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52 VOLUME VIII Nº1 JANEIRO/FEVEREIRO 2006 Leituras / Readings Numa entrevista recente, por altura da publicação do seu novo livro, Bret Easton Ellis, o autor do romance American Psycho e máximo representante da deno- minada Geração X (a geração literária que eclodiu durante os anos oitenta nos Estados Unidos), escol- heu O Grande Gatsby de Scott Fitzgerald como sendo um dos cinco melhores romances de todos os tem- pos (juntamente com Lolita, A Educação Sentimental, Ana Karenina e Middlemarch). Por outro lado, o pro- fessor de Yale e guru actual da crítica literária ameri- cana, Harold Bloom, autor de O Cânone Ocidental, também inclui Scott Fitzgerald na sua particular Arca de Noé da genialidade: Genius. A Mosaic of One Hundred Exemplary Creative Minds. Neste livro, Scott Fitzgerald é um dos autores escolhidos, juntando-se a alguns nomes lusófonos como Luís de Camões, Eça de Queiroz, Pessoa e Machado de Assis; e hispânicos como Cervantes, Garcia Lorca, Luís Cernuda, Alejo Carpentier, Octávio Paz e Jorge Luís Borges. Segundo este autor, o legado de Scott Fitzgerald, aquele que o fará sobreviver ao efeito deletério do tempo, é cons- tituído apenas por O Grande Gatsby e alguns contos. Estas duas provas recentes servem, sem dúvida, para demonstrar a vitalidade da obra de Scott Fitzgerald, cujo imortal romance parece ter resistido definitiva- mente à passagem do tempo, conseguindo manter-se intocável no altar do êxito (de crítica e de público). A vida deste autor não se pode dissociar do contex- to da sua relação com Zelda, sua mulher. A história do casal Fitzgerald parece inicialmente o argumento de um filme hollywoodense ou de um conto de fadas: dois jovens americanos genuinamente apaixonados (ninguém pode discutir isto após a leitura das suas cartas), loiros e belos, snobs e divertidos, que se transformaram no casal na moda entre a beautiful people dos anos 20. Ele: um rapaz de classe media de Minnesota, de família católica e origem irlandesa. Ela: uma menina fútil e rica do Sul (Alabama), filha de um juiz; a beldade cobiçada por todos os jovens da cidade. Os dois viveram (e beberam) intensamente, primeiro na capital do sonho americano – Nova Iorque – e, depois da obrigada fuga para Europa, nos cenários estivais do paraíso dourado de Paris e da Côte D´Azur. Eram (como um deles diz numa das suas cartas) muito jovens e muito irresponsáveis,e tornaram-se fetiche dessa época frívola e, por vezes, ingenuamente encantadora – a idade do jazz, da lei seca e do charleston – ocupando as capas das revis- tas de ecos de sociedade com as suas excentrici- Scott e Zelda: os dias do vinho e das rosas Scott and Zelda: the days of the wine and of the roses Adrian Gramary Médico Psiquiatra Centro Hospitalar Conde de Ferreira, Porto Direcção: Adrian Gramary Centro Hospitalar Conde de Ferreira, Rua Costa Cabral, 1211 4200-227 Porto e-mail: [email protected] Scott e Zelda

Scott e Zelda: os dias do vinho e das ro s a s - Saúde Mentalsaude-mental.net/pdf/vol8_rev1_leituras2.pdf · e a escrita de textos curtos,pequenos contos que permitissem benefícios

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VOLUME VIII Nº1 JANEIRO/FEVEREIRO 2006

Leituras / Readings

Numa entrevista recente, por altura da publicação do

seu novo livro, Bret Easton Ellis, o autor do romance

American Psycho e máximo representante da deno-

minada Geração X (a geração literária que eclodiu

durante os anos oitenta nos Estados Unidos), escol-

heu O Grande Gatsby de Scott Fitzgerald como sendo

um dos cinco melhores romances de todos os tem-

pos (juntamente com Lolita, A Educação Sentimental,

Ana Karenina e Middlemarch). Por outro lado, o pro-

fessor de Yale e guru actual da crítica literária ameri-

cana, Harold Bloom, autor de O Cânone Ocidental,

também inclui Scott Fitzgerald na sua particular Arca

de Noé da genialidade: Genius. A Mosaic of One

Hundred Exemplary Creative Minds. Neste livro, Scott

Fitzgerald é um dos autores escolhidos, juntando-se a

alguns nomes lusófonos como Luís de Camões, Eça

de Queiroz, Pessoa e Machado de Assis; e hispânicos

como Cervantes, Garcia Lorca, Luís Cernuda, Alejo

Carpentier, Octávio Paz e Jorge Luís Borges. Segundo

este autor, o legado de Scott Fitzgerald, aquele que o

fará sobreviver ao efeito deletério do tempo, é cons-

tituído apenas por O Grande Gatsby e alguns contos.

