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Leituras / Readings
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Volume X Nº2 Março/Abril 2008
Adrián GramaryMédico Psiquiatra
Correspondência relacionada com o artigo:
Centro Hospitalar Conde de FerreiraRua Costa Cabral, 1211, 4200-227 Portoe-mail: [email protected]
1- O fardo do amor
Não faltam os exemplos, na história da literatura, de roman-
cistas que se inspiraram em casos reais para elaborar os seus
livros de ficção. Sem ir mais longe, sabe-se que dois vultos
fundamentais do movimento realista e naturalista francês do
século XIX, animados pelo seu afã de mimesis ou representa-
ção veraz da sociedade, encontraram a ideia germinal para as
suas obras em casos reais: Stendhal descobriu num jornal o
A Sindrome de Clérambault Revisitada
Revisiting the Clérambault’s Syndrome
Gaëtan Gatian de Clérambault
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argumento básico para o seu romance “Le Rouge et le Noir”, e
Flaubert inspirou-se no “caso Delamare” - a mulher adúltera de
um médico rural da Normandia cujo suicídio se tinha tornado
famoso na região - para a personagem do seu livro imortal
“Madame Bovary”. O escritor inglês Ian McEwan, que faz
parte da geração literária de Martin Amis e Salman Rushdie,
deu um passo mais além e baseou o seu romance “O fardo
do Amor” (“Enduring love”)[1] num caso clínico de síndrome
de Clérambault homoerótico publicado no British Journal of
Psychiatry.
Para não desiludir quem possa esperar o contrário, torna-se
necessário ressalvar que, neste livro, McEwan parece menos
interessado em mergulhar na mente perturbada do doente do
que em analisar as repercussões que o aparecimento deste
tem na vida ordenada e equilibrada de John e Clarissa, um
casal pacato de jovens universitários londrinos.
Assim, somos testemunhas da deterioração progressiva do seu
relacionamento e do aparecimento gradual dos fantasmas da
desconfiança e da insegurança, que vão surgindo a volta da
paixão doentia que Parry, um jovem solitário e embebido em
delírios religiosos, sente por John.
Como é habitual nesta síndrome, o quadro tem como ponto
de partida um encontro casual: enquanto lancham num cam-
po situado nas redondezes de Londres, John e Clarissa são
surpreendidos pela visão do acidente de um balão tripulado
por uma criança e um adulto, em cujo resgate John partici-
pa, juntamente com outros espectadores, entre os quais se
encontra Parry.
Um olhar neutro de John torna-se para Parry em revelação de
uma paixão incomensurável, que interpreta como fazendo parte
de um desígnio divino, cujo objectivo é a salvação da alma de
John através do amor.
John confessa ao leitor retrospectivamente:
“Se soubesse na altura o que aquele olhar significava para ele
e de que forma viria mais tarde a elaborá-lo e a construir em
torno dele uma vida mental, não teria sido tão caloroso (…)
Ele olhou para mim, sem conseguir falar. Estava tudo – desde
cada gesto a cada palavra – a ser armazenado, acumulado
e empilhado, para servir de combustível ao longo Inverno da
sua obsessão.”[2]
O narrador assume desde o início a perspectiva do John, que
só abandona em três ocasiões, duas delas para mostrar as
cartas que nos permitem dirigir um olhar ao interior da mente
perturbada de Parry.
Esta estratégia narrativa torna-nos testemunhas de primeira
linha da evolução dos sentimentos do protagonista, um físico
dedicado à crítica freelancer para publicações científicas, um
racionalista aparentemente sem fissuras, que, ao contrário do
que afirma no início do livro, termina por descobrir que não tinha
tão boas defesas como acreditava perante a súbita instalação
do irracional na sua vida.
Sucedem-se, por parte de Parry, os comportamentos habituais
nestes casos: telefonemas insistentes, mensagens deixadas
no gravador de chamadas, cartas que nos falam de uma “vida
secreta” de palavras e gestos só perceptíveis para ele, esperas
à porta da casa, o assédio e, finalmente, a inevitável tentativa
de homicídio, quando Parry atinge a fase de rancor.
