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Leituras / Readings Saúde Mental Mental Health 48 Adrian Gramary Médico Psiquiatra Correspondência relacionada com o artigo: Centro Hospitalar Conde de Ferreira Rua Costa Cabral, 1211, 4200-227 Porto e-mail: [email protected] 1. Uma cruz no lago Starnberg Uma cruz, sobressaindo das águas próximas da margem do lago Starnberg, recorda, hoje em dia, ao visitante, o lugar onde faleceu afogado, numa noite de Pentecostes de 1886, o Rei Luís II de Baviera. A sua morte, acontecida durante um passeio à beira do lago, em companhia do eminente psiquiatra Bernard von Gudden, continua envolvida em mistério. Luis II de Baviera: Reflexões sobre um Relatório Psiquiátrico-Forense Controverso Ludwig II of Bavaria: Reflections on a Controversial Forensic Psychiatric Report «É necessário continuar a criar estes paraísos, estes refúgios poéticos onde possamos ocultarmo-nos e esquecer durante algum tempo a épo- ca horrível que nos tocou viver.» Carta de Luís II de Baviera à sua antiga preceptora Sibylle von Leonrod

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Leituras / Readings Saúde Mental Mental Health

48

Adrian GramaryMédico Psiquiatra

Correspondência relacionada com o artigo:

Centro Hospitalar Conde de FerreiraRua Costa Cabral, 1211, 4200-227 Portoe-mail: [email protected]

1. Uma cruz no lago Starnberg

Uma cruz, sobressaindo das águas próximas da margem do

lago Starnberg, recorda, hoje em dia, ao visitante, o lugar onde

faleceu afogado, numa noite de Pentecostes de 1886, o Rei

Luís II de Baviera. A sua morte, acontecida durante um passeio

à beira do lago, em companhia do eminente psiquiatra Bernard

von Gudden, continua envolvida em mistério.

Luis II de Baviera: Reflexões sobre um RelatórioPsiquiátrico-Forense Controverso

Ludwig II of Bavaria: Reflections on a Controversial Forensic Psychiatric Report

«É necessário continuar a criar estes paraísos, estes refúgios poéticos

onde possamos ocultarmo-nos e esquecer durante algum tempo a épo-

ca horrível que nos tocou viver.»

Carta de Luís II de Baviera

à sua antiga preceptora Sibylle von Leonrod

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Volume X Nº5 Setembro/Outubro 2008 Leituras / Readings

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Até onde nós sabemos, existem vários casos de psiquiatras

mortos pelas mãos dos seus doentes, mas este é o único caso

de um psiquiatra falecido não só pelas mãos do seu doente

mas também juntamente com ele.

O psiquiatra Bernard von Gudden foi um dos responsáveis

pela introdução dos princípios da psiquiatria non-restraint nos

hospitais alemães, mas é fundamentalmente conhecido por

ter sido o mestre de Kraepelin. Nessa altura, era director do

Hospital Psiquiátrico de Munique e conselheiro médico real, e

tinha assinado dias antes um relatório psiquiátrico-forense que

concluía que o Rei Luís II tinha uma paranóia e que, portanto,

o seu estado mental não era compatível com a continuidade

das suas funções à frente do Estado, indicando a necessidade

da inabilitação do monarca. Na sequência desta acção de

inabilitação, uma comissão tinha-se deslocado, alguns dias

depois, ao castelo de Neuschwanstein para comunicar a

decisão ao Rei, correspondendo a Von Gudden transmitir a

notícia ao monarca:

«Senhor, assumo hoje o mais triste dever da minha

vida. Vossa Majestade, segundo a opinião de quatro

médicos, foi declarado inabilitado. O Príncipe Liotpold

assumiu a Regência. Recebi ordens de acompanhar a

Vossa Majestade ao castelo de Berg esta mesma noite.

Se Vossa Majestade não ordenar nada em contrário,

senhor, o coche sairá às quatro horas.»

