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Leituras / Readings 53 Volume X Nº2 Março/Abril 2008 Adrián Gramary Médico Psiquiatra Correspondência relacionada com o artigo: Centro Hospitalar Conde de Ferreira Rua Costa Cabral, 1211, 4200-227 Porto e-mail: [email protected] 1- O fardo do amor Não faltam os exemplos, na história da literatura, de roman- cistas que se inspiraram em casos reais para elaborar os seus livros de ficção. Sem ir mais longe, sabe-se que dois vultos fundamentais do movimento realista e naturalista francês do século XIX, animados pelo seu afã de mimesis ou representa- ção veraz da sociedade, encontraram a ideia germinal para as suas obras em casos reais: Stendhal descobriu num jornal o A Sindrome de Clérambault Revisitada Revisiting the Clérambault’s Syndrome Gaëtan Gatian de Clérambault

A Sindrome de Clérambault Revisitada - Saúde Mentalsaude-mental.net/pdf/vol10_rev2_leituras1.pdf · tratado “Des maladies ... de Niro, protector de uma prostituta de 12 anos,

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Leituras / Readings

53

Volume X Nº2 Março/Abril 2008

Adrián GramaryMédico Psiquiatra

Correspondência relacionada com o artigo:

Centro Hospitalar Conde de FerreiraRua Costa Cabral, 1211, 4200-227 Portoe-mail: [email protected]

1- O fardo do amor

Não faltam os exemplos, na história da literatura, de roman-

cistas que se inspiraram em casos reais para elaborar os seus

livros de ficção. Sem ir mais longe, sabe-se que dois vultos

fundamentais do movimento realista e naturalista francês do

século XIX, animados pelo seu afã de mimesis ou representa-

ção veraz da sociedade, encontraram a ideia germinal para as

suas obras em casos reais: Stendhal descobriu num jornal o

A Sindrome de Clérambault Revisitada

Revisiting the Clérambault’s Syndrome

Gaëtan Gatian de Clérambault

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argumento básico para o seu romance “Le Rouge et le Noir”, e

Flaubert inspirou-se no “caso Delamare” - a mulher adúltera de

um médico rural da Normandia cujo suicídio se tinha tornado

famoso na região - para a personagem do seu livro imortal

“Madame Bovary”. O escritor inglês Ian McEwan, que faz

parte da geração literária de Martin Amis e Salman Rushdie,

deu um passo mais além e baseou o seu romance “O fardo

do Amor” (“Enduring love”)[1] num caso clínico de síndrome

de Clérambault homoerótico publicado no British Journal of

Psychiatry.

Para não desiludir quem possa esperar o contrário, torna-se

necessário ressalvar que, neste livro, McEwan parece menos

interessado em mergulhar na mente perturbada do doente do

que em analisar as repercussões que o aparecimento deste

tem na vida ordenada e equilibrada de John e Clarissa, um

casal pacato de jovens universitários londrinos.

Assim, somos testemunhas da deterioração progressiva do seu

relacionamento e do aparecimento gradual dos fantasmas da

desconfiança e da insegurança, que vão surgindo a volta da

paixão doentia que Parry, um jovem solitário e embebido em

delírios religiosos, sente por John.

Como é habitual nesta síndrome, o quadro tem como ponto

de partida um encontro casual: enquanto lancham num cam-

po situado nas redondezes de Londres, John e Clarissa são

surpreendidos pela visão do acidente de um balão tripulado

por uma criança e um adulto, em cujo resgate John partici-

pa, juntamente com outros espectadores, entre os quais se

encontra Parry.

Um olhar neutro de John torna-se para Parry em revelação de

uma paixão incomensurável, que interpreta como fazendo parte

de um desígnio divino, cujo objectivo é a salvação da alma de

John através do amor.

John confessa ao leitor retrospectivamente:

“Se soubesse na altura o que aquele olhar significava para ele

e de que forma viria mais tarde a elaborá-lo e a construir em

torno dele uma vida mental, não teria sido tão caloroso (…)

Ele olhou para mim, sem conseguir falar. Estava tudo – desde

cada gesto a cada palavra – a ser armazenado, acumulado

e empilhado, para servir de combustível ao longo Inverno da

sua obsessão.”[2]

O narrador assume desde o início a perspectiva do John, que

só abandona em três ocasiões, duas delas para mostrar as

cartas que nos permitem dirigir um olhar ao interior da mente

perturbada de Parry.

