15
29 VOLUME V Nº6 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2003 Um fantoche com a voz da autonomia A puppet with the voice of the autonomy Manuel Machado Psicólogo Clínico Rogério Pastor-Fernandes Psicólogo Clínico Assistente do Curso de Psicologia Clínica do Instituto Superior de Ciências da Saúde-Norte Correspondência: Manuel Machado [email protected] “Esquece tudo o que sabes ou pensas que sabes; Abandona o poder e a lei que vigora. No interior, onde correm os rios mais profundos, Descobre as correntes da eternidade...” Willow na Terra da Magia 1. Introdução O Nuno (nome fictício) é um cliente do sexo masculino, com oito anos, nascido em 11 de Agosto de 1993. Quando ele entrou pela primeira vez no consultório, acompanhado pela mãe e pela irmã, o que mais ressaltou foi o seu aspecto lânguido; muito moreno, com umas grandes pestanas, e uma timidez marcada. Enquanto a mãe falava, ele contorcia-se todo em movimentos ansiosos, e nunca olhava para o psicólogo. Nas sessões seguintes foi progressivamente “soltando- -se” mais, mas sempre sem olhar nos olhos do entrevistador; foi progressivamente mostrando-se uma criança menos apática, menos tímida e mostrou-se um Nuno, embora sempre sem perder a sua timidez, capaz de conseguir divertir-se, de fazer humor e de brincar. Pareceu-nos timidez; o seu comportamento mostrava uma inibição: a sua incapacidade para comunicar com o psicólogo e o seu retraimento perante a sua pessoa, levaram-nos a projectar uma dificuldade de interacção caída por terra, logo que ao Nuno foi permitido entrar em cena. O acompanhamento psicológico que apresentamos contou com onze sessões. Oito dessas foram realizadas com o Nuno e as outras três (a primeira, a terceira e a sexta) com os pais. No que respeita às entrevistas com os pais, para além da primeira, a terceira foi com o intuito de retirar dados anamnésticos para posteriormente construir uma história clínica, e a sexta na tentativa de dar aos pais (que foi só a mãe visto o pai não ter podido ir) uma devolução do caso. Foram aplicados o Teste do Pata Negra e o Teste do Desenho de uma Família como meios auxiliares de diagnóstico. O resto do tempo foi ocupado com sugestões (lúdicas) que o Nuno foi propondo. De que modo? Axline (1993) diz que “o brincar é o meio natural que a criança possui para se expressar. ” (p.9). Baseando-nos nesta afirmação, deu-se liberdade para o poder fazer, quer através do desenho quer através

Um fantoche com a voz da autonomia - Saúde Mentalsaude-mental.net/pdf/vol5_rev6_caso_clinico.pdf · 2005-04-11 · Foram aplicados o Teste do Pata Negra e o Teste do Desenho de

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Um fantoche com a voz da autonomia - Saúde Mentalsaude-mental.net/pdf/vol5_rev6_caso_clinico.pdf · 2005-04-11 · Foram aplicados o Teste do Pata Negra e o Teste do Desenho de

29

VOLUME V Nº6 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2003

Um fantoche com a voz da autonomiaA puppet with the voice of the autonomy

Manuel Machado

Psicólogo Clínico

Rogério Pastor-Fernandes

Psicólogo Clínico

Assistente do Curso de

Psicologia Clínica do

Instituto Superior de

Ciências da Saúde-Norte

Correspondência:

Manuel Machado

[email protected]

“Esquece tudo o que sabes ou pensas que sabes;

Abandona o poder e a lei que vigora.

No interior, onde correm os rios mais profundos,

Descobre as correntes da eternidade...”

Willow na Terra da Magia

1. Introdução

O Nuno (nome fictício) é um cliente do sexo masculino, com oito

anos, nascido em 11 de Agosto de 1993. Quando ele entrou pela

primeira vez no consultório, acompanhado pela mãe e pela irmã, o

que mais ressaltou foi o seu aspecto lânguido; muito moreno, com

umas grandes pestanas, e uma timidez marcada. Enquanto a mãe

falava, ele contorcia-se todo em movimentos ansiosos, e nunca olhava

para o psicólogo. Nas sessões seguintes foi progressivamente “soltando-

-se” mais, mas sempre sem olhar nos olhos do entrevistador; foi

progressivamente mostrando-se uma criança menos apática, menos

tímida e mostrou-se um Nuno, embora sempre sem perder a sua

timidez, capaz de conseguir divertir-se, de fazer humor e de brincar.

Pareceu-nos timidez; o seu comportamento mostrava uma inibição:

a sua incapacidade para comunicar com o psicólogo e o seu retraimento

perante a sua pessoa, levaram-nos a projectar uma dificuldade de

interacção caída por terra, logo que ao Nuno foi permitido entrar

em cena.

O acompanhamento psicológico que apresentamos contou com

onze sessões. Oito dessas foram realizadas com o Nuno e as outras

três (a primeira, a terceira e a sexta) com os pais. No que respeita

às entrevistas com os pais, para além da primeira, a terceira foi com

o intuito de retirar dados anamnésticos para posteriormente construir

uma história clínica, e a sexta na tentativa de dar aos pais (que foi

só a mãe visto o pai não ter podido ir) uma devolução do caso.

Foram aplicados o Teste do Pata Negra e o Teste do Desenho de

uma Família como meios auxiliares de diagnóstico. O resto do tempo

foi ocupado com sugestões (lúdicas) que o Nuno foi propondo. De

que modo?

Axline (1993) diz que “o brincar é o meio natural que a criança possui

para se expressar.” (p.9). Baseando-nos nesta afirmação, deu-se

liberdade para o poder fazer, quer através do desenho quer através

Page 2: Um fantoche com a voz da autonomia - Saúde Mentalsaude-mental.net/pdf/vol5_rev6_caso_clinico.pdf · 2005-04-11 · Foram aplicados o Teste do Pata Negra e o Teste do Desenho de

30

VOLUME V Nº6 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2003

do brinquedo. Arfouilloux (1980) especificamente em relação ao

brinquedo, diz que este é representação e comunicação:

“representação do mundo exterior que a criança se faz a si mesma,

representação do mundo do seu mundo interior que ela projecta nos

temas do seu brinquedo; ele é comunicação, pois, embora haja brinquedo

solitários, há outros que permitem o estabelecimento de uma relação

com outrem, seja um adulto ou uma criança. E quando a palavra falha,

essa forma de comunicação revela-se particularmente preciosa para

a entrevista.” (p.94). Desta forma, tentamos, por um lado, estabelecer

uma relação com o Nuno, encontrando um meio onde ambas as

partes (entrevistador e entrevistado) sentissem conforto para

comunicar, e por outro, onde nos fosse permitido (ao psicólogo

e cliente) perceber melhor a realidade que emergia do encontro,

a problemática e o mundo interior do cliente. A dramatização,

como instrumento terapêutico é o que pretendemos abordar

neste caso clínico.

2. Pedido

Este caso ocorreu num Centro de Saúde, no serviço de psicologia.

É marcada uma consulta através de um contacto telefónico com

a mãe do Nuno, mediante uma carta da pediatra, onde, para além

dos dados de identificação deste, a problemática era apresentada:

“jovem com enurese e encoprese, embora não possua obstipação. Possui

aversão às casas de banho, que considera “nojentas” assim como as

necessidades de defecação e micção”. Iniciou um tratamento para

a enurese, há cerca de dois meses com um medicamento cujo

princípio activo é a desmopressina (acetato hidratado).

A mãe comparece à consulta com o Nuno e a sua irmã mais nova.

Com um comunicar ansioso, falava baixinho, para que o Nuno que

“fingia” estar desatento (o seu olhar para a janela, ou para a

marquesa seria uma fuga para outro dos sentidos - o “olhar ansioso”

a mascarar o “ouvido ansioso”?), não conseguisse ouvir. Mostrava-

se difícil ouvi-la, naquela situação um pouco desconfortável para

os três intervenientes: o Nuno, que obviamente estaria a ficar mais

ansioso, não só, provavelmente com o conteúdo, mas também com

toda a proibição de que esse mesmo conteúdo se fez revestir; a

mãe que estava com vontade de contar algo mais; e o psicólogo,

algo “constrangido” por aquele ambiente de “informação-tabu”.

Por isso pediu-se à mãe que saísse um pouco, deixando o psicólogo

sozinho com o Nuno, marcando uma consulta com os pais, para

dali a duas semanas (3ª consulta).

Nesta primeira consulta, a mãe falava em nome do casal ao se

referir ao pedido de ajuda requisitada, utilizando por isso

normalmente o pronome nós (referindo-se a ela e ao marido) –

procurando assim talvez mostrar uma implicação paternal na

realidade que apresentava. Assim, a mãe e o pai procuravam ajuda

técnica para o seguinte problema: o Nuno faz “chichi” nas calças,

durante o dia e durante o sono e faz também “cocó” durante o

dia. Como ele já tem quase 9 anos, eles estão preocupados com

o facto. Pareceu falar do problema, como algo externo (o que para

João dos Santos (in Branco, 2000) se correlaciona com um pior

prognóstico em termos de terapia), como uma “doença”, pedindo

ajuda para a retirar. Recorreram inicialmente à pediatra e sob o

cuidado dela, a criança inicia um tratamento farmacológico para

a enurese. O dirigir-se a uma consulta de psicologia ocorreu com

o intuito de “tratar” a encoprese, visto tratamento da enurese

estar a ser já contemplada por outro técnico. Segundo a mãe, o

Nuno “retém as fezes durante muito tempo e depois quando vai ao

quarto de banho já é tarde” (1ª consulta). Referiu, ainda, que ele não

gosta de defecar porque não gosta do cheiro que considera

“nojento”. Não encontram (pai e mãe) razões para este

comportamento, exceptuando o facto de ele ser uma criança que

gosta muito de brincar, empenhando-se muito naquilo que faz e

esquecendo-se frequentemente, com isto, de ir à casa de banho.

Chamam-no várias vezes à atenção numa tentativa de o “lembrar”

da sua necessidade fisiológica, mas não resulta. O pai diz, na terceira

sessão (consulta que constou numa entrevista aos pais sem que

o Nuno estivesse presente): “ó Nuno antes que o pai vá, não queres

ir tu e tal, depois para ir eu...; ó pai - dizia o Nuno -, se eu tivesse

vontade achas que não ia lá?”. Não sabem mais o que poderão fazer

e principalmente a mãe desespera com este problema.