Até ao fim do relato, este mantém a convicção delirante de
que foi o objecto da paixão, John neste caso, quem começou
a comunicação amorosa: “Foi você que desencadeou isto.
Agora não pode voltar as costas”[3], acusa-o numa determi-
nada altura.
McEwan é um subtil observador dos sentimentos humanos,
como pode exemplificar o seguinte fragmento, em que John
parece terminar por compreender a autêntica natureza do
delírio de Parry:
“O seu amor não era definido por influências externas, nem
mesmo que partissem de mim. O seu mundo era determinado
a partir do interior, impelido por uma necessidade individual, e
era por isso que conseguia manter-se intacto. Não havia nada
que pudesse provar que ele estava errado, nem era necessário
nada que provasse que estava certo. Se lhe escrevesse uma
apaixonada declaração de amor, teria sido indiferente para ele
(…) Iluminava o mundo com os seus sentimentos, e o mundo
confirmava cada nova direcção que eles seguiam.”[4]
2- Erotomania e Síndrome de Clérambault
Existe certa confusão entre o conceito de erotomania e a Sín-
drome de Clérambault. A primeira, também denominada por
Esquirol monomania erótica, foi incluída por este no seu famoso
tratado “Des maladies mentales, considérées sous les rapports
médicaux, hygiéniques et médico-legaux”, publicado em 1838,
dentro do capítulo das monomanias, isto é, aquelas formas de
loucura limitadas a uma só ideia, sentimento ou instinto.[5]
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Para Esquirol a erotomania é “uma afecção cerebral crónica,
caracterizada por um amor excessivo por um objecto conhe-
cido ou imaginário”, salientando como núcleo psicopatológico
do quadro a existência de “um erro do entendimento”.[6]
Entre outros exemplos históricos, lembra-nos o psiquiatra fran-
cês o caso de um famoso erotómano por todos nós conhecido:
o cavaleiro Dom Quixote, possuído por uma paixão delirante
pela camponesa-princesa Dulcineia.[7]
Segundo a descrição da erotomania feita por Esquirol, a
direcção da seta da paixão iria inicialmente (e predominante-
mente) do sujeito delirante ao objecto amoroso, embora, como
recorda Alonso Fernández - que baptizou o quadro de Dom
Quixote “erotomania platónica” - termine por aparecer uma
dupla seta de ida e volta, ou seja, com sentimento próprio e
correspondido.[8]
A Síndrome de Clérambault ou psychose passionelle foi des-
crita em 1921 por Gäetan Gatian de Clérambault como um
subtipo específico de erotomania, mais frequente em mulheres,
caracterizado por um postulado inicial básico: o objecto do
amor, que tipicamente tem um status social mais elevado do
que o sujeito, é quem começou a amar e quem ama com mais
intensidade. O sujeito, em geral, inicia o seu delírio após um
contacto breve e ocasional com o objecto.[9]
Um dos casos descritos por Clérambault, que também apa-
rece citado no fim do livro de McEwan, tornou-se paradigma
do quadro:
“Uma francesa de 53 anos estava convencida de que o rei Jor-
ge V estava apaixonado por ela. Moveu-lhe uma perseguição
insistente a partir de 1918, tendo-se deslocado por diversas
vezes a Inglaterra. Costumava esperar por ele em frente do
Palácio de Buckingham. Uma vez viu uma cortina a mexer-se
numa das janelas do palácio e interpretou esse facto como
um sinal do rei. Afirmava que todos os habitantes de Londres
sabiam que ele a amava, mas alegava que a tinha impedido
de conseguir arranjar alojamento em Londres, que a tinha feito
perder as reservas que tinha feito nos hotéis e ainda que era
responsável pelo desaparecimento de toda a sua bagagem,
incluindo dinheiro e alguns retratos dele. «O rei pode odiar-
me, mas nunca poderá esquecer-me. Nunca poderei ser-lhe
indiferente, nem ele a mim. Faz-me sofrer em vão… Fui atraída
por ele desde as profundezas do meu coração…»[10]
Clérambault descreveu diferentes “temas derivados” que po-