Estas duas provas recentes servem, sem dúvida, para

demonstrar a vitalidade da obra de Scott Fitzgerald,

cujo imortal romance parece ter resistido definitiva-

mente à passagem do tempo, conseguindo manter-se

intocável no altar do êxito (de crítica e de público).

A vida deste autor não se pode dissociar do contex-

to da sua relação com Zelda, sua mulher. A história

do casal Fitzgerald parece inicialmente o argumento

de um filme hollywoodense ou de um conto de fadas:

dois jovens americanos genuinamente apaixonados

(ninguém pode discutir isto após a leitura das suas

cartas), loiros e belos, snobs e divertidos, que se

transformaram no casal na moda entre a beautiful

people dos anos 20. Ele: um rapaz de classe media de

Minnesota, de família católica e origem irlandesa. Ela:

uma menina fútil e rica do Sul (Alabama), filha de um

juiz; a beldade cobiçada por todos os jovens da

cidade. Os dois viveram (e beberam) intensamente,

primeiro na capital do sonho americano – Nova

Iorque – e, depois da obrigada fuga para Europa, nos

cenários estivais do paraíso dourado de Paris e da

Côte D´Azur. Eram (como um deles diz numa das

suas cartas) muito jovens e muito irresponsáveis, e

tornaram-se fetiche dessa época frívola e, por vezes,

ingenuamente encantadora – a idade do jazz, da lei

seca e do charleston – ocupando as capas das revis-

tas de ecos de sociedade com as suas excentrici-

Scott e Zelda: os dias do vinho e das ro s a sScott and Zelda: the days of the wine and of the roses

Adrian Gramary

Médico Psiquiatra

Centro Hospitalar

Conde de Ferreira,

Porto

Direcção:

Adrian Gramary

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Conde de Ferreira,

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Scott e Zelda

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dades, sempre devidamente regadas pelo imprescindível excesso

etílico (banhos nas fontes públicas, festas privadas intermináveis

organizadas na sua casa de Long Island, brigas com a policia, ela

dançando o charleston em cima das mesas dos restaurantes, os

dois viajando pelas ruas de Nova Iorque de pé em cima do tecto

de um taxi). Depois, com o fim súbito e trágico do Carnaval mun-

dano da década, após o Crack de 29, caíram as mascaras e sobre-

vieram as trevas: ele tornou-se alcoólico, para sempre incapaz de

ultrapassar uma crise criativa que acabou por se instalar definiti-

vamente; ela foi internada num hospital psiquiátrico na Suiça,

onde lhe foi diagnosticada esquizofrenia, transformando-se a sua

vida, a partir dessa altura, num périplo interminável por dife-

rentes hospitais psiquiátricos dos Estados Unidos, pontuado ape-

nas por pequenas saídas temporárias para visitar a sua família.

Recentemente foi publicada uma edição dos textos epistolares

do casal, (“Querido Scott, Querida Zelda: As cartas de

amor entre Zelda e F. Scott Fitzgerald” - existe tradução

brasileira editada por Cia das Letras em 2005), que inclui as car-

tas trocadas pelos Fitzgerald desde o namoro até a morte do

escritor, em 1940. A maioria das cartas de Zelda foi escrita nos

diferentes hospitais psiquiátricos onde esteve internada, primeiro

na Europa (na Clínica Les Rives des Pranguins em Nyon, Suiça,

onde Forel e Bleuler lhe diagnosticaram pela primeira vez

esquizofrenia) e posteriormente nos Estados Unidos (Clínica

Henry Phipps da Universidade John Hopkins e Hospital Sheppard

e Enoch Pratt, os dois em Maryland; e, finalmente, no Hospital

Highland em Carolina do Norte).