Ao falarmos da procura de ajuda, teremos necessariamente de dar

a visão de quem foi designado como “possuidor” do problema, ou

seja, o nosso cliente. O Nuno, na primeira consulta, (como já foi

dito) manteve-se calado enquanto a mãe falava. Procurou-se ficar

um pouco sozinho com ele (pedindo à mãe para sair) – na tentativa

de o pôr mais à vontade com o psicólogo e com a situação - e ele

naturalmente manteve-se igualmente calado. Procurou-se comunicar

com ele. Iniciou-se um ciclo de pergunta – resposta. Procurou-se

saber a sua opinião acerca do que a sua mãe esteve a dizer, o que

ele achava da consulta de psicologia e da sua pertinência para o

seu caso. O Nuno respondeu com timidez, mostrando mais uma

vez inibição no seu modo de actuar com o psicólogo (Marcelli,

1998): respostas curtas que, além de serem neutras de um ponto

de vista emocional, (não nos permitindo sentir um envolvimento

afectivo, quer na forma de expressão, quer no conteúdo expresso),

nos pareceu representarem uma resposta estereotipada no que

concerne à sua família: “se tiver que ser, é preciso para se resolver as

coisas” – diz ele na primeira consulta. Com a angústia que o psicólogo

sentia que lhe estava a causar, e mais a sua por sentir que não estava

a conseguir uma aproximação - a criação de uma relação inter-

subjectiva -, propôs-se fazer um desenho. Fê-lo, a ansiedade pensamos

tenha diminuído e mostrou-nos/se.

Page 3: Um fantoche com a voz da autonomia - Saúde Mentalsaude-mental.net/pdf/vol5_rev6_caso_clinico.pdf · 2005-04-11 · Foram aplicados o Teste do Pata Negra e o Teste do Desenho de

31

VOLUME V Nº6 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2003

O que nos tentava transmitir com este? Que simbolismo teria na

sua vivência a personagem humana a levar com uma trela o cão

a fazer “chichi” e “cocó”? Estaria ele a contar-nos um controlo

exterior que sente em relação ao seu próprio corpo e conse-

quentemente em relação ao controlo dos esfíncteres, sentindo-

se “levado a passear a horas certas”?

Na sessão seguinte optamos por uma postura diferente. Munido

de fantoches, lápis de cor, folhas brancas e bonecos variados,

abrimos a porta do consultório desarmados - sem perguntas pre-

estabelecidas. Procuramos centrarmo-nos na criança que chegava

e dar-lhe, como diz Axline (1993), “o comando da situação”,

partilhando com ele a “responsabilidade” pelo que se iria passar

na sessão, permitindo-lhe o direccionar da mesma. Já foi dito que

numa primeira fase, pretendíamos uma aproximação ao Nuno, ao

seu mundo interior. Como através da palavra, isso estava a parecer

difícil de conseguir, optamos por lhe dar completa liberdade para

ele escolher o meio com o qual preferiria comunicar. Estaríamos

disponíveis para qualquer comportamento que ele pretendesse

assumir, tendo presente que “não existe não comportamento, ou para

dizer as coisas mais simplesmente: não se pode deixar de ter

comportamento. Ora se admitimos que, numa interacção, todo

comportamento tem o valor de uma mensagem, ou seja, é uma

comunicação, segue-se que não se pode não comunicar, queira-se ou

não. Actividade ou inactividade, palavra ou silêncio, tudo tem valor de

mensagem.” (Watzalawick, Helmick-Beavin & Jackson, in Arfouilloux,

1980, p.65). Nesta segunda sessão, (realizada unicamente com

o Nuno), após o psicólogo ter tentado pôr o jovem à vontade

no respeitante “às regras” de não directividade, ele decidiu

brincar com fantoches. Nesta actividade, mostrou um grande

interesse, um grande envolvimento, não só no aspecto

motivacional como afectivo (tema explorado mais adiante).

Analisemos o dramatizado:

Dramatiza uma família à volta da mesa a comer, em que a filha

(com a mesma idade do Nuno), apresenta um problema onde

intervêm a família, a professora, as empregadas da escola e os

amigos. O problema situava-se na questão de ela ter querido ir ao

quarto de banho durante as aulas e não ter podido pelo facto de

a professora não ter deixado. Ela ficou muito “preocupada” mas

lá conseguiu aguentar até ao recreio; aqui, as empregadas também

não deixaram. Ela continuou muito preocupada e isso reflectiu-

se na sua relação com os colegas: por estar preocupada não pôde

brincar e estes ficaram chateados. De seguida toda a família presente

na mesa comenta o acontecido, num diálogo entre duas personagens.

De ressaltar a conversa existente entre o tio e a filha, onde o tio

lhe apresenta soluções para o problema, como ir ao quarto de

banho de manhã antes de ir para a escola, ao que ela responde

que isso ela já sabia. Convém também referir a conversa entre a

mãe e o tio, onde a mãe refere que o pai por vezes se zanga por

ela não ir ao quarto de banho antes de ir para a escola e o tio

refere que ele não deverá fazer isso porque ela não tem culpa,

que deverá compreendê-la. Ao procurar “dar um sentido ao que

se ouve”, elevando ao plano do simbólico, do conteúdo lactente,

a dramatização e não só (pois é de simbolismo que o mundo e

consequentemente o que escrevemos (sendo as próprias palavras

objectos simbólicos) igualmente se passam), encontramo-nos com

uma exposição do caso: a preocupação manifesta com o controlo

da sua vida para além dos esfíncteres; o desespero de se sentir

controlado, preso e assim não poder largar o que tem dentro

(excreção); a preocupação dos outros e a pressão exercida pelos

outros, na mesa - um local para o Nuno de reunião familiar (dito

na sétima sessão), e também de introdução de algo no corpo

(comida); um local onde todos falam, demonstrando que todos

estão a par do problema e que o tentam solucionar – as soluções

apresentadas que não resultam e que a filha já sabia; e por fim, o

querer transmitir a sua não culpa aos pais e, provavelmente, também

ao psicólogo do que se passa, querendo dizer que o que se passa

acontece num plano não consciente, independente do controlo

voluntário, que os pais parecem querer impor à “força”, zangando-

se com ela(e). Parece-nos que nesta introdução, o Nuno mostrou-

nos uma problemática, inserido na suas vivências, as suas angústias,

medos e alguma dinâmica social em torno do problema. Tudo

hipóteses, numa exposição que procura, mostrar um contínuo,

uma evolução: do cliente, da relação e do psicólogo enquanto

percepção que possui deste.

3. História desenvolvimental e familiar

(1) Fruto de uma gravidez planeada e desejada, de parto natural,

o Nuno nasceu e cresceu com os pais sempre muito presentes

– referem estes. Nasceu prematuro (sete meses e meio), com

Figura 1.

Page 4: Um fantoche com a voz da autonomia - Saúde Mentalsaude-mental.net/pdf/vol5_rev6_caso_clinico.pdf · 2005-04-11 · Foram aplicados o Teste do Pata Negra e o Teste do Desenho de

34

VOLUME V Nº6 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2003

pouco peso (não sabendo ao certo qual) e na sequência permaneceu

sete dias na incubadora. Esse foi o único problema apresentado

pelos pais relativamente ao seu nascimento. Em relação à alimentação

(e como já foi dito, para os pais ele continua a comer pouco): era

um bocado “preguiçoso” (designação dada por uma enfermeira aos

pais), porque desde muito cedo teve que combinar o aleitamento

materno com biberão porque não se esforçava por se alimentar;

“se calhar pensava que ainda estava na barriga da mãe” – diz esta,

na terceira consulta.

Aos três anos foi para o infantário. Até lá passava o tempo, enquanto

os pais trabalhavam, com uma vizinha, e depois, quando ele tinha

14 meses, a mãe deixou de trabalhar para estar com ele. Dos dois

aos quatro anos (sensivelmente), o Nuno passou, segundo a mãe,

uma “fazesita (...) em que ele não era muito simpático. Que se alguém

lhe fizesse assim uma festazita na cabeça, e tal, chorava mesmo. Porque

dizia que ninguém gostava dele”. A mãe pergunta-se se a razão pela

qual o Nuno andava triste e pouco simpático, não seria do ter

começado a fazer chichi nas calças, ou então, do facto de ele “ter

duas primas que iam para lá muito, e iam brincar às vezes lá para fora

porque a mãe permitia, só se fosse por eu não deixar, e ele chorava.

sr. dr;. eu até deixei de trabalhar nesse período, porque até ia para o

jardim com ele brincar e tudo”. No infantário, começou por ser uma

criança que não falava, “Punha-se ali a um canto, e não falava” - diz

a mãe. Depois a educadora disse que ele com ela falava, começando

aos poucos a ser mais sociável na escola, mas em casa, embora

tenha melhorado, sempre manteve uns resquícios da tristeza que

o caracterizavam nessa fase. O percurso escolar foi feito sempre

sem problemas, sendo considerado pelos professores e pelos pais

como um bom aluno.

Os pais descrevem-no como uma criança demasiado sensível, um

pouco triste. Alguém que prefere brincar sozinho, a ler ou a jogar

à paciência. Possui como actividade extra curricular, para além do

inglês que no colégio onde anda é obrigatório, aulas de informática.

Alguém que embora costume brincar sozinho, é também “popular”

entre o grupo de pares; mais, para os pais, ele não só é “bom” a

brincar, como também “é bom naquilo que faz”. A mãe em

determinada altura da 3ª entrevista: “Por exemplo, e nós não somos

umas pessoas que deixamos o Nuno vir para a rua... mas se for lá em

casa um miúdo e ele estiver a jogar “tazos” ele ganha. O miúdo vai

zangado para casa porque não consegue ganhar ao Nuno. Portanto

ele é bom naquilo que faz”.

É uma criança ordenada, que gosta de estudar, (segundo eles por

iniciativa própria) responsável e persistente nas tarefas que realiza;

é uma criança, segundo os pais, “digna de se dizer que se porta

bem”. É bom aluno e os pais orgulham-se muito disso. Orgulham-

se, igualmente, do facto de uma professora lhes ter dito, há uns

tempos atrás, que ele tinha uma inteligência acima da média e que

provavelmente ia longe nos estudos. No momento da terceira

consulta, o Nuno estava em férias de passagem do terceiro para

o quarto ano. Vive com os pais e a irmã.

Em relação a perspectivas futuras, os pais querem que o Nuno

tire um curso superior. Este, embora tenha dito numa sessão que

queria tirar um curso superior e ganhar dinheiro para poder ajudar

os pais, escreveu no questionário de Zelazosca que quando “fosse

grande” queria ser jogador de futebol.

(2) De nível socio-económico médio, o pai tem 47 anos, é técnico

de vendas e classifica-se como sendo uma pessoa que trabalha

muito. O próprio Nuno, nas dramatizações, escolhe para fazer do

pai uma personagem que trabalha muito, que de tanto trabalhar

“até se esquece que tem de ir comer”; mas alguém que também

trabalha para que nada falte à família. O facto de o Nuno ter posto

no questionário de Zelazosca, o pai como alguém que quando

chega a casa “vai logo pôr a mala no sítio”, parece-nos ser significativo

desta percepção. É alguém que tem como escolaridade a quarta

classe, mas que gostaria de ter mais, porque considera que muito

dos seus colegas que têm mais escolaridade, não sabem tanto

quanto ele. Mas, mesmo trabalhando muito, considera-se um pai

presente, que ainda arranja tempo para brincar com os filhos e

para estar com a mulher.