Esta estratégia narrativa torna-nos testemunhas de primeira

linha da evolução dos sentimentos do protagonista, um físico

dedicado à crítica freelancer para publicações científicas, um

racionalista aparentemente sem fissuras, que, ao contrário do

que afirma no início do livro, termina por descobrir que não tinha

tão boas defesas como acreditava perante a súbita instalação

do irracional na sua vida.

Sucedem-se, por parte de Parry, os comportamentos habituais

nestes casos: telefonemas insistentes, mensagens deixadas

no gravador de chamadas, cartas que nos falam de uma “vida

secreta” de palavras e gestos só perceptíveis para ele, esperas

à porta da casa, o assédio e, finalmente, a inevitável tentativa

de homicídio, quando Parry atinge a fase de rancor.

Até ao fim do relato, este mantém a convicção delirante de

que foi o objecto da paixão, John neste caso, quem começou

a comunicação amorosa: “Foi você que desencadeou isto.

Agora não pode voltar as costas”[3], acusa-o numa determi-

nada altura.

McEwan é um subtil observador dos sentimentos humanos,

como pode exemplificar o seguinte fragmento, em que John

parece terminar por compreender a autêntica natureza do

delírio de Parry:

“O seu amor não era definido por influências externas, nem

mesmo que partissem de mim. O seu mundo era determinado

a partir do interior, impelido por uma necessidade individual, e

era por isso que conseguia manter-se intacto. Não havia nada

que pudesse provar que ele estava errado, nem era necessário

nada que provasse que estava certo. Se lhe escrevesse uma

apaixonada declaração de amor, teria sido indiferente para ele

(…) Iluminava o mundo com os seus sentimentos, e o mundo

confirmava cada nova direcção que eles seguiam.”[4]

2- Erotomania e Síndrome de Clérambault

Existe certa confusão entre o conceito de erotomania e a Sín-

drome de Clérambault. A primeira, também denominada por

Esquirol monomania erótica, foi incluída por este no seu famoso

tratado “Des maladies mentales, considérées sous les rapports

médicaux, hygiéniques et médico-legaux”, publicado em 1838,

dentro do capítulo das monomanias, isto é, aquelas formas de

loucura limitadas a uma só ideia, sentimento ou instinto.[5]

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Para Esquirol a erotomania é “uma afecção cerebral crónica,

caracterizada por um amor excessivo por um objecto conhe-

cido ou imaginário”, salientando como núcleo psicopatológico

do quadro a existência de “um erro do entendimento”.[6]

Entre outros exemplos históricos, lembra-nos o psiquiatra fran-

cês o caso de um famoso erotómano por todos nós conhecido:

o cavaleiro Dom Quixote, possuído por uma paixão delirante

pela camponesa-princesa Dulcineia.[7]

Segundo a descrição da erotomania feita por Esquirol, a

direcção da seta da paixão iria inicialmente (e predominante-

mente) do sujeito delirante ao objecto amoroso, embora, como

recorda Alonso Fernández - que baptizou o quadro de Dom

Quixote “erotomania platónica” - termine por aparecer uma

dupla seta de ida e volta, ou seja, com sentimento próprio e

correspondido.[8]

A Síndrome de Clérambault ou psychose passionelle foi des-

crita em 1921 por Gäetan Gatian de Clérambault como um

subtipo específico de erotomania, mais frequente em mulheres,

caracterizado por um postulado inicial básico: o objecto do

amor, que tipicamente tem um status social mais elevado do

que o sujeito, é quem começou a amar e quem ama com mais

intensidade. O sujeito, em geral, inicia o seu delírio após um

contacto breve e ocasional com o objecto.[9]

Um dos casos descritos por Clérambault, que também apa-

rece citado no fim do livro de McEwan, tornou-se paradigma

do quadro:

“Uma francesa de 53 anos estava convencida de que o rei Jor-

ge V estava apaixonado por ela. Moveu-lhe uma perseguição

insistente a partir de 1918, tendo-se deslocado por diversas

vezes a Inglaterra. Costumava esperar por ele em frente do

Palácio de Buckingham. Uma vez viu uma cortina a mexer-se

numa das janelas do palácio e interpretou esse facto como

um sinal do rei. Afirmava que todos os habitantes de Londres

sabiam que ele a amava, mas alegava que a tinha impedido

de conseguir arranjar alojamento em Londres, que a tinha feito

perder as reservas que tinha feito nos hotéis e ainda que era

responsável pelo desaparecimento de toda a sua bagagem,

incluindo dinheiro e alguns retratos dele. «O rei pode odiar-

me, mas nunca poderá esquecer-me. Nunca poderei ser-lhe

indiferente, nem ele a mim. Faz-me sofrer em vão… Fui atraída

por ele desde as profundezas do meu coração…»[10]