dem surgir a partir do referido postulado fundamental: a crença
por parte do sujeito de que o objecto não pode ser feliz sem ele,
a crença de que o objecto não pode ter um valor completo sem
ele, a crença de que o objecto está livre pois o seu casamento
não é válido, o estabelecimento de uma vigilância contínua ou
de uma protecção contínua do objecto, conversação indirecta
com o objecto e o denominado comportamento paradoxal ou
contraditório do objecto.[11]
Este último, o comportamento paradoxal, é, segundo Cléram-
bault, um elemento essencial e sempre presente no quadro[12],
e constitui uma tentativa delirante de reatribuição de significado
aplicada aos comportamentos de rejeição eventualmente surgi-
dos do objecto, que passam a ser para o sujeito tentativas para
pôr à prova o seu amor, ou fruto das vacilações, ciúmes, ou
abulia do objecto, ou são explicados pela influência de amigos
ou terceiras pessoas que tentam afastar o sujeito do objecto
amoroso. Descreveu ainda três fases no quadro que veio a ter
o seu nome: esperança, ressentimento e rancor.[13]
Segundo a descrição de Clérambault, a direcção da seta da
paixão vai - e esta é a grande diferença com o conceito de
erotomania de Esquirol -, inicialmente (e predominantemente),
do objecto ao sujeito delirante.
A existência deste quadro como entidade nosológica autó-
noma, postura defendida por Clérambault, tem sido muito
discutida, ao ponto de na DSM-IV-TR aparecer integrado como
subtipo da perturbação delirante crónica ou paranóia.[14]
Enoch e Ball, autores do livro clássico “Uncommon Psychiatric
Syndromes”, estabelecem uma diferenciação entre erotomania
primária e secundária, entendendo por primárias as formas,
infrequentes, de delírio erotomaníaco puro, e por secundárias
as formas em que o delírio erotomaníaco aparece inserido em
quadros psicóticos mais complexos, nomeadamente esquizo-
frénicos ou paranóides.[15]
Alguém sugeriu, como exemplo literário de erotomania secun-
dária, o amor que o protagonista esquizofrénico do famoso
conto de Gogol “Diário de um louco” sente pela filha do
director de serviço.[16]
Diferentes autores salientaram o evidente narcisismo subja-
cente à Síndrome de Clérambault, um amor dirigido ao próprio
sujeito, negado ou projectado noutra pessoa.[17]
O próprio Clérambault sublinhava que a fonte principal da
erotomania era, na realidade, mais do que o amor, o orgulho: a
evolução seria do orgulho ao desejo, e deste à esperança.[18]
Se a esperança não se concretizar, o sentimento podia-se
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transformar facilmente, pensava ele, em ressentimento e ran-
cor. Como concluem Enoch e Ball numa frase certamente feliz,
a erotomania, segundo Clérambault, “trata fundamentalmente
de ser amado e não de amar”.[19]
3- Implicações forenses
Este quadro pode ter importantes implicações forenses, pois
não é infrequente que o sujeito termine por provocar graves
alterações na vida do seu objecto amoroso. Os doentes com
este quadro podem submeter o objecto, durante períodos
de tempo muito prolongados, a um bombardeio de cartas e
telefonemas sem conta, quer no âmbito laboral, quer no âm-
bito privado. Como resultado, não é difícil imaginar a pressão
psicológica insuportável que sofrem algumas vítimas.
Alguns doentes terminam por ser detidos, acusados de assédio
ou de agressão física ao objecto do seu delírio, sendo mais
provável que esta última aconteça quando o doente atinge a
fase de ressentimento e ódio, que frequentemente substitui o
sentimento amoroso após as suas demandas serem repetida-
mente frustradas.[20]
Há um caso de erotomania que se tornou famoso no início dos
anos oitenta pelas suas repercussões forenses, por terminar
com uma tentativa frustrada de homicídio do então presidente
Ronald Reagan.