Luís II ficou finalmente recluso no castelo de Berg, sob a es-

treita vigilância de elementos da guarda pessoal, do psiquiatra

e de vários funcionários do Hospital Psiquiátrico de Munique.

Foram extremadas as medidas de segurança por temor à fuga

ou ao suicídio do Rei, entre outras foram colocadas grades

nas janelas, eliminados os puxadores das portas e as facas

dos serviços de talheres, e só foram permitidas as saídas do

monarca aos jardins do palácio em companhia de guardas.

Nessa noite, excepcionalmente recriada no extenso monólogo

interior escrito por Klaus Mann (A janela gradeada. A morte

de Luís II de Baviera), não sabemos bem como, mas o Rei

conseguiu convencer o seu psiquiatra a dar um passeio pela

margem do lago sem acompanhamento. Às 9 horas da noite,

o ajudante de Von Gudden, o Dr. Muller, preocupado com a

demora, deu o alarme no interior do castelo, organizando-se

uma batida pelo lago, que termina com a descoberta na água

dos dois corpos sem vida.

As autópsias aos dois cadáveres permitiram concluir que

enquanto o Dr. Von Gudden morreu por afogamento, o Rei

Luís II de Baviera parece ter morrido por congestão cardíaca.

Também é necessário destacar que Von Gudden tinha sinais

evidentes de ter participado numa luta corporal: a unha de um

dedo da mão partida e múltiplas lesões cutâneas (equimoses),

algumas à volta do pescoço, sinais que, curiosamente, não

apareceram no corpo do Rei.

A explicação mais plausível para isto é que o Rei, conhecido

por ser um bom nadador, fugiu em direcção ao interior do

lago, e o psiquiatra tentou evitar a sua fuga, entrando numa

luta corpo a corpo, na qual o Rei terá tentado estrangular o

psiquiatra, e que terminou com a vitória do Rei, que, uma vez

liberto, começou a nadar tentando atingir a margem oposta

do lago, morrendo, no entanto, uns metros mais longe, em

consequência da congestão cardíaca.

2. Um Rei Mecenas e Anacrónico

Luís II de Baviera subiu ao trono do Reino de Baviera em 1885,

num momento histórico de grande transcendência para o

futuro da Alemanha. Durante o seu reinado, este país iniciou

o caminho em prol da formação de um Estado unitário, que

integrasse, sob a égide da Prússia —representada pelo chan-

celer Otto von Bismarck e pela figura emblemática do Kaiser

Guilherme, futuro Imperador de todos os alemães— a floresta

variada de reinos, ducados, principados e cidades livres, que

constituíam o actual território alemão. Nesse sentido, o Rei

bávaro tinha todos os atributos para se tornar uma figura ana-

crónica e esquisita: amante dos monarcas autocratas segundo

o modelo do Ancient Regime, em particular Luís XIV, Luís XV

e Luís XVI, apaixonado pelas artes, excêntrico, noctívago,

sonhador, homossexual, misantropo, pouco apaixonado pela

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ideia da monarquia constitucional, com tendências absolutistas

e requintes medievais, e que para aumentar o seu carácter

singular, representava a cabeça visível de um reino católico no

meio de uma maioria de povos protestantes.

Obrigado a partir em 1871 e a reconhecer a existência do

Império Alemão e a tutela do Kaiser Guilherme, o seu papel

ficou assim limitado a ser um elemento quase decorativo,

situação que facilitaria ainda mais o seu isolamento e reclusão

nos inúmeros castelos que construiu pelo território da Baviera

(Linderhof, Neuschwanstein e Herrenchiemsee, entre outros).

