdurar até a chegada de uma nova

“raça forte” ao continente. Esta trágica trajetória que havia sido percorrida pelos grupos

americanos, segundo o autor, deveria servir de alerta à “cultura europeia”, para que seus

integrantes não se esquecessem que “les plus grands malheurs sont réservés aux peuples

dont la religion est un outrage à l'Être suprème, qui ne songent qu'à détruire leurs

semblables, et dont les institutions, quelle que soit la forme de leur gouvernement, ne sont

pas établies sur les principes immortels de la justice universelle, de la liberté individuelle

et de l'égalité sociale” (THIERSANT, 1883, 357-358).

Ao final deste item, é interessante observarmos que a identificação de uma

origem “oriental” para os indígenas não pode ser associada a um grupo, país ou período

específico. Como vimos acima, esta hipótese foi defendida tanto por autores americanos

quanto europeus em diferentes momentos e a partir de diferentes premissas, tanto para

“explicar” o estágio desenvolvido de alguns grupos quanto a “barbárie” de muitos outros;

apontada tanto como “berço” da humanidade e, por consequência, de todos os indígenas,

quanto como local de surgimento de uma raça específica que teria migrado para estas terras

ou estabelecido contato com outra raça, a americana.

Tomando a proposta mais específica de uma migração ariana para o Novo

Mundo como exemplo, podemos observar que ela foi indicada por autores como o francês

Dabry de Thiersant, o argentino Vicente Fidel López e, ainda que indiretamente (através

dos turanianos), pelo brasileiro Francisco Adolpho de Varnhagen como responsável pela

introdução de características “civilizadas” – ou menos bárbaras – ao continente. No entanto,

ainda que as “respostas” sejam semelhantes, a associação entre índios e arianos estabelece

relações muito diferentes dentro das obras destes autores: desde alerta aos riscos que

determinadas crenças e formas de governo poderiam trazer para o desenvolvimento das

sociedades europeias até a identificação destes grupos nativos como ponto de partida para a

trajetória da história pátria ou como forma de diferenciar o índio “nacional” dos outros

habitantes do continente.

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Mesmo assim, há em comum nestas três obras, da mesma forma que em várias

outras citadas neste capítulo e no anterior, a defesa de uma multiplicidade original dos

indígenas. Em grande parte dos casos, as diferenças identificadas por estes autores entre as

muitas dezenas de povos americanos foram consideradas tão grandes e inconciliáveis – seja

entre diferentes grupos do passado ou destes em relação aos índios do “presente” – que a

hipótese de uma procedência única comum a todos eles foi praticamente descartada e,

mesmo quando adotada (como no caso de Morton, por exemplo), foi atrelada a subdivisões

internas que permitissem identificar povos mais e menos desenvolvidos dentro do

continente.

A América como origem

Houve ainda no século XIX um grupo menor de pesquisadores que identificou a

América como o local de origem dos indígenas, da “civilização” ou, até mesmo, de toda a

humanidade. Consideramos relevante apontar os argumentos de alguns destes autores antes

de encerrarmos a tese por se tratar de uma hipótese para a origem dos índios –

particularmente dos grupos considerados como mais “avançados” – que alcançou certa

repercussão no período, ainda que tenha sido desqualificada por grande parte de seus

contemporâneos e apontada por vários deles como teorias “fantasiosas” e sem nenhum

respaldo.

Entre outros, destacamos Charles Etiénne Brasseur de Bourbourg, pesquisador

francês que, como já apontamos anteriormente no caso da hipótese atlante, alterou ao longo

de sua produção acadêmica algumas de suas conclusões sobre a procedência dos índios601

.

601 Enquanto em seus primeiros textos sobre a ocupação humana da América a existência da Atlântida foi

negada, poucos anos depois, ela passou a exercer um papel central dentro de suas reflexões (Cf. Capítulo 4).

Segundo o autor, seu interesse pelo passado remoto do continente americano teria sido fruto de uma notícia

lida por ele quando jovem sobre a descoberta em território brasileiro de objetos de origem macedônica contendo inscrições gregas que o teriam estimulado a iniciar uma pesquisa sobre as ruínas de Palenque

(BOURBOURG, 1857, ii). Para informações biográficas sobre este abade, arqueólogo, historiador e

romancista francês que veio para a América pela primeira vez em 1848, realizando posteriormente várias

outras viagens para regiões como o México, Estados Unidos, Nicarágua e Guatemala (onde chegou a morar

em comunidades indígenas), Cf. MUÑOZ, 2002.

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Este processo pode ser observado quando analisamos separadamente algumas de suas

principais obras. Em suas Cartas para servir de introducción á la Historia Primitiva de las

naciones civilizadas de la América Septentrional (1851)602

, o autor praticamente ignora esta

questão603

, centrando suas atenções apenas à busca pela origem da civilização que teria se

desenvolvido em algumas partes do continente americano. Para isso, o Oriente foi a base de

sua análise604

, identificado como o local de “nascimento” da civilização que teria dado

origem, por exemplo, aos astecas: “la Asia había sido directamente y por el rumbo del

Oriente, el lugar de donde salieron los trece jefes que fundaron la civilización americana”

(BOURBOURG, 1851, 53).

Em sua Histoire des Nations Civilisées du Mexique et de l’Amérique-Centrale,

durant les siècles antérieurs a Christophe Colomb (1857), Bourbourg dá continuidade a

algumas de suas reflexões sobre o Novo Mundo e seus habitantes apresentadas em seu livro

anterior. Além de sua já apontada defesa da multiplicidade dos indígenas605

, o autor

identifica uma divisão em dois grupos. Grande parte dos americanos teria um ancestral

comum – provavelmente asiático606

– que seria “inferior” ao dos povos responsáveis pelos

602 Descrita posteriormente pelo próprio autor como uma obra inicial e superficial (BOURBOURG, 1857,

xiv).