Em 2005, a editora Assírio & Alvim, publicou na sua série

Testemunhos, um livro (“A Fenda Aberta”) que tenta analisar

a vida de Scott Fitzgerald (e inevitavelmente de Zelda) através de

uma colectânea de textos de conteúdo marcadamente autobio-

gráfico. O livro divide-se em duas partes: a Comédia e o Drama;

encontrando-se, nesta última parte, o famoso stripstease literário

do autor, exercício meta-literário e de auto-análise, catarse

descarnada e terrível, que dá titulo ao livro (“The Crack Up” -

traduzido por Aníbal Fernandes como “A Fenda Aberta”), em que

o autor aborda a crise criativa e o vazio emocional que surgiram

após a doença da mulher, e a sua destruição psíquica, resultado

dos contínuos abusos de álcool.

O primeiro texto do livro abre com um parágrafo que condensa

o conflito nuclear deste homem, escritor de raça, perdido na ver-

tigem da mundaneidade e no beco sem saída da dependência

alcoólica: “A história da minha vida é a história do conflito entre uma

irresistível necessidade de escrever e um conjunto de circunstâncias

que resolviam dissuadir-me de o fazer”. Seria difícil descrever me-

lhor o desassossego do romancista: a luta entre o necessário

ensimesmamento, imprescindível para o criador, e os múltiplos

atractivos exercidos pela vida mundana.

Muito se tem discutido sobre os factores que determinaram o

falhanço deste promissor escritor. De entre os mais referidos,

destacam-se a dependência alcoólica e a influência perniciosa de

Zelda.

Quanto ao peso do primeiro, a melhor forma de o compreender

é recordando o epitáfio etílico que o autor, num rasgo de ironia,

imaginou para a sua campa: Esteve bêbado durante muitos anos, e

depois morreu. Salienta Aníbal Fernandes, o editor do livro A Fenda

Aberta, a relação intensa e longa que os intelectuais norte-ame-

ricanos mantiveram com o álcool. Sem sair da conhecida geração

perdida (a geração que viveu a lei seca), à qual pertence o nosso

escritor, encontramos, para além de Scott Fitzgerald, o nome de

três grandes bebedores: Faulkner, Steinbeck, Hemingway; mas a

lista de escritores norte-americanos subjugados pelos encantos

do deus Baco é interminável: Jack London, Raymond Chandler,

Dashiel Hammet, Jack Kerouac,Truman Capote. E isto sem falar

dos pintores do expressionismo abstracto…

Relativamente à influência de Zelda, a ela é atribuída a respon-

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Zelda Fitzgerald

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sabilidade de empurrar o marido para o mundo das festas e dos

gastos excessivos, estimulando o consumo de bebidas alcoólicas

e a escrita de textos curtos, pequenos contos que permitissem

benefícios económicos rápidos. Hemingway, no seu livro autobio-

gráfico Paris era uma festa, pinta um retrato implacável de Zelda,

a quem considera a principal responsável do fracasso do escritor,

em parte, devido aos ciúmes que tinha dos dotes artísticos do

marido, contribuindo de maneira activa na destruição da sua car-

reira artística. Outro colega de geração, o descendente de aço-

rianos John Dos Passos, nas suas memórias, The Best Times. An

Informal Memoir, recorda o encanto irresistível do casal: “emana -

va deles qualquer coisa como uma aura de dourada inocência e, além

do mais, os dois eram incrivelmente belos”; salientando, no entanto,

a estranha sensação de fragilidade e desequilíbrio que transmitia

a linda Zelda: “no mesmo dia em que nos conhecemos encontrei-me

com aquela fenda da sua mente que depois iria ter tão trágicas con -

sequências. Embora Zelda fosse realmente adorável, houve qualquer

coisa nela que me assustou e me repeliu, até fisicamente. ”

Scott Fitzgerald atingiu, talvez prematuramente, o êxito de publi-

co e de critica com o seu romance generacional Este lado do

Paraíso. No entanto, este jovem autor carregado de futuro,

desiludiu com o seu segundo livro, The Beautiful and Damned,

atingindo a glória e a consagração crítica (mas não o favor do

público) com O Grande Gatsby. Escreveu ainda um romance quase

totalmente autobiográfico, Terna é a noite, deixando inacabado o

seu último texto, O Último Magnata. Pelo meio ficaram inúmeros

contos, poucos deles dignos do autor, a maioria textos alimentí-

cios, necessários para pagar as facturas do hospital psiquiátrico

da mulher e da universidade da filha, mas com escasso vigor cria-

tivo. Ficam ainda divertimentos como A viagem da velha sucata,

escrito para a revista Motor, quando o autor ainda permanecia em

estado de graça, relato da viagem feita pelo casal num velho

Marmon desde Westport até Alabama, terra de Zelda.