Luís II foi amante das artes, em particular da arquitectura e

da ópera, e tornou-se famoso pelo seu mecenato de Wag-

ner, a quem convidou para viver na Baviera, pondo ao seu

alcance todos os meios necessários para compor a ópera

“Tristão e Isolda” e para representar partes de Tetralogia “O

Anel dos Nibelungos”. Saldou as inúmeras dívidas do músico,

assegurou-lhe uma pensão anual e alugou para ele, para o ter

mais perto, uma vila à beira do lago Starnberg, a um quarto

de hora de distância do seu castelo de Berg. No entanto, esta

amizade peculiar entre o Rei e o músico começou a ser alvo de

comentários jocosos por parte de alguns jornais satíricos, como

demonstra a alcunha “Lolus” criada por alguns jornalistas para

Wagner, em recordação do nome da famosa favorita do avô

do Rei, Luís I, a bailarina Lola Montes. O patrocínio de Wagner

acabou por provocar um escândalo sem precedentes no reino

e o Rei, obrigado pelos Ministros e pela Rainha-mãe, expulsou

Wagner do país, para evitar conflitos maiores.

3. Uma dinastia maldita

Há famílias, como aconteceu com os Kennedy mais recente-

mente, que parecem atrair a desgraça e o azar. Não falta algu-

ma razão àqueles que consideram os Wittelsbach, a família a

que pertencia Luís II de Baviera, uma dessas dinastias malditas.

O irmão de Luís II, Otto, que acreditava ser um cão, viveu, boa

parte da sua vida, fechado num castelo sob a vigilância de um

psiquiatra e da guarda real, ladrando e comportando-se como

se o fosse. Por outro lado, os Habsburgo, directamente enlaça-

dos com os Wittelsbach, através da Arquiduquesa Sofia, mãe

do Imperador Francisco José, e da mulher deste, a Imperatriz

Elizabeth, mais conhecida por Sissi, mantiveram-se na mesma

linha de desastres familiares.

O filho de Sissi, o Arquiduque Rodolfo, herdeiro da coroa

imperial, suicidou-se em 1889, juntamente com a sua aman-

te, Mary Vetsera, no Palácio de Mayerling, a que se seguiu

o Arquiduque Francisco Fernando, que foi assassinado em

1914 por um terrorista sérvio em Sarajevo, o que despoletou

a Primeira Guerra Mundial.

O Arquiduque Maximiliano, que cruzou o Atlântico, em 1864,

para ocupar o trono fantasma do Império Mexicano, acabou

por morrer fuzilado em 1867, pelas tropas republicanas de

Juárez. A própria Imperatriz Elizabeth não conseguiu evitar o

trágico destino da família, morrendo em 1898, em consequên-

cia do ataque com arma branca de um anarquista, na cidade

suíça de Genebra.

4. O Rei Virgem

Embora o epíteto que mais fama atingiu foi o de Rei Louco,

a ausência de relações femininas conhecidas determinou

que Luís II de Baviera também fosse conhecido como o Rei

Virgem.

A única mulher com quem manteve uma relação permanente,

de estreita cumplicidade ao longo dos anos, foi com a sua pri-

ma Elizabeth, a Imperatriz Austro-Hungara. Estas almas géme-

as tinham muitos pontos em comum: partilhavam uma atitude

pouco realista pela vida, a paixão pelo mundo das artes e uma

acentuada misantropia. No caso de Elizabeth é conhecido o

seu carácter fugidio e arisco - que a levou a evitar os contactos

com a aristocracia vienense e a preferir a fuga continua para

paraísos longínquos como o arquipélago da Madeira ou a Gré-

cia, e a sua preocupação com dietas rigorosas e com a prática

diária de ginástica, que nessa época eram comportamentos

estranhos para a realeza centro europeia.

A preocupação dos ministros com a sucessão no trono de

Baviera, obrigou o Rei Luís II a aceitar o compromisso com

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a sua prima Sofia, a irmã pequena de Elizabeth. Mas este foi

um relacionamento literário, esvaziado de qualquer conteúdo

erótico, sustentado numa relação epistolar em que o Rei se

auto-denominava Lohengrin, o protagonista da ópera de Wag-

ner, e Sofia era obviamente Elsa, a sua companheira na ficção.