603 Sobre este tema, o autor recorre a uma passagem da Vues des Cordillères de Humboldt para defender que

“el problema de la población primitiva de la América [...] no pertenece mas á la historia que á las ciencias

naturales las cuestionas sobre el origen de las plantas y de los animales, y sobre la distribución de los

gérmenes orgánicos […] En medio de una multitud de naciones que se han sucedido y mezclado unas con

otras, no es posible reconocer con exactitud el origen de la población primera, este depósito primitivo bajo del cual comienzan las tradiciones cosmogónicas” (BOURBOURG, 1851, 46).

604 Nesta obra, Bourbourg (1851, 7) faz uma série de ataques à Espanha. De acordo com o autor, o governo

espanhol teria tentado suprimir os debates sobre o passado indígena devido aos seus interesses pela posse

dessas terras.

605 Ao analisar algumas ruínas indígenas, Bourbourg (1851, 71) conclui que elas não poderiam ter sido

realizadas por um único grupo: “Entre los edificios olvidados por el tiempo, en las inmensas selvas de la

América Septentrional, se encuentran caracteres arquitectónicos tan diferentes uno de otro, que no es posible

atribuir su construcción á un solo pueblo así como creer que hayan sido fabricados en la misma época. Como

los monumentos del mundo antiguo, los de esta vasta región que nos gusta llamar el Nuevo Mundo, tiene

fechas y edades muy diferentes, y puedo afirmar que los pueblos que contribuyeron á darles esta variedad

que se observa en su arquitectura eran de origen totalmente diverso”.

606 “Ce qui est certain, c’est que la plupart des traditions que nous avons trouvées dans les monuments

indiens ou parmi les indigènes annoncent toutes un point de départ éloigné et font supposer une origine

commune avec la masse des hommes. Ce qui n’est pas moins remarquable, c’est qu’il y a fort peu de ces

traditions qui n’assignent l’orient comme le berceau de la race humaine: sans doute il est venu des tribus du

nord-ouest, il en est venu du sud; mais si vous interrogez leur histoire, si vous leur demandez comment leurs

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traços de civilização identificados por ele em determinadas regiões do continente: “l’une

composée d’une multitude de tribus errantes, vivant, à l’état sauvage, des produits

spontanés de la terre; l’autre, organisée en corps de nations, adonnée à l’agriculture,

ayant des formes régulières de gouvernement et des systèmes religieux basés sur une

hiérarchie sacerdotale puisssante; comparables enfin, par leur civilisation, aux empires de

l’Asie” (BOURBOURG, 1857, 22-23).

Estas interpretações sobre o passado dos indígenas, entretanto, sofreram

grandes alterações nos anos seguintes. Em 1864607

, com a publicação de seu S’il existe des

sources de l’histoire primitive du Mexique dans les monuments égyptiens et de l’histoire

primitive de l’ancien monde dans les monuments américains?, Bourbourg passa a apontar a

América como o local de surgimento da civilização que teria alcançado posteriormente

algumas regiões do Velho Mundo608

. Segundo o autor, antigos relatos de povos dos dois

lados do Atlântico faziam referências a terras engolidas pelas águas em um passado

distante, o que “comprovaria” a existência da Atlântida e seu papel de ligação entre as

terras americanas e africanas. Em seguida, Bourbourg passa a associar os primórdios da

história egípcia à mítica ilha platônica e, mais ainda, à América609

. Para reforçar a origem

premiers pères sont arrivés dans ce nord-ouest, elles répondent qu’elles sont parties d’abord des lieux où le

soleil se lève. Nous ne prétendons pas, pour cela, qu’il n’en soit pas venu d’ailleurs; nous constatons

simplement un fait à l’appui duquel viennent se ranger la plupart des nations américaines qui ont conservé

quelque souvenir de leur berceau [...] En dernière analyse, les traditions, les monuments, les usages, les

systèmes astronomiques et religieux, comme la comparaison de plusieurs idiomes, rendent plus que probables

les invasions des nations asiatiques dans le nouveau continent” (BOURBOURG, 1857, 11-16).

607 Neste mesmo período, Bourbourg se tornou sócio correspondente do IHGB e integrou a Comission

Scientifique du Mexique enviada por Napoleão III durante o governo do imperador Maximiliano (com quem

Bourbourg manteve estreitas relações). Sobre a Comission, seus integrantes e a influência da expedição

francesa enviada para o Egito décadas antes por Napoleão, Cf. PICHARDO HERNÁNDEZ, 2001; LE GOFF,

2009.

608 Seguindo esta premissa, Bourbourg (1864, 4) afirma que os estudos sobre o passado dos povos europeus,

asiáticos e africanos deveria, necessariamente, levar em conta a América. Segundo o autor, muitas

características das línguas europeias derivariam da América, além disso: “les égyptologues trouveront peut-

être là ce qui leur fait défaut dans le copte, et qui sait même si le Tonalamatl ou Rituel mexicain ne leur

offrira pas une clef pour l’interprétation du prétendu Livre des morts?”.

609 Bourbourg (1864, 99-100) afirma que as narrativas religiosas egípcias possuíam passagens e eventos semelhantes aos descritos no Popol Vuh, obra que havia sido publicada por ele em francês poucos anos antes

(1861). Haveria também uma correspondência entre deuses mexicanos, egípcios e gregos: “Ainsi, de quelque

côté qu’on jette les yeux sur les cosmogonies antiques, en Afrique, en Asie ou en Amérique, de chaque côté,

on leur trouve, non-seulement des analogies, mais des ressemblances si grandes, qu’il serait inconséquent de

n’y voir que de simples coïncidences, entièrement dues au hasard: Il ne reste donc plus qu’à leur attribuer

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particular dos egípcios associada aos atlantes e, em última instância, aos americanos, o

escritor francês os descreve como um povo isolado e excepcional, sem semelhanças com

nenhum de seus vizinhos africanos para concluir que:

“Eh bien, cherchons autour d’eux, jetons les regards sur les

nations que les environnaient, interrogeons-les; elles ne nous apprendront rien.