A mãe tem 41 anos e é secretária administrativa. Possui o 12º ano.

Apresenta-se nas consultas com grande ansiedade - os seus

movimentos eram tensos e ao comunicar gesticulava muito.

Mostrou-se muito preocupada com o Nuno, com o seu problema

e com o seu futuro. No final de cada sessão tida com o jovem, ela

perguntava como ele estava, o que é que achavamos. Por parte do

Nuno, não encontro grandes registos da sua descrição - quer no

teste do desenho de uma família, quer no questionário de Zelazosca,

a figura da mãe foi de certo modo ignorada.

Como dizia sentir-se sozinho, com ninguém com quem brincar,

pediu aos pais um irmão. Estes, que nunca haviam pensado nisso

antes, concordaram em dar-lhe um irmão para que ele não se

sentisse tão sozinho. Vejamos o excerto da entrevista que expõe

o descrito:

“Pa 17 – Prontos, ele no princípio, quando ele andou ali no primeiro

ano de escolaridade, ele chateava-nos porque, oh pai todos têm

manos e eu não tenho mano, vou para casa e estou ali convosco

e tal, só tou a estudar, não tenho com quem me entreter, ele era

assim desse género. E quê que tu queres? Ai, eu quero ter um mano,

uma mana, ó pá prontos a gente começou a pensar porque nos não

queríamos mais que um filho.

P18 – Mas não foi por ele que tiveram outro filho?

Pa18 – Foi, foi por ele.

Page 5: Um fantoche com a voz da autonomia - Saúde Mentalsaude-mental.net/pdf/vol5_rev6_caso_clinico.pdf · 2005-04-11 · Foram aplicados o Teste do Pata Negra e o Teste do Desenho de

VOLUME V Nº6 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2003

35

M18 – Foi mais por ele, que ele ia estar solitário, eu gostava de ter

outro e depois eu e o meu marido começamos a ver que prontos...

Mas foi mais por ele.”

(P – psicólogo, Pa – pai, M – mãe)

A irmã tem 22 meses, os pais dizem ser uma criança sem problemas

de maior, também bem comportada, mas não tão bem comportada

como o irmão (faz mais birras – diz a mãe). A relação dele com a

irmã, dizem os pais ser boa, acham que eles se dão muito bem e

que ele é uma criança muito compreensiva em relação a ela. O

Nuno diz igualmente dar-se bem com a irmã, gostar de brincar

com ela, tendo pena unicamente que ela não seja maior para

poderem jogar futebol juntos.

(3) Nunca foi internado nem precisou de cuidados médicos

prolongados. Em relação à história dos sintomas - motivo de

consulta -, o Nuno começou a regular, quer em termos de fezes

quer em termos de urina, por volta dos dois anos. “Ia ao pote

como uma pessoa normal” – diz a mãe. Depois, a partir “mais ou

menos” dos 3 anos e meio, começaram a aparecer os

comportamentos de enurese diurna e nocturna e um pouco mais

tarde (mais ou menos um ano) encoprese diurna. A mãe

relativamente a estes comportamentos dizia: “Primeiro comecei

a ter paciência, a falar com ele, e assim. Pronto só que como ele

atrasava tanto, eu comecei a fazer-lhe ver que ele não poderia andar

sujo na rua assim constantemente. (...) E eu e o pai dizíamos: ó filho,

tu vês as outras pessoas, vês as outras crianças, elas não se sujam

assim na rua, pronto tu não vais andar...”

A mãe tem medo que o problema perturbe as suas relações com

os amigos, mas pensa que tal facto ainda não deva ter acontecido

já que acredita que ele consegue sempre esconder.

Em relação à alimentação, “isso é que nos preocupa um bocado” -

diz o pai - porque o Nuno é uma criança que come pouco. Em

termos de padrões de sono, os pais referem que ele sempre dormiu

bem, claro que por vezes acordava a meio da noite molhado - e

quando isso acontecia ele ia dormir para a cama dos pais (possível

beneficio secundário do sintoma). Também referem, em relação

ao dormir, que ele há já muito tempo que dorme na sua cama,

mas que ainda adormece muitas vezes na cama dos pais - para

depois o porem a fazer “chichi” o mais tarde possível, diz o pai

(possível beneficio secundário).

Acham também estranho, no seu comportamento, a sensibilidade

do Nuno, que em certas situações é considerada demasiada, (por

exemplo, a tia - “que tem um modo um pouco agressivo de lidar” -

dá-lhe um beijo, agarra-se a ele de uma forma mais bruta e ele

começa logo a chorar). Não encontram igualmente razões para

explicar este facto.

4. Psicodiagnóstico

Se pretendermos dividir o percurso avaliativo do terapêutico,

deparamo-nos com uma dificuldade mais de ordem teórica do

que prática1. Partimos com uma estruturação de uma avaliação,

mas com o primeiro impacto (de dificuldades de comunicação)

adiamos e reformulamos o objectivo. Assim, levantamos a hipótese

de que percurso avaliativo do caso tivesse ocorrido até à nona

sessão - quando foi realizada uma entrevista de devolução, dando

deste modo, uma resposta à procura de ajuda. Fomos construindo

algo com o Nuno – uma compreensão de si – ao seu ritmo, e isso

constituiu uma avaliação para ambos.

Iniciaremos por falar-vos do lado da avaliação mais formal realizada

ao Nuno. Como já foi dito, esta constou de dois testes – O Teste

do Desenho de uma Família e o Teste do Pata Negra. A recorrência

de meios auxiliares de diagnóstico, foi adoptada por nós, como

complemento auxiliar da entrevista. Assim, e como refere Cunha

(1993), o psicólogo deve utilizá-los como instrumentos para testar

hipóteses (que de outra forma não encontrou resposta). Desse

modo, e especificando para o caso do Nuno, os instrumentos

utilizados procuraram “clarificar” áreas da sua personalidade e da

sua realidade interpessoal que se encontravam nublosas. Passamos

a explicar:

Na quarta sessão, aplicamos o teste do desenho de uma família

e logo de seguida foi administrado o questionário de Zelaszoska

em complementaridade deste. Este teste, segundo Cunha (1993),

procura avaliar dinamicamente as relações familiares, atitudes e

sentimentos do sujeito para com a sua família e autopercepção na

constelação familiar. Na primeira consulta, com tão pouco à vontade

dos entrevistados, pouco conseguimos percepcionar sobre a sua

dinâmica relacional. Posteriormente, na entrevista com os pais,

algo mais foi retirado, embora o conseguido não tivesse sido

preenchido. Através dos fantoches, o Nuno mostrou-nos um pouco

como percepcionava a família e o seu papel nela, mas faltava uma

estruturação, uma confirmação de um conteúdo que antevíamos

a sua extrema importância. Procuramos, então, através de uma

técnica não maçadora do ponto de vista da sua execução, dar uma

1 A sobreposição entre avaliação e mudança terapêutica, ocorreu neste caso, de uma

forma não planeada, pois ao pretendermos perceber, compreender o nuno na sua

complexidade e na sua individualidade, algo nele mudou. Ou seja: acreditamos que,

provavelmente, à medida que fomos descobrindo a sua forma de estar no mundo,

ele progressivamente foi também descobrindo coisas, que o fizeram mudar de atitude

perante o mundo.

Page 6: Um fantoche com a voz da autonomia - Saúde Mentalsaude-mental.net/pdf/vol5_rev6_caso_clinico.pdf · 2005-04-11 · Foram aplicados o Teste do Pata Negra e o Teste do Desenho de

36

VOLUME V Nº6 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2003

estruturação ao que formulávamos em hipóteses e tentar alcançar

assim mais segurança no que teorizávamos.

A utilização do teste do pata negra – visto este ser um teste que

procura explorar os “conflitos profundos da alma infantil” (Boekholt,

2000) – prendeu-se com uma necessidade colocada, quando da

realização da análise compreensiva. Procurávamos teorizar sobre

a dinâmica interna, possíveis conflitos e incongruências no seu

estar. Conflitos com o exterior – familiar e possíveis conflitos

internos. Através da análise das dramatizações procurámos defini-

los e o PN surgiu como um meio de confirmação das hipóteses

levantadas.

Os principais resultados foram:

No Teste do Desenho de uma Família: o Nuno representou uma

família onde a racionalidade e a responsabilidade são valores muito

considerados e admirados. Uma família em que quem detém o

poder é o pai: a personagem que prefere, a pessoa que coordena,

que impõem ordem e racionalidade á mesa (um local onde se

introduz alguma coisa no corpo); onde quem é mais simpático é

o avô porque já não impõem ordem nem racionalidade, mas que

também já não tem poder; mas quem é mais feliz é o filho, que

ainda “tá a começar a vida”, ou seja, que ainda não começou, e que

por isso ainda não detém a responsabilidade (de comer sempre

tudo, por exemplo) dos adultos, e que o Nuno talvez considera

como desprazerosa e cansativa. Assim parece-nos que o Nuno

representa uma ambivalência entre duas posturas, que ele as coloca

como opostas: se por um lado ele procura identificar-se com um

pai responsável, racional, onde a ordem impera, por outro gostaria

de estar no lado mais despreocupado, mais livre, no lado dos filhos,

que se mantêm fora “desta forma de se ser” adulto, que o Nuno

vê como pesada, cansativa e trazendo desprazer. Por isso ele

escreve no questionário que gostaria de ser livre e ir percorrer

o mundo – e talvez soltar-se desta “prisão” em que os adultos

estão.

No Teste do Pata Negra, o Nuno mostra uma forte repressão da

agressividade. Esta censura, formada agora já internamente (visto

também advir de uma intolerância do meio), acarreta um forte

sentimento de culpabilidade e uma necessidade de auto-punição

(auto-agressividade). Esta punição dirige-se a variadas formas de

agressividade, nomeadamente, aquelas relacionadas com os desejos

de carácter erótico (com o voyeurismo relacionado com a cena

primitiva) que ele, por considerar agressivos para outros, reprime

e pune-se. O pai, neste teste, é representado como alguém de qual

o Nuno procura não ir contra e, desse modo, não magoar, visto

o pai, neste teste, ser considerado alguém que estava chateado

com filho (pata negra magoou o pai). Este medo transforma-se

numa incapacidade de mostrar agressividade para com pai, de

rivalizar com ele, e deste modo poder realizar uma gestão mais

sincera dos seus desejos mais perversos. Outro dos seus temas

conflituosos, levantados na interpretação, foi aquele relacionado

com a ambivalência entre dependência/independência (maior

autonomia). A mãe porquita aparece como alguém que fomenta

uma dependência: ao querer que os seus filhos possam ficar a

mamar muitas horas, ou ao permitir, e ficar contente, com as

atitudes regressivas dos filhos, ou mesmo quando escárnia as suas

tentativas de autonomização. Por outro lado, a pata negra tenta

a autonomização, ao tentar deixar de mamar e passar a comer

erva. Porém, o escárnio da mãe, e a angústia de partir (baseando-

nos na placa partida), são imperativos mais fortes, levando a que

o herói não consiga suportar a solidão nem a separação de sair

e comer erva sozinho – angústia de separação. Demonstra assim

uma insegurança, uma falta de apoio – pelo apoio da mãe que se

dá unicamente se este se mantiver no estado de dependência e

pelo apoio do pai, que se mostra muito rígido e intolerante no

que respeita à liberdade de escolhas -, que lhe faz ter medo de se

aventurar pelos caminhos do desconhecido e assim crescer, e

desenvolver-se de uma forma salutar.