Os livros de Scott Fitzgerald estavam incluídos numa lista de

obras proibidas pela igreja (o que, na perspectiva actual, nos

parece absolutamente ridículo), e foi este o motivo que levou as

autoridades da igreja católica de St. M a ry de Rockville

(Maryland), num bairro residencial de Washington DC, a negar-

lhe o repouso eterno no panteão familiar, aquando da sua morte.

Só 35 anos depois, em 1975, a Arquidiocese Católica de

Washington anulou a decisão anterior, e os restos dos Fitzgerald

foram transladados para o cemitério da igreja de St. Mary. Na

campa do casal podem ler-se as últimas palavras de O Grande

Gatsby: “Assim vamos persistindo, como barcos contra a corrente,

incessantemente levados de volta ao passado…”

E, partindo destas palavras, resulta tentador, também para nós,

leitores, revisitar o passado do casal, uma vez que a obra de Scott

Fitzgerald está salpicada de material autobiográfico desde o

primeiro livro, Este lado do Paraíso, até o seu último romance

incompleto O Último Magnata. O escritor, acusado por

Hemingway de certo exibicionismo, deixou dispersas pelos seus

livros, as pegadas do seu percurso vital, resultando fácil recons-

truir boa parte da sua vida através do mergulho repetido nas suas

obras. Diz Bloom que “o sonho americano foi o mito nacional

americano no século XX e Fitzgerald foi o seu representante

principal e o grande satírico deste sonho, transformado em

pesadelo”. E está a falar, é claro, de Jay Gatsby, protagonista do

seu romance mais famoso, que procurou, segundo Bloom “o que

todos os monomaniacos norte-americanos, fictícios e históricos,

procuraram: riqueza, amor, um lar e um lugar na sociedade”.

Numa frase belíssima do romance é descrito como Gatsby se

apaixona por Daisy e fica preso “de qualquer poeira poluída que

talvez flutuasse na esteira dos seus sonhos”. Gatsby luta para se

transformar rapidamente (o que quase sempre implica meios ilí-

citos) num milionário para conquistar a mulher amada, que o

havia rejeitado para casar com outro homem mais rico. Para a

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Scott Fitzgerald

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conquistar, compra uma mansão esplendorosa em frente da casa

dela, e organiza festas fantásticas para a atrair.O seu sonho acaba,

como é conhecido por todos, com o seu cadáver flutuando na

superfície da piscina da sua mansão (assim começa também,

talvez coincidência, o filme Sunset Boulevard de Billy Wilder). E

qual foi o sonho de Francis Scott Fitzgerald de St. P a u l

(Minessota)? Talvez também o sonho de ser jovem, rico e famoso.