Nous ne trouverons rien d’analogue dans l’ancien monde. Mais tournons à

l’ouest, passons les mers, franchissons l’Océan, et sur le continent opposé, nous

reverrons immédiatement réunies toutes ces particularités que nous checherions

vainement à découvrir dans l’Égypte aujourd’hui, excepté dans les peintures de

ses nécropoles: nations rouges ou cuivrées, sans barbe, nous les retrouverons,

non dans quelques provinces isolées, mais dans la plus grande partie de

l’Amérique. Pour soixante pyramides que l’on découvertes en Égypte, on en aura

mille au Mexique, et dans l’Amérique centrale: là, on trouvera des sculptures,

des livres, des tombeaux, des monuments de toute espèce qui rapelleront sans

cesse l’Égypte, et, en bien des lieux, en voyant une pauvre femme indigène,

revêtue de son costume de fête, on croira se trouver en présence de la déesse Isis

elle-même” (BOURBOURG, 1864, 63).

Ainda que ressalte ser temerário descrever o Egito como uma colônia

proveniente da América, defendendo a necessidade de mais estudos por parte dos

pesquisadores610

, Bourbourg afirma que havia indícios de uma revolta de povos do oeste

(América) que teria gerado uma migração através da Atlântida em direção ao Velho Mundo

só interrompida pelo cataclismo que teria destruído esta mítica ilha: “arrêtant ainsi à

l’ouest les peuples qui menaçaient l’Europe, et interrompant les progrès d’une civilisation

occidentale, dont les uniques témoignages sont, peut-être, les monuments des premiers

une origine commune. Dans les cieux, sur la terre ou au fond des mers, en Égypte et au Mexique, ce sont des

mythes identiques”.

610 “De tant de ressemblances et d’analogies entre les origines et les cultes de l’ancien et du nouveau monde,

il est impossible de douter que ces deux continents n’aient eu autrefois des communications fort fréquentes et que l’un ne soit venu de l’autre. Auquel donnerons-nous la priorité? C’est là, comme nous l’avons déjà dit,

une question que nous laisson au temps et à des investigations plus complètes à décider. La science arrivera-

t-elle jamais, d’ailleurs, à preciser l’âge du monde? Ce à quoi nous nous intéressons davantage en ce

moment, c’est aux origines de la civilisation dont on retrouve des vestiges si considérables dans les antiques

traditions de l’Amérique” (BOURBOURG, 1864, 129-130).

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Egyptiens, successeurs de Menès” (BOURBOURG, 1864, 64). Seguindo esta lógica, o

Egito teria servido como uma “porta de entrada” da civilização americana para além do

Atlântico. Assim, o autor afirma que, ao pesquisar povos de regiões como a Ásia Menor em

um período anterior à chegada dos indo-europeus, “qu’y trouvons-nous? Des nations [...]

dont les moeurs, les institutions et les cultes nous rappellent sans cesse des cultes et des

institutions analogues dans l’ancienne Amérique” (1864, 67)611

.

No entanto, mesmo com esta mudança de postura, Bourbourg permanece

estabelecendo uma divisão entre índios mais e menos avançados que possuiriam origens

diferentes. Ao falar sobre regiões como o Haiti, o autor afirma que seus atuais habitantes

não seriam capazes de construir os antigos monumentos encontrados em ruínas nestes

locais, o que indicaria a existência de uma “autre race, d’autres hommes plus policés” que

teria ocupado estas terras anteriormente “et les Indiens de la dernière époque auraient

succédé à la civilisation et à ces peuples éteints par on ne peut savoir quelles révolutions!”

(1864, 114).

A teoria da América como “berço” da civilização, defendida com ressalvas por

Bourbourg nesta obra, foi aprofundada em suas Quatre lettres sur le Mexique (1868).

Nelas, o autor afirma que “la proposition fondamentale de mes quatre letttres où j’avance

et où je prouve que la civilisation tout entière, à laquelle on a toujours donné l’Orient pour

berceau, vient de l’Occident, c’est-à-dire de l’Amérique” (BOURBOURG, 1868, viii). Esta

civilização seria ainda mais antiga do que a dos arianos descrita por diversos autores

europeus, o que poderia ser observado através de comparações linguísticas612

e

“confirmado” através da “dupla leitura” dos códices indígenas613

. Com isso, Bourbourg

611 Ao defender que povos como os Cariens tinham origem americana e, posteriormente, teriam migrado e se

estabelecido em diferentes regiões da Ásia, Bourbourg inverte a teoria proposta por Varnhagen em seu livro

sobre a origem dos Tupi.

612 O grego e o latim, por exemplo, teriam para o autor mais da metade de suas palavras associada a línguas

não indo-europeias: “[...] je faisais un travail comparatif où l’Amérique emportait non seulement la plupart des racines latines inconnues aux Aryas, mais encore un grand nombre de sanscrites” (BOURBOURG, 1868,

10-12).

613 De acordo com o autor, seus estudos dos códices indígenas teriam revelado a existência de uma “escrita

dupla”: “Imaginez un livre [...] dont toutes les phrases, dont la plupart des mots ont un double sens [...] C’est

en cherchant l’explication d’un passage fort curieux, relatif à l’histoire de Quetzal-Coatl, que je suis arrivé à

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conclui que só seria possível compreender o passado remoto da humanidade, o

desenvolvimento das sociedades e, mais especificamente, da civilização, a partir da

América, em especial, do México.

Ainda que duramente criticadas por muitos autores, como Vicente Fidel

López614

, as teorias propostas por Bourbourg em suas últimas obras encontrou

interlocutores ao longo do século XIX e início do XX. Entre eles, destacamos Henrique

Onffroy de Thoron, autor de um artigo que alcançou grande repercussão na França e em

outros países615

, onde defendia haver indícios de que embarcações da frota do rei Salomão

teriam navegado na região do rio Amazonas616

. Este pesquisador francês argumenta que as

comparações entre línguas do Novo Mundo e do Velho teriam indicado a existência de uma

estreita relação entre a Atlântida, o Egito e a América617

, cabendo ao quíchua o papel de

ce résultat extraordinaire. Oui, Monsieur, si ce livre est en apparence l’histoire des Toltèques et ensuite des

rois de Colhuacan et de Mexico, il présente, en realité, le récit du cataclysme qui bouleversa le monde, il y a quelques six ou sept mille ans” (BOURBOURG, 1868, 24).