Procuramos agora, após o exposto, descrever o Nuno de forma

mais sistemática.

Como definir aquele retraimento, aquele modo de estar, onde a

timidez tomava parte de algumas relações sociais... Com o psicólogo

foi-se mostrando progressivamente mais liberto, mas na “voz” dos

fantoches, ou seja, através do brincar. Provavelmente perante tudo

o que representaria a conversa de adultos, ele adoptava uma

postura submissa, actuava de um modo obediente, sem nunca olhar

nos olhos, transmitindo fragilidade. A mãe e o pai descrevem-no

também como uma criança, antes de mais, “bem comportada”

(obediente?), mas triste e extremamente sensível. Mas também

nos apresentaram um outro Nuno, aquele que com os colegas é

sociável, brincalhão; esse Nuno que se assemelhava ao outro que

aos poucos foi aparecendo na consulta. Então descrevemos aqui

duas posturas, em dois contextos sociais diferentes; que

representarão talvez um condicionalismo de realidades - o que as

realidades lhe valorizam... Recorrendo a Marcelli (1998) podemos

afirmar que ele apresenta uma “inibição de certas condutas externas

e socializadas” 2, que neste caso nos parecem ser em grau moderado,

visto ele, em contacto com outras crianças bem como em contacto

com o psicólogo, conservar a capacidade de brincar e de retirar

2 Característica de “crianças sempre calmas, facilmente submissas, agindo de modo que

nunca se fale delas, qualificadas habitualmente de muito obedientes.” (Marcelli, 1998).

Page 7: Um fantoche com a voz da autonomia - Saúde Mentalsaude-mental.net/pdf/vol5_rev6_caso_clinico.pdf · 2005-04-11 · Foram aplicados o Teste do Pata Negra e o Teste do Desenho de

37

VOLUME V Nº6 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2003

prazer com isso. Então o retraimento parece que se mantinha com

“o mundo dos adultos” e em especial com a família.

Depois existem os comportamentos motivadores da consulta: a

enurese e a encoprese. Comportamentos perante os quais o Nuno

dramatiza uma grande angústia.

A enurese no Nuno - “emissão activa completa e não controlada de

urina, uma vez passada a idade de maturidade fisiológica, habitualmente

adquirida entre os 3 e os 4 anos.” (Marcelli, 1998) -, levanta-nos um

problema: defini-la em termos de secundária ou primária3. Se por

um lado a mãe nos refere como sendo secundária (começando o

controlo dos esfincteres por volta dos dois anos), por outro, o

período em que ela diz ter havido esse controlo foi muito curto,

com a duração aproximada de um ano e meio. O Nuno apresentava

um comportamento enurético de noite e de dia – enurese diurna

e nocturna (ou mista). Em relação à frequência, ela apresenta-se

irregular (não todos os dias), de uma forma mais recorrente no

caso da nocturna entre três a quatro dias por semana e mais

intermitente (uma vez por semana) no caso da diurna.

Depois existe também a encoprese: “defecação nas calças de uma

criança que ultrapassou a idade habitual de aquisição de asseio corporal

(entre 2 e 3 anos)” (Marcelli, 1998). Também aqui a determinação

de uma encoprese primária ou secundária no Nuno é motivo de

discussão, embora em menor grau que a enurese. Aqui o controle

dá-se mais cedo, e também a idade aproximada apontada pela mãe

como o início do comportamento encoprético foi mais tardia que

na enurese, por isso acreditamos que mais do que no caso desta

última, poderemos afirmar que o Nuno apresenta uma encoprese

secundária. Segundo a mãe este comportamento dava-se porque

o Nuno “retinha demasiado” e depois “quando não aguentava mais

é que era “obrigado” a fazer nas calças”. Tal como João dos Santos

(in Branco, 2000) diz, “a encoprose aparece-nos, ao contrário dos

autores que anteriormente estudaram o assunto, não uma falta de

controlo, mas um super-controlo com descargas inconscientes e, portanto,

incontroláveis.” (p.325). Desta forma, e recorrendo ao comportamento

descrito pela mãe, o facto do Nuno ver televisão incessantemente

(tal como o porquinho, no teste do pata negra via incessantemente

os pais a darem um beijo), querendo adiar os dejectos que continha,

parece-nos representar uma vontade dirigida para se controlar,

para não deitar cá para fora o que considera “nojento”, e motivo

provavelmente de avaliação negativa por parte dos outros. Ao

definir a encoprese e a enurese, e tomando como base a avaliação

médica da pediatra, assocializemos como sendo de origem

psicológica. Base que segundo Santos (in Branco, 2000) se verifica

na maioria dos casos. Marcelli (1998) ao definir estes distúrbios

esfincterianos em termos psicológicos, divide o estudo em termos

de factores de personalidade da criança e factores do ambiente

da criança – divisões que analisaremos separadamente. Santos (in

Branco, 2000) define estes comportamentos como sintomas

reactivos (embora diferenciando a encoprese e a enurese diurna

da enurese nocturna, pela primeira lhe parecer mais “limitado aos

processos intrapsíquicos que a criança desenvolve por si própria”

(p.179)), já que segundo este autor, serão consequência do

impedimento do exercício da fantasia, do silenciamento da

imaginação (Santos in Branco, 2000).

Mas o Nuno apresenta também um medo poderoso, uma angústia

em relação ao controlo e à necessidade deste. Esta preocupação,

parte de situações concretas como a escola – que é representada

como um trabalho – onde mostra necessidade de ter sempre tudo

sobre controlo (como se percebe, por exemplo, na sessão seis),

nomeadamente em termos dos esfíncteres (sessão dois); mas

também generalizando-se para um medo do futuro (sessão 6).

Apresenta assim medo não só do presente como também do

futuro, e esse permanente medo (de perder o controlo) talvez

seja o que lhe provoca a insegurança no seu modo de enfrentar

a realidade e que provavelmente o transforma num ser tímido,

inibido e obediente – e que o faz assim reprimir os seus

comportamentos agressivos (teste do pata negra) e ter medo de

se aventurar pelos caminhos da independência.

5. Intervenção psicoterapêutica

Klein (in Arfouilloux, 1980) afirma que a criança expressa as suas

fantasias, desejos e experiências reais de um modo simbólico

através de brincadeiras e jogos. Assim, a capacidade de brincar e

a imaginação são ferramentas que sabíamos serem essenciais e

específicas no trabalho com crianças. Também o particular desta

abordagem é a existência do factor-família como bastante

interveniente e influenciador nas problemáticas das crianças -

questão que o psicólogo terá que ter, obviamente, presente (Toro,

1998).

Sentimos, pela forma como comunicou com o psicólogo, e pelo

discurso da mãe, que ao Nuno não estava a ser “dada voz”: de

alguma maneira os seus sentimentos e a sua percepção do caso

não estavam a ser ouvidos (pela 1ª consulta teria ficado claro que

não seria pela “conversa de adultos” que o Nuno seria ouvido,

pelo menos no respeitante aos seus sentimentos). Assim, a primeira

abordagem ao caso, foi no sentido de contrariar o percepcionado:

3 “A enurese secundária caracteriza-se pela existência de um período anterior de asseio

transitório. A enurese primária sucede directamente ao período de não-controle fisiológico.”

(Marcelli, 1998).

Page 8: Um fantoche com a voz da autonomia - Saúde Mentalsaude-mental.net/pdf/vol5_rev6_caso_clinico.pdf · 2005-04-11 · Foram aplicados o Teste do Pata Negra e o Teste do Desenho de

38

VOLUME V Nº6 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2003

baseando-nos nos princípios da Play Therapy 4 não directiva (Axline,

1993), tentamos criar um conjunto de condições que favorecessem

e não mais impedissem o seu crescimento; um ambiente onde não

sentisse pressões, tentativas de encaminhamento, direcções. Uma

realidade onde ele pudesse, como agente activo, direccionar “a sua

forma de estar” (e assim encontrar uma forma de se expressar,

por um lado, e por outro, comunicar de uma forma mais sincera

e menos estereotipada connosco e consigo).

Com bonecos e fantoches dramatizamos situações, criadas pelo

Nuno, umas vezes apenas ele, fazendo simultaneamente todas as

personagens, outras vezes, pedindo a colaboração do psicólogo

para contracenar consigo. Falavam assim: com a máscara de um

boneco, que deste modo passava a constituir tudo o que se quisesse

– tudo de dentro. Esta foi a estrutura assumida: iniciar um processo

terapêutico sem que nada tivesse pré-destinado, onde fosse a

criança a escolher o caminho a seguir e onde, através da criação

de um método de intervenção psicoterapêutica, lhe fosse fornecido

um ambiente que favorecesse a sua “self-expression” (Axline,

1993), que favorecesse a expressão dos seus sentimentos e lhe

aumentasse o “insight”.

Nestas pequenas encenações, o Nuno através de um fantoche que

escolhia, e sempre cabisbaixo (sem nunca olhar nos olhos), falava

de uma forma fluída, de uma forma muito mais espontânea,

mostrando uma “riqueza interior”, no que respeita à fantasia, à

imaginação e ao sonho, que nos surpreendeu, a nós, equipa técnica,

e aos pais (quando confrontados com o facto) que o julgavam mais

“honesto” na comunicação que dia a dia ia fazendo com eles5.

Passamos a explicar, fazendo um resumo das sessões nas quais se

dramatizou:

As sessões nas quais se dramatizou (2ª, 4ª, 5ª, 6ª, 7ª, 8ª e 10ª), foram

intercaladas por outras nas quais se aplicou os meios auxiliares de

diagnóstico e entrevistas realizadas aos pais. Neste capítulo cingir-

-nos-emos às conversas, que como já dissemos, se realizavam

através de personagens atribuídas aos bonecos. Procuramos retirar

o essencial destas.