O protagonista, John Hinckley, tinha uma obsessão pela actriz
Jodie Foster, cujo início remontava aos anos 70, quando tinha
visto no cinema o filme Taxi Driver de Martin Scorsese. Após
a visualização do filme mais de quinze vezes ao longo dessa
década, sofreu um processo de identificação com o protago-
nista do mesmo, Travis Bickle, interpretado no ecrã por Robert
de Niro, protector de uma prostituta de 12 anos, interpretada
por Jodie Foster.
Nos anos seguintes, Hinckley dedicou-se a seguir os movimen-
tos de Jodie Foster ao longo do país, chegando a inscrever-se
na Universidade de Yale ao saber que ela estudava nesse
centro. Dirigiu inúmeras cartas e chegou a telefonar duas vezes
para ela, recusando-se a desistir quando esta lhe disse que
não estava interessada nele.
Convencido de que só transformando-se numa figura pública
poderia atrair a atenção da actriz e conseguir o seu amor, co-
meçou a seguir o então presidente Jimmy Carter, acto também
inspirado no mesmo filme. Não o conseguiu com Carter, mas
terminou por concretizar o seu objectivo com Ronald Reagan,
atingindo-o com o seu revolver no dia 30 de Março de 1981,
quando este saia de fazer um discurso no Hotel Hilton de
Washington.
4- Um final dramático
Clérambault tem um espaço reservado na história da psico-
patologia, via Henri Ey, fundamentalmente graças à psychose
passionelle e ao conceito de automatismo mental. Leccionou
na Universidade de Paris e teve uma actividade profissional
ligada basicamente à psiquiatria forense, desenvolvendo o seu
trabalho durante cerca de 30 anos na Enfermaria Especial da
Prefeitura da Polícia de Paris.
Não publicou nenhum livro durante a sua vida, o que permite
explicar que a sua Oeuvre Psychiatrique, publicada em 1942,
seja, em essência, uma recolha das aulas ministradas por ele
juntamente com artigos dispersos por diferentes revistas.
Foi aluno de Lasegue e professor de Lacan, que o considerava
o seu mestre único. Há unanimidade no reconhecimento do
valor da sua capacidade excepcional para a observação e a
descrição do fenómeno psíquico. Suicidou-se em 1934 com
um tiro de pistola no se domicílio de Montrouge, ao que parece,
por incapacidade de aceitar a cegueira quase total que resultou
de uma cirurgia de cataratas.
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Bibliografia:
[1] McEwan I (1997): O fardo do amor. Gradiva. Lisboa.
[2] Ibíd., p. 23-24
[3] Ibíd., p. 64
[4] Ibíd., p. 119
[5] Esquirol, E (2007): Tratado completo de las enajenaciones men-
tales consideradas bajo su aspecto médico, higiénico y médico-
legal. Madrid. 1856. Traducción de D. Raimundo de Monasterio
y Correa. (Edición facsímil. Extramuros Edición SL. Universidad
de Cadiz)
[6] Ibíd., p. 229
[7] Ibíd., p. 234
[8] Alonso Fernández F (2005): El Quijote y su laberinto vital. Anthro-
pos. Barcelona. p.122
[9] Clérambault G G: Los delirios pasionales: erotomania, reivindica-
ción y celos. In Colina F, Álvarez JM eds. (1994): Ballet, Capgras,
Clérambault, Falret, Lasegue, Magnan, Serieux: El delirio en la
clínica francesa. Colección Clásicos de la Psiquiatría. Dorsa
Ediciones. Madrid. P. 267-279
[10] McEwan I op cit., p. 192-193
[11] Clérambault G G op cit., p. 269
[12] Ibíd., p. 269
[13] Ibíd., p. 268-269
[14] American Psychiatric Association (2002): Manual de Diagnóstico
e Estatística das Perturbações Mentais 4ª edição Texto Revisto
(DSM-IV-TR). Climepsi Editores. Lisboa. p. 324
[15] Enoch D, Ball H (2007): Síndromes raros en psicopatología.
Triacastela. Madrid. p. 53
[16] Gogol N (2002): Diário de um louco. Assírio e Alvim. Lisboa.
[17] Enoch D, Ball H op. cit., 60
[18] Clérambault G G op cit., p. 268
[19] Enoch D, Ball H op cit., p. 61
[20] Ibíd., p. 66-67