Este sonho que o levou à Universidade de Princeton (embora

não conseguisse acabar o curso) e a alistar-se como voluntário

para participar na primeira guerra mundial. Nunca chegou a

atravessar o Atlântico, mas foi com o uniforme de alferes, num

baile organizado em 1918, em Montgomery (Alabama), que aque-

le rapaz de Minessota, de origem humilde, conquistou Zelda, a

rapariga mais popular da cidade (como Gatbsy conquista com o

uniforme a leviana e insubstancial Daisy). Scott escreveu no seu

diário “ Setembro de 1918: no dia 7 apaixonei-me”. Através dos

olhos de Gatsby podemos perceber o deslumbramento que

Scott sentiu a primeira vez que viu Zelda: “Achou-a excitantemente

desejável. Foi a casa dela, primeiro com outros oficiais de Camp Taylor,

depois sozinho. E ficou maravilhado – nunca estivera antes numa casa

tão bela. Mas o que lhe dava aquele ar de irrespirável intensidade era

o facto de Daisy ali morar – facto para ela tão casual como para ele

era o viver numa tenda de campanha ao ar livre. Pairava sobre ela um

suculento mistério, um indício de que havia no andar de cima quartos

de dormir mais belos e mais frescos do que outros quaisquer, um indi -

cio de alegres e radiosas actividades a desenrolar-se pelos corredores,

e de romances ainda não bolorentos nem conservados em alfazema,

mas frescos e a rescender aos resplandecentes automóveis desse ano,

e de bailes cujas flores mal tinham tempo de murchar. Excitou-o tam -

bém o facto de que muitos homens tinham já amado Daisy – o que,

aos seus olhos, aumentava o valor dela.” Há quem diga que, a prin-

cipio, Zelda e os seus pais não foram muito entusiastas desta

relação, e que o êxito atingido com o primeiro romance, Este lado

do Paraíso, inverteu esta tendência e levou a jovem a casar com

S c o t t . P rov ave l m e n t e, na sua imaginação, Scott associou a

“aquisição” de Zelda à aquisição de êxito material, transforman-

do o que já eram os dois motivos centrais da sua obra - o amor

e o dinheiro - nos dois motivos centrais da sua vida.Voltando às

palavras de Gatsby, descobrimos o seu fascínio pelo mundo dos

ricos: “estava absolutamente consciente da juventude e do mistério

que a riqueza aprisiona e preserva, da frescura da roupa em

abundância e de Daisy a cintilar como prata, segura e altiva, muito

acima das violentas lutas dos pobres.” Por seu lado, numa carta ao

marido, Zelda escreve:“Desejo que me leves como um adorno, como

um bonito relógio ou uma flor na lapela – perante o mundo”.

Depois do casamento, o casal estabeleceu-se em Long Island

(Nova Iorque), começando a festa interminável, os excessos etíli-

cos, os acessos de ciúmes, e finalmente as dívidas provocadas

pelos gastos insustentáveis. A 26 de Outubro de 1921 nasce a

única filha do casal, e Scott escreve no seu diário o seguinte

comentário de Zelda a propósito do nascimento: “Espero que seja

linda e louca; uma pequena beleza louca”; palavras que mais tarde

iria por na boca de Daisy Buchanan em O Grande Gatsby.

O casal decide fugir para Europa em 1925 empurrados, em parte,

pela incapacidade para manter o nível de vida, e atraídos pelos

preços mais razoáveis que a vida europeia oferecia para um casal

americano da época. Já na Europa, as bebedeiras voltam-se a

repetir regularmente, criando situações complexas, como as duas

vezes em que Scott foi parar às cadeias parisienses. A Paris,

seguiu-se a Rivière francesa, onde o casal exibiu o bronzeado e a

juventude, encantando a fauna de escritores, compositores e

artistas, que habitava, nessa época, o litoral francês: entre os quais

estavam Picasso, Cole Porter, Rudolph Valentino e Dorothy

Parker. No entanto, a par desta sedução, a ninguém passavam ao

lado, os contínuos desajustes e excessos etílicos do casal. Entre

outros, numa crise de fúria e ciúmes provocada pelo jogo de

sedução que a bailarina Isadora Duncan manteve durante uma

noite de festa com Scott, Zelda atirou-se de cabeça por um lanço

de escadas; noutra festa, organizada por um casal de milionários

a m e r i c a n o s , S c o t t , totalmente bêbado, dedicou-se a atirar

cinzeiros pelo quarto; noutra festa, sem motivo aparente, partiu

a baixela dos anfitriões.

De regresso a Paris, em 1929, Zelda começa a apresentar os

primeiros sinais de insanidade mental, tentando despenhar-se

com o seu carro por um precipício, naquela que se tornou a sua

primeira tentativa de suicídio. Após outra tentativa de suicídio,

começam as crises de pânico, os episódios de despersonalização,

as alucinações e os delírios místicos, que determinam finalmente

o seu internamento na clínica de Malmaison em Paris, aos 30

anos de idade. Mais tarde, veio desenvolver obsessões religiosas,

referindo receber mensagens do profeta Jeremias, passando por

épocas em que só vestia roupas brancas. Assustava as visitas ao

insistir em ajoelhar-se e rezar com elas. Scott incorporou a vivên-

cia da doença de Zelda no seu último livro publicado em vida,

Tenra é a noite, cujo protagonista é um psiquiatra apaixonado e

casado com uma das duas doentes, os dois formando um casal

desequilibrado e em ruptura, torrado ao sol da Rivière francesa:

era a evocação do fim de uma época.

Os editores do livro de cartas “Querido Scott, Querida Zelda” -

num juízo talvez demasiado severo – consideram que o casal se

transformou num símbolo dos excessos materiais e da cor-

rupção moral dos anos vinte, ao mesmo tempo que as obras de

Scott lançavam um profético juízo contra o período.