Clérambault descreveu diferentes “temas derivados” que po-

dem surgir a partir do referido postulado fundamental: a crença

por parte do sujeito de que o objecto não pode ser feliz sem ele,

a crença de que o objecto não pode ter um valor completo sem

ele, a crença de que o objecto está livre pois o seu casamento

não é válido, o estabelecimento de uma vigilância contínua ou

de uma protecção contínua do objecto, conversação indirecta

com o objecto e o denominado comportamento paradoxal ou

contraditório do objecto.[11]

Este último, o comportamento paradoxal, é, segundo Cléram-

bault, um elemento essencial e sempre presente no quadro[12],

e constitui uma tentativa delirante de reatribuição de significado

aplicada aos comportamentos de rejeição eventualmente surgi-

dos do objecto, que passam a ser para o sujeito tentativas para

pôr à prova o seu amor, ou fruto das vacilações, ciúmes, ou

abulia do objecto, ou são explicados pela influência de amigos

ou terceiras pessoas que tentam afastar o sujeito do objecto

amoroso. Descreveu ainda três fases no quadro que veio a ter

o seu nome: esperança, ressentimento e rancor.[13]

Segundo a descrição de Clérambault, a direcção da seta da

paixão vai - e esta é a grande diferença com o conceito de

erotomania de Esquirol -, inicialmente (e predominantemente),

do objecto ao sujeito delirante.

A existência deste quadro como entidade nosológica autó-

noma, postura defendida por Clérambault, tem sido muito

discutida, ao ponto de na DSM-IV-TR aparecer integrado como

subtipo da perturbação delirante crónica ou paranóia.[14]

Enoch e Ball, autores do livro clássico “Uncommon Psychiatric

Syndromes”, estabelecem uma diferenciação entre erotomania

primária e secundária, entendendo por primárias as formas,

infrequentes, de delírio erotomaníaco puro, e por secundárias

as formas em que o delírio erotomaníaco aparece inserido em

quadros psicóticos mais complexos, nomeadamente esquizo-

frénicos ou paranóides.[15]

Alguém sugeriu, como exemplo literário de erotomania secun-

dária, o amor que o protagonista esquizofrénico do famoso

conto de Gogol “Diário de um louco” sente pela filha do

director de serviço.[16]

Diferentes autores salientaram o evidente narcisismo subja-

cente à Síndrome de Clérambault, um amor dirigido ao próprio

sujeito, negado ou projectado noutra pessoa.[17]

O próprio Clérambault sublinhava que a fonte principal da

erotomania era, na realidade, mais do que o amor, o orgulho: a

evolução seria do orgulho ao desejo, e deste à esperança.[18]

Se a esperança não se concretizar, o sentimento podia-se

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transformar facilmente, pensava ele, em ressentimento e ran-

cor. Como concluem Enoch e Ball numa frase certamente feliz,

a erotomania, segundo Clérambault, “trata fundamentalmente

de ser amado e não de amar”.[19]

3- Implicações forenses

Este quadro pode ter importantes implicações forenses, pois

não é infrequente que o sujeito termine por provocar graves

alterações na vida do seu objecto amoroso. Os doentes com

este quadro podem submeter o objecto, durante períodos

de tempo muito prolongados, a um bombardeio de cartas e

telefonemas sem conta, quer no âmbito laboral, quer no âm-

bito privado. Como resultado, não é difícil imaginar a pressão

psicológica insuportável que sofrem algumas vítimas.

Alguns doentes terminam por ser detidos, acusados de assédio

ou de agressão física ao objecto do seu delírio, sendo mais

provável que esta última aconteça quando o doente atinge a

fase de ressentimento e ódio, que frequentemente substitui o

sentimento amoroso após as suas demandas serem repetida-

mente frustradas.[20]

Há um caso de erotomania que se tornou famoso no início dos

anos oitenta pelas suas repercussões forenses, por terminar

com uma tentativa frustrada de homicídio do então presidente

Ronald Reagan.