614 Como já apontamos acima, López (1871, 216) faz duras e recorrentes críticas aos argumentos de

Bourbourg em sua obra sobre os índios-arianos, principalmente aos esforços do francês em identificar uma

origem mexicana e mais recente dos incas: “M. Brasseur de Bourbourg [...] préoccupé sans cesse du désir de

retrouver dans toute l'Amérique les races et les idées mexicaines, est tombé dans une erreur manifeste quand

il a voulu ramener au type nahuatl toutes les religions de l'Amérique méridionale”. Outro crítico das teorias

de Bourbourg é o pesquisador norte-americano Hubert Howe Bancroft (1876, 125-128), para quem o abade

francês, a despeito de sua grande erudição e esforço, se equivocou em suas interpretações: “there is reason to

believe that the Abbé was often rapt away from the truth by excess of enthusiasm”.

615 Intitulado Voyages des flottes de Salomon et d’ Hiram en Amérique, este texto foi lançado em 1868,

republicado no ano seguinte em um periódico italiano e, no Brasil, em 1876. De acordo com Johnni Langer, a

tradução para o português teria sido realizada pela Câmara de Manaus como parte dos esforços existentes no período para retirar a “legitimidade do espaço geográfico dos seus ocupantes atuais, os ‘selvagens’ [...] ao

mesmo tempo que estabelecia vínculos progressistas para as terras silvestres” (LANGER, 2001, 40).

616 Em sua pequena e confusa obra, Thoron (1904, 26) afirma que a bíblica Ofir estaria localizada “no

território colombiano e brasileiro [...] A desaparição das frotas de Salomão e de Hiram durante três anos, a

cada viagem que faziam, se acha agora explicada, pois que elas estacionavam no rio que tinha o nome de

grande rei. Se essas compridas estações, várias vezes repetidas, tivessem tido lugar em qualquer ponto do

antigo continente, a tradição ou a história não teriam deixado de as transmitir”.

617 “[...] ora na língua dos egípcios, anti significa ‘os altos vales’. Atlantis ‘país dos altos vales’. Anti é

justamente o nome dos Andes da América equatorial e suas povoações têm ainda o nome de Antis [...]

Independentemente das provas filológicas que possuímos, as quais demonstram as relações dos povos de

ambos os grandes continentes, em a mais remota antiguidade, faremos observar que os antigos egípcios se representavam sempre em suas pinturas murais como sendo da raça vermelha e imberbe: ora os americanos

indígenas são os únicos povos que são imberbes e de cor vermelha, e seu tipo é justamente o mesmo que se

nota nas esculturas mais antigas do Egito. Conchegando este fato etnográfico às provas filológicas e à

comunidade de língua, torna-se evidente que o elemento principal da grande invasão dos Atlantes, a qual

efetuou-se ao mesmo tempo na Líbia até o Egito, na Europa até a Tyrrhenia, até mesmo à Grécia, fora

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língua ancestral. Ainda que o autor defenda que a origem dos americanos está relacionada à

Ásia (a partir de migrações antediluvianas através da Atlântida), ele ressalta que os

ancestrais de povos como os gregos618

e, mais ainda, os da raça ariana e das línguas indo-

europeias seriam americanos: “os Arias e sua língua sânscrita tiveram seu berço na

América: temos disso as provas filológicas, etnográficas e históricas” (THORON, 1904,

33).

Interpretação semelhante, ainda que com conclusões muito diferentes, foi

adotada por Emeterio Villamil de Rada, político, diplomata e filólogo boliviano

contemporâneo de Thoron e Bourbourg. De acordo com este pesquisador, muitos povos do

Velho Mundo (como os egípcios, os gregos e os indianos) seriam descendentes diretos dos

incas americanos. No entanto, o autor vai além, ao afirmar que a origem de todos os

humanos estaria, de alguma forma, atrelada a este continente. Para ele, o aimará seria a

“língua de Adão”, que teria dado origem aos idiomas indo-europeus. Isso faria com que a

região andina se tornasse não apenas o “berço” da civilização619

, mas da própria

humanidade, o que, segundo o autor, confirmaria a “noble primitividad de paternidad

peruana del género humano y todos sus bellos y sabios, o desvirtuados e imperfectos

dialectos, cimentándose así, en esta reconocida unidad del espíritu y de origen de raza y

lengua, la antes controvertida unidad y fraternidad antropológica” (VILLAMIL DE

RADA, 1839, 10)620

.

fornecida pelos habitantes dos altos vales da América equatorial, coligados com os da ilha Atlântida”

(THORON, 1904, 8).

618 “Segundo Plutarco, as origens gregas achar-se-iam na América: os resultados de nossos trabalhos dão-lhe

completa razão” (THORON, 1904, 13).

619 O autor dá grande destaque às ruínas de Tiahuanaco. Tanto as outras cidades existentes na América pré-

colombiana quanto os primeiros indícios de vida urbana no Velho Mundo teriam sido criados por seus

descendentes.

620 O prefaciador da obra de Villamil de Rada, Gustavo Adolfo Otero, resume as principais teorias defendidas

pelo autor: “Cree en la primitividad geológica del continente americano, contemporánea de una fauna

mamífera y aérea y en su prioridad de la vida antropológica. Cree en la antigüedad, unidad e identidad del hombre americano, en su autoctonía, al que consideraba ‘jamás venido de otra parte’, y en que el Perú y

Bolivia son los antiguos domicilios y escenarios del primitivo actor humano. Cree que el aymará fue la

lengua primígena de la humanidad, que el hombre es el poblador de los continentes llamados del viejo

mundo y que en fin, que este fue nacido en Tiahuanaco y cuya cultura y, principalmente, su ciencia celeste

fue la trasmitida a Egipto, India, Caldea y Grecia” (VILLAMIL DE RADA, 1839, xxi).