Longe de admonições morais, parece existir seres criados para

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Leituras / Readings

permanecer eternamente num paraíso de juventude perpétua:

um mundo luminoso, hedonista, lúdico, irresponsável e excessivo.

Para eles, o mundo adulto é vivido como um exílio insuportável.

“Não quero ver como me transformo em velha e feia… teríamos que

morrer aos trinta” escreveu Zelda numa das suas cartas. Resulta

estranho ver as fotografias últimas do nosso escritor: um jovem

avelhentado contra vontade, disfarçado de adulto, usando bigode

que aparenta postiço. A vida do casal talvez devesse ter ficado

congelada num instante perfeito: um verão perpétuo, na Côte

D´Azur, agasalhados pelo êxito literário, exibindo encanto e cor-

pos bronzeados durante o dia, gozando do banquete etílico à

noite, com os fantasmas da doença, do insucesso e da pobreza

afastados para sempre (“tu fermeras l´oeil, pour ne point voir, par la

glace,/ grimacer les ombres des soirs / ces monstruosités hargneuses,

populace / de démons noirs et de loups noirs” brincava - e não brin-

cava – Rimbaud): dias eternos de vinho e rosas.

Mas o casal não conseguiu exorcizar os demónios durante muito

tempo. Ele morreu aos 44 anos de idade, arruinado, guionista fra-

cassado assalariado para a Metro Goldwin Meyer, após ter sofri-

do tuberculose e duplo enfarte de miocárdio. Ela, alguns anos

mais tarde, num incêndio deflagrado no Hospital onde permane-

cia internada.Nos escuros e perturbadores anos quarenta, pouco

sensíveis ao espírito hedonista da década dos vinte, quase

ninguém se lembrava deles.

Em A Fenda Aberta, encontramos a auto-análise de um homem

fracassado: “Pago um bom seguro de vida, mas é verdade que gover-

nei mal a maior parte das coisas que me caem nas mãos, inclusive o

talento”. Em 1913, Constantino Cavafy, o poeta hedonista de

Alexandria, numa tentativa de advertência para navegadores,

abordou, no seu poema “Quanto puderes”, os perigos que os can-

tos de sereia da vida mundana podem trazer para o criador. A

primeira edição completa da sua poesia só foi publicada em 1935.

Não sabemos se Scott Fitzgerald teve oportunidade de ler o

poema:

Se não podes fazer da vida o que tu queres,

tenta ao menos isto,

quanto puderes:

não a disperses em mundanas cortesias,

em vã conversa, fúteis correrias.

Não a tornes banal à força de exibida,

e de mostrada muito em toda a parte

e a muita gente,

no vácuo dia-a-dia que é o deles

- até que seja em ti uma visita incómoda.

Bloom H (2005): Genios: Un mosaico de cien mentes creativas y ejem-plares.Anagrama. Colección Argumentos. Barcelona

Bryer JR, Barks CW eds. (2003): Querido Scott, Querida Zelda:As cartasde amor entre Zelda y Scott Fitzgerald. Lumen. Barcelona (existe ediçãobrasileira editada por Cia das Letras em 2005)

Cavafy C (2003): 90 e mais quatro poemas. Edições ASA. Porto

Dos Passos, J (2006):Años inolvidables. Seix Barral. Barcelona

Hemingway E (1983): Paris era una fiesta. Seix Barral. Barcelona

Rimbaud A (1995): Poesías e otros textos. Edición bilingüe. Hiperion.Madrid

Scott Fitzgerald F (1991): Crónicas de Hollywood. Editorial Teorema.Estórias. Lisboa

Scott Fitzgerald F (1991): Mal por Mal e outros contos.Teorema Breve.Lisboa

Scott Fitzgerald F (1992): A Viagem da Velha Sucata. Editorial Teorema.Estórias. Lisboa

Scott Fitzgerald F (1993): O Grande Gatsby. Publicações Europa-América

Scott Fitzgerald F (2000): Suave es la noche.Alfaguara. Madrid

Scott Fitzgerald F (2003):A este lado del paraíso.Alianza Editorial. Madrid

Scott Fitzgerald F (2005):A Fenda Aberta.Assírio & Alvim. Lisboa

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56Bibliografia

Zelda Fitzgerald