O protagonista, John Hinckley, tinha uma obsessão pela actriz

Jodie Foster, cujo início remontava aos anos 70, quando tinha

visto no cinema o filme Taxi Driver de Martin Scorsese. Após

a visualização do filme mais de quinze vezes ao longo dessa

década, sofreu um processo de identificação com o protago-

nista do mesmo, Travis Bickle, interpretado no ecrã por Robert

de Niro, protector de uma prostituta de 12 anos, interpretada

por Jodie Foster.

Nos anos seguintes, Hinckley dedicou-se a seguir os movimen-

tos de Jodie Foster ao longo do país, chegando a inscrever-se

na Universidade de Yale ao saber que ela estudava nesse

centro. Dirigiu inúmeras cartas e chegou a telefonar duas vezes

para ela, recusando-se a desistir quando esta lhe disse que

não estava interessada nele.

Convencido de que só transformando-se numa figura pública

poderia atrair a atenção da actriz e conseguir o seu amor, co-

meçou a seguir o então presidente Jimmy Carter, acto também

inspirado no mesmo filme. Não o conseguiu com Carter, mas

terminou por concretizar o seu objectivo com Ronald Reagan,

atingindo-o com o seu revolver no dia 30 de Março de 1981,

quando este saia de fazer um discurso no Hotel Hilton de

Washington.

4- Um final dramático

Clérambault tem um espaço reservado na história da psico-

patologia, via Henri Ey, fundamentalmente graças à psychose

passionelle e ao conceito de automatismo mental. Leccionou

na Universidade de Paris e teve uma actividade profissional

ligada basicamente à psiquiatria forense, desenvolvendo o seu

trabalho durante cerca de 30 anos na Enfermaria Especial da

Prefeitura da Polícia de Paris.

Não publicou nenhum livro durante a sua vida, o que permite

explicar que a sua Oeuvre Psychiatrique, publicada em 1942,

seja, em essência, uma recolha das aulas ministradas por ele

juntamente com artigos dispersos por diferentes revistas.

Foi aluno de Lasegue e professor de Lacan, que o considerava

o seu mestre único. Há unanimidade no reconhecimento do

valor da sua capacidade excepcional para a observação e a

descrição do fenómeno psíquico. Suicidou-se em 1934 com

um tiro de pistola no se domicílio de Montrouge, ao que parece,

por incapacidade de aceitar a cegueira quase total que resultou

de uma cirurgia de cataratas.

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Bibliografia:

[1] McEwan I (1997): O fardo do amor. Gradiva. Lisboa.

[2] Ibíd., p. 23-24

[3] Ibíd., p. 64

[4] Ibíd., p. 119

[5] Esquirol, E (2007): Tratado completo de las enajenaciones men-

tales consideradas bajo su aspecto médico, higiénico y médico-

legal. Madrid. 1856. Traducción de D. Raimundo de Monasterio

y Correa. (Edición facsímil. Extramuros Edición SL. Universidad

de Cadiz)

[6] Ibíd., p. 229

[7] Ibíd., p. 234

[8] Alonso Fernández F (2005): El Quijote y su laberinto vital. Anthro-

pos. Barcelona. p.122

[9] Clérambault G G: Los delirios pasionales: erotomania, reivindica-

ción y celos. In Colina F, Álvarez JM eds. (1994): Ballet, Capgras,

Clérambault, Falret, Lasegue, Magnan, Serieux: El delirio en la

clínica francesa. Colección Clásicos de la Psiquiatría. Dorsa

Ediciones. Madrid. P. 267-279

[10] McEwan I op cit., p. 192-193

[11] Clérambault G G op cit., p. 269

[12] Ibíd., p. 269

[13] Ibíd., p. 268-269

[14] American Psychiatric Association (2002): Manual de Diagnóstico

e Estatística das Perturbações Mentais 4ª edição Texto Revisto

(DSM-IV-TR). Climepsi Editores. Lisboa. p. 324

[15] Enoch D, Ball H (2007): Síndromes raros en psicopatología.

Triacastela. Madrid. p. 53

[16] Gogol N (2002): Diário de um louco. Assírio e Alvim. Lisboa.

[17] Enoch D, Ball H op. cit., 60

[18] Clérambault G G op cit., p. 268

[19] Enoch D, Ball H op cit., p. 61

[20] Ibíd., p. 66-67