Há quem pense que o monarca escolheu Sofia como segunda

alternativa por não ter podido escolher a irmã Elizabeth, com

quem o unia uma amizade muito estreita e pela qual sentia uma

paixão idealizada. Após múltiplos adiamentos, o Rei rompeu

definitivamente o compromisso, e Sofia acabou por casar com

o Duque Fernando de Alençon. Em 1887, porém, abandonan-

do marido e filhos, fugiu para a Suíça com o seu médico.

Foi separada do amante à força, declarada demente e inter-

nada numa clínica psiquiátrica. Mais uma vítima da maldição

dos Wittelsbach, Sofia morreu em Paris, em 1897, no incêndio

de um bazar de caridade.

5. Um controverso relatório psiquiátrico-forense

O processo de inabilitação realizado contra o Rei Luís II de

Baviera é, como tantos outros acontecidos durante o século

XIX e princípios do século XX, um bom exemplo da instrumen-

talização de que pode ser objecto a psiquiatria por parte do

poder político.

São múltiplas as irregularidades que envolvem a elaboração

deste relatório. Teríamos que começar por um facto salien-

tável e suspeito: Von Gudden redigiu o relatório sem nunca

ter observado o doente, neste caso o Rei, baseando as suas

conclusões psiquiátricas nos depoimentos de pessoas que

tinham feito parte do círculo de lacaios do monarca, a maioria

dos quais tinha sido expulso da corte, constituindo, portanto,

testemunhas comprometidas, que, obviamente, era muito

provável que emitissem pareceres enviesados sobre o estado

mental do monarca.

O relatório baseou a inabilitação nas excentricidades do Rei,

nas suas opiniões políticas – caracterizadas por um germa-

nismo dúbio e pela sua simpatia pró-francesa, devida a uma

atracção manifesta pelo esplendor da corte de Versailles –, no

desprezo que manifestava pelo povo bávaro, na sua manía de

construir castelos e nas suas amizades “degradantes” com

os lacaios.

Neste sentido, não foi por acaso que o autor do relatório se

sentisse na obrigação, no seu início, de dar uma explicação

sobre o facto de não ter havido um exame presencial do Rei:

«…manifestamos, em primeiro lugar, que considera-

mos inoportuno, além de desnecessário, reconhecer

em pessoa a Sua Majestade, dada a abundância de

documentação disponível…»

Outra irregularidade nos procedimentos do relatório diz respeito

à participação dos outros três peritos assinantes, pois uma

vez redigido, Von Gudden conseguiu, por meios turvos, as

assinaturas de mais três colegas: o seu genro, o Dr. Hubert

Grashey, professor de psiquiatria em Würzburg, e os clínicos

Dr. Hagen – que era conselheiro da corte – e Dr. Hubrich, que,

por sua vez, também não tinham observado o periciado.

Como já foi referido, a conclusão básica do relatório é que o Rei

apresentava um quadro delirante crónico ou paranóia, que o

tornava incapaz de reger a coroa de Baviera, mas a argumen-

tação do relatório falha no essencial, isto é, para um leitor que

se debruce no texto, surpreende a ausência de uma descrição

psicopatológica veraz do referido quadro psicótico.

Talvez possa aportar alguma luz seguir a argumentação do au-

tor através da transcrição dos parágrafos mais importantes do

relatório: no início Von Gudden aborda o carácter misantropo

e fugidio do Rei, com o seu famoso evitamento dos contactos

interpessoais:

«…esta aversão pelo trato humano foi-se acentuando

com o passar do tempo, até ao ponto de que o Rei fre-

quentava cada vez menos a igreja de Berg, e finalmente

fez construir no jardim privado do castelo de Berg uma

pequena igreja em estilo românico, onde podia ser ce-

lebrada a missa só para ele, estando terminantemente

proibida a assistência de qualquer outra pessoa. Como

é conhecido, também eram representadas peças de

teatro só para Sua Majestade porque não suportava

a presença de público. A companhia de outras pes-

soas tornou-se cada vez mais intolerável para ele (…)

é público e notório que, desde há muito anos, a Sua

Majestade não recebe pessoalmente os responsáveis

da Corte nem os ministros da Casa Real… ficando,

assim, o trato humano de Sua Majestade limitado

praticamente aos lacaios…»