Na quarta sessão, posteriormente ao Teste do Desenho de uma

Família, conversamos pondo a nossa voz nos bonecos. Os bonecos,

à semelhança da dramatização anterior (2ª consulta exposta

anteriormente), também representaram uma família, constituída

pelo pai, a mãe, o filho, a filha e o tio. Nesta representação fala-

se do emprego dos diversos membros da família, da eventualidade

da filha poder vir a ajudar o pai no seu novo emprego de desenhador

e no problema, que poderia surgir, de esta ter que fazer os desenhos

que o chefe manda, quando prefere fazer aqueles em que ela tenha

imaginação. O Nuno arranja então a solução para esta filha: fazer

um desenho com imaginação e depois dirigir-se para o chefe e

mostrar-lho; se ele gostar muito bem, se não gostar ela faz as

mudanças necessárias. De seguida, a filha fala com o tio acerca da

sua escola (fazendo neste caso particular o Nuno de filha e o

psicólogo de tio). Fala-lhe de um desenho que fez na escola, um

desenho um pouco mal feito (pois pôs o cabelo no meio quando

o S. António não o tinha), ficando preocupada e nervosa com o

facto, mesmo depois de a professora lhe ter dito que isso não

tinha importância.

Na quinta sessão, na dramatização entram: uma mãe (de 30

anos), um pai (de 50 anos), uma filha (de 3 anos) e um filho (de 8

anos) (a mesma idade do Nuno). Nesta sessão discute-se mais

uma vez o emprego do pai. Nesta família (de fantoches) o pai ia

mudar para um emprego geograficamente mais perto, porque

como ia sempre levar o filho ao infantário e chegava sempre tarde

ao trabalho, então, ao mudar-se para este novo local poderia, deste

modo, evitar os atrasos (reafirmando a ideia de que como o pai

é prejudicado pelo facto dos filhos se atrasarem). Na cena seguinte,

o pai afirma não ser o único prejudicado pelos atrasos, culpando

de igual modo o próprio filho, este por chegar tarde à escola, este

por fazer um teste sempre a correr, este por andar sempre a

correr. O pai afirma que o filho já é um bom aluno mas se não

andasse sempre a correr poderia estar mais atento. A conversa

agora estabelece-se entre a menina e o pai, na qual a menina conta

uma história fabulosa de umas cobras que existiam no seu recreio,

mas que não pareciam, pois elas assumem a morfologia de tudo

que comem.

Vale a pena analisarmos a forma como o Nuno constitui a família

nestas duas primeiras sessões. O trabalho, a obrigação, é um tema

4 Axline (1993), apresenta oito princípios básicos para que a método se constitua:

o terapeuta deverá desenvolver um clima amigável, caloroso com a criança para que

se estabeleça o mais rápido possível a relação; o terapeuta deverá aceitar a criança

tal como ela é; o terapeuta deverá estabelecer um clima de permissividade na relação

de modo que a criança possa expressar os seus sentimentos completamente. O

terapeuta deverá reconhecer os sentimentos na criança e reflecti-los outra vez à

criança de forma a que aumente o insight nesta; o terapeuta deverá manter um

profundo respeito pela forma como a criança tem de solucionar os seus problemas

e dar-lhe a oportunidade para o fazer; o terapeuta não deverá direccionar as acções

ou o discurso da criança; o terapeuta não deverá apressar a terapia; o terapeuta

deverá unicamente estabelecer as limitações que serão sadias para a manutenção do

processo terapêutico.

5 Pois, para os pais, o Nuno era uma criança que se “portava bem”, que raras vezes

manifestava conteúdos que eles de alguma forma não desejavam (exceptuando o

controle de esfíncteres, a relação que mantinha com a comida e a sua elevada

sensibilidade).

Page 9: Um fantoche com a voz da autonomia - Saúde Mentalsaude-mental.net/pdf/vol5_rev6_caso_clinico.pdf · 2005-04-11 · Foram aplicados o Teste do Pata Negra e o Teste do Desenho de

39

VOLUME V Nº6 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2003

de conversa central. O Nuno coloca nestas personagens uma

grande preocupação da perfeição, uma grande ansiedade6 (como

no desenho da escola da filha). É interessante analisar ainda a

representação que o Nuno faz do trabalho, é interessante ver

como representa os filhos enquanto um entrave, um impedimento

ao bom funcionamento do mesmo e como isso se repercute

provavelmente em culpabilidade, com a filha do casal representado

a querer ajudar o pai e a ser prejudicada (mais uma vez no seu

contexto profissional) por ter perturbado a ordem familiar

(acordando tarde). Depois vemos o dilema que o Nuno colocou

na filha: será que deverá fazer o que lhe mandam ou por outro

lado fazer o que lhe dá mais prazer e que lhe exige imaginação?

Ao ter de ir trabalhar com os adultos (pai) passaria a estar sob

o comando de alguém e, dessa forma, deixaria de privilegiar o

prazer. Poderá o problema ser posto: como resolver a necessidade

de obter prazer, quando a necessidade de agradar aos outros

(fazendo o que lhe mandam) é, talvez, um imperativo mais forte?

Na sexta sessão, entram o pai, a mãe, o filho, a filha e o tio

fantoches. A mãe (representado pelo Nuno) fala com o pai

(psicólogo) acerca do trabalho da filha, na escola: “a filha agora disse

que em vez de fazer desenhos, agora a professora vai-lhe ensinar a

fazer retratos de pessoas”. A mando da professora começa a fazê-

lo, pois esta tinha encontrado ninguém que o conseguisse fazer.

A filha estava um bocado nervosa, mas depois descobriu que não

tinha muita dificuldade em fazê-lo. De seguida a mãe fala do seu

emprego, descrito no extracto da sessão:

(O pai, representado pelo psicólogo, fala com a mãe, representado

pelo Nuno, acerca do seu novo emprego. Emprego no qual ela tem

que desenhar.)

Mãe – A professora disse, faz um com jeitinho, não poderia haver

nenhum engano, porque não temos borracha que apague bem.

Pai – Tiveste que ter controlo.

Mãe – Sim.

Pai – Mas é complicado viver assim sem se poder enganar?!

Mãe – Vá – lá. Só me enganei uma vez e consegui apagar, ela também

disse, Que tinha que apagar com força porque senão é que não

apagava mesmo.

Pai – Tu conseguiste?!

Mãe – Sim. A menina é que não conseguiu e eu ajudei-lhe. Porque

senão o chefe ficava zangado e ela ainda bem que não me viu a

apagar. Porque senão ficava zangado.

Pai – Porque é que a menina não conseguiu?

Mãe – Ela não tinha muita força. Mas eu ajudei-a, o chefe não viu

e ela... (gaguejando)

Pai – A menina devia ter ficado nervosa?!

Mãe – Sim, não conseguir, as outras bem que ajudavam mas ela não

queria ajuda. Então elas disseram que era melhor pedir ajuda porque

senão o chefe ficaria muito zangado com ela. Então ela pediu-me

a mim e eu ajudei.

Pai – Ajudaste...

Mãe – Pois.

Pai – Conseguiste fazer o teu desenho e por isso também conseguiste

ajudar a fazer o dos outros.

Mãe – Até porque se eu não conseguisse fazer, não conseguisse

apagar, para ela, mais ninguém, ela não queria mais ninguém que não

fosse eu. Mas ela disse: o chefe está ali tem cuidado e ela veio

devagarinho apagou e foi outra vez, porque o chefe não quer que

venham ao dos outros porque podem copiar. Foi assim.

Pai – Tem sido complicado para ela.

Mãe – Sim para ela. Mas para ela é sempre... ela sabe enfrentar as

coisas, o... se o chefe se zangar com ela, ela diz que tem culpa mas

também nunca pode fazer tudo, tudo bem, não é muito experiente

nisso. Por isso...

Pai – Ela consegue superar as coisas... não pode fazer tudo, tudo

bem...

Mãe – Há coisas que também nos enganamos e que também não

podemos fazer tudo bem.

Pai – E as pessoas ás vezes exigem tudo das pessoas.

Mãe – Pois.

O Nuno fala-nos desta vez de duas personagens, que retratam

duas posturas em relação, mais uma vez, ao trabalho. Uma, que

tem tudo sob controlo, outra mais insegura, num estado ansioso

por não estar a conseguir fazer o que lhe foi mandado. Situam-se

assim em duas situações possíveis: o conseguir e o não conseguir

fazer o exigido. O que as une, parece-nos ser o sentimento de

ansiedade e de medo, que de certa forma é igual, por ser dirigido

a um chefe, aquele que as mantém em estado permanente de

tensão e que não as deixa viver de uma forma mais tranquila. A

conversa começa pela mãe a transmitir-nos um estado de ansiedade

resultante de uma situação do seu trabalho. E o facto de o pai

(representado pelo psicólogo), não a ter deixado falar mais (explorar

o sentimento) e ter concluído a ideia com: “deve ser complicado

viver sem se poder enganar”, talvez possa ter provocado uma

forma defensiva de reagir no Nuno, reacção a uma realidade que

provavelmente mostrava-se demasiado angustiante, mesmo tendo

sido colocada na “voz” de um boneco – e não na sua. Deste modo,6 “Emoção gerada pela antecipação de um perigo vago (neste caso, a imperfeição) de

difícil previsão e controlo” (Doron & Parot, 2001, p.67).

Page 10: Um fantoche com a voz da autonomia - Saúde Mentalsaude-mental.net/pdf/vol5_rev6_caso_clinico.pdf · 2005-04-11 · Foram aplicados o Teste do Pata Negra e o Teste do Desenho de

40

VOLUME V Nº6 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2003

para mascarar ainda mais a angustia, o Nuno teve talvez necessidade

de inventar outra personagem – a amiga da mãe - dando assim

uma identidade a toda a angustia vivida no comprimento do exigido.

Mais tarde, nesta sessão, a filha (representado pelo psicólogo) e

o bébé (Nuno) têm uma conversa:

Filha (psicólogo) fala com o bebé (Nuno)

Filha – Olá. Tu ontem andaste a fazer uma coisa e depois disseste

que era eu.

Bébé – O que é que eu fiz eu não fiz nada.

Filha – Andaste, partiste uma coisa e depois disseste que era eu.

Bébé – Hã, mas não fui eu que parti, fui eu que andava a jogar á

bola e só dei um chutinho.

Filha – Mas porque é que disseste que era eu?

Bébé – Hã porque como sei que tu ás vezes ao brincar partes as

coisas eu disse que és tu.

Filha – Então querias que a mãe me ralhasse a mim?

Bébé – Sim, ficava mais contente.

Filha – Mas eu ficava triste.

Bébé – Pois aí é que é o problema.

Filha – É um problema?!

Bébé – É, mas como sou bebezinha (com uma voz muito infantil

que quase não se percebia), já não sei qual é o problema.

Filha – Não entendes.