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Contudo, o defensor de uma origem americana dos índios, de sua “civilização”

e, até mesmo, de todos os seres humanos que alcançou maior repercussão no período foi

Florentino Ameghino. Em 1875, este antropólogo e paleontólogo comunicou à Sociedade

Científica da Argentina a descoberta de ossos fossilizados de um ser humano associado ao

início da colonização do continente americano. Nos anos seguintes, Ameghino aprofundou

suas pesquisas e passou a defender a conclusão de que havia indícios de restos humanos na

América do Sul que remontavam ao período Terciário621

. Esta teoria, segundo o

pesquisador, indicaria que o território da atual Argentina foi o local de surgimento da

humanidade622

que, posteriormente, teria migrado para o Velho Mundo e dado origem a

povos como os mongóis e os europeus: “Embora repelidos hoje pela imensa maioria dos

sábios, [os argumentos de Ameghino]623

tiveram tanto eco logo após a sua publicação, que

merecem ser expostos pormenorizadamente ao lado das críticas que os condenaram”

(RIVET, 1960, 57)624

.

Em seu La antigüedad del Hombre en el Plata (1918), Ameghino condensa

muitas das teorias desenvolvidas por ele desde as décadas finais do século XIX. Nesta obra,

o pesquisador argentino defende que a presença humana no continente americano seria

contemporânea à da megafauna que habitou estas terras até a última glaciação. Isto faria

com que muitas das migrações de povos do Velho Mundo em direção ao continente

621 Período geológico não mais utilizado que congregava diversas épocas e ia de cerca de 66 milhões de anos

até, aproximadamente, 2,5 milhões de anos atrás.

622 “Ele propôs, em ordem cronológica, primeiro um antepassado não humano, o Homunculus patagonicus,

depois alguns pré-hominídeos chamados Tetraprohomo, seguido por várias espécies de Homo, finalizando

com o Homo pampeus. De acordo com seu argumento, o Homo pampeus migrara para o norte atravessando o

istmo do Panamá e dali para a Ásia através do estreito de Bering, onde um ramo virou o povo mongol e outro

continuou para a Europa por caminho não identificado, tornando-se o homem branco” (ADOVASIO, 2011,

242).

623 Entre os diversos críticos das teorias de Ameghino, podemos citar o antropólogo mexicano Manuel Gamio,

que em seu artigo No hay prehistoria mexicana rebate as teorias autóctones propostas por alguns autores no

período (MOCTEZUMA, 1987, 189-192). No entanto, seu maior opositor foi Ales Hrdlicka, em seu Early

Man in South America (escrito em conjunto com William Henry Holmes). De acordo com Adovasio (2011,

243), mesmo após as críticas “demolidoras” de Hrdlicka e Holmes, a noção de Homem Terciário sul-americano continuou embasando as pesquisas de alguns pesquisadores nas décadas seguintes.

624 André Prous (1997, 10) identifica a obra de Ameghino como um marco inicial dos debates entre “pré-

historiadores que acreditam numa entrada muito remota do homem nas Américas (interpretando neste sentido

vestígios por vezes pouco convincentes) e os que permanecem céticos e criticam de maneira sistemática os

indícios apresentados como prova”.

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americano, apontadas por dezenas de autores nos últimos séculos, poderiam até ter

ocorrido, “pero negamos absolutamente que alguna de ellas haya dado origen al pueblo

americano, que, probaremos, remonta a una época muy anterior a todas esas pretendidas

emigraciones” (AMEGHINO, 1918, I, 10-11).

Em decorrência desta afirmação, o autor passa a tentar comprovar que

“civilizações avançadas” como a dos incas, seriam resultado de “una larga evolución

primitiva verificada in situ, lo que a su vez prueba la gran antigüedad del hombre en esas

regiones” (1918, I, 32-33)625

. Mesmo em locais descritos por ele como marcados pela

presença de “povos miseráveis” (partes da América Central, por exemplo), havia resquícios

que indicavam a presença de povos civilizados em períodos anteriores626

e, assim como em

vários outros casos analisados, a existência de migrações “bárbaras” provenientes do

Norte627

. Após estabelecer a origem autóctone dos indígenas – entremeada por migrações

posteriores de povos do Velho Mundo – Ameghino busca identificar onde estariam

localizados os vestígios dos “primitivos povoadores” e encontra no território argentino sua

possível “resposta”. Ainda que não seja categórico nesta obra quanto à origem americana

625 Esta interpretação fica evidente quando observamos os comentários feitos pelo autor à obra de Vicente

Fidel López sobre os índios-arianos. Ameghino (1918, I, 55) afirma que, caso as semelhanças linguísticas

identificadas por López ente o ariano e o quíchua se confirmassem, “esto probaría más bien que las lenguas

de flexión arianas tuvieron su origen en las primeras. Esta parece ser también la opinión de Brasseur de

Bourbourg”.

626 “[…] cuando, en fin, casi toda Europa estaba aún sumida en la barbarie, en América había naciones florecientes y civilizadas, que vivían en grandes ciudades, tan extensas como nuestras más vastas metrópolis,

que habían hecho grandes progresos en las artes y la industria y tenían conciencia de la bello y lo grandioso;

había pueblos que tenían una escritura y sus anales históricos, que cultivaban el dibujo y la pintura y

construían monumentos y palacios como aún no los había iguales en Europa, y por más de un concepto

sobrepujan a muchos de los del antiguo mundo” (AMEGHINO, 1918, I, 81).

627 Dessa forma, seria impossível trabalhar com o conceito de uma “raça americana” única e homogênea para

todos os habitantes do continente: “[…] no queremos decir que la población americana descienda de una

emigración asiática. De ninguna manera. No admitimos una raza americana, como no admitimos una raza

asiática por haber en Asia naciones enteras de amarillos, blancos, negros y hasta cobrizos […] La población

americana es en su conjunto el resultado del cruzamiento de varias razas diferentes de las del viejo mundo,

que han poblado este continente desde una antigüedad sumamente remota, y de algunas emigraciones parciales verificadas en tiempos relativamente modernos que no han hecho más que producir algunas

alteraciones locales de los tipos primitivos, cuyo primer origen es todavía un problema por resolver, puesto

que aún no conocemos los caracteres típicos del tronco o de los troncos de la familia americana. Esto es lo

que nos demuestra de una manera evidente el estudio de los diferentes grupos de individuos que poblaban

este continente” (AMEGHINO, 1918, I, 55).