Em relação aos lacaios, o relatório aborda o relacionamento

excessivamente próximo que o Rei mantinha com estes,

que era um dos aspectos do seu comportamento que mais

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escândalo tinha provocado na sociedade bávara, embora,

talvez para evitar alimentar os boatos já existentes, o autor

evite abordar os conhecidos envolvimentos homossexuais que

o Rei mantinha com alguns serviçais, nomeadamente com o

seu favorito, Hornig:

«…durante a estada da Sua Majestade em Schachen,

soube-se que os moços da estrebaria foram convida-

dos ao salão turco do castelo, onde, sentados sobre

carpetes de estilo oriental, beberam sorvetes em com-

panhia da Sua Majestade e fumaram cachimbos turcos.

E também, na conhecida como sala germânica, insta-

lada em Linderhorf, deitados sobre peles, os lacaios

beberam hidromel em grandes cornos…»

Von Gudden descreve, a seguir, aquelas extravagâncias artís-

ticas que iriam conformar, com o passar do tempo, o núcleo

essencial da lenda maldita do Rei Louco, como a construção

da maior gruta artificial do mundo, os passeios nocturnos a

cavalo, pelas montanhas próximas do recinto do palácio de

Hohenschwangau, portando o ceptro e a coroa e acompa-

nhado por lacaios com tochas, ou a sua paixão desmedida

pela corte de Versailles que o levou a construir castelos que

recriassem o esplendor da época de Luís XIV e Luís XV e a

organizar festas em homenagem a Luís XVI e Maria Antonieta,

actividades estas que teriam conduzido ao esvaziamento das

arcas do Estado:

«…neste domínio das fantasias incontroladas, não

submetidas às limitações impostas pelo real e pelo

possível, poderíamos incluir outros factos comentados

noutras partes do relatório, como o desejo tantas vezes

exprimido pela Sua Majestade de voar pelos ares numa

carruagem puxada por pavões, tendo encomendado ao

mestre mecânico Brand uma máquina para sobrevoar

os Alpes desde Hohenschawangau; ou a pretensão de

copiar a gruta azul de Capri, para a qual o lacaio Hornig

teve que se deslocar duas vezes a Capri para estudar

a referida cor azul…»

«…o moço de estrebaria Hornig referiu que a Sua Ma-

jestade costuma vestir-se em segredo a moda dos reis

absolutos de França e que fez tirar do tesouro real o

ceptro e a coroa para passear com eles durante as suas

expedições nocturnas e também que tinha intenção de

construir um novo Versailles em Graswangtal…»

«…transcrição de uma carta dirigida a Hesselschwerdt,

escrita pelo próprio punho da Sua Majestade a lapiseira,

por motivos de urgência: (…) as construções são a

única alegria que me resta, desde que estão paradas

sinto-me muito infeliz e seria capaz de abdicar ou de

acabar com tudo, isto deve acabar, que sejam reto-

madas as obras, se ele consegue isto, praticamente

me terá salvado a vida (…) A felicidade da minha vida

está em causa…»

«…A Sua Majestade só quer construir, e as estratégias

que usa para procurar o dinheiro necessário para isto

reflectem mais uma vez, se fossem necessárias mais

provas, ao ponto que chegou a decadência das suas

faculdades mentais…»

Mas a nossa opinião é que todo este catálogo fabuloso, em-

bora real, de extravagâncias, que faz parte da lenda maldita

do Rei Luís II, é no essencial semelhante ao de tantos outros

monarcas da história, que no entanto, na maioria dos casos,

foram poupados de ser objecto de uma acção de inabilitação

fundamentada em semelhantes excentricidades.