Bébé – Tu deves entender melhor que eu; já andas na escola. Em

que ano andas?

Filha – Eu ando no terceiro ano.

Bébé – Bem me parecia, já tens nove anos, a mim já não me enganas.

Filha – Mas como é que queres que eu te perceba se tu não falas,

eu não posso entender tudo.

Bébé – Pois não. Também não percebes as coisas que eu digo em

chinês pois não?

Filha – Não. Fazes isso e depois eu fico zangado.

Bébé – Eu não sei como vocês descobriram se eu estava bem

escondido.

A confrontação de sentimentos opostos – tristeza/ alegria –

colocados em questão, e formulados enquanto problema: como

conseguir estar contente – e viver com isso - sem que outros

fiquem tristes. Através de uma satisfação sua, mas acarretando uma

insatisfação de outrem, o Nuno, talvez se tenha encontrado num

emaranhado existencial do qual não encontrava solução: como

conviver com a sua liberdade (a obtenção do seu prazer), quando

essa mesma afecta o “estar” dos outros? Outros que lhe são

significativos enquanto objectos de amor e dependência – a sua

família (pois as conversas se passam entre os seus membros).

Com a devolução do problema, por parte do psicólogo ao Nuno,

este mais uma vez retraiu-se e assumiu uma postura regressiva,

infantil, sem capacidade para sequer formular o problema, e por

isso sem a obrigação de o pensar. Pergunta ao contracenante que

já é mais velho, e procura-se esconder – depois de se ter mostrado

um pouco – na sua linguagem da china. Assustado com o exposto,

ele termina: “eu não sei como vocês descobriram se eu estava

bem escondido”.

A dramatização da sessão sete começa com o nascimento o

bebé fantoche. O pai (representado pelo Nuno) fala ao tio acerca

das suas expectativas em relação ao recém-nascido, dizendo que

ele é bonito, que era um bocadinho brincalhão agora, mas que

depois vai ser um menino muito bem comportado. O pai espera

que não haja problemas no seu crescimento: como ficar doente,

a mulher não estar a trabalhar e desse modo não terem dinheiro

e não conseguirem viver. Fala de seguida na importância da escola

na aprendizagem:

O tio representado pelo psicólogo e o pai pelo Nuno

Tio – A questão da escola é importante e se ele por acaso não

souber...

Pai – Sim. Mas...pois se ele depois começar mal pode acabar mal

e nunca mais pode levar e se ele por exemplo nunca mais sair

daquela turma nunca mais vai para a faculdade. E a faculdade já se

sabe que é muito mais pior.

Tio – É mais difícil?

Pai – Mhum, mhum.

Tio – Para ti é muito importante a escola dos teus filhos não é?

Pai – Mhum, mhum. Para eles saberem as regras, para se comportarem

bem. Porque senão eles não sabem as coisas da escola, não sabiam

nada, não sabiam falar, não sabiam ler, é que eles falam..., quando

são bébés falam de um maneira, que não se percebe. E então ele

pode ficar com esse hábito de falar dessas coisas, e pode ficar assim.

Portanto tem que ir para a escola para aprender, mas também pode

ouvir-nos e aprender, mas não sabe tão bem, se a professora lhe

ensinasse, sabe melhor.

(A partir deste momento pousa o boneco na mesa e começa a

falar sem mexer com o boneco, mas sempre sem olhar nos olhos

do psicólogo)

Tio – Tem que aprender as regras, não só de falar mas de tudo, que

é para começar a falar como os grandes.

Pai – E para escrever porque senão, como é que ele vai saber

escrever.

Tio – Então é por isso que ele tem de ir para a escola. Mas ele tem

ar de maroto.

Pai – Tem. Isso não se nota tanto mas... pode até ser. Veremos.

Page 11: Um fantoche com a voz da autonomia - Saúde Mentalsaude-mental.net/pdf/vol5_rev6_caso_clinico.pdf · 2005-04-11 · Foram aplicados o Teste do Pata Negra e o Teste do Desenho de

41

VOLUME V Nº6 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2003

Depois é que se vê.

Tio – Quando ele for grande?

Pai – Quando ele tiver a idade da irmã que tem 8.

Tio – Ai já se consegue ver.

Pai – 8 não 9. Só que ele, depois, vai começar a brincar com as

coisas e a irmã, há. E vai brincar com ela, mesmo que sejam bonecas

ele vai brincar, em bébé, só que depois já não vai achar tanta piada.

Mas de certeza vai gostar de um, que é de fazer..., que é um de fazer

gelados. Vai gostar imenso. É um coiso que nós demos que é de

fazer gelados, é novo. E ele deve gostar.

O Nuno apresenta-nos um medo, uma insegurança, em relação ao

futuro, posta na voz de um pai, que tem como preocupação base,

a educação formal – mais uma vez o trabalho. Este medo dá-se

com um enquadramento de uns postulados que nos parecem ser

bastante rígidos, apresentados em forma de expectativas de

desenvolvimento. Vocacionando o bebé, para um rumo estável e

delineado, sem que exista “uma borracha que apague bem” (sessão

seis).

A certa altura da sessão, o Nuno apresenta uma postura que

aparentava estar com sono, diz então que o pai está com sono

porque trabalha muitas horas.

No final da consulta, numa conversa entre a filha (representado

pelo Nuno) e a mãe (representado pelo psicólogo), conversa da

qual, a certa altura, entra mais outra personagem, que é o bébé

(representado pelo Nuno com a outra mão):

“Mãe – Sabes que o pai tava a falar acerca do irmão que estava com

um bocado de medo que lhe acontecesse qualquer coisa, que não

podia estudar e tudo isso...

Filha – Ah..., ele já me tinha dito isso, ele já me tinha dito. Eu acho

bem. Só te digo este tempo de noite parece que tá cá um calor,

vou meter um coiso para me tapar os olhetes (enquanto tapava a

cara do boneco com o chapéu)

Mãe – Porque assim já não vês o que se passa à tua volta.

Filha – Mas vê-se bem, oh. Só que este chapéu é muito grande, é

quase da minha altura. E também aprendi a dançar. É muito fácil, é

assim, eu chamo o meu irmão e ele faz, queres ver (pega no bébé

com a outra mão), um dois três (começam a dar passos de dança),

um dois três, tã tã tã. (começam a dançar de uma forma mais

agressiva) Pi pi lá lá lá...

Mãe – Estás muito contente?!

Filha – Sim estou, olha para isto, ele quando fez assim pushhh, (dá

uma pirueta com o bébé e o rabo deste para da cara da filha) é que

ele cheira mal, que cheira muito mal. Precisa de ir à casa de banho.

Bebé – Ai não preciso nada, já fui à casa de banho 5 vezes não

preciso de ir outra vez ouviste oh... pufff (põe outra vez o rabo do

bébé na cara da filha), cheirete mal que taveee...

Filha – Ouviste bem não fales outra vez isso, ouviste?

Bébé – O quê? Mas primeiro vais cheirar ah truuuuu (põe outra

vez o rabo do bebe na cara da filha)

Filha – Ai que cheiro nojo anda cá (corre atrás do bebé). Apanhei-

te. Agora vais á casa de banho fazer. Então anda lá... puuuuu

Mãe – Está a obrigar o bebe a ir à casa de banho?!

Filha – Prontos, já estás, faz!

Bébé – Oh que fixe estou a fazeer...só se for a brincar em vez de

meter na sanita meteu a tomar banho, olha que engraçado...

Filha – O quê?

Bébé – Tou na banheira...

Filha – Anda cá (o bebe foge, a filha anda atrás dele)

Bébé - Vai dormir um bocadinho que tu precisas. (a filha sai de cena)

oh mãe, ela obrigou-me a fazer... mas eu já fui cinco vezes, não

preciso de ir outra vez.

Mãe – Pronto, se tu achas que não precisas!?

Bébé – Mas tens que ir dizer que não porque senão ela vem atrás

de mim.

Mãe – Achas que precisas que eu lhe diga isso?

Bébé – Sim

Mãe – E porque é que não dizes tu?

Bébé – Ah, porque ela vem atrás de mim como é que queres que

eu diga?

Mãe – Ela anda sempre atrás de ti, não é?

Bébé – Pois... agora apanhou uma taulada... ficou quente.

Mãe – E tu estás a precisar de ajuda?!

Bébé – Sim.”

Adoptando uma postura muito infantil, o Nuno dramatiza alguém

completamente encurralado numa realidade, onde, entre quatro

paredes não pára de fugir; fugir em círculo; encontrar-se sempre

no mesmo sítio – ciclo vicioso. Mostra-se um verdadeiro drama,

completamente angustiante para quem o observa, pois o bebé,

que por o ser não consegue fugir; e alguém mais velho, mais forte,

que não desiste de correr atrás e não consegue ver o cansaço

(psíquico?) de quem procura a fuga para além das paredes, olhar

para o seu comportamento (físico?), e assim parar com a perseguição.

Aquele ciclo é representado unicamente pelo Nuno, querendo se

calhar dar a ideia de algo interno. O psicólogo, representando uma

personagem exterior, é introduzido como possível mediador do

conflito, e como ajudador de alguém que assim precisa. Implica o

terapeuta se calhar pela primeira vez na sua problemática, e formula

um pedido de ajuda.

Na oitava consulta, ultima neste processo de dramatizações, o

Nuno reafirma este pedido de ajuda e manifesta uma sensação de

Page 12: Um fantoche com a voz da autonomia - Saúde Mentalsaude-mental.net/pdf/vol5_rev6_caso_clinico.pdf · 2005-04-11 · Foram aplicados o Teste do Pata Negra e o Teste do Desenho de

42

VOLUME V Nº6 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2003

preensível, “esquisita” que o pai pinta, representando um mundo

que quer mostrar ao filho. O filho, não pode, e agora responde-

lhe para esperar um bocado pois as cores que ele agora manipula

com o papagaio não se enquadram provavelmente com o quadro

que o pai pintou – não consegue conjugar estes dois mundos, e

um terá que passar para o sonho. E a borboleta voa e o pai toca

a campainha fazendo barulho. Só o céu, a sua borboleta e a serpente

se encontram coloridas – o mundo mais terreno encontra-se

monocromático, as pessoas, a casa e a árvore vazias de cor. A

manipulação da cor, tal como a manipulação do papagaio conjugam-

se num mundo para lá das montanhas, onde o menino por manipulá-

las manda esperar o pai. Mas existem medos. A borboleta ao voar

pode magoar alguém, o sol, que já está com a boca vermelha da

borboleta o ter atingido com os cornos. Também o voar demais

pode levar a que ela se perca, e se sinta sozinha, e o desespero

da solidão aparece. A liberdade trás destes paradoxos: provavelmente

mostra-lhe um mundo mais colorido mas pede-lhe mais precisão

na manipulação do papagaio. A responsabilidade talvez seja

monocromática, com nuvens mais negras e pode eventualmente

trazer trovoada. E para lá das montanhas, onde reina o desconhecido?