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dos seres humanos628

, Ameghino enfatiza que “el suelo argentino dió origen a una

civilización propia”, que seria anterior a outras existentes neste e em outros continentes,

como a dos incas, de quem seriam ancestrais (1918, I, 302).

***

Ao final do capítulo, podemos observar a existência – grosso modo – de três

posturas diante das questões em torno da procedência dos americanos e das diferenças que

existiriam entre eles em diferentes épocas e partes do Novo Mundo. Em primeiro lugar,

podemos observar que muitos autores atribuíram uma origem dupla – ou múltipla – aos

americanos, associando povos considerados como mais desenvolvidos – onde há, em geral,

um destaque para as regiões do Peru e da Nova Espanha – a grupos ou raças do Velho

Mundo que também atendessem a estes critérios. Assim, os indígenas foram divididos entre

“bárbaros” mongóis e “civilizados” arianos; desenvolvidos mongóis e inferiores tártaros,

entre outras hipóteses.

Em outros casos, os indígenas foram descritos como descendentes de um

ancestral comum (associado, geralmente, a povos asiáticos, mas também, em alguns casos,

a europeus, africanos ou nativos da própria América). Esta procedência única, contudo, foi

muitas vezes acompanhada por ressalvas de que a mesma origem não indicaria um mesmo

estágio de desenvolvimento a todos os povos americanos, principalmente quando se

comparava o índio que teve contato com os europeus, a partir do século XV com aqueles

considerados como responsáveis pela construção das grandes “civilizações” do passado,

ainda visíveis, por exemplo, através das ruínas de Palenque. Há, em muitos casos, uma

hierarquização a partir de outros critérios, como a existência de migrações posteriores,

processos de degeneração com intensidade e velocidade específicas ou diferentes

características físicas que influenciariam em seu desenvolvimento (como uma menor

capacidade volumétrica de seus crânios).

628 “Hasta ahora la ciencia no puede determinar en qué punto de la superficie del globo apareció el hombre

por primera vez, y cada pueblo de la tierra tiene perfecto derecho para considerar a su país como la cuna

primitiva del género humano, pues en la actualidad sería imposible demostrarle lo contrario” (AMEGHINO,

1918, I, 95).

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Por fim, há um grupo significativo de autores que deslocam a questão da

origem dos índios – considerada de difícil solução – para a da origem da civilização neste

continente. Mesmo neste caso, a procedência dos americanos permanece sendo central, uma

vez que há, em muitas das obras citadas nas páginas anteriores, a atribuição da

“civilização” a uma origem única e diferente da dos outros habitantes do continente além da

preocupação de identificar povos que não poderiam ser considerados ancestrais dos atuais

grupos americanos, restringindo esses aspectos considerados como positivos ao índio

“morto”, restrito ao passado629

. Dessa forma, podemos observar que a multiplicidade dos

indígenas – seja a partir de divisões regionais e/ou temporais – exerceu um papel

fundamental dentro das representações do Novo Mundo e de seus habitantes presentes nas

obras dos autores analisados neste capítulo e no anterior. Multiplicidade esta, que estava

diretamente associada a uma interpretação hierarquizada dos povos americanos a partir de

conceitos como o de “civilização”, “barbárie”, “raças” e “troncos linguísticos”.

629 A esse respeito, aproximamos nossa análise da realizada por Mary Louise Pratt (1999, 232) sobre as pesquisas realizadas por autores europeus a respeito do passado egípcio: “A imaginação europeia produz

objetos arqueológicos por meio da separação dos povos contemporâneos não europeus de seus predecessores

pré-coloniais e mesmo coloniais. Reviver a história e a cultura indígenas como arqueologia é revivê-las

enquanto algo morto. Este ato simultaneamente as resgata do esquecimento europeu e as situa numa era

passada”.

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Conclusão

As origens dos índios

Ao final desta tese, pretendemos retomar algumas das questões apresentadas

separadamente em seus cinco capítulos. Neste trabalho, procuramos analisar as formas

como a origem dos índios foi abordada em dois períodos distintos, os anos finais do século

XVI e início do XVII e, em seguida, o século XIX, particularmente até a década de 1870.

Em ambos os casos, não procuramos determinar quais seriam as respostas mais “corretas”

ou “verdadeiras” sobre uma questão que ainda permanece em aberto e suscitando acirrados

debates. Tampouco, buscamos agrupar as fontes analisadas a partir do local de nascimento

de seus autores, o período em que elas foram compostas, a(s) “resposta(s)” sugeridas para

esta questão ou mesmo a forma com que estruturavam seus argumentos. Pelo contrário.

Ainda que tenhamos concentrado nossa pesquisa em três hipóteses específicas (a origem

atlante, judaica ou asiática) tentamos demonstrar que elas foram abordadas de formas tão

variadas que impedem generalizações. Além disso, procuramos analisar de que maneiras as

reflexões realizadas sobre esta questão por autores de épocas e países distintos se

relacionavam com algo mais amplo, as representações produzidas sobre os indígenas tanto

no período inicial de contato entre o Novo Mundo e o Velho quanto no período posterior ao

processo de independência das colônias europeias no continente americano.

O primeiro aspecto que abordamos foi a pequena e esparsa historiografia

produzida sobre este tema, que se dedicou, majoritariamente, aos relatos produzidos nos

dois primeiros séculos de presença europeia na América. Identificamos que a postura mais

comum foi a realização de grandes compêndios de teorias (contendo os principais

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argumentos utilizados para embasá-las, os autores que as apontavam como possível

resposta para a procedência dos indígenas bem como seus críticos) que, em muitos casos,

foram embasados em “julgamentos” e hierarquizações dos conteúdos analisados. Em

seguida, abordamos as poucas obras que pesquisaram a própria existência do debate sobre a

origem do homem americano para além de uma tentativa de solucionar este “problema”.

Novamente, observamos que a postura mais recorrente foi a que buscava associar as

dezenas de autores que se dedicaram a esta questão a grupos relativamente homogêneos e,

de certa forma, coerentes (seja a partir de “tradições de pensamento” “modernas” ou

“tradicionais”, como reflexo dos interesses religiosos, políticos e econômicos dos autores

ou como resultado dos debates intelectuais que eram travados na Europa do período). De

nossa parte, tentamos demonstrar que essas abordagens sobre a origem dos índios não

apenas forçam semelhanças e minimizam especificidades como eliminam aspectos

fundamentais das reflexões realizadas pelos autores sobre o tema além de abordá-lo como

algo “fechado em si”, com uma lógica própria (identificar quem seriam os ancestrais diretos

dos indígenas) que pouco implicaria em suas representações sobre a América e seus

habitantes.

Sugerimos também que os questionamentos sobre a origem dos índios não se

iniciaram com a chegada das embarcações de Colombo. Mais do que a busca pelo início

desta questão, procuramos identificar as alterações ocorridas ao longo do tempo,

associadas, por exemplo, à percepção de que essas terras formavam um continente até então

desconhecido por parte dos europeus e a documentos como a bula papal Sublimis Deus

(1537), que ressaltava a humanidade dos indígenas e sua plena capacidade de conversão ao

cristianismo. Não por acaso, as reflexões sobre este tema, praticamente ignorado durante as

primeiras décadas de contato dos europeus com o Novo Mundo, aumentaram

progressivamente até o início do século XVII e, a nosso ver, são indissociáveis da

experiência europeia em terras americanas e das representações sobre os indígenas

produzidas neste período, elementos que consideramos fundamentais para o próprio

surgimento destes questionamentos.

A partir dessas premissas, pudemos observar que os autores que refletiram

sobre a procedência do homem americano na etapa inicial de colonização do continente

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recorreram às Sagradas Escrituras (e, em menor quantidade, a autores cristãos e a textos

apócrifos, como os atribuídos a Esdras), particularmente a passagens que faziam referência

à criação do casal original, a seres gigantescos que teriam existido no início da criação, ao

dilúvio universal e aos destinos da descendência de Noé e das tribos de Israel. Outra

referência central para aqueles que analisaram esta questão neste período foi a tradição

clássica, onde as menções ao mito platônico da ilha de Atlântida e às reflexões aristotélicas

a respeito das características naturais do planeta ou sobre navegações cartaginesas até terras

desconhecidas ocupam um papel de destaque.

As referências a elementos das tradições clássica e cristã, que se imbricavam

dentro das obras destes autores, permitiram a identificação de alguns aspectos importantes

para a análise das representações dos indígenas realizadas por dezenas de autores do

período selecionado. Em primeiro lugar, apontamos as dificuldades de se identificar

grandes grupos homogêneos a partir da origem dos escritores. Além disso, uma mesma

“resposta”, como a identificação dos hebreus como ancestrais dos americanos, poderia ser

interpretada de diferentes maneiras, seja como um sinal da proximidade do fim dos tempos,

como uma explicação para a existência de costumes “bárbaros” entre os nativos ou mesmo

pela existência de complexas obras arquitetônicas nestas terras. A própria forma com que

estes autores recorreram a passagens bíblicas e a escritos greco-romanos impedem

respostas generalizantes.

As dificuldades apontadas acima nos levaram a privilegiar a multiplicidade de

respostas aventadas no período sobre esta questão. Mais do que uma forma criolla,

espanhola ou católica – entre outros critérios utilizados – de se abordar o tema, pudemos

observar que há um aumento progressivo da quantidade de hipóteses formuladas, muitas

vezes dentro de uma mesma obra, associando diferentes grupos indígenas a ancestrais

específicos. Interpretação que é indissociável de uma visão que hierarquizava os povos

americanos – e também, indiretamente, os do Velho Mundo de quem eles seriam

descendentes – entre os mais “selvagens” e aqueles que possuiriam características

consideradas pelos autores do período como avançadas, como a existência de governos

centralizados, vida urbana, formas identificáveis de idolatria, entre outras.

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Esta percepção da multiplicidade dos indígenas pode ser observada até mesmo

entre autores que apontavam uma origem única para todos os americanos ou entre aqueles

que não abordavam esta questão diretamente em seus textos. Em muitos dos casos

analisados, há a identificação de diferenças profundas entres os habitantes deste continente

não apenas geograficamente, mas também temporalmente. Postura que acreditamos estar

diretamente associada à experiência europeia na América. O contato prolongado com

diferentes grupos indígenas e com distintas representações europeias produzidas sobre eles

teria dificultado a identificação por parte dos autores de respostas que atribuíam um

ancestral único para todo o Novo Mundo.

A respeito destas questões, as reflexões do jesuíta espanhol José de Acosta

sobre a procedência e a natureza dos americanos ocuparam um espaço central. Suas

abordagens sobre hipóteses como a da ancestralidade hebraica ou atlante dos indígenas, a

defesa de uma migração humana para o continente através de um possível estreito marítimo

ou ligação por terra com a Ásia, assim como sua divisão e hierarquização dos povos

“bárbaros” em três níveis de desenvolvimento (que, entre outros aspectos, resultariam em

diferentes formas de contato e conversão para o cristianismo) foram longamente debatidas

por dezenas de autores nas décadas e séculos seguintes. Sobre a obra deste religioso,

tentamos demonstrar que a interpretação de uma parcela expressiva da historiografia que

via em sua abordagem acerca da colonização original da América uma “vitória” da

experiência sobre a tradição ignora aspectos centrais de sua análise não apenas sobre a

origem dos índios mas também sobre a natureza dos grupos humanos que habitavam este

continente (como as noções de equivalência entre as porções de terra do planeta propostas

por Aristóteles e a ação da Providência Divina para a criação de uma passagem entre a

América e a Ásia).