É por este motivo que ficamos ansiosos a espera dos argu-

mentos clínicos e psicopatológicos necessários para sustentar

a pretensa paranóia defendida por Von Gudden, mas quando

os elementos são finalmente apresentados, eles são difusos

e pouco consistentes. Começa por invocar, o relator, determi-

nadas semelhanças entre a doença psiquiátrica do monarca

e a do seu irmão Otto, encerrado num castelo desde o início

da idade adulta por um quadro psicótico, provavelmente

esquizofrenia:

«…a Sua Alteza Real o Príncipe Otto de Baviera está

afectado por uma doença mental incurável, cujas ori-

gens remontam-se aos anos da juventude, algumas

de cujas características têm uma semelhança óbvia

e significativa com certos sintomas da doença que se

manifesta na Sua Majestade…»

A seguir, passa a descrever as insónias e as cefaleias crónicas

de que sofre o monarca e o seu abuso dos soníferos:

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«…para terminar, faremos uma breve referência às

condições físicas do Rei. Desde há algum tempo, a

Sua Majestade diz sofrer de enxaquecas com sensação

de pressão e dor, sobretudo na região occipital, que

combate com sacos de gelo, às vezes até durante as

refeições. Também são frequentes as insónias; há cerca

de seis anos que o Rei toma cloral duas ou três vezes

por semana, mas desde há cerca de quatro anos tem

tomado outros soníferos, de cuja composição nada

sabemos os abaixo assinantes…»

Mas, chegado o momento de demonstrar a existência de

alucinações, os argumentos e as descrições de Von Gudden

parecem forçadas e inconsistentes:

«…sobre se a Sua Majestade apresenta realmente alu-

cinações, isto não pode ser assegurado com certeza

absoluta, embora possam indicar a sua presença as

observações de Hesselschwert ao referir que o Rei se

sobressalta com o mais leve ruído, e que, durante os

seus passeios, diurnos e nocturnos, costuma interrom-

per o seu discurso com frequência, dizendo ter ouvido

qualquer coisa, palavras ou passos; e, ao assegurar o

interlocutor não ter ouvido nada, retorquiu “o que se

passa é que tu és duro de ouvido, Hesselschwerdt”.

Tudo isto sem que a Sua Majestade conseguisse expli-

car nunca quais são esses ruídos ou essas palavras que

crê ouvir. Também estando o Rei no interior dos seus

quartos (como declarou o mordomo Welker) costuma

queixar-se de que ouve ruído de passos no andar de

cima, ordenando que este seja revistado, embora nunca

tenham encontrado lá ninguém. Ainda, encontrando-se

a sós nos seus aposentos (observações do 3 de Junho

de 1886, segundo depoimentos de Hesselschwerdt)

o Rei foi ouvido frequentemente a falar e rir em voz

alta, como se estivesse com companhia numerosa e

entretida…»

Descreve ainda a suspeição do monarca e descreve o que

parecem prováveis interpretações deliróides de conteúdo

paranóide ou autoreferencial, mas sem conseguir demonstrar

a existência dos delírios sistematizados característicos da

paranóia:

«…só a presença de elaborações ilusórias permite ex-

plicar o incidente que comunica o ministro Von Ziegler:

“o Rei comunicou-me mais de que uma vez o seu mal-

estar por ter sido objecto de olhares meus depreciativos

e desrespeitosos durante a audiência real, convidando-

me a justificar, posteriormente, o meu comportamento,

com o que tive que perder muito tempo elaborando

escusas e explicações para a pretensa falta de respei-

to”. Acredita Von Ziegler que a razão desta suspeição

é a convicção do rei de que a sua presença causa um

efeito desagradável nas pessoas, como se ficasse

envergonhado de alguma anomalia ou deformidade

muito óbvia; sentimento este que é bastante provável

que corresponda a um mecanismo ilusório presente na

Sua Majestade…»

Mas existe também uma explicação mais simples para estes

comportamentos: é lícito pensar que a imagem do Rei Luís II

nos últimos anos, com quase todos os dentes podres – o que

motivou modificações na ementa real, passando a comida a ser

servida triturada, e tornou o seu discurso difícil de perceber–

não contribuísse propriamente para aumentar a segurança do

monarca perante a sua exposição em público. A isto soma-se

o facto conhecido do sofrimento e culpabilidade com que o

monarca, católico praticante, vivia a sua homossexualidade,

como deixou explicitamente escrito nos seus diários:

«Ódio mortal aos sentidos, ódio mortal. Chega de bei-

jos. Lembrai-vos, Senhor, lembrai-vos. Desde agora,

nunca mais! Desde agora, nunca mais. Desde agora,

nunca mais!»