O mundo pintado no quadro do pai pode sempre se revelar e não

existe nenhum papagaio de papel que resista. Mas o tempo urge.

A arvore com vida está a ser corroída pela serpente que lhe come

os frutos - as sementes: o começo de novas arvores. A serpente,

que se destaca pela cor, vai ficando maior, comendo todo o interior

da árvore - todo o seu mundo interno. Deixando-lhe unicamente

a capa, aquela que normalmente se utiliza para desenhar uma

arvore: um invólucro ondulado que esconde todo um mundo de

frutos e folhas.

6. Reflexões finais: evolução e análisecompreensiva

Brincamos. Com o desenho, com os bonecos, o Nuno experimentou.

Confrontou nas suas personagens e por vezes simultaneamente,

sentimentos opostos, formas de estar e de actuar diferentes: a

tristeza e a alegria (sexta sessão); a insegurança versus segurança;

a angústia da falta de controlo confrontada com o excesso de

controlo; a autonomia e a dependência; a imaginação com a inibição.

A brincar colocou a sua existência; aquilo que talvez tenha de mais

sério, que especificamente lhe pertence e no entanto foi tudo a

brincar, não passou de um “faz de conta”. Apresentando o que nos

pareceu constituir evolução, mudança, realçamos primeiro o seu

lado mais subjectivo, menos visível: como já foi dito, pareceu-nos

estar a existir progressivamente uma libertação, no que nos expunha

e na relação que tinha com o psicólogo; a espontaneidade foi-se

tornando mais visível, a alegria também. Pareceu-nos que o Nuno,

desconforto. No princípio desta sessão, a mãe disse-nos que iriam

de férias, de lá a duas semanas e por isso sabíamos que o caso

teria de terminar. Marcou-se então, apenas mais duas consultas

com o Nuno e uma com a mãe, na tentativa de lhe dar a devolução

do caso e de lhe sugerir um encaminhamento. Acabamos a consulta

deste modo: a filha (representado pelo Nuno) a queixar-se da

perna que lhe doía, porque tinha caído no quarto e agora não se

conseguia levantar, chama o irmão e pede-lhe ajuda. O irmão

(representado pelo psicólogo) pergunta-lhe se lhe doía muito, ela

responde que sim, que agora não se conseguia levantar. Então o

irmão diz-lhe que a iria ajudar, que iria falar com a mãe e explicar-

lhe o seu problema. Acabou a sessão; com a inevitabilidade de uma

finalização precoce marcamos uma consulta com a mãe e mais

uma, em Agosto, com o Nuno.

Quis fazer um desenho na décima primeira consulta. Nada

mais. Nada de despedidas melodramáticas, unicamente (sempre

sem olhar nos olhos) que foi fixe andar lá.

Faz um desenho. Este representa um rapaz a segurar um papagaio

(em forma de borboleta) no terraço de sua casa. O pai que acabou

de pintar um quadro está a chamar o filho para ir vê-lo. Chama-

-o tocando à campainha (trrim...). O filho manda-o esperar um

bocado pois não pode fazer as duas coisas ao mesmo tempo. O

quadro que o pai pintou, representa uma “coisa esquisita”, “uma

espécie de trovões e chuva a cair num caminho de terra”. Na casa

existe uma varanda onde estão colocadas três flores e uma cortina.

Do outro lado existe uma árvore com maçãs. Dentro dessa árvore

existe uma cobra que come as maçãs e progressivamente vai

ficando mais gorda. Existe também, no cimo da folha, um sol, nuvens

e montanhas. O sol está com medo que a borboleta (papagaio)

suba demais e que lhe atinja com os seus cornos. O rapaz também

está com medo que a borboleta se perca nas montanhas.

O pai chama-o para ver um mundo de trovões e chuva, algo incom-

Figura 2.

Page 13: Um fantoche com a voz da autonomia - Saúde Mentalsaude-mental.net/pdf/vol5_rev6_caso_clinico.pdf · 2005-04-11 · Foram aplicados o Teste do Pata Negra e o Teste do Desenho de

45

VOLUME V Nº6 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2003

no contexto da relação psicoterapêutica, tornou-se uma criança

mais alegre. Quando provavelmente percebeu que tudo o que

fazíamos era a brincar, ele deixou (de uma forma progressiva,

subtil) a obrigação de ter fazer o que agradaria os outros (exacta-

mente por ser brincar), e passou a fazer o que o seu organismo

lhe ia “pedindo” (experiencia organísmica7).

Mas a mudança não ocorreu unicamente dentro das paredes do

consultório, ela - e agora apresentando a visão dos pais, exposta

espontaneamente por estes nas entrevistas - verificou-se logo após

o segundo contacto que teve com o psicólogo:

Excerto da terceira consulta realizada com os pais:

“P – E em relação a fezes como é que é?

M – Em relação a isso o Nuno anda muito contente porque gosta

de vir cá. Diz que tem um amigo que é o sr. dr. e que o sr. dr. o

deixa brincar e que faz coisas. E disse: sabes mãe o meu organismo

só já faz á noite, e eu disse olha que bom tás a ver, valeu a pena,

valeu a pena então. O sr. dr. disse-te..., não ele ainda não me falou

nisso, mas tu disseste-me aquilo e gosto de ir lá e também quero

que ele... para a próxima vou-lhe dizer, que ele é meu amigo também

quero mostrar-lhe que sou amigo dele.

(...)

P – A escola não será uma preocupação a questão de fazer na

escola?

M – Pois eu para mim ele agora anda muito contente porque ele

anda despreocupado porque o organismo funciona á noite e ele

agora está consolado. É o que ele diz á noite estou em casa, não

é? Eu acho que ele, quer dizer o ter vindo aqui, o sr. dr. da maneira

como lidou com ele acho que ele se calhar entendeu o essencial.”

P –psicólogo, M – mãe

Quando falamos no assumir uma postura de não directividade, no

devolver à criança a responsabilidade de direccionar a sua vida,

ali, naquele contexto especifico, inspirando-nos em João dos Santos

(Branco, 2000) (a respeito de um caso que teve, que em relação

ao sintoma é semelhante): talvez alguma coisa se tinha descontraído

no Nuno, que aquela expressão de tensão que ele tinha, era como

se toda a família estivesse contraída com aquele problema, e como

se a criança estivesse completamente fechada, até para a expulsão

das suas matérias fecais. Assim após ter estado apenas uma sessão

com o Nuno, o sintoma encoprético quase desapareceu.

No final do processo, o Nuno já não possuía o comportamento

encoprético, dizendo a mãe que ele já não fazia nas calças, nem

mesmo à noite, há já algum tempo (mais ou menos quatro semanas).

Disse também que ele andava muito melhor desde de que

frequentava as consultas de psicologia. Perguntou-se o que entendia

por “andar melhor” e ela disse-nos que andava “mais bem disposto,

mais contente”.

Que repercussões terá para a família o facto do Nuno ir diminuindo

os conteúdos sintomáticos? Será que o “bode expiatório” teria

que continuar a existir e o resmungar passasse a ser mais outra

“doença”? O sintoma, motivo de consulta, de certa forma o que

“dava mais nas vistas” (encoprese) tinha desaparecido, mas os

outros? Aqueles que o mantinham escondido num estado anímico?

O Nuno parece-nos encontrar-se num estado de grande tensão,

proveniente de um conflito, que por sua vez provem de uma

ambivalência em relação a modos de se posicionar no mundo. O

que queremos dizer com isto, é que vários factores intervêm, de

um modo sentido para o Nuno, como pouco tolerante, quase

opondo-os, fazendo-o criar uma angústia que ao longo da sua

evolução se foi tornando mais interiorizada, mais contida, desta

forma originando e mantendo os sintomas. A este respeito citamos

mais uma vez João dos Santos (in Branco, 2000) a respeito do

comportamento encoprético quando diz: “É curioso, porque ao

mesmo tempo que isto se passa (encoprese), a criança é capaz de

guardar também outras coisas para si, portanto, é capaz de se conter

noutros aspectos. Por exemplo a criança começa a chorar menos, a

chorar no sentido de gritar, de fazer grandes birras e, a pouco e pouco,

vai deixando de chorar assim, e depois, já aos seis anos, quase que já

não chora, só quando há realmente motivos sérios para se chorar.”

(p.189)

Mas descreveremos primeiro os factores que a nós, e apoiando-

nos em Rogers (1994) nos parecem importantes como interve-

nientes nesta realidade - a família e a personalidade da criança,

nomeadamente em relação ao primeiro, não só a relação de pai

e mãe - individual ou em conjunto - com a criança mas de igual

modo, entre si.

Que padrões regem esta família, quais os valores mais exaltados?

Parece-nos, não só pelas dramatizações do Nuno, como também

pelas descrições dos pais, que a família tem o “peso” do trabalho

bem presente não só nas vidas dos adultos, como também reflectido

na educação dada aos filhos, e um pouco abordada em forma de

chantagem ao Nuno. O trabalho é visto como algo difícil, onde o

sofrimento terá necessariamente que estar presente para que

possa “dar frutos”. E o Nuno sente-o, o que lhe gera culpabilidade

(provavelmente por eles trabalharem tanto para que não lhe falte

nada, por não poder ajudar nada ainda). Assim ele dramatiza este

7 Este conceito refere-se a tudo o que se passa no organismo em qualquer momento,

e engloba tanto os acontecimentos conscientes como os fenómenos inconscientes

(Rogers e Kinget, 1975).

Page 14: Um fantoche com a voz da autonomia - Saúde Mentalsaude-mental.net/pdf/vol5_rev6_caso_clinico.pdf · 2005-04-11 · Foram aplicados o Teste do Pata Negra e o Teste do Desenho de

46

VOLUME V Nº6 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2003

8 O Self designa a configuração experiencial composta de percepções relativas ao

Self, as relações do Self com o outro, com o meio, e com a vida em geral, assim como

os valores que o individuo atribui a estas diversas percepções. (Rogers & Kinget,

1975, p. 165).

relacionamento. Adopta uma postura de hiper-protecção por falta

de segurança na tendência actualizante do ser humano, visto ela,

por não acreditar nas suas capacidades e pensar que todo o processo

educativo é um processo difícil, se fecha - como se de um casulo

se tratasse - a ela e ao Nuno numa dinâmica, que provavelmente o

faz adoptar uma postura regressiva, de passividade, por medo “que

o deixem sozinho” (desenho de uma família) ou seja medo de

crescer, de se autonomizar – daí, provavelmente, a sua angústia. É

uma mãe que talvez eduque o filho como estivesse a “amestrar

papagaios” (Santos, in Branco, 2000, p.178).