Com isso, concluímos a primeira parte da tese defendendo que, ao longo do

século XVI e início do XVII, o contato dos europeus com a América e seus habitantes

gerou um interesse crescente por suas origens e também a percepção de que os grupos

americanos eram extremamente diferentes entre si e em relação aos nativos dos períodos

anteriores. Esta percepção, contudo, não teria resultado em um abandono da tradição em

detrimento da experiência, mas sim um processo crescente de tensão e interação entre esses

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dois campos. A análise das obras que aventaram a possibilidade de gigantes bíblicos terem

habitado estas terras é exemplar a este repeito. As referências a estes seres começaram a ser

feitas várias décadas depois da chegada dos europeus e foi atrelada por praticamente todos

os autores à descoberta de ossos de grandes proporções em determinadas regiões do

continente. Dessa forma, a experiência europeia no Novo Mundo estaria diretamente

relacionada ao surgimento de uma nova hipótese sobre o início da colonização da América

que, contudo, gerou um retorno à tradição cristã em busca de elementos que permitissem

“explicar” a presença desses vestígios. Em resumo, acreditamos que o contato prolongado

com os indígenas e com relatos sobre o Novo Mundo e seus habitantes dificultaram

representações homogêneas de todos os americanos e estimularam um retorno a elementos

das tradições clássica e cristã que pudessem auxiliar nesta representação múltipla e

hierarquizada dos indígenas que pode ser observada em uma parcela expressiva dos autores

do período que se dedicaram a estas questões.

As representações que identificavam grandes diferenças e uma escala entre os

diversos grupos indígenas também tiveram um papel fundamental nas reflexões sobre a(s)

origem(ns) dos índios produzidas no segundo período analisado (quando este tema volta a

despertar a atenção de um número expressivo de autores). Influenciados por obras

produzidas no início do período colonial (com destaque para os escritos de Acosta) e

também na virada do século XVIII para o XIX (como as de Robertson, Clavijero e

Humboldt), os autores que abordaram os primórdios da colonização humana na América,

na grande maioria das vezes, estabeleceram diferenças “originais” entre os antigos povos

indígenas e destes em relação aos do “presente”.

Tendo como ponto de partida alguns dos primeiros relatos produzidos sobre as

ruínas da antiga cidade maia de Palenque, procuramos demonstrar que as representações

sobre os americanos presentes nestas e em várias outras obras do período foram baseadas

em conceitos como o de “civilização” e “barbárie”, fundamentais para diferenciar grupos

indígenas mais e menos avançados. Grande parte dos autores analisados atribuíram

procedências diferentes e, muitas vezes, exclusivas, aos povos identificados por eles como

os responsáveis pelo desenvolvimento de grandes complexos arquitetônicos, formas

relativamente centralizadas de governo entre outros aspectos interpretados no período como

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“avançados”. Não por acaso, há, em muitos autores, uma predileção por investigar não qual

povo teria sido o pioneiro na ocupação da América, mas sim qual deles seria responsável

por introduzir a “civilização” nestas terras.

Em seguida, procuramos demonstrar como a visão múltipla e hierarquizada dos

indígenas passou a integrar diferentes debates sobre a América e seus habitantes, as

trajetórias nacionais construídas no período por diferentes países americanos e a unidade ou

diversidade dos seres humanos. Tomando novamente as migrações judaica (hipótese

aventada principalmente por autores norte-americanos) ou atlante para o Novo Mundo

como ponto de partida, pudemos observar que elas foram interpretadas de diferentes

maneiras neste período. Seja como explicação para a existência de características

“civilizadas” ou “bárbaras” em algumas regiões do continente, como evidência da

proximidade do fim dos tempos, entre outras, o que reforça nossa defesa da impossibilidade

de se unificar as interpretações realizadas sobre este tema a partir de critérios como o local

de origem atribuído por cada um dos autores.

As divisões entre os indígenas estabelecidas por dezenas de autores neste

período encontraram em conceitos como o de “raça ariana” e de “línguas indo-europeias”

um campo fértil para suas análises. Conceitos estes, profundamente associados às

descobertas arqueológicas e linguísticas que vinham ocorrendo nas últimas décadas no

Oriente, região apontada pela grande maioria dos escritores analisados que abordaram a

questão da origem dos índios como local de onde teriam partidos os grupos humanos que

povoaram o Novo Mundo (ou, o que foi bem mais raro, local que teria recebido a

“civilização” desenvolvida em terras americanas).

Seguindo esses critérios, os indígenas foram apontados tanto como versões

degeneradas de outras raças quanto como integrantes de uma raça exclusiva do continente;

como descendentes dos “civilizados” arianos, mas também relacionados aos bárbaros – ou

avançados, a depender do autor – mongóis ou, ainda, como ancestrais dos povos indo-

europeus ou mesmo de toda a humanidade. Entretanto, procuramos ressaltar que esta

utilização de conceitos criados pelos europeus do período por parte de autores americanos

não poderia ser interpretada como uma “cópia” de modelos criados alhures, mas sim a

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produção de uma interpretação que buscava dialogar com a intelectualidade europeia do

período.

Por fim, gostaríamos de concluir ressaltando que, seja no século XVI ou no

XIX, abordar a questão da origem dos indígenas significava refletir sobre o índio do

“presente”, o que gera um duplo jogo de representações: a representação do índio do

passado (seja ele um “nobre” responsável por grandes construções e complexos sistemas

matemáticos, astronômicos e linguísticos, o selvagem nômade e canibal, ou mesmo uma

mistura de ambos) em oposição ou identificado com as imagens construídas sobre o índio

“vivo”. Não por acaso, os picos de produção sobre este tema estão associados aos

momentos posteriores à chegada dos europeus e à independência de suas colônias na

América, quando questões como a legitimidade sobre a posse das terras e o lugar que

deveria ser ocupado pelas populações autóctones foram intensamente debatidas. Assim, a

identificação de uma origem múltipla para os americanos, que sugerimos estar associada à

experiência dos europeus na América com os índios “vivos” dos séculos XVI e XVII,

passa, especialmente no século XIX, com a ascensão de conceitos como o de raças

humanas ao mesmo tempo em que ocorriam violentos conflitos com grupos indígenas em

diferentes partes do continente, a ser vista como uma possível explicação para a existência

de características consideradas pelos autores como tão díspares entre si dentro das terras

americanas.

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