Os assinantes, no entanto, sem mais explicações psicopato-

lógicas do que as acima referidas, concluem, surpreendente-

mente, no fim do relatório:

«1. A Sua Majestade padece uma perturbação das

suas faculdades mentais já muito avançada; trata-se

concretamente de uma doença conhecida entre os

alienistas com o nome de paranóia (psicose de evolu-

ção progressiva).

2. Tendo em conta o carácter progressivo da doença

e o facto da sua longa duração no caso da Sua Ma-

jestade, destacamos o seu carácter incurável e a mais

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que provável continuidade e aceleração do processo

de deterioração das suas faculdades mentais.

3. A doença exclui a livre determinação da sua vonta-

de, e portanto, devemos considerar a Sua Majestade

incapacitado para governar, e incapacitado não por

um lapso de tempo superior a um ano, mas sim para

a vida toda.»

6. Novas reflexões sobre o caso do Rei Ludwig

Num estudo recente, o Professor da Universidade de Heidel-

berg, Heinz Häfner, soma-se àqueles que questionam se o Rei

mais do que um psicótico, não terá sido um homem nascido

na época errada. Sem dar resposta a esta pergunta, este au-

tor, no entanto, é de opinião que o diagnóstico de paranóia é

insustentável a partir da perspectiva actual. Recorda ainda que,

após a morte do Rei, um dos três psiquiatras que assinaram

o relatório exprimiu dúvidas sobre o diagnóstico de paranóia.

Segundo este autor, o Rei Luís II, com o intuito de fugir dos

seus conflitos internos, desenvolveu uma forma infrequente de

adição: a adição pela construção; adição esta que poderia ser

incluída, junto com, por exemplo o jogo patológico, no grupo

de dependências não relacionadas com substâncias.

O monarca também terá desenvolvido, sempre desde a pers-

pectiva de Häfner uma fobia social, que se foi exacerbando

com o passar do tempo, devido, em grande medida, aos

sentimentos de vergonha com o que o monarca vivia as suas

inclinações homoeróticas. Este quadro fóbico também permi-

tiria explicar a sua retirada social e da vida política.

Qual era o diagnóstico psiquiátrico de Luís II de Baviera? Mui-

tas vozes qualificadas parecem coincidir de que a paranóia

é uma hipótese actualmente insustentável. Além do estudo

mais recente de Häfner, estudos realizados por outros auto-

res apontaram, no passado, outros possíveis diagnósticos

psiquiátricos: perturbação esquizóide de personalidade, pa-

rafrenia ou demência fronto-temporal. Nós concordamos com

aqueles que pensam que é provável que o Rei tivesse uma

perturbação de personalidade, e que desenvolveu, a partir

de uma determinada altura da sua vida, um quadro de fobia

social e, usando o conceito de monomania de Esquirol, uma

incoercível monomania edificadora.

Para acabar, gostávamos de relembrar a sentença do historia-

dor Guy de Pourtalés, que na sua biografia caracteriza o Rei,

enquanto homem, como “o último grande artista coroado”,

“excepcional como personagem de tragédia”, embora não

duvide em fazer um implacável balanço final da personagem

histórica: “não amou absolutamente o seu povo, defendeu mal

a coroa e não defendeu os seus amigos”.

No entanto, por contradições da história, ao apaixonado

Rei Luís II devem os bávaros os múltiplos castelos por ele

construídos e disseminados pelo território bávaro, que

constituem, actualmente, o seu principal atractivo turístico.

E todos nós temos, ainda, uma dívida contraída com o

monarca, pois ele foi o principal mecenas de Wagner, cuja

obra é um pilar fundamental para compreender a música

do século XX.

Bibliografia

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