Portanto esta família - e recorrendo ao simbolismo apresentado

pelo Nuno nas consultas - é uma família “que está na mesa”, a

introduzir algo ao Nuno. É uma família que provavelmente o escuta

pouco, deixando-lhe pouco espaço para as suas necessidades.

Exploremos o pouco espaço: falamos de avaliações que em relações

interpessoais constantemente se fazem (Roger & Kinget, 1975).

Parece-nos que em relação ao Nuno, esta família possui uma avaliação

do seu comportamento bastante condicional. As experiências do

self 8 da criança, são avaliadas positivamente de um modo bastante

selectivo, sendo provavelmente alvo de consideração negativa as

experiências que contrariassem a racionalização instituída, o valor

do trabalho e do controlo, a expressão da agressividade, os rituais

de limpeza e de um modo mais geral da liberdade para crescer.

Assim teorizando acerca da personalidade do Nuno e baseando-

nos na teoria rogeriana (in Rogers & Kinget, 1975) da personalidade,

podemos arriscar dizer que este se encontra num estado de conflito.

Como já vimos, o pai e a mãe, têm em relação a ele e ao seu

comportamento, um tipo de avaliação condicional, ou seja: unicamente

certos comportamentos do Nuno são valorizados como alvo de

consideração positiva. Este processo de avaliação talvez seja sentido

pelo Nuno de uma forma demasiado rígida, onde experiências

agressivas ou de revolta não possam sequer ser consciencializadas.

Assim, como o experienciar consideração positiva da parte dos

outros se mostra como uma necessidade (Rogers & Kinget, 1975)

por vezes mais forte que o processo de avaliação organísmica

(experiencia organismica), o Nuno ao pretender satisfazer esta

necessidade adopta como força directriz das suas experiências a

avaliação dos outros, e o que os outros, no que experiencia,

consideram de positivo ou negativo. O Nuno seleccionando na

consciência as experiências causadoras de culpabilidade e desse

problema (em quase todas as sessões), quer problematizando o

seu próprio “trabalho” que é a escola, recriminando-se (sessão 4),

quer pondo-se a ajudar o pai e a mãe com o que sabe fazer - que

é desenhar – tentando, assim, aliviar esta culpabilidade inerente

que sente. A nível relacional, ele procura enquadrar-se no que os

pais consideram ser o “portar-se bem”, o seguir as normas. Através

da dramatização e não só ele verbaliza o desejo de um dia poder

vir a ajudar os pais (nessa luta que travam todos os dias contra

o prazer) - como nos explica no questionário de Zelazosca –

traduzido no desejo de ter muito dinheiro para poder ajudar os

pais. Pensamos que o que foi descrito na sessão quatro, demonstra

essa preocupação e essa culpabilidade. Também na sexta entrevista

a conversa entre o psicólogo e o Nuno demonstra essa necessidade

de ajudar - de agradar - naquilo em que os pais, provavelmente,

consideram importante investir:

“P – A escola é muito importante para ti?

C – Sim, porque é lá que se aprende.

P – E porquê que queres aprender?

C – Para tirar um curso e ganhar dinheiro para mim e para a minha

família. Porque se não se esforçar, não se ganha nada.”

P – psicólogo, C – cliente

Nesta família tudo se discute num plano racional, onde os sentimentos

estão subjugados às normas e às obrigações – quem possui a

racionalidade, como já foi apresentado na análise do desenho de

uma família, detém o poder. Plano também imposto ao Nuno, que

o faz parecer, aos pais, como uma criança muito responsável. A

ordem, a planificação, também são aqui valores muito enfatizados.

Em relação ao pai especificamente, o Nuno manifesta o desejo que

este passe mais tempo consigo, e visto este ter de trabalhar muito

o jovem propõe, em dramatização, que ele vá trabalhar para casa

enquanto ele também faz os deveres. Parece-nos então que o Nuno

o sente como um pouco ausente - se calhar preocupado unicamente

com a sua educação, ou então, como expôs no desenho de uma

família, coordenando e ordenando, na assumpção de uma postura

de líder na sua educação. Postura de chefia a tal ponto que deixa

de poder ser alcançado e onde as suas ordens adquirem uma força

tal que não poderão ser postas em causa.

Em relação à mãe, esta aparece como muito preocupada com o

filho, adoptando uma postura sempre muito protectora com este.

Ao mesmo tempo que manifesta a preocupação projecta igualmente

muita ansiedade, para o psicólogo, e provavelmente para o Nuno

no seu dia a dia. Ou seja, é uma mãe que está muito preocupada

com o seu filho, e para quem o decidir a educação é visto como

algo difícil de suportar, “penoso”, “doentio” (tal como ela colocou

o problema da encoprese), perdendo, assim, espontaneidade no

Page 15: Um fantoche com a voz da autonomia - Saúde Mentalsaude-mental.net/pdf/vol5_rev6_caso_clinico.pdf · 2005-04-11 · Foram aplicados o Teste do Pata Negra e o Teste do Desenho de

47

VOLUME V Nº6 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2003

modo recalcando-as, tornou-se então no filho que eles gostariam

de ter (que permitiam ter), com o seu lado de líder (demonstrando

uma força de controlo sobre os outros), mas ao mesmo tempo

responsável, obediente, higiénico9 e racional, como um adulto, embora

com um medo da solidão como um bebé (teste do pata negra).

Na altura da entrada para o infantário, o Nuno passou uma fase

que só chorava, aparecendo, pouco depois, o sintoma enurese.

Esta fase representou provavelmente o conflito da criança com o

exterior; que não o deixava fazer o que o seu organismo lhe pedia

– talvez uma espécie de manifestação do desconforto causado por

duas forças que se mostravam opostas: a necessidade de

consideração positiva (positive self regard) e a necessidade do

organismo. Fase essa, que resultou provavelmente num compromisso:

onde a avaliação do comportamento começou progressivamente

a ser realizado por si. Ou seja: o Nuno passou, tomando como

base critérios exteriores, a avaliar ele próprio a experiência do

seu Self, passando desse modo a mostrar uma angustia quase

permanente acerca do que expulsa e do que exprime (procurando

desse modo adquirir um controlo do mundo e especificamente

dos seus esfíncteres). O seu conflito vai, deste modo, passando de

factores exteriores para factores internos, para o seio da sua

personalidade formando-se desse modo uma personalidade

neurótica segundo (Rogers & Kinget, 1975).

Assim como foi dito na analise do teste de uma família, o Nuno

encontra-se numa ambivalência que encontra dois pólos antagónicos,

devido ao pouco espaço que os pais lhe dão para que ele se

encontre “e seja quem é”. O seu organismo pede mais liberdade,

mais autonomia, menos controle. Deseja como diz no questionário

de Zelazosca “que ninguém o chateie” e se pudesse, gostaria “de ser

livre e ir conhecer o mundo”.

Por isso ele fecha-se num comportamento anímico para o mundo

que lhe tenta invadir a privacidade. Um ambiente que reprime as

necessidades do seu organismo (“que dizem respeito a toda uma

serie de restrições que limitam a criança nos seus movimentos e

deslocação no espaço (não o deixando ir brincar com as primas (cf.

enquadramento)), na utilização de certos objectos, e na forma de

manipular outros, na manifestação dos seus impulsos, e, em particular,

limitação da liberdade excretar urina e matérias fecais.” (Santos in

Branco, 2000, p.338)) e que lhe impede o crescimento, mantendo

a evolução psicoafectiva da sua personalidade, fixado num estado

mais infantil (Marcelli, 1998). Desta repressão, que progressivamente

vai ficando mais internalizada, surgem os sintomas: “A criança (...)

estando submetida a fortes tensões ou rigorosas normas educativas,

submete-se retendo as fezes, como retém a agressividade. (...) Incapaz

de suportar constantemente a contenção, (o Nuno) exprime a sua

agressividade através das fezes (e urina).” (Santos in Branco 2000,

p. 338). Possui assim dois modos de estar, que ele os vê como

incompatíveis e que lhe trazem incongruência: um mundo de

contenção e um mundo de expulsão, que por ser reprimido (quer

pela família que por ele) não surge ou não é simbolizado

correctamente na consciência.

Mas existe também a ambivalência, proveniente da necessidade de

auto-realização que o motiva para o “florescimento”, ou seja, existe

também a necessidade de auto-realização que provavelmente vai

perdendo força ao outro lado motivador da dependência; um lado

que reclama um Nuno mais livre para experienciar e desse modo

mais seguro de si, com menos medo de ficar sozinho, mas ao

mesmo tempo com mais controle da sua vida e consequentemente

dos seus esfíncteres, mas de uma forma despreocupada, involuntária

como o próprio controlo o é; uma liberdade que encontrada lhe

permitirá ser “jogador de futebol” (questionário de Zelazosca), ou

não, dependendo da escolha que dia a dia for fazendo.

BIBLIOGRAFIA

Arfouilloux, J. C. (1980). A entrevista com a Criança. Rio de Janeiro: ZaharEditores

Axline, V. M. (1993). Play Therapy. 33ª edição. New York: Balentine Books.

Boekholt M. (2000). Provas Temáticas na Clinica Infantil. Lisboa: Climepsi

Branco, M. E. C. (2000). Vida Pensamento e Obra de João dos Santos. Lisboa:Livros Horizonte.

Cunha, J. A. (1993). Psicodiagnóstico – R. Porto Alegre: Artes Médicas

Doron R. & Parot F. (2001). Dicionário de Psicologia. Lisboa: Climepsi editores

Marcelli, D. (1998). Manual de Psicopatologia da Infancia de Ajuriaguerra. PortoAlegre: Artemed.

Rogers & Kinget (1975). Psicoterapia e Relações Humanas Vol I. BeloHorizonte: Interlivros.

Rogers, C. (1989). Sobre o Poder Pessoal. São Paulo: Martins Fontes.

Rogers, C. (1994). O Tratamento Clínico da Criança-Problema. 2ª edição. SãoPaulo: Livraria Martins Fontes

Toro, J. (1998). Psiquiatría de la infancia y de la adolescencia. In J. V. Ruiloba,(ed), Introduccion a la Psicopatologia y la Psiquiatria. 4ª edición. Barcelona:Masson

9 João dos Santos (in Branco, 2000), a educação para a limpeza é a primeira forma

de educação imposta pelos pais; ao dizerem para ele ver as outras crianças e que

ele não poderia andar assim sujo na rua, estariam a salientar o conteúdo agressivo

que ele poderia representar para o que estaria exterior ao Nuno, principalmente os

pais. Se ao contrário disso o tivessem tentado ouvir ou, como diz Rogers (1989): “O

relacionamento constitui-se de uma expressão mutável de sentimentos e atitudes, com o

outro empenhando-se em escutar e ouvir com aceitação, mas também com direito a seus

próprios sentimentos e atitudes, que também necessitam ser ouvidos com aceitação.”,

provavelmente a agressão seria ouvida e teria sido trabalhada